8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
1/296
1
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
2/296
2
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
3/296
3
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
4/296
4
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
5/296
5
Memria, Verdade e Justia:
As Marcas das Ditaduras do Cone Sul
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
6/296
6
MESA DIRETORA 2011Presidente: Dep. Ado Villaverde PT
1 Vice-Presidente: Dep. Jos Sperotto PTB
2 Vice-Presidente: Dep. Frederico Antunes PP
1 Secretrio: Dep. Alexandre Postal PMDB
2 Secretrio: Dep. Alceu Barbosa PDT
3 Secretria: Dep. Zil Breitenbach PSDB
4 Secretrio: Dep. Catarina Paladini PSB
SUPLENTES:1 Suplente de Secretrio: Valdeci Oliveira PT
2 Suplente de Secretrio: Luciano Azevedo PPS
3 Suplente de Secretrio: Raul Carrion PCdoB
4 Suplente de Secretrio: Paulo Borges DEM
ESCOLA DO LEGISLATIVOPresidente: Dep. Jeerson Fernandes PT
Diretora: Crmen Lcia da Silveira Nunes
Coordenadora da Diviso de Publicaes: Vanessa Albertinence Lopez
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
7/296
7
Memria, Verdade e Justia:
As Marcas das Ditaduras do Cone Sul
OrganizadoresEnrique Serra Padrs
Crmen Lcia da Silveira Nunes
Vanessa Albertinence Lopez
Ananda Simes Fernandes
1 edio
Porto Alegre
2011
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
8/296
8
Copyright
Arte da capa Dado NascimentoProjeto Grco Everton PortoDiagramao Everton Porto
Reviso de Lngua Portuguesa
Hilda PedrolloVanessa Albertinence Lopez
SupervisoTcnica
Snia Domingues Santos Brambilla CRB 10/1679Diviso de Biblioteca da Assembleia Legislativa RS
Endereo para correspondncia
Escola do Legislativo Deputado Romildo BolzanPraa Marechal Deodoro, n 101 Solar dos CmaraCEP 90010-900 Porto Alegre/RS Brasil
Esta obra composta por um livro eletrnico e por um CD com as seguintes msicas: Faixa 1:O gacho, de Raul Ellwanger; Faixa 2: Te procuro l, de Raul Ellwanger/Ferreira Gullar; Faixa3: Pequeno Exilado, de Raul Ellwanger; Faixa 4: Pealo de Sangue, de Raul Ellwanger; Faixa 5:Cano do Desaparecido, de Raul Ellwanger (indita); Faixa 6: Maria vai, de Antonio Tarrag Ros,
verso de Raul Ellwanger; Faixa 7: Caminho, Cano e Memria, de Raul Ellwanger (indita);Faixa 8: Eu s peo a Deus, de Len Gieco, verso de Raul Ellwanger.
Os conceitos emitidos neste livro so de inteira responsabilidade dos autores. permitida a reproduo parcial ou total, desde que citada a onte e mantido o texto original.
Distribuio gratuita. Venda proibida.
Memria, verdade e justia [recurso eletrnico] : as marcas das ditaduras do ConeSul / organizadores Enrique Serra Padrs, Crmen Lcia da Silveira Nunes,Vanessa Albertinence Lopez, Ananda Simes Fernandes. Dados eletrnicos. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2011.
291 p. : il.
Modo de acesso: Disponvel emhttp://www2.al.rs.gov.br/escola/Publicaes/tabid/2333/Deault.aspxObra composta por um livro eletrnico e por um CD com msicas.Textos elaborados a partir do seminrio Memria, Verdade e Justia: as marcas dasditaduras do Cone Sul, realizado em 30 e 31 de maro e 1 de abril, em parceria entreEscola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan/ALRS, Universidade Federal do RioGrande do SUL (UFRGS), Memorial do Rio Grande do Sul, Arquivo Histrico do RioGrande do Sul, Teatro de Arena e Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul.
1. Ditadura Amrica do Sul. 2. Movimento Poltico. I. Padrs, Enrique Serra(org.). II. Crmen Lcia da Silveira Nunes (org.). III. Lopez, Vanessa Albertinence(org.). IV. Fernandes, Ananda Simes (org.). V. Ttulo.
Dados Internacionais de Catalogao na Fonte (CIP Brasil)
CDU: edio mdia em lngua portuguesaResponsabilidade: Biblioteca Borges de Medeiros Snia D. S. Brambilla CRB-10/1679
CDU 980(093)
M553
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
9/296
9
Ao companheiro Minhoca(Carlos Alberto Tejera De R),
que lutou contra a ditadura,a tortura
e o esquecimento,e nunca perdeu a ternura!
Jamais!
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
10/296
10
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
11/296
11
Caminho, Cano e Memria1
Raul Ellwanger
No me peas que me caleNaquilo que mais eu cantoDas lembranas que me valemAlegrias e espantosTombei morto em meus amigosPendurei-me em duras traves
Olateei o sangue vivoNas lajotas sujas, gradesNo me peas que me caleMeu caminho que me vale
Flor do caet foresceNa imensido da restingaCicatriz, desejo, prece
Na solido clandestinaAnseio de muitos braosQuerendo mudar a histriaTe revejo nestes versosCaminho, cano e memria
Assim menino sentiA mo sinistra das castasA perda innita que mata
O erro, a dor, a chibataBonita cano da vidaEntre amores, sonhos, guerrasNo orgulho das eridasQue ganhamos nesta terraNo me peas que me caleMeu caminho que me vale.
Dedicada a Carlos Alberto Tejera De R, o Minhoca.
1 Esta cano encontra-se no CD que compe esta obra.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
12/296
12
Carlos Alberto Tejera De R. Foto: Marco Couto/Agncia ALRS
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
13/296
13
Um companheiro, de verdade
Carlos Arajo1
D para tirar as algemas?
No d.
Ao entardecer de um dia nublado, rio e com muito vento, no
nal do ms de julho de 1972, aps uma angustiante travessia do Guaba
em um pequeno barco do DOPS, algemado, cheguei Ilha do Presdio,transerido do Presdio Tiradentes de So Paulo.
Como era de praxe em tais oportunidades, os companheiros
esperavam no porto do prdio do presdio. Aps os cumprimentos
habituais, todos queriam saber das novidades, de como se encontravam
os demais companheiros presos, qual era a anlise da conjuntura, etc.
Na longa troca de ideias que se seguiu, salientou-se um jovemimpetuoso, perguntador e opinitico. Tambm, irreverente. De uma
irreverncia dierente, mesclada de aetuosidade. Foi assim que conheci Carlos
De R nos seus 21 anos de idade. Naquele momento nasceu uma amizade
que com o tempo iria se transormar em um verdadeiro companheirismo.
No De R a postura poltica vinha sempre irmanada com orte
dose emocional. Esta explosiva combinao, no entanto, nunca turvou sualucidez nem arreeceu sua dedicao luta. Inconormismo, lucidez, coragem,
honradez e aeto integravam sua inconundvel bagagem ideolgica.
De R oi, sobretudo, um combatente. Um combatente de
reregas interminveis, de horizontes inatingveis e de amores eternos.
Um militante das causas justas, um militante do mundo.
1 Advogado, ex-deputado estadual, ex-dirigente poltico da Vanguarda Armada RevolucionriaPalmares (VAR-Palmares), preso e torturado no perodo da ditadura civil-militar.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
14/296
14
Nos ltimos tempos, dizia-me sempre:
Eles destruram a Constituio do Brasil! Ns deendemos a democracia.
Ns omos condenados.
Eles no oram julgados.
Por certo, ainda h muito que trilhar pelas veredas da democracia.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
15/296
15
Sumrio
Apresentao daAssembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul ............................. 19Ado Villaverde
Apresentao daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul ................................................. 23Temstocles Cezar e Enrique Serra Padrs
Precio ........................................................................................................ 25Enrique Serra Padrs, Crmen Lcia da Silveira Nunes,Vanessa Albertinence Lopez e Ananda Simes Fernandes
Introduo .................................................................................................... 33Enrique Serra Padrs, Crmen Lcia da Silveira Nunes,
Vanessa Albertinence Lopez e Ananda Simes Fernandes
Parte I O sequestro de crianas no Cone Sul
Esta guerra no es contra los nios: o sequestro de crianasdurante as ditaduras de Segurana Nacional no Cone Sul ............................. 47
Ananda Simes Fernandes
O sequestro de crianas no Cone Sul Depoimento de Camilo Casariego Celiberti.................................................... 65
O sequestro de crianas no Cone Sul Depoimento deEdson Teles ........................................................................... 71
Os eeitos do terrorismo de Estado nas crianas:o documentrio 15 flhos ............................................................................... 89Caroline Silveira Bauer
Parte II Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sul
Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sul Apresentao Musical de Raul Ellwanger................................................... 105
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
16/296
16
Apresentao .............................................................................................. 117Jeerson Fernandes
Histria, memria e indignao:31 de maro, Rio Grande do Sul ................................................................. 121Cesar Augusto Barcellos Guazzelli
Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sul Depoimento de Sereno Chaise..................................................................... 135
Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sul
Depoimento deAntenor Ferrari .................................................................. 149
Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sul Depoimento de Raul Pont.......................................................................... 163
Parte III Memria, Verdade e Justia
O i Nois, a memria e a justia ................................................................. 179
Clarice Falco
O resgate do passado recente eas dimenses da luta pela Verdade e Justia ................................................. 185
Enrique Serra Padrs
Memria, Verdade e Justia Depoimento deEstela de Carlotto ................................................................ 199
Memria, Verdade e Justia Depoimento de Suzana Keniger Lisba ....................................................... 211
Memria, Verdade e Justia Depoimento de Luis Puig........................................................................... 223
Memria, Verdade e Justia Depoimento deNadine Borges .................................................................... 233
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
17/296
17
Parte IV Estado e polticas de memria
Democracia e estado de exceo no Brasil ................................................... 245Edson Teles
El sujeto-vctima en las polticas de reparacin y memria ........................... 253Ricard Vinyes
Por que no esquecer? Memria, verdade, justiae suas implicaes para a democracia brasileira ........................................... 265Franciele Becher e Marla Barbosa Assumpo
Por memria e justia: arquivos de verdade! ................................................ 273Clarissa de Lourdes Sommer Alves e Fernanda de Lannoy Strmer
Escolas do Legislativo: agentes de preservao da memria ........................ 283Daniela Oliveira Comim e Vanessa Albertinence Lopez
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
18/296
18
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
19/296
19
Apresentao da Assembleia Legislativa
do Estado do Rio Grande do Sul
Ado Villaverde1
Neste 2011, ano dos Grandes Debates na Assembleia
Legislativa rio-grandense, buscamos colocar o Parlamento gacho no
centro das questes vitais do nosso Estado e promovemos uma srie de
discusses essenciais para o crescimento do Rio Grande do Sul, para o
amadurecimento da democracia e para o ortalecimento do papel do
Legislativo em nossa sociedade. Voltamos a ser protagonistas dos nossos
destinos e agentes das nossas aes.
Dentre os vrios temas que estiveram em pauta no primeiro ano da
53 Legislatura desta Casa, podemos destacar o cinquentenrio da Legalidade,
comemorado e relembrado para que as novas geraes conhecessem a histria
e os eeitos reais daquela pica mobilizao poltico-social liderada pelo
governador Leonel Brizola, que permitiu a posse do vice-presidente Joo
Goulart na presidncia da Repblica, aps a renncia de Jnio Quadros, e
que contou com orte apoio, ressonncia e sustentao social.
E que, ao fm e ao cabo, deu dimenso e criou as condies
para que ao menos osse protelado aquele indesejvel momento que,
inelizmente, sucedeu em nosso pas, com a ditadura implantada aps o
golpe civil-militar de 1964.
Por meio de programao ofcial realizada em parceria com o
Governo do Estado do Rio Grande do Sul, tivemos a oportunidade de
registrar, de atualizar e de azer justia atuao do Parlamento gacho, que,
poca, demonstrou apoio incondicional e de primeira hora quela resistncia.
1 Presidente da Assembleia Legislativa do RS.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
20/296
20
O livro O Movimento da Legalidade: Assembleia Legislativa e
Mobilizao Poltica, elaborado pelo Memorial do Legislativo em parceria com
o Instituto de Filosofa e Cincias Humanas (IFCH) da UFRGS e assinado
pelos proessores Maria Izabel Noll, Claudia Wassermann, Carla Brandalise
e Luiz Alberto Grij, aprounda a anlise das condies que concorreram
para o posicionamento do Poder Legislativo, que fcou em sesso permanente
por 18 dias e ajudou a consolidar um ambiente institucional avorvel deesa
da Constituio, do estado de direito e da democracia.
Da mesma orma, o seminrio Memria, Verdade e Justia: AsMarcas das Ditaduras do Cone Sul, realizado em 30 e 31 de maro e 1
de abril, em parceria entre a Escola do Legislativo Deputado Romildo
Bolzan, a UFRGS, o Memorial do Rio Grande do Sul, o Arquivo
Histrico do Rio Grande do Sul, o Teatro de Arena e o Arquivo Pblico
do Estado do Rio Grande do Sul e que d origem a este livro, trouxe
tona histrias e lembranas no contempladas pelos relatos ofciais.O evento ampliou o lastro de debates sobre o triste legado das duas
dcadas de ditadura civil-militar a que omos submetidos.
O sequestro de crianas no Cone Sul, as memrias da resistncia
no Rio Grande do Sul com depoimentos de polticos que lutaram pela
volta da democracia, seja na ormalidade da Assembleia gacha ou na prpria
clandestinidade e a temtica da memria, da verdade e da justia: os direitoshumanos e os deveres do Estado esto representados nesta publicao.
A presente obra oerece, com muita coerncia, uma continuidade
a um trabalho de resgate destas memrias iniciado em 2009, com a
primeira edio da coletnea A Ditadura de Segurana Nacional no Rio
Grande do Sul (1964-1985): Histria e Memria, elaborada tambm em
parceria com a UFRGS e publicada no perodo em que tive a honra depresidir esta Escola do Legislativo.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
21/296
21
Uma democracia saudvel precisa de parlamentos que, alm de
se inserirem nas principais questes que permeiam a vida em sociedade,
deixem um legado para os seus cidados. E oi isto que fzemos em
2011: debatemos os grande temas de nossa poca e entregamos mais
uma obra que registra nosso passado, resgatando uma histria ainda
no totalmente contada. Precisamos conhecer esse passado para que as
barbaridades j eitas em nome do Estado nunca mais se repitam.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
22/296
22
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
23/296
23
Apresentao da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul
Temstocles Cezar1
Enrique Serra Padrs2
A publicao Memria, Verdade e Justia: as marcas das ditaduras
do Cone Sul uma nova produo resultante da parceria que a Escola do
Legislativo da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e o Institutode Filosoa e Cincias Humanas (IFCH) da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) iniciaram no ano de 2009. Trata-se de uma
continuidade da pesquisa e resgate de depoimentos que constituram os
quatro volumes da coletnea A Ditadura de Segurana Nacional no Rio
Grande do Sul (1964-1985): Histria e Memria. Este novo livro amplia e
diversica o olhar sobre as experincias autoritrias no Cone Sul, introduze repercute o debate sobre a ormao e o papel das comisses da verdade
e abre espao para conhecer as experincias do Uruguai e da Argentina.
A qualicada trajetria dos autores dos depoimentos e dos
textos apresentados neste volume permite uma viso abrangente em que
o undamental consiste na interao entre a atuao pblica, o relato
testemunhal e a pesquisa e refexo acadmica. Nesse sentido, isto conrmado por meio do dilogo que se estabelece a partir da participao
de protagonistas emblemticos, tanto do campo das organizaes de
direitos humanos a abuela Estela de Carlotto, Suzana Lisba e Camilo
Casariego Celiberti quanto da poltica partidria casos do ex-
preeito Sereno Chaise, dos legisladores Luis Puig, uruguaio, Antenor
1 Diretor do Instituto de Filosoa e Cincias Humanas/UFRGS.2 Proessor do Departamento e do Programa de Ps-Graduao em Histria do IFCH/UFRGS
e Coordenador geral do presente projeto.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
24/296
24
Ferrari e Raul Pont, gachos, bem como da assessora da Secretaria dos
Direitos Humanos da Presidncia da Repblica Nadine Borges e do
espao acadmico situao do lsoo e integrante da Comisso de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Polticos Edson Teles, de Cesar
Guazzelli e Ricard Vinyes, entre outros.
Para a UFRGS e para o IFCH, motivo de orgulho ver a
participao de antigos alunos que, agora ocupando espaos prossionais
de destaque em arquivos pblicos, instituies culturais e de ensino,
persistem, de maneira consequente, como pesquisadores, docentes ecidados, acompanhando estes temas da histria recente que h um bom
tempo vm sendo acolhidos na dinmica de trabalho e de produo de
conhecimento do IFCH.
Participando de projetos como este, o IFCH, em particular, e a
UFRGS, de orma geral, cumprem a sua trplice uno: ensino, pesquisa
e extenso. Apesquisa est presente na produo de conhecimento sobreos mais diversos aspectos vinculados histria recente, o que pode ser
medido pela produo de seus docentes e dos discentes egressos dos cursos
de Mestrado e Doutorado; o ensino est contemplado na proposio de
atividades multiplicadoras que procuram chegar aos proessores da rede
estadual de ensino; nalmente, a extenso permite que o conhecimento
produzido no mbito da universidade chegue sociedade por meio devariadas ormas de atuao, como cursos, ciclos de cinema, seminrios e
exposies, entre tantas outras possibilidades, como o caso da atividade
que est na origem desta obra ora entregue ao pblico.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
25/296
25
Prefcio
Enrique Serra PadrsCrmen Lcia da Silveira Nunes
Vanessa Albertinence LopezAnanda Simes Fernandes
I. O seminrio
Cantamos porque llueve sobre el surcoy somos militantes de la vida
y porque no podemos ni queremosdejar que la cancin se haga ceniza.
Por qu cantamos, Mario Benedetti y Alberto Favero
Este livro ruto de um acmulo de oras de pessoas e
instituies que se empenharam em realizar o seminrio internacional
Memria, Verdade e Justia: as Marcas das Ditaduras do Cone Sul. Tambm
resultado de parcerias antigas que produziram diversos eventos
relacionados temtica das ditaduras de Segurana Nacional.
Desse modo, o Departamento e Programa de Ps-Graduao
em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
juntamente com o Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul,
desde o ano de 2006 promove seminrios que envolvem a discusso e o
debate desse perodo da nossa histria.
J em 2009, o Departamento de Histria da UFRGS e a
Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, por meio da
Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan, realizaram, no dia 31
de maro, o seminrio 45 Anos do Golpe de 1964 a Noite que Durou 21
Anos, que contou com a participao de diversos pesquisadores da rea.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
26/296
26
O xito deste seminrio oi to grande que ambas as instituies
propuseram o lanamento de uma coletnea de livros que tratasse sobre
a ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul, pois, at o momento,no havia obras que abordassem especicamente e de maneira mais
abrangente diversos aspectos da ditadura no mbito estadual. Foram
convidados para participar da coletnea pesquisadores e depoentes, visto
que a inteno era abordarmos a histria e a memria desse momento.
Assim, em pouqussimos meses de trabalho, oi lanada no Frum Social
Mundial de 2010, em Porto Alegre, a coleo A Ditadura de SeguranaNacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): Histria e Memria. Essa
coleo oi constituda pelos volumes: 1) Da Campanha da Legalidade
ao Golpe de 1964; 2) Represso e Resistncia nos Anos de Chumbo;
3) Conexo Repressiva e Operao Condor; 4) O Fim da Ditadura e o
Processo de Redemocratizao.
Foram impressos mil exemplares da coletnea para seremdistribudos gratuitamente populao. Entretanto, este nmero
mostrou-se pequeno, pois, em menos de trs horas, a tiragem se esgotou.
Uma segunda edio completa, revista e ampliada, oi lanada em
dezembro de 2010, e est sendo amplamente usada por pesquisadores
desta temtica em seus trabalhos, assim como lida por inmeras pessoas
que desejam conhecer melhor a nossa histria.1
Embalados pela acolhida destes eventos, o Departamento e
o Programa de Ps-Graduao em Histria da UFRGS, a Escola do
Legislativo Deputado Romildo Bolzan e o Arquivo Pblico do Estado
do Rio Grande do Sul propuseram a realizao, em 2011, do seminrio
que teve como lema uma consigna muito cara para seus realizadores
Memria, Verdade e Justia: as Marcas das Ditaduras do Cone Sul. Assim,1 Encontra-se disponvel no stio eletrnico: .
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
27/296
27
nossa preocupao era trazer o debate e a refexo para a sociedade gacha
sobre as sequelas ainda presentes na nossa democracia provocadas por
aquele longo perodo autoritrio, assim como refexes sobre as medidasnecessrias para que isto seja superado.
O Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul, o Memorial do
Rio Grande do Sul e o Teatro de Arena somaram-se aos esoros da
realizao deste seminrio internacional.
Vinculado ao seminrio tambm oi proposto o chamamento da
I Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos,2 na tentativa deagregar trabalhos de dierentes reas de pesquisas que tivessem como mote
a anlise do perodo da ditadura e suas consequncias at os dias atuais.
Assim, no dia 30 de maro de 2011, no auditrio do Memorial
do Rio Grande do Sul, houve a mesa Ditaduras de Segurana Nacional: o
sequestro de crianas, que contou com a participao dos depoentes Camilo
Casariego Celiberti e Edson Teles, alm da mediao da historiadora doArquivo Histrico do Rio Grande do Sul Ananda Simes Fernandes e
a exibio do documentrio 15 flhos.
No dia 31 de maro, as atividades ocorreram no Plenarinho da
Assembleia Legislativa e oram abertas com a participao do msico e
compositor Raul Ellwanger, que por meio de uma apresentao musical
comentada, trouxe refexo a questo do azer artstico engajado em temposde autoritarismo e represso. Os trabalhos prosseguiram na Assembleia com
os depoimentos de polticos vinculados Casa e que tiveram, cada um a seu
modo, seu papel na luta contra a ditadura: Sereno Chaise, Antenor Ferrari
e Raul Pont. Essa mesa, intitulada Memrias da Resistncia no Rio Grande
2 Nos dias 2, 9, 13 e 30 de abril realizou-se, no Arquivo Pblico, a I Jornada de Estudos sobre
Ditaduras e Direitos Humanos, que recebeu 64 propostas de investigao, totalizando 71pesquisadores. Os artigos aceitos para apresentao, inclusive, j se encontram disponveis no sitedo Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul. Endereo eletrnico:
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
28/296
28
do Sul, oi mediada pelo presidente da Escola do Legislativo, deputado
Jeerson Fernandes, e pelo proessor Cesar Guazzelli, da UFRGS.
No ltimo dia do evento, 1 de abril, a Tribo de Atuadores iNis Aqui Traveiz realizou interveno teatral sobre os desaparecidos
em rente Reitoria da UFRGS. A seguir, ocorreu a instalao da
mesa Memria, Verdade e Justia: Direitos Humanos e Deveres do Estado,
mediada pelo proessor Enrique Serra Padrs (UFRGS) e integrada por
Estela de Carlotto (presidente daAsociacin Abuelas de Plaza de Mayo),
Suzana Lisba (Comisso de Familiares de Mortos e Desaparecidos)e Luis Puig (deputado uruguaio da Frente Ampla e vinculado aos
Direitos Humanos). Alm disso, houve tambm a ala de Nadine
Borges, representando a ministra Maria do Rosrio, da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidncia da Repblica.
Devido grande repercusso do seminrio oram 55
inseres na mdia espontnea , a Escola do Legislativo DeputadoRomildo Bolzan, juntamente com o Departamento e Programa de
Ps-Graduao em Histria da UFRGS e demais realizadores, tomou
a tarea de transcrever os depoimentos do seminrio a m de que a
populao pudesse se apropriar desse passado recente que ainda persiste
no presente. Para tanto, est sendo oerecido este livro, que conta ainda
com a refexo dos mediadores e organizadores do evento sobre aquesto das ditaduras de Segurana Nacional e suas implicaes. Desde
j, agradecemos a todos que contriburam para a eitura deste livro, e,
em especial, aos depoentes, sobreviventes de uma triste poca que no
pode ser relegada ao esquecimento.
Por m, importante destacar o papel que as diversas
instituies que tornaram esse evento possvel esto desempenhandojunto sociedade gacha para promover um espao de produo, debate
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
29/296
29
e refexo do conhecimento. Destaca-se tambm a participao eetiva
de servidores que, de uma maneira ou outra, contriburam para que esse
espao de divulgao osse oerecido.
II. A obra
La historia es nuestra y la hacen los pueblos.
Salvador Allende, 11 de setembro de 1973.
O livroMemria, Verdade e Justia: as marcas das ditaduras do Cone
Sulinicia-se com a Parte I O sequestro de crianas no Cone Sul. Destacam-
se os depoimentos de Camilo Casariego Celiberti e Edson Teles, crianas
quando oram sequestrados pelos agentes do Estado durante a ditadura.
Lilin Celiberti e Universindo Rodrguez Daz oram
sequestrados, em 1978, em Porto Alegre, num operativo Condor quecongregou o aparato repressivo uruguaio e brasileiro, conhecido como o
sequestro dos uruguaios. Depois da denncia do jornalista Luiz Cludio
Cunha e do otgrao Joo Batista Scalco, a operao oi desmanchada.
Camilo (sete anos) e Francesca (trs anos), lhos de Lilin, tambm oram
sequestrados e levados para o Departamento de Ordem Poltica e Social
do Rio Grande do Sul (DOPS/RS). Camilo teve um papel decisivo noesclarecimento da trama ao conrmar o local do seu cativeiro em Porto
Alegre: reconheceu o Arroio Dilvio, que ele via do segundo andar do
prdio da Secretaria de Segurana Pblica, onde uncionava o DOPS.
Edson Teles lho e sobrinho de presos polticos e, aos quatro
anos de idade, oi sequestrado e levado para as dependncias do Doi-
Codi de So Paulo, juntamente com sua irm, Janana (cinco anos), esua tia, Crimia de Almeida, grvida de oito meses. As crianas caram
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
30/296
30
presas durante dez dias no centro de represso, assistindo s sesses de
tortura s quais seus pais oram submetidos. Em 2008, a amlia Almeida
Teles ganhou na Justia a ao declaratria contra o chee do Doi-Codi/SP, Carlos Alberto Brilhante Ustra.
A Parte II Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sultrata dos
depoimentos de polticos dos tempos da ditadura e de polticos de agora
que resistiram e lutaram contra esse regime. Esta parte traz ainda, em
sua abertura, as letras das canes apresentadas pelo cantor e compositor
Raul Ellwanger durante o seminrioMemria, Verdade e Justia: as Marcasdas Ditaduras do Cone Sul entre elas a indita Cano do Desaparecido ,
intercaladas por refexes acerca da perseguio sorida durante a ditadura
e seu consequente exlio em dierentes pases da Amrica Latina.
Sereno Chaise oi deputado estadual do Rio Grande do Sul entre
1959 e 1963 pelo PTB. Em 1963, elegeu-se preeito de Porto Alegre,
assumindo o cargo em janeiro de 1964. Um dos lderes da resistnciaao golpe civil-militar, Sereno chegou a ser preso nos primeiros dias da
ditadura e teve seu mandato cassado logo depois.
Antenor Ferrari oi deputado estadual pelo MDB e presidiu a
primeira Comisso de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia
Legislativa, criada em 1980 inclusive, a primeira no Brasil.
Raul Pont deputado estadual pelo PT. Historiador, oi lderestudantil e presidiu o DCE Livre da UFRGS, em 1968. Foi perseguido
pela ditadura brasileira.
J a Parte III Memria, Verdade e Justia abre com texto de
Clarice Falco sobre os 33 anos de trabalho da Tribo de Atuadores i
Nis Aqui Traveiz em prol da conscincia crtica. Na continuidade, traz
os depoimentos de militantes dos direitos humanos, abordando a sualuta em busca dessa consigna.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
31/296
31
O primeiro depoimento da presidente da Asociacin Abuelas
de Plaza de Mayo, Estela de Carlotto. Sua lha oi sequestrada e
enviada a um centro de deteno clandestino quando estava grvidade trs meses. O corpo de sua lha lhe oi devolvido. Seu neto, no
entanto, no lhe oi entregue. At hoje, Estela segue em sua busca. A
ditadura argentina sequestrou e expropriou a identidade de mais de
500 crianas. At o presente momento, pouco mais de cem crianas
tiveram suas identidades restitudas.
A seguir, temos o depoimento de Suzana Keniger Lisba,integrante da Comisso de Familiares dos Mortos e Desaparecidos.
Seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisba, oi o primeiro desaparecido
poltico da ditadura brasileira cujos restos oram encontrados, em
uma vala comum do Cemitrio de Perus, em So Paulo, a partir dos
esoros dos amiliares. A denncia dessa descoberta ocorreu no mesmo
dia da aprovao da Lei de Anistia no Brasil (13 de agosto de 1979).Luiz Eurico oi o primeiro desaparecido poltico a ser reconhecido
ocialmente pelo Estado como assassinado pelo sistema repressivo.
Luis Puig deputado do Partido por la Victoria del Pueblo
(PVP), pela Frente Ampla do Uruguai. Tambm sindicalista
e secretrio de Direitos Humanos do Plenario Intersindical de
Trabajadores Convencin Nacional de Trabajadores (PIT CNT).Foi representante da CNT na Coordenao Nacional pela Anulao
da Ley de Caducidad.
Nadine Borges, na poca Diretora da Comisso Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Polticos, representou a ministra
Maria do Rosrio, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia
da Repblica.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
32/296
32
A Parte IV Estado e polticas de memria agrega os textos
das apresentaes do proessor e lsoo da Universidade Federal de
So Paulo Edson Teles e do proessor e historiador da Universitat deBarcelona Ricard Vinyes durante a I Jornada de Estudos sobre Ditaduras
e Direitos Humanos, assim como textos de integrantes da comisso
organizadora do seminrio.
Para que no se esquea
Para que nunca mais acontea!
Os organizadores
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
33/296
33
Introduo
Enrique Serra PadrsCrmen Lcia da Silveira Nunes
Vanessa Albertinence LopezAnanda Simes Fernandes
I. Memria
Hay quienes imaginan el olvidocomo un depsito desierto / una
cosecha de la nada y sin embargoel olvido est lleno de memoria.
El olvido est lleno de memoria, Mario Benedetti
O Brasil conhecido, nos demais pases que tambm soreram
ditaduras de Segurana Nacional, como o pas dosilncio. Isso se deve,
entre outros motivos, ao ato de que a ditadura brasileira gerou a
desmemria, um processo que no o simples esquecimento, mas, sim,
o apagamento de atos e a impossibilidade de lembr-los. Vrios atores
contriburam para a normalizao da violncia estatal e a interdio do
passado: o milagre econmico, a distenso lenta, segura e gradual
promovida pelo governo, a anistia conduzida pelos militares, alm dolongo perodo ditatorial que levou ao esquecimento ou diluio dos
eeitos na sociedade do terror promovido pelo Estado. Este alheamento
do passado aconteceu simultaneamente ao incio da poltica econmica
do neoliberalismo, azendo com que o processo de esquecimento osse
acentuado propositalmente anal, era importante apresentar os
pases do Cone Sul com condies para a implantao desse modeloeconmico o que se deu de orma dierente em cada um deles.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
34/296
34
Dois oram os elementos bsicos para a impossibilidade de
simbolizao do perodo ditatorial por parte da sociedade: de um lado,
a longa transio para a abertura democrtica, iniciada dez anos antesde ela de ato acontecer, levando ao esquecimento, na memria coletiva,
do terror implantado pela ditadura; do outro, a prpria imposio do
esquecimento, atravs da Lei de Anistia, interditando a investigao do
passado. Dessa orma:
no quadro destas consideraes que se pode propor uma
interpretao do processo de normalizao da sociedade e da polticano Brasil, marcado pela interdio do passado, seja no aspecto da longa
transio, onde o tempo parece adquirir uma dimenso inercial que
em si mesma produziria o esquecimento, seja no aspecto da imposio
mesma do esquecimento a anistia que provocaria o eeito de uma
neutralizao moral do passado.1
A vivncia do terror deu-se, principalmente, na tortura, nasprises, nos exlios, nos desaparecimentos e nas mortes; mas, tambm,
na violncia repressiva cotidiana contra as comunidades camponesas e os
estratos mais humildes das sociedades urbanas bem como na imposio
da censura e nas ameaas e perseguio contra toda orma de oposio e
resistncia aos interesses representados pela ditadura civil-militar. Porm,
no caso brasileiro, reconhecido que a vivncia do terror ocorreu deorma menos extensa do que nas demais ditaduras do Cone Sul o
que no signica armar que inexistiu ou que cou restrita a pequenos
crculos de vtimas. Irene Cardoso destaca que essa situao gerou, para
a sociedade brasileira, a sensao de inexistencialismo, isto , uma
realidade que no ocorreu para muitos cidados, no sendo incorporada,
dessa maneira, construo coletiva da memria e da histria. No1 CARDOSO, Irene. Para uma crtica do presente. So Paulo: Ed. 34, 2001. p. 159.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
35/296
35
momento em que ela no oi agregada, ela no pode ser esquecida. No
entanto, os amiliares dos mortos e desaparecidos polticos bem como
os coletivos de ex-presos polticos trazem consigo essas recordaes nasua memria e histria; cam, contudo, isolados da suposta realidade
apresentada populao. Essa uma das maiores ecincias geradas pelo
Terrorismo de Estado: a impossibilidade da sua prpria culpabilidade,
atravs da negao das prticas do seu uncionamento, consequncia do
sistema legalidade x clandestinidade.
Elizabeth Jeln2 considera que para o estudo dos perodosditatoriais do Cone Sul necessria a aplicao de estratgias de
anlise das elaboraes que se realizam sobre passados politicamente
confituosos. A primeira estratgia reerente necessidade de abordar
os processos que dizem respeito memria em cenrios polticos de
luta sobre essas memrias. A segunda a necessidade de pensar os
processos de memria a partir de uma perspectiva histrica, ou seja,pens-los como parte de uma dinmica social, poltica e econmica,
considerando como os atores especcos elaboram suas memrias. A
terceira, o reconhecimento de que o passado uma construo eita
no presente e sujeita aos interesses do presente. Assim, a continuidade
ou a negao de certas construes do passado e a aceitao ou no de
novas interpretaes so processos signicativos, que produzem eeitosconcretos na sociedade e infuem nas lutas polticas pelo poder.
O presente recente uma construo coletiva: no algo
dado, mas buscado. Enquanto no Brasil no houver demandas sociais
pelo estudo da ditadura, nem questionamento por parte das novas
geraes, mais acentuada ainda estar a necessidade da interveno dos
2 JELN, Elizabeth. La confictiva y nunca acabada mirada sobre el pasado. In: FRANCO,Marina; LEVN, Florencia. Historia reciente: perspectivas y desafos para un campo en construccin.Buenos Aires: Paids, 2007. p. 307-340.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
36/296
36
pesquisadores deste perodo histrico. O caso brasileiro, dierentemente
dos demais pases do Cone Sul, oi marcado pelo silncio, que acabou
privando as geraes seguintes do direito ao conhecimento da histriarecente de seu pas. Esse silncio provoca o desconhecimento e az com
que as novas geraes no saibam da existncia de arquivos repressivos
que precisam ser abertos ao pblico, o que contribui para que estes
continuem echados, diante da ausncia de presso por parte da
sociedade. Esse mesmo silncio tambm az com que as novas geraes
ignorem que h torturadores que oram anistiados e precisam ser punidos.Estabelece-se, assim, um crculo vicioso no qual o desconhecimento
(amnsia social), o imobilismo e a impunidade se tornam parte de uma
engrenagem que at agora se tem mostrado exitosa. Sua ecincia
medida de diversas ormas. Aos que vivenciaram e soreram a ditadura,
negou-lhes sua histria; ao conjunto da sociedade, procurou ocultar que
esse perodo oi marcado por prticas coercitivas e de desmobilizao daslutas sociais e polticas; histria do pas, diluiu, entre outras heranas,
as responsabilidades sobre as srias consequncias econmicas legadas
s geraes posteriores.
Tais refexes, nalmente, obrigam a rearmar a mxima de que a
sociedade que desconhece seu passado no consegue ser dona do seu presente.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
37/296
37
II. VerdadeUna historia tiene su puerta escondida,
y otra historia junta manos para abrirla.Y mientras se pesan balanzas distintas,la verdad espera su hora de justicia.
Quemando mentiras, Manuel Capella
A Lei de Anistia, de 1979, negou, entre vrios outros aspectos, aos
amiliares de mortos e desaparecidos polticos a possibilidade de conhecer
os atos relacionados a esses crimes e de contar sua histria. Assim, osamiliares no puderam dar continuidade a investigaes que levassem
responsabilizao individual por estes crimes cometidos durante a ditadura
brasileira. Parte dessas investigaes depende da abertura dos chamados
arquivos repressivos, ou seja, produzidos pelos rgos de segurana,
que englobava represso, inormaes, inteligncia, espionagem, entre
outros. Dessa orma, azemos nossas as palavras de Emir Sader: Na suaase nal, a ditadura decretou uma anistia que a avorecia, amalgamando
vencidos e vencedores, verdugos e vtimas, apagando da histria do pas
todas as violaes que havia cometido. Com isso, alm da impunidade
dos agentes do terror da ditadura, impediu que se apurasse tudo o que oi
eito, buscando apagar aquele perodo da memria dos brasileiros.3
Os povos possuem o direito de conhecer a sua histria. Assim, aabertura dos arquivos da represso az-se imprescindvel para que os cidados
brasileiros possam ter acesso ao seu passado recente, interditado de vrias
ormas. At porque, se estes arquivos oram necessrios para o prprio exerccio
das atividades repressivas, so instrumento insubstituvel na conormao das
novas relaes sociais, principalmente no perodo de transio.4
3 SADER, Emir. A primavera dos direitos humanos. In: NUNES, Maria do Rosrio et al (orgs.).Resgate da memria da verdade: um direito histrico, um dever do Brasil. Braslia: Presidncia daRepblica, Secretaria de Direitos Humanos, 2011. p. 42.
4 GONZLEZ QUINTANA, Antonio. Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidosregmenes represivos. Paris: UNESCO, [1995?]. Disponvel em: .Acesso em: 27 mar. 2009.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
38/296
38
A sano pela presidente Dilma Rousse, em 18 de novembro
de 2011, da Lei de Acesso Inormao oi um avano nesta questo.
Por esta lei, os documentos brasileiros perdem a possibilidade de sigiloeterno, cando estabelecidos 50 anos como o tempo mximo no qual
podero car inacessveis ao pblico. J os documentos que digam
respeito aos direitos humanos no possuiro sigilo.
A eccia das medidas de reparao s vtimas das ditaduras e
a apurao das responsabilidades dos agentes envolvidos nos crimes de
Estado cam, em grande parte, condicionadas ao uso dos documentosproduzidos e armazenados pelas instituies repressivas daquele perodo.
A disponibilizao desses arquivos, em tese, permite vrios direitos
populao, tanto no nvel individual quanto no coletivo.
Na questo individual podem-se elencar os seguintes direitos:
direito de conhecer os dados existentes sobre qualquer pessoa nos
arquivos repressivos; direito anistia para presos e perseguidos polticos;
direito reparao por danos sofridos pelas vtimas da represso;
direito restituio de bens conscados;
direito investigao histrica e cientca.
J na questo dos direitos coletivos, a abertura dos arquivos
repressivos acilita: o direito integridade da memria escrita dos povos;
o direito verdade;
o direito de conhecer os responsveis por crimes contra os direitos humanos;
o direito dos povos e naes de escolher a sua prpria transio poltica.
Nesta ltima questo, levanta-se a eetividade da instalao das
comisses da verdade, eetuadas durante o perodo da chamada justiade transio, cujas experincias em diversos pases j demonstraram que
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
39/296
39
variam muito de acordo com a disponibilidade ou no de se ter acesso
documentao repressiva.
De acordo com a diretriz 23 do eixo 6 do Programa Nacional deDireitos Humanos, anunciado pelo ento presidente Luiz Incio Lula
da Silva, em 21 de dezembro de 2009, oi convocado um Grupo de
Trabalho ormado por representantes da Casa Civil, do Ministrio da
Justia, do Ministrio da Deesa, da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidncia da Repblica e da sociedade civil. A este grupo oi atribuda
a tarea de elaborar um projeto de lei que institusse a Comisso Nacionalda Verdade.5 Depois de passar pela Cmara dos Deputados, o Senado
aprovou esta lei no dia 26 de outubro de 2011, e a presidente Dilma
Rousse a sancionou no dia 18 de novembro.
Mesmo passados 26 anos do trmino da ditadura civil-militar,
o Brasil ainda se encontra na ase da justia de transio. Experincias
em outros pases que passaram por ditaduras demonstram que ascomisses da verdade so aplicadas durante este perodo. Os prprios
pases do Cone Sul instalaram suas comisses da verdade ao sarem
de ditaduras: Bolvia (1982), Argentina (1983), Uruguai (1985), Chile
(1990), novamente Uruguai (2000) e Chile (2003) e tambm Paraguai
(2003). O Brasil, entretanto, somente agora vai montar a sua comisso
da verdade, que j nasceu negociada com as oras conservadoras. Provadisso que o relatrio a ser produzido pela Comisso ao nal de dois
anos de trabalho no possuir valor penal, visto que os crimes cometidos
pelos agentes do Estado esto protegidos e impossibilitados de punio
5 Diretriz 23: Reconhecimento da memria e da verdade como Direito Humano da cidadania edever do Estado.Objetivo Estratgico I: Promover a apurao e o esclarecimento pblico das violaes de
Direitos Humanos praticadas no contexto da represso poltica ocorrida no Brasil no perodoxado pelo artigo 8 do ADCT da Constituio, a m de eetivar o direito memria e verdade histrica e promover a reconciliao nacional. BRASIL. Secretaria de DireitosHumanos da Presidncia da Repblica. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Braslia: SDH, 2010.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
40/296
40
pela ainda vigente Lei de Anistia.6
As comisses da verdade so mecanismos ociais que buscam
apurar as violaes aos direitos humanos num determinado perodohistrico a m de se obterem esclarecimentos. Para tanto, priorizam-
se os testemunhos das vtimas, assim como se tenta averiguar o padro
de abusos cometidos por meio, agora, de depoimentos dos violadores
e tambm de arquivos que no oram disponibilizados sociedade.
Uma das expectativas geradas com a Comisso da Verdade que, com
a abertura dos arquivos, consiga-se estabelecer um padro da repressodurante a ditadura, comprovando que esta no atingiu somente alvos
especcos, mas, sim, toda a sociedade brasileira. Isto poderia dar incio
ao processo de conscientizao da sociedade de que a nossa ditadura
no oi apenas uma ditabranda e de que estas questes precisam ser
resolvidas, e no deixadas no passado.
6 NCLEO de Preservao da Memria Poltica So Paulo.A Comisso da Verdade no Brasil.Ncleo de Preservao da Memria Poltica: So Paulo, 2011.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
41/296
41
III. Justia
Ni olvido, ni perdn. Justicia.
Uma das maiores marcas se no a maior das ditaduras a
gerao da cultura da impunidade. As ditaduras de Segurana Nacional
do Cone Sul ou os governos democrticos continustas concederam
anistia aos agentes do Estado, impedindo que os responsveis pelos crimes
e violaes aos direitos humanos pudessem ser culpabilizados. Estas leis
traziam em si um intuito de perdo, esquecimento e impunidade.No Chile, em 1978, ainda em pleno regime autoritrio, oi
concedida anistia a todos os que se envolveram na qualidade de autores,
cmplices ou acobertadores nos crimes cometidos durante o perodo de
Estado de Stio, de 11 de setembro de 1973 a 10 de maro de 1978.
Na Argentina, as leis de Punto Final(1986) e de Obediencia Debida
(1987), juntamente com os indultos posteriores do ento presidenteCarlos Menem (1989-1990), so conhecidas como as leis de impunidade.
No Uruguai, aps o trmino da ditadura, em 1986, oi
aprovada pelo governo a Ley de Caducidad de la Pretensin Punitiva del
Estado, que previa que nenhum militar ou policial poderia ser acusado
de crimes cometidos durante a ditadura. Mesmo o questionamento
por parte de setores da sociedade no evitou que a lei osse conrmadapor meio de plebiscito, em 1989.
No Brasil, oi estabelecida, pelos prprios militares, a Lei de
Anistia, em 1979, aos crimes polticos ou praticados por motivao
poltica. Pela lei, militares e guerrilheiros seriam anistiados de seus
crimes, como se osse possvel comparar os crimes cometidos pelos
agentes do Estado repressivo aos dos que estavam se deendendo doterrorismo promovido pelo prprio Estado.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
42/296
42
Muitas dessas leis de anistia acabaram sendo revertidas no Cone
Sul. Um caso exemplar o da Argentina, que, em 2003, anulou suas
leis de anistia e ainda determinou que os crimes de lesa-humanidadedeviam ser punidos, pois no prescrevem. Alm disso, vrios integrantes
das Juntas Militares oram detidos e encontram-se presos.
Em 2008, amiliares de mortos e desaparecidos polticos, grupos
de esquerda e setores da sociedade civil no Uruguai desencadearam novo
processo de mobilizao para tentar convocar outro plebiscito para anular
a Ley de Caducidad. Em 2009, a nova consulta plebiscitria manteve alei por uma margem mnima de votos. Mas, em 2011, o Parlamento
uruguaio aprovou a norma que declara que os delitos cometidos durante
a ditadura so de lesa-humanidade e, portanto, imprescritveis.
No Chile, alm de o prprio ditador Augusto Pinochet ter sido
julgado, oi aberto um precedente com reerncia anulao de uma lei
de anistia: o sequestro considerado um delito continuado quando oscorpos das vtimas tiverem sido encontrados. Alm disso, os principais
dirigentes da Direccin de Inteligencia Nacional(DINA) oram presos e
esto sendo processados.
O Brasil, todavia, est na contramo da histria. Em 2008, a Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou no Supremo Tribunal Federal
(STF) com uma ao de descumprimento de preceito undamental a mde esclarecer o artigo primeiro da Lei de Anistia, pelo qual concedida
anistia a todos que cometeram crimes polticos ou conexos com estes,
considerando-se conexos os crimes de qualquer natureza relacionados com
crimes polticos ou praticados por motivao poltica.7
O ministro da Justia na poca, Tarso Genro, e o ministro Paulo
Vannuchi, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica,7 BRASIL. Lei n 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e d outras providncias.
Disponvel em: . Acesso em: 10 nov. 2011.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
43/296
43
j haviam explicitado seu posicionamento ao armar que tortura no crime
poltico; logo, os torturadores no poderiam ser beneciados com a Lei de
Anistia. Entretanto, em 2010 o pedido oi julgado pelo STF e consideradoimprocedente, com uma votao de sete contra dois.
Em 14 de dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos da Organizao dos Estados Americanos publicou sentena no
caso Julia Gomes Lund versus Brasil. O Estado brasileiro oi considerado
culpado por no ter punido os responsveis pelas mortes e desaparecimentos
ocorridos durante a guerrilha do Araguaia e tambm lhe oi determinadoque zesse todos os esoros para localizar os corpos dos desaparecidos. A
deciso da Corte arma que a Lei de Anistia no pode ser invocada para
esses casos, porque se trata de crimes de lesa-humanidade.
A prpria Comisso da Verdade s oi aceita quando oi
declarado que ela no teria eeito condenatrio, visto que os crimes
que sero apurados esto resguardados pela Lei de Anistia. Porm,para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comisso da
Verdade no substitui a obrigao do Estado de estabelecer a verdade
e assegurar a determinao judicial de responsabilidades individuais,
atravs dos processos penais. No dia em que oi sancionada a Comisso
da Verdade pela presidente Dilma Rousse, a Organizao das Naes
Unidas louvou tal ato, mas pediu a revogao da Lei de Anistia.O que se busca com a implantao da Comisso Nacional da
Verdade no Brasil e, principalmente, com a condenao do Estado
brasileiro e a punio dos seus agentes, que o entulho autoritrio
legado pelos 21 anos de ditadura deixe de persistir na nossa sociedade.
Se antes era o subversivo, o comunista, o terrorista que deveria ser
atingido independentemente do meio utilizado para tal m , hoje osmecanismos de represso visam ao suspeito, ao pobre, ao marginal.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
44/296
44
Ainda vivemos em uma cultura autoritria e, no que diz respeito aos
direitos humanos, muitas vezes, pouco democrtica. Nos pases em cujo
perodo de transio oram julgadas as violaes aos direitos humanos,o ndice da Escala de Terror Poltico PTS (em ingls, Political Terror
Scale) diminuiu consideravelmente; ou seja, a violncia produzida pelo
prprio Estado contra a sociedade retrocedeu signicativamente.
O Brasil um dos poucos pases que possui a desonrosa marca
de no ter realizado julgamentos contra os violadores dos direitos
humanos e de no ter instalado uma comisso da verdade. Isso leva a umcrescimento maior ainda da violncia na sociedade brasileira. De acordo
com a PTS, hoje, o ndice de terror poltico do Brasil est maior do
que durante o perodo relativo ao nal da ditadura, ao contrrio do que
acontece nos pases que tiveram comisses da verdade e julgamentos.
Deduz-se que o aumento do ndice da PTS se deve prtica de tortura
e s execues sumrias ainda existentes e derivadas de uma cultura deimpunidade muito orte no nosso pas.8
8 SILVA FILHO, Jos Carlos Moreira da. Dever de memria e a construo da histria viva: a
atuao da Comisso de Anistia do Brasil na concretizao do direito memria e verdade.In: PADRS, Enrique Serra et al (orgs.).A Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande doSul (1964-1985): histria e memria. O fm da ditadura e o processo de redemocratizao. 2. ed.Porto Alegre: Corag, 2010. v. 4. p. 47-92.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
45/296
45
Parte I
O sequestro de crianas no Cone Sul
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
46/296
46
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
47/296
47
Esta guerra nos es contra los nios: o
sequestro de crianas durante as ditaduras
de Segurana Nacional no Cone Sul
Ananda Simes Fernandes1
Buenos Aires, 28 de octubre de 1986.
Querido hermano:
Cuando supe de tu existencia me invadi una prounda alegra, pero tambinme senti triste por no tenerte a mi lado.Te cuento que yo soy Mariana, tu hermana.Te deseo eliz cumpleaos El 15 de noviembre cumpls 8 ans y todava note conozco!Todos en casa estn bien y te esperan ansiosos. Mam y Pap no estn: viven
en una estrellita de antasa y desde all nos cuidan.Solo hay una cosa ms que te quiero decir: volv Rodolo, volv!Te extrao mucho y te quiero.Un abrazo grande.
Mariana2
1 Historiadora e Tcnica em Assuntos Culturais do Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul.
Mestre em Histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autora da dissertaoQuando o inimigo ultrapassa a ronteira: as conexes repressivas entre a ditadura civil-militarbrasileira e o Uruguai (1964-1973), deendida em 2009.
2 ORIA, Piera Paola. De la casa a la plaza. Buenos Aires: Nueva Amrica, 1987.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
48/296
48
Esta a carta escrita por uma criana de dez anos de idade, chamada
Mariana, quando sua turma oi solicitada pela proessora a redigir para um
amiliar. Mariana escolheu escrever para seu irmo Rodolo, de oito anos,que, entretanto, no conhecia. Mariana, Rodolo, seus pais desaparecidos
queviven en una estrellita de antasa, seus avs e o restante do entorno
amiliar sorem um drama que no somente individual, pois se trata de
uma modalidade do Terrorismo de Estado das ditaduras de Segurana
Nacional e, em particular, da Argentina: o sequestro de crianas e o consco
de suas reais identidades. Mais de quinhentas crianas tiveram suasidentidades apropriadas durante a ditadura argentina: at o ano de 2011,
105 recuperaram sua verdadeira histria e passado.
Entretanto, com o avano das denncias e das pesquisas na
temtica das ditaduras de Segurana Nacional, comeou a se apontar
que em outros pases do Cone Sul o sequestro de crianas tambm oi
praticado, envolvendo dierentes causas e nem sempre com a inteno deapropriao de identidade. Por isso, estas crianas comearam a ser mais
vislumbradas e percebidas talvez como as maiores vtimas do Terrorismo
de Estado que se instalou entre as dcadas de 1960 e 1980 no Cone Sul.
Para se trabalhar com temas to traumticos e ainda presentes
visto no terem sido superados , a utilizao da metodologia da Histria
do Tempo Presente se az importante como erramenta para avaliarmosalgumas questes. O objeto do historiador do Tempo Presente o prprio
presente, porm, ele est inserido nesta temporalidade e interage tanto
com a histria (escrita e vivida) quanto com a sociedade. Historiador,
histria e sociedade acabam cando intrincados nessa relao. Dessa
orma, se estabelece uma nova conexo entre o pesquisador e seu campo
de investigao histrica, mas, o que poderia ser caracterizado comoragilidade da Histria do Tempo Presente a ausncia de distanciamento
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
49/296
49
entre sujeito e objeto uma das suas especicidades.
A subjetividade, presente em todo campo cientco, acentua-se,
porm, no estudo da histria recente. At porque essa subjetividade vemcarregada de um carter ideolgico, que acaba infuenciando a orientao
historiogrca do pesquisador. Somam-se infuncia ideolgica na
produo do historiador do Tempo Presente os questionamentos coletivos
da sociedade e o chamado impacto de geraes como os homens tentam
reagir e explicar o seu presente. Estas demandas tambm acabam por
transparecer na produo do historiador, pois, conorme Eric Hobsbawm, inegvel que a experincia pessoal desses tempos modele a maneira
como os vemos, e at a maneira como avaliamos a evidncia qual todos
ns, no obstante nossas opinies, devemos recorrer e apresentar.3
Dessa orma, acaba se colocando tambm a questo do engajamento
na realizao do estudo do Tempo Presente. Entretanto, o engajamento
percebido como uma orma de expresso de transormao da realidade eda orientao das prticas de transormao das estruturas:
[] o engajamento poltico pode servir para contrabalanar atendncia crescente de olhar para dentro, em casos extremos,o escolasticismo, a tendncia a desenvolver a engenhosidadeintelectual por ela mesma, o autoisolamento da academia []mecanismos para gerar novas ideias, perguntas e desaos nascincias a partir de ora so hoje mais indispensveis que nunca.O engajamento um mecanismo poderoso desse tipo, talvezno momento o mais poderoso nas cincias humanas. Sem ele, odesenvolvimento dessas cincias estaria em risco.4
com base nesta argumentao que muitos pesquisadores das
ditaduras latino-americanas direcionam seus estudos e suas obras para
3 HOBSBAWM, Eric. Sobre Histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 245.4 Ibid., p. 154.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
50/296
50
uma histria-denncia, ou seja, consideram que trabalhos sobre perodos
traumticos e ainda em aberto da histria no podem prescindir de elementos
de denncias polticas, a m de, por um lado, esclarecer a sociedade e, poroutro, agir contra a impunidade desses regimes autoritrios. Estabelece-se,
assim, uma relao dialtica entre a subjetividade/ideologia/engajamento e
o contexto histrico do historiador, que, por sua vez, tambm um agente
social. Desse modo, justica-se o uso desta metodologia para o estudo deste
caso to aterrador que o de sequestro de crianas.
No que diz respeito ditadura argentina, essa prticatransormou-se em uma poltica de Estado. Posteriormente ao sequestro,
as crianas tinham sua identidade subtrada, pois eram retiradas de seus
amiliares e adotadas ilegalmente, geralmente por pessoas ligadas direta
ou indiretamente represso.
Essas crianas eram sequestradas, muitas vezes, juntamente com
seus pais, que eram enviados a centros clandestinos de deteno e depoismortos e desaparecidos. Ou ento eram levadas aps operativos nos quais os
pais morriam no local da tentativa de sequestro. Outros casos dizem respeito
a mulheres que estavam grvidas no momento em que eram arrastadas aos
centros clandestinos. Os torturadores esperavam essas uturas mes darem
luz os seus bebs em cativeiro e, ento, estes lhes eram retirados (geralmente
com a alsa inormao de que seriam entregues aos avs) e depois disto elaseram executadas. Vida transormava-se em morte: o nascimento de seus
bebs transormava-se no ultimato dessas mulheres, e s crianas roubavam
suas histrias de vida, impondo-lhes outras. Alm disso, h os casos em que
os amiliares desconheciam a gravidez de suas lhas/noras/irms, no tendo
cincia, por isso, da alta de uma pessoa em seu entorno amiliar.
importante ressaltar que essa metodologia repressiva oiutilizada de orma racional pela ditadura argentina. Inclusive, o Exrcito
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
51/296
51
elaborou um manual com orientaes especcas sobre essa questo,
intitulado Instrucciones sobre procedimientos a seguir con menores de edad
hijos de dirigentes polticos o greminales cuando sus progenitores se encuentran
detenidos o desaparecidos. Nele, havia instrues para que os militares
entregassem para oranatos ou amlias de militares crianas com at
quatro anos de idade, pois estas ainda no estariam contaminadas
pela m infuncia poltica de seus pais. J as crianas mais velhas,
especialmente em torno dos dez anos, deveriam ser eliminadas.5 Dentro
dessa temtica, Nilson Mariano denuncia que, entretanto, os bebs doscabecitas negras (como so pejorativamente denominados na Argentina
os descendentes de indgenas) no seriam entregues adoo, e, sim,
mortos, pois os militares preeriam crianas de pele clara.6
O sequestro de crianas e a apropriao de suas identidades
durante a ditadura argentina caram internacionalmente conhecidos
em 1985, quando oi lanado o lme A Histria Ofcial, dirigido pelocineasta Luiz Puenzo e vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Porm, j antes desta pelcula, no ano de 1981, ainda em plena ditadura,
um grupo de ativistas de direitos humanos convocado pela Asociacin
Abuelas de Plaza de Mayo (existente na Argentina desde 1977) realizou
uma conerncia em Buenos Aires. A nalidade era mobilizar a opinio
pblica em torno de um problema que no havia se colocado antes e queera devastador: o desaparecimento de mais de vinte crianas sequestradas
durante operativos repressivos e de mais de cem crianas nascidas durante
o cativeiro de suas mes nos centros clandestinos de deteno.
5 QUADRAT, Samantha Viz. O direito identidade: a restituio de crianas apropriadas nos
pores das ditaduras militares do Cone Sul. Histria, So Paulo, v. 22, n. 2, p. 167-181, 2003.6 MARIANO, Nilson.As garras do condor: como as ditaduras militares da Argentina, do Chile,do Uruguai, do Brasil, da Bolvia e do Paraguai se associaram para eliminar adversriospolticos. Petrpolis/RJ: Vozes, 2003.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
52/296
52
As Abuelas de Plaza de Mayo desprenderam-se das Madres de
Plaza de Mayo. Inicialmente, possuam um objetivo em comum: encontrar
seus lhos detidos-desaparecidos. Porm, sAbuelas somou-se mais umabusca: a dos netos sequestrados juntamente com seus pais ou nascidos
em cativeiros. Logo estas Madres,que tambm buscavam os lhos de
seus lhos, perceberam que no se conguravam como casos isolados:
Neste longo andar, as avs omo-nos encontrando, organizamos um
grupo para buscar as crianas desaparecidas, primeiro pensando que
seramos poucas, mas o terror oi imenso quando descobrimos queramos centenas.7 A luta implacvel das Abuelas para reencontrar
seus netos prossegue at hoje; entretanto, a questo temporal coloca-se
como um obstculo: vrias avs j aleceram sem terem encontrado seus
netos. Por isso, elasdedicaram-se a criar o Banco Nacional de Dados
Genticos de Parentes de Crianas Desaparecidas, aprovado pela Lei
Nacional n. 23.511/87, possibilitando que seus netos ou at mesmoprximas geraes conheam suas verdadeiras identidades.
Porm, apesar de o sequestro de crianas e a apropriao de
suas identidades terem sido aplicados em larga escala pela ditadura
argentina, outros pases do Cone Sul os utilizaram.8 O Uruguai tambm
soreu essa modalidade especca do Terrorismo de Estado. A ditadura
desse pas oi a que mais se utilizou da Operao Condor, sendo quemuitos cidados uruguaios que se encontravam exilados ou clandestinos
na Argentina oram vtimas de operaes binacionais, destacadamente
no centro de deteno clandestinoAutomotores Orletti, em Buenos Aires.
7 CONADEP. Nunca Mais. Inorme da Comisso Nacional sobre o desaparecimento de pessoas naArgentina. Porto Alegre: L&PM, 1986. p. 314.
8 Denncias recentes apontam que quatro bebs de guerrilheiros do Araguaia teriam sido
levados pelos militares. Ver: Exrcito levou 4 bebs do Araguaia, diz ex-guia militar.O Estadode So Paulo, So Paulo, 14 jul. 2009. Disponvel em: . Acesso em:28 out. 2009.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
53/296
53
Uma das detenes ilegais uruguaias reere-se ao sequestro
de Simn Riquelo, e acabou se transormando num dos casos mais
emblemticos de crianas sequestradas, pois se constitui no nicoem que uma me reencontrou seu lho. Simn Riquelo era lho dos
uruguaios Sara Mndez e Mauricio Gatti, ambos militantes do Partido
por la Victoria del Pueblo (PVP), que se encontravam clandestinos em
Buenos Aires (Riquelo oi o sobrenome que Sara adotou na Argentina).
Em julho de 1976, um grupo de 15 homens invadiu a casa onde
Sara Mndez e Asil Maceiro (tambm militante do PVP) estavamescondidas. Junto com elas, estava Simn, um beb de apenas 22 dias.
Ambas so sequestradas e levadas paraAutomotores Orletti, e Simn oi
retirado dos braos de sua me:
Cuando nos van a sacar de mi domicilio reacciono tratando dellevar a mi hijo conmigo. Me dicen que no lo puedo llevar, queal nio no le va a passar nada, que esta guerra no es contra losnios y me lo sacan de mis brazos. Nos comienzan a prepararpara el traslado. Esa es la ltima vez que veo a Simn.9
Devido a uma alsa tentativa de invaso do Uruguai por parte dos
militantes do PVP, orquestrada pela represso uruguaia, e que oi desmascarada
pela imprensa, Sara sobreviveu. Seu destino e do restante dos militantes eraa desapario; porm, depois de descoberta a arsa, Sara reaparece e presa,
durante quatro anos e meio, no Penal de Punta Rieles, em Montevidu.
Quando sai da cadeia, comea sua busca incansvel por Simn.
A otograa do beb de apenas 22 dias passa a ser uma das imagens mais
conhecidas no Uruguai. Durante vrios anos, quando juntava pistas, se
ateve esperana de que uma criana uruguaia osse Simn. Conorme
9 REPBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY. Presidencia de la Repblica. Investigacinhistrica sobre detenidos desaparecidos. Montevideo: Direccin Nacional de Impresiones yPublicaciones Ociales, 2007. t. 3. p. 705. Grios nossos.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
54/296
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
55/296
55
las conductas solidarias. Estas caractersticas hacen del secuestroun mtodo represivo de eectos multiplicadores y consecuenciasproundas sobre todo el tejido social, an en sectores objetiva ysubjetivamente alejados de las vctimas.10
s crianas que oram sequestradas e depois tiveram suas
identidades apropriadas, soma-se a questo da poltica do desaparecimento,
que oi a modalidade terrorista mais ecaz para a dissuaso pelo medo.
O primeiro eeito do desaparecimento a ausncia de
responsabilidade judicial perante a vtima. O Estado no poderia ser
considerado culpado dessas mortes, pois a sistemtica do terror havia
sido utilizada: sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento, todos
realizados de orma clandestina. Entretanto, seu eeito mais duradouro
e persistente a rentabilidade do terror, ou seja, a criao da incerteza
mxima na sociedade.
Dessa orma, os desaparecimentos produziram os maiores eeitosprticos para a consolidao do Terrorismo de Estado das ditaduras do
Cone Sul. A dor, a angstia e o sorimento gerados pela incerteza, pela
dvida e pela no aceitao do ato pois no h corpo para ser chorado
e enterrado (e no caso das crianas, a impossibilidade de ver crescer
junto a si a sua descendncia) tornaram-se os melhores antdotos para
as maniestaes polticas e sociais, almejando anestesiar a populaoperante essa prtica de terror. Assim, conorme Figueroa Ibarra:
el secuestro y desaparicin de una persona, al igual que su ejecucin,es como un guijarro tirado en un estero de aguas plcidas.Produce ondas que van mucho ms all del lugar en donde cayel pedrusco. El terror se expande bastante ms lejos del mbito de
10 CONTE MAC DONELL, Augusto; LABRUNE MIGNONE, Noem; FERMNMIGNONE, Emilio.El secuestro como mtodo de detencin. Buenos Aires: CELS, [198-?].
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
56/296
56
las relaciones personales de la vctima. No solamente amiliares,amigos, conocidos de sta son presas del miedo. Tambin aquelo aquella que ven la oto del desaparecido o desaparecida, en elperidico, que leen las atribuladas declaraciones y desesperadosruegos de la madre, esposo o hermana. El primer ruto de losperpetradores, la intimidacin, ha sido logrado: escondmonos,no hagamos nada, sigamos viviendo.11
Eduardo Duhalde12 destaca que vrias eram as motivaes que
levavam, na tica das ditaduras de Segurana Nacional, ao sequestrode crianas: produzir terror na populao; vingar-se e ustigar seus
amiliares; interrogar as crianas; quebrar o silncio dos pais, torturando
os lhos; beneciar-se com as crianas como botim de guerra; educar
os lhos menores com uma ideologia contrria dos pais.
A imposio do medo entre a populao elemento central
no Terror de Estado. Utilizando-se de um conjunto de instrumentos
que visava educar (pela ora e pela alienao) a sociedade a
pedagogia do medo , as ditaduras puderam estabelecer a denominada
cultura do medo. Os instrumentos pedaggicos do Terrorismo de
Estado objetivavam impactar os cidados, ensinando-os, atravs do
eeito demonstrativo, como deveriam agir no Estado de Segurana
Nacional. Ou seja, a pedagogia do medo era a aplicao direta das
prticas coercitivas sobre a populao, constantemente lembrando de
que as altas seriam castigadas. J a utilizao sistemtica das prticas
do Terrorismo de Estado levava construo dessa cultura do medo,
um cenrio com um clima de tons cinza e opacos, no qual predomina
o silncio, pois uns calam porque lhes alta a voz e outros por medo de
11 FIGUEROA IBARRA, Carlos. Dictaduras, tortura y terror en Amrica Latina. Bajo el Volcn,
Revista del Posgrado de Sociologa, Benemrita Universidad Autnoma de Puebla, Mxico,ao/v. 2, n. 3, p. 53-74, 2. sem. 2001, p. 63.
12 DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado terrorista argentino: quince aos despus, una miradacrtica. Buenos Aires: Eudeba, 1999.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
57/296
57
punio exemplar.13
Se o regime repressivo sequestrava at crianas, muitas vezes
torturando-as e retirando-as de seus amiliares, o que poderia azer como restante da populao? Assim, atravs da cultura do medo o Estado
pretendeu se impor com poderes quase ilimitados.
A tortura, tanto sica quanto psicolgica, oi aplicada muitas
vezes contras essas crianas, visando a atingir seus pais, conorme
denncia doNunca Ms argentino:
Por eu responder de orma negativa, comearam a baterna minha companheira com um cinto, puxavam seus cabelose davam chutes nos pequenos Celia Luca, de 13 anos, JuanFabin, de oito anos, Vernica Daniela, de trs anos, e Silvina,de somente vinte dias As crianas eram empurradas de umlado ao outro e perguntadas se iam amigos casa. Depois demaltratar minha companheira, pegaram a nenm de somente
vinte dias; pegaram-na pelos ps, de cabea para baixo, ecomearam a bater nela, gritando me: se voc no alar,vamos mat-la. As crianas choravam e o terror era imenso. Ame suplicava, gritando, que no mexessem com a nenm. Entodecidiram azer o submarino na minha companheira na rentedas crianas, enquanto me levavam para outro quarto. At o diade hoje no soube nada de minha companheira14
Prticas essas tambm apontadas no Brasil: Nunca Mais:
Ao depor como testemunha inormante na Justia Militar doCear, a camponesa Maria Jos de Souza Barros, de Japuara,contou, em 1973: (...) e ainda levaram seu lho para o mato, judiaram com o mesmo, com a nalidade de dar conta de seu
13 PADRS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay Terror de Estado e Segurana Nacional.Uruguai (1968-1985): do Pachecato ditadura civil-militar. 2 v. Tese (Doutorado em Histria).Porto Alegre: UFRGS, 2005. p. 97.
14 CONADEP.Nunca Mais, op. cit., p. 320.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
58/296
58
marido; que o menino se chama Francisco de Souza Barros etem a idade de nove anos; que a polcia levou o menino s cincohoras da tarde e somente voltou com ele s duas da madrugadamais ou menos (...)
---------------------------------------------------------------
Algumas crianas oram interrogadas, no intuito de se obterdelas inormaes que viessem a comprometer seus pais. O ex-deputado ederal Digenes Arruda Cmara denunciou, em seu
depoimento, em 1970, o que ocorreu lha de seu companheirode crcere, o advogado Antnio Expedito Carvalho: (...)ameaaram torturar a nica lha, de nome Cristina, com dezanos de idade, na presena do pai; ainda assim, no intimidaramo advogado, mas, de qualquer maneira, oram ouvir a menor e,evidentemente, esta nada tinha para dizer, embora as ameaaseitas inteis, por se tratar de uma inocente que, jamais, bvio, poderia saber de alguma coisa. (....)15
Ao sequestro das crianas oi aplicada a lgica de botim de
guerra. Era comum, aps as invases nos domiclios e os sequestros, os
agentes repressivos saquearem as casas, levando consigo televisores, rdios,
geladeiras, joias, dinheiro. Assim, s crianas oi imputada a noo de que
tambm eram objetos que podiam ser saqueados pelos vencedores:
El 24.11.1976, a las 13.15 hs, ue totalmente rodeado eldomicilio donde Clara Anah Mariani, de tres meses, viva consus padres, en la ciudad de La Plata. La nia se encontraba conellos en momentos en que se produjo un prolongado tiroteo queculmin con la muerte de los siete adultos que se encontrabanen la nca, segn consta en el comunicado dado a conocer por el
Regimiento 7 de Inantera, que intervino en el procedimento.Las autoridades negaron que los eectivos hubieran llevado
15 ARQUIDIOCESE DE SO PAULO.Brasil: Nunca Mais. 11 ed. Petrpolis/RJ: Vozes, 1985.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
59/296
59
consigo a la nia y, pese a las evidencias y a las numerosasgestiones realizadas, se niegan a entregarla a sus amiliaresaduciendo que desconcocen su paradeiro.16
Um dos objetivos mais perversos deste sistema racional de roubo
de bebs reere-se apropriao de crianas para cri-las numa ideologia
contrria dos pais, conorme as palavras de Ramn Camps (ex-chee
da Polcia da provncia de Buenos Aires): A los hijos de los subversivos los
entregamos a organismos de benefcencia para que les encontraran nuevos padres,
ya que los padres subversivos educan a sus hijos en la subversin.17 Filhos de
militantes, cujos pais morreram para que as prximas geraes pudessem
viver numa sociedade melhor, acabaram sendo criados e educados por
aqueles contra quem eles lutavam. Dessa orma, pode-se perceber que
a guerra suja do Terrorismo de Estado tambm oi contra as crianas,
apesar da alsa declarao do major Nino Gavazzo.
O sequestro de crianas e a apropriao de identidades
conguram-se como crimes de lesa-humanidade, logo, so imprescritveis.
Alm disso, na Argentina, por exemplo, no oram includos nos crimes
contemplados pelas leis de anistia desse pas. Isso possibilitou que um dos
ditadores argentinos, Jorge Raael Videla, osse condenado em virtude do
sequestro de cinco crianas nascidas em cativeiro.
Em realidade, o sequestro dessas crianas agora adultos
ainda permanece. Muitas no tiveram suas verdadeiras identidades
restitudas e chamam de pais queles que eram agentes da represso.
Conorme Marisa Punta Rudolo,18 no momento especco da separao
da me da sua descendncia, os militares j tentavam se apoderar tanto
16 CONTE MAC DONELL, Augusto; LABRUNE MIGNONE, Noem; FERMN
MIGNONE, Emilio. Los nios desaparecidos. Buenos Aires: CELS, [198-?].17 Ramn CAMPS apud PADRS, op. cit., p. 667.18 PUNTA RODULFO, Marisa. Trauma, memoria e historizacin: los nios desaparecidos
vctimas de la ditadura militar. In: ULRIKSEN DE VIAR, Mauren (comp.).Memoria social:ragmentaciones y responsabilidades. Montevideo: Trilce, 2001. p. 89-98.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
60/296
60
do espao sico quanto do psquico dessa criana. Aps o sequestro, o
passo seguinte era a anulao da sua liao, por meio da desapario da
me e da separao total do restante de sua amlia. Com isso, tomava-seconta de seus espaos sico e psquico, retirando dela sua histria, mas,
tambm, sua pr-histria. Isso leva ao ocultamento das suas verdadeiras
origens, produzindo uma ruptura geracional tanto para a criana quanto
para seus amiliares. Ela convive em um meio de mentiras sistemticas
e, geralmente, criada com convices e ideologias totalmente opostas
s de seus pais. Por m, Punta Rudolo destaca o sequestro permanentedessa criana, que somente voltaria sua vida quando tivesse sua
identidade restituda.
UmaAbuela ala:
Nuestros nios y bebs secuestrados y nacidos en cautiverio,ueron criminal y violentamente arrancados de los brazos de
sus madres, padres, hermanos, abuelas y abuelos y la mayoracontina padeciendo el secuestro y la desaparicin. Estnilegalmente anotados o como propios o por medio de adopcionesraudulentas, alseando sus padres, sus nombres, sus edades, laorma y el lugar en que vinieron al mundo, quines asistieronsu nacimiento; es decir, apropriados, privados de su verdaderaidentidad, privados de su origen, de su historia y de la historiade sus padres, privados del lugar que ocupan en el deseo y en el
aecto de los suyos, privados de las palabras, las costumbres ylos valores amiliares, sustrados de la posibilidad de desenvolversus vnculos identicatorios originarios y de la posibilidad deautorreconocimiento y de reconocimiento de todo lo propio,tratados como cosas de las que se dispone a voluntad, parte delsaqueo y despojo de sus hogares.19
19 ABUELAS DE PLAZA DE MAYO. Restitucin de nios. 1997. Disponvel em: . Acesso em: 12 mar. 2011.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
61/296
61
Mais de cem crianas sequestradas nas ditaduras de Segurana
Nacional no Cone Sul tiveram suas identidades restitudas. Algumas,
quando ainda eram pequenas; muitas tiveram essa descoberta j adultas.Sempre so situaes traumticas e que geram dor e sorimento para
ambos os lados: para essa criana/adulto que repentinamente perde toda
a sua histria de vida e para os verdadeiros amiliares, que aguardam
ansiosamente por um gesto de aeio. Esperam encontrar nos seus
netos recuperados os lhos de seus lhos, mas estes no os conhecem,
no oram educados por eles: o nico elo que realmente os une osangue. Desse modo, as Abuelas e os amiliares devem aceitar, como
se diz na Argentina, que este adulto precisa tomarse su tiempo, mas
as Abuelas respondem Pero su tiempo no es mi tiempo. Muitas vezes, o
reconhecimento de um neto chega tarde demais para elas.
Felizmente, h casos que, dentro das possibilidades, tiveram um
desecho eliz, mas, mesmo assim, nada tornar possvel recuperar ossentimentos de perda que essas pessoas tiveram e o perodo de vida e
a histria que lhes oram conscados. Esses traumas vo car como
marcas das ditaduras de Segurana Nacional. O que pode ajudar a san-
los a recuperao da Memria, a busca pela Verdade e a Justia.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
62/296
62
ORIA, Piera Paola. De la casa a la plaza. Buenos Aires: Nueva Amrica, 1987.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
63/296
63
Reerncias Bibliogrfcas
ABUELAS DE PLAZA DE MAYO. Restitucin de nios. 1997.Disponvel em: . Acesso em: 12 mar. 2011.
ARQUIDIOCESE DE SO PAULO. Brasil: Nunca Mais. 11 ed.
Petrpolis/RJ: Vozes, 1985.
CONADEP. Nunca Mais. Inorme da Comisso Nacional sobre o
desaparecimento de pessoas na Argentina. Porto Alegre: L&PM, 1986.
CONTE MAC DONELL, Augusto; LABRUNE MIGNONE,
Noem; FERMN MIGNONE, Emilio. Los nios desaparecidos. Buenos
Aires: CELS, [198-?].
______.El secuestro como mtodo de detencin. Buenos Aires: CELS, [198-?].
DUHALDE, Eduardo Luis.El Estado terrorista argentino: quince aos
despus, una mirada crtica. Buenos Aires: Eudeba, 1999.
EXRCITO levou 4 bebs do Araguaia, diz ex-guia militar. O Estadode So Paulo, So Paulo, 14 jul. 2009. Disponvel em: . Acesso em: 28 out. 2009.
FIGUEROA IBARRA, Carlos. Dictaduras, tortura y terror en Amrica Latina.
Bajo el Volcn, Revista del Posgrado de Sociologa, Benemrita UniversidadAutnoma de Puebla, Mxico, ao/v. 2, n. 3, p. 53-74, 2. sem. 2001.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
64/296
64
HOBSBAWM, Eric. Sobre Histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MARIANO, Nilson.As garras do condor: como as ditaduras militares daArgentina, do Chile, do Uruguai, do Brasil, da Bolvia e do Paraguai se
associaram para eliminar adversrios polticos. Petrpolis/RJ: Vozes, 2003.
ORIA, Piera Paola.De la casa a la plaza. Buenos Aires: Nueva Amrica, 1987.
PADRS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay Terror de Estado eSegurana Nacional. Uruguai (1968-1985): do Pachecato ditadura civil-
militar. 2 v. Tese (Doutorado em Histria). Porto Alegre: UFRGS, 2005.
PUNTA RODULFO, Marisa. Trauma, memoria e historizacin: los
nios desaparecidos vctimas de la ditadura militar. In: ULRIKSEN
DE VIAR, Mauren (comp.). Memoria social: ragmentaciones yresponsabilidades. Montevideo: Trilce, 2001. p. 89-98.
QUADRAT, Samantha Viz. O direito identidade: a restituio de
crianas apropriadas nos pores das ditaduras militares do Cone Sul.
Histria, So Paulo, v. 22, n. 2, p. 167-181, 2003.
REPBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY. Presidencia de
la Repblica. Investigacin histrica sobre detenidos desaparecidos.
Montevideo: Direccin Nacional de Impresiones y Publicaciones
Ociales, 2007. t. 3.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
65/296
65
O sequestro de crianas no Cone Sul -
Depoimento de Camilo Casariego Celiberti
Camilo Casariego Celiberti1
Boa noite, eu sou Camilo e vou contar um pouco da minha histria.
Quando tinha sete anos, vim para Porto Alegre com minha me,
minha irm e outros companheiros e companheiras que se encontravam
exilados. Viemos para c porque minha me e outros companheiros
uruguaios exilados queriam estabelecer os primeiros contatos para
denunciar as atrocidades que estavam ocorrendo em nosso pas.
Em um determinado momento, a polcia uruguaia e brasileira
chegou nossa casa e nos levaram delegacia, onde fcamos detidos
durante muitas horas. Depois disto, colocaram a mim, minha irm e
minha me em uma camionete e nos levaram rumo ao Uruguai.
No caminho, minha me convenceu os militares de que iria
colaborar, de que iria denunciar seus companheiros, e nos separaram.
Trouxeram minha me de volta a Porto Alegre, e ento a imprensa,
chamada pelos companheiros com quem mantnhamos contato,
divulgou e rustrou o sequestro.
Eu e minha irm fcamos detidos durante muitos dias, indo
de uma casa para outra. No nos causaram danos sicos srios, porm
soramos pelo ato de estarmos separados de nossa me. Logo nos
devolveram a nossos avs, e assim terminou nossa histria.
Nosso caso tornou-se pblico, porque fzemos denncias sobre
1 Filho de Lilin Celiberti, sequestrada em 1978 em Porto Alegre num operativo Condor que
congregou os aparatos repressivos uruguaio e brasileiro, conhecido como o sequestro dos uruguaios.Camilo (sete anos) e sua irm Francesca (trs anos) tambm oram sequestrados e levados para oDepartamento de Ordem Poltica e Social do Rio Grande do Sul (DOPS/RS). Depoimento prestadono Memorial do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no dia 30 de maro de 2011.
8/3/2019 Memria, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul
66/296
66
o sequestro e identifcamos os militares, que, me comentaram, agora
andam por a, muito tranquilos.
Isso marcou muito a nossa amlia. Porm, eu no me considero
uma vtima. Como alvamos antes, somos sobreviventes e, sobretudo,
aortunados, porque estamos aqui, contando nossa histria. Tenho
minha me a [Lilin Celiberti estava assistindo ala do flho, sentada
no meio do pbl