MÉTAMORPHOSES La Merionnette au XX Siécle
Henryk Jurkowski
Tradução de: Eliane Lisboa Gisele Lamb
Kátia de Arruda
Éditions Institut International de la Marionnette Charleville‐Mézières, 2000
S U M Á R I O
Ao Leitor ...................................................................................................................v
Introdução .............................................................................................................. vi
I ‐ PREMISSAS ..............................................................................................................10
UM MODERNISMO SOB MEDIDA........................................................................10
O ator ideal ..............................................................................................................12
Da teoria à prática...................................................................................................15
A PROFISSIONALIZAÇÃO .....................................................................................17
Baty: uma lenda francesa.......................................................................................18
Obraztsov: um mestre inconteste.........................................................................20
Nascimento de um ofício.......................................................................................22
Uma nova profissão ...............................................................................................23
Ator ou bonequeiro? ..............................................................................................24
Artista ou artesão?..................................................................................................25
Que caminho para o teatro? ..................................................................................26
A formação profissional ........................................................................................26
II ‐ REFORMAS .............................................................................................................28
AS PEQUENAS FORMAS.........................................................................................28
O impulso dos solistas ...........................................................................................29
Signos e símbolos plásticos ...................................................................................32
A abstração pura.....................................................................................................34
A poética da forma .................................................................................................35
A linguagem teatral................................................................................................38
O Teatro Lalka: Jan Vilkowski ..............................................................................38
O Teatro Tandarica: Margareta Niculescu..........................................................41
III ‐ CONVENÇÕES......................................................................................................48
HOMOGENEIDADE .................................................................................................48
Continuidade ou ruptura? ....................................................................................48
Nas fontes da plástica ............................................................................................49
Rumo à caricatura...................................................................................................50
A ilusão dramática..................................................................................................50
O repertório musical ..............................................................................................51
Nas fontes do clássico ............................................................................................53
HETEROGENEIDADE ..............................................................................................56
A entrada do ator....................................................................................................56
Brincadeiras de crianças ........................................................................................58
Os primeiros adeptos .............................................................................................59
O repertório dramático em jogo: Michael Meschke ..........................................60
No cruzamento dos meios de expressão.............................................................61
Uma teoria da metamorfose..................................................................................63
A matéria entra em cena........................................................................................65
O distanciamento....................................................................................................65
IV ‐ FORMAS E ESTILOS ...........................................................................................68
ANIMAÇÃO E SINERGIA .......................................................................................68
Do bom uso da tradição.........................................................................................68
Um mestre da metáfora: Josef Krofta ..................................................................69
As técnicas vindas do Oriente ..............................................................................73
Da literatura à metáfora plástica ..........................................................................75
A intimidade da narração......................................................................................77
Entre sonho e realidade .........................................................................................78
Sinergia.....................................................................................................................81
Signo ou símbolo?...................................................................................................83
ARTES PLÁSTICAS E BONECOS ...........................................................................84
As cenografias no teatro ........................................................................................85
O teatro cenografado..............................................................................................86
Teatro de autor........................................................................................................88
OS PINTORES NO TEATRO ....................................................................................92
Miró, Mata, Saura ...................................................................................................93
Magritte e os surrealistas.......................................................................................95
Teatro visual ............................................................................................................96
Interferências...........................................................................................................98
Teatro de artistas.....................................................................................................99
Teatro plástico.......................................................................................................103
M E T A M O R F O S E S
Do objeto à matéria...............................................................................................105
Philippe Genty ......................................................................................................108
Florilégio de teatro de objetos.............................................................................109
Teatro de projeção ................................................................................................111
Teatro da matéria..................................................................................................114
V ‐ SOCIEDADE..........................................................................................................119
Teatro de contestação...........................................................................................119
Teatro pobre ..........................................................................................................123
Teatro ritual ...........................................................................................................127
Fazer frente à história...........................................................................................128
DENTRO DO CONTEXTO DA TRADIÇÃO POPULAR...................................130
NA PERSPECTIVA DO MITO................................................................................136
Fausto .....................................................................................................................137
Don Juan ................................................................................................................139
Mitos e folclores ....................................................................................................139
A ópera barroca.....................................................................................................140
Mitos de origem....................................................................................................141
O eterno retorno....................................................................................................142
Teatro dos estados da alma.................................................................................145
CONCLUSÃO ..............................................................................................................153
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Ao Leitor
Do modernismo ao pós‐modernismo, a arte contemporânea provocou profundos abalos ao longo deste século. Foi assim que o vivi: como um verdadeiro tremor de terra, e nada será mais como antes. Hoje me pergunto se a arte do boneco não terá sofrido a mesma sorte? Como observador atento, partidário e testemunha de seu destino, tento comentar, analisar e explicar aqui os acontecimentos artísticos que influenciaram essas transformações, privilegiando os artistas, instigadores de uma nova abordagem que dá novas perspectivas ao boneco. Na passagem de um acontecimento a outro, busquei um afastamento, porque cada pedra trazida ao estudo minucioso dessa arte influenciava minha visão final. O afastamento não reaproxima? É uma questão de foco ou de época? Seja como for, o nascer do terceiro milênio dá a este ensaio um novo horizonte.
As metamorfoses do boneco no século XX resultam de uma série de ações e diligências iniciadas por artistas de grande qualidade: todos têm em comum o fato de serem portadores de idéias inovadoras e únicas conforme seu talento, de enriquecerem a arte do boneco e paradoxalmente, também, de colocarem em risco seus valores essenciais. O boneco primeiro afirma sua própria existência, descobre e analisa seus meios de expressão, depois conclui seu ciclo abandonando‐se ou se auto‐destruindo em proveito de figuras animadas, de objetos ou de atores. Mesmo no caso de uma extrema fidelidade ao personagem cênico, observei que ela progressivamente se privou de sua função de sujeito teatral fictício para pôr em valor sua função real: a de um objeto.
Considero o boneco uma forma artificial, articulada, fabricada segundo os princípios das artes plásticas, dotado de capacidades técnicas para ser utilizada num espetáculo, diante de um público, enquanto sujeito fictício. Esta definição poderia surpreender algum observador de teatro que associasse a noção de sujeito fictício à de ser humano, mas não é verdade que a energia de um sujeito cênico é transmitida pelo homem ao boneco, isto é, por quem o concebe e manipula? Essa energia não é a herança de um longo processo cultural onde a função de sujeito foi dada à marionete em sua vida pré‐teatral, como ídolo, fetiche ou forma articulada de uma divindade nas sociedades primitivas? Essa tradição justifica o fato de que o objeto possa ascender à vida autônoma de sujeito fictício. Sujeito cênico fictício e objeto real são as duas alternativas desenvolvidas pelos artistas que vou evocar. Esta oposição abre simbolicamente o caminho à compreensão das metamorfoses do boneco no século XX.
Enfim, este livro não é mais uma história do teatro de bonecos. Ele quer simplesmente conduzi‐los a um fenômeno cultural singular, digno de estudos mais profundos. Trata‐se de um gênero, saído da arte popular, que cativa os artistas, submete‐os às leis da arte, da criação, da inovação e da originalidade e quase chega a uma auto‐destruição total! Meus contemporâneos fazem uma análise similar da arte teatral à exceção do ator que, enquanto ser humano protegido pela lei, se mostrou intocável. O ator assumiu novas funções, sendo às vezes mesmo marionetizado, sem jamais ter sua integridade violada. O boneco não se beneficiou desta proteção. Criatura artificial, criação do homem, ele se submeteu a sua vontade. O homem pode reconstruí‐lo, animá‐lo, mas também pode destruí‐lo, encerrá‐lo numa loja de antiguidades, ou relegá‐lo para sempre a um museu.
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Introdução
O caminho que conduz o boneco às tábuas do teatro foi, para dizer o mínimo, particularmente longo. À serviço dos charlatões e dos contadores de histórias, o boneco suscitou formas diversas indo do circo ao espetáculo de variedades e da ópera aos balés. Substituto do ator, ele poderia tê‐lo sido do jogral, do atleta, do dançarino e mesmo do cantor. Sua prática multidisciplinar foi socialmente reconhecida como uma arte popular que, pouco a pouco, se voltou para as crianças e recebeu a etiqueta de teatro para crianças. Criadores de divertimentos populares, os bonequeiros jamais usufruirão de grande prestígio. O mesmo se dá com os atores de teatro, mas estes figuravam no alto da lista das artes do espetáculo. Os bonequeiros nela ocupavam uma posição muito mais modesta já que eram precedidos pelo pessoal do circo.
Falo de bonequeiros, mas os manipuladores de bonecos se qualificavam diversamente: artistas, atores, mecânicos, maquinistas reais, responsáveis teatrais, proprietários de empresa. Eles não tinham a consciência de exercer o mesmo ofício, com algumas exceções. Na Inglaterra, no século XVIII existiam teatros de bonecos permanentes cujos manipuladores e fabricantes de bonecos, às vezes renomados, formavam uma verdadeira corporação. Havia pois de um lado o boneco e seu potencial estético e dramático, e do outro uma multidão de organizadores de espetáculo, com freqüência amadores de origens diversas, que só recorriam ao boneco após terem esgotado todas as outras formas de expressão para atrair o público. Uma situação paradoxal onde o boneco e seu potencial artístico foram mal explorados.
Como meio de expressão artística, o boneco não está ligado a nenhum estilo ou corrente artística precisa. Neutro, ele estava à disposição dos artistas qualquer que fosse sua orientação. O boneco evidentemente possui características particulares, e enquanto obra plástica pode se transformar segundo os desejos de seu criador. O boneco sempre foi mais popular que elitista, mais próximo do folclore do que da arte com A maiúsculo. Desse ponto de vista, pode ser considerado como “conservador”. O teatro de bonecos, aliás, conhece ainda hoje, certas formas de teatro que o teatro esqueceu. O que não o impediu de suscitar, na época do modernismo, o interesse dos “artistas”. Seu renascimento no século XX fez com que o teatro de bonecos se tornasse mais artístico que popular ou plebeu.
Maurice Maeterlinck, Alfred Jarry e Edward Gordon Craig, em busca de um ator anti‐naturalista, foram tomados de paixão por essa arte. Logo após foi a vez dos futuristas (Enrico Prampolini), expressionistas (Oskar Kokschka), dadaístas (Sophie Taueber‐Arp) e nunistas (PierreAlbert‐Biron), cujo protesto contra a cultura burguesa levou‐os a abrir bem os braços a gêneros até então desprezados, como os espetáculos de variedades, o circo ou o teatro de bonecos. Mas o interesse pelo boneco, o manequim e a super‐marionete tem causas mais profundas que os estímulos artísticos: Todos os movimentos literários do início do século XX e do entre‐guerras têm que levar em conta a
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desumanização do mundo moderno: impulso da técnica e da mecânica, reino do dinheiro, horrores da guerra, abalos das revoluções1 sublinha J. Blancart.
Os bonequeiros certamente não tinham consciência do papel que podiam jogar e dos meios de que podiam dispor. Os poucos artistas atraídos por esse desejo de modernidade precisavam voltar a um boneco figurativo e antropomorfo se desejassem encontrar um grande público e obter alguma renda com suas atividades. Seu programa teatral e artístico foi bem pouco revolucionário. Eles se contentavam em seguir os princípios estéticos tradicionais e sentiam‐se obrigados a justificar sua escolha por manifestos que na maior parte sublinhavam o aspecto artificial do boneco. Partindo deste princípio, eles buscaram um movimento próprio e atribuíram ao boneco o papel de um ator. Mesmo se o espetáculo de variedades e todas as outras formas de espetáculos de bonecos perduraram artisticamente, os artistas consagraram sua energia à criação de uma arte dramática. Por menores que fossem suas intenções, elas permitiram assegurar uma continuidade na história e o boneco antropomorfo reencontrou seu prestígio. A influência da vanguarda foi bastante limitada e o modernismo não obteve nova vitória.
Sem querer desorientar o leitor, este livro necessita de algumas explicações terminológicas. Devo condenar o uso da palavra boneco em seu sentido mais amplo possível e o emprego quase abusivo de um vocabulário metafórico, que se sobrepõe aqui a uma abordagem puramente descritiva? A cortesia me obriga a definir certas convenções, a fim de que sua leitura prossiga o mais eficazmente possível. O termo ʺboneco dramáticoʺ parece estranho, mas caracteriza perfeitamente o repertório dramático desse teatro em oposição aos espetáculos de bonecos do circo, das variedades ou do cabaré. Esta distinção é necessária em razão da diferença formal e do estetismo desses espetáculos. O boneco dramático domina a arte do boneco durante várias décadas e estimula inúmeras reflexões sobre sua especificidade e suas capacidades de expressão. Certos teóricos quiseram mesmo estabelecer regras de funcionamento bem definidas. Os bonequeiros se interrogaram sobre sua especificidade e sobre a maneira de adaptá‐la a sua prática teatral. Era necessário imaginar uma linguagem específica e uma convenção própria ao teatro de bonecos homogêneo. Esta convenção teatral tem por princípio que o boneco é um substituto do personagem dramático, cujos gestos e voz provêm de um bonequeiro inteiramente dissimulado aos olhos do público. Este princípio vai se tornar progressivamente uma verdadeira amarra para a maioria dos bonequeiros. Só alguns artistas tiveram a coragem de se liberar dela. Pois esta especificidade viu sua existência ameaçada pela evolução da arte dramática. Após uma primeira onda de reformas sob a influência de Adophe Appia, de Craig, de Antonin Artaud e de Bertold Brecht, uma nova onda apareceu nos anos 50 com Beck, Malina, Grotowski e muitos outros, que abriram a via à subjetividade na representação teatral. Uma via assumida pela arte e que se conclui, em nossos dias, com o pós‐modernismo.
1 J.Blancart. A intrusão de manequins e de personagens desumanizados no teatro europeu do século XX. In Sylvie Jouanny (ed.) Teatro europeu , cenas francesas, cultura nacional, diálogo de culturas. Edições L1Harmattan, Paris, 1995, p. 195.
M E T A M O R F O S E S
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Uma nova etapa se esboça nos anos 50 e 60 com a aparição do teatro de bonecos heterogêneo onde o boneco deixa de ser o elemento dominante. Ele não é mais do que um componente entre outros, com o ator bonequeiro à vista, o ator mascarado, os objetos e os acessórios de todos os gêneros. Esta evolução conduz a uma nova reflexão e muitos procuraram explicar esta ruptura. Em 1983, Natalia Smirnova, historiadora, tentou definir sua natureza. Entretanto, quando atribui o cetro de reformador a Serguei Obraztsov e a seu Teatro Central de Bonecos de Moscou, ela se deixa ultrapassar pela realidade teatral. Obraztsov jogou realmente um papel importante, mas, sem dúvida podemos considerá‐lo mais próximo de Stanislavski que de outros reformadores que o sucederam como Meyerhold, Artaud e Barba.
Os bonequeiros tinham outras aspirações, em particular a de utilizar o boneco como um meio de expressão dramática possuindo qualidades plásticas. Tinham a sensação de ter ficado a reboque das experimentações de vanguarda. Nos anos 50, na Polônia, o encenador Jan Wilkowski, estimava este atraso em torno de um quarto de século. Harry Kramer, criador de espetáculos de móbiles, herdeiro espiritual de Schlemmer e de Calder, permanecia ainda convencido disso nos anos 802. Kramer exagerava um pouco. Ele analisava o teatro de bonecos comparando‐o à evolução das artes plásticas. Suas razões eram fragmentárias e antípodas ao teatro de marionetes dramático. Como é freqüente, a verdade está entre os dois. O teatro de bonecos está na fronteira das artes plásticas e da arte dramática. Sua forma depende das mudanças que sobrevivem tanto num quanto na outra. Alain Recoing, bonequeiro, ligava o teatro de bonecos contemporâneo ao teatro e às artes plásticas modernas. Ele declarava em 1980: Salvo raras exceções, pode‐se considerar que o teatro de bonecos, ao menos na Europa, está totalmente em ruínas no fim do século XIX. O teatro de bonecos contemporâneo não se ergueu dessas ruínas, nem se reconstruiu sobre elas:ele se desenvolveu noutro lugar e de outro modo a partir do fim da Primeira Guerra Mundial.3
Recoing analisa bem a situação, pois é verdade que a arte moderna foi a principal impulsionadora do teatro de bonecos contemporâneo. Mas afirmar que esta evolução se produziu bruscamente exige um certo cuidado. Essa idéia poderia ser defendida se dissesse respeito aos séculos precedentes, mas ele se refere a uma época em que a continuidade da história do boneco me parece devidamente estabelecida e inconteste. Ele não parece antever a interessante metamorfose do teatro popular, nem a consideração artística por ele alcançada. Porque o teatro de bonecos tradicional e popular exerceu uma influência direta sobre o teatro contemporâneo. Ele se perpetuou em países como a Inglaterra, a Bélgica ou a Itália, e para um bom número de artistas ainda é uma referência.
2 Harry Kramer. Vortrag. In “Forum Puppentheater 1988”, Wurzburg im Hobbit Puppentheater am Neunerplatz am 18 Juni 1988.
3 Alain Recoing. Os bonequeiros do outro lado do espelho. Teatro público “o teatro de bonecos”, revista bimestral publicada pelo Teatro de Genevilliers, no. 34‐35, ago‐set‐1980, p. 38.
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De minha parte estou convencido da continuidade da arte do boneco, pelo menos desde que se decidiu descrever e comentar sua evolução. Que um novo teatro de bonecos surgisse logo após a Primeira Guerra Mundial não é, a meus olhos, a prova de uma mudança de qualidade significativa. Ele é testemunha, ao contrário, da perenização das formas artísticas precedentemente adquiridas (mesmo que por sua negação). As tendências poéticas e anti‐realistas só se manifestaram com força após a Segunda Guerra Mundial. Essa época traz, inegavelmente, a marca da metamorfose e da história do teatro de bonecos no século XX. Ele se torna uma arte por inteiro. Desde então, os bonequeiros deram prova de uma energia sem limite, deixaram seu encrave e desenvolveram idéias originais, fazendo empréstimos à arte dramática e às artes plásticas. Poder‐se‐ia comparar essa transformação a um casamento entre um gênero artístico tornado nobre, o boneco, com a arte dramática, cujo dote comporta a maior parte dos princípios da arte moderna? Não foi assim que a arte do boneco tomou o caminho da originalidade e se fez absolutamente presente?
Na busca de um boneco não figurativo, o bonequeiro encontrou no seu caminho coisas, objetos utilitários de nosso cotidiano que podiam se metamorfosear em boneco e interpretar um papel dramático. Submetido a uma análise artística, a uma crítica de sua natureza artificial, o boneco revelava todas as suas fraquezas enquanto ser figurativo numa época em que dominavam a arte abstrata e a subjetividade, tanto sobre o plano psicológico como sobre o plano semântico. Ao tomar emprestado o véu da arte, ele tornou‐se vulnerável, frágil e submisso à vontade de seu mestre. Também é verdade que ao longo dos três últimos séculos o homem, a priori, aceitou o teatro de bonecos como um gênero teatral e um divertimento popular bem enraizado na vida cultural. A estética fenomenológica dos anos 30 propôs uma poética normativa que reforçava a posição do teatro de bonecos no seio do teatro e na qual os criadores se comprometiam a servir ao boneco enquanto personagem dramático. O mito funcionou durante algumas dezenas de anos. Analisar o boneco enquanto meio de expressão artística confirma a hipótese de que o homem só lhe concede provisoriamente seus privilégios de personagem dramático. O individualismo e o subjetivismo levaram os criadores a expor suas obras, durante o processo de criação, em seu próprio nome. É uma das razões que explica a passagem do boneco para o objeto. O trabalho do bonequeiro é então, de algum modo, um vestígio de arte anônima. Ei‐lo a partir de então face ao público, para dar prova de seu talento.
Cada um dos grandes artistas bonequeiros tem contribuído para a metamorfose do teatro de bonecos de nosso século. A imagem do boneco se encontrava transformada e esses artistas, verdadeiras referências na história e na estética dessa arte, se engajaram em novas perspectivas, tanto por sua compreensão quanto por sua ascensão ao tablado do teatro. Nós vivemos enfim uma época onde as idéias criativas e o pensamento estético fervilham sem cessar, onde o termo genérico de teatro de bonecos não é equivalente ao de teatro dramático nem ao do teatro em geral. Seu campo é verdadeiramente mais vasto. Meu prazer é ficar à espera, vendo emergir as novas experiências artísticas, e incapaz de imaginar a surpresa que me proporcionará cada amanhã.
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I - P R E M I S S A S
UM MODERNISMO SOB MEDIDA
A estética do teatro de bonecos vai conhecer, na primeira parte do século XX, duas etapas sucessivas e preliminares a sua profunda transformação. Primeiramente, o boneco se adapta às exigências da arte teatral, descobre as idéias modernistas e apropria‐se delas. Essa seqüência não deixa de ser surpreendente, pois em seu tempo, os teatros ambulantes, ao menos na França e na Alemanha do século XIX, imitavam francamente o teatro de atores. Reiterar a experiência poderia parecer inútil, mas de fato, o boneco vai adquirir uma dimensão artística e ganhar assim todo o seu sentido.
Devemos as primeiras experiências modernas ao Petit Théâtre, ao Théâtre d’Art e ao Théâtre de l’Oeuvre em Paris. Henri Signoret, Paul Fort e Aurélien Lugné‐Poe (pode‐se falar de bonequeiros?) perpetuam, na virada do século XIX, a imitação do teatro de atores (a despeito da estilização dos bonecos e de seu gestual), sem imaginar então as reformas que a vanguarda provocaria no início do século seguinte. Na realidade, todas essas tendências teatrais terminarão por se cruzar para dar vida, no alvorecer do século XX, a uma forma moderna do teatro de bonecos, inspirada em certas experiências artísticas do século precedente. Nesse sentido, o modernismo herda dos românticos alemães e franceses, esse interesse singular pelo boneco através do qual se cristaliza a imagem do ator ideal. No final do século XIX, o boneco entra em moda pelo teatro de Maurice Maeterlinck, os delírios burlescos de Alfred Jarry e as experiências teatrais de Paul Fort e Lugné‐Poe. A “super‐marionete” de Craig, as diversas experiências dos futuristas, dadaístas ou surrealistas elevam sua imagem ao patamar de gênero artístico. Esta homenagem não se deve somente à imaginação poética de Maeterlinck, nem à idéia excêntrica de Craig ou à provocação das vanguardas, mas a razões mais profundas. A nova percepção da realidade, a redefinição da arte, assim como o subjetivismo filosófico, ‐ que confere ao sujeito um papel maior nos processos cognitivos e sublinha sua importância capital no ato de criação – são essenciais para quem quer compreender as metamorfoses do boneco.
O modernismo é uma reação à arte realista e às idéias naturalistas que rejeitam a idealização do real e exigem uma “verdadeira” verdade. Os modernistas buscam transmitir uma verdade íntima, a dos estados da alma humana. A análise dos traços fundamentais da arte lhes fez descobrir que qualquer obra de arte, no fim das contas, não passa de um artefato. Estas obras pertencem à realidade enquanto criações artificiais do homem e não transgridem seu critério de autenticidade. Movido por estas premissas, Craig reivindica um teatro autônomo ‐ uma obra de arte autônoma – nascida da vontade de um artista teatral utilizando um material que ele submete aos seus desejos. Ele imagina mesmo uma “falsa” marionete que substituiria o ator vivo, aconselha buscar inspiração no “país da morte” e não encontra modelo melhor do que o boneco para realizar suas idéias. O teatro, enquanto criação artificial, não pode e não deve pretender ao papel de espelho fiel da realidade. Uma nova tarefa lhe cabe.
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Instrumento de uma expressão subjetiva, ele sublinha seu caráter artificial e sua teatralidade. Assim nasce o “teatro teatral” onde o encenador se apropria do poder, reina não apenas sobre os atores, mas também sobre os cenógrafos e sobre os autores. Ele não ilustra mais um texto apenas, mas impõe suas idéias.
A renovação do teatro de bonecos é assegurada por uma geração de artistas, pintores ou escultores que não são bonequeiros profissionais. Eles introduzem imitações de bonecos nas peças de teatro (Picasso), nos balés (Léger) ou no cinema (Alexandra Exter). Os futuristas Fortunato Depero e Enrico Prampolini trabalharam para Vittorio Podrecca, em Roma. Eles fabricaram bonecos inspirando‐se na geometria e em modelos mecânicos. Sophie Taeuber‐Arp e Otto Morach, no Teatro de Bonecos de Zurique, esculpiriam bonecos dadaístas e cubistas, em formas ingênuas, fazendo uso sem constrangimento de cores puras, vivas e trazendo a marca das ferramentas utilizadas. Alguns deles fundaram seu próprio teatro de bonecos, outros se engajaram nos teatros reivindicando uma identidade artística. Seja como for, a participação de grandes artistas foi pequena, seus espetáculos tiveram uma vida efêmera, e o grande público ficou indiferente a estes valores artísticos.
Outros ainda adaptaram a tradição a seus projetos artísticos. Assim, em Viena, o pintor e ilustrador Richard Teschner, se inspira em bonecos do wayang golek de Java, para encenar lendas indonesianas e criar seus próprios personagens. Na Rússia, Ivan e Nina Efimov perpetuam o antigo teatro de Petrouchka e experimentam magníficas esculturas em movimento em adaptações de fábulas de Krylov e peças de Shakespeare. Josef Skupa, na Checoslováquia, retoma com felicidade a tradição do personagem cômico e cria dois novos personagens – Spejbl e Hurvinek ‐ que reatam com a tradição dos jogos de palavras e outros trocadilhos para ironizar os comportamentos pequeno‐burgueses. Uma abordagem intuitiva e um interesse pela plástica vão direcionar esses poucos artistas ao universo do teatro de bonecos, sem que eles tenham conhecimento de seu funcionamento dramático.
Em Munique, Paul Brann, é talvez a única exceção. Homem de letras, colaborador de Max Reinhardt, ele é seduzido pela harmonia artificial que reina no teatro de bonecos a fim de criar um verdadeiro teatro artístico. Ele se volta assim para o boneco na esperança de encontrar ali a unidade dos meios de expressão que ele anseia encontrar no teatro. Brann monta velhas peças de bonecos – mistérios na época de Natal e o Doutor Fausto ‐, depois amplia seu repertório com peças do repertório contemporâneo (Schnitzler, Maeterlinck), espetáculos musicais, sem desprezar as obras pós‐românticas do conde Franz Pocci. Ele utiliza bonecos estilizados que evocam o ser humano com uma força de expressão espantosa, acentuando às vezes o traço para mostrar o artifício do boneco enquanto intérprete. Mais moderado que os vanguardistas, suas idéias e seu teatro encontraram um eco muito favorável junto ao grande público e bonequeiros da nova geração. Seu sucesso foi total. Brann exerceu uma grande influência e foi seguido por inúmeros bonequeiros poloneses, checos, rumenos, iugoslavos e americanos.
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O ator ideal
Ao tentar definir a natureza artificial do boneco, Brann, após Maeterlick e Craig, aborda inevitavelmente a questão do ator ideal. Ele contribuiu para esta reflexão levantada por tantos grandes renovadores do teatro, artistas e poetas (Maeterlinck, Ghelderode, Garcia Lorca), para quem o boneco é um fenômeno misterioso, um tanto marginal, mas oh! quão fascinante. O boneco aparece aí honrado e adulado. De fato são inúmeros os bonequeiros a considerar que o boneco só encontrará sua salvação respeitando as convenções do teatro clássico, tanto no que concerne ao espaço cênico, ao jogo, quanto no tema do espetáculo. Após anos de vãs tentativas e discussões, Craig renega sua “super‐marionete” e tributa ao ator seus agradecimentos. Sua teoria resta inegavelmente como um ponto de referência, tanto para seus partidários quanto para seus detratores. Entre estes últimos, Julia Slonimska, sob a influência de Evreinov, empreende com um grupo de amigos a reconstituição de um teatro de feira popular do século XVII. Numa revista de São Petersburgo, ela afirma a necessidade do teatro de bonecos enquanto gênero independente: O elemento essencial do teatro – o movimento – cristalizou‐se em estado puro no teatro de bonecos. O boneco propõe uma forma de teatro sem elementos de corporeidade. Do mesmo modo que os signos algébricos substituem grandezas numéricas determinadas, o corpo fictício do boneco substitui o corpo real do homem. O lugar do boneco no teatro lembra o papel dos números infinitamente pequenos na matemática ‐ é como se o boneco integrasse os fenômenos complicados do teatro mostrando nele as formas originais, as formas primitivas.4
Slonimska opõe‐se radicalmente a Craig. Segundo ela, o ator é tão necessário quanto o boneco, um e outro trazendo ao teatro valores diferentes: Os métodos de criação do ator e do boneco são quase antípodas um do outro, o que exclui toda possibilidade de inveja e de rivalidade. O ator, em cena, realiza sua concepção por meio de seu corpo e lhe dá assim sua cor pessoal. O boneco vai do particular ao geral, mostrando no cruzamento dos fenômenos um motivo eterno, essencial. A criação do boneco é uma síntese artística, a criação do ator é a análise de um personagem poético. Foi essa diferença fundamental que permitiu comparar o ator real ao ator fictício. No imenso mundo do teatro, o ator e o boneco são tão indispensáveis quanto o são estes dois métodos de pesquisa, a análise e a síntese 5,no mundo da ciência.
Nina Simonovitch Efimova, por seu lado, opta pelo boneco de luva, mais de acordo com a tradição do teatro de bonecos popular russo. Sua força artística é ser uma escultura e o teatro de bonecos uma “escultura em movimento”. Por isso, ela desenvolve as capacidades expressivas do boneco, seu gesto e seu movimento. Para afirmar a superioridade do teatro de bonecos, ela não pode evitar compará‐lo ao teatro de atores porque eles mantêm as mesmas relações que o rico e o pobre da parábola do rico e de Lázaro. Agonizante, um rico se dirige a um pobre miserável: “Mergulhe a ponta de teu dedo na água para me refrescar a língua”. As pesquisas dos modernistas confirmam a verdade dessa parábola: “O teatro de atores também chega a um dado limite e clama pelo
4 Julia Slonimska. Marioneika (O boneco) Apollon, São Petersburgo, 1916, no.3
5 Julia Slonimska. Marioneika (O boneco) Apollon, São Petersburgo, 1916, no.3
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boneco:“Refresque‐me, purifique‐meʺ! Você fala sério quando fala de igualdade entre o teatro de bonecos e o teatro de pessoas? E não se trata só de igualdade (compreendida como fraternidade)? Mas ainda não se sabe em que lábios vai aparecer um sorriso de indulgência6.
Efimova superestima as qualidades do boneco, como muitos outros, mas sua tomada de posição me parece justificada. O teatro, com freqüência recorre ao boneco em busca de novas fontes de energia criadora. Efimova se concentra nas capacidades expressivas do boneco e será nesse espírito que desenvolverá suas criações.
Estas reflexões nos conduzem ao reconhecimento da particularidade do boneco. A esse respeito, a escola formal de Praga, na pessoa de Otakar Zich e de Petr Bogatyrev, estuda a linguagem específica do teatro de bonecos. Zich analisa o efeito produzido pelo boneco sobre o público e conclui que ele se situa em dois níveis: Nós consideramos os bonecos como bonecos, o que quer dizer que ressaltamos sua natureza inerte. Para nós ela é real, nós a tomamos a sério. O que implica em que, por isso mesmo, não podemos levar a sério as palavras e os gestos dos bonecos; “suas marcas de vida”, a nossos olhos, são cômicas, grotescas. O fato de que os bonecos sejam pequenos, rígidos, ao menos em parte (o rosto, o corpo) e que isto torna seus gestos estranhos, “de madeira”, também reforça a impressão cômica. Não é um cômico vulgar, mas talvez um humor sutil que se destila desses pequenos personagens, que se comportam em aparência como seres humanos vivos. Nós os consideramos como bonecos, enquanto eles querem que nós os tratemos como humanos, e é isso justamente que nos traz satisfação. Sabemos que é este mesmo o efeito produzido pelos bonecos. (...) A impressão de inércia dada pelos bonecos passa então ao segundo plano ao gerar uma sensação de algo inexplicável, de um enigma que nos enche de espanto. Os bonecos nos fazem então o efeito de um mistério.7
Zich constrói sua análise a partir dos espetáculos de bonecos populares que pôde ver e emite hipóteses sobre o futuro do teatro de bonecos, que concebe sob a forma de uma estilização plástica: Nós dissemos que no primeiro caso consideramos os bonecos como uma matéria inerte, que suas “marcas de vida” não nos causam grande impressão, quer sejam cômicas ou grotescas. A estilização que corresponde a essa concepção do boneco é o cômico plástico, ou seja, uma caricatura plástica. Para o artista, a plástica se situa em todo lugar. Um outro tipo de estilização pode produzir um novo tipo de teatro de bonecos, se ele se apóia sobre as artes plásticas sólidas. A análise acima mostrou que nós levamos muito a sério as marcas de vida dos bonecos, que são marcas de um gênero particular (...) Se fosse impossível, se essa tomada de consciência se impusesse demais a nós, isso poderia dar nascimento, como vimos, a um sentimento de animosidade ou de horror. Mas se esquecemos a inércia dos bonecos, e seu pequeno tamanho contribui para que a esqueçamos, não resta mais do que o sentimento de um enigma: os bonecos tornam‐se misteriosos e nos aparecem mesmo como seres sobrenaturais. A estilização
6 Nina J. Simonovitch‐Efimova. Zapiski Petruchetchnika (As notas de um tocador de Petrouchka) Gosudarstvennoë Izdatelstvo, Moscou‐Leningrado, 1925, p. 10
7 Otakar Zich, Loutkové Divadlo (O teatro de bonecos), Drobné umeni‐Vytvamé snahy. Praga, 1923, no. 4. Ver também Frantisek Sokol, Svet loutkového divadla (O universo do boneco), Albatros, Praga, 1987, p.26.
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plástica dos bonecos deve levar em conta sua tendência à desmaterialização, e ela pode chegar a isso com meios anti‐realistas. O boneco se tornará então o símbolo de um personagem, não de um personagem particular, mas de um personagem geral, o que pode corresponder a uma tendência anti‐realista de estilização. Se no primeiro caso o boneco era uma caricatura plástica, no segundo ele é o símbolo plástico de um personagem geral8.
Outros teóricos além de Zich se interessam pela equivalência entre boneco e ator. Para muitos, o teatro de bonecos não passa de um substituto do teatro de atores, e só poderá ganhar sua independência como gênero dramático ao se comparar com este último. Na Rússia, Petr Bogatyrev, folclorista e semiólogo, colabora com os teóricos checos e critica severamente Zich: Otakar Zich comete um erro fundamental ao recusar ver no teatro de bonecos um sistema de signos independente sem o qual não se poderia compreender, de fato, nenhuma obra artística. Todas as observações de Zich sobre o teatro de bonecos podem se aplicar sem problema a todas as artes... O erro fundamental de Otakar Zich, segundo nosso ponto de vista, é de não admitir este sistema de signos enquanto tal, sui generis, e de compará‐lo ao jogo dos atores vivos. Ora, se tomarmos o sistema de signos dos atores vivos na cena não por signos de teatro, mas por signos da verdadeira vida, teríamos a mesma impressão de Zich quando ele observava bonecos.9
O interesse da escola de Praga pelo boneco é confirmado pelos estudos feitos na Alemanha durante o entre‐guerras. Eles se apóiam na estética subjetiva de Max Schassler e em estudos fenomenológicos. O boneco é percebido como um substituto do personagem. Ele interpreta um papel e pode pretender tornar‐se um sujeito cênico. Esta corrente aceita a especificidade do boneco, suas qualidades e seus limites para definir suas capacidades expressivas. A obra de Lothar Buschmeyer, Die Kunst des Puppenspiels (1931), é um estudo extremamente detalhado disso. Ele situa o teatro de bonecos na arte teatral e toma o boneco como objeto de estudo porque ele “é a base material de qualquer análise estética e (que) ao se concentrar a atenção sobre ele, pode‐se definir os limites do gênero inteiro”. Os limites são definidos pela vontade do artista ou por sua imaginação, qualquer que seja a natureza do boneco. Se não busca produzir voluntariamente outros efeitos, o teatro de bonecos é sempre cômico. Isso diz respeito a seu caráter esquemático, a seu simbolismo e a seu primitivismo.10
Todos os bonequeiros estariam de acordo com esta análise um tanto quanto redutora? Fora do cômico, nenhuma salvação? Buschmeyer descreve, com efeito, os diferentes tipos de bonecos em função de critérios estéticos tais como o trágico, o sublime, a sátira burlesca e o humor, depois segundo diversos gêneros literários tais como o conto, a lenda, a fábula, o mito e o mistério. Em resultado de sua análise conclui que, enquanto intérpretes, os bonecos são bastante universais, à exceção do boneco de luva que convém melhor, segundo ele, ao burlesco e ao humor. É fácil imaginar que os bonequeiros fizeram pouco caso do estudo subjetivo de Buschmeyer e que ele não
8 Frantisek Sokol, Svet loutkového divadla (O universo do boneco), Albatros, Praga, 1987, p.26‐27.
9 Peter Boagatyrev. Lidovle divadlo ceske a slovenske (O teatro popular checo e eslovaco). Borovy, Praga, 1940.
10 Lothar Buschmeyer. Die Kunst des Puppenspiels (A arte do boneco). Erfurt, 1931, p. 164‐165.
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apresenta interesse muito maior hoje para estudar o método pregado pelo autor. Buschmeyer toma como base de seu raciocínio a idéia de que o boneco e seu gestual são imutáveis, e distingue quatro tipos de bonecos: o boneco de luva, o boneco de fio, o boneco de vara e as figuras planas das sombras. O tema do espetáculo teatral deve ser adaptado às capacidades expressivas de cada tipo. Assim, nos anos 30, os próprios teóricos, sem falar dos bonequeiros, partem da idéia de que o boneco é o elemento essencial e que o repertório não é mais do que a resultante de suas capacidades de expressão. Os teóricos são incapazes de imaginar a situação inversa, ou seja, que o tema escolhido pelo artista possa determinar a escolha dos modos de expressão.
Fritz Eichler reduz ainda mais seu campo de pesquisa. Como a mão constitui a alma ou o centro do boneco de luva, falando propriamente, Eichler considera esse tipo de boneco como o prolongamento da expressão do ator. Para ele, a manipulação de um boneco de luva é uma variante da pantomima e perpetua o jogo do antigo mímico. Um sentimento compartilhado pelos bonequeiros que garantem uma tradição do personagem cômico. Max Jacob, da trupe do Hohnsteiner, declara que o próprio bonequeiro precisa se sentir Kasperle para obter bons resultados. O que autoriza visivelmente Eichler a dizer que o boneco de luva não é um boneco, e que o verdadeiro boneco, é aquele que joga afastado de seu animador e possui suas próprias leis mecânicas, é a marionete. Eichler lamenta, com efeito, que um meio de expressão dramática que apresenta tamanho interesse tenha sido, durante tantos anos, submetido às convenções do teatro de atores e que, além disso, os marionetistas alemães acreditavam dever imitar. Ele propõe redefinir o estilo da marionete: A qualidade artística da marionete reside no acento posto sobre seu próprio caráter específico. Para atingir essa qualidade, é preciso obter o máximo de expressão própria à marionete. Como o ator do teatro “vivo”, é ela o ponto central e o problema principal. As tarefas do ator se deslocam do sujeito ao objeto, do elemento pessoal ao elemento impessoal e supra‐pessoal. Toda a subjetividade do jogo do ator, todas suas grandes possibilidades e sua ação direta desaparecem. O caráter do jogo não é mais subjetivo, ele é objetivo e passivo, ele não é direto e vital, mas indireto e objetivado. O boneco durante o jogo não vive a vida do homem, mas sua própria vida mecânica. Todas as emoções às quais o jogo deve dar uma forma artística são expostas de uma maneira desumanizada e estilizada por um personagem totalmente factício. 11
Partindo das idéias de Kleist para proceder a uma análise teórica da marionete, Eichler se aproxima sensivelmente de Schlemmer e de seus estudos sobre as relações entre espaço e ator na Bauhaus. Eichler estabelece uma ponte entre a especificidade do teatro de bonecos e os postulados da vanguarda.
Da teoria à prática
A história nos ensina que os comportamentos e a criação dos artistas são muito raramente influenciados pelos manifestos artísticos, as interpretações e os postulados dos teóricos. Além disso, parece pouco provável que bonequeiros, mesmo alemães
11 Fritz Eichler. Das Wesen des Handpuppen und Marionettenspiels (A natureza do boneco de luva e a marionete). Emsdetten, 1937, p. 27
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como Fuhonny e Max Jacob, eles próprios engajados numa reflexão estética tenham lido assiduamente os estudos de Buschmeyer e de Eichler. No entanto, é certo que os apresentadores de bonecos do mundo inteiro sentiram confusamente a presença de novas tendências e se consideraram, de fato, como os criadores de um novo teatro. Sua visão foi modelada pelo teatro clássico mesmo se a necessidade de aperfeiçoá‐lo e de fazer dele uma arte se impôs por si mesma. Para isso, era fundamental que tivessem consciência da especificidade do boneco e do teatro de bonecos enquanto gênero dramático. A abertura da arte moderna a uma estética subjetiva se metamorfoseia, no seio do teatro de bonecos, numa poética normativa quase aristotélica. Os teóricos do teatro de bonecos e os bonequeiros sentiram a mesma necessidade de codificar o teatro de bonecos enquanto gênero, definir os valores estéticos e servir a sua arte. Um paradoxo a mais! Uma decisão espantosa nessa primeira parte do século vinte, de fato contestadora face às regras e códigos. Por outro lado, é facilmente compreensível que os novos bonequeiros, artistas ou neófitos, evoquem tanto a qualidade estética e teatral de sua arte dado o atraso a cobrir. Aristóteles não leva em conta o teatro de bonecos em suas reflexões sobre a natureza da arte dramática, e outros após ele também não. À exceção de algumas metáforas ou resenhas às vezes zombeteiras, o boneco não teve o dom de provocar os literatos a elaborar uma teoria estética. Os ensaios de Samuel Foote, Heinrich von Kleist, Goerge Sand e Charles Magnin se atêm a alguns aspectos do tema mas não podem rivalizar com a imensa literatura consagrada ao teatro e aos atores.
Por outro lado, a maior parte das reflexões esboçadas pelos teóricos tem um caráter puramente especulativo, e nesse campo os bonequeiros manifestam com freqüência interesse por tais profissões de fé, bem anteriores à aparição de novas correntes. Única exceção, Vladimir Sokolov, ator e encenador do Teatro Alexandre Tairov de Moscou. Sob a influência das idéias de Craig e aluno de Tairov, ele se opõe ao realismo na arte e no teatro de bonecos. Fascinado pelas particularidades formais do boneco, busca extrair dele um estilo de jogo. Segundo ele, existem duas possibilidade de se chegar a isso: um teatro burlesco, excêntrico, e um teatro de dinâmica musical: Em meu teatro, numa cena, uma figura perde literalmente a cabeça ao ver sua bem amada a bordo de um dirigível. Uma outra figura poderia ter duas cabeças, uma para o domingo, outra para os dias de semana. Podemos ter figuras sem tronco, compostas unicamente de braços e pernas, e outra com vários braços fixados ao tronco (foi assim que representei um empregado ou garçom de um restaurante que serve seus clientes com muita rapidez, sempre pronto a responder ao chamado). Numa cena de Uma Lágrima de Diabo, de Théophile Gautier, frente aos olhos de um jovem ainda inexperiente nas coisas do amor sucede‐se um verdadeiro jogo amoroso do qual participam os objetos que o cercam. Um sofá aperta com ternura uma cadeira em seus braços, uma escova seduz um pente, e duas lâmpadas acesas se consomem de amor antes de se incendiarem numa relação amorosa.
A esse teatro de excentricidade burlesca Sokolov prefere seu “teatro de dinâmica musical”: Eu o chamo de caminho do verdadeiro movimento. Desaparece toda aproximação, por mais ínfima que seja, com qualquer forma humana: o boneco se libera da própria idéia de figuração objetiva. Talvez isso faça desaparecer ao mesmo tempo a palavra “boneco”, nascida por acaso num pequeno burgo da França. Nesse tipo de espetáculo, a imagem se exprime com formas
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conhecidas ou abstratas, planos, linhas ou grupos de pontos, e também com variações de iluminação e de cor. Nasce assim um conjunto de movimentos que se penetram e se fundem incansavelmente, que tendem em permanência a se separar, que se modificam indefinidamente. Quanto mais um ritmo musical é necessário para o movimento do boneco em geral, mais ele se torna uma lei fundamental, um princípio essencial nesse teatro. É a última conseqüência desse teatro que chamo de teatro de dinâmica musical. Ele pede a elaboração e a definição de um contraponto dinâmico preciso com todas as regras a ele relacionadas. Assim, em meu teatro apresento a sinfonia de Tchaikovski Francesca da Rimini. Do mesmo modo, não se teria nenhum problema em representar simbolicamente a sinfonia dinâmica de uma cidade moderna, de fazer existir todas as suas particularidades, seu movimento e todas as suas forças elementares. 12
A idéia do teatro de dinâmica musical é totalmente original. Pode‐se estabelecer um longínquo paralelo com a pintura abstrata. De todo modo, seus contemporâneos vêem em suas idéias uma prova da originalidade da “jovem arte dramática russa” oposta ao teatro de ilusão, sem imaginar que elas possam estar diretamente ligadas ao teatro de bonecos. Extraídas de sua prática teatral e experimentadas nas inúmeras turnês do teatro Tairov e de seu próprio teatro de marionetes, as idéias de Sokolov vão ser mais conhecidas no estrangeiro que na Rússia. Os alemães, aliás, propõem‐lhe publicá‐las em 1923.
Em conclusão, não seria lógico que os artistas e os bonequeiros definissem com prioridade a função artística de seu teatro? Nosso século é, sem dúvida, o mais rico e o mais promissor que se lhes oferece para formular e experimentar novos preceitos, como o de definir a essência artística (eidética segundo a fenomenologia) do boneco e introduzir em sua linguagem a noção de sua especificidade. Esse encaminhamento foi assumido, primeiramente, no sentido de uma norma obrigatória, depois como critério de qualidade artística. Mas na mesma rapidez com que essa definição foi elaborada, ela não correria o risco de restringir e de limitar os bonequeiros? Assim como a lei que a exprime? Felizmente, as leis não são feitas para serem infringidas? Cada artista cria seu próprio sistema e sua hierarquia de valores estéticos. Os bonequeiros, na sua maioria, aceitaram a noção de “especificidade do boneco”, pedra filosofal da perfeição de sua arte. O modernismo estaria então à medida do teatro de bonecos? Do boneco? Ou ele próprio não é limitado? Os bonequeiros, de fato, não anteciparam a transformação de sua arte. Sua primeira preocupação foi assegurar um status artístico pela criação de uma teoria própria, por uma real integração na cultura teatral e pela vontade de adquirir uma formação profissional.
A PROFISSIONALIZAÇÃO
Para se evadir da arte popular e de um certo diletantismo, o teatro de bonecos experimenta a necessidade de se confrontar a profissionais, de se enriquecer de suas experiências, de aperfeiçoar seu ofício e de inscrever‐se na história. Assim Signoret,
12 Vladimir Sokolov, Gedanken zu meinem Theater musikalischer Dynamik (Pensamentos sobre meu teatro de dinâmica musical) Das Puppentheater, 1923, Heft 3,p. 36‐38.
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Efimova e Brann se profissionalizam com sua prática teatral e no contato com o público. O teatro de atores lhes traz um conhecimento e um saber teatral. O boneco deve mergulhar na água sagrada da cultura teatral para receber o batismo e uma consagração artística? Este ritual foi cumprido, na França, por um diretor de teatro: Gaston Baty e na União Soviética, por Sergueï Obraztsov, jovem ator do teatro de Arte de Moscou. Eles jogaram um papel essencial nas metamorfoses do teatro de bonecos e exerceram uma grande influência sobre o teatro de bonecos contemporâneo; Baty na França, Obraztsov em escala mundial.
Baty: uma lenda francesa
Baty é uma “lenda” do teatro de bonecos francês. Já no final de sua vida, decepcionado com o Teatro, ele se volta para o teatro de bonecos levando‐lhe sua experiência teatral. Como Craig, ele se obstina durante vários anos em realizar um teatro artístico de bonecos sem sucesso aparente. Ele não deixa de ser um personagem simbólico enquanto diretor de teatro no auge de sua glória, da qual os bonequeiros
vão se apropriar na continuação. Literato de formação, Baty manifesta muito cedo seu interesse pelo boneco. Foi sem dúvida em Lyon, onde fez seus estudos nos anos vinte, que descobriu sua tradição, as representações de Natal e o Teatro de Guignol. Suas pesquisas dão origem a várias obras, das quais uma é consagrada ao teatro de bonecos ambulante na França no século XIX e ao seu repertório. Primeiro busca perpetuar esta arte popular caída em desuso, acolhe bonequeiros tradicionais no Teatro Montparnasse e colabora com a União Nacional e Corporativa dos Apresentadores de Marionetes, no seio da qual estabelece laços de amizade com vários deles, entre os quais, Marcel Temporal, arquiteto e inspirador dessa união. Foi só em 1942, ao abandonar a direção do Teatro Montparnasse, que Baty introduziu o boneco em cena. Desenvolve experiência em laboratório a fim de estudar todas as suas capacidades expressivas. Durante meses, com um grupo de seis pessoas, dirige os ensaios de uma peça de Maurice Sand, Nous Dinons chez le Colonel (Nós Jantamos na Casa do Coronel) e consagra um ano inteiro ao Médico à Força para finalmente só fazer uma única apresentação. André‐Charles Gervais, membro de seu primeiro grupo e autor de uma obra sobre o teatro de bonecos francês nos anos 20 e 30, evoca assim os métodos de Baty: Nós pesquisamos três anos. Nossa equipe de seis entusiastas, animados pelo maior entusiasta de todos, pacientemente arrancou do desconhecido os primeiros elementos de uma técnica cuja primeira parte desta obra dava uma idéia. Durante dias inteiros, sob o olhar benevolente, mas impiedoso de Gaston Baty, tentamos fazer exprimir, através de um gesto, um novo sentimento de nossos bonecos 13.
Baty, sem justificar sua escolha, utiliza bonecos de luva, tornados popularizados pelo Teatro Lyonês de Guignol. Seriam eles mais teatrais que a marionete? Pode‐se ver em sua escolha o triunfo da escola teórica francesa representada por George Sand sobre a estética alemã que utiliza habilmente as idéias de Kleist para elogiar os méritos da
13. André‐Charles Gervais. Bonecos e bonequeiros da França. Bordas, Paris, 1947, p. 114
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marionete, boneco ideal? Gervais confirma a idéia de Baty: No mundo dos bonecos todas as inverossimilhanças são permitidas porque nada é real, todo o prazer estético é feito de concessões. Os bonecos permitem atingir este realismo superior, mais verdadeiro que o verdadeiro, que é para nós o fim de toda arte autêntica14 .
Baty une‐se à extensa corte dos que idealizam o boneco e superestimam suas capacidades. Ele busca antes de tudo produzir uma ilusão cênica e sua admiração pelo boneco não foi a única razão de sua saída do teatro de Montparnasse. Os crescentes conflitos no seio do teatro e a atmosfera da França ocupada o convidam a buscar refúgio num mundo mais tranquilo. Não por acaso, o último espetáculo que apresenta ao público evoca a Belle Époque do romantismo francês. Trata‐se de La Queue de la Poele (O Cabo da Frigideira), espetáculo fantástico, em três atos e cinco quadros, à maneira do Boulevard do Crime segundo Marianville, Sirodin, Clairville, os irmãos Cogniard e outros clássicos do gênero, representado no pavilhão de Marsan de 2 de maio a 8 de julho de 1944. A peça evoca personagens conhecidos dos parisienses dos anos 20 do século XIX, Robert Macaire e Bertrand, aos quais Baty acrescenta o elegante parisiense Billembois que sai em viagem através da velha França romântica. Jean‐Loup Temporal nos esclarece sobre a escolha do tema feita por seu mestre, mas não explica o fato de que Baty se volte para o boneco. Jamais pretendi que o boneco substitua o ator. Nas oitavas médias do teclado teatral, este lhe é sensivelmente superior. Mas quando se trata de atingir e exprimir os mitos, os seres irreais, o boneco é um modo de expressão insubstituível nas fronteiras, por assim dizer, e no prolongamento da humanidade15.
Eis aqui um primeiro esboço de resposta: “exprimir o mito”. Trata‐se, claro, do mito de Robert Macaire, que tinha sido representado por Frédérick Lemaître, espécie de gentleman‐ladrão cujas peripécias são pretexto para uma mordaz sátira social e suscitam o entusiasmo da crítica e do público parisiense. No seu íntimo, Baty sonha com um mundo melhor e encontra no boneco uma forma de liberdade no sentido amplo do termo. Em março de 1946, ele confia a Henri‐René Lenormand: Faz cinquenta anos que morri. É por isso que não quero nem posso me interessar pelo tempo presente. O mundo no qual fui feito para viver, é o da liberdade. E só o boneco conhece a liberdade que o teatro perdeu. Ele obstinadamente volta as costas para o real. Ele só toma vida dos nossos sonhos. Não se pode submetê‐lo, nem fazê‐lo servir. Ele é nossa única salvação. Desta época envenenada, eu não quero nem saber 16...
Após a guerra, com o mesmo grupo mas sob uma nova consigna: Os Bonecos à Francesa, Baty monta quatro outras peças entre as quais o Fausto popular, adaptado e criado em 1948, e faz um grande sucesso entre os bonequeiros. Os críticos, cronistas fiéis de suas encenações, ficam perplexos. Pol Gaillard fala desta “nova quimera de Gaston
14 André‐Charles Gervais. Bonecos e bonequeiros da França. Bordas, Paris, 1947, p. 12
15 C. Cezan.”No Palácio do Louvre, graças a Gaston Baty, o boneco conclui uma viagem de três séculos”, Paris‐Midi, 1º de abril de 1944
16 Arthur Simon, Gaston Baty teórico do teatro. Edições Klincksieck, Paris, 1972
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Baty” como de uma tentativa infeliz de encontrar seu caminho. Os bonequeiros deram‐lhe reconhecimento a despeito do caráter literário de seu teatro. Eles acolheram seus outros espetáculos com entusiasmo. Baty, a partir de então, vai estar do seu lado. Os meios e as convenções do teatro de bonecos se encontram enriquecidos pelo exemplo de uma encenação perfeita e aspiram a tornar‐se um verdadeiro teatro segundo as regras da arte. Infelizmente, os bonequeiros foram praticamente os únicos a se darem conta.
Os espetáculos e os métodos de trabalho de Baty entram logo para a história graças a seus discípulos Alain Recoing e Jean‐Loup Temporal, que tornam públicas suas experiências e proclamam, não sem orgulho, a excelência de seu mestre. Eles irão dirigir, na continuidade, suas próprias trupes. Temporal toma suas distâncias em relação às idéias de Baty, mas seus espetáculos “literários” dão prova de suas raízes comuns. Recoing segue também os ensinamentos de seu mestre e resta fiel à técnica do boneco de luva, sem dúvida ainda mais impulsionado pela realidade teatral dos anos 60. Baty permanece na memória de todos os bonequeiros franceses como o homem que fez o teatro de bonecos se beneficiar de seu profundo saber e de suas competências no campo da arte dramática.
Obraztsov: um mestre inconteste
Obraztsov vai se engajar nesse mesmo caminho. Suas primeiras experiências de ator dramático inspiraram amplamente suas inovações no teatro de bonecos ao assumir, em 1930, a direção do teatro Central de Bonecos de Moscou. Inicia‐se primeiro como amador e obtém um franco sucesso com seus bonecos que lhe permitem exprimir todos os seus talentos: canta antigas romanças russas e ciganas, contrapondo‐as à imagem provocadora de seus heróis; o efeito cômico é garantido. Além disso, seus estudos do canto, artes plásticas e sua prática teatral o prepararam perfeitamente para abraçar a profissão de bonequeiro. Obraztsov mostra o homem sob um aspecto bem divertido, revelando um dom extraordinário para a observação da natureza e das fraquezas humanas. O homem, o personagem dramático, está no coração de seus interesses. Buscando exprimi‐lo com um espírito essencialmente satírico, ele estuda todos os meios de expressão. Suas pesquisas sobre o boneco de luva o levam a abandonar, nos anos 20, a roupa do boneco para pôr a mão sem nada. Ele cria um gênero onde a mão pode encarnar personagens, confronta seus bonecos a um objeto, um acessório miniatura ou a um objeto autêntico. Afastando‐se assim do verossímil, a diversidade das funções da matéria cênica o fascina. Cantando frente ao pano A Berceuse de Moussorgsky para um bonequinho chamado Tiapa, Obraztsov mostra ao público seu antebraço que é ao mesmo tempo o corpo de Tiapa e o seu. A dupla função da matéria constitui, para Obraztsov, uma descoberta da essência do teatro de bonecos. Ainda hoje, o funcionamento cênico de Tiapa resta como referência do fenômeno de dupla visão ou de opalinização no teatro de bonecos.
Quando Obraztsov dirige o Teatro Central de Bonecos de Moscou, ele elabora um novo repertório socialista e respeita o realismo socialista, como o testemunham seus primeiros espetáculos muito politizados do início dos anos 30 (a discriminação dos negros nos Estados Unidos, as greves operárias na Itália, etc.). Oriundo da intelligentzia,
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Obraztsov julga que a revolução é sem dúvida bem fundamentada, como a maioria dos artistas da época. Entretanto, ele jamais se pronuncia sobre nenhuma questão de ordem política. Desde que ele teve a possibilidade de voltar ao conto, mesmo tratado à moda socialista – À Ordem do Lúcio (1936) ‐, e à representação dos valores morais – O Alezan segundo Tchekov ‐, ele se libera de um sistema de pensamento político que não é o seu. Os bonecos de luva de seu início introduzem um elemento grotesco, mas este não é suficientemente forte para atenuar o realismo da animação e o da história. O mimetismo se desenvolve nos seus espetáculos quando ele introduz bonecos de vara (variante européia do wayang), melhor adaptados para imitar o homem. A Lâmpada Maravilhosa de Aladim (1940) parece muito poética a inúmeros críticos, e suas criações sucessivas testemunham a que ponto este boneco parece corresponder à estética do realismo socialista.
Recusando‐se a considerar o boneco como uma escultura em movimento, insistindo sobre sua função teatral enquanto personagem, ele desenvolve essencialmente a idéia da especificidade do boneco. Em O Ator e o Boneco, primeira obra que consagra ao assunto, surgida em 1936, ele escreve: A realidade do boneco se exprime por sua oposição direta à imitação do homem. Sobre isto, estou em desacordo com meus companheiros de armas, bonequeiros e pedagogos, que por diversas razões consideram que o boneco deve absolutamente assemelhar‐se ao homem e que este é o único boneco que agrada às crianças. Esta semelhança, que faz do boneco uma minúscula figura de museu é apavorante, e de todo modo é falsa. A realidade do boneco reside no fato de que por sua natureza ele permanece um boneco e está livre da crítica de ser um objeto de museu e do desejo místico que se tem de fazer dele um ser humano. O mistério do boneco está na é sua metamorfose sob os olhos dos espectadores em ator de possibilidades infinitas enquanto continua evidentemente se tratando de um boneco.17
As obrigações ideológicas do Teatro Central de Bonecos não lhe permitem desenvolver sua teoria dos anos 30, ao menos no que diz respeito aos espetáculos contemporâneos. Quanto mais seu programa de solista faz a unanimidade, tanto mais seus espetáculos no Teatro Central são objeto de uma outra atenção e põem em causa a estética adotada. Isto não impede Obraztsov de aparecer, no pós‐guerra, como um mestre inconteste do boneco. Diretor artístico de uma trupe importante, ele se engaja num trabalho de tipo laboratorial, como o faz Baty, e tenta harmonizar os meios de expressão e o tema da peça a fim de obter um espetáculo o mais bem acabado possível.
Em seus primeiros tempos, o Teatro Central de Bonecos é itinerante. Estimulado pela carência de salas de teatro, Obraztsov inventa um dispositivo cênico original para cada uma de suas criações. Um princípio que poderia fazer sonhar a todos os diretores, e que ele conserva até 1937 quando o Teatro Central se instala na praça Maiakovski, com um teatro miniatura permanente e uma cena fixa que servem de base a todas as suas encenações, muito diferentes das do período itinerante. A seguir esse modesto teatro não lhe basta. Em 1970 o Estado lhe oferece um teatro moderno no qual ele 17 Serguei Obraztsov, Akter s Kukloi (O ator e o boneco). Gosudarstvennoe Izdatelstvo Iskusstvo, Moscou‐Leningrado, 1938, p. 78.
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próprio define as necessidades técnicas. Encontro aí as razões de seu sucesso e de seu fracasso. O teatro compreendia dois auditórios. Na sala para adultos ele constrói espaços específicos para a representação e coloca sob o chão e no teto espaços reservados para os alto‐falantes permitindo efeitos sonoros e uma estereofonia perfeita. Entretanto, Obraztsov utiliza muito pouco os equipamentos desse teatro: eles punham um freio à sua imaginação.
Nascimento de um ofício
Obraztsov atrai o público pela perfeição de seu jogo e pela qualidade de sua arte. Seja em Moscou ou em turnê, os espetáculos do Teatro Central de Bonecos são sempre teatrais. Ele põe em prática os fundamentos teóricos elaborados pelo próprio Obraztsov, que gosta de comentar e teorizar sua prática para transformá‐la em regras profissionais. Minha Profissão, publicado em 1980, descreve sua tomada de consciência de um ofício que ele tinha a sensação de estar criando. Suas idéias coincidem, aliás, com o interesse que toda a Europa manifesta então pela especificidade do teatro de bonecos. No 5º Congresso da UNIMA, que acontece em Bucareste em 1958, ele destacou a importância do teatro de bonecos e do lugar ocupado por ele entre os gêneros dramáticos: O homem sempre sentiu a necessidade de generalizar os fenômenos de sua vida de uma maneira particularmente expressiva. Assim, o teatro de bonecos deve existir ao lado da sátira e da epopéia romântica, ao lado de Swift e de Homero, de Rabelais e de Gogol. Ele é necessário aos homens enquanto arte do espetáculo única em seu gênero, insubstituível. Nenhum ator, com efeito, poderia jamais representar o homem em geral, pela simples razão de que ele próprio é um homem. Só o boneco pode fazê‐lo, pela simples razão de que ele não é um. Um boneco animado possui uma enorme força de ação, pelo próprio fato de que ele se anima. Mas essa ação perde sua força se o boneco, em lugar de representar, deve substituir o homem porque o acumulam de tarefas que o ator realiza em cena.18
Foi nesse critério que se baseou Obraztsov ao longo de sua carreira. Pode‐se acrescentar que seus bonecos têm um caráter de boneco e esse lado boneco agradava ao público. Entretanto, seu repertório permanece bastante limitado: admirável mestre da ilusão no campo do conto, excelente autor de sátiras, em particular, de espetáculo de variedades – Um Concerto Excepcional (1946) fez o mundo inteiro rir – ele insiste sobre o milagre da vida do boneco, sobre a necessidade de provocar o espanto no espectador ao ver esses bonecos de aparência inerte possuir vida própria e evocar os problemas da existência. Esses bonecos se movem com perfeição (um único boneco pode ser manipulado por vários animadores dissimulados), dialogam, mantêm um contato visual, olham‐se uns aos outros, depois ao público de quem esperam uma reação. Os bonecos de Obraztsov vivem, é incontestável, e o milagre da animação faz a felicidade das crianças como dos adultos. Mas eles permanecem no mundo da fábula animal, do conto de fadas, da fábula satírica, de uma visão caricatural da realidade cotidiana. As
18 Sergueï Obraztsov. Znaczenie teatru lalek i jego miejsce wsród innych rodzajów sztuki teatralnej. (A importâancia do teatro de bonecos e seu lugar entre os outros gêneros da arte dramática). Teatr Lalek, Varsóvia, 1958, p. 12
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relações entre personagens, os conflitos e as alianças são tratadas de tal maneira que evocam, segundo a crítica da época, os princípios de Stanislavski. Obraztsov reagia a isso com vigor: Se a fórmula de Stanislavski “eu numa situação complicada” é uma boa consigna para um ator, ela deve ser colocada na terceira pessoa pelo ator do teatro de bonecos: “ele numa situação complicada” (...) O que é que muda na psicologia do ator se em lugar da palavra “eu” se emprega a palavra ele? Muitas coisas. O ator torna‐se o diretor do papel. Ele vê seu herói. Ele o vê realmente. E ele não decide simplesmente a ação física do boneco, ele observa também os resultados de seu jogo.19
A idéia de que o ator é ao mesmo tempo intérprete e diretor do papel ilumina muitos aspectos e mistérios da profissão de bonequeiro. Entretanto, por mais justa que seja esta definição do papel do ator marionetista, os bonequeiros dos anos 60 consideram os espetáculos de Obraztsov como uma realização de seu puro desejo de imitar o mundo dos homens. De minha parte, acrescento tranqüilamente que essa necessária dispersão da atenção do bonequeiro sobre varias ações simultâneas marca toda a diferença entre o jogo do bonequeiro e o do ator. Obraztsov pensa que o bonequeiro é o próprio diretor de seu boneco, isto é, que ele cria seu papel enquanto observa o resultado de seu jogo. Trata‐se aí de um outro aspecto dessa relação. Eu constatei que a possibilidade de identificação de um bonequeiro com seu personagem restava muito limitada.
Uma nova profissão
Baty e Obraztsov trazem ao teatro de bonecos sua experiência e sua prática do Teatro. Com regularidade são encenadas obras literárias, dramáticas de preferência, nas quais o boneco torna‐se um sujeito cênico que prolonga a existência do personagem dramático. De outro lado, o profissionalismo prospera no teatro de bonecos e os bonequeiros, para alcançar o sucesso tão esperado, se limitam à aquisição de capacidade para interpretar o texto, organizar o espaço cênico em colaboração com a cenografia, a ensaiar e experimentar para permitir ao ator interpretar seu papel e aperfeiçoar sua atuação. Quaisquer que sejam as críticas que se possa formular com respeito aos erros artísticos de Baty e aos meandros estéticos do realismo socialista ao qual Obraztsov às vezes cede, não resta nenhuma dúvida que esses dois artistas trouxeram benefícios ao boneco com seu profissionalismo, inauguraram uma nova profissão e contribuíram enormemente para a metamorfose do teatro de bonecos.
As mudanças das políticas culturais de vários países após a Segunda Guerra Mundial trouxeram de volta ao debate o problema das tradições e das particularidades nacionais. Na Checoslováquia, as relações entre teoria e prática influíram na renovação do teatro de bonecos. Erik Kolar volta ao tema que opôs, nos anos 30, Nina Efimova e Obraztsov. Kolar segue o ponto de vista de Obraztsov e rejeita a noção do teatro de bonecos enquanto arte plástica. Ele defende a tese de que o boneco responde às leis da arte dramática: As convenções da arte dramática dizem respeito do mesmo modo ao teatro de
19 Serguei Obraztsov. Moïa profesia (Minha profissão) . Iskusstvo, Moscou, 1980, p.388.
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bonecos, em particular a regra do jogo cênico (físico e verbal), a importância do conflito, a necessidade de produzir um efeito emocional e de fazer passar uma mensagem intelectual, o desenvolvimento da ação, o caráter bem marcado dos personagens, expresso, sobretudo, pelas ações mas em geral explicado por uma linguagem específica. Do que foi dito, deduzo que o teatro de bonecos enquadra‐se no campo do teatro. E ainda que não considere o teatro de bonecos um ramo das artes plásticas, não posso negar que nele as artes plásticas jogam uma papel muito mais importante do que no teatro de atores. No teatro de bonecos, com efeito, o personagem dramático é em parte representado por uma voz humana e por um artefato plástico em movimento. Dado que no teatro de bonecos – como no teatro de atores ‐, as artes plásticas são um elemento auxiliar submisso às intenções do diretor, elas jogam o papel de uma arte utilitária. 20
Ator ou bonequeiro?
Este desejo de elevar a marionete na hierarquia das artes é retomado pela maioria dos artistas. De fato, a análise das estruturas do teatro de bonecos e a abordagem teórica do jogo encontram um novo campo de exploração. A concepção do teatro de bonecos enquanto teatro torna‐se uma novidade quase revolucionária. Assiste‐se a uma especialização profissional que dá nascimento a uma nova terminologia. Começa a falar‐se de diretores de bonecos e de atores bonequeiros que substituem os antigos bonequeiros‐manipuladores. A noção de ator‐bonequeiro ganha espaço nos teatros nacionais e principalmente na Europa do Leste, onde provoca reações. Obraztsov emprega o termo “bonequeiros”, mas sua obra se intitula O Ator e o Boneco. Logo após a guerra, os bonequeiros poloneses nomeiam seus teatros “teatros do boneco e do ator”, para surpresa de seus homólogos estrangeiros. Na Checoslováquia, o editorial do Ceskolovensky Loutkar de fevereiro de 1965 lança um debate teórico: “Ator com boneco ou manipulador?”. A maioria dos artistas‐bonequeiros são favoráveis à assimilação do bonequeiro ao ator. Mas como este ator deve jogar? Essa questão vai ficar para sempre sem resposta?
Nos anos 60, os adeptos desta assimilação se perguntam se o realismo stanislavskiano convém mesmo ao jogo do ator no teatro de bonecos. Não podemos utilizar o conjunto do sistema de Stanislavski no teatro de bonecos, mas isso não significa, por outro lado, que não possamos utilizar alguns de seus elementos, sobretudo os que têm relação com os estados de criação interior, ou seja, a técnica do jogo interno, sem esquecer a técnica do jogo externo. O que um bonequeiro deve, sobretudo, reter de Stanislavski, é seu postulado de fé ingênua. O bonequeiro deve permanecer uma criança, deve acreditar no maravilhoso e não perder seu talento para o jogo, seja para representar um dragão, um duende ou a lua. Só esta fé ingênua “na situação dada”, com a qual começa todo teatro, permite realizar‐se o milagre da encarnação. 21
20 Erik Kolar. Je loutkove divadlo formou vytyrvaného ci divadelniho umeni? (O teatro de bonecos é uma arte plástica ou uma arte teatral?) Ver: Frantisek Sokol, op. cit., p. 188.
21 Erik Kolar.System Stanislavskeho a loutkove divadlo (O sistema de Stanislavski e o teatro de bonecos). Ceskoslovensky Loutkar, 1965, no. 6,p. 123.
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O milagre da encarnação repousa sobre a inocência de um jogador que deve se defrontar com tarefas mais difíceis do que as de um ator. Os estudos de Kolar trazem preciosas observações sobre a especificidade do jogo do ator, em particular sobre a concentração, ou melhor, sobre a dispersão de sua atenção (atraída pelo boneco de seu parceiro, por seu próprio boneco, pela pessoa de seu parceiro, pelo público), que, enquanto ponto de partida do jogo, necessita uma nova técnica.
A oposição entre bonequeiro e ator não reveste unicamente um caráter terminológico, mas filosófico. O bonequeiro serve o boneco e a presença em cena do ator modifica sua relação. Se a noção de ator põe o acento sobre a pessoa que está “ativa“ em cena, o ator que manipula o boneco em cena, força responsável de seu movimento, não se coloca em dúvida a especificidade do boneco. A manipulação à vista só faz aumentar seu alcance e assim, à especificidade das atitudes virtuais do boneco, acrescenta‐se a do conjunto do sistema teatral.
Artista ou artesão?
Se no Oriente, os teatros nacionais podem introduzir uma especialização teatral, no Ocidente o bonequeiro permanece um artista artesão, que cria sozinho seu teatro: da confecção dos bonecos à realização em solista do espetáculo (ás vezes com um ou dois assistentes). Nesse espírito, Jan Bussell escreve em 1950: “O bonequeiro deve ser considerado ao mesmo tempo como um artista e como um artesão. O artesanato é tão importante para ele quanto para um pintor. Mas esta é apenas a primeira das exigências que se têm em relação a ele. Há bonequeiros que não se elevarão jamais acima do nível do artesão e outros que têm talentos artísticos e nenhum para o artesanato. Esses dois grupos só podem alcançar o sucesso se tomam consciência de seus limites e se engajam um pouco para compensar suas carências.22
Bussell se interessa igualmente por outros aspectos do teatro de bonecos, em particular a marionete: afastada do marionetista, é muito difícil para este transmitir‐lhe suas emoções, se é que isto é possível. Os apresentadores de bonecos de luva ou de bonecos de vara, sobre neste plano, foram sempre privilegiados. Então, se as tarefas de um ator bonequeiro se limitam à criação de um personagem cênico ao utilizar o boneco, o trabalho de um bonequeiro artesão não tem nada em comum com o “jogo do ator”, e Bussell completa: Os bonequeiros devem respeitar os seguintes princípios: o bonequeiro, em seu teatro, deve reinar sobre o boneco, a técnica e o público. Ele escolhe formas que lhe dão prazer. Ele exprime sua opinião sobre a humanidade, seja pela sublimação, seja pela caricatura. E o boneco deve ser um trampolim para a imaginação. O bonequeiro deve entreter a mistificação e seu trabalho lhe proporcionar alegria.23.
22 Jan Bussell, The Puppet and his Master (O boneco e seu Mestre). British Puppet Theatre, julho de 1950, p. 20.
23 Jan Buessel, Ibidem, p. 13
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Que caminho para o teatro?
Essa reflexão nos leva a uma outra, ligada ao uso da voz. Assunto amplo e complexo, no que respeita à tradição. As primeiras figuras articuladas são mudas como os primeiro bonecos. Se um “primeiro“ bonequeiro decide produzir uma voz de boneco, trata‐se sempre de uma voz artificial ou deformada pelo emprego de um instrumento chamado “pivetta”, “apito”, ”pratique” ou ʺswazzle”. Quando as autoridades civis e teatrais aceitam que o boneco fale com voz clara, o texto da peça é dito pelo chefe da trupe enquanto seus assistentes manipulam. Pode‐se ver aí uma razão para qualificar o bonequeiro de manipulador mais do que de ator? Inúmeros bonequeiros pensam, aliás, que no espírito da tradição, a voz e a fala são os atributos naturais do boneco e muitos o pensam ainda. A deformação da voz do boneco praticada há vários séculos exprime o desejo de encontrar uma forma que corresponda a sua natureza artificial. Na Inglaterra, a tradição sofre essas mesmas restrições, e Miles Lee trouxe‐as a público nas colunas de Puppet Master, em 1956: Embora a palavra seja um elemento vital para o personagem do boneco, não é o mais importante, pois muitos bonecos têm “emocionado“ seu público sem palavras. Para mim, só existem dois meios satisfatórios de utilizar a palavra no teatro de bonecos. O primeiro, e sem dúvida o mais difícil, é que o próprio manipulador fale e atue em nome de seu boneco. O segundo é um ator recitante que colabore com o manipulador da maneira a mais próxima possível24.
Uma prática igualmente difundida nos países do Leste. Nos anos 50, Margareta Niculescu introduz um novo meio técnico. No final do último ensaio, as vozes dos personagens são gravadas numa fita pelos atores do teatro de Bucareste a fim de enriquecer a cor e o timbre sonoro e romper com os limites das posições tomadas pelos bonequeiros no exercício de seu jogo. Bussell se interroga sobre essa prática. O animador deve falar em nome do boneco quando há um texto no espetáculo? Sem imaginar que o teatro de bonecos possa utilizar textos dramáticos, ele sublinha a importância e o prestígio do bonequeiro que sabe interpretá‐lo. Entre as tarefas do ator figura a arte de falar. O animador deve pois falar no lugar de seu boneco. Todo ator que se respeita ficaria terrivelmente incomodado se lhe dissessem para elaborar seu papel unicamente no plano visual enquanto um outro dissesse suas réplicas atrás da cortina, ou elas fossem gravadas 25.
A formação profissional
A formação dos bonequeiros vai modificar consideravelmente o teatro de bonecos. Ele se enriquece com o jogo do ator, a máscara, o acessório e o objeto. O boneco não está mais sozinho, ele descobre outros meios de expressão. O teatro de bonecos se liberta pouco a pouco de uma relação exclusiva e mimética entre o homem e
24 Miles Lee. Speech and the Puppet (A fala e o boneco) The Puppet Master, setembro de 1965, p. 18
25 Jan Bussell. O teatro de bonecos e seus laços com as outras disciplinas artísticas com uma menção especial para o cinema e a televisão, in: Conferência da UNIMA O teatro de bonecos e seus laços com as outras disciplinas artísticas. Varsóvia, 19‐24,junho de 1962, p.3.
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o boneco. Ele tem a oportunidade de aceder a uma linguagem teatral e poética. A especificidade do boneco não desaparece, no entanto. A tradição e os impulsos dados pelo teatro estão na origem de sua metamorfose. Além disso, ela se inscreve numa lógica em que a experiência coletiva vem substituir um percurso individual, de um ponto de vista diacrônico e sincrônico, para se desenvolver no mundo do teatro.
O teatro de bonecos se profissionaliza, reforça sua prática e desenvolve uma cultura teatral. Ele é devedor dos atores e diretores de arte dramática evocados neste capítulo, mais sensíveis que outros à especificidade do boneco. O funcionamento do trabalho dos bonequeiros tinha mudado pouco. Na primeira metade do século, um bom número dentre eles não tinha freqüentado a família do teatro nem tido a ocasião de se impregnar de seu potencial. Em certos casos, o bonequeiro prefere o papel de “performer”, em particular nos espetáculos de cabaré ou de variedades, ao de ator. As contribuições da arte dramática ao teatro de bonecos foram um verdadeiro choque para esses bonequeiros. Eles reivindicaram seu direito à improvisação, tanto no plano plástico como na concepção de seus espetáculos. Essa profissionalização os prepara para uma futura e inevitável confrontação com as outras artes do espetáculo.
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AS PEQUENAS FORMAS
A Segunda Guerra Mundial marca uma ruptura na evolução do teatro de bonecos. As relações profissionais entre bonequeiros dos diferentes países foram quase totalmente cortadas. No fim da guerra, o teatro provém das trincheiras, dos campos e barracas de soldados. Os bonequeiros conservaram a lembrança dos grandes mestres, de suas consagrações e do renascimento do boneco. Eles também têm na memória os princípios elaborados nos anos 30 e a necessidade de uma prática profissional definida pela teoria da especificidade. Mas de outro lado, os artistas plásticos que garantiram uma abertura aos novos meios, trabalhando à margem da profissão e sem levar em conta a poética normativa admitida por todos, não necessariamente eram vistos como referência.
Na França, Geza Blattner, diretor do Teatro do Arc‐en‐Ciel em Paris desde 1929, é um bom exemplo disso. Ele é o primeiro artista a transgredir voluntariamente a homogeneidade do teatro de bonecos. Apaixonado por esta arte, ele não adapta seu repertório, mas, ao contrário, inventa novas formas necessárias às suas criações. Ele começa por utilizar bonecos de luva e marionetes, que modifica ao máximo, depois imagina bonecos com chaves permitindo gestos nobres e hieráticos assim como algumas variantes do wayang indonésio. Ele elabora bonecos dobráveis que podem representar de frente e de perfil. Seus bonecos de luva têm cabeça de arame para que projetem sua sombra no fundo do cenário; o valor estético do material é posto a nu, e ele utiliza manequins imóveis e “bonecos máscaras” que têm a aparência de fantasmas. De uma inventividade prodigiosa, ele fabrica um personagem narrador, um boneco cuja cabeça é uma antena de rádio, as orelhas, receptores telefônicos, com um diamante no lugar do coração e rodas de bicicleta no lugar das pernas, como para evocar certas idéias expressionistas de George Grosz. A imaginação de Blattner e seu gosto pela experimentação fazem dele um artista à parte no mundo dos bonequeiros. Sua atividade faz um anúncio prematuro da grande metamorfose do teatro de bonecos dessa segunda metade do século? A ironia da sorte quis que sua influência fosse relativamente pouco importante, sua obra não atravessasse as fronteiras da França e a Segunda Guerra Mundial suspendeu temporariamente o interesse dado à inovação.
Ao fim da guerra segue‐se a cortina de ferro que só faz reforçar o isolamento de todo mundo. Os países do Oeste temem a doutrinação comunista, aqueles do Leste, a insensibilidade e a decadência da arte “capitalista”. A desconfiança reina até a morte de Stalin. Desde então, as mudanças políticas na União Soviética permitiram sair desse impasse. A continuidade da guerra fria não impedia os artistas dos blocos políticos inimigos de se encontrarem (e, entre eles, os bonequeiros). O futuro está nas mãos de homens e mulheres dispostos, prontos a deixar de lado a desconfiança dos políticos, e às vezes mesmo a dos artistas que se identificavam com as ideologias políticas. Harro Siegel, na Alemanha do Oeste (1957), Roger Pinon, na Bélgica (1958) e Margareta
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Niculescu, na Romênia (1958) tomaram a iniciativa de organizar encontros para contribuir com o desenvolvimento de uma colaboração internacional e criar uma atmosfera propícia à pesquisa de novas orientações. Em Liége, Pinon e a Comissão do Folclore decidiram fazer o inventário dos teatros tradicionais sobreviventes da tormenta da guerra. Em Brunswick, Siegel, escultor e marionetista realiza seu desejo de reunir as mais recentes inovações artísticas. Em Bucareste, Niculescu inaugura um grande festival que apresenta um extraordinário panorama das diferentes correntes artísticas da marionete mundial. Estes encontros, e em primeiro lugar, o Festival Mundial do Teatro de Bonecos de Bucareste (1958) termina com as hierarquias entre artistas bonequeiros. Skupa, Podrecca e Obraztsov vêm afirmar‐se como uma nova geração de artistas que traz ao teatro uma energia renovada e uma nova visão da arte, tanto dos espetáculos de cabaré e de pequenas formas quanto dos espetáculos dramáticos. Todos estes encontros alimentam reflexões e mudanças sobre a teoria da arte do boneco, suas relações com as outras artes assim como sobre os aspectos estéticos da linguagem teatral.
O impulso dos solistas
A Semana do Teatro de Bonecos de Brunswick em 1957 é dominada por pequenas formas e inúmeros solistas da marionete. Essas marionetes e seu potencial estético, formal e gestual vão literalmente centralizar a atenção dos profissionais e estimular inúmeros estudos. Marcel Marceau, no prefácio do livro de Tankred Dorst, mostra‐se muito impressionado por Baptista, marionete do jovem marionetista Michael Meschke. Ele evoca as semelhanças entre mímico e marionete, que, se exprimem, tanto um como outro, por meio do gesto. Marceau tem uma boa compreensão da técnica e da expressão dessas marionetes. Ele depreende nisso uma dimensão metafísica. O boneco de luva é dramático, a marionete é lírica. Seus movimentos, lentos e econômicos são carregados de significação. Criando assim sua própria poesia, o bonequeiro joga com os objetos como se fossem vivos, como instrumentos poéticos. Uma das grandes possibilidades desse jogo é exatamente a de poder romper os entraves da realidade26. Movimentos e gestos carregados de sentido são um postulado natural, lógico e importante numa prática profissional. Os amadores se contentam com um simples tremor ou uma sacudidela para sugerir vida. O desafio era encontrar o caminho para chegar a um movimento que tivesse sentido.
Ladislav Fialka, mimo, julga o teatro de bonecos através de suas experiências no cinema de bonecos e sua colaboração com o grande mestre do cinema de animação tcheco: Jiri Trnka. Fialka está convencido que o bonequeiro deve respeitar a natureza do boneco, sua qualidade de objeto e movê‐lo segundo suas capacidades materiais e técnicas. Ainda que imperfeito para descrever o comportamento exterior do homem, o boneco conserva uma chance de transmitir a verdade sobre suas experiências interiores. A seus olhos, a pantomima de bonecos é muito diferente dos espetáculos de mímica.
26 Tankred Dorst. Geheimnis der Marionette. Mit einen Vorwort von Marcel Marceau (O segredo do boneco. Prefácio de Marcel Marceau.) Hermann Rinn Verlag,Munique, 1957, p. 8‐9.
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Antes de mais nada, e em particular, porque a pantomima moderna fundamenta‐se numa tensão ao mesmo tempo física e psíquica, que o boneco não tem e não pode ter. O boneco serve‐se da forma do movimento, orienta‐se por sua conclusão e não por seu desenvolvimento. Mais do que a tensão do movimento, o homem vivo exprime o próprio movimento. Impossibilitado de fazer movimentos fluidos, o boneco só consegue ser convincente no início e no fim do seu movimento, que evolui de uma fase a outra, de uma pose a outra, de um gesto a outro. Para o boneco, o que acontece durante essa passagem não tem nenhuma importância 27.
A análise da representação feita por Fialka chega, de fato, a um grau extremo que foi bem pouco praticado pelos bonequeiros de seu tempo. Muitos, com efeito, só trabalharam de modo intuitivo.
Na Alemanha, Roser, jovem solista, aborda a pantomima, próxima do método proposto por Fialka. Ele apresenta em 1951 seu primeiro boneco, o clown Gustavo – seu alter ego. Escultor, fabricando bonecos para artistas conhecidos, ele se lança na criação após a guerra e apresenta: “Gustaf und sein Ensemble” em Brunswick. Um ano mais tarde, em Bucareste, ele é aclamado por um grande público de bonequeiros e críticos, saudado como um verdadeiro mestre.
Os solos são uma forma bastante difundida que se ligam, com toda evidência, aos espetáculos de variedades tão populares no século XIX. Eles foram retomados pelos grandes mestres da primeira metade do século XX como Podrecca e Skupa. Os bonecos de variedades também fazem parte dos espetáculos de trupes itinerantes de atores que, após ter apresentado a peça principal, divertem o público com desfiles de bonecos, vedetes do circo e da cena. Os solistas de nossa época conservam este princípio para expôr sua habilidade em imitar atletas, dançarinos e cantores, ou para representar curtos sainetes. Às vezes, retomam as marionetes da era vitoriana, como o esqueleto saindo de seu caixão e a ele voltando após se ter deslocado. Neste registro, Eric Bramail tornou‐se célebre graças a seu Arlequim que, por sua vez, também dirige um Arlequim menor; o sumo da técnica.
Roser se distingue de seus contemporâneos não apenas pela qualidade de sua interpretação e a renovação dos temas, mas também por sua concepção do boneco, num contexto social e artístico novo, ou seja, um boneco “figurativo”, retrato estilizado de um personagem humano ou de qualquer outro personagem (alegorias, personagens fantásticos, animais). Roser continua, ao menos em seu primeiro período, no universo da mímese estilizada, que inspira sua própria expressão artística. Seu espetáculo compreende diferentes seqüências, entre as quais estudos maravilhosos do movimento com a “Cegonha”, uma reflexão sentimental sobre a natureza do ser humano em “O Clown das Flores”; uma sátira das reações humanas estereotipadas com “O Conselheiro Secreto” que pronuncia um discurso estúpido, os encantos da vida de cabaré de “A Beleza da Noite” e, na seqüência, um comentário sobre as recentes experiências humanas da Segunda Guerra Mundial. No fim do espetáculo Gustaf desvenda seu caráter
27 Jindrich Halik, Navstevou u Ladislava Fisalky (Visitando Ladislava Fialka), Ceskoslovensky Loutkar, Praga,1964,no.5, p. 54.
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narcísico e generoso, e “Oma” comenta os últimos acontecimentos. Gustaf entra em cena de fraque, espera os aplausos, mia para agradar o público, incomoda a assistente: como grande vedete, ele desfila a cavalo ou representa os virtuosos ao piano. Esta brilhante demonstração de jogador de variedades forma toda sua personalidade. Mas o momento importante do espetáculo acontece quando Roser desvenda a natureza artificial de seu clown. Gustaf era efetivamente uma vedete, mas o mais engraçado eram suas relações com Roser. Certo, via‐se Roser puxar o fio para que Gustaf levantasse a mão e tocasse seu joelho, mas isso não impedia de parecer autônomo o gesto de Gustaf. Ele levantava os olhos para Roser tentando atrair sua atenção e indicando‐lhe com a outra mão uma pequena cadeira que era preciso aproximar do piano. Ina, a assistente de Roser, a aproxima. Gustaf senta‐se e vai se pôr a tocar quando um de seus fios se prende na guarda da cadeira, impedindo‐o de levantar o braço. Tal incidente às vezes gera catástrofes e todos os marionetistas o temem. Dessa vez, o perigo é conjurado por Ina que solta o fio. Gustaf se volta e lhe agradece por um movimento de cabeça. Os espectadores reagiram com risos e aplausos. Gustaf era ao mesmo tempo uma marionete ‐ cujo fio se tinha enganchado – e uma criatura viva ‐, ele agradecia a Ina por tê‐lo soltado28.
Obraztsov apodera‐se imediatamente dessa dicotomia existencial de Gustaf. Sua análise parece evidente hoje, mas nos anos 50, ela constituía um ponto forte do funcionamento estético. Alguns anos mais tarde ela me serviu para desenvolver a teoria da opalinização29 e nesta mesma perspectiva, Steve Tillis30 propõe sua teoria da dupla visão.
Respeitando em aparência as convenções do teatro de marionetes clássico, Roser lhe dá um novo fôlego. O teatro clássico tem por princípio que a marionete seja um sujeito e que só ela detém o privilégio de suscitar a emoção do público. Roser contesta este princípio sem renunciar a ele inteiramente. Ele lembra que o homem, o animador, permanece o sujeito e que a marionete só joga esse papel se seu criador exprimir essa vontade. Os espetáculos de Roser desmistificam a marionete enquanto sujeito e nos fazem imediatamente duvidar da verdade desta desmistificação. Este resultado é obtido por dois métodos: a opalinização, ou seja, mostrando as duas facetas da marionete, objeto e personagem (portanto sujeito) que passam alternativamente de uma vida à outra. De outro lado, a remistificação da vida da marionete, isto é, sugerir que a marionete tem uma vida mágica, que ela toma também consciência de sua vida de marionete (Gustaf pede a Roser para desenganchar seu fio). O próprio Roser está convencido da existência de um diálogo entre a marionete e seu animador. Cabe exclusivamente ao marionetista encontrar a linguagem de seu boneco. Ele deve escutá‐lo, senti‐lo, pressentir seus movimentos e ficar à escuta de seus gestos. Melhor dizendo, a iniciativa se encontra sempre nas mãos da marionete. Enquanto ator, eu não tenho direito a nenhum desejo. A
28 Serguei Obraztsov. Festiwal w Bukareszcie (O festival de Bucareste). Teatr Lalek, 1960, no. 10, p.38.
29 Henryk Jurkovski. Aspects of puppet theatre (Aspectos do teatro de bonecos).Puppet Theatre Trust, Londres, 1988, p. 41
30 Steve Tillis, Toward an aesthetics of the puppet Puppertry as a theatrical art. (Para uma estética do boneco. Boneco como uma arte teatral) Greenwood Press, New York, 1992, p. 64.
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marionete deve jogar comigo, cabe a ela me transmitir seus desígnios. São necessários anos, talvez uma dezena de anos, para descobrir esse segredo31
A remistificação proposta por Roser seduz muitos outros marionetistas, tal Milos Kirschner, diretor do Teatro de Spejbl e Hurvinek desde 1957, que retoma a idéia sob a forma de um diálogo entre marionetes e animadores. Numa criação de Philippe Genty, “Pierrot” tendo observado a presença de seus fios, arranca‐os todos um a um em sinal de revolta, até que a morte chegue. Vamos encontrar o mesmo tema em Henk Boerwinckel, que desenvolve amplamente a cena de Genty. Entretanto, a presença desse tema, diversa e abundantemente tratado, não prova que os marionetistas tenham tido gosto pelo imitação. Ela significa simplesmente que inúmeros artistas se voltaram para a problemática existencial do boneco. Em princípio, nesse jogo, o boneco é essencialmente figurativo e antropomorfo. Mesmo se Roser utiliza marionetes estilizadas ou às vezes atomizadas (A cabeça separada do belo ventre de uma dançarina), elas são claramente ícones de seres humanos. Ele se esforça em seguida para transformá‐los de acordo com certas regras da vanguarda para obter criaturas artificiais totalmente dependentes de seu mestre. Um encaminhamento que é o signo de uma nova consciência artística dos bonequeiros.
Signos e símbolos plásticos
Roser não é o único a se inspirar nas idéias da vanguarda. Na Suíça, Fred Schneckenburger associa o conceito de seu pequeno teatro a números de cabaré com intenções satíricas e marcadas por uma grande tolerância pela natureza humana. Schneckenburger não tem formação artística. Seu interesse pela arte do boneco se deve muito ao acaso. Em 1922, ele colabora com a organização de uma turné do Teatro Kamerniy de Moscou e faz amizade com Tairov e Sokolov. Vinte anos mais tarde, Schneckenburger inspira‐se no teatro excêntrico deste último para construir os personagens de seu Puppen‐Cabaré. Segundo seus amigos, Schneckenburger possui um olhar absoluto e sabia identificar as qualidades plásticas ao primeiro olhar. Freqüentador assíduo, nos anos 30, do cabaré Cornischon, em Zurique, para o qual escreve seus primeiros textos, ele dá continuidade a essa atividade após a guerra com esquetes para o cabaré Camelote e retomará alguns deles no seu. Sem esperar o fim da guerra, Schneckenburger lança‐se em suas primeiras criações, confeccionando seus bonecos na tradição da luva antes de passar às varas. Em 1947 faz suas primeiras improvisações em público, depois apresenta com bastante regularidade sessões do Fred Schnckenburger’s Puppen Cabaret, até sua morte, em 1966. Seus bonecos remetem bastante às tendências plásticas da vanguarda do entre guerras. Também são comparados com
31 Albrecht Roser. .(Gustaf und sein Ensenble.(Gustaf e seu Conjunto) Publicação do Jubileu). Bleicher Verlag, Gerlingen, 1992, p. 55.
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frequência à obra de Picasso, de Paul Klee e de Jean Miró. Eles não são imitações figurativas do homem, mas puras criações, com elementos abstratos e metafóricos. Fred Schneckenburger, escreve Hana Ribi, ultrapassou a imitação naturalista do homem ainda corrente no teatro de bonecos, para criar um mundo de figuras estranhas: ciclopes e monstros com cabeças arrebentadas, personagens se dividindo ou sem cabeça. Eram símbolos (diz Sinnbilder) cuja idéia e conteúdo eram fixados e codificados em sua construção. O público rapidamente compreendia seu sentido, reforçado pelo gesto, o movimento e o texto, e o acompanhava divertido. Assim, Schneckenburger cria sobre a cena do boneco uma nova poesia da metáfora visual.32
Seus temas alternam‐se entre questões existenciais e a ironia pacífica. Seu interesse se coloca sobretudo sobre o tipo humano do qual ele esboça retratos de grande fineza utilizando canções, esquetes e monólogos. Procurando escapar aos clichês habituais, ele propõe ao público observar com ele os novos fenômenos da vida. Os títulos de seus números são reveladores: “Um Anjo da Guarda Bem Educado”, “Com Hesitação”, “Uma Má Influência”, “Leiamos os Críticos”, “ O Rosto Ferido”, etc. O personagem de “Kasper” figura também no repertório com seu próprio número: “Leiamos a Crítica”, uma sátira da imprensa realizada com meios muito simples. À medida em que lê as imensas páginas de um jornal, o público o vê diminuir cada vez mais como sob o efeito das informações e dos comentários lidos. Quando ele atinge seu menor tamanho, ele se revolta, destrói os jornais com suas mãos (as de Schnekenburger) e retoma seu tamanho inicial. Esse contraste surrealista entre um boneco abstrato e um verdadeiro jornal é uma metáfora dinâmica, fundada entretanto sobre uma idéia muito simples. Com esse processo dramático, Schneckenburger entra no caminho metafórico de um teatro plástico.
O cabaré de Schneckenburger não tem a menor preocupação com o respeito às convenções do teatro de bonecos. O público o acolhe com entusiasmo e ele suscita uma certa inquietação entre os críticos. Alguns rejeitam pura e simplesmente sua poética. Inspirada nos anos 20, ela podia dar a impressão, em 1957 de ser a obra de um epígono. Jan Malik, porta‐voz do realismo socialista na Tchecoslováquia, teve uma reação muito negativa a seu respeito. Ele percebe ali um beco sem saída e um nihilismo estético, resultado da “fuga da realidade que caracteriza a vanguarda”. Ele recusa o nome de bonecos para preferir aquele de símbolos esculpidos em qualquer tipo de material. As esquetes também não lhe agradaram, marcadas pelo ceticismo, ironia, desilusão e um vago cinismo lírico. O quadro intitulado “O Indeciso”, retrato de Schneckenburger, intelectual indeciso, sugere‐lhe uma aproximação política com Trotski33. Malik não escapa dos clichês do realismo ideológico. Da mesma geração que Schneckenburger, ele é incapaz de efetuar uma aproximação entre a arte deste e as inquietações da sociedade do pós‐guerra. Comprometido em excesso com o conceito de uma especificidade teatral,
32 Albrecht Roser. Gustaf und sein Ensenble. Jubileumsausgabe (Gustaf e seu conjunto. Publicação do Jubileu) Bleicher Verlag, Gerlingen,1992, p.55.
33 Jan Malik. I Festivalovy Tyden EvropskehoLoutkrstvi y Braunscheigu 1957 (A primeira semana do festival de bonecos europeu) Ceskolovensky Loutkar, 1957, p. 135
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ele não pode aderir a essa louca abstração. Primeiro bonequeiro a se inspirar com sucesso na arte abstrata, ele se deixa seduzir por esta visão plástica e sacrifica por ela os valores do teatro de bonecos fundados em motivos psicológicos. Seus bonecos, e desse ponto de vista Malik tem razão, não tem nada a fazer com a verossimilhança psicológica, eles vivem sua vida de criação plástica. Signos e símbolos, eles abrem caminho para o boneco moderno.
A abstração pura
As experiências da Bauhaus também vão inspirar, mesmo que tardiamente, os primeiros ensaios de teatro mecânico. Harry Kramer apresenta um espetáculo intitulado 13 Cenas Pesquisa com Bonecos (13 Szenen Versuch mit marionetten). O programa distribuído aos espectadores anuncia “treze cenas ligadas à lógica do sonho, numa sucessão de relações de tensão horizontais idênticas: cortes dos refluxos, transversais do paralelo da ação. Rodas, piões, barras: mecanismos, sem sono, sem contato”. A maioria das cenas, de fato, são estudos de figuras móveis cuja construção é ostensivamente aparente, uma diferente da outra. A arte de Kramer rompe com a tradição do teatro de bonecos e se inspira na escultura e nos móbiles. Atraído pelo movimento e pelas possibilidades formais desses bonecos – compostos de um torso provido de pés, de uma mão que se estende muito a sua frente, e de uma grande cabeça desproporcional suspensa acima de uma construção – esses bonecos dão a impressão de que o personagem se desagrega em três pedaços e anunciam, talvez inconscientemente, a atomização do personagem.
A influência de Kramer foi modesta, porque o teatro de bonecos da segunda metade do século XX responde cada vez com mais freqüência às exigências da arte dramática e se libera do rigor das artes plásticas. Algumas de suas idéias, entretanto, vão ser encontradas nas obras de outras companhias, como por exemplo em certos espetáculos do teatro Die Klappe, de Göttingen, cuja longevidade foi superior à das experiências de Kramer. Seu fundador, Alfred Köhler, enriquecido com a experiência da Bauhaus e a teoria de Kleist, cria seu primeiro espetáculo em 1957. Descobrindo esse espetáculo em Varsóvia em 1962, Krystyna Mazur nota: Die Klappe demonstra pelo truque do boneco uma coisa que jamais um homem de carne e osso mostraria. Breve estudos nos fazem assistir ao nascimento do movimento e do gesto, mas o boneco não é um personagem, é uma abstração, um esquema do esqueleto e do aparelho muscular do homem. Ele anima um esquema. Mas esses jovens alemães são extremamente coerentes. A imagem plástica não está apenas em conformidade com sua função, ela é também sustentada pelo som. Nas Poções, nós escutamos o esquema fônico das entonações e das modulações da voz, que é também uma abstração sui generis e, sem dúvida, uma síntese muito elaborada34
Esse espetáculo está em ruptura com o teatro de bonecos desse período: nenhuma história, nenhum boneco figurativo nem semelhanças com seres humanos. Apenas um conjunto de signos ideográficos a associar‐se como pequenas peças de tecido para representar uma multidão face a um demagogo ou diante de uma caserna.
34 Krystyna Mazur Nihil novi sub sole. Teatr Lalek, 1962, no. 21, p. 16‐17.
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O esquema do grupo humano torna‐se aqui uma imagem plástica sintética. Die Klappe35 foi uma trupe tão original quanto importante. Ela levou o teatro de bonecos clássico à abstração sublimada que, em sua última concepção, era uma arte de puro movimento. Este curioso resultado, como aliás, o conceito de Sokolov, não gerou imitação nem qualquer outra pesquisa paralela. Seria um beco sem saída? O teatro requereria absolutamente a presença do homem ou pelo menos formas humanizadas? Ou ainda não estamos suficientemente maduros para aceder ao prazer da comunicação abstrata? A guisa de resposta, constato simplesmente que a maioria dos bonequeiros ficaram fascinados pelo boneco dramático. Restando no universo do boneco figurativo, o bonequeiro dificilmente escapa a sua magia. Os românticos foram sem dúvida os mais sensíveis a esse traço de humanidade na criação.
A poética da forma
Na França, Yves Joly é quem mais transgride a poética do teatro de bonecos clássico. Ele é desses bonequeiros que se apresentam nos cabarés parisienses. Seu público não é particularmente exigente, mas logo se cansa. Os artistas estão, pois, permanentemente em busca de novidades. Joly de início utiliza bonecos clássicos, de forma humana, conforme o habitual. Em 1949, ele muda de registro. Ombrelles et Parapluies., Les Mains Seules, Bristol revolucionam tanto a visão do boneco quanto a do teatro de bonecos. Ele introduz em cena mãos, objetos, figuras planas de papelão para representar curtas historietas, em geral banais. A qualidade de seu espetáculo não repousa na intriga, mas na maneira metafórica de contar a história. Seu programa encoraja inúmeros bonequeiros e artistas de cabaré.
Em seus espetáculos, ele declina as leis do teatro moderno. Diante do público, cria personagens em cena, seres artificiais que dota de traços humanos (Os Apaches), introduzindo‐os na ação para terminar por destruí‐los e devolvê‐los a seu estado inicial, o de matéria. Este jogo com materiais foi sua primeira e nova preocupação. Num número: Tragédia de Papel, figuras planas são recortadas em papel bristol. Todas representam um personagem tradicional: o amante, o personagem positivo ou o personagem de caráter sombrio. Reencontramos as histórias clássicas do cabaré, mas traduzidas por uma matéria. No momento mais dramático, o personagem positivo é cortado em pedaços com tesouras de verdade e queimado. A comparação do destino da cartolina com o do homem faz nascer uma sensação trágica. Trata‐se de uma metáfora, de um oxímoro, de um efeito de opalinização devido à presença alternativa de um personagem fictício sobre dois planos existenciais (aqui, o universo do homem, a historieta, e o universo da matéria, as operações sobre a cartolina). O artista rejeita a mímese e introduz seu universo (as figuras de papel confrontadas às destruidoras ferramentas de verdade) mas também sua poética com um efeito de opalização (alternância entre o caráter e a materialidade da figura).
35 Sobre o desenvolvimento da companhia Die Klappe, ver: Harro Siegel, Aus Göttingen: Die wieder aufgetauchte Klappe (Die Klappe surgindo de novo). In: Puppensspiel information, Verband Deutsch Puppentheater, 1980, no. 43, p. 45‐46.
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A mão enquanto material, a mão do homem enquanto pars pro toto, a parte pelo todo são figuras retóricas conhecidas há muito tempo, e já utilizadas por Obraztsov. Joly as ultrapassa numa clássica história de amor. Ao substituir os personagens cênicos por mãos vestidas de várias luvas (vestido, saiote, etc), provoca uma inversão dos papéis que as torna muito expressivas. Ele reforça assim o efeito cômico, em razão da “espessura única” da luva. Imagine uma jovem – uma mão – efetuar um strip‐tease tirando sucessivamente as “luvas” que compõem seu traje! Joly utiliza igualmente a técnica do “teatro noir” para atingir, num quadro de animais marinhos feitos de mãos, um grau máximo de ilusão. A redescoberta da matéria (as mãos) provoca a emoção estética pelo efeito de estranheza. O efeito de opalinização é, pois, um elemento importante no espetáculo.
Após a mão, ele dá um passo em direção ao teatro de objetos. Os guarda‐chuvas, pretos, cinzas, vermelhos, quadrados, multicores, de tecido ou de papel, imitando personagens ou constituindo a estrutura de construções mais complexas (uma carroça de casamento) entram em cena. Aí também, a intriga é banal. Um jovem casal se reencontra. Vivendo felizes, entram num cabaré e assistem a um can‐can francês de guarda‐chuvas. Estão permanentemente sendo seguidos por dois inspetores cinzas, comandados, ao que parece, pela família da jovem. Mais do que proteger a virtude da jovem, os dois homens cuidam para que a aventura termine, como devido, no cartório civil. A ação se conclui com a imagem do cortejo de casamento e sua carroça de guarda‐chuvas.
O uso de objetos como alegorias do homem tem inúmeros modelos na literatura, no conto em particular. No teatro de bonecos, Joly foi o primeiro a romper o tabu da fidelidade icônica utilizando objetos. A intervenção do artista confere ao objeto – um guarda‐chuva, por exemplo, uma nova mobilidade encarregada de significar um acontecimento humano. O valor icônico do objeto desaparece diante da ação poética. Encontramo‐nos, em definitivo, no campo da metáfora e do oxímoro. O espectador não está consciente da manipulação da retórica teatral e esses guarda‐chuvas o divertem. Esse estudo aprofundado da linguagem dramática caracterizando a arte poética de Joly, vai terminar por surpreender a ele próprio. Geralmente a criação tem um caráter espontâneo e o artista nem sempre está consciente da significação de suas novas inspirações. Ao ser interrogado sobre sua experiência, nos anos 60, ele se furta, falando de sua espontaneidade: Eu devo me inclinar diante dos fatos evidentes: não tenho nada a dizer, não tenho nenhuma opinião, e em minha experiência não há nada de laborioso, tenho pavor de qualquer idéia de dificuldade, a única coisa que faço com prazer é amar. Se minhas mãos conseguem alguma coisa, não é porque decidi fazer tal ou qual coisa, seguindo tal ou qual princípio, tal ou qual saber, para chegar a algum resultado, faço o que me oferece diretamente prazer, porque em mim uma força leva‐me a tal gesto ou a tal descoberta, como talvez a força da primavera leva as plantas a saíram da terra para a luz, para a alegria de existir. Crio coisas para celebrar a alegria se estou possuído por ela. Se fosse dançarino, eu dançaria esta alegria; se fosse pintor, transformaria esta alegria em dança de cores, e como não sou nem um nem outro, e ao
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mesmo tempo tenho uma pequena parte de cada um deles, descubro assim uma nova forma e, com ela, seu movimento.36
Esta visão do artista tomado pela inspiração e concretizando sua felicidade sem qualquer dificuldade é muito agradável. Mas por outro lado, ela reflete o imenso papel do acaso no desenvolvimento da arte e talvez – coisa surpreendente – da metamorfose do teatro de bonecos do pós‐guerra. Essa confissão de Joly não é perturbadora em nossa reflexão sobre as transformações do boneco?
Joly não foi o único, na França, a tomar este caminho. Em 1943, George Lafaye funda sua companhia, O Teatro do Capricórnio, utilizando bonecos clássicos e monta vários espetáculos de Vieilles Chansons Françaises (Velhas Canções Francesas). Lafaye, influenciado pelas teorias de Craig e a tradição do boneco francês, não se definia como bonequeiro, mas como um artista que, por analogia a Blattner, escolhe passo a passo seus meios de expressão. Nos anos 50 ele cria uma série de números de cabaré nos quais utiliza formas geométricas abstratas e objetos, expõe o material, constrói‐o de modo que não reste nenhuma dúvida sobre sua natureza de criaturas fictícias. Elementos abstratos tomam forma humana ou uma grande cartola representa uma cena de amor com um boá de plumas (John & Marscha, 1952). Figuras geométricas feitas com jornais aparecem de repente aos espectadores. Em cena, um gentleman (um boneco), lê seu jornal cujas páginas se transformam numa grande galinha de papel. Trata‐se de uma das primeiras experiências no campo da abstração animada. No número Strip‐Tease uma mulher é representada apenas por um espartilho, luvas, um colar de pérolas e três pares de pernas femininas que se cruzam uma sobre a outra verticalmente. Esse tipo de ação é possível graças à técnica do “teatro negro” que Lafaye utiliza anos antes da Lanterna Mágica de Praga. É inegável que Lafaye foi um precursor da metamorfose que se opera no teatro de bonecos. Mas ele não se ateve muito tempo às formas abstratas e ao teatro de objetos. Aparentemente consciente de romper os limites desse teatro destacando‐se entre os bonequeiros dos anos 60, Lafaye tem concepções artísticas muito à frente da maioria de seus contemporâneos. Lafaye, assim como Joly, inventou seus próprios meios de expressão, em ruptura com os bonequeiros ainda ligados às técnicas clássicas.
Entre os solistas, do teatro ou do cabaré, os marionetistas são os mais próximos de uma teoria da especificidade do boneco. Seus solos estão mais próximos de uma demonstração técnica que de uma apresentação tradicional. Desse ponto de vista, o boneco evoca a arte do circo. O solista é, em seu gênero, um prestidigitador que busca o efeito pela técnica. Se introduz uma história em seu espetáculo, é uma historieta ou uma esquete muito simples. Essa demonstração técnica pode ser comparada ao uso de técnicas narrativas ou auto‐temáticas (esse termo se inspira no espetáculo que põe em cena seu próprio processo de criação) da arte dramática? Até os anos 50, os marionetistas e os bonequeiros de cabaré de todo tipo tomam iniciativas então impensáveis no teatro de bonecos clássico. Tudo leva a crer que certas inovações foram ditadas por um boneco não teatral e não dramático. Deve‐se concluir que a fórmula do 36 Yves Joly. Voilà... In: Puppentheater der Welt Zeitgenössisches Puppenspiel in Wort und Spiel, Henschelverlag, Berlim, 1965, p. 47.
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cabaré foi mais fecunda no plano da criação que a encenação de textos dramáticos? A evolução do teatro de bonecos, na França, o confirma. Essa generalização seria apressada, porque nos países sem tradição de cabaré novas idéias também vão surgir.
A linguagem teatral
A oposição entre pequenas formas e espetáculos dramáticos não basta para explicar a transformação do boneco. Se os números de variedade perduram, dá‐se o mesmo, há séculos, com os espetáculos do repertório dramático; dos contos populares e literários para crianças aos textos contemporâneos. O pós‐guerra dá verdadeiramente uma outra dimensão ao boneco: a estrutura de um teatro regular, um gênero teatral com ambições artísticas e novas perspectivas quanto a sua posição no seio das artes do espetáculo. Um entusiasmo provocado de um lado por Craig e de outro lado por uma reação psíquica face aos horrores da guerra. O desejo de recriar um mundo novo incendeia o teatro de bonecos e desse ponto de vista, a política cultural dos países do leste foi um ganho nesta reconquista com a criação de teatros fixos dotados de infra‐estrutura técnica, de recursos humanos e de uma base no desenvolvimento da formação profissional. Uma efervescência e um dinamismo que permitiram realizar inúmeros sonhos graças a estas estruturas institucionais, equipes permanentes e a criação de um repertório. Vai ser preciso esperar o período de liberalização do regime comunista para que esses teatros de marionetes criem e desenvolvam quase livremente sua arte, sem incertezas sobre seu futuro.
O primeiro grande festival de marionetes aconteceu nesta atmosfera, em Bucareste, em 1958. Todos os grandes mestres e inúmeros jovens artistas tiveram a ocasião de se encontrar pela primeira vez diante de um público internacional. O festival revelou as tendências novas e seus novos mestres. Ele confirma o talento de Joly e de Roser. Mas as revelações desse festival foram: o Teatro Lalka de Varsóvia e o Teatro Tandarica de Bucareste. Seus espetáculos afirmaram valores inovadores da arte dramática do boneco. Todos os dois são teatros nacionais subvencionados, bem equipados e organizados sobre o modelo dos teatros de arte dramática com seu corpo de trabalho: uma trupe permanente composta de encenadores, cenógrafos, compositores e de atores‐manipuladores.
O Teatro Lalka: Jan Vilkowski
Jan Wilkowski, encenador e ator, dirige na Polônia o Teatro Lalka desde 1950. Seus primeiros espetáculos são de estilo realista, temperado pela presença de elementos burlescos e simbólicos. Os Contratempos de Guignol (Guignol w Tarapatach), de Leon Moszczynski e de Jan Wilkowski, com cenografia de Adam Kilian (1956) foi apresentado em Bucareste. Trata‐se da adaptação de uma antiga peça de Guignol, Le Déménagement (A Mudança), de Laurent Mourguet. A trama da peça é a história de um bonequeiro – Jean – que busca um lugar para fazer uma apresentação enquanto é perseguido por um agente de polícia mascarado. Le Déménagement é interpretado por bonecos de luva que são interrompidos pelos comentários do bonequeiro, no espírito do teatro brechtiano onde um personagem corta a ação com uma canção e convida o
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público a refletir sobre os acontecimentos apresentados. Quando canta, Jean fica no papel do bonequeiro e ilustra suas canções com bonecos e objetos. Depois vão aparecer sucessivamente a Fome e a Guerra que aterrorizam uma armada de guignols, um desfile de sapatos (nesta versão da peça, Guignol é o sapateiro) com as cabeças dos heróis do Déménagement, um enorme pé que fecha a marcha e dá um grande pontapé no sapato de Canezou, O proprietário. Além destas sinédoques, o espetáculo congrega soluções metafóricas e plásticas novas: a prisão de Guignol é uma gaiola, pequenas nuvens brancas de fumaça saem da corbelha com uma inscrição cômica “Boum!” para significar um canhoneio. Alguns bonecos evoluem segundo sua forma plástica (uma esfera para Canezou, grande e fina, o Comissário tem um imenso nariz que o desequilibra e o faz cair como uma árvore). No final Jean canta e parafraseia um slogan operário: “Para lutar contra o mal, pessoas honestas, uni‐vos!”. Esta citação parece ser mais universal que a original.
Esta peça é um testemunho da primeira pesquisa de um teatro de diretor associando o postulado de Craig sobre o teatro teatral e a fórmula brechtiana do teatro épico engajado. O teatro é pura criação e deve ser apresentado assim ao público – reivindicava Craig. Wilkowski envereda por este caminho ao escolher como cena de exposição um conflito entre dois atores – o agente de polícia e o bonequeiro. Wilkowski comenta assim o destino humano nos entreatos e o princípio do teatro no teatro. A representação de uma peça tradicional do repertório torna‐se um motivo teatral em si mesmo. Ela augura a passagem do mundo homogêneo dos atores ao mundo heterogêneo do teatro de meios de expressão variados. Algum tempo depois, os bonequeiros farão o mesmo, mas a partir do mundo homogêneo do boneco para introduzir atores em seus espetáculos.
Humanista e engajado, Wilkowski afirma também suas convicções nos espetáculos para crianças. O que afinal queremos dizer à criança? A beleza da terra, a crueldade do mundo, a bondade do homem e seu egoísmo, o horror da guerra, a competição permanente entre o bem e o mal, em histórias inventadas e também em torno dela e nela. E outra coisa ainda. A beleza da arte, seus encantos e seus mistérios37.
Suas observações sobre a natureza e a existência do homem não o fizeram esquecer dos problemas técnicos da criação. Como bom número de artistas, Wilkowski está em busca de uma linguagem teatral moderna para o teatro de bonecos. O teatro de bonecos não pode, nem deve imitar o teatro de atores, ele não tem o direito. O sentido de nossa arte não repousa sobre uma imitação do homem pelo boneco, mesmo se este boneco tem a forma de um homem. O boneco é uma forma plástica e sua vida é a vida desta forma. A vida das cores, das formas, não pode ser fundada sobre os mesmos princípios dramatúrgicos que o drama do “teatro vivo”. Então, sobre quais princípios? Se apenas soubéssemos! O teatro de bonecos se encontra num período semelhante ao que conheceu a teoria da pintura há cinquenta anos. Um período
37 Jan Wilkowski. Tylko dla doroslych – o teatrze dla dzieci (Reservado aos adultos – do teatro para crianças). In: Program jubileuszowy: Panstwowy Teatr Lalka 1944‐1955, Varsóvia, 1959, p. 3.
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onde ela definia suas funções, suas tarefas essenciais, sua substância. Liberar‐nos da imitação passiva do “teatro vivo” é para nós uma necessidade vital.38
Estas interrogações o impulsionam a seguir a via do “teatro teatral” e do “teatro da metáfora”, ou seja, representar de maneira a que o espectador tome consciência de que a ação cênica é o resultado de uma criação artística e que ela deve ser compreendida como um diálogo com o artista, não como um paliativo da realidade.
Para Wilkowski, mostrar as fontes de sua arte virou lei. No Piano Encantado (Zaczarowany Fortepian, 1957), o instrumento que um verdadeiro pianista toca produz sons que vão animar os bonequeiros e dar‐lhes vida. Essa animação sonora fascina Erik Kolar: (...) regadores substituíam a chuva, o sol era um balão cor de rosa, etc. O que é interessante, é que as crianças compreendem perfeitamente a linguagem poética da cena. O espetáculo era uma maravilhosa lição de poesia39.
De um lado, Wilkowski sublinha o caráter artificial e teatral do espetáculo, de outro ele desenvolve metáforas cênicas. Inspirado no folclore, Zwyrtala o Músico ou Como um Montanhês Sobe ao Céu (O Zwyrtale Muzykancie Czyli Jak Góral Dostal sie do Nieba, 1958, adaptação de textos populares: Kazimierz Przerwa Tetmajer), esse espetáculo começa com uma orquestra de montanheses colocados diante de um imenso quadro representando Zwyrtala pronto a dar o último suspiro ao som da música. Zwyrtala sobe nos ares e canta árias populares. Cada canção é ilustrada por seus heróis que aparecem nos quadros à imagem dessas pinturas em vidro feitas pelos montanheses. Zwyrtala canta e os personagens saem de seus quadros para ilustrar suas palavras. A pedido dos anjos, ele canta a história de Janosik que queria tornar todos os homens iguais. A miséria abateu‐se sobre o povo oprimido pelos ricos. Os pobres se reúnem e vão pedir ajuda a Janosik. Ele chama seus companheiros, bandidos como ele, e partem para o castelo de um conde húngaro. Janosik ama Weronika que o ama. O Conde Húngaro, sabendo que não conseguirá vencer Janosik num combate direto, recorre a um ardil. Janosik é preso e executado. Os anjos ficam tristes. Enfim São Pedro intervêm. As canções não podem continuar porque contrárias à ordem celeste. Zwyrtala deixa o céu para ir se instalar numa estrela. Mas Zwyrtala quer voltar para a terra, ao seu vale dos Tatras, e diz em seu dialeto: “Não quero outro céu. Meu céu está lá onde está meu coraçãoʺ.
A história de Janosik é uma citação com a qual o autor se identifica. A pintura em vidro e os elementos folclóricos, fontes de inspiração popular, participam da elaboração de uma linguagem poética: o vidro quebrado é sinônimo de uma morte simbólica, um quadro no cortejo fúnebre tem um caráter metafórico. Zwyrtala o Músico é a obra mais importante de Wilkowski. Ela faz descobrir o folclore montanhês sob uma forma muito teatral dando ao boneco sua presença plástica. Ela é a prova de que se esboça uma nova corrente, como o observa o crítico italiano Vito Pandolfi: Somos incapazes de definir com
38 Ibidem.
39 Panstwowy Teatr Lalka 1944‐1955. Programa jubileuszowy (O Teatro Nacional Lakla.. Programa do jubileu), Varsóvia, 1959, p. 12.
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precisão por que concurso de circunstâncias se deve este fato evidente (talvez uma reação psicológica irrepreensível): as loucuras de Jdanov e a intransigência de Stalin definitivamente desapareceram e obras artísticas marcadas de sutileza e de romantismo começam a nos chegar dos países do Leste (...) Zwyrtala o Músico através do folclore liga‐se com Chagal e Klee, com a poesia de Pasternak e a encenação de Vakhtangov. Num certo sentido, é um retorno aos procedimentos artísticos de vanguarda que floresceram na União Soviética nos anos que se seguiram à revolução. Este movimento progressista, bruscamente interrompido, recomeça a dar frutos e o espetáculo do Teatro Lalka (que não deve ser subestimado por tratar‐se de bonecos) é um exemplo claro disto.40
Essa crítica mostra a importância da estética de Wilkowski e de seu cenógrafo Adam Kilian que transgrediram as injunções do regime e obedeceram a seu instinto para criar a partir do universo dos valores populares. Eles não foram os únicos a se inspirar no folclore. Margareta Niculescu, Kato Szoni e Michael Meschke fizeram o mesmo. Eles se inspiraram tanto nas representações visuais quanto nas estruturas narrativas e formais elaboradas ao longo dos séculos.
Cada espetáculo é para Wilkowski a ocasião de renovar seus meios de expressão. Le Petit Tigre Pietrek (Tygrys Pietrek, 1962) é um conto alegórico para crianças cujo tema é a coragem. Os bonecos aparecem sobre a empanada num plano de três dimensões – enquanto que o quadro geral da ação resta plano e forma uma vasta perspectiva. Tomando de empréstimo certos elementos da técnica cinematográfica, o diretor pode criar efeitos, como um zoom sobre o biombo graças à intervenção de grandes personagens mascarados que se dirigem ao público. Para Nós e Nossos Anões, (My i nasze krasnoludki, 1967), Wilkowski utiliza a convenção do ensaio teatral. Ele faz o papel do diretor e seus bonequeiros o papel dos atores do Teatro Lalka ensaiando a peça Marysia a Pequena Òrfã e os Anões (Sierotka Marysia i Krasnoludki). Foi a oportunidade de mostrar diferentes convenções entre boneco e teatro, com a interrupção do ensaio pelo aparecimento de verdadeiros anões na cena. Os atores se apossam dessas criaturas imaginárias e tentam convencê‐las a colaborar com eles. Ao mostrar anões de verdade, Wilkowski volta à mitificação da vida do boneco. Teatralização e ilusão constituem o programa de seu teatro; o desejo de jogar continuamente com realidade e ficção, verdade e ilusão. Renunciar a um ou a outro, seria negar a verdade do teatro.
O Teatro Tandarica: Margareta Niculescu
O Teatro Tandarica, na Romênia, dirigido desde 1949 por Margareta Niculescu, diretora, afirma outros valores. Humor com Fios (Umor pe Sfori, 1954) renova inicialmente o espetáculo de variedade. Composto de vários números, esse espetáculo formiga de invenções onde a matéria é utilizada num sentido puramente metafórico. Para os três bonecos de marinheiro que dançam o Rock and Roll, em plena voga nesta época, são utilizadas molas no lugar de pernas para parodiar o movimento desses dançarinos frenéticos. No quadro do “Barômetro”, duas figuras saem de sua casinha para dar
40 Vito Pandolfi. |Lalki polskie (Os bonecos poloneses). Teatr Lalek, 1961, no.17‐18, p. 44.
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informações meteorológicas. Uma pane do mecanismo fornece‐lhes a ocasião para se reencontrarem. O concerto do instrumento os separa de novo e provoca melancolia e poesia. Essa nova inclusão de materiais como metáforas no espetáculo de variedades, inaugura uma renovação do gênero.
Em 1958, Niculescu põe em cena A Mão de Cinco Dedos (Mina cu Cinci Degete, cenários: Stefan Hablinski, bonecos: Ioana Constantinescu). Inédito no teatro de bonecos, o pastiche da história policial faz aqui sua entrada em cena. Ou quem sabe, seria o desejo de evocar a natureza mágica e a aura misteriosa do boneco sob a forma de uma autoderrisão teatral?
Já na entrada do teatro, os espectadores se encontram em presença de indícios anunciando os acontecimentos: na calçada, marcas de sangue e de passos, que vão reencontrar no hall, depois na sala deserta e mergulhada na obscuridade. Por todo lado a inscrição “Mister X”. A cortina improvisada se ergue e aparece aos olhos do público, um camarote de ópera no qual está sentado um casal. A mulher porta um colar de diamantes. Ouve‐se um tiro. A luz se apaga. Quando volta, os espectadores percebem uma enorme faca em que estão enfiadas três silhuetas. A mulher leva a mão a seu pescoço, seu colar desapareceu. Mudança de cenário. A cena representa uma rua. Sob a luz de um poste dois personagens se encontram. Sombra imensa de uma mão armada de uma faca. Um tiro. Um cadáver cai na rua. A lua aparece por trás de uma nuvem e chora. Ouve‐se uma marcha fúnebre longínqua. Uma alma sobe ao céu, duas asas a empurram no caminho. E a história segue assim. A linguagem é muito lacônica. Após os crimes, procuremos o criminoso! Aparece o herói principal, o Detetive – no estilo de Sherlock Holmes com seu fiel companheiro, um cachorro que imita sempre seu mestre. Nosso herói tem nobres motivações e desta vez, ele quer ajudar a Filha do caixa atacado. Ele encontra rapidamente uma pista e começa uma corrida‐perseguição de carro. Ele chega à beira de um barranco com a Filha do caixa, o carro hesita: ele faz uma ponte com seu corpo para permitir que a Filha do caixa alcance a outra margem. Num bar, uma briga explode entre a gang de Mister X e as forças da ordem. Mesas, cadeiras, garrafas, tudo voa no ar. As cabeças se deslocam, esta briga grotesca é um balé bem organizado. Desde o começo, os espectadores vivem no mundo do impossível. Policiais entram no banco, de motocicleta. A Filha do caixa chora. A natureza se mostra solidária: chuva, relâmpagos, sons de trovões. Uma música inquietante. Mister X atira na lua, que se parte em mil pedaços.
A Mão foi um sucesso tanto pelo tema paródico, pelo modo de desmistificar a matéria artificial com que o boneco é construído quanto pelo emprego de uma linguagem radicalmente nova. Niculescu faz apelo às estruturas do cinema e rompe com a exposição textual da ação do drama clássico. Alguns episódios dinâmicos preliminares introduzem o tema da investigação e da perseguição, na qual ela conserva o laconismo e a concisão das imagens da narrativa. Do mundo da literatura, os espectadores se transportam a um mundo de signos visuais que nascem com uma facilidade muito grande e permitem introduzir novas idéias. O laconismo das imagens se deve ao fato de que só se mostra a causa (o tiro) e a conseqüência (o Caixa amarrado), sem nenhuma ação intermediária. Ele contribui para materializar a vontade de ocupar o
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espaço de outro modo, povoar a sala assim como o exterior do teatro de indícios do drama e romper com o jogo frontal do primeiro plano. Na cena, três planos, horizontais e verticais, deixam alternativamente aparecer elementos de cenários que se compõem e desfazem à vista do espectador. Niculescu tende aqui voluntariamente para um teatro metafórico.
Convencida de que a metáfora pode nascer com muita facilidade da confrontação de disciplinas artísticas diferentes, ela expõe suas reflexões sobre a questão no congresso da UNIMA que acontece em Varsóvia em 1962: Na busca da metáfora, os criadores transpõem os limites que separam os diferentes gêneros artísticos como o cinema, o teatro de atores, a opereta ou o music‐hall e o teatro de bonecos. Podemos citar exemplos interessantes de espetáculos onde os meios próprios a uma dada arte foram utilizados em proveito de uma outra sem que a autonomia tenha sido violada. Em Os Contratempos de Guignol montado pelo Teatro Lalka, por exemplo, a guerra é mostrada com a ajuda de meios gráficos. O que não diminui em nada a tensão dramática. Muito pelo contrário. A necessidade de fazer nascer a ilusão de um filme policial deu aos autores de A Mão de Cinco Dedos a idéia de recorrer a meios cinematográficos com os quais a marionete se sentiu totalmente a vontade. A famosa garrafa de leite descoberta pelo Detetive é “recortada” no cenário por meio de um “olho”, como um grande plano num filme. Outra cena “cinematográfica”, aquela onde Mister X lança sua cúmplice de um trem. O vagão não se mexe. Só um leve tremor, postes de luz que desfilam diante das janelas e um cachecol que flutua ao vento dão a impressão de que o trem avança. Em muitos de nossos espetáculos nós utilizamos efeitos especiais para dar a impressão de que um personagem percorre uma distância, numa variante dos travellings nas filmagens em estúdio.41
Foi no festival organizado em Varsóvia por ocasião desse congresso que o Teatro Tandarica apresentou O Livro de Apolodor (Cartea cu Apolodor, direção: Niculescu) que traz novidades técnicas e estéticas sendo a principal delas a apresentação de um duplo ponto de vista. O do herói, o pinguim Apolodor que deixa Bucareste para partir em busca de seus primos pinguins, e o dos amigos de Apolodor, pequenos animais que cantam com ele num coral de Bucareste. Apolodor vive suas aventuras no meio de grandes marionetes. Os coristas cantam em cima do biombo, fazendo aparecer imagens da viagem de Apolodor representadas por pequenos bonecos de luva. Lá também, muitas idéias são tomadas do cinema, como o globo terrestre visto de cima ou as pegadas do pinguim que avançam sozinhas. Há também reduções plásticas que evocam o mundo dos brinquedos, como Apolodor que se desloca sobre um bastão munido de uma cabeça de cavalo.
Em 1965, Niculescu monta uma outra peça importante, As Três Mulheres de Dom Cristobal (Cele Trei Neveste ale lui don Cristobla, adaptação de Valentin Silvestru das farsas populares de Garcia Lorca). Um teatrólogo russo fez a seguinte descrição da encenação: O lençol que funciona como cortina se ergue. Aparecem pessoas. Originais, troncos planos feitos de um retângulo trançado como uma cesta, e cabeças que deslizam para baixo com traços que dão
41 Margareta Niculescu. Metafora jako srodek wryazu lalki (A Metáfora enquanto meio de expressão do boneco). In: Conferência da UNIMA: O teatro de bonecos e seus laços com as outras disciplinas artísticas. Varsóvia, 19‐24 de junho de 1962, 9.40.
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a impressão de terem sido feitos às pressas. Cristobal, homem afortunado e velho rico, decidiu se casar. (...) A jovem Belissa voa por cima de sua casa ao ser informada de que Dom Cristobal em pessoa tem a intenção de desposá‐la. O negócio se conclui. As casas balançam primeiro docemente depois vogam lentamente ao encontro uma da outra, ela se juntam para formar uma sólida construção.(...) Belissa foge para sua casa. Ouvem‐se assobios, risos. Eles são cinco. “Cinco homens entraram em sua casa esta noite” conta a servente de Cristobal. Mas é mesmo Cristobal, este que agora surge com uma roupa de um verde berrante, e enorme chifres de veado azuis na cabeça. Sim, é ele. E Belissa partiu. As casas se põem a oscilar levemente, a gemer, depois se separam. O casamento não durou. Resta ao Dom senescente sair em busca de nova esposa. Mais uma vez, bem nova. À direita, a casa de Cristobal. À esquerda, a de Rosita. A jovem agrada a Cristobal. Os sinos tocam. Nova ocasião para se divertir, são as núpcias. Depois nada mais de sino. Nada mais de empanada também. Uma imensa cama ocupa todo o cumprimento da cena, do leito surgem os tacões de nosso herói, percebem‐se as pernas de trapo esbranquiçadas de Cristobal e as de Rosita cobertas de meias vermelhas com os dedos saindo prá fora. Eles dormem. Depois Rosita se ergue sem ruído, um homem entrou na casa. E eles dançam. Um outro homem aparece. Depois um terceiro. Rosita é levada pelo vento numa dança diabólica. Só seus pequenos pés cobertos de meias vermelhas não se mexeram da cama. Mais uma vez Cristobal aparece com chifres de veado azuis. A história do terceiro “sol”, do terceiro casamento de Cristobal, não tem mais esta alegria infantil, esta despreocupação burlesca. (...) Elvira ama Kokolitché e é correspondida. Mas Cristobal seduziu Elvira. Música de igreja. Dos olhos de Kokolitché caem grossas lágrimas como ervilhas. Uma atmosfera de tragédia. Quando de repente surgem quatro indivíduos encapuzados. Eles estendem os braços para Cristobal, o estendem sobre um lençol. Eles o atiram no ar, o aparam... atiram de novo. Quando descobrem seus rostos, reconhece‐se os olhos risonhos dos atores. Eles sorriem com um ar travesso lançando Cristobal no ar. Depois repõem o capuz e levam Cristobal no lençol como numa mortalha. 42
Crítica e público ficaram inteiramente entusiasmados com o espetáculo cujos elementos na sua totalidade constituem, nos anos 60, um espetáculo de bonecos moderno. Assim também, o fato de mostrar a natureza teatral do espetáculo (os atores no papel de deus ex machina), o emprego generoso de todo tipo de metáforas, sejam sinédoques, metonímias ou “realizações de metáforas” caras a Niculescu. Mas esta essa nova linguagem não é, por si só, uma garantia de sucesso. È preciso também um ritmo arrojado, uma dinâmica, criar atmosferas, humor e a sensação de uma necessidade (de uma idéia) superior que reuna todo o grupo em torno de um mesmo projeto. Em 1967, Niculescu comenta assim seu trabalho: Temos procurado os meios que nos permitam substituir textos de versos admiráveis por metáforas cênicas breves e expressivas. Além disso, não estamos indiferentes aos problemas sociais e morais. Nosso desejo é falar dos valores humanos eternos que são sempre válidos. Eles determinam o que o homem tem de bom e de estúpido. O que ele tem de autêntico e de artificial, determinam o que é importante na vida. 43
42 Natalia Smirnova. 10 otcherkov o teatre Tandarica (10 esboços sobre o Teatro Tandarica), Iskusstvo, Moscou, 1979, p. 195‐198.
43 Natalia Smirnova. 10 Otcherkov o teatre Tandarica (10 esboços sobre o Teatro Tandarica), Iskusstvo, Moscou, 1979, p. 195‐198.
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Esse testemunho permite pensar que as descobertas estilísticas do teatro de bonecos vem com muita freqüência acompanhadas do sentimento de responsabilidade que o artista experimenta frente ao destino da humanidade e a ordem do mundo. Encontramos esta mesma abordagem em Wilkowski, e a mesma reflexão sobre o homem e a ordem social em Schneckenburger e Roser. O Teatro Tandarica aprofunda o estudo das capacidades expressivas do teatro de bonecos numa série de peças como A Festa Popular do Anãozinho Clip (Iarmarocul Piticului Clip, direção: Lenkisch, cenografia: Buescu e Conovici, 1966), onde participam de uma espécie de jogo infantil, bonecos e atores, que parecem fazer parte do cenário mas são ao mesmo tempo personagens alegóricos (árvores, sol, vento). Os autores do Mágico de Oz (Vrajitorul Din Oz), direção de Lenkisch, cenografia de Hablinski e de Buescu, 1967) estabelecem novas relações entre os personagens. A heroína, a pequena Dorotéia, é uma marionete. Seus companheiros, o Espantalho, o Homem de Ferro e o Leão são atores mascarados. Dorotéia inicialmente é manipulada por uma única animadora, depois por seus companheiros. Uma maneira clara de mostrar que o animador visível não é um elemento neutro na imagem e que ele pode engendrar significações importantes para a peça. Dorotéia aparentemente os conduz ao Mágico, mas na realidade são eles que a conduzem. No mesmo ano, 1967, foi criada A Bela Ileana (Ileana Sinziana), numa direção de Niculescu (cenografia de Buescu e Conovici). Os bonecos são fabricados à imagem de brinquedos de terra. O coração que comenta a ação anuncia o lugar crescente da narração no teatro de bonecos.
As realizações do Teatro Tandarica fazem pensar que o teatro de bonecos entra em sua idade de ouro. O crítico Iordan Chimet faz a apologia de seus sucessos: Inscrevendo‐se na nova linha das duas últimas décadas, nosso teatro moderno de bonecos significa uma aspiração à certeza, uma necessidade de sentimento, às vezes presente sob a forma mais pura na cena de nossa arte. Um horizonte insuspeito se abre diante dele. Wagner falava, em sua época, de obra de arte completa, total. Craig se perguntava se o boneco não se tornaria no futuro, numa época ainda imprevisível, o meio de expressão mais fiel das mais belas aspirações e pensamentos artísticos. Esse futuro, na hora atual, não está longe de se tornar presente! Nosso teatro de bonecos responderá logo a esta questão. Pode‐se dizer com certeza que estamos no bom caminho e avançamos com confiança44.
Observando a evolução do teatro de bonecos na virada dos anos 50 e 60, nós partilhamos o otimismo de Chimet. Os espetáculos do Lalka e do Tandarica provam o imenso potencial artístico do boneco e anunciam significativas mudanças nas regras clássicas. A mais importante delas foi o abandono do teatro ilusionista e o caminho escolhido de uma criação autônoma, onde o artista não esconde a artificialidade da obra criada, e, longe disso, revela os segredos da criação. As tentativas de transformar a linguagem teatral, pelo abandono das descrições diretas (da ilustração do mundo representado), também foram capitais. Os artistas concebem a linguagem teatral como uma linguagem especificamente composta, exprimindo assim seu desejo de abandonar
44 L. Gitza,I . Chimet, V. Silvestru, Teatrul de Papusi in Romania (O Teatro de Bonecos na Romênia), Bucareste, 1969, p. 243.
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a linguagem descritiva, tanto no plano plástico como no plano verbal, em favor de uma linguagem poética fundada sobre figuras de retórica que, ainda que emprestadas à literatura, funcionam perfeitamente no plano visual.
As mudanças trazidas por Niculescu e Wilkowski a partir do final dos anos 50 são a expressão da energia criadora dos artistas bonequeiros da nova geração, para quem o boneco se inscreve na arte e na sua metamorfose. Assim não é de causar espanto que eles tenham rompido o tabu do teatro de bonecos homogêneo e desencadeado uma avalanche de experimentações criadoras e divertidas das quais ninguém, na virada dos anos 50 e 60, podia prever o resultado. Trinta anos de distância permitem apreciar as experiências, que as descobertas e as idéias dos anos 50 e 60 fizeram nascer. Assim, no início dos anos 80, Niculescu volta‐se para uma nova forma que prefigura o teatro da matéria. Uma peça do grande poeta romeno Mihail Eminescu, intitulada Príncipe Nascido de uma Lágrima (1982), montada no Teatro Tandarica, forneceu‐lhe a ocasião. Ela se associa com uma jovem cenógrafa, Doina Spitzeru. Nas lembranças que me evocou recentemente, ela sublinha o papel da obra mítica de Eminescu enquanto fonte de inspiração: Eu gostava muito deste texto poético e decidi tentar fazer um trabalho teatral a partir das imagens, a partir de uma inspiração que podia vir de outra coisa que não o boneco figurativo e articulado, que pudesse vir da matéria tal como ela é e pudesse tomar forma no movimento. Com Doina Spitzeru, procuramos materiais que pudessem inspirar esse lado primitivo, esse lado bruto, como a juta, por exemplo, para exprimir esse mundo que existia antes do mundo, o mundo primário. Os personagens eram mais ou menos marcados, mas havia no início a idéia de tentar criar um espetáculo de imagens poéticas que se personalizassem pelo movimento. Que podiam restar como uma massa inerte, informe, bela, como uma escultura, como uma natureza morta. Tornaram‐se personagens metafóricos. Por exemplo, havia um monte de juta, com braços, à qual acrescentei uma máscara feita de pequenos elementos que podiam se destacar e cobrir uma grande superfície. Sob essa massa de tecido se encontravam três atores que lhe davam formas diversas colocando nela toda sua energia. Era uma imagem poética do que queria ser este personagem, a mãe, a matriz da terra. Senti que o boneco articulado, animado, com gestos, jamais poderia me ajudar a exprimir esta imagem telúrica, esta imagem da mãe possessiva, esta imagem da mística da
vida precedente45.
Existem, claro, inúmeros espetáculos onde a criação se manifesta sob outros aspectos, como o do espaço cênico aberto nas peças de Hans Sachs, ou as funções simbólicas dos personagens, da luz e do espaço, em Peer Gynt de Ibsen, no Ricksteater de Oslo (1978). Somos obrigados a constatar que as obras dos artistas que abriram caminho à grande metamorfose do teatro de bonecos nos anos 50, continham em germe, todas as grandes idéias dos anos 90. Isso vale também para a obra de Wilkowski. Afastado do teatro no final dos anos 60 em resultado de um desacordo com a burocracia comunista, ele encontra refúgio na televisão simultaneamente como autor e diretor. Nos anos 70, retoma sua atividade no teatro. Revela‐se então seu perfeito domínio de novos 45 Entrevista de Henryk Jurkowski com Margareta Niculescu, Charleville‐Mézières, 17 de novembro de 1993.
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meios de expressão, entre outros em Confissão Talhada na Madeira (Spowiedz w drewnie, 1983) criada num teatro de Szczecin. Ele esboça aí o retrato quase autobiográfico de um escultor popular contra o qual se levantam suas próprias criações. Só um Cristo inacabado em sua grandeza lança um olhar benevolente sobre seus atos. Em Biografias dos Santos (Zywoty Swietych, 1983) ele se interessa pelo teatro de máscaras, em A Gansa Verde (Zielona Gèß, 1984), pelo teatro de objetos assim como em O Decameron 85 (Dekameron, 1986, cenografia: Adam Kilian) onde recorreu ao teatro no teatro: os refugiados de Florença são atores cujos relatos eróticos são representados por peças de xadrez, frutos e bonecos a dedos. Para Wilkowski, esse espetáculo deve ao teatro político. A seus olhos, a Polônia de 1985 está ameaçada pela peste (era a época do estado de guerra) como Florença no tempo de Bocage. O talento criador destes grandes artistas parece inesgotável. Ambos, Niculescu e Wilkowski, concebem o teatro de bonecos como uma arte dramática nascendo da imaginação comum do escritor e do diretor. Essa foi sua especificidade e seu triunfo.
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HOMOGENEIDADE
Quando chega ao fim a Segunda Guerra Mundial, o teatro de bonecos homogêneo não é unicamente um teatro de formas ultrapassadas e de investigação esgotada. Ao contrário, ele é mais respeitado, desenvolve suas qualidades formais, experimenta novos materiais, torna‐se um campo de investigação para as artes plásticas – do boneco mimese do homem ao boneco estilizado – e herda metamorfoses do teatro de bonecos tradicional. Se Brann, Puhonny e Teschner se aproximaram das artes plásticas, eles vão desenvolver, a partir do final dos anos 40 suas tendências artísticas e utilizar novas formas de bonecos, de matérias e de materiais. São inúmeros os teatros e os artistas precedentemente evocados que têm esta vontade: Joly, die Klappe, Kramer assim como Wilkowski e Niculescu. Nos anos 50, todos eles praticam um teatro de bonecos homogêneo e estilizado, sem falar dos teatros soviéticos que não vão renunciar, por vários anos ainda, à homogeneidade de seus meios.
Continuidade ou ruptura?
Esse teatro de bonecos homogêneo não é nada mais do que um teatro de bonecos não contaminado por outros meios de expressão. Ele possui todas as condições para desenvolver seu próprio estilo, sem medo de perder seu público. O público aceita a presença do boneco clássico, contrariamente a certos artistas. Aliás, engana‐se quem imagina que o surgimento do teatro de bonecos com meios de expressão variados resultou do esgotamento do teatro de bonecos homogêneo.. De fato, no que respeita a alguns teatros clássicos isso faz sentido, mas a criação contemporânea dá testemunho do contrário e a história me dá razão por não privilegiar um em proveito do outro. Por essa razão, os anos 60 transbordam de teatros de bonecos clássicos. Eles coexistem com o teatro de bonecos heterogêneo e os dois polarizam o interesse de diferentes artistas. O desenvolvimento das artes, a estilização plástica e gestual, oferecem as condições de uma profunda transformação para o teatro de bonecos clássico. Não é, pois, surpreendente que este teatro tenha tido uma quantidade tão grande de adeptos. Por outro lado, o fato de que estes bonequeiros tenham se sentido ameaçados pela pressão dos modernos, era muito mais surpreendente!
Henryr Ryl, diretor polonês, defende o teatro de bonecos como um gênero artístico à parte. Sua convicção nasce das idéias de Craig e das reações dos espectadores, crianças e adultos. Enquanto diretor, ele é favorável às experiências teatrais e mesmo à diversidade dos meios de expressão utilizados nos espetáculos. Enquanto avô e porta‐voz do boneco, ele exige permanecer a seu serviço. Seus espetáculos, de um estilo realista, alcançam um verdadeiro triunfo, como O Médico à Força (1954), baseado em Molière, cujos elementos burlescos e eróticos – chocantes se fossem assumidos por atores – tornam‐se cômicos ao serem interpretados por bonecos. Ryl, no entanto, permanece aberto a certas inovações formais que devem imperativamente servir ao
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boneco: a utilização de diferentes meios de expressão (a associação de máscaras, bonecos e atores), a contribuição do teatro de objetos, do grande espetáculo em relação ao número pequeno e do processo de criação se efetuando sob o olhar do público. No Moinho de Café (Mlynek do Kawy, cenografia: S. Fijalkowski, 1959), Ryl segue este princípio, defende a fidelidade ao boneco e declara em 1963: Assim, pois, os aliados do boneco no seu início: o homem, a máscara, o objeto, o acessório, tornaram‐se pouco a pouco seus adversários. Eles se puseram a reinar sobre a cena do teatro de bonecos marginalizando a este. Quiseram mesmo roubar‐lhe seu nome, chegaram disfarçar‐se dele, semeando a confusão no meio do público. Não é de espantar que este já se sinta perdido e sem vontade de ir ao teatro, pois os julgamentos e as opiniões das críticas mais sérias, especialistas na matéria, reunidas neste corpo coletivo pomposamente batizado de júri, estavam gravemente deturpados. Aqui e lá surgiram vozes pedindo que se arrumasse este estado de coisas. Elas afirmavam que tinha sido jogado fora o bebê com a água do banho. Mas estes protestos não foram acompanhados de reflexões mais profundas. Elas ecoaram no deserto.46
Esse adepto do boneco clássico não pode deter as mudanças. Os críticos são apenas os catalizadores de um processo inevitável e se o boneco foi marginalizado, os bonequeiros são os primeiros responsáveis por isso.
Nas fontes da plástica
Entre os novos teatros de bonecos que se distinguiram por sua originalidade citamos o Teatro Central de Bonecos de Sofia. Ele conquista o público do mundo inteiro com espetáculos como A Escola dos Coelhinhos, Pedro e o Lobo, O Relojoeiro e Krali Marko, e oferece um leque indo de formas universais, quase abstratas, a formas pessoais refletindo a experiência de uma cultura nacional. No Segundo Festival Mundial de Bucareste, em 1960, o teatro apresenta: A Escola dos Coelhinhos, conto de animais do repertório de Obrazstov numa tradição realista e Pedro e o Lobo, música de Prokofiev, uma criação moderna. A Escola dos coelhinhos é uma alegoria vitoriosa (os coelhinhos representam crianças) e uma dinâmica de teatro de bonecos naturalistas. Em Pedro e o Lobo (direção de Atanas Ilkov e de Niculina Georguieva, 1960), triunfam formas plásticas que enriquecem a música programática do compositor. Formas geométricas compõem cenários e bonecos, como se a música encontrasse seu correspondente em linhas retas e curvas, em círculos, esferas e elipses. Alguns bonecos têm um corpo espiralado escondido debaixo da roupa, mas que se faz visível ao longo da ação. Os personagens humanos, de cabeça esférica, são desprovidos de traços precisos, ao contrário da música de Prokofiev e suas formas abstratas evocam bem pouco os heróis da história. O entusiasmo por poéticas tão diferentes se deve ao fato de que os bonequeiros apreciam tanto as normas da arte clássica aqui expressa na perfeição da manipulação de A Escola dos Coelhinhos quanto às inovações de Pedro e o Lobo, diretamente inspiradas nos princípios do teatro de vanguarda.
46 Henryk Ryl. Lalkarskie tak i nie O sim e o não dos bonecos. Teatr Lalek, 1963, no. 26, p. 2
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O Relojoeiro, de I. Teofilov (direção: L. Dotcheva, cenografia: I. Conev, 1965), traz novas soluções plásticas; todos os personagens têm a forma de tubos de papelão. A opção formal determina um modelo de personagens e dá uma mesma tonalidade ao conjunto do espetáculo. As idéias pacifistas de O Relojoeiro, construídas em torno do destino de um homem simples, renascem graças à utilização de meios inesperados que deliciam o público, emocionado e tomado pela originalidade do espetáculo. Esta capacidade mistificadora do boneco é de fato um dos segredos deste teatro e dá uma nova dimensão a todos os elementos cênicos. O poema heróico Krali Marko de Teofilov (direção: Teofilov, cenários: I. Conev, 1967) conserva a originalidade da forma de antigas tradições icônicas, a serviço da dinâmica interna da imagem. As fontes plásticas estão em perfeita harmonia com o tema e dão ao espetáculo um caráter monumental.
Rumo à caricatura
Na União Soviética, à exceção de alguns adeptos das novas correntes (como Ablynin), o boneco clássico predomina. Alguns artistas em voga, como Mikhail Korolev ou então Viktor Sovdarouchkine tentam liberar‐se da poética reinante de Obraztsov. O primeiro tende para um teatro realista e poético em que a caricatura plástica é reforçada por fantasias e idéias surrealistas, o segundo, seu sucessor enquanto diretor artístico do Grande Teatro de Bonecos de Leningrado, vê no teatro de bonecos uma imagem estilizada da realidade. Em O Elefantinho, baseado em Kipling (cenografia: V. e V. Kharlamov, 1964), Evguenil S. Kalmanovski, crítico, sublinha o modo de criação de Sovdarouchkine: Se o Elefantinho é ainda uma criança, um ser humano na aurora de sua vida, ainda irresponsável, ainda inocente, seus antagonistas têm particularidades psicológicas. Sua semelhança evidente com o homem sublinha seus traços físicos, transforma‐os em qualquer coisa arrasadora, estranha ao homem e antinatural. Durante toda uma cena, o Hipopótamo, a Avestruz, a Girafa, o Pavão permanecem encerrados num mutismo renitente. No entanto, resfolegam, bufam, gorgolejam, estalam a língua, suspiram47.
A ilusão dramática
Allami Babszinhaz, Teatro de Estado de Budapeste, dirigido por Dezso Szilagyi nos anos 60 e 70, dá testemunho de uma outra problemática estética do boneco clássico. Apoiando‐se na psicologia, Szilagyi constata que o público infantil reage de modo diferente dos adultos ao boneco. As crianças aceitam o jogo com toda confiança, consideram‐no verdadeiro porque não distinguem a ficção da realidade, enquanto que os adultos já possuem uma certa distância em relação à ação dramática, ainda que se deixem seduzir pela ilusão. Os bonecos também devem mostrar certas relações humanas, atuais e concretas, devem, pois, oferecer a possibilidade de viver uma “verdade cênica” para conseguir um contato com os adultos. De fato, as coisas não se passam da mesma maneira no teatro de bonecos e no teatro dramático. No teatro de bonecos a ilusão é mais completa que no drama. A unidimensão natural do boneco – tudo é aí representado com o mesmo material – não suscita no público este sentimento mesclado que faz nascer a dualidade do personagem
47 Evguenii S. Kalmanovski, Teatr Kukol, den’ sevodnashnii (Teatro de bonecos hoje), Leningrado, 1977, p. 18:
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representado na cena dramática (simulacro de ser humano) e do intérprete, o ator presente em carne e osso. O espectador do teatro de bonecos só percebe o personagem cênico, e não seu intérprete. Essa homogeneidade do teatro de bonecos é em si uma das fontes da emoção estética no espectador adulto48.
Assim, Szilagyi desenvolve o programa artístico de seu teatro a partir desses valores. Tudo é ilusão; o artista se assume criador, a matéria inerte se metamorfoseia e é percebida como verossímil. O mundo do boneco é um mundo homogêneo, e mesmo tendo recorrido a outros meios de expressão, como atores, com ou sem máscaras, Szilagyi permanece um adepto das idéias de Paul Brann e de Schlemmer. Esta tomada de posição poderia levantar objeções se o valor artístico do teatro de bonecos fosse julgado por seus meios de expressão. Ora, não se trata disso, eles não tem valor enquanto tal, mas dependem de seu uso, de sua função estética, de sua aptidão a transmitir sentido e, portanto, sua importância é relativa. A história do teatro sugere que as mudanças dos meios de expressão ou dos estilos de representação estão sempre ligados ao surgimento de novos temas e necessitam fazer uso de novos meios, sem seguir sistematicamente a moda. A prática de criadores contemporâneos o confirma e a história nos esclarece sobre outras verdades também universais. Qualquer tema, parece, pede meios de expressão apropriados e que não são necessariamente modernos. O Allami Babszinhaz considera o boneco um meio essencial de uma ilusão consciente, baseado em reflexões teóricas. Este teatro sabe ser moderno, aberto a todas as correntes nascentes, e utiliza bonecos estilizados em seus espetáculos tanto para crianças (contos tradicionais ou tirados do folclore) quanto para adultos (repertório de peças de Shakespeare, Brecht e Mrozek.). Com uma coerência admirável, ele adapta o boneco a obras de grandes compositores como Bartok, Kodaly e Stravinski.
O repertório musical
Essa associação entre música e bonecos permite ao Allami Babsinhaz realizar seu principal objetivo: conservar a ilusão teatral sem deixar de manter o boneco no registro do simbólico. A música contribui para a convenção do jogo, onde os gestos e movimentos dos bonecos exprimem as obras numa pantomima dançante, como em Petrouchka, de Igor Stravinski, e O Mandarim Maravilhoso, de Bela Bartok. Petrouchka foi criado (direção: Kato Szonyi, cenografia: Ivan Koos, 1965) no período de maior fausto do teatro. A música e os cenários se inspiram no folclore russo: barracas de festa popular, desfile de monstruosidades humanas, números de prestidigitação, brincadeiras populares, desfile dançante de bonecos de vara. No meio da multidão, um teatro de marionetes, com seus três personagens: o Prefeito, a Dançarina e Petrouchka. Este ultimo, apaixonado, se revolta contra seu destino de marionete – o que torna natural a metáfora da dependência do herói e de seu destino face ao animador – e foge do teatro, mudando de constituição técnica: de marionete passa a boneco de vara. O que não lhe evita um fim trágico. Peter Molnar Gal evoca o sentido metafórico dessa mini‐
48 Dezso Szilagyi. Das heutige Puppentheater und sein Publikum (O teatro de bonecos atual e seu público).
In: Puppentheater der Welt. Zeigenössisches Puppenspiel in Wort und Bild. Henscheverlag, Berlim, 1965, p.40.
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fábula: A cena onde ele é visto escalando os fios, puxando o mecanismo que dirige esses fios é insuportável e de enorme tensão. Ela traz a imagem da luta contra o opressor, a luta do artista reduzido ao papel de marionete, e ao mesmo tempo de um homem consciente dos fins que persegue49.
Desde as primeiras cenas do Mandarim Maravilhoso de Bartok (direção: K. Szonyi, cenografia: I. Koos, 1969), o espectador se vê mergulhado na atmosfera de um mundo moderno, onde as máquinas impõem seu ritmo, o homem perde sua personalidade e torna‐se anônimo. Nesse contexto, o Mandarim, em roupa de cerimônia, é o símbolo dos valores esquecidos, dos valores românticos que se exprimem na sua fidelidade e dignidade. Silhuetas humanas sem rosto, neutras, evoluem num cenário composto de grades corrediças, de luzes de postes que piscam, de construções de contornos imprecisos pela noite. Contrastam com esse cenário, as cores e o comportamento do Mandarim, o ritmo particular de seu jogo quase interiorizado, reflexo da nobreza de sua alma. Aliás, a animação admirável dos bonecos, a perfeita sincronia de seus movimentos com a música, lhe fazem perder sua constituição quase escultural. Gyorgy Kroo descreve essas relações entre bonecos e música: O apogeu dessa adaptação é a corrida‐perseguição que segue o extraordinário dinamismo e o terrível crescendo da música de Bartok, sem afetação e cheia de inspiração. A partir desse momento até o acorde final, o espetáculo provoca um deslizamento que transporta o espectador a um outro mundo. A simbólica da descoberta recíproca da jovem e do Mandarim, o sentimento de mistério provocado pelo uso de níveis de cena diferentes, correspondem perfeitamente à música dramática do Mandarim Maravilhoso50.
A unidade dos cenários e dos personagens era um sonho de Brann? Szilagyi leva essa unidade até seu limite. O Mandarim Maravilho é uma obra decididamente moderna. Ela constitui uma síntese da estilização dos bonecos, confrontando sua expressão plástica e formal com a expressividade dramática da música.
A música só nos interessa aqui na medida em que o teatro de bonecos toma seus temas do repertório musical. Ainda que o boneco tenha sido considerado, a uma certa época, não apenas como um substituto icônico do ator, mas também como um substituto do cantor. A partir do século XVII vai existir, em paralelo à Ópera, uma ópera de bonecos, como existirá mais tarde um balé de bonecos, em paralelo ao balé. Os teóricos do boneco pensam geralmente que, em razão de suas qualidades formais, o boneco se presta à execução de um repertório musical e introduz, como a música, um elemento de distanciamento.51 De um modo geral, os bonequeiros montam o repertório de acordo com as circunstâncias, passo a passo. O Teatro de Bonecos de Salzbourg,
49 Peter Molnar Gal. Theatre with Puppets (O teatro com os bonecos). In: Contemporary Hungarian Puppet Theatre, editado por Dezso Szilagyi,Corvina Press, Budapeste, 1978, p. 25.
50 Peter Molnar Gal. Theatre with Puppets (O teatro com os bonecos) In: Contemporary Hungarian Puppet Theatre, editado por Dezso Szilagyi, Corvina Press, Budapeste, 1978, p.53
51 Holger Sandig. Die Ausdrucksmöglichkeiten der Marionette une ihredramaturgischen Konsequenzen (A capacidade expressiva da marionete e suas consequência dramátúrgicas).
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dirigido sucessivamente por Anton e Hermann Aicher, é a única exceção no caso. Os Aicher imitam a Ópera. Seu teatro é uma cópia em miniatura da Ópera com seus cenários e seus atores. Os bonecos usam as mesmas
roupas que os cantores, reproduzem os mesmos gestos e introduzem assim o distanciamento evocado mais acima. Ele tem em geral uma dimensão cômica. O Allami Babszinhaz opõe‐se a essa prática criando um universo plástico específico em harmonia com o tema musical, signo de sua modernidade. O caminho que leva à abstração e a uma total musicalidade é apenas esboçado pelo Allami Babszinhaz. Ele se aparenta ao esboçado e sonhado por Sokolov e seu teatro de “dinâmica musical”.
O Teatro de Bonecos de Poznam também participa dessa experiência, sobretudo com O Mais Bravo (Najdzielniejszy de Ewa Szelburg‐Zarembina, música: Krzysztof Penderecki e Mark Stachowski, direção W. Wieczorkiewicz, cenografia: J. Berdyszak, 1965). A ação da peça se desenvolve num mundo estilizado, compreendendo pardais e campos de papoulas. Os pardais tentam se colocar ao nível da abstração das frases e dos tons musicais, se deslocando fora de qualquer associação de idéias, e traduzem a música numa linguagem visual, como por analogia às notas e às pautas musicais.
O uso do repertório musical e a associação feita através desses poucos exemplos entre boneco e música não têm a mesma significação que o emprego de meios expressivos variados. A música é apenas um dos elementos da teatralidade, pode ser importante na expressividade do personagem, mas não pretende absolutamente determinar a independência da iconicidade do boneco. Ela cria uma atmosfera, orienta as tensões, assinala emoções e está mais ligada ao teatro sintético. Foram, pois, raros os teatros que, como o Allami Babszinhaz, souberam permanecer fiéis ao boneco e ao teatro de bonecos homogêneo sem perder ao mesmo tempo sua reputação de teatro artístico moderno.
Nas fontes do clássico
Em meados dos anos 60, o Teatro Miniatura de Gdansk desenvolve as capacidades expressivas do boneco em espetáculos de caráter monumental. Seu diretor artístico, Michal Zarzecki buscava a expressão de verdadeiras emoções humanas ou de seres antropomorfizados para restituir em cena o universo de um mundo fantástico ou lendário. Num estilo verista, os bonecos não tem movimentos apropriados e se limitam a uma gesticulação sugestiva. O Moinho de Vento Voador (Latajacy Wiatrak de A. e J. Afanassiev, direção: Michal Zarzecki) foi o acontecimento do Festival de Bucareste em 1965. Este conto simbólico tratado num enquadramento plástico muito rico (de Gizela Bachtin Karlowska), tem por tema a luta dos homens contra um bruxo moleiro que lhes impõe viver no país da tristeza. Os bonecos das duas crianças percorrendo, nesse moinho voador, o país da tristeza, o dos perfumes e depois o dos jogos de cartas, são admiravelmente manipulados. A Vaca Cunegundes, personagem protetor do espetáculo, prodiga amor e cuidados para proteger as crianças da ira e da ameaça de seus agressores. Esses bonecos jamais deixaram o mundo do sonho e da poesia. Ilia Muromiec (de V. Kurdiumov, 1967), extraído das bilinas russas, toma a amplitude de uma epopéia cavaleiresca, repleta de elementos provenientes da imaginação popular. A animação
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dos bonequeiros é de uma perfeição espantosa, às vezes mesmo assustadora. O universo dramático e os personagens parecem autênticos, ainda que cercados de uma iconostase estilizada. O primeiro gesto de Muromiec, um herói ruteno sentado há 33 anos sobre o forno, tal uma escultura inanimada, perturba tanto os personagens quanto os espectadores. O teatro Miniatura afirma‐se mestre na arte da ilusão, levada ao extremo.
Todos os grandes espetáculos criados num estilo clássico aconteceram na Europa nos anos 60. Menos numerosos nos anos que se seguiram, eles deixaram talvez também de suscitar o interesse da crítica e dos bonequeiros! Mas continuam existindo teatros praticando a homogeneidade dos meios de expressão. Na Inglaterra, por exemplo, o Little Angel Theatre de Jon Wright ainda faz muito sucesso junto ao público do mundo inteiro, porque respeita os princípios da cena à italiana e as convenções da ilusão teatral. O teatro de bonecos dito homogêneo permanecerá por muito tempo a única referência para os artistas de outras disciplinas. Não é de espantar, portanto, que na Geórgia, Rezo Gabriadzé, roteirista, artista plástico e diretor, que funda em 1981 o Teatro de Marionetes de Tbilissi, põe em cena verdadeiras marionetes. Estilizadas, elas representam o papel de herói, obedecendo às regras do cinema ou da arte dramática. No universo de Gabriadzé, o homem é um homem e a coisa conserva sua função primeira, só penetrando em certos momentos no mundo de uma vida autônoma. Por exemplo, em Alfredo e Violeta, onde um retalho de tecido flutuante simboliza a alma desfalecida de Violeta ou uma folha de outono a morte da heroína, ou ainda em O Brilhante do Marechal de Fantieux, onde pombos de papel trazem o berço de Picasso recém nascido ou brota sob nossos olhos uma torre Eiffel de corda52.
Gabriadzé opta por um mundo artificial, estilizado, criado por um artista e a marionete clássica lhe convém perfeitamente. Teria ele sucumbido a seus encantos ou ela serve a seus interesses plásticos e a seu inesgotável senso de humor?
A metamorfose do boneco não está em contradição com a existência de um teatro de bonecos dramático. Mesmo se o boneco, hoje, não ocupa mais exatamente a mesma posição, ele conserva toda sua força e manifesta claramente sua presença. Um jovem diretor, Piotr Tomaszuk é prova disso. Em seu período clássico, no teatro de bonecos de Bialystok, ele adapta uma obra admirável, A Caça à Raposa, de Slawomir Mrozek (cenografia: Mikolaj Malesza, 1989). O espetáculo surge num momento político particular, quando o regime comunista manifestava sinais de fraqueza. Tomaszuk reage à situação associando em seu espetáculo, três peças em um ato de Mrozek: A Serenata, A Raposa Filósofa e a Caça à Raposa, que segundo ele, formam um conjunto heterogêneo coerente.
O primeiro ato apresenta a Raposa num galinheiro. No poleiro, galinhas e um galo dormindo – bonecos em forma de sacos cujas cabeças estão apenas esboçadas. A raposa está a tal ponto maltratada pela vida, que seu pelo ruivo está todo sujo, seduz de uma em uma as mulheres do Galo, sem encontrar resistência. Mas na verdade o que ela quer é o Galo, que vai terminar por capturar. No ato seguinte, a Raposa vai visitar um
52 Audrone Girdzijauskaite. Maestro Rezo i jego teatr (Mestre Roze e seu teatro). Teatr Lalek, no. 3, 1998, p. 20.
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dignatário da Igreja, um Bispo em hábitos de cerimônia, cujo tamanho monumental ultrapassa em várias vezes o da Raposa. Ela exprime suas dúvidas, mas não encontra junto a ele nenhum reconforto. Segue‐se o ato III, a caça à raposa. A ação se passa num país que conheceu uma revolução. Todos os cidadãos agora são beneficiários do direito de caça, até então reservado a alguns privilegiados. Todos caçam, pois, numa floresta devastada, destruída, entre aristocratas decapitados que levam sua cabeça debaixo do braço. É obrigatório usar de seu privilégio, mas em razão da falta de caça, ninguém pode fazê‐lo. A Raposa, disfarçada de caçador, aconselha a caçar os animais domésticos, porque ela tem justamente o Galo ao alcance da mão. Os caçadores bebem e cantam para ganhar coragem, quando de repente ecoam os uivos dos lobos. É o salve‐se quem puder geral. A Raposa se refugia no alto de uma árvore, onde é atingida por uma bala perdida atirada pelo Paralítico que desaparece no momento oportuno. Os lobos continuam a uivar sem parar. Eles não devem mais estar muito longe, porque seus lamentos parecem cada vez mais próximos. O crepúsculo se foi, a noite caiu.
A Caça à Raposa entrou para a história do teatro polonês. Ele se inscreve no debate sobre a identidade nacional à qual o teatro, durante o comunismo, consagrava uma grande parte fazendo uso de alusões e metáforas. Quanto à forma, esse espetáculo é uma peça moderna, que tenta uma vez mais nos convencer de que o teatro de bonecos homogêneo é de fato uma terra fecunda para a metáfora e o simbólico. Na continuação de sua carreira, Tomaszuk abandonou esse tipo de teatro e se lançou na poética da animação à vista, depois na do teatro de bonecos dos mais variados meios de expressão. Registremos apenas o fato de que ele inicia por meios clássicos, o que confirma o poder de atração desses. Do mesmo modo, se duas gerações de artistas são necessárias para passar do teatro clássico ao teatro moderno, essa evolução se faz agora na carreira pessoal do artista, ao fim de seus três ou quatro primeiros espetáculos. Nosso mundo vive uma tal aceleração que é natural que este ciclo se reduza rapidamente. Entretanto, é importante mantê‐lo como um todo e que o primeiro elo reste como o teatro de bonecos clássico: homogêneo.
Uma tal conclusão seria prematura se ela só se reportasse a um único caso. Por sorte, existem vários assim. Com muita freqüência os jovens bonequeiros iniciam sua carreira fazendo uso da poética clássica do teatro de bonecos Esse tipo de abordagem permite‐nos supor que num breve prazo, as exigências do repertório e dos criadores decidirão quanto à forma dos espetáculos, senão eles permanecerão num mundo onde a experiência humana é bastante limitada. Os espetáculos para crianças são, desse ponto de vista, particularmente importantes. Elas geralmente percebem os espetáculos como uma imagem quase autêntica da realidade. Identificando‐se quase totalmente com os personagens, elas são a tal ponto tomadas pela ação que qualquer amplificação por diferentes meios de expressão é inútil. O espetáculo do Teatro Damiet van Dalsum, Hollebollebeer (direção: Cok Poelman, cenografia do autor, 1989) ilustra magnificamente esse princípio. Na cena deserta, aparecem bonecos extraordinários, de formas fantásticas: crianças e entre elas, Jossi, diferente dos outros. Ninguém quer brincar com ele. Até mesmo seu urso de pelúcia que se perdeu. Só lhe resta refugiar‐se num mundo imaginário, aquele dos ursos. Na rosa dos ventos existem cabanas onde vivem ursos de
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várias espécies. Também entre eles Jossi não pode mais ficar. Uma grande borboleta o leva então para um país onde jamais alguém fica sozinho. O mundo dos bonecos é uma criação à parte, e no entanto, as emoções aí pululam, a maior delas sendo a inquietação quanto à sorte do pequeno Jossi. O Teatro Damiet van Dalsum é um teatro figurativo, imaginativo e poético. Ele abre uma nova perspectiva para o teatro de bonecos homogêneo. Seus meios de expressão atraem o público e estimulam seu imaginário. Ele tem, pois, seu lugar garantido e confirma essa verdade interior, sentida e praticada ainda hoje por outros artistas.
HETEROGENEIDADE
A partir dos anos 50, a nova geração de bonequeiros não aprecia nenhum pouco restringir seu campo de criação. Inicia‐se a ruptura do teatro de bonecos com sua poética tradicional. O primeiro obstáculo a ultrapassar é o das convenções do teatro de bonecos homogêneo.
A entrada do ator
Nada de mais fácil, já que o homem continua sendo seu fiel companheiro: cada punchman tem seu bottler e o criador de Petrouchka seu músico diante da empanada. Já não apareceram atores na cena do teatro dei Piccoli de Vittorio Podrecca ou do Teatro Central de Moscou? Os atores apareciam cada vez com mais freqüência ao lado dos bonecos. Ninguém se colocava então qualquer questão sobre sua presença cada vez mais comum no palco, enquanto eles integraram logicamente a realidade do boneco. Hans Richard Purschke se insurge contra a presença simultânea do boneco e do ator. Conservador, ele declarava em 1953, anteriormente a essa nova orientação: Ao surgir em seu mundo, (o homem) tira de imediato (ao boneco) sua realidade de boneco; ele perde sua força de persuasão, o encantamento se rompe e não se vê nele nada além de sua verdadeira natureza de papel machê, de madeira ou de pano. Porque o aparecimento do homem dá ao espectador a possibilidade de comparar e ele repara então na imperfeição da aparência e dos movimentos do boneco. (...) O mundo dos bonecos e o dos homens são separados, eles excluem um ao outro. É flagrante no que diz respeito ao boneco e ao jogo de sombras irreal. Tem‐se vontade de dizer, para parafrasear Kipling, que um homem é um homem e um boneco um boneco e que eles jamais se encontrarão53.
Sua teoria e a tradição alemã induzem Purschke ao erro. Ele não vai tardar a retratar‐se publicamente, reconhecer que a colaboração do boneco e do ator dá excelentes resultados. Em 1958, ele acolhe Tankred Dorst, nas colunas de sua pequena revista Perlicko‐Perlacko. Dorst vai muito mais longe do que o teriam imaginado os partidários do teatro de bonecos homogêneo porque ele admite a presença do ator em todos os tipos de papéis de animação à vista: O boneco conserva a distância tanto com respeito ao espectador quanto com respeito à coisa representada. Seus gestos não são “naturais”. Mesmo quando ele imita, ele cria uma distância, ele “mostra” também em conseqüência o que ele representa. É isso que torna cômica a figura que imita um pianista virtuoso. É importante
53 Hans Richard Purschke. Puppe und Mensch (O Boneco e o Homem) Perlicko‐Perlacko, I, 1953, p. 118 e 119.
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compreendê‐lo para o estilo do espetáculo. Tanto nos esforçávamos ansiosamente no final do século XIX em manipular as figuras da maneira mais dissimulada, mais misteriosa e mais opaca possível, quanto hoje admitimos revelar o indivíduo que manipula o boneco... E não é de modo nenhum uma idéia aberrante reutilizar, no lugar dos fios introduzidos pela primeira vez no final do século XIX, sólidos tubos metálicos aparentes, para dirigir as figuras. O espectador deve ficar consciente de que essas figuras são bonecos que atuam, que é um jogo, uma parábola de nossa realidade, um jogo observado até mesmo por aqueles que representam54.
A partir de então o ator passa a ocupar um lugar na cena do teatro de bonecos. Com funções diferentes e segundo os personagens, ele pode ser de um lado o elemento lógico e natural do teatro de bonecos, (Gulliver no país de Liliput ou o bonequeiro Jean nas ruas de Paris) e de outro, um elemento visível da convenção teatral enquanto animador de bonecos, ponto de partida da animação à vista, e manter relações metafóricas com eles, ou se transformar em matéria para “fabricar” um personagem. Os puristas desconfiam; eles têm a impressão de uma traição da parte de falsos bonequeiros que transformam seus meios de expressão sob pretexto de experimentações teatrais. Outros pensam que trata‐se lá de um problema estético. No colóquio da UNIMA, em 1962, Krystyna Mazur consagra um grande espaço aos elementos plásticos (artificiais) presentes na arte dramática e evoca o recurso da arte dramática contemporânea aos meios plásticos do boneco. Qualificando a convenção do teatro de bonecos de “convenção absoluta”, ela pensa também, que é indispensável abri‐la a outros meios: Ainda que eu me incline diante da “especificidade” do teatro de bonecos, que eu me dê conta de que esta especificidade está hoje gravemente ameaçada no teatro polonês pelo abuso que se faz do ator vivo, da máscara e do objeto, ainda que eu saiba que é esta pequena figura que bate ao ritmo de seu coração e não uma outra forma que o bom bonequeiro dota de sentimento, eu penso, entretanto, que é preciso considerar esta forma de ação teatral como uma forma de ação entre outras e que o lugar do teatro de bonecos na arte de hoje e na de amanhã depende disso. Eis porque me permito tomar um pouco de vosso tempo para essas divagações sobre os amores do boneco e da arte teatral, sobre seus amores com o teatro de máscaras e mesmo com certas correntes da pintura, da escultura , da arte contemporânea. O fato de que o teatro de bonecos, na Polônia, não seja uma criação artificialmente isolada (no sentido artístico), algumas de suas experiências tendo mesmo influenciado outras encenações de teatro (poderia se falar longamente de sua influência sobre o cinema de bonecos e sobre os desenhos animados), é prova de sua evolução. Falar do teatro de bonecos, como de uma disciplina em si, ignorar suas relações com as outras disciplinas que, no entanto, existem, é lançar a arte do boneco num impasse artístico levando‐o cedo ou tarde a sua degradação artística55.
Mazur ilustra bem o clima reinante no seio dos bonequeiros na Polônia, na Tchecoslovaquia e em alguns outros países. Estar aberto a outros campos das artes deve
54 Tankred Dorst. Das Marionettentheater der Gegenwart (O teatro de bonecos do presente). Perlicko‐Perlacko, II, 1958, p. 134‐135.
55 Krystyna Mazur. Os amores da marionete (ou os laços do teatro de bonecos com o teatro dramático – e não apenas) In: Conferência da UNIMA: O Teatro de bonecos e suas relações com as outras disciplinas artísticas. Varsóvia, 19‐24, junho 1962, p. 29.
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ser uma atitude natural para cada artista. Certos teóricos do teatro quiseram fazer desse princípio uma lei, um critério de modernidade do boneco. Os “verdadeiros” bonequeiros se sentiam pegos numa armadilha e adotaram uma atitude intransigente. Que compromisso assumir? Numa reflexão estética, talvez, mas sem que ninguém se engaje sobre a posição do boneco na hierarquia da arte. Harro Siegel dá o primeiro sinal e aparece como exceção. Ele publica o ensaio de Mazur em 1965 e o completa com suas observações: Não se deveria exigir de modo dogmático que o teatro de bonecos mostre apenas bonecos e jamais seu animador humano. Mas é justamente porque recentemente nós temos visto muitas vezes bonecos e atores vivos apresentando‐se juntos, e isso nos mais diversos estilos, (os erros e os exageros próprios à moda não estando ausentes disso, claro), que é preciso assumir essa transformação do real como critério. Se o boneco e o ator servem todos os dois a um todo superior, se eles restam, por assim dizer, no mesmo nível de projeção, então entraremos numa nova e fértil região teatral tanto quanto reconquistaremos um “teatro em si”, fora do tempo56.
Siegel cita exemplos de espetáculos conhecidos onde o teatro de bonecos utiliza o ator ou suas mãos. Favorável ao uso de máscaras e à prática da pantomima, ele evoca os diferentes gêneros dramáticos japoneses como o Nô, o Bunraku e o Kabuki que se enriquecem mutuamente. O isolamento do teatro de bonecos se rompe na medida em que ele entretém relações com as outras disciplinas artísticas caucionadoras de sua evolução. Siegel teria preferido uma certa relatividade, lamentando os erros e os exageros da moda quanto à presença do ator, mas ele foi essencialmente favorável à abertura do teatro de bonecos a outros meios de expressão.
Brincadeiras de crianças
Se os bonequeiros dos anos 50 têm sua fonte no folclore, os dos anos 60 escolhem as brincadeiras infantis como modelo de estilização, estrutura de jogo e fonte teatral. O desenvolvimento do psicodrama, o jogo enquanto fonte da cultura (Homo Ludens de Huizinga) e as pesquisas sobre o folclore das crianças (a enumeração ou a recitação rítmicas) influenciam vários artistas entre os quais o diretor Jan Dorman. Em 1958 ele apresenta no Teatro para Crianças de Zaglebie, na Polônia, O Alfaiatezinho Valente (Krawiec Nietczka), um conto atualizado e interpretado por atores que têm diante de si bonecos e acessórios enquanto signos icônicos de personagens. Eles interpretam seus personagens sem realismo e declamam o texto ao ritmo das brincadeiras infantis.
Arnold Burov, do Teatro de Riga, inspira‐se no universo infantil para sua encenação dos Músicos de Breme, em 1963. O espetáculo acontece numa grande loja onde os atores (os vendedores da sessão de brinquedos) divertem a jovem clientela. Entre cubos delimitando o lugar da ação, personagens representam com máscaras e brinquedos. Eles os trazem sob o braço, falam em seu lugar (um cachorro, um gato, um galo) e executam certos gestos em seu nome. Tudo, neste espetáculo, visa à metáfora. Pistolas de bandido servem de rolha para fechar o barril de cerveja, um pau substitui a
56 Harro Siegel. Schauspieler und Puppenspieler (O ator e o bonequeiro ). In: Puppentheater der Welt, Henschelverlag, Berlim, 1965, p. 24.
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agulha de uma máquina de costura improvisada57. A convenção do jogo infantil serve de trampolim para uma linguagem poética, ingênua e, contudo metafórica no sentido próprio da palavra. Na mesma época, no registro do teatro teatralizado, teatros tchecos fazem tentativas similares e retomam esta convenção onde os atores constróem o espetáculo à vista. Após o Teatro Radost de Brno e o de Liberec, o princípio foi retomado na Tchecoslováquia por Miroslav Vildman, diretor, no Teatro Drak de Hradec Kralove numa divertida tragicomédia Conto Saído de uma Mala (Pohadkaz kufru, 1965). Esse título tornou‐se mesmo simbólico, oriundo simultaneamente do folclore, do jogo infantil e de um elemento cênico, uma mala. Dois palhaços esvaziam uma mala e nela descobrem um conto que eles fazem representar por uma trupe de atores com bonecos de barra – uma estilização elegante de bonecos populares tchecos. Os atores emprestam suas qualidades motoras e vocais a esses bonecos experimentando fisicamente, com eles, uma boa parte dos acontecimentos ora divertidos e agradáveis, ora desagradáveis.
Inúmeros outros teatros seguem essa convenção, mas rapidamente deixam de sentir necessidade de representar as cenas de exposição (uma brincadeira de criança ou um número de clown). Os valores semânticos da representação foram implicitamente modificados e ninguém levantou questões sobre a contribuição artística da animação à vista. E de que ela pudesse mudar a expressão artística do boneco. Para muitos bonequeiros, constatar que existe uma diferença entre dois tipos de animação (à vista ou oculta) basta‐lhes para adotar esse princípio como nova norma da modernidade e praticá‐la. Não existe aí nada de novo no plano da psicologia humana. Felizmente, os anos 60 possuem mais inventores do que epígonos. Eles se encaminham todos para um teatro de meios de expressão variados, conseqüência lógica da modernização do teatro de bonecos. Seria possível fazer remontar essa corrente à vanguarda teatral do início do século, à Pierre Albert‐Birot, Ivan Goll e Enrico Prampolini ou ao teatro de Erwin Piscator?
Os primeiros adeptos
Entre os primeiros adeptos dessas novas convenções, muitos são jovens criadores que se opõem á tradição realista. Nós conhecemos poucos deles porque vivem em países onde as condições sociais não são favoráveis às experiências teatrais e a sua difusão. Na Rússia, o diretor Borys Ablynin demonstra coragem ao se lançar nessa aventura, a dois passos do teatro de Obraztsov que, na época, permanecia hostil a qualquer mudança. Aliás, Ablynin apreciava o trabalho de Mikhail Korolev (Grande Teatro de Bonecos de Leningrado) mas, provavelmente, não esperava ver eclodirem idéias mais audaciosas em Moscou. As idéias de Ablynin se manifestam na cena com a Cotovia de Jean Anouilh (1964) e nas declarações de seu mais próximo colaborador, o cenógrafo A. Sinieckii: Eu sonho com um teatro poético. Quero que nossas reflexões sobre a vida não sejam terrivelmente prosaicas, nem empiricamente mesquinhas, que viva nelas uma grande idéia poética generalizadora. Uma idéia metáfora, uma idéia fulgurante. Não creio no teatro que seja um reflexo da vida ou uma cópia da vida. Não creio na verossimilhança realista,
57 Henryk Jurkowski. Leningrado – Moskwa (Leningrado – Moscou) Teatr Lalek, 1964, no. 30, p. 18.
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tenho medo de que a idéia se perca em detalhes derrisórios e cansativos. Também não creio que de um milhar de detalhes realistas, por mais que sejam verossímeis e verdadeiros achados, possa nascer, jorrar e iluminar uma verdadeira idéia poética58.
A poética da Cotovia repousa sobre os atores, máscaras e bonecos de diferentes tamanhos, recobertos de papel jornal, manipulados à vista ou ocultos. O resultado é um espetáculo rico e simbólico, comportando inúmeras cenas cujas perspectivas mudam; ora em plano aproximado como o diálogo entre Joana d’Arc e o Capitão montados a cavalos lançados a galope, ora na fuga de uma paisagem representada por um desfile de tropas armadas sob a forma de pequenos bonecos colocados na ponta dos dedos. Uma forte tensão dramática subentende o conjunto, como a cena do julgamento final da donzela, onde um grupo de personagens disformes e mascarados cercam a heroína e contrastam com sua palidez de atriz.
O cronista da Vietchernaïa Moskva faz uma crítica elogiosa dessa jovem trupe, que consegue exprimir perfeitamente a tensão dramática da peça, transformada num “hino à liberdade de pensamento e à coragem e não recua diante de nada, nem mesmo diante da morte59.
Essa opinião se refere mais à peça de Anouilh que ao espetáculo de Ablynin. Entretanto, a interpretação desse espetáculo não foi tão fácil. Bonecos e máscaras, confeccionados em papel machê, fazem alusão à atualidade dos jornais. Ao aceitar essa aproximação, compreende‐se que se trata da atualidade cotidiana e, querendo reforçar o efeito, Ablynin faz seus atores lerem LʹHumanité. A palavra “a humanidade” combina com o sentido do espetáculo mas se identifica imediatamente ao cotidiano do partido comunista francês O título do jornal salta aos olhos dos espectadores e complica o sentido hermenêutico do espetáculo. Questionado a esse respeito, Ablynin declara que era pura casualidade. Era preciso um jornal francês e L’Humanité era o único que se conseguia encontrar em Moscou. Eu não podia acusá‐lo de ter dificuldades materiais para produzir seu espetáculo, mas foi, na época, uma boa lição de semiologia teatral para todos os bonequeiros. Cada elemento do espetáculo possui um sentido definido e só os espectadores (e os artistas) carecendo de conhecimento não percebem o “perigo” escondido no acaso.
O repertório dramático em jogo: Michael Meschke
Na suécia, Michael Meschke evita esse perigo e busca sua inspiração no repertório do teatro dramático (Hoffman, Brecht, Kleist e Giraudoux). No que respeita às doutrinas artísticas, podendo escolher livremente seus textos e seus meios, ele põe em cena, em 1964, Ubu Rei (cenografia: Franiszka Themerson). Uma dupla confrontação, de um lado, entre um texto engajado e bonecos (planos e muito desenhados), de outra parte, entre bonecos e atores‐mímicos (entre eles o enorme personagem do grotesco Ubu, papel criado por Allan Edwal e retomado pelo próprio Meschke). O domínio do
58 Natalia Smirnova. Iskusstvo igraiouchtchikh kokol (A arte da representação com bonecos) Iskusstvo, Moscou, 1978, p. 177.
59 Natalia Smirnova. V teatre kokol (Ao teatro de bonecos). Iskusstvo, Moscou, 1978, p. 11.
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tirano sobre seus súditos repete o terrorismo do homem – um mímico – sobre esse mundo de formas gráficas, desdobrando assim o efeito de distância do grotesco existente. Themerson, inspirado nas ilustrações de Jarry, cria um rico universo de criaturas planas, esboçadas a grandes traços de lápis preto sobre um fundo branco. A maioria delas não são animadas, mas se deslocam alinhadas (para o desfile das tropas), submissas ao jogo do ator como na cena de tortura. Ubu veste uma roupa branca, como todos os personagens. Sobre seu ventre está traçado um círculo concêntrico preto: um alvo vivo. Seu rosto, pintado de branco, é acentuado por uma enorme boca voluptuosa. Ele se agita desajeitadamente entre esses personagens que só dependem dele. Sua concupiscência grotesca e desajeitada se revela eficaz e lhe permite chegar a seus fins, o que a torna verdadeiramente aterrorizante. O uso da pantomima, em perfeita harmonia com o texto e o mundo gráfico, cria um espetáculo admirável, num estilo não‐mimético, entretanto, esteticamente e intelectualmente engajado.
Como se dizia, de brincadeira, no Festival de Bucareste, em1965, Meschke representava o “teatro branco” em oposição ao “teatro negro” theco. Meschke situa‐se fora da moda da época e experimenta suas próprias convenções. Ele sugeriu discretamente aos bonequeiros que a presença do ator só enriquece o espetáculo por contraste com um mundo plástico de traços formais e expressivos. Werner Kliess, do Theater Heute, descobre no espetáculo de Meschke, uma abordagem nova do boneco: Não é a riqueza de idéias, nem a habilidade com a qual ele tira partido das diferentes convenções que determinam o caráter revolucionário do teatro de Meschke, mas sua atitude soberana para com o boneco. Enquanto os bonequeiros estão, de modo geral, fascinados pelo boneco e se contentam em mostrar sua beleza ou a de uma história que lhe corresponde, Meschke considera‐o um material – um meio de expressão60.
Sem desejo de subtrair nada ao julgamento de Kliess, é necessário precisar que a evolução do teatro de bonecos nos anos 60 se desenvolve graças à energia criativa de toda uma geração. Se a via escolhida por Meschke é original, muitos outros criadores, em toda a Europa, também tiveram idéias importantes.
No cruzamento dos meios de expressão
Andrzej Dziedziul, diretor e ator polonês cria sob o título de A Situação do Destino de Fausto (1968), um monólogo inspirado em certos temas de Marlowe e de Goethe. Num palco pequeno, um enorme globo terrestre indica um escritório de trabalho. Dziediul encarna Fausto. Mefisto é um boneco ventríloquo do qual um ator extrai os sete pecados capitais. O globo é então dotado de uma cabeça plantada encima de um frágil pescoço, metáfora da perturbação que nele se produz. A mulher é a partir daqui seu único interesse exceto quando Fausto sobe a montanha onde assiste com Mefisto à noite de Walpurgis. Uma dezena de figuras suspensas na beira de um guarda‐chuva gira como um pião e representa a dança endiabrada das bruxas. Na cena final, Fausto conhece novos embates amorosos. Ele acaricia o manequim de Margarida (o globo e a
60 Marionetteatern (programa aniversário)Theater Heute, Estocolmo, 1968, p. 30
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cabeça), tenta livrá‐la de seu espartilho e se atrapalha com os elementos do manequim. Nasce assim uma nova imagem na qual Fausto enredado nos fios, se afasta de Margarida cujo ventre se abre para deixar aparecer
o diabo. Mefisto conduz esta estranha equipagem puxada por Fausto. A metáfora final está de acordo com a tradição do Fausto da Renascença, cujos aspectos misóginos não se podem negar.
Os meios de expressão modernos e a linguagem teatral metafórica permitem todas as visões subjetivas da obra. O valor emocional e filosófico de um espetáculo dramático não dependem unicamente da linguagem teatral e material. Ele consiste em exprimir as experiências humanas, sem separá‐las dos meios de expressão do homem ou do boneco. A expressão da linguagem faz parte integrante do conteúdo da mensagem, ou constitui a própria mensagem. Isso estabelece a preponderância do teatro de bonecos de meios de expressão variados sobre o teatro de ator: sua mensagem pode ser muito mais rica e com muito mais nuances. A Situação do Destino de Fausto, representada por um único ator que manipula todos os acessórios, faz o subjetivismo da mensagem chegar ao extremo. Ele pode transmitir experiência e amargura pessoais.
Um outro jovem diretor, Karel Makojn, segue na mesma direção. No final dos anos 60, ele funda um teatro em Praga, o Vedene Divadlo. No final de sua formação, ele se rebela contra o teatro de Estado, opõe‐se ao mimetismo do teatro de bonecos homogêneo e reivindica um teatro de bonecos provido de contrastes e de justaposição de diferentes elementos. Em 1968, ele reúne em torno de si um grupo de estudantes da AMU, bonequeiros e atores, que sobreviveram à invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do pacto de Varsóvia. Em razão dessas difíceis condições políticas, seu teatro só durará duas estações. Makojn recebeu o apoio dos críticos mais importantes, entre eles, o de S. Machonin que expõe claramente os motivos do surgimento desse teatro: O que caracterizava até o momento a evolução do teatro de bonecos tcheco, era a construção de diversas teorias que se exprimiam geralmente sob forma de proibições. Foi contra essas normas negativas que se levantou o Vedene Divadlo, e portanto, contra o fato de se confinar o boneco ao espetáculo para crianças, contra idéias datadas do início do século, contra essa visão do teatro de bonecos que faz dele uma instituição ética e não estética, e contra sua falta de interesse pelas correntes artísticas modernas61.
O Vedene Divadlo monta peças que não figuram no repertório clássico do teatro de bonecos, como O Mal‐Entendido de Albert Camus, O Jardim Misterioso de F. E. Burnet, Hop, Signore! de Michel de Ghelderode. Na peça de Camus: duas estalajadeiras – a mãe e a filha – matam seus clientes atraídas pelo lucro. Um belo dia elas matam sem saber seu filho e irmão que volta da guerra. O diretor preocupa‐se com a interação entre diferentes elementos: ator e boneco, entre o mundo natural do homem (presente no jogo do ator vivo) e o de seus mecanismos, do automatismo e da determinação que se
61 Wlodizimierz Felenczak. Teatry bez sceny:Vedene Divadlo (Teatros sem cena: o Vedene Divadlo)Teatr Lalek, 1970, no. 4, p. 39.
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exprimem num boneco estático. Wlodzimierz Felenczak, diretor e amigo de Makojn escreve: O espetáculo se desenvolve em três planos que se entrecruzam:
‐ o plano poético dos comentários filosóficos do autor, que vamos descobrir sobretudo no nível oral do espetáculo.
‐ o plano da realidade nua, de um naturalismo de feira. Jean arrota bebendo cerveja. Mulheres afiam uma faca, cortam a cabeça de um pombo e o depenam, elas observam “o homem”, lavam suas mãos ensanguentadas.
‐ o plano mítico dos bonecos. Marionetes imensas de “oito quilos”, com cabeças grosseiras, articulações aparentes e gestos elementares, sempre os mesmas, dirigidas por marionetistas à vista. Não há como a marionete para alcançar uma tal qualidade expressiva num gesto, um olhar, uma expressão tão perfeita da tristeza no movimento quase humano de um braço que se abaixa, numa agitação desesperada, no contraste entre as marionetes e os objetos com os quais os homens acabam de representar 62.
Os outros espetáculos de Makojn têm qualidades similares. Ele desenvolve a função simbólica e mitológica da atuação do boneco, uma proposta que ultrapassa inteiramente a consciência estética e cultural dos bonequeiros, particularmente na Tchecoslováquia.
Uma teoria da metamorfose
Estabelecer uma primeira síntese teórica do que se passava no mundo do boneco tornou‐se uma necessidade urgente. Às mudanças pregadas pelas teorias singulares de Craig, Brecht depois e Artaud, faltavam, mesmo intuitivamente, a elaboração de uma reflexão específica para a arte do boneco. Percebendo no fenômeno do cruzamento do teatro de atores e do teatro de bonecos, um “terceiro gênero”, tendendo para um teatro “teatral”, eu avançava as seguintes idéias: A desmistificação da máquina teatral, os procedimentos revelados ao espectador, os inúmeros meios de expressão, de todas as origens, tudo isso tende há alguns anos para um “terceiro gênero” e mostra que o teatro de bonecos clássico aparentemente teve sua época (...) O plano de atuação: o do ator vivo e o do boneco, tais são seus principais atributos. A noção de super‐marionete, no teatro de bonecos, há muito tempo está ultrapassada, está, de algum modo desvalorizada63.
Depois disso eu me interrogava, para saber em que medida esse terceiro gênero podia se inscrever na continuidade do teatro de bonecos. A desmistificação poderia estar na continuidade, pois ao quebrar a sacrossanta via mágica do boneco, ela estaria buscando quebrar a da materialidade e corporeidade do ator vivo? Numa palavra, a reforma do teatro de bonecos punha em primeiro plano o jogo do homem, portanto o do ator. Em 1966, eu pensava que a despeito do impulso impetuoso do teatro de bonecos aos diversos meios de expressão, o teatro de bonecos tradicional, domínio 62 Wlodizimierz Felenczak. Teatry bez sceny:Vedene Divadlo (Teatros sem cena: o Vedene Divadlo)Teatr Lalek, 1970, no. 4, p. 40
63 Henryk Jurkovski. Perspektywy rozwoju teatru lalek (As perspectivas de evolução do teatro de bonecos). Teatr Lalek, 1966, no. 37‐38, p. 3.
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insubstituível do milagre da animação da matéria, ainda tinha chances de sobreviver e de conservar sua glória. Não deduzam disso que eu não apreciava os valores desse terceiro gênero enquanto gênero dramático dando origem a figuras da linguagem poética. Em 1971, eu concluía, com muito otimismo, uma conferência que dava em Bochum: Quando observo a evolução do teatro de bonecos clássico e a do teatro de bonecos moderno, sempre me espanto de que ainda se possa descobrir tantas formas novas, nesses dois gêneros. Admiro a inesgotável riqueza desses dois gêneros artísticos. São belos e variados como só a vida pode ser. Tenho às vezes o sentimento de que graças à esses gêneros artísticos nós entramos no campo do infinito64.
Esse otimismo foi um sinal, para a maioria dos teóricos, de que esse teatro de bonecos de meios de expressão variados tornava‐se norma. Mas o futuro do boneco, em sua forma primeira (figurativa e animada) permanecia sempre atual. Lenora Chpet, no simpósio de Lodz em 1967, exprime a inquietação geral quanto ao futuro do teatro de bonecos diante da forte aceleração das inovações que corriam o risco de pôr em causa seus fundamentos. Nós transformamos, diz ela, o intérprete em objeto, em acessório, em elemento de cenário, enquanto conseguimos fazer do cenário um intérprete. Para terminar, fragmentamos também o ator, tiramos‐lhe seus principais meios de expressão, seu corpo, seu gesto, sua aparência, seus olhos e sua mímica, nós o privamos mesmo de sua voz confiando essa tarefa a aparelhos sonoros e ao gravador. Levamos o efeito de distanciamento do ator até limites que o próprio Brecht jamais teria imaginado. Poderíamos admitir que é exatamente a isso que nós chamamos teatro contemporâneo. Tudo já foi feito e se poderia acreditar que não há mais nada a analisar nem a destrinchar. O que nos resta, pois, a fazer? Seria preciso remontar todas as peças como um jogo que uma criança desmontou. (...) Nós já conhecemos todo o nosso alfabeto e chegou para nós o momento de falar algo mais, de dizer coisas mais importantes. (...) Deveríamos trazer idéias. O teatro de bonecos, o teatro de acessórios, o teatro de figuras ou o teatro de imagens visuais e materiais – aliás, chamem‐no como quiserem – deveria ser um meio para exprimi‐las65.
Lembrar que os meios de expressão devem ser um meio para exprimir idéias vinha bem a propósito. Os bonequeiros, fascinados durante dezenas de anos pela especificidade do teatro de bonecos mesmo quando eles o tinham ultrapassado, indo às vezes até a fazê‐lo voar em pedaços, mantinham sua atenção concentrada nos meios de expressão, Seria injusto, face ao conjunto da profissão dizer que todos os artistas compartilhavam desse interesse. No Ocidente, os bonequeiros tentaram encontrar seu lugar nesse novo contexto sem abandonar seus hábitos de jogo individual, ou em família. Eles não podiam utilizar tantos meios nem atores quanto os teatros dos países orientais, mas eles podiam sempre mudar a estética de seu espetáculo e resignar‐se a imitar os seres vivos em favor de um jogo poético; as criações de Joly ou de Lafaye são um exemplo disso.
64 Henryk Jurkovski. Die Verbindug von Menschen. Puppen und Masken auf der Bühne als philosophische Metaphor (Os elos entre os homens, os bonecos e as máscaras sobre a cena enquanto metáfora filosófica). IN: A arte do Boneco da nossa época. Estudos da teoria do boneco. UNIMA. Varsóvia, 1972, p. 31.
65 Lenora Chpet. Wypowiedz... (Declaração...) Teatr Lalek, 1967, no. 41‐42, p.. 57
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A matéria entra em cena
Outros, na França, como Claude e Colette Monestier, foram os primeiros a rejeitar a estética do teatro clássico criando em torno de 1970 o Teatro no Fio. Abandonando a empanada, eles substituem primeiro a beira da empanada e a empanada por um fio estendido horizontalmente a dois metros acima do chão. Nesse espaço, animando à vista bonecos e figuras criadas com todo tipo de materiais, eles tornavam‐se os protagonistas de um teatro material. A intriga de cada peça enquanto tal e o processo do nascimento da realidade teatral tornaram‐se, desde então, o tema dos espetáculos dos Monestier e de muitos bonequeiros da época. Após ter aplicado esse princípio, eles ficaram fascinados pelas qualidades do papel, material de uma elegância sem par, que se dobrava a sua imaginação tomando as formas traçadas pelas tesouras e participando da narrativa poética das aventuras dos heróis. Assistiu‐se ao triunfo do papel que permanecerá seu material favorito. Garganteatro, para adultos, e O Pequeno Gargântua, para crianças a partir dos temas de Rabelais, narram as aventuras de Gargântua com enormes rolos de papelão ondulado. O papelão lhes permite criar personagens, cidades, o mundo inteiro. Eles ali descobrem, em harmonia com o tema da peça, uma expressão erótica particular. Um rolo de papelão ondulado para embalagem delimita o espaço de cena, escrevia Annie Gilles, sendo ainda utilizado como um ou vários bonecos. Basta então desenrolar o papelão e depois enrolar as duas extremidades para formar duas colunas, basta que uma das colunas receba na parte superior uma dupla almofada rosa para “virar” Gargamelle e que a outra seja completada com um balãozinho de pele de intestino animal judiciosamente colocado para que ela represente Grangousier. É assim que os bonequeiros podem começar a revelar o caráter espetacular dos temas sexuais da obra, que uma elocução não conseguiria sublinhar com tanta eficácia, e que seria inaceitável com outros atores que não fossem o boneco reduzido a alguns signos engraçados e pertinentes66.
Não é a primeira vez que os temas eróticos aparecem aqui, com distância, ironia e poesia, mas essa capacidade está ligada aos limites do realismo do ator. O boneco, o objeto e a matéria trazem um elemento de distanciamento imediato quando ultrapassam seus limites e, em particular, quando os bonequeiros representam à vista. Os Monestier serão considerados, na França, como os que quebraram o tabu da empanada e mostraram que a matéria de que é confeccionado o boneco, possui, por si só, uma tremenda força expressiva.
O distanciamento
Inúmeros espetáculos à vista lhes sucederão, até o momento em que reinará uma nova geração de artistas que só conhecerá esse princípio de jogo. Esse tipo de espetáculo revela o manipulador, claro, mas não unicamente. Porque se o animador pode ser assimilado a um autor, àquele que dá a vida e a palavra, ele pode ser assimilado a um contador, a um narrador. O jogo à vista anuncia a chegada do teatro
66 Annie Gilles. Pequeno organum para o boneco. Centro Departamental da Documentação Pedagógica das Ardennes, Charleville‐Mézières, 1976.
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narrativo. Esse teatro remonta a um passado muito longínquo e não é preciso ligá‐lo apenas ao teatro épico de Brecht. Na Ásia como na Europa, existem inúmeros contadores ambulantes que ilustram suas histórias com bonecos, desenhos (como os Mooritaten na Alemanha), ou figuras esculpidas (os retábulos na França e na Espanha, os raree show na Inglaterra). Eles associam palavras e imagens, que se completam umas as outras, e geralmente não recorrem ao distanciamento que constitui a base épica do teatro de Brecht. É mesmo útil precisar o sentido que se dá, às vezes abusivamente, a sua noção de efeito de distanciamento (Verfremdungseffekt). De acordo com Joachim Fiebach, um teórico do teatro: esse efeito de distanciamento aparecendo nas obras de Craig, Tairov e de Meyerhold, se exprime pelo contraste entre o ator e seu papel, pelo lugar da máscara, na acentuação de certos gestos, na introdução de material de atualidade, na separação do texto e do gesto, nas citações de poemas e de personagens, no fato de que o ator se dirige diretamente ao público67.
É preciso, pois, tomar esse termo num sentido mais geral, como uma ruptura da ilusão cênica, como uma advertência ao fato de que os acontecimentos não são reais e que a ação não é uma ficção. Essa acepção está bastante afastada da de Brecht. A ruptura com a ilusão cênica, ele a faz para provocar um olhar diferente sobre a realidade. Esse teatro deve sugerir uma interpretação ideológica e a ilusão é a condição sine qua non de todo distanciamento que não existe sem ilusão. Um teatro que rejeita qualquer ilusão pode reivindicar o título de teatro de anti‐ilusão, mas ele perde então a possibilidade de recorrer ao distanciamento. Posto em ação, o distanciamento só pode ser “recolocado à distância” por um retorno da ilusão. Porque para que haja distanciamento, é preciso um contraste, uma oposição. Por isso sustento que o teatro de bonecos narrativo que associa unicamente narração e imagens sem buscar o contraste, não tem nenhuma relação com as concepções de Brecht.
Dorst destacava a vida artificial do boneco e a identificava com o conceito de Verfremdungseffekt, mas ele se engana ao procurar esse “efeito de distanciamento” no boneco. O distanciamento brechtiano é um efeito temporário e a manipulação à vista uma situação permanente privada desse momento de surpresa tão apreciado por Brecht. O “efeito de distanciamento” no teatro de bonecos tem um outro aspecto, ligado ao paradoxo evocado pelo bonequeiro Peter Waschinsky: Voltemos ao “distanciamento” no teatro de bonecos. Ele lhe é imanente, em princípio sempre presente. Os bonecos não passam de materiais, retomemos o exemplo da peça de Tchekov (Waschinsky evoca aqui a encenação de A Bruxa) Os personagens da peça são muito realistas. Os movimentos e a fala devem, pois, ser muito “naturais”, no sentido humano do termo. Que significa “natural” em se tratando de bonecos? Simplesmente que eles se comportam como matéria inerte, isto é, que permanecem totalmente inanimados, ou que no máximo eles executem simples movimentos pendulares. Ao obrigar do exterior essa matéria a se comportar de uma maneira similar à dos humanos, ela se
67 Joachim Fiebach. Von Craig bis Brecht. Studien zu künstlertheorien in der ersten Hälfte des 20,. Jahrhunderts. (De Craig a Brecht. Contribuição às teorias na primeira metade do século XX). Henschelverlag, Berlim, 1975, p. 299.
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torna estranha a ela mesma, é a isto que chamamos distanciamento. O boneco mais naturalista é, visto sob esse ângulo, o que se distancia mais 68.
Trata‐se aí apenas de um aspecto do jogo entre ilusão e realidade. Tem‐se a impressão de que a maioria dos artistas apreciam mais a realidade da criação que a ilusão da realidade. Essa querela sobre a maneira de representar a realidade no teatro tem um caráter ideológico. Ao lutar contra uma realidade cênica de ficção, os modernistas protestam contra essa visão burguesa que designa à arte a tarefa de perpetuar a visão do mundo estabelecido. Admitir que a arte seja concebida como sendo uma obra autônoma, artificial, abala essa visão e dá ao artista poderes extraordinários para criar sua própria imagem da realidade, imagem autêntica, como qualquer expressão subjetiva. A discussão diz respeito, de fato, à concepção de mundo e à autenticidade da arte. É difícil dizer em que medida os bonequeiros dos anos 60 vêem sua participação na metamorfose formal do teatro de bonecos como um engajamento ideológico. Tem‐se na verdade a impressão, quando se observa o meio artístico da época, de que a inovação é percebida como a expressão de uma originalidade criadora, ou no melhor dos casos, como uma tentativa de adaptar os meios de expressão aos novos temas que fornece a realidade. Isso se compreende dado que as discussões filosóficas sobre as concepções da realidade do início do século tomam novas formas e se manifestam, em geral, em outros campos da arte. Ao recuperar seu atraso, o teatro de bonecos se beneficia assim nos anos 50 e 60, do triunfo de certas idéias modernistas, mais formais que ideológicas.
68 Peter Waschinsky. Teatro de bonecos entre ilusionismo e distanciamento. Théâtre Public. “O Teatro de Bonecos”. Revista trimestral publicada pelo teatro de Genevilliers. No. 34‐35, agosto 1980, p.58.
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ANIMAÇÃO E SINERGIA
A animação à vista, a diversidade dos meios de expressão, a nova poética do teatro de bonecos estabelecida em prejuízo das convenções tradicionais, atrai cada vez mais artistas, de modo que os espetáculos de manipulação à vista vão dominar. Estas novas formas estão tão presentes que modificam a concepção do teatro de bonecos e sua definição. A análise semiológica do teatro permite redefinir os elementos constitutivos de um personagem cênico, apresentação icônica do personagem, responsável de sua energia motriz e de sua expressão vocal.
Em lugar de se concentrar no boneco enquanto personagem virtual, trata‐se agora de privilegiar as relações que existem entre os signos dos personagens e as forças que os animam. Eu afirmava em 1978: as relações vibrantes entre o boneco e as fontes físicas de sua energia motora conduzem a mudanças importantes na percepção do boneco. Num dado momento, o equilíbrio da dependência entre o boneco e suas forças motrizes mostrou‐se mais durável que os elementos deste equilíbrio. O equilíbrio se mantém mesmo se os elementos mudam. O boneco, principal elemento distintivo do teatro de bonecos, também sofreu mudanças. Mais uma prova de que a natureza do teatro de bonecos se situa no nível das relações. 69
Do bom uso da tradição
A passagem de uma poética a outra se fez espontaneamente para os bonequeiros da nova geração. Os artistas presos aos valores tradicionais solicitam um apoio intelectual e afetivo para evoluir. Assim, Recoing ilustra a perfeição este período de transição. Ele indica que as fontes de um teatro moderno, saído das idéias da vanguarda do entre guerras, não concernem nem o teatro de bonecos para crianças nem o teatro popular. Ele considerava que certos elementos da tradição, como o espaço cênico limitado do boneco tradicional e a perfeição técnica da animação de seu precioso boneco, podiam ser o ponto de partida de um novo teatro. Essa convicção o anima até 1970, data da criação de sua nova companhia, o Teatro de Mãos Nuas e de seu primeiro espetáculo: La Ballade de Mister Punch (O Passeio do Sr. Punch), de Paul Éloi (Éloi Recoing, 1976) dirigido por Antoine Vitez.
Terá sido sob a influência de Recoing que Vitez assumiu a opinião de que o boneco representa a violência, que ele não tem limites, que ele mata ou morre? Aos olhos de Vitez, Punch, que é o mal absoluto mas um mal feliz, é um excelente exemplo. Como o mundo que o cerca é mau, ele toma continuamente sua revanche, vinga‐se em seu próprio nome e no de todos nós. Vitez experimenta as qualidades de objeto do
69 Henryk Jurkowski. Jezyk wspólczesnego teatru lalek (A linguagem do teatro de bonecos contemporâneo). Teksty, no. 6, 1978, p. 63.
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boneco moderno. Este conflito entre o universo do boneco tradicional e a identificação do boneco com um objeto saído da sociedade de consumo é revelador. Vitez experimenta alguma dificuldade em escolher, pressentindo que o boneco tradicional, ligado ao mito, ainda tem muito futuro pela frente. Ele se interroga sobre as chances de um teatro mítico que respeite os princípios da arte tradicional: a empanada e seus bonequeiros invisíveis.70 Seu fascínio pela tradição o reaproxima de novo de Recoing para O Passeio do Sr. Punch, de Paul Éloi, onde o autor imagina confrontar Punch a uma nova época. Trata‐se da história de um bonequeiro (Recoing, talvez?), que percebe o mundo através da personalidade de seu herói. Ele deixa a empanada e se instala num apartamento onde ocupa simbolicamente o espaço e se desloca, de um móvel a outro, com seu boneco. Punch não perde nada de sua brutalidade; ele é cruel, absurdo e anarquista, mas a absurdez de nossa época faz dele um super‐homem vingativo. Esse espetáculo é uma visão contemporânea da comédia “puncheana”!
Qualquer criador que experimente uma inclinação pela reflexão estética deve estudar a natureza do teatro sob a forma de um espetáculo teatral. Em 1984, Recoing se lança no debate sobre a natureza ontológica do teatro de bonecos com Manipulsations (Manipulsações) de Paul Éloi. Um espetáculo que revela ao público a técnica do teatro de bonecos e seu aspecto mítico expressos nos laços recíprocos entre animadores e animados. As lembranças de um bonequeiro profissional são o ponto de partida da peça. Os bonecos sentem, quase fisicamente, a presença de seu mestre (ainda que este não passe de uma sombra). Palavra mágicas como “polichinelo” ou “rei zarolho” dão vida a personagens e imagens. Mais do que num mundo imaginário, é num mundo estereotipado que estamos, onde a gama dos meios utilizados é relativizada e desmitificada por aforismos e trocadilhos irônicos. Utilizados, os bonecos de trabalho, sem traços distintivos, quase idênticos, representam metaforicamente uma humanidade uniformizada. A revelação dos segredos e da técnica do teatro de bonecos é aqui uma nova metáfora das dependências que existem entre os humanos. (Pode‐se então designar este teatro como auto‐temático?). Recoing sugere mesmo, que se seu espetáculo conta uma história de aparência filosófica, ele põe o acento na problemática do teatro, o que não o impede de continuar fiel a sua concepção: o teatro é uma empresa comum onde as tarefas são distribuídas entre diferentes profissões. Esta atitude, legada por Baty, é rara entre os bonequeiros do Ocidente, enquanto se mantém uma regra no Oriente.
Um mestre da metáfora: Josef Krofta
Os jovens artistas dos anos 70 não sofreram este momento de transição entre clássico e moderno pois a mudança já tinha se efetivado. Os artistas do teatro Drak, de Hradec Kralové, na Tchecoslováquia, dela usufruíram. Fundado e dirigido em 1958 por Jan Dvorak, o teatro Drak escapa do realismo socialista e desenvolve um repertório
70 A alma e “a parte pelo todo”, entrevista com Antoine Vitez. Théatre Public. “O teatro de bonecos”. Revista bimestral, publicada pelo teatro de Gennevilliers, no. 34‐35, agosto‐setembro, 1980, p. 72.
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romântico com a marionete tcheca. Em 1971, Josef Krofta inicia‐se como diretor no Teatro Drak. Ele começa por estudar as capacidades expressivas do boneco, depois experimenta o teatro de objetos antes de se ligar à simbólica dos meios de expressão contemporâneos. Todas as suas obras surpreendem, ultrapassam‐se umas às outras e rivalizam em maturidade por suas inovações formais, pela capacidade de invenção de Krofta e seu engajamento humano. Ele se torna assim um mestre inconteste da metáfora.
A obra mais marcante de seu primeiro período foi Enspigl (1974) com uma notável cenografia de Frantisek Vitek. Ela eleva a poética do teatro de bonecos clássico a um nível muito alto e integra a ele a animação à vista – utilizada sempre com fim artístico preciso, mesmo se esse tipo de manipulação reenvia à criação in statu nascendi. Ele põe o acento sobre o jogo – ingênuo e extravagante – dos atores ambulantes. O espectador assiste à história de Till, o Esperto, e admira a habilidade dos atores manipulando os bonecos e ocupando‐se ao mesmo tempo dos cenários, dos instrumentos de música primitivos e da iluminação. O teatro tem a forma de um pequeno retábulo (à imagem dos retábulos religiosos) com painéis esculpidos sobre temas laicos. Os porta‐painéis do “retábulo” oferecem inúmeras possibilidades espaciais, à frente e no interior da cena. Mudanças simples permitem fazer surgir os muros de uma cidade, uma praça, uma hospedaria ou o interior de uma igreja com raios de luz filtrando‐se através dos vitrais. Os bonecos, belos e esculpidos em madeira, são manipulados por varas e fios. Dois atores, acima desse teatro de madeira, interpretam o texto e manipulam todos os personagens. O cômico dos acontecimentos rivaliza com o da “cozinha” teatral. Os atores, Matej Kopechy e Vera Ricarova, representam ao mesmo tempo seu papel de atores, o de atores do teatro ambulante e entram psicologicamente na pele de cada personagem. Todos os meios postos em obra contribuem para fazer passar a mensagem da peça, resumida pela apoteose do herói popular, Till, o Esperto; o triunfo do amor sobre as intrigas burguesas.
Após um tal sucesso, o teatro prossegue suas pesquisas sobre o espaço cênico. Em Cinderela (Popelka, 1975), a ação se desenvolve num enorme bufê compreendendo vários “locais” que formam o cenário. A Bela Adormecida (Sipkova Ruzenka, 1976), baseada em música de Tchaikóvski, passa‐se nas coxias de um grande teatro. Durante um verdadeiro espetáculo, os dançarinos deixam a cena e os bonecos fazem incursões para representar sua própria versão dos acontecimentos com uma energia viva e muito humor. Com essa fórmula do teatro no teatro, o Drak atinge a perfeição absoluta.
Jan Dvorak, diretor artístico do teatro, inquieta‐se por ver o sistema político limitar o teatro a temas clássicos ou populares. Os grandes temas humanistas estão interditos. O que não foi realizável na Tchekoslováquia em Hradec Kralove, fez‐se na Polônia onde a margem de liberdade era maior. Krofta chegou ao teatro de bonecos de Poznan, em 1976, para montar Dom Quixote. Ele próprio faz a adaptação e conserva todos os motivos populares do romance, inclusive a cena do “Retábulo de Mestre Pedro”. Os atores estão com roupas de época e às vezes se servem de bonecos como signos de personagens ou como duplos. O espectador interpreta este universo de signos desintegrados segundo sua vontade. A cena mais representativa é a da flagelação de Dom Quixote: o Valete dá bastonadas num banco vazio enquanto um ator, Dom
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Quixote, se torce de dor. Um outro quebra os membros do boneco de Dom Quixote e o último lança gritos de dor. A imagem cênica é assim completamente atomizada, o que não deixa de lembrar as tentativas feitas pelos artistas plásticos e reforça a idéia condutora do espetáculo, a de julgar a loucura do cavaleiro da Triste Figura, revelada na cena da destruição da empanada de Mestre Pedro. Mas atenção! Dom Quixote enquanto espectador é acorrentado, de medo que ele não viole uma vez mais a lei. Preso a uma cama de ferro, a guisa de prisão, na duração de O Rapto da Bela Melisande, o Dom Quixote de Cervantes voa ao socorro dos amantes ameaçados pelos Mouros. Nosso herói quer fazer o mesmo, ele arranca seus grilhões para sair em socorro dos amantes em perigo, prova de sua loucura crescente, mas também de sua natureza humana, em sua versão romântica.
Cada espetáculo de Krofta traz soluções formais e cênicas únicas. Enfim, Unicum (1978) é uma obra maior, próxima dos happenings revolucionários russos, e inscrita no universo do circo. O público assiste a cenas reais da vida do circo “um pequeno teatro do mundo” com seus ensaios, seus espetáculos e seus conflitos com a direção. As pessoas do circo utilizam bonecos e manequins que lhes servem para os desfiles cênicos. Apesar de sua perfeição cômica, eles têm uma importância secundária. Nadejda, uma acrobata joga um papel enigmático. Ela tem a aparência de um boneco, mal se mexe, e jamais é animada. Entretanto, todas as pessoas do circo têm os olhos fixos nela, fazem referência a ela, todas as suas esperanças se prendem a ela. Ela é seu único sustentáculo moral e vai representar a promessa da vitória quando eles se revoltarem. Em suma, Nadejda não é um boneco, mas um ídolo. Ela encerra um duplo significado. Oscila antes de tudo do mundo revolucionário (aqui ligado à Revolução de Outubro, pois a peça foi apresentada por ocasião de seu aniversário) para o mundo metafísico; a Esperança (Nadejda) não existe como um fenômeno racional, mas como algo misterioso.
Krofta redefine as leis fundamentais da animação. O boneco só pode jogar seu papel se o público aceita a idéia de que ele seja vivo. Para analisar suas funções, ele retorna à Pré‐História onde o animismo domina. Krofta, por intuição, retorna ao mundo dos ídolos, dos fetiches e dos talismãs. O boneco nasceu nesse mundo. Historicamente, perdendo seu valor sagrado, ele desenvolve suas funções de feira popular, depois entra no teatro, se paramenta do estatuto de sujeito teatral, e aparentemente o abandona hoje, para voltar a ser objeto. O animismo do objeto, um boneco objetivado por dezenas de experiências teatrais, é assim posto em cena. Krofta atribui‐lhe um papel de ídolo e o faz viver um novo ciclo cultural. Essa análise ontológica pode nos fazer acreditar que esse espetáculo permite a Krofta afirmar que a natureza do teatro de bonecos está a priori definida. Bastaria, eventualmente, perenizá‐lo através de novas convenções ou abandoná‐lo em proveito de outros meios, como o objeto, por exemplo. O Drak permanece fiel ao boneco figurativo e seu teatro é essencialmente constituído de bonecos e de atores escolhidos de acordo com o repertório, para tirar proveito de um ponto de vista poético, metafórico, marcado por fortes associações culturais. Nisso, ele é definitivamente moderno.
Em seu percurso, O Canto da Vida (Pisen Zivota, 1985) ocupa um lugar particular. Krofta não esconde que essa adaptação da obra de Evguenii Schwartz, intitulada O
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Dragão (Ssmok) é um compromisso entre sua concepção pessoal e as exigências da censura. Esta contestava a idéia de Schwartz segundo a qual uma sociedade que se liberou de um poder totalitário se encontra incapaz de usufruir de sua liberdade e aspira inconscientemente a estruturas totalitárias. Krofta, obrigado a transpor essa idéia para uma evocação da ocupação fascista e dos males engendrados pela guerra, defende seu espetáculo por uma força dramática e uma teatralidade exemplares. Assim como as metáforas de seus espetáculos precedentes são um elemento acessório da interpretação do tema, em O Dragão elas se tornam uma componente essencial da expressão dramática e um verdadeiro método de trabalho, como ele explica a Hanna Kodicek: Podia‐se acreditar, por exemplo, que O Dragão de Evguenii Schwartz, que é um conto alegórico sobre a usurpação do poder numa pequena cidade, é uma boa ocasião para fazer representar o papel dos habitantes da cidade por atores e utilizar um boneco para o Dragão. Na verdade, era a solução recomendada por Schwartz. Entretanto, decidi fazer o contrário. Dei a um ator o papel do dragão que manipulava no sentido literal os habitantes da cidade (marionetes) puxando seus fios. A meus olhos, era o melhor meio de representar sua ausência total de liberdade.71
A manipulação, nesse espetáculo, é ainda mais complicada porque o defensor do povo – Lancelot – também é um ator. O destino dos homens – marionetes – se define acima de suas cabeças. Outras metáforas vêm completar essa metáfora diretriz. O diálogo entre o Dragão e Lancelot evoca uma partida de bilhar. O uso de projetores manobrados levados pelos assistentes do Dragão, atores vestidos de preto, lembra o universo dos campos de concentração. Um projetor em cima de um pilar, explica Krofta, não passa de uma fonte de iluminação teatral, mas nas mãos de um ator, um herói, por exemplo, ele ganha de imediato um sentido metafórico.
Se permanecemos numa perspectiva ontológica e antropológica do boneco, poderemos ficar decepcionados! Esta parece ter desaparecido das reflexões de Krofta. O boneco é, em O Canto da Vida, um instrumento, ou melhor, um componente da linguagem teatral para evocar figuras retóricas, no sentido poético. As conotações culturais permanecem ricas e dramaticamente significativas. Elas nos reportam a acontecimentos históricos mais do que antropológicos. Seria esta a característica de um segundo ciclo do boneco? Na seqüência, Krofta se interroga essencialmente sobre a problemática da linguagem e sua utilização. Em A Noiva Vendida (Prodana Nevesta), de Bedrich Smetana, adaptada por Jiri Vysohlid (1986), ele desenvolve, no mais alto grau, os princípios do teatro épico ao mostrar a eficácia do boneco ao longo da ação dramática. Os atores formam um coro de contadores reunidos em torno de uma coluna, ou melhor, de um carrossel de cavalos de madeira original (sem teto) cujos braços servem para transportar os bonecos para a frente da cena, a uma distância bastante grande dos atores que, entretanto, lhes emprestam voz e mímicas. Assim autônomos, os bonecos tornam‐se puros signos icônicos de personagens. Os atores lhes restituem uma parte da ilusão quando eles voltam a suas mãos. É um eco do animismo à distância evocado em Enfim, Unicum.
71 A alma e “a parte pelo todo”, entrevista com Antoine Vitez. Théâtre Public.”O tearto de bonecos”. Revista bimestral publicada pelo teatro de Gennevilliers, no. 34‐35, agosto‐setembro 1980, p. 108.
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Qualquer que seja a importância do papel representado pelos bonecos enquanto signos icônicos e plásticos, é evidente que os atores ocupam uma posição chave no espetáculo. Eles são os verdadeiros heróis da ação, intérpretes talentosos que cantam, animam os bonecos, fazem acrobacias, fingidas ou reais, e são capazes de representar não importa que personagem. É preciso constatar uma vez mais que o ator (o bonequeiro) permanece o criador do personagem, ou de um grupo de personagens. No entanto produziu‐se uma variação importante nesse espetáculo. No passado, o ator (o bonequeiro) cedia ao boneco uma boa parte de sua aura. Num espetáculo como A Noiva Vendida, o boneco está sempre presente, mas sua aura é esmagada pela perfeição da companhia. A magnanimidade humana parece condicionar a existência e a expansão do teatro de bonecos. Fazer com que isso seja compreendido pelos bonequeiros e pelo público, também tem um valor teórico. Krofta provavelmente se deu conta disso porque nos grandes espetáculos que seguiram, O Moinho de Kalevala (1987), Pinóquio (1992), ou na nova versão do Dom Quixote (1994), ele devolveu aos bonecos suas funções metafóricas. Esses espetáculos tratam de teses não conformistas (Pinóquio não quer entrar no mundo dos adultos, o herói de Dom Quixote, um bonequeiro ambulante, identifica sua loucura com sua liberdade), mas não trazem novos elementos para a compreensão do boneco.
Krofta faz igualmente algumas incursões na cultura de outros países como na Eslováquia (Banska Bystrzica) e na Polônia (Poznan) onde realizou um grande espetáculo sobre as aventuras de um herói popular, o nobre bandoleiro, Janosik (1974). Na Dinamarca (Teatro Dramático de Odinsee) ele põe em cena A Princesa Dagmar (1988) onde os acontecimentos históricos e a justaposição dos meios de expressão dominam. Mesmo que as obras do teatro Drak não exprimam todas as pesquisas possíveis e as maneiras de empregar esses meios de expressão figurativos, na impossibilidade de um recuo temporal não se poderia então fazer uma classificação do uso do boneco metafórico dos anos 90? Ou trata‐se de um período de calma conceitual, após o de buscas tão múltiplas quanto profundas?
As técnicas vindas do Oriente
Para quem quer compreender o impulso da manipulação à vista e o uso de uma imagem do personagem atomizado, uma passeio pelo teatro japonês, sobretudo o ningyo joruri cuja forma conhecida é o bunraku, se impõe. Este teatro muito célebre no Japão, com três séculos de tradição, desenvolve uma forma de teatro épico com um narrador presente na cena e bonecos manipulados por três bonequeiros visíveis. Descoberto tardiamente na Europa em meados do século XX, esse teatro inspira um modelo de personagem composto de um boneco enquanto signo icônico, de três manipuladores como fontes de energia motriz e de um narrador, como fonte de expressão vocal e textual. Vinte anos foram necessários aos bonequeiros para obter um modelo inspirado no bunraku. Eles adotaram essencialmente seu aspecto técnico ou às vezes sua estrutura como quadro do espetáculo e a manipulação à vista alcança o sucesso que se conhece.
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A Companhia Houdart/Heuclin foi uma das primeiras a recorrer a esta técnica em Arlequim Polido pelo Amor, de Marivaux, em 1972. Dominique Houdart não buscava imitar o bunraku 72 mas justapor alguns de seus elementos e inúmeros outros meios de expressão, como a projeção de slides, reproduções de Goya essencialmente, signo da crueldade humana. Respeitando a prática do bunraku, Houdart introduz recitantes em roupa do século XVIII, que ele coloca à frente da cena. Os bonecos são manipulados por animadores vestidos de preto, o rosto descoberto. Esta técnica verdadeiramente renovou a prática do teatro épico na Europa, mas no caso presente ela é secundária, frente ao universo de Goya (reforçado pela maquiagem e a expressão dos bonecos) que se justifica pela interpretação que Houdart faz da obra de Marivaux: a imagem de uma crueldade mascarada. De fato, o espetáculo é importante em razão da escolha de um clássico francês, não tem relação direta com a tradição histórica japonesa e seu caráter sagrado.
Meschke adota por sua vez uma atitude diametralmente oposta em Antígona, de Sófocles, que ele monta em 1977 no Teatro de Bonecos de Estocolmo. Seus bonecos bunraku são fabricados em cerâmica preta a partir dos adornos de vasos gregos, cada um manipulado por três bonequeiros, o texto interpretado por vários recitantes sentados sobre um estrado especial, separado dos personagens. O espetáculo fez um grande sucesso, em razão do encontro desses dois sistemas culturais, cada um deles representando valores sagrados e mitológicos. O estilo japonês do ningyo joruri introduz a tradição de um refinamento cultural, quase religioso; o estilo grego, um tema mitológico. A forma mitológica do ningyo joruri corresponde exatamente ao mito europeu. Como os espetáculos do ningyo joruri, o de Antígona é solene e cerimonioso à imagem da expressão ritual dos mistérios mais sagrados. Como o lembra Meschke, nem o público nem os críticos questionaram a forma do espetáculo – ela fazia parte integrante da tragédia grega. 73
Zlatko Bouret, do teatro ITD de Zagreb, em sua montagem do Hamlet de Tom Stoppard (1982) dá o exemplo de um feliz empréstimo à tradição do kuruma ningyo, segunda forma adotada pelos bonequeiros na Europa. Cada boneco é animado por um único manipulador sentado sobre um tamborete de rodinhas, o que dá um contraste cômico entre a forma majestosa do boneco e seu rápido deslocamento. Ela convinha perfeitamente à concepção grotesca do tema: Um animador está sentado sobre um tamborete de rodinhas e tem um boneco a sua frente de modo a poder animar sua cabeça e sua boca com uma das mãos e a mão do boneco com a outra. As pernas do animador são as pernas do boneco e estão vestidas nos mesmos tons da roupa do boneco, o que dá a impressão de que os bonecos se deslocam sozinhos na cena; animadores de branco, a cabeça dissimulada, fazendo todo o possível para atrair a atenção do público para o boneco, essa técnica de animação oferece múltiplas
72 Annie Gilles, O Jogo do boneco. Publicações da universidade de Nancy II, Nancy 1981, po. 99‐104.
73 Michael Meschke. Una estetica para el teatro de títeres (Uma estética para o teatro de bonecos). Bilbao, 1988, p. 84.
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possibilidades de provocar o espanto e criar todo o tipo de relações no jogo do bonequeiro e do boneco. Por exemplo, quando o ator levanta o boneco tão alto que o corpo deste se destaca das pernas do animador, e o espectador se dá conta de que são pernas humanas, e que o boneco pode representar também sem elas.74
Por meio desses poucos espetáculos, compreende‐se melhor que a manipulação à vista se tenha desenvolvido a partir de empréstimos às culturas tradicionais, a do Japão em particular, como a de outros países, a China ou a Indonésia. É significativo que os bonequeiros, no Ocidente como no Oriente, tenham se apropriado apenas das capacidades expressivas desses modelos para enriquecer sua técnica e sua estética, sem integrar seus valores culturais.
Da literatura à metáfora plástica
Entre os novos meios experimentados na manipulação à vista, o teatro de bonecos dirigido por Valery Volkhovski, primeiro em Tcheliabinsk, depois em Voronej, reflete uma outra tendência: a da metáfora plástica que se torna uma regra na União Soviética, nos anos 80. Este teatro se torna célebre com as Almas Mortas, de Nicolas Gogol (direção: V. Volkhovski, cenografia: E. Lutsenko, 1985). É um espetáculo épico onde a função do narrador é entregue a um ator que interpreta Gogol. Ele comenta o que vê numa voz suave e pouco expressiva. Há nisso uma intenção oculta: sua voz reflete o seu terror ao descobrir a verdade sobre um mundo cujo absurdo o ultrapassa. Uma projeção gigantesca deste mundo se encontra no centro da cena. Essa simultaneidade se desenvolve na vertical. Por cima da plataforma, uma porta com dois batentes bastante grandes, é dominada por uma imagem reduzida de um cemitério e de uma igreja ortodoxa. Abaixo da plataforma, cenas da vida no campo mostram as condições primitivas nas quais o homem vive semelhante a animais. Os bonecos têm cerca de sessenta centímetros de altura, rostos característicos, às vezes caricaturais, movimentos expressivos, quase humanos. Eles são admiravelmente servidos pela interpretação do texto e parecem sentir profundamente a situação dramática. Os russos associam essa estética a uma influência do sistema de Stanislavski. Essa análise me parece simplista demais. Essa maneira específica de interpretar o texto, essas atitudes humanas cheias de tensão, essa variedade de relações, exprimem a tradição literária e a visão da realidade que ela encerra. De Gogol a Ostrovski e a Zochtchenko, passando por Sukhovo‐Kobylin, os heróis do espetáculo de Volkhovski, ainda que se trate de bonecos, são seres determinados pelas circunstâncias e suas condições de vida. Há em sua imagem menos de técnica de jogo, menos de “escola” e mais de verdade sobre o homem, dessa verdade que a literatura russa perpetuou.
O realismo dos personagens é ponderado pela animação à vista assegurada por atores disfarçados de arlequins mascarados ou de servidores de grandes proprietários rurais. Simples “gente de teatro” com as quais Vachtangov tinha outrora sonhado e de quem Okhlopkov retoma a idéia anos mais tarde. A ação do espetáculo se desenvolve
74 Livija Kroflin, Zagrebacka Zemlja Lutkanija (O país zagrebiano do boneco). Medunarodni centra za usluge u kulturi, Zagreb, 1992, p. 89.
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em todo o espaço cênico mas, sobretudo, sobre a plataforma. A porta fechada indica que o personagem de Tchitchikov está de viagem. Ela tem a forma de uma sinédoque coletiva; num quadro, cabeças de cavalo. Num outro, uma roda que gira. Num terceiro, o personagem de um cocheiro. Ao nível inferior se encontram homens rebaixados, mas também hipócritas, que restam na miséria enquanto eles são importantes em razão das “almas” que possuem. Lá, o mundo dos homens convive com o mundo dos animais em situações de um humor provocante. Há também um outro plano de jogo cênico, o espaço exterior ao cenário, um espaço neutro, mas ao mesmo tempo simbólico, que recria o mundo dos pensamentos e dos sonhos do herói principal. Entre as pessoas de teatro, entre os bonecos que representam os heróis da peça, vagueia um rapaz de malha preta, usando um chapéu da mesma cor. De início tem‐se a impressão de que ele garante o elo entre o passado e o presente. Quando ele conclui uma negociação com Tchitchikov e parte esquecendo seu chapéu, após ter‐lhe prometido evitar a deportação para a Sibéria, o público descobre em sua cabeça duas saliências características. Pista atemporal que vamos reencontrar na literatura contemporânea, em Boulgakov. A peça termina, o público aplaude os atores, a cortina interior grosseira se ergue e sobre a plataforma, como em O Inspetor Geral de Meyerhold, levanta‐se uma multidão compacta de arlequins e Gogol no centro. Eles são sonhadores, preocupados e sem dúvida temerosos da mesquinharia e da tolice do mundo que eles próprios desencadearam.
A poética do teatro de bonecos de meios de expressão variados associa‐se aí à prática teatral dos grandes representantes da vanguarda russa, em particular à de Vachtangov e de Meyerhold – na origem, aliás, da prática do boneco contemporâneo. A referência à tradição modernista, mesmo em 1985, é um ato cultural muito importante, sobretudo no teatro de bonecos. Os russos podiam encontrar neste espetáculo as fontes inesgotáveis de seu pensamento cívico e de sua tradição reformista. Para nós, trata‐se de um encontro novo com a literatura russa e seu potencial dramático, que pode invadir e transformar, a seu bel‐prazer, todas as técnicas teatrais como todos os gêneros. Eles vão servir‐lhe, como esses múltiplos meios de expressão lhe serviram dessa vez.
Volkhovski tem um temperamento reflexivo. Várias de suas obras refletem seu pensamento sobre o homem. O Menino do Lago (1988) de Pavel Velinov, criado em Voronej é uma peça psicológica (que surpresa no teatro de bonecos!). O espetáculo é um elogio fúnebre contado por um adulto, amigo casual de um adolescente que acaba de se suicidar. Esse narrador é o único personagem de carne e osso. Os outros, ou seja o menino, seus parentes e sua professora, são bonecos animados por homens em roupa de luto. O caráter cerimonioso de sua atitude sugere que estes personagens participam interiormente da reconstituição da história. Os bonecos, que medem cerca de um metro, são manipulados por trás. Seu rosto fixo reflete os sentimentos dos heróis. Evocações do passado permitem traçar um retrato psicológico do jovem herói que sonhava com uma vida melhor e se deixou seduzir pelo azul do mar, no qual buscava apaziguar sua solidão. É também uma análise sobre a insensibilidade dos que o cercam, de sua classe, dos professores, de sua família. Vários meios de expressão correspondem aos diferentes planos da ação e a direção assim ataca os preconceitos sobre os limites do boneco
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quanto aos temas e aos papéis trágicos. Graças à ação simultânea desses meios, o teatro de bonecos contemporâneo dá novas provas de sua universalidade. Com O Menino do Lago, o teatro aborda de um ponto de vista psicológico os problemas do homem.
A intimidade da narração
Essa descoberta não foi um feito apenas dos russos. Os artistas do teatro de bonecos, na Europa, aspiravam a liberar seus próprios temas da atmosfera e dos assuntos impostos pelos meios de expressão clássicos, e os temas existenciais ganharam então importância. Enno Podehl dá testemunho dessa nova tendência. É em 1985, em Charleville‐Mézières, que ele apresenta Hermann. Trata‐se da evocação pessoal de um drama vivido, o da guerra. A história, muito íntima, é narrada por um ator que anima ao mesmo tempo bonecos e objetos sobre uma mesa oblonga e baixa. Podehl, ator, cavoca em sua memória para encontrar os fatos e o fio dos acontecimentos, e projeta suas emoções, intensas, sobre os bonecos e os objetos. Podehl animador experimenta um verdadeiro prazer em manipular o boneco concreto de Hermann. Podehl roteirista conta a história passando constantemente da realidade à metáfora e vice‐versa. Enno anima um boneco de madeira de Hermann com grande cuidado e sensibilidade. Um rosto marcado pela idade, faces encovadas, um nariz saliente e algumas mechas brancas na cabeça. Um tronco sem braços e com pernas (articuladas nos quadris, joelhos e tornozelos). Atrás do pescoço, uma vara para manipular a cabeça. Hermann faz sua ginástica matinal e revela suas surpreendentes capacidades de movimento. Hermann, vestido, provido de uma mão de Enno que sai do punho de sua camisa, prepara seu café da manhã. Enno narrador conta como ele conheceu Hermann. Hermann acende um fogareiro de verdade, faz uma verdadeira omelete numa frigideira de verdade, come uma parte e dá o “resto” a Enno. De repente a História irrompe nesta vida pobre e sem histórias. Hermann acolhe uma mulher e sua filha Rosa. Uma luva preta arranca brutalmente esta mulher deste casulo aprazível. Só resta o lenço florido no qual ela envolveu sua filha. A guerra acabou, Hermann tenta em vão refazer sua vida. O incêndio de seu apartamento toma traços simbólicos. A cinza recobre o passado e Hermann, reconciliado com a História, retorna a suas ocupações cotidianas. 75
Podehl contribui para enriquecer os temas do teatro de bonecos de meios de expressão variados. O jogo à vista é aqui uma convenção não intervindo nas relações entre boneco e animador. O testemunho a seguir é interessante porque nos permite ampliar nossa reflexão sobre os procedimentos artísticos e épicos do teatro de bonecos. Hermann confirma assim esta chance que se oferece ao teatro de bonecos enquanto teatro de narração, onde contam não apenas o desenrolar inesperado da ação e sua tensão, mas também o caráter íntimo próprio ao boneco. Entretanto, a dramaturgia do teatro de bonecos não repousa unicamente nas palavras e na ação, mas com freqüência e muito simplesmente em pequenos gestos, no silêncio, no jogo de luz, no abandono ou na reanimação de tal ou tal “figurinha” chamada boneco, e enfim na perturbação, na movimentação do espaço cênico.76
75 Tereza Ogrodzinska. Charleville 85, Teatro Lalek, no. 4, 1985, p. 9.
76 Enno Podehl. Para uma dramaturgia do teatro de figuras. Marionnettes, no. 13, 1987, p. 7
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Codificar e descrever o material textual e épico do teatro de bonecos contemporâneo seria uma vasta tarefa, porque cada artista tem sua própria visão, critérios pessoais, e existem tantas criações possíveis quanto criadores. Entretanto, de um ponto de vista histórico, gostaria de lembrar que o subjetivismo dos artistas hoje aboliu todas as leis objetivas e todas as normas genéricas. Dos antigos princípios só subsiste a necessidade de criar, com todos os meios possíveis, um jogo teatral, o da arte do boneco.
O teatro de bonecos com meios de expressão variados orienta‐se para a construção de imagens poéticas que se sucedem para formar uma ação. Esta convenção torna‐se possível porque, na prática, o homem assumia o mesmo valor que os outros meios de expressão. O artista ordena suas relações com os espectadores, estabelece um código relativo ao tempo, ao espaço e ao comportamento dos personagens. O espaço do sonho favorece outras motivações e outros comportamentos irreais. Na convenção do “teatro no teatro” a peça interna deve ser “verdadeira”, porque ela não aspira à verdade e não passa de uma citação. Admitir esta convenção significa aceitar um certo tipo de linguagem teatral. É verdade, nas relações com o público é muito importante ter um ponto de partida comum. Se admitimos que o teatro nasce do encontro entre atores e público, que ele está condicionado pela convenção estabelecida no início quanto à linguagem cênica e, eventualmente, ao tema do espetáculo, então o processo de criação cênica parece natural e espontâneo. Este, entretanto, é raramente o caso, porque o teatro do século XIX, que aspirava a representar a realidade com realismo, permanece sempre muito presente em nosso espírito. Hoje ainda, quando buscamos definir o teatro contemporâneo, tomamos obrigatoriamente como referência o teatro mimético, portanto ilusionista. O mimetismo tem uma natureza muito diversa, quase convencional. Às vezes mesmo, o gênero menos realista seja considerado uma representação direta da realidade.
Entre sonho e realidade
No início dos anos 80, o teatro de sombras, outro teatro, vai viver uma profunda transformação. O impulso do desenho animado tinha provocado, no pós‐guerra, uma perda de interesse por esta forma de “espetáculo impessoal” que parecia não ter nenhuma chance de sobreviver, à exceção de algumas variantes tradicionais como o wayang e as sombras indianas com o herói do Râmâyana, as sombras chinesas com o Rei dos Macacos, as sombras turcas e gregas com Karagöz e Karagiosis.
Na Austrália, perseverando no estilo de Henri Séraphin, o entusiasmo de Richard Bradshaw traz seus frutos. Na França, o mérito cabe a Jean‐Pierre Lescot que, após anos de tentativas (é preciso ter muita paciência para domar a noite) utiliza em seu espetáculo Taema ou A Noiva do Timbaleiro (1981) sombras impressionistas cujas proporções mudam em função das variações da luz e do grau de transparência de seus materiais. Elas se revelaram muito teatrais, vibrantes e vivas, de uma presença imediata.
É na Itália que a verdadeira metamorfose se opera. O teatro Gioco Vita, fundado em 1970, em Piacenza, explora novas técnicas: o deslocamento das fontes de luz ou a simbólica das cores e das proporções, como em Gilgamesh (1982). O mundo onde reina
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Gilgamesh emerge da atmosfera cinza. Trata‐se de um palácio‐fortaleza monumental. Os súditos são silhuetas negras e cinzas, corcundas, de rostos marcados pelo sofrimento. Nós contemplamos com o olho da câmera, a imagem de um povo oprimido. Gilgamesh aparece numa carruagem. Engalanado, com uma abundância de púrpura, a cor dos soberanos, ele lança seus cavalos sobre seus súditos. Ele é grande, eles são pequenos. Depois as proporções se invertem. O sistema de valores é abalado, há uma opalinização da simbólica.
Outro tema novo: o nascimento de Enkidu, um grande e maravilhoso selvagem que reina sobre os animas no meio dos quais vive. As proporções de uns e de outros mudam. Enkidu chega na cidade, luta contra Gilgamesh para finalmente se tornar amigo deste adversário digno dele. Quando Enkidu morre num combate com o Touro, Gilgamesh fica desesperado. Sua figurinha multicor vai e vem em passos miúdos sobre o enorme corpo de Enkidu. É a simbólica das elegias: o defunto é grande, enche o mundo inteiro; o que chora mal consegue apreender a dimensão de sua perda. O espetáculo não omite nenhum tema da lenda de Gilgamesh. A tela é muito viva. Ela vibra, surpreende e provoca o inesperado.
Gilgamesh não iguala as experiências de Taema A construção das figuras é sem dúvida menos audaciosa, mas esse espetáculo marca, entretanto, uma etapa importante nas pesquisas sobre o teatro de sombras e suas capacidades expressivas. O jogo entre as proporções das figuras e suas dimensões simbólicas interiores encorajam o Gioco Vita a prosseguir suas pesquisas. O Castelo da Perseverança (The Castle of Perseverance, 1984), de um célebre apólogo inglês, desenvolve consideravelmente a técnica do teatro de sombras. A tela não é esticada, ela explode em vários quadros de diferentes dimensões, o que dá uma nova dinâmica à ação. Em torno das clarabóias, sobre o fundo preto de uma grande cena de teatro, um homem nasce entre os anjos. É o único momento calmo da peça. O homem empreende um périplo que o conduz à Corte do Mundo e ao Reino do Corpo. Ele viaja com companheiros de estrada pouco recomendáveis; primeiro a Avidez, depois o Orgulho e enfim Bélial com toda uma armada de diabos. Algum tempo depois, ele encontra o Arrependimento graças ao qual ele se aproximará um pouco da Virtude. As silhuetas dos personagens são pretas. Nas seqüências iniciais os anjos resplandecem em cores pastéis. O tamanho das sombras varia em função das relações entre os personagens e sua força moral que também muda e é opalinizada. O espaço cênico tem um caráter cósmico. A tela não tem nem alto nem baixo. Os personagens se encontram no lugar e na posição que lhes são fixadas. Se necessário, o enquadramento da tela se modifica. O momento mais dramático é aquele onde o espaço se desloca, quando o homem quer entrar no seio da Graça. As forças do mal põem o mundo em pedaços. Na cena aberta do teatro, negro como um forno, aparecem aqui e ali alguns pedaços de tela, cada um envolvido por uma força diferente. O homem, no entanto, consegue alcançar o castelo da Perseverança onde passa pelo ataque das potências do mal. Sua derrota, entretanto, está escrita em seu destino. A Morte o espera. Sua presença, sob a forma de um imenso esqueleto de sombras tomado por um movimento turbilhonante, vela todo o espaço. A Moral, no entanto, prevê a
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possibilidade do Perdão. Chegam enfim anjos que erguem a figura atormentada do Homem e o levam ao céus.
O espetáculo se compõe de duas partes diferentes. a primeira utiliza a unidade do mundo. A da tela. A segunda acontece num mundo desagregado, em fragmentos de tela. Esta estrutura corresponde à mensagem filosófica da peça. A eloqüência da metáfora foi sem nenhuma dúvida a primeira preocupação de Gioco Vita, o alcance dramático só apareceu na seqüência. Como os bonecos que, vinte anos antes, tinham abandonado a empanada para se colocar frente ao público e mostrar‐lhe o universo de ficção no processo fragmentário da criação, os criadores do teatro de sombras romperam sua tela para substituí‐la por projeção em lugares imprevistos, sobre telas improvisadas. Se todos os artistas do teatro de sombras não adotaram imediatamente esse princípio, Giovo Vita nunca mais voltou à tela clássica. Em espetáculos tais como La Boite à Joujoux (A Caixa de Brinquedos) (1986) ou Orlando Furioso (1991), ele põe sua técnica a serviço do teatro de bonecos de meios de expressão variados.
Outros artistas, na França, como Luc Amoros e Michele Augustin escolheram um caminho diferente. Eles utilizaram gravuras antigas das quais fizeram figuras de sombra. Eles tiraram a tela de seu quadro tradicional e a inseriram num espetáculo de estilo rock com piano e percussão (Püberg e a Megamore, 1982). Bonequeiros intervinham na história, interrompendo a ação, introduzindo um relato no relato ou propondo diferentes versões de um mesmo acontecimento. A arte gráfica resta para eles uma fonte de inspiração e de criação. Ao se prender a culturas distantes, eles dão novos significados aos meios de expressão que utilizam em seus espetáculos. A experiência levada por Luc Amoros com a Trupe Ki‐Yi, de Abidjan, é um belo exemplo disso: Sunjata ou a Epopéia Mandingue (1989). Os africanos fornecem a história, ou melhor apresentam a história de Sunjata, herói da África Ocidental, assim como os atores, de forte presença vocal, gestual e musical. O texto foi escrito por Were Liking, diretora da troupe Ki‐Yi. Os artistas franceses compõem o quadro geral do espetáculo e os meios de expressão sob forma de placas de sombras com grupos de figuras e figuras individualizadas. A idéia das placas é emprestada do teatro de corte tailandês, o nang yai, mas o tema e a expressão são tirados da cultura africana. Essa prática é pouco corrente, pois a África Negra mal conhecia o teatro de sombras e a dança, representação figurativa dos personagens sobre uma placa decorativa presa acima da cabeça, era‐lhe também desconhecida. Estes elementos aparecem no entanto perfeitamente integrados. O caráter épico do espetáculo permite unificar os meios. Todas as imagens servem para revelar o segredo do heroísmo, e seu ritmo mutante, a passagem de quadros de conjunto a detalhes expressivos, sublinhando a africanidade do espetáculo.
O diretor, Luc Amoros, não buscava fazer uma síntese artística das duas culturas. Na verdade, ele tinha confiado em seu instinto criador: De fato, eu não conhecia bem o teatro africano, eu o conhecia um pouco pelo trabalho do Ki‐Yi que vi em Charleville, pelo que pude ler e ver ao longo de nosso encontro. Quanto ao teatro de sombras, não pode haver aí verdadeira referência porque isto não existe verdadeiramente na África sob forma dramática. Se pensarmos na estética do espetáculo, a cenografia e o grafismo, há certamente um parentesco porque eu trabalhava sobre a África. Eu não queria ir à África, voluntariamente, antes de criar o
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espetáculo, para conservar uma visão fantasmática. Eram meus fantasmas sobre a África que deviam sair no grafismo e na estética geral. Assim o que existe como referências africanas no espetáculo, cabe ao público dizer, se meus fantasmas correspondem aos do público, às idéias recebidas ou não sobre a África.77
E era certamente a única maneira de garantir a expressividade e a coesão do espetáculo. O teatro de sombras contribui, com atraso e de modo impressionante, para enriquecer o teatro de bonecos moderno. Ele estaria assim assumindo o valor de um sincretismo cultural?
Sinergia
Na Alemanha Oriental, no final dos anos 70, os bonequeiros fazem esforços importantes para definir as possibilidades de um teatro moderno, realista e justificar a utilização de metáforas e imagens poéticas. O teatro de bonecos é uma espécie de arte da representação (Darstellende Kunst). Ele consiste em representar as relações entre os homens e sua atitude com respeito à realidade social por meio da animação consciente (do processo de animação). Não é apenas uma forma, é também um princípio de espelho estético. O que representa (o homem) não passa de um signo material determinando a estrutura das pessoas que representam (Menschen). Um instrumento toma seu lugar, é uma figura artificial, elaborado artisticamente (um boneco). O que representa (o Darsteller) se afasta assim da imagem do homem unicamente para formar com esta imagem uma unidade funcional durante o processo da representação.78
O teatro de bonecos enquanto espelho exprime bem as ambições de uma arte realista. A unidade funcional do boneco e do homem garantem a realização dessas ambições. Konstanza Kavrakova‐Lorenz procede a uma análise muito aprofundada dos diferentes elementos do teatro de bonecos. Ela se apóia na semiologia, na teoria da comunicação e propõe uma definição do teatro de bonecos enquanto teatro de sinergia e de Verfremdung. O termo sinergia designa geralmente a ação coordenada de dois elementos. Na filosofia de Melanchthon, ele designa a ação coordenada da vontade humana e do Espírito‐Santo, o que nos leva à metáfora do boneco. Segundo Kavrakova‐Lorenz, a sinergia implica naturalmente no nascimento do distanciamento, mas ela não tem o mesmo caráter que no teatro de atores: A apresentação de bonecos, enquanto sinergia de uma escultura e do jogo de atores, que situa o boneco entre as artes da representação, funciona por intermédio da relação de tensão entre as particularidades e as funções essenciais de seus elementos. Para resolver estas contradições permanentes procura‐se dinamizar exteriormente os objetos (Dinglichen), o que leva a um distanciamento perrmanente dos dois elementos de base. A dinamização que se faz por intermédio do movimento, do gestual e das poses (atitudes) esboça o processo de “animação” dos objetos (Dinglichen). Este processo que não permite eliminar o
77 Entrevista com Luc Amoros e Richard Harmelle. Marionettes UNIMA‐França, no. 26, p. 25.
78 Hartmut Lorenz, Mit Poesie, Witz und Phantasie (Com poesia, humor e fantasia). Theater der Zeit, no. 11, 1980, p. 57.
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distanciamento, pede que seja objetivado o homem que representa ( ) A diferença entre o distanciamento enquanto método e técnica de representação no teatro de atores e o distanciamento permanente no jogo dos bonecos tem uma importância fundamental: se se pode imaginar um jogo de atores sem distanciamento, inversamente não se pode imaginar jogo de bonecos sem este distanciamento interno que é o elo de tensão de sua dualidade em vias de desintegração79.
Segundo ela, o distanciamento é por conseqüência um elemento constitutivo do teatro de bonecos. Já evoquei minha posição contrária a respeito, ao observar que a noção de distanciamento permanente contém uma contradição. Um teatro que recorre em permanência ao distanciamento merece um nome, é simplesmente um teatro de anti‐ilusão. Brecht estimula as aspirações realistas e ideológicas dos bonequeiros da Alemanha Oriental, e esta foi uma dificuldade a ser superada.
Os julgamentos e os postulados de Kavrakova‐Lorenz tiveram uma grande influência sobre a prática do teatro da Alemanha Oriental. A interação do ator e do boneco, sua sinergia, não permite apenas criar um personagem, ela também é utilizada para fazer nascer a metáfora. Dada a facilidade com que nasce esta metáfora sinérgica, as declaração de Knut Hirche, ator principal do teatro de bonecos de Neugranderbur, são significativas. Ele evoca, sobretudo, a criação deste teatro, a relação com o teatro, as relações com o público e a evidência da metáfora: Nós preparamos vários espetáculos onde a interdependência do ator e do boneco era utilizada de uma maneira evocativa simples. (...) Não demoramos para perceber que ao nos concentrarmos nesse único problema, fazíamos do boneco um tema em si e que o desviávamos do tema ou assunto da peça. As interpretações de primeiro grau, pouco interessantes, dominavam, como por exemplo, o homem entravado por seu destino ou pelo poder, ou então, ao contrário, o homem dirigindo os bonecos. Chegamos à conclusão de que este problema é importante para o processo de criação, mas deve permanecer invisível para o espectador, que não deve tomar consciência dele.80
Em suas pesquisas, Hirche concede assim um lugar importante ao personagem. Era fascinante ver como os bonecos chegavam a ter uma representação estritamente teatral; eles tornavam‐se personagens, personagens dramáticas. A seu jogo se acrescentavam efeitos de uma intensidade extraordinária pelo simples fato de que se tratava de marionetes. Pode‐se sem problema aspirar ao naturalismo sob esta forma: a “matéria inerte” resistirá sempre, criando assim uma abstração espontânea e, portanto, submissa a uma poetização. A tensão, este fio tenso entre a ilusão e a desilusão, deve poder ser reconstituído,e não pode se romper81.
Se Hirche e seu teatro de repertório estão mais próximos de Waschinsky que de Kavrakova‐Lorenz, subsiste um hiato entre teoria e prática.
79 Konstanza Kavrakova‐Lorenz, Thesen zur Dissertazionschrift (Tese de doutorado manuscrita), 1987, p. 16.
80 Knut Hirche. O stylu pracy w Teartz Lalek w Neubrandenburgu (O estilo de trabalho do teatro de marionetes de Neubrandenburg) ,Teatr Lalek, no. 1, 1989, p. 19.
81 Ibidem
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Os marionetistas de Neubrandenburg criam, em 1980, duas peças em um ato, A Bruxa e O Urso, baseados em Tchekov. Num estilo realista, com marionetes jogando atrás de um tecido de musselina suspenso no quadro da cena para reforçar a ilusão, estes espetáculos põem à prova o princípio da Verfremdung, dissipando por momentos o efeito de ilusão e deixando aparecer a mão do animador. Os espetáculos criados na Alemanha Oriental, apesar da excelente técnica dos atores, um audacioso repertório para adultos (Rostand, Brecht, Müller) bonecos de vara (emprestados certamente do teatro tcheco do início dos anos 70) substituídos a seguir por bonecos manipulados por trás, e enfim princípios estéticos e ideológicos aplicados com uma perfeita coerência, não trazem elementos novos para o conhecimento de nosso teatro, salvo Senhora Julia, de Strindberg, montada pelo teatro de Neubrandenburg em 1987, que foi um acontecimento. Este espetáculo é interpretado por atores e bonecos onde cada um só constitui uma metade do personagem. Segundo certos críticos, os atores personificam os instintos, o subconsciente e o psiquismo dos heróis do drama, os bonecos representam os papéis sociais. O boneco de Jean, um robusto capataz de fazenda que parece pouco à vontade em sua libré de lacaio, é animado por um ator encarnando um mestre de dança cheio de sutileza. Senhorita Julia, encarnada por uma boneca, choca por sua delicadeza, seu charme e a nobreza de sua atitude, mas sua vida interior, de uma desesperante indigência, é expressa pela maquiagem vulgar e os movimentos bruscos da atriz. Esta dupla vida dos personagens ilustra claramente a dicotomia do ser humano, ao menos no caso da peça de Strindberg.
As relações entre os personagens se efetuam em diferentes níveis e com graus de significação diferentes: ator – atriz, boneco – boneca, ator – boneco ou ainda ator e seu lado boneco, por exemplo, no caso de um conflito entre a forma e a alma do personagem. O boneco é, às vezes, considerado como a melhor salvaguarda do eu. A cena culminante é a realização de um ato sexual. Ele se faz na cena transformada em cama, onde as figuras emergem, ligadas entre si de modo fantástico. O jogo dos atores exprime passo a passo a cumplicidade, a intimidade, enfim a agressividade com relação ao parceiro e o medo de se ter desonrado.82.
Signo ou símbolo?
Se a interpretação subjetiva do espetáculo pode suscitar algumas reservas de nossa parte, é inegável que os artistas de Neubrandenburg ultrapassaram a teoria do boneco sinérgico. Em suas relações com os bonecos, a distância torna‐se um elemento que decide uma nova situação e, portanto, a função do boneco. Acontece de o ator animar o boneco à vista, mas geralmente ele se serve dele como uma coisa informe, que pode inclusive rejeitar. Nesse sentido, o boneco não é a imagem de um personagem, ele só representa uma parte de que se torna símbolo. Krofta tinha utilizado o animismo à distância em Enfin, Unicum, mas Marlis e Knut Hirche o ultrapassam. Nas suas mãos, o boneco, mais do que o signo de um personagem é seu signo plástico. Eles chegam a renunciar à idéia de que o boneco participa da criação do personagem, com suas
82 Joana Rogacka.Od braci Grimm da Strindberg (Dos irmãos Grimm a Strindberg). Teatr lalek, no. 3, 1987, p.19.
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reações e sua dinâmica artificiais. Eles o utilizam como uma alegoria, uma personificação plástica de certos traços desses personagens. Quanto mais Krofta se aproximava do rito, tanto mais os esposos Hirche entravam no campo do teatro simbólico.
Segundo Samuel Foote, ator, escritor e bonequeiro, vivendo em Londres no século XVIII, o boneco surge no momento em que o ator se distingue do papel que interpreta. Hoje, nós atropelamos o seu percurso. Entende‐se que o boneco antropomorfo, portanto clássico, desprovido de animação e privado de animismo, continua a estimular do mesmo modo o artista. Ele é obrigado a utilizá‐lo de diversas maneiras, como por exemplo, atomizando psiquicamente o personagem. O que, aliás, fez Krofta, enquanto os Hirche insistiram no plano psíquico portanto alegórico do boneco. O processo de atomização do personagem cênico foi oposto às pesquisas feitas sobre a constituição de um personagem integrando diversas funções.
Voltemos, ainda que brevemente, ao esplendor da ilusão que em outros tempos tinha o personagem. Entre os teatros da Alemanha Oriental, o teatro de bonecos de Erfurt atrai há muito tempo a atenção da crítica. O Teatro Waidspeicher utiliza meios de expressão variados, mas não hesita, quando as circunstâncias se prestam a isso, em voltar à convenção do teatro de bonecos homogêneo. Todos os seus espetáculos têm qualidades dramáticas significativas como Quem tem Medo do Homem Negro? (Wer Füchten sich Vorm Schwarzen Mann?), de Lars Frank (1990, adaptação do autor, direção: Anne Frank). Lars Frank conta uma história de sua infância. Partindo em cruzeiro com seus pais que o deixam sozinho à noite no camarote, ele experimenta um medo terrível do mundo da noite. Os personagens da peça são grotescos, às vezes deformados (do ponto de vista da criança). No ponto culminante, um fantasma aparece e o narrador (Frank) desaparece. Tudo começa a ganhar vida “realmente”; os espectadores, inclusive adultos, deixam‐se tomar por esta mistificação e vivem as aventuras com o fantasma. Assim a ilusão, geralmente rejeitada e com freqüência desprezada, volta sob uma nova forma enquanto elemento de uma outra convenção teatral. Brecht jogava com a ilusão, é verdade. Frank talvez não faça mais do que explorar a idéia de seu mestre. Mas se for este o caso, é preciso dizer que ela é explorada inversamente: a ilusão não se rompe, ela surge para reforçar o sentido da prática teatral.
Um espetáculo teatral repousa no jogo. Não o dos atores, mas o jogo de todos os elementos do teatro. E, sobretudo, o da ilusão e da realidade. Ele pode se dar em diferentes níveis: tempo real e tempo ideal, personagem e ator enquanto elementos da realidade, ação cênica enquanto história e acontecimento que vivemos com os heróis. Inscritos na realidade para respeitar as convenções do teatro contemporâneo (a narração, o artifício do teatro, o teatro teatral), sempre temos a possibilidade de nos evadirmos no mundo da ilusão. Se esta é a nossa chance, ela é também a do teatro!
ARTES PLÁSTICAS E BONECOS
O boneco é um ícone, signo de um personagem vivo, em geral de um personagem dramático. Concebido e realizado pelo homem, coisa ou objeto, ele é uma obra plástica cuja expressão artística depende de nosso olhar. O espaço cênico tem
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também um caráter plástico assim como o bonequeiro que se produz na rua com um boneco, sem empanada. Todos, à exceção do homem, são artificiais. Esta é a razão porque certos artistas qualificam o teatro de bonecos de “teatro de artes plásticas animado”.
A vanguarda dos anos 20 estimula uma pesquisa sobre a plástica e sobre a estilização das personagens indo da caricatura ao simbólico. Mas o ingresso das artes plásticas no teatro de bonecos não se faz por decreto. O teatro tem suas regras, suas convenções; as do texto, da tensão dramática, da luz, da música, o mais importante sendo a capacidade de organizá‐los harmoniosamente. Mas a harmonia pode ser entediante e contrária aos verdadeiros valores artísticos, submetidos à subjetividade do artista. Constata‐se que em reação imediata à declaração de Richard Wagner sobre a concepção do Teatro Sintético, os artistas se opõem a isso e desenvolvem cada um sua própria linguagem. Ao privilegiar o texto, o espetáculo torna‐se literário, ao voltar aos palcos vazios, o jogo dos atores se impõe, e quando se escolhe a plástica, o espetáculo ganha as características desta. Não existe um teatro sintético, mas múltiplas variantes. O boneco vai viver a mesma aventura. Cada artista propõe sozinho o tipo de teatro que deseja defender. E o boneco, artefato fabricado por um artista plástico, segue a evolução da arte e ocupa rapidamente a frente da cena.
Lembremos que o boneco figurativo reina durante muito tempo como senhor no teatro de bonecos, com personagens realistas ou estilizados saídos do folclore (Adam Kilian, Ivan Koos, Frantisek Vitec) ou da iconografia nacional (Ivan Conev). Atraídos pela sedução plástica da matéria, e o jogo anti‐naturalista, certos cenógrafos vão se inspirar no surrealismo (Kazimiertz Mikulski), outros em objetos encontrados (Zenobiusz Strzelecki), outros ainda vão buscar inspiração na iconografia histórica (Ali Bunsch). Esses cenógrafos, artistas plásticos, tornaram‐se então parceiros dos diretores enquanto criadores de personagens, idealizadores de espaços cênicos e colaboradores fiéis na interpretação da obra dramática.
As cenografias no teatro
Mais do que com a limitação espacial, foi sobretudo com a própria forma do teatro e da empanada que estes artistas romperam. Obraztsov, em seu tempo, adapta o espaço cênico às necessidades da ação de cada um de seus espetáculos. O Teatro Tandarica em A Mão de Cinco Dedos, desloca uma parte da ação para o espaço da platéia. Podia‐se também dispensar completamente a empanada, criar num espaço aberto em razão das condições materiais (companhias de bonequeiros sem espaços fixos e renunciando também mais facilmente à empanada) ou em respeito ao tema da peça, como a Companhia Jane Phillips, de Cardiff, em 1967 com Pilgrim’s Progress, cuja ação se situa no interior de uma roda, conforme à tradição de um mistério.
Os cenógrafos do teatro de bonecos de Poznan, Leokadia Serafinowicz e Jan Berdyszak generalizaram a representação no meio dos espectadores ao utilizar um teatro circular, em O Rouxinol (Slowik) de Josef Ratajczak (1965), Os Banhos Públicos (Bania) de Maiakowski (1967), ou em O Mais Valente (Najdzielniejszy, 1965), de Ewa Szelburg‐Zarembina. A boca de cena é encoberta de modo a concentrar o olhar do
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espectador com a ajuda de um dispositivo idêntico ao da objetiva de uma máquina fotográfica. Em Que Horas São? (Która Godzina? 1964) de Zbigniew Wojciechowski, há vários níveis de atuação diferentes que permitem enquadrar livremente o corpo dos bonecos e dos atores, jogando assim com torsos, cabeças ou pernas representando as personagens.
Com a mesma inventividade, o espetáculo do Teatro de Bonecos de Constanza Copilul din Stele baseado em Oscar Wilde (A Criança de uma Estrela, 1970, direção: Geo Berechet, cenografia: Eugenia e Serban Jianu, Lucia Trontonghi) utiliza em cena um biombo “vivo”. Bonequeiros dissimulados sob um tecido deslocam seu corpo e transformam o biombo de tecido no desenrolar da ação. Em Petrouchka de Stravinski no teatro Tandarica (direção: Irina Niculescu, cenografia: Mioara Buescu e Anca Zbarcea, 1982), o efeito dramático do final destaca a morte patética de Petrouchka, ferido pelo Mouro, as costas atravessadas por uma adaga. Esta ruptura de escala reforça o contraste entre o espaço de representação da empanada, a grande cena onde o público se torna sua última esperança.
Todos esses cenógrafos interpretam uma obra teatral adaptada de um texto literário. Criando seus espetáculos a muitas mãos e às vezes eles próprios os representando, jamais procuraram impor seu material como uma espécie de universum. A evolução se fez progressivamente, tanto no emprego de novos materiais, como no teatro dos Monestier, quanto na cenografia tradicional que conheceu uma nova dinâmica. A este respeito, o estúdio experimental de Allami Babszinhaz, de Budapeste, adapta em 1972 uma pequena peça de Jean‐Claude Van Italie, Motel. Uma Máscara para Três Bonecos (Motel. A Masque for Three Dolls, direção: K. Szonyi, cenografia: I. Koos). O espaço cênico é uma pequena empanada‐personagem: a proprietária de um motel. Na cena, isto é no interior da Proprietária, dois bonecos de luva buscam um momento de tranqüilidade para saciar seu desejo. A vida barulhenta do motel põe os dois heróis fora de si de tal modo que eles destróem tudo que os cerca, isto é, o motel, a cena e a empanada a um só tempo. Os cenários são explorados de modo dinâmico e metafórico já que suas transformações exprimem o sentido da peça.
O teatro cenografado
Somente nos anos 70 vamos assistir ao surgimento de companhias que irão se consagrar inteiramente à pesquisa de soluções plásticas e espaciais. Assim, na Itália, em Lucca, o teatro Il Carretto fundado e dirigido por uma arquiteta, Grazia Cipriani, e um ilustrador, Graziano De Gregori, rejeita o espaço plástico homogêneo. Na cena, diferentes quadros (grupos de personagens) possuem um valor plástico autônomo e se distinguem uns dos outros por suas dimensões: variação de escala, modificação do olhar. Brunella Eruli83 observou com justeza que Cipriani e De Gregori optaram pela empanada tradicional fazendo dela novos usos: seus personagens ora deixam o espaço da empanada, ora voltam a ele, intensificando assim a dimensão emocional, como em
83 Brunella Eruli. Desenhos do mito. A Ilíada de Il Carretto. PUCK, 1989, no. 2, p. 35.
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Branca de Neve (Biancaneve, 1983), onde os anões e a Madrasta – uma atriz – representam num espaço aberto enquanto a pequena boneca de Branca de Neve, que se encontra embaixo de sua redoma, fica fechada na empanada. A variação dos tamanhos dá origem a uma metáfora dramática. Em Romeu e Julieta, dirigido por Graziano de Gregori, o palco (como na Commedia dell’Arte) tem várias funções. Ele pode se transformar num palco plano e representar uma cidade, suas janelas, e tornar‐se o campo do conflito opondo os Montechios aos Capuletos. Em A Dama das Camélias, Margarida agoniza numa carroça cuja forma evoca uma empanada, e a atriz é assombrada pela visão de personagens do passado, simbolizados por bonecos.
Na Ilíada (1991), a empanada toma toda a boca de cena onde representam atores monumentais, em meio a signos plásticos que evocam as experiências humanas do passado. No palco vazio, citação teatral, a exibição da maquinaria necessária à realização das ações lembra implicitamente a empanada dos bonecos e sublinha a paciência artesanal exigida por qualquer criação artística. A luz redesenha os espaços, o claro‐escuro fazendo destacar o pathos e a distância mítica dos acontecimentos. A Ilíada não é um espetáculo sobre a Grécia antiga, mas sobre os horrores da guerra e da violência, sobre a fúria cega que quebra a harmonia da natureza. As inúmeras e sábias citações iconográficas tiradas das esculturas, dos baixo‐relevos ou das decorações dos vasos gregos, a referência ao espaço como ao de uma empanada de bonecos, os gestos marionetizados dos atores refletem uma visão do mundo clássico aliando uma grande coerência plástica a uma releitura sutil.84
Nesses quatro espetáculos, a plástica domina e fascina. Se os três primeiros conservam elementos da ação dramática e a levam até o final, a Ilíada já não passa de uma montagem de cenas em torno de um tema, uma impressão plástica que se apóia em documentos históricos. Trata‐se de uma colagem de imagens que aspiram a uma póética do teatro plástico.
Ainda na Itália, o Teatro delle Briciole, de Parma, também encontra excelentes soluções, no campo do repertório para crianças. Ele utiliza um espaço aberto no qual introduz quadros de imagens para A Chamada da Floresta (Il Richiamo della Foresta, 1987), de Jack London. Pode‐se falar aqui de espaço no espaço cênico, à imagem do teatro no teatro. Em 1987, em Hvidovre, na Dinamarca, o Teatro delle Briciole apresenta O Flautista. Ao entrar na sala do teatro, os espectadores se encontram nas muralhas de uma cidade. Trata‐se, claro, de uma maquete, mas a porta da cidade é quase verdadeira. O Guardião, um ator, anuncia o espetáculo e introduz os espectadores por uma ponte levadiça. No interior, um espaço é previsto para sentar sessenta pessoas. Em volta delas, fragmentos de uma paisagem urbana: o plano geral da cidade, a casa do burgomestre, uma pequena ponte, as muralhas. É lá que a ação acontece. O Guardião, sem mudar de roupa, assume as funções do flautista, toma contato com o Burgomestre, mas como a recompensa prometida não lhe é entregue, ele deixa a cidade levando consigo as crianças, isto é, os espectadores. Esta tirada era inesperada, sobretudo para o público. A
84 Brunella Eruli. Desenhos do mito. A Ilíada de Il Carretto. PUCK, 1989, no. 2, p. 36
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concepção plástica do espaço cênico servia à expressão dramática da peça e os espectadores, tais como os ratos, tornavam‐se os protagonistas do espetáculo.
Na Polônia, no Teatro de Bonecos de Wroclaw, a peça Gyubal Velleÿtar (Gyubal Wahazar 85 ), de Stanislaw Ignacy Witkiewicz (direção: Wislaw Hejno, cenografia: Jadwiga Mydlarska‐Kowal, 1987), apóia‐se inteiramente nos cenários. A supremacia da forma plástica e seu papel privilegiado se impõem com toda evidência desde os primeiros minutos. A galeria dos personagens do drama emerge da penumbra. Fixados num gesto esboçado como num plano fixo cinematográfico, eles ficam mudos diante dos espectadores, em poses sugestivas, os olhos fixos intensamente num ponto do espaço, sentados nas cadeiras em forma de casa, inspirados pelos princípios da cena simultânea da Idade Média. Mydlarks‐Kowal voluntariamente não leva em conta nenhuma das didascálias e se deixa guiar por sua imaginação e sua intuição teatrais. Ao grotesco se mescla o trágico, ao engraçado a crueldade. O diretor desejara construir a ação do espetáculo, fazer passar sua visão de uma autocracia nutrida de metafísica, a partir das concepções do autor. Mas as impressões plásticas que se depreendem são mais fortes. Mydlarska‐Kowal afirmava, talvez hipocritamente, se remeter sempre ao diretor. Ela considerava o teatro como a expressão da emoção, mas não deixava de ser a herdeira do modernismo e gostava de repetir, baseada em Léger e Witkaci, que o ator não passa de um elemento da composição. O ator, no teatro dramático, é um material plástico. No teatro de bonecos, em troca, ele põe em obra o espaço e as formas que eu crio em mim, enquanto cenógrafo. Eu penso que o ator, no teatro de bonecos, deve ter uma imensa imaginação plástica. O ator mexe com a forma, ele deve viver esta forma, ele deve senti‐la. É uma tarefa muito importante. E é o que distingue o ator do teatro de bonecos do ator do teatro dramático86.
Teatro de autor
Encontramo‐nos aqui bem longe das pesquisas dos primeiros reformadores. O que estaríamos no direito de esperar de um teatro plástico, de uma obra inteiramente concebida por um artista plástico, escultor ou pintor, vamos encontrar na Holanda, na pessoa de Henk Boerwinckel, artista plástico. Ele apresenta seu primeiro espetáculo em 1963. Tendo efetuado seu serviço militar num hospital psiquiátrico, seu universo, triste e quase deprimente, não é simplesmente pura formalização de seu imaginário, mas de seu passado. Comecei como desenhista, há muito tempo. Talvez por isso só possa conceber meus espetáculos desenhando. Eu não penso em pequenas histórias, em Geschichten, ou em Erzählungen, em contos, mas em imagens móveis. Quando desenho, anoto indicações de medidas para estudar a escala dos objetos que quero realizar. Indico detalhes técnicos e esboço as descrições sumárias das ações que às vezes se mostram irrealizáveis na prática. Como chego a essas idéias, é um mistério para mim também. Não sei de onde me vêm essas imagens. Elas pertencem ao mundo dos sonhos, ao lado mais sombrio da vida interior. No fundo, não posso
85 Stanislaw Ignacy Witkiewcz. Gyubal Velleytar. La Cité, Lausanne, 1971. Tradução de Alain van Crugten (N.d.T.)
86 Chce miec mój wlasny teatr (Eu quero ter meu teatro). Entrevista com Jadwiga Mydlarska‐Kowal. Teatro Lalek, 1988, no. 1‐2, p. 31.
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dizer nada a esse respeito. Quando concebo minhas imagens, penso de imediato na maneira de fazê‐las se movimentarem. Ainda é preciso encontrá‐la. O caminho é cheio de pequenas complicações e sua solução pede noites de reflexão, mesmo se tudo parece simples quando a gente fala disso. Eu só pinto e desenho pensando nos bonecos. Num certo momento de minha vida, pintei muitas paisagens e personagens. Mas em seguida não conseguia mais avançar. Para desenhar, eu tinha necessidade de ser inspirado por qualquer coisa a minha frente: uma paisagem, um homem, uma mulher nua... Eu não era capaz de criar meu universo interior unicamente pelo desenho. Enquanto que com os bonecos, eu fabrico meu universo interior87.
Boerwinckel percebe os homens em tons cinza escuro, com uma textura de pele rugosa e de roupas grosseiros, em forma de saco. Seus traços são deformados, às vezes muito exagerados, Às vezes apenas marcados por um traço forte. Eles olham numa direção bem definida, mas seu olhar é marcado por um algo mais, um sofrimento e às vezes hostilidade. Os bonecos de Boerwinckel são tão expressivos que poderiam constituir por si só o tema de uma exposição ou de um happening. Mas ele lhes dá vida, considera‐os como motivos a partir dos quais inventa histórias e cenários maliciosos, surrealistas.
Um realismo fantástico. No palco quase vazio, um cíclope de torso impressionante. Um único olho, um nariz deformado, uma longa barba. O cíclope se apossa de uma caixinha que coloca a sua frente. Ele tira seu olho do rosto e o põe na caixinha. Ele fabrica assim um aparelho fotográfico. Ele o vira para o público. Um clarão, uma foto. Ele tira o olho da caixinha e o recoloca em sua órbita. Depois tira uma foto da caixinha. Ele a examina com seu único olho e a mostra ao público – é a fotografia do público. E ele aponta para ele com um dedo ameaçador.
O Anão I. Uma marionete de rosto envelhecido e usando uma roupa marrom de listras violeta percebe acima dela os fios e a mão que os dirige. Ele gostaria de conhecer seu animador. Tenta escalar os fios até a cruz. A mão lhe ordena que fique embaixo, mas a marionete teima. A mão intervém de novo, mas a marionete se obstina em sua ascensão. A mão então intervém e a marionete se imobiliza, sempre suspensa a seus fios.
O Anão II. Um homem velho, um boneco de luvas, vestido de uma touca de noite, trabalha, escreve sem cessar. Uma mão lhe traz papéis. O velho dorme. Durante seu sono os papéis se invertem. A mão se encontra numa caixa fechada. O velho chama a mão e lhe bate. Depois de um momento, ele é tomado de piedade e a acaricia. Da caixa sai uma mão de cadáver que ataca o velho. Ele se acorda. O homem se põe de novo ao trabalho. A mão lhe traz papéis e acaricia‐lhe a cabeça.
O Anão III. O mesmo personagem, uma marionete. Ela percebe os fios que a dirigem. Ela resiste a eles, puxa‐os revelando a presença das mãos do animador. Ela lhe arranca a cruz das mão e cai por terra, inerte. As mãos designam e animam o miserável destino da marionete tão pouco inteligente, mas eis que logo elas também ficam suspensas, sem vida. Então a marionete se levanta. Ela se serve da cruz como de uma muleta e deixa a cena mancando.
87 Henk Boerwinckel. Um sonho em três dimensões. PUCK, 1989, no. 2, p. 30
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A maioria dos quadros representados tem a mesma característica surrealista. As três sainetes do Anão introduzem, além disso, elementos deste teatro que denominei auto‐temático. Elas evocam o estado de dependência no qual se encontra a marionete em relação a seu animador, trata‐se de uma espécie de desmistificação da natureza do boneco e de seu simulacro de vida. Entretanto, ao final da terceira sainete a marionete desmistificada é de novo mistificada: ela deixa a cena por seus próprios meios. Isso confirma a sensibilidade de Boerwinckel à magia da vida do boneco. Assim, o teatro plástico de Boerwinckel encontra facilmente seu lugar entre as tendências do teatro moderno.
Boerwinckel fez outras experiências teatrais que, como O Filho da Mãe Terra ou As Estações, conservam uma visão plástica do mundo surrealista e mesmo mágico, mas renuncia ao humor negro, aos efeitos de surpresa repousando sobre o jogo dos bonecos. Seus espetáculos são muito mais plásticos, no sentido em que evocam mais esculturas a serem contempladas que atores tendo um papel preciso. Seu último espetáculo, Trio para Pierrot (1989), também tem origens autobiográficas. Boerwinckel conserva de sua infância a lembrança onde está sentado no assoalho de uma bela peça, na qual havia um buraco. Nesse buraco ele descobre um mundo caótico em ruínas. O espetáculo conta a história de uma criança que brinca de boneca. Na janela aparecem cabeças horripilantes que a observam. Elas observam sua inocência. De repente abre‐se uma espécie de caixa que revela um buraco negro. A menininha olha no buraco e seu rosto desaparece. Ela entra no buraco, entra na vida. Ela perde sua inocência, para ela a vida começa. O teatro de Boerwinckel merece incontestavelmente o nome de teatro de autor. É um fenômeno bastante corrente entre os solistas, que encontramos em companhias ou grupos marcados pela forte personalidade de um artista. O teatro porta então seu nome. Com frequência as pessoas se referem ao teatro de Brook, de Grotowski ou de Mnouchkine, e poder‐se‐ia, do mesmo modo, falar do teatro de Obraztsov, de Nicolescu, de Meschke, ou de Krofta. Trata‐se de fato de um teatro de diretor.
A experiência é mais breve em Zygmunt Smandzik que só cria dois espetáculos de autor: O Pássaro (Ptak, 1976) e A Gavetinha (Szufladka, 1978). Utilizando formas plásticas originais que reduzem o homem a um ideograma atuando entre objetos simbólicos, ele expõe, num como noutro, suas reflexões pessoais sobre a natureza e a condição humana. Seu primeiro espetáculo causou grande impressão na França como o relata Annie Gilles: “O Pássaro, espetáculo visual e musical sem texto do teatro polonês de Opole, exibia, durante quarenta minutos, uma coerência temática certa: a humanidade (ou um grupo humano) comprometida numa evolução necessária pela própria duração do espetáculo, seus sofrimentos, a produção de seus ídolos, seus sonhos, em particular o de Ícaro ou de Leonardo da Vinci. Das conversas após o espetáculo, destacava‐se um reconhecimento comum desses temas, mas também a divergência das percepções individuais enriquecidas pela afetividade e a cultura de cada um, quando esses mesmos fatores associados a hábitos de leitura linear e intelectualizada não conduziam a uma recusa categórica do espetáculo88.”
88 Annie Gilles. Pequeno organon para o boneco. CDDP des Ardennes, Charleville‐Mézières, 1977, p.20‐21
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O Teatro de Fogo e de Papel (Teatr Ognia i Papieru, 1984), de Grzegorz Kwiecinski, também pode ser considerado como um teatro de autor. Kwiecinski, sob a máscara de um demiurgo ou do destino, mostra encima de uma mesa uma série de figurinhas recortadas num papel branco. Elas representam personagens cujo tamanho exprime a função social, e uma série de símbolos emprestados na sua maior parte à cultura judaico‐cristã. Ele os anima sucessivamente incendiando‐os, ou seja, “animando‐os” com fogo. O holocausto de dezenas de figuras de papel simboliza o destino do homem e da civilização. Não se sabe exatamente se trata‐se de uma destruição total ou de uma tentativa de purificação. Além disso, o fogo não é apenas um elemento metafísico, ele preenche também funções estéticas, trazendo incessantes modificações à composição original e tornando‐se ele próprio um elemento provisório. Não resta dúvidas de que Kwiecinski propõe um novo tipo de narrativa teatral que, dada sua estrutura – uma sucessão de imagens –, pode ser considerada como uma narrativa plástica, ou pelo menos como um embrião de narrativa plástica.
Entre os bonequeiros da nova geração, Liz Walter e Gavin Glover que dirigem desde 1987 o Faulty Optic Theatre of Animation, em Londres, aprenderam seu ofício no teatro de John Wright, The Little Angel Theatre. Ao conhecer seus espetáculos, eu me perguntava se seu mestre não fora na verdade Boerwinckel. Eles criam seu universo plástico com o rebotalho de nossa civilização, no qual inscrevem criaturas humanas que se lhes assemelham. São bonecos cinzas ou marrons, deficientes, que se encontram em situação de perigo. Eles não têm a expressividade dos de Boerwinckel, mas essa falta é compensada pelo contexto da história: encontramo‐nos num mundo extravagante, um mundo de pesadelo onde desfilam sob nossos olhos indivíduos perdidos num universo que possui suas próprias leis.
Em Snufhouse Dusthouse (1990), descobrimos na cena uma construção que poderia ser uma residência de vários níveis ou um simples espaço teatral terrivelmente cheio; anda de lá para cá um aleijado, dispondo de todo um aparato técnico que lhe permite se deslocar com a ajuda de um bonequeiro visível). Essa criatura dá mostras de uma extrema mobilidade e previdência. O espectador descobre, ao mesmo tempo que ela, todos os seus tesouros, cujo sentido e utilidade lhe escampam. Sem nenhuma palavra (seus espetáculos são todos mudos), a ação dos personagens é o elemento mais importante, chega‐se a compreender que a obsessão desse homenzinho é deslocar‐se. Como ele não tem pés, a cena onde tenta calçar um sapato toma uma dimensão trágica. Outras ações vão permitir ao herói superar essa falta e na cena final ele tentará voar, num vôo tão desajeitado quanto o é ele próprio. Com toda evidência, trata‐se de um teatro plástico poético cujas metáforas permitem uma parábola sobre a força vital do homem e a pequenez de suas soluções. Esta obra é, aliás totalmente aberta, há mil e uma interpretações possíveis.
Liz Walker e Gavin Glover manipulam à vista seus bonecos com empunhaduras fixadas a seu pescoço ou costas. Eles não têm nenhuma relação com elas e animam sua visão do mundo, cheia de alegorias, alusões e imagens surrealistas. Mas esse teatro não tem um caráter pictural, é feito de objetos encontrados e de esculturas em três dimensões. O impulso criador reside no tema que é sua primeira preocupação e os leva
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a construir personagens e imagens. A história nasce num segundo momento. Primeiro pensamos no tema que gostaríamos de aprofundar e, depois, nas diversas imagens com as quais poderíamos exprimi‐lo. A partir dessas imagens, deixamos uma pequena história eventual se desenvolver. Sentimos então que certas idéias funcionam e outras não. Por exemplo, o tema de Snufhouse Dusthouse era o “isolamento”. Tínhamos esboçado em dezenas de pedaços de papel todo tipo de croquis e imagens. Delas retivemos Mabel como personagem principal. Ele emergiu rodando num carro improvisado num universo autônomo, mas totalmente isolado. Construímos uma grande grua de quatro metros de altura para cavar simbolicamente seu passado, depois abandonamos essa idéia por um modelo menor. Infelizmente, como o carro também era incômodo para manipular, tivemos que renunciar a ele. Nós nos encontramos então frente ao seguinte problema: como Mabel iria se deslocar? Ela não tinha pernas e tentava se lembrar de como as perdera. Seus pais as tinham cortado quando ela era pequena, para puni‐la por ter saído de casa, e ela vive numa solidão total desde que morreram. Assim, uma história se desenvolveu a partir dos primeiros desenhos, através das diferentes etapas de produção, ensaios e finalmente ao longo das primeiras apresentações, e estávamos sempre prontos a modificá‐la. Este modo de trabalhar dá às vezes dor de cabeça, mas é extremamente estimulante. 89
Escolher um tema existencial ou emocional torna‐se assim um procedimento comum. Além do mais, quando esse faz uso da plástica e do boneco, ele se revela particularmente rico, graças à interação entre conceito e matéria. E essa confrontação entre elementos linguísticos e matérias brutas ou objetos encontrados, ultrapassa com frequência a primeira intenção do criador. Acontece o mesmo nas relações entre a pintura e o teatro. Ela foi por muito tempo o único meio de “ilustrar” o espaço cênico antes que os cenários tridimensionais não a expulsassem do teatro. Ela retorna com força, afirmando sua materialidade e sua picturalidade, mas delicada demais, ela se submete. Acontece o mesmo no teatro de bonecos. Em As Estações do Pônei (direção: Irina Niculescu, cenografia: Ana Puschila,1980) criado no teatro Tandarica de Bucareste, a tela de fundo e o tapete do chão representam uma paisagem com um delicado jogo de cores e elementos naturais. As marionetes são feitas de tule e de madeira leve. Por meio de um jogo de cores, a luz modela as variações sazonais desse espetáculo poético e pictural, quase “impressionista” de marionetes clássicas, cuja força criativa deixa transparecer os efeitos visuais.
Os espetáculos de Boerwinckel, Glover, Hejno e Irina Niculescu respeitam a convenção do teatro de bonecos homogêneo. Eles dão ao universo plástico um papel principal. Se penetrar nesse universo o homem se tornará por sua vez uma forma, uma figura geométrica ou uma cor. Os artistas plásticos são assim adeptos naturais do teatro de bonecos homogêneo, quer ele seja ou não realista.
OS PINTORES NO TEATRO
Para muitos artistas, a cenografia pictural é um procedimento insuficiente. Nos anos 40, na França, o bonequeiro Jacques Chesnais se inspira na pintura de Léger.
89 Entrevista de Henryk Jurkovski com Gavin Glover, em 30 de junho de 1993, a Charleville‐Mézières.
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Outros se perguntam se o teatro não poderia fazer o mesmo com as obras de Bosch, de Breughel ou de um pintor polonês, Makowski. Somente alguns poucos tentaram realizar esse sonho, convidando grandes pintores para colaborar com eles.
Miró, Mata, Saura
Joan Baixas, o fundador do teatro La Claca em Barcelona (1968‐1988), fez da animação da pintura um programa teatral: A pintura representa para mim um dos motores principais da arte dos bonecos. É no seio da imobilidade plena de energia do espaço pictural que encontro o ponto de partida do movimento das figuras. Este movimento, por definição, não pode ser nem naturalista nem representativo – nem simbólico também, porque deve ser antes de tudo original, próprio a si, autêntico. O movimento é a vida, a base de nossa arte, a essência mesma do personagem. E ele é também a vida do espetáculo, sua própria respiração. Devo precisar que quando falo de figuras, não faço nenhuma distinção entre bonecos e máscaras, entre objetos ou formas abstratas. A arte das figuras consiste numa emoção criada pelo jogo cênico de objetos encarregados de significações e assumidos por um ator. Que este se sirva de seu rosto, de sua mão ou de não importa que outro meio mecânico não tem para mim nenhuma importância. O espetáculo das figuras estabelece um diálogo muito enriquecedor com a pintura. O pintor fornece não apenas as formas que os personagens vão adotar, mas oferece essencialmente o ritmo e o movimento, a atmosfera e a pulsação vital, a casa e a paisagem, a existência física e mental dos personagens e, por consequência, da peça. 90.
Baixas convida Miró e lhe propõe conceber de outro modo seu trabalho. O pintor propõe e La Claca realiza o seu. “O trabalho teatral, isso é com vocês!” declarou abruptamente Miró. O artista, de oitenta nos de idade, aceita o convite com entusiasmo. Seduzido pela idéia de montar Ubu Rei de Jarry como um comentário do regime fascista em plena decomposição quando da morte do general Franco. Durante o trabalho, Baixas e ele decidem de comum acordo mudar de tema, sem renunciar entretanto à idéia inicial. Foi assim que nasceu A Morte do Tirano (Mori el Mesma, 1978). Sem intriga precisa, o espetáculo provoca a mesma impressão que a pintura ou a música. Miró inventa personagens de formas fantásticas, que ele próprio confecciona e pinta. O assunto o obriga, no entanto, a abandonar as cores claras e as formas otimistas. O que não escapa à crítica de Cristian Armengaud: É de fato todo um mundo sangrento e erótico, grotesco e arruinado, levando às vezes a incongruência aos limites da escatologia, que vai se recriar sob nossos olhos. Por trás do surrealismo, o espírito de Dada (Miró ilustrou Tzara) e o sentido de inúmeros símbolos escapa ao observador não advertido. Num canto da cena, silencioso, sem máscara nem maquiagem, uma jovem mulher numa jaula de madeira, única personagem totalmente humana, desfia alguns raros gestos cotidianos... Trata‐se de uma imagem da condição
90 Joan Baixas, Le boulot théatral, c’est votre affaire! (O trabalho teatral, isso é com vocês!) PUCK, 1989, No. 2, p. 14
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feminina? Ou duma bela adormecida no bosque cujos sonhos se materializam? “O sono da rainha engendra os monstros”; de fato não estamos longe de Goya em quem por muitas vezes, esquecendo Miró, nos surpreendemos a pensar91.
A participação de Miró na elaboração do espetáculo não deixa de ser um acontecimento. Ele está presente em todas as etapas de sua gestação, controla a construção dos personagens (das máscaras, dos figurinos) pinta‐os ele mesmo em três dimensões e deixa o cuidado da encenação e da animação a Baixas, que se esforça por interpretar e transpôs para a cena o ritmo plástico interno da obra de Miró.
La Claca colabora igualmente com Antonio Saura e Roberto Sebastian Mata. Baixa realiza com Saura Peixes Abismais (Peixos Abismals, 1982). Saura sempre manifestou interesse pelas máscaras das sociedades primitivas que constituem o ponto de partida do espetáculo. Ele as simplifica bastante, reduzindo‐as quase à geometria. Ele as branqueia e marca de leve os olhos. Trata‐se de fato de pré‐máscaras, de larvas ou de arquétipos de máscara, que convidam ao ritmo e à expressão de ritos. Com Mata, Baixas cria O Labirinto porque percebe nas telas de Mata uma imagem do labirinto do mundo. Inspirando‐se um no outro, eles atingem uma forma ideal. O espetáculo se desenrola sob uma barraca. Na primeira parte, o público se encontra num labirinto feito de uma rede de cordas e de aprestos, observando aqui e ali acontecimentos transpostos de uma exposição de Mata sobre o tema de Dom Quixote intitulado Dom Qui. Um labirinto de acontecimentos e seu Minotauro constituem a segunda parte, em referência à mitologia grega. Não resta nenhuma dúvida que Miró e Mata exerceram uma influência considerável sobre os espetáculos de La Claca. Podemos em troca perguntar‐nos em que medida uma obra plástica pode ser transposta a uma obra teatral, se levarmos em conta as teorias de Baixas. Será o teatro que interpreta a obra plástica ou a obra plástica que impõe suas regras? E quanto ao cenógrafo ou pintor, qual deles criou uma obra que possa resistir ao efêmero? O primeiro está submisso ao diretor, a sua visão do universo teatral, do único e do efêmero da representação, enquanto que o segundo pode criar obras que atravessam os séculos? É sem dúvida por essa razão que muitos teatros convidam pintores para aceitar o papel de cenógrafo plástico: eles não têm em mente uma animação da pintura, mas um olhar ou uma técnica plástica nova.
Por essas mesmas razões, alguns artistas tentam adaptar à cena o mundo de Enrico Baj. Os primeiros a fazê‐lo foram criadores de ópera, mas eles não conseguiram sair das trilhas batidas da cenografia nem utilizar plenamente a riqueza da pintura e as colagens de Baj. A colaboração de Baj com Monaco de Pistola foi mais frutuosa. Pistola propõe ao pintor a montagem de Pinóquio em seu Teatro Porcospino. Baj começa por recusar depois se contenta em enviar‐lhe uma pilha de catálogos e de desenhos cobertos de vampiros, de fadas e de monstros. Pistola, com a colaboração de Andrea Rauch, extrai uma imagem coerente de um mundo fantástico e realiza um Pinóquio (1980) totalmente pictural.
91 Christian Armengaud. Mori el Merma. Miró – Claca, uma estréia em Barcelona. Marionnettes. UNIMA‐França, 1978, no. 61, p. 15.
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O sucesso de Pinóquio teve efeitos positivos sobre Baj, que se deixa então seduzir pelas proposições de Massimo Schuster e confecciona, com peças mecânicas, os bonecos de Ubu Rei (1984). Schuster, por seu lado, com a força de expressão que o caracteriza, dá as réplicas dos personagens de Jarry deslocando, transportando ou batendo violentamente peças mecânicas de todas as cores. Este sucesso garante a colaboração entre os dois artistas. A Ilíada surge em 1988. Baj cria bonecos de madeira semelhantes a simples brinquedos com traços aparentes segundo os diferentes personagens. Baj está completamente encantado com a expressão dramática de Schuster e da visão clara que ele tem dos temas escolhidos. É sem dúvida por essa razão que vai intitular suas notas do relato dessa colaboração: “Eu, o Boneco”. Foi um episódio de sua vida artística que ele aprecia particularmente. Gosto de fazer bonecos, escreve ele; é como fazer mundos e representá‐los nos quadros. É como colocar neles personagens, esperando então que os quadros e as figuras aí façam das suas, se mexam, se animem, falem, discutam, zombando e ridicularizando. Eu gosto do boneco, porque pode ser feito de qualquer coisa, como uma colagem. Ou melhor, é uma colagem de coisas, de histórias, de objetos e de homens. Porque quando Schuster empunha esses pobres aqueanos, ele faz com que falem, sofram, divirtam‐se e gritem, esses pobres pedaços de madeira, feitos para amar92.
Magritte e os surrealistas
Uma obra plástica pode também inspirar uma criação teatral sem a participação do autor. Assim, o primeiro a adaptar a pintura de Magritte à cena foi Ray Nusselein, de quem o Paraplyteatret, de Copenhaguen, apresenta no festival de Hvidovre, em 1987, um espetáculo intitulado Le Ciel en Poche (O Céu no Bolso). A organização do espaço cênico é aí muito importante. Constituída de um espaço livre em círculo reservado aos espectadores, ele é limitado por divisórias de tecido, como uma tenda. Os atores convidam docemente o público a penetrar nesse espaço. Enquanto isso, um harpista dá um recital. O espetáculo propriamente dito começa no momento em que é descoberta a cena (uma parte do tecido é erguido), que representa uma colagem surrealista, em três dimensões, de quadros de Magritte. Pouco a pouco a realidade do teatro (o Homem, a Harpista) penetram no mundo da colagem e certos elementos se deslocam na sala, cercam o público, sugerem‐lhe associações de idéias. Os elementos mais importantes são o céu e um pombo. O céu, saído de uma luva da Harpista, se desloca por todas as paredes da construção. O pombo segue o céu, mas ele é estático, ele não voa, desliza, não passa de um elemento da composição. O céu e o pombo são símbolos que se mostram invasivos. Estão em todo lugar, oferecem novas perspectivas. Os personagens em cena (o Homem, a Harpista) têm relações com esses elementos impessoais da colagem a fim de suscitar novas imagens poéticas das quais nem sempre é possível verbalizar o sentido. Essa tentativa de transpor as qualidades poéticas da pintura de Magritte num espaço teatral de três dimensões é bem sucedida. O surrealismo das imagens não choca; ao contrário, ele dá destaque a seu sentido poético.
92 Enrico Baj, Eu, o boneco. PUCK, 1989, no. 2, p. 62.
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Os criadores de Céu (1990), do teatro Taptoe de Gand, tentam extrair acentos surrealistas, uma poética do sonho adormecido. Não é por acaso que o céu é o lugar, real ou sonhado, da ação. O céu, as nuvens que atravessam livremente o quadro da janela, as rochas e os pequenos objetos suspensos nos espaços celestes – desafiando todas as leis da gravidade, são o principal leitmotiv da criação do artista. Os realizadores preenchem esse cenário de acessórios absurdos: por uma janela do quarto celeste, percebemos um outro céu, maior, onde voam maçãs e peixinhos, a porta está bloqueada por um armário sem fundo que fornece aos dois heróis objetos que o doutor Freud em pessoa não teria desprezado analisar. O movimento cênico começa pelo tremor de uma cortina sanfonada, pintada de azul céu com pequenas nuvens brancas como todo o quarto. Tem‐se a impressão de que é o céu que lança profundos suspiros. Por trás do parapeito da janela, descoberto por uma nuvem edredom se destaca um pente gigantesco, do tamanho de um homem, que serve de escada a um senhor magro e longuilíneo usando um chapéu coco, com bigodes também em forma de pente. Um senhor gordo e baixo chega num balão. O senhor magro se diverte e limpa a casa, o pente tem várias funções: ora é um aeroplano, ora uma vassoura de esfregar o parquê. Com a chegada de seus companheiros começa um jogo de espelho dos personagens que se imitam uns aos outros. Logo o céu faz parte do jogo, fornecendo indefinidamente novas visões e novos objetos a esses senhores de chapéu coco, como um guarda‐chuva azul turquesa no qual chove93...
Nesse espetáculo, as idéias surrealistas fusionam sem atingir as de Magritte. Mas a questão não é esta. O importante é que esse teatro toma emprestada sua linguagem à arte pictural e tenta adaptá‐la a jogos no espaço. Uma maneira bem diferente comparada à de utilizar as artes plásticas para fins cenográficos. Temos lá a interação das estruturas dos meios de expressão das artes plásticas e da arte dramática. O boneco permanece um ícone. Ele vive mais sua vida de material que a de significado, ao qual deve servir.
Teatro visual
Quer sejam ação de cenógrafos ou inspirados pela arte pictural, os teatros e espetáculos evocados acima permanecem no campo do teatro de bonecos. Consciente de que o termo genérico boneco tinha então conotações desusadas, tenta‐se substituí‐lo pelo termo figura. Procurava‐se também pelo lado do teatro de animação ou do teatro da matéria. Mas foram bem raros os bonequeiros que desejaram sublinhar os elos de seu teatro com as artes plásticas. O teatro alternativo Bama, de Jerusalém, que se define como “teatro visual”, está entre essas exceções.
Saído diretamente do teatro de bonecos, fundado em 1980 por um grupo de jovens artistas dirigido por Hadass Ophrat, ele traz primeiro o nome de The Train Theatre. Ophrat não demora a se dar conta de que é necessário encontrar um novo nome para o trabalho de seus bonequeiros. Ele propõe o nome de “teatro visual” que
93 Hanna Baltyin. Okno w niebie (Uma janela no céu). Teatr Lalek, no. 3, 1992, p. 6
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concebe como uma mistura das artes plásticas e da performance94. A atividade do grupo reunido em torno do Train Theatre hoje se desenvolveu muito.
Ophrat dirige no momento o Conservatório do Teatro Visual e organiza bienais internacionais de teatro em Jerusalém. Mario Kotliar, novo diretor do Teatro Bama, como o relata Fa Chu Ebert, considera que: A arte dramática entrou numa etapa de “composição aberta” onde a comunicação verbal perdeu sua supremacia e onde as concepções realistas e psicológicas do teatro não bastam mais. O teatro se encontra assim submisso à subjetividade dos espectadores que reagem sobretudo às imagens. O papel do ator perdeu sua importância, e sua situação se reduziu a de um elemento da composição. Isto abre caminho a um teatro visual que reúne vários meios de expressão e não é freado pelas categorias tradicionais porque se volta para as artes plásticas, a poesia, a música e a dança. No drama convencional, o espectador se encontra num mundo identificável e, mesmo se esse drama exprime uma subjetividade, ele obedece a leis universais. No teatro visual, é a lógica “pessoal” que dá a lei, repousando sobre as livres associações de idéias do artista. E o visual sempre suplanta o verbal. As concepções do artista são às vezes de tal modo herméticas e subjetivas que podem ser incompreensíveis. É um risco a correr95.
Esse teatro visual reúne artistas vindos de todos os horizontes, que se exprimem cada um em sua língua. Entre estes criadores Marit Benisrael que trabalha sozinha, apresenta trabalhos muito interessantes. Suas “miniaturas” respondem a todas as condições de um teatro visual poético. Ah, se Apenas (Ach, if Only, 1990) é a obra mais representativa de sua criação: Essa obra, inspirada em As Três Irmãs de Agnon, representa os fantasmas de mulheres envelhecendo que ganham sua vida confeccionando vestidos de casamento. O espetáculo é uma espécie de strip‐tease, onde uma atriz, à medida em que se despe, revela as diferentes camadas de sua intimidade. Em certo momento, ela exibe um seio murcho que ela abre por um fecho éclair e de onde tira os símbolos de suas frustrações adormecidas: uma roupinha de criança, um pijama de boneca, etc. Esse espetáculo – de grande sensualidade tanto pelo tema quanto pela material utilizado: a pele, os cabelos, o pain kacher ‐ contém o calor e o sentido da vida. O conjunto, que compreende elementos do teatro de bonecos, da música, da dança e dos diversos acessórios, apresenta associações de idéias muito pessoais que não são desprovidas de humor nem de tragicidade. É difícil descrever esse espetáculo, tamanho é o domínio da imaginação subjetiva. Se vai‐se assistir a uma obra de S. Y. Agnon, corre‐se o risco de ficar decepcionado, porque,. de fato, o que se vê é Marit Benisrael. Mas esse seu universo pessoal, de dor, de riso e de magia, ou seja, de teatro, vale a pena ser descoberto96.
Benisrael pratica a metáfora com muita liberdade. O seio feminino enquanto veículo de frustrações recobre um campo muito amplo de associações de idéias. As
94 Hadass Ophrat. Puppet Theatre; Medium and Message (Teatro de bonecos; meio e mensagem). Ariel, Jerusalém, 1987, no. 69, p. 44.
95 Fa Chu Ebert. Bama, Jerusalem’s Visual Theatre (Bama, o teatro visual de Jerusalém). Assaph, 1990, no. 6, p. 180.
96 Hadass Ophrat. Puppet Theatre; Medium and Message (Teatro de bonecos; meio e mensagem). Ariel, Jerusalém, 1987, no. 69, p. 164.
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diferentes soluções trazidas são todas do mesmo gênero. As três irmãs são representadas por uma mão (uma sinédoque), que se reflete em três espelhos (uma metáfora). Esses meios que são também uma marca da engenhosidade e da ingenuidade femininas, seriam um elemento de humor sem a mensagem trágica do espetáculo. Classificar esse tipo de espetáculo no teatro visual implica, claro, numa questão subjetiva. Esse espetáculo põe em evidência uma problemática feminina, que na obra de Benisrael encontra uma expressão universal e oposta a nossa cultura, dominada até o momento por uma mentalidade masculina.
Na Finlândia, surgem as mesmas preocupações. Algumas artistas exprimem com a ajuda do boneco uma parte de sua vida íntima. Não há lá nenhum acaso, porque elas podem desde então se apossar de meios de expressão poéticos como o testemunha a obra de Kristina Hurmerinta, atriz e diretora do teatro Peukalopotti de Vaasa, fundado em 1976. Ela começa com espetáculos para crianças onde o objeto substitui o boneco (A Casa de Vidro da Infância, 1985), depois faz A Cena de Pandora associando‐se com Anna Proszkowska, diretora e Eeva Siltavouri, pintora e poetisa. Todas as três criaram um tríptico: A Divina Comédia seguindo uma ótica feminista na escolha dos acessórios (A Ceia, 1986), na escolha dos disfarces (A Arena, 1987) e na escolha de uma situação de espera como sujeito dramático (Ítaca, 1990). Essas três mulheres quiseram elevar suas preocupações a um nível universal e humano, como observa Marjatta Ripsaluoma que faz o prefácio do programa do tríptico: A cena de Pandora tentou tornar visível o que é inconsciente em nós: o ideal, o sonho, o mistério, a inclinação para o maravilhoso. Para chegar a isso, o teatro aplicou em seus espetáculos todo tipo de experiências no campo da cor, da forma, da luz e da música, utilizadas como metáfora do mito arquétipo tão fortemente encravado em nossa herança cultural ocidental. A cena de Pandora propôs sua interpretação do mito – cabe ao público criar a sua a partir do que vê e entende.
O mito toma aqui uma nova cor e esses espetáculos se aproximam mais de uma comunhão, uma partilha do próprio sofrimento do artista. Essas mulheres buscam estabelecer um elo material com os espectadores para sugerir que suas experiências de artistas podem também ser a do público e em particular a de Hurmerinta que descobre no fim do espetáculo seu rosto de mulher.
Como classificar esses espetáculos? A história dos gêneros do espetáculo possui termos como “cena muda”, “apresentação de mímica” ou “teatro poético” ainda “exposição” ou “cena com acessórios”. Nada parece suficiente. Ficaremos com a proposição de Ophrat, porque ela exprime o desejo de se liberar da literatura dramática para dar livre espaço a todos os elementos da composição cênica. O teatro plástico é o apogeu disso.
Interferências
As iniciativas de Baixas, Nusselein ou Neyrinck sublinham a contribuição de artistas plásticos e a vontade dos bonequeiros de se reaproximar de outras disciplinas artísticas. O tempo da especificidade do boneco estaria terminado? De fato, a autonomia do boneco não é questionada, mas os meios visuais ou plásticos ganham em importância sobre o aspecto “literário” do teatro. Ao reduzir o papel da literatura, o
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teatro de bonecos se reaproxima do teatro plástico, nas fronteiras do teatro de atores e das artes plásticas. Ainda é muito cedo para falar de uma identificação total. Os dois gêneros nasceram de princípios diferentes e numa época diferente. Quando falamos do teatro de bonecos, privilegiamos o teatro e por consequência a noção de papel e de personagem. Há apenas quinze anos atrás, o boneco podia ser considerado como um sujeito cênico (ou pelos menos seu substituto). O teatro plástico partiu do princípio de que todos os seus elementos são objetos submetidos à composição e o sentimento da reificação do boneco parece cada vez mais impregnante no teatro de bonecos contemporâneo. Ele permanece um signo de um personagem, e não é um elemento de composição entre outros. Do mesmo modo, a despeito de seus inúmeros pontos comuns, o teatro de bonecos que se orienta para as artes plásticas e o teatro estritamente plástico, não têm a mesma origem. A evolução das artes plásticas e o aparecimento de novas técnicas como a colagem, o meio ambiente, a reunião, os happenings, vão presidir ao nascimento desse teatro. Nos anos 70, os fenômenos para‐teatrais como os happenings foram pouco a pouco substituídos por um teatro plástico autônomo. Uma vez rompidas as barreiras entre diferentes disciplinas artísticas, a assimilação e a interpretação desses diferentes universos foram com frequência concebidos de maneira estrutural. A música não bastava mais para exprimir as emoções dos heróis, os artistas de teatro como os coreógrafos se inspiravam na estrutura das obras musicais para compor as sequências de quadros cênicos. O teatro empregava os meios do teatro de bonecos, a pantomima, meios plásticos artificiais e os músicos se interessavam pela ontologia do som. Tratava‐se de uma enésima revolução da arte dramática.
Teatro de artistas
Artistas de disciplinas “não teatrais” fazem então sua entrada no teatro. Eles não se inserem no mundo do boneco propriamente dito, mas utilizam na verdade simulacros do homem (como o manequim ou outras apresentações icônicas). Estes artistas plásticos buscam com freqüência respostas a questões fundamentais da arte teatral, exprimindo seu ponto de vista sobre a vida e tratam às vezes de problemas escatológicos. Esse foi o caso de Tadeusz Kantor.
Excelente pintor, ele pôs em aplicação sua concepção do teatro com o teatro Cricot 2, que fundou em 1955 em Cracóvia com um grupo de amigos. Sua abordagem do teatro evoluía constantemente. Cada comentário que Kantor fazia sobre seus espetáculos tornava‐se um manifesto artístico. Ele fala, portanto, primeiro de teatro autônomo, individual, de teatro “informal”, antes de praticar um teatro do impossível, e enfim o “Teatro da Morte”. Essa última concepção foi a mais duradoura desde A Classe Morta (Martwa Klasa) até o último espetáculo que preparou antes de sua morte em 1992, Hoje é Meu Aniversário (Jutro Beda Moje Urodziny).
Quando Kantor se interroga sobre a interpenetração das diferentes disciplinas artísticas (a música, as artes plásticas, a literatura), e fala de “realidade de nível inferior”, ele não se refere ao teatro de bonecos. Ele o situa com freqüência entre o objeto e o manequim que introduz na cena. A teoria de Marcel Duchamp, inventor do ready‐made e do termo surrealista objeto encontrado, lhe basta. Ele transpõe esses termos ao espaço
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de seu teatro. Os objetos fazem parte da realidade, eles não vêm de um mundo de ficção, não são criados para a ficção. Eles constituem a matéria do espetáculo que se torna uma espécie de composição de objetos encontrados, de que o texto da peça e o ator fazem parte integrante. Pode acontecer mesmo que este último seja objetivado pela anulação dos sentimentos. Kantor representa aqui uma atitude própria a muitos artistas plásticos que se interessaram pelo teatro. Basta lembrar a ambição que nutria Léger por reduzir o papel do ator: Separar a sala da cena, fazer de modo que o indivíduo desapareça, mas utilizar elementos humanos. Introduzir na cena a invenção. Aparecerá então um elemento humano, que terá tanta significação quanto um objeto e os cenários97.
Segundo Kantor, o “ator vivo” se opõe ao manequim (e portanto à super‐marionete). Ele escreve no Teatro da Morte: Eu não penso que um manequim (ou uma figura de cera) possa substituir, como o queriam Kleist e Craig, ao ator vivo. Seria fácil e além do mais ingênuo. Eu me esforço por determinar os motivos e a destinação dessa entidade insólita surgida inopinadamente em meus pensamentos e em minhas idéias. Sua aparição se combina com esta convicção cada vez mais forte em mim de que a vida só pode ser expressa na arte pela falta de vida e o recurso à morte, por meio das aparências, da vacuidade, da ausência de qualquer mensagem. Em meu teatro um manequim deve tornar‐se um modelo que encarna e transmite um profundo sentimento da morte e da condição dos mortos – um modelo para o ator vivo98. Este “ator vivo” é um elemento da realidade, é um ator que representa um personagem morto. Neste sentido, é um manequim vivo, um engodo. Ele não deve ser um material responsável, como o queria Craig: basta‐lhe ser, situar‐se entre a morte e a vida.
São inúmeros os espetáculos nos quais Kantor recorre a objetos e manequins. Só há um onde estes últimos possuem os traços do boneco, ainda que Kantor pudesse acreditar no contrário. Trata‐se de A Máquina do Amor e da Morte, apresentada na Documenta de Kassel, em 1987. A Máquina do Amor e da Morte retoma A Morte de Tintagiles, de Maeterlinck, espetáculo de bonecos montado por Kantor em sua juventude e que continha, em germe, todas as suas máquinas e seus manequins. As três Nornes a serviço da terrível Rainha são representadas sob forma de três autômatos insensíveis, portadores de destruição. Na primeira parte de A Máquina de Amor e da Morte, estamos no teatro de bonecos de Tadeusz Kantor, em 193799. Isso explicaria o caráter “marionetizado” do espetáculo, ainda que tenhamos todas as razões para duvidar que a essa data, Kantor tenha podido optar por uma manipulação à vista, antecipando assim de uma vintena de anos a prática do teatro de bonecos profissional. Por outro lado, esses animadores se comportam como os personagens de seus outros espetáculos (Wielopole, Wielopole); um mundo de fracassados e de cômicos de chapéu coco e roupas pretas. Os personagens de A Morte de Tintagiles são bonecos esqueléticos
97 Andrzej Matynia. Tradycja i filozofia dzialan plastycznich Leszka Madzika (Tradição e filosofia dos “jogos plásticos” de Leszek Madzik) em: Teatr Bezslownej Prawdy (Teatro da verdade sem fala). Scena Plastyczne Katolickiego Uniwersytetu Lubelskiego. Sob a redação de Wojciech Chudy, p. 53
98 Tadeusz Kantor. O Teatro da morte. Em: International Theatre Informations, Paris, hiver‐printemps 1976, p. 10.
99 Franca Silvestri. Volta ao Teatro mecânico de bonecos.
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manipulados à vista (as irmãs do herói e o tutor deste, Agloval). Os servos da Rainha são autômatos impassíveis. A Rainha, um ator sinistro vestido de preto. A diversidade dos meios de expressão utilizados reaproxima esse espetáculo do teatro de bonecos contemporâneo. Os bonecos‐esqueletos são manipulados à vista, os atores –animadores lhes dão poses correspondendo ao texto dito em play‐back. O drama da ameaça, tal como escrito por Maeterlinck, se realiza através do comportamento dos atores. Eles são de início inconscientes do perigo que paira acima do menino e conservam seu bom humor e sua alegria maníaca quando eles conseguem colocar convenientemente seus bonecos. Mas pouco a pouco, eles pressentem o perigo, e seu terror se comunica então aos espectadores. A convergência entre o animismo à distância praticado pelos bonequeiros e a aproximação de Kantor parece evidente. A Morte de Tintagiles é o único exemplo disso, e é praticamente certo que Kantor tinha um objetivo totalmente diverso dos bonequeiros. A coincidência resta espantosa e merecia ser sublinhada.
Essa analogia leva a uma outra sobre a vida de certos objetos e manequins animados pela memória e a lembrança. Nós vemos nossas lembranças vivas e as acreditamos vivas. A diferença é tão fina entre acreditar e fazer crer. Os povos primitivos tinham essa crença e é por esta mesma razão que o boneco fez parte do mundo dos mortos (ao menos em certos mitos). Nesse contexto, Kantor ficou sem dúvida mais perto do boneco do que o imaginava. Ele não pertence, no entanto, ao mundo do teatro de bonecos e restringi‐lo exclusivamente ao mundo do teatro plástico seria talvez abusivo, mesmo se a crítica o define como artista plástico do teatro ou o criador de um teatro plástico.
Leszek Madzik, que dirige a Cena Plástica da Universidade Católica de Lublin desde 1970, é um outro testemunho desta via aberta para o teatro plástico. Ele inicia sua carreira como cenógrafo. Os cenários, concebidos como um espaço plástico, servem de ponto de partida para imagens sugestivas, formando‐se segundo uma ordem temática e atingindo um alto grau de abstração. Ele renuncia quase totalmente aos atores tradicionais. Se há presença do homem, em geral é para jogar o papel de uma “imagem de homem” mais do que o de uma personagem. Esses quadros são seu principal meio de expressão. Eles se compõem, com uma grande precisão, de humanos, de manequins, de personagens – meio‐figurinhas, meio‐bonecos – e de todo tipo de materiais que os membros do grupo, dissimulados nas coxias, manipulam com muita habilidade.
Os primeiros espetáculos de Madzik, como Ecce Homo e Ícaro, têm referências culturais e mitológicas evidentes. Eles permitiram considerar a Cena Plástica como um teatro de bonecos de meios de expressão variados onde a distribuição dos papéis e a criação de metáforas servem para desenvolver harmoniosamente a simbólica geral do espetáculo. O espetáculo é uma sucessão de imagens sem comentários: O vôo de Ícaro para o sol (longa corrida de um ator sem máscara) sua queda e seu encontro com a terra. Em seguida, aparece a doença de Ícaro (um ator com máscara). Ícaro é condenado à cadeira de rodas, se debate com sua poltrona, com enormes bonecos que dão voltas em torno dele, tenta se comunicar com seu entorno, rompe o isolamento provocado pelo sofrimento e a enfermidade; ser liberado para o amor, ter a visão da Morte, do Julgamento, da Justiça, do Bem, do Mal, e enfim arrojar‐se sobre um público de manequins todos semelhantes e sentados em praticáveis – como se
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eles fossem seu reflexo num espelho. Para encerrar o espetáculo, a morte de Ícaro. Ele cai de sua cadeira de rodas numa estreita passagem entre a sala e seu reflexo100.
Nos espetáculos seguintes, ele aborda temas universais, que fazem abstração do contexto cultural e histórico. O artista obriga o espectador a renunciar à busca das referências culturais, e o empurra para uma reaproximação com a natureza e a biologia humana. Acuado pela crítica, sem ter elaborado uma teoria de sua prática, ele define seu processo de criação como um pensamento por imagens. Entretanto, sua atividade é bastante próxima da do teatro de bonecos. Sua poética e seus meios de expressão têm fontes teóricas comuns às do boneco: Não é o desejo de eliminar o homem, escreve ele em 1983, que faz com que o papel do ator, depois o do objeto concreto, sejam reduzidos em meus espetáculos. Eu tenho talvez a mesma obsessão de Gordon Craig, que consagrou uma boa parte de seus esforços criadores e teóricos a aliviar o herói (o ator) de uma corporeidade que esmaga o drama por sua excessiva riqueza de concretude e tira ao sujeito seu caráter geral, entretanto tão indispensável ao teatro.101
O teatro de Madzik como o de Kantor tiveram uma influência considerável sobre o teatro contemporâneo, onde os meios plásticos estão o serviço de um conteúdo filosófico e escatológico. Poder‐se‐ia mesmo falar de uma escola polonesa do teatro plástico se se toma em consideração as concepções de Szajna, Grzegorzewski e Wisniewski.
Entre as novas orientações, é preciso ainda evocar uma nova geração de artistas plásticos que afirma ambições teatrais. Ela é representada por Andrzej Woron que dirige desde 1990 o Kreaturentheater de Berlim. Duas encenações atraíram nossa atenção: O Fim do Asilo Noturno (Das Ende des Armenhauses), baseado em Isaak Babel, e As Lojas de Canela (Sklepy Cynamonowe), baseado em Bruno Schulz. Woron expõe na cena um panorama do gênero humano representado por atores‐bonecos, manequins, bonecos e uma espécie de criaturas híbridas que Kantor com certeza qualificaria de “bio‐máquinas”.
Woron parte da percepção fragmentada da realidade que, segundo ele, condiciona a fragmentação dos espetáculos artísticos que as capacidades limitadas de nossa memória confirmam. O inconsciente, é pois, nossa única chance de fazer funcionar nossa imaginação. Eis aqui uma nova oportunidade para o teatro e o teatro visual. Woron está apaixonado pelas oposições, levadas às vezes ao extremo. Ele rejeita a imagem do homem belo e bem cuidado. A verdade é muito diferente: todos os seres humanos são criaturas e se ele utiliza bonecos, não é no mesmo espírito dos bonequeiros: Nossa atividade, diz ele, não tem nada a ver com o teatro de bonecos. O teatro de bonecos talvez seja formidável, mas para mim é utilizar uma matéria inerte a partir de um princípio visual. Conosco é diferente. Eu utilizo o ator enquanto organismo vivo, e portanto enquanto ser humano. A reaproximação do homem‐ator, de seu talento e de sua sensibilidade com
100 Anna Maria Klimanlanka. Parma 95. Scena, 1976, no. 3.
101 Leszek Madzik. Mysle abrazami (Eu penso por imagens). Em: Teatro da verdade sem palavras (Teatr bezslownej prawdy) op. cit. p. 101.
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a matéria inerte me proporciona um terceiro tipo de ator. E é este ator que nós buscamos em nosso teatro102. O teatro plástico de Woron se inscreve, de fato, na esfera do teatro de bonecos de meios de expressão variados, sem que nosso artista tenha, visivelmente, conhecimento de todas as suas extensões. O teatro de bonecos de meios de expressão variados, sendo o resultado da convergência de diferentes correntes artísticas, de que o boneco e as artes plásticas são os pontos de partida, é bastante provável que eles possam se reencontrar um dia, sem nenhum preconceito, mesmo se eles persistem hoje.
Teatro plástico
É devido a sua ligação com a plástica e aos restos de uma intriga, uma história às vezes linear, que o teatro plástico traz este nome. Basta que o artista beba numa outra tradição para que esses meios sirvam a outros fins. Na Suíça, os Mummenschanz (mummen = jogo de dados ou de cartas, e Schanz, simplesmente a sorte) compostos de Bernie Schurch e Andres Bossard, desviam esses meios plásticos para outros horizontes, menos estruturados e menos filosóficos. A prática do grupo se situa entre pantomima, teatro de objetos e teatro plástico. Bossard e Schurch se interessaram pela pantomima e fizeram cursos na Escola Jacques Lecoq (Paris), onde conheceram Florianna Frassetto vinda dos Estados Unidos.
Seu primeiro espetáculo, no final dos anos 60, tem por título À Frente e Perdido (Verlor und Vorher), e foi depois rebatizado de Jogo de Louco e de Máscara. Os bonecos são para eles um meio de enriquecer os meios da pantomima. É a partir dos elementos plásticos da roupa dos personagens que eles evoluem para uma nova estética da mímica. No início, essas roupas eram cubos de polietireno de onde saíam as cabeças e as mãos dos atores. As esquetes solicitam astuciosamente a colaboração do público ao lhe propor, por exemplo, enrolar para o lado direito todos os rolos de papel higiênicos embrulhado ao contrário. Os Mummenschanz aperfeiçoaram seu programa ao utilizar máscaras abstratas ou personagens com cabeças “objetivadas”, depois máscaras do corpo inteiro, utilizando grandes formas plásticas. Os espectadores ficaram surpresos pelos materiais – almofadas, cadernetas, papel higiênico ‐, que compunham personagens e representavam com um humor não desprovido de uma certa poesia. “Blod”, um de seus números é descrito assim: ... uma bola muito mole repousa no chão, começa a se animar, choca‐se com a ponta do praticável que está na cena. Ela tateia o intruso, depois resolve escalá‐lo, parte ao ataque, se agarra, sofre, sobe, sim, ela chega, não, ela perde o equilíbrio, se recupera, sim, não, aah, num último suspense, ela se estabiliza no alto. Ela triunfa. E o espectador solta o braço da poltrona. Em alguns minutos, essa massa informe semelhante a nada exprimiu a surpresa, a curiosidade, o espanto, a coragem, o desencorajamento, o intenso esforço, o medo, a vitória.
Para alguns espectadores esta será a história de um troço‐que‐quer‐subir‐numa‐coisa. Mas é também a descoberta do mundo. É o homenzinho que se ergue sobre seus dois pés pela primeira vez, assim como um tratado de darwinismo – um protozoário no caminho inelutável da
102 Kristiane Balsevicius. Schnsucht nacht einer anderenRealität ( A nostalgia por uma outra realidade). Puppentheater Information, no. 66, p. 22.
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evolução, a função vai criar o órgão. É ainda, porque não, um condensado de dramaturgia. Todas as histórias do mundo, ou quase, da Odisséia a Dallas, via Commedia dell’arte, seguem este esquema: o herói encontra um obstáculo imprevisto, luta, ganha, final feliz. Com variantes evidentemente, o pobre plancton não pode fazer tudo103.
Ainda estamos no mundo do boneco? Sim, se nos referimos à prática de algumas outras companhias! Os personagens dos Mummenschanz são proteiformes e fabricados com todo tipo de material. Os tubos de plástico que serviram para a criação do Prematuro (Slinky) conheceram um sucesso importante. Um cano e um balão formam uma espécie de grande inseto. Quando a bola desaparece a boca do cano se transforma em corneta ou numa cabeça que examina atentamente o público. Há o polvo, um robô de espuma, e um “colchão revoltado” (com mãozinhas alcochoadas), que briga com o seu dormidor, a cabeça em forma de travesseiro. As idéias dos Mummenschanz contêm sempre uma mensagem, mesmo se esta resta oculta; uma sátira social, por exemplo, uma crítica das relações afetivas que entretêm os americanos com os objetos que utilizam e jogam fora sem se ter ligado a eles, ou ainda, uma sátira política em germe...” como o diz Frasseto, que evoca essa possibilidade nos personagens de cabeças objetivadas104. Os Mummenschanz preferem deixar o público decifrar o conteúdo de suas esquetes. É importante para eles revelar o caminho e a linguagem dos objetos e obrigá‐los a falar a sua maneira, se possível com humor.
Comparado ao boneco, o universo dos meios plásticos parece ter também a mesma vastidão. Podemos associá‐los às técnicas da dança ou da projeção de imagens, seguir certos conceitos do Bauhaus com a intenção de desenvolvê‐los ou praticar a colagem com ajuda do laser. Em meio a essa diversidade de tendências, a Companhia Jean‐Paul Cealis ocupa um lugar específico. Cealis se lança num teatro de união das artes plásticas, da música e da dança e põe em cena, nos anos 80, Jardim à Francesa e Senha; uma composição de jogos plásticos que consistem em realizar objetos (na verdade construções de madeira) engenhosos, muito funcionais, que não têm nenhuma relação com a vida cotidiana. Seu objetivo é estar presente em cena, eles são, pois, como um gesto do artista que propõe aos espectadores participar do processo da criação cênica. A riqueza das possibilidades técnicas pontuadas por um senso absoluto de humor e a música composta e tocada pelo grupo (sons de objetos, play‐back, voz) dão seu ritmo ao jogo dos atores. As possibilidades técnicas que oferecem os objetos e sua aptidão á composição plástica são o tema. É, pois, uma experiência teatral que faz uso da natureza das estruturas plásticas: Se existe uma escrita ‐ diz Mustapha Aouar –, ela se situa na relação do homem com seu instrumento. A plástica do gesto é condicionada pelo objeto manipulado. Não se trata para ele de interpretar ou de transmitir ao objeto emoções. Ele faz questão de ficar numa atitude neutra, evitando destacar sua destreza, para não cair no número de circo. Mas no correr das apresentações, ele não pode evitar que um certo arredondamento no gesto se instale, unicamente pelo prazer de ser visto, e pela facilidade que se adquire para
103 Michel Bührer. Mummenschanz. Edições Pierre‐Marcel Favre, Lausanne, 1984, p. 26.
104 Ibidem, p. 123
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manipular os ditos objetos. Entretanto, ele consegue deter‐se numa imbricação de dois elementos formados pelo instrumento e o homem. Assim, somente as curvas traçadas no espaço marcarão as memórias. 105 A arte plástica atravessa um longo caminho que a leva da figuração à abstração; uma abstração pictural, gestual e cênica em Jean‐Paul Cealis.
Como a arte do boneco vai digerir essa última proposição? Os artistas que exprimem suas emoções através dos meios de expressão impessoais não podem evitar entrar em contato com o boneco. A estética e o valor antropológico desse sem dúvida não têm mais muito interesse para alguns deles que ao invés dele vão preferir figuras de cera, manequins, autômatos ou imagens. Os bonequeiros contemporâneos podem considerar o teatro plástico106 como um gênero similar, que efetua experiência com um ator desumanizado e se opõe ao teatro literário. A partir de então o homem está em questão, torna‐se a temática essencial enquanto que as pesquisas formais tendem inexoravelmente para a abstração. O homem é um parceiro poderoso demais – podendo devorar o boneco e lhe impor suas vontades. Entrementes, todos os países do mundo abriram suas portas ao teatro visual. Os bonequeiros que fizeram a volta ao mundo com seus programas de cabaré ou de variedades sabem muito bem disso. Entretanto, não gostaria de me levantar contra o visual, quer seja no teatro em geral ou no teatro plástico em particular. Se temos a impressão de que o visual nos priva parcialmente dos valores intelectuais, aceito de boa vontade que o teatro tenha sempre feito parte das artes “olhadas”. E se os diferentes elementos que formam o teatro se organizam de uma nova maneira, (menos falas, mais imagens ou vice‐versa‐ ao gosto do artista) no processo das metamorfoses da arte, deduzo simplesmente que artistas com uma outra sensibilidade, possuindo uma outra visão da realidade se apropriam do teatro. Não será este o sinal de uma interpretação otimista?
Do objeto à matéria
Reflexo do homem, o boneco é um corpo material que traz em si uma marca, a da idéia de um objeto. De modo que ainda que todos os bonecos desaparecessem do mundo inteiro, nossa consciência continuaria guardando em si esta marca da idéia do objeto, ao menos por um certo tempo. A idéia do boneco pertence à humanidade e cada um de nós poderia fabricar um ou mesmo utilizá‐lo num espetáculo. O boneco está aqui e acolá, conosco. Já vimos que vários artistas, no entanto, o vêm abandonando progressivamente. Enquanto ator artificial, o boneco nos mostrou o caminho em direção a seus substitutos: o mundo artificial dos objetos, com a esperança de que o homem possa fazê‐los falar. Para mim é difícil dizer quais motivos conduziram ao estilhaçamento do teatro de objetos. Do ponto de vista do teatro de bonecos, o esgotamento do boneco, enquanto sujeito cênico, foi uma das causas mais importantes. Na verdade, o teatro de objetos se desenvolveu espontaneamente. Num primeiro
105 Mustapha Aouar. Um artista plástico, Jean‐Paul Cealis. Marionettes UNIMA‐França, no. 17‐18, p. 74.
106 Erik Kolár. Das Puppentheater, eine Form der bildenden Kunst oder der Theaterkunst? (O teatro de bonecos é uma arte plástica ou uma arte teatral?) .In: Puppentheater der \Welt. Zeitgenossisches Puppenspiel in Wort und Bild. Henschelverlag, Berlim, 1965, p. 34‐35.
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momento, os críticos o consideraram como uma corrente inovadora e ele se destacava claramente pela quantidade de espetáculos tão diferentes dos do teatro de bonecos.
Se procuro uma explicação filosófica, meus primeiros argumentos seriam tomados de empréstimo à fenomenologia dos objetos e dos atos de Husserl, à reificação de Tadeusz Kotarbinski e às pesquisas contemporâneas consagradas ao objeto de Maurice Rheims e de Jean Baudrillard.107 Parece‐me, entretanto, que a fórmula de Franz Brentano (1838‐1917) pode explicar melhor a tomada de consciência dos bonequeiros sobre este assunto: ʺA coisa é um conceito bastante amplo que abarca tudo o que existe”. Eles habilmente adaptaram esta fórmula ao teatro de bonecos e não por acaso seus mais eminentes representantes afirmam: “o objeto é um conceito bastante amplo que abarca tudo o que pode se produzir em cena”. A valorização do objeto não passa, pois, de uma colocação em prática de acordo com a comunicação artística. As fontes dessa comunicação são extremamente diversas.
Desde a aurora da humanidade, o objeto possui o estatuto de sujeito e, enquanto tal, suscita o interesse do homem. É mesmo difícil dizer até que ponto o animismo persiste em nosso subconsciente, mas é preciso notar que os criadores do teatro de bonecos fazem correntemente apelo a ele nas relações que entretêm com o público. Os quartos de crianças transbordando de brinquedos inspiraram outras utilizações do objeto. As crianças, ao brincar com as bonecas, ursos de pelúcia ou cavalinhos, atribuem‐lhes papéis de acordo com as histórias que conhecem ou inventam.
A utilização teatral do objeto é, entretanto, sensivelmente diferente daquela do brincar. O essencial não é o prazer daquele que brinca, mas o prazer daquele que observa o jogo. O teatro transpõe elementos do jogo da criança com os objetos, é verdade, mas esta transposição extrai sua significação dos princípios artísticos que a determinam. Os objetos sempre têm sido utilizados na literatura alegórica onde simbolizam, como os animais, os defeitos e as paixões humanas. Eles também invadiram o conto, como o testemunham os contos de Andersen. Ao lado de personagens como o Soldadinho de Chumbo, o Limpador de Chaminés ou a Pastora, vamos reencontrar muitos objetos familiares, como o Velho Farol, o Pequeno Colarinho, a Liga, a Escova e o Cofrinho. Esses objetos falam entre eles, discutem e às vezes mesmo apresentam espetáculos de teatro. Em geral, não são alegorias de traços humanos. Eles só representam a si mesmos, isto é, objetos aos quais o poeta deu o dom do gesto e da palavra. Todos têm funções muito diferentes. De fato, Andersen propunha várias maneiras possíveis de empregar o objeto na literatura e no teatro.
As experiências de vanguarda foram igualmente uma fonte de inspiração para o emprego dos objetos no teatro. Dada e o movimento surrealista punham em cena personagens aos quais davam, por provocação, nomes de objetos ou de partes do corpo humano tratadas como elementos autônomos. Assim Tristan Tzara introduz em Le Coeur à Gaz (Coração a Gás), criado em Paris em 1921, personagens como Senhora Boca,
107 Maurice Rheims,La Vie étrange des Objets. Plon, Paris, 1959. Jean Baudrillard,Lçe Système des objets.Paris, 1968.
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Senhor Pescoço, Senhora Orelha e Senhor Sobrancelha. André Breton e Philippe Soupault, num esquete de 1920 intitulado Vous m’Oublierez (Você me Esquecerá), puseram em cena Guarda‐Chuva, Roupão e Máquina de Costura. Todos os personagens eram representados por atores. Não era um verdadeiro teatro de objetos, apenas uma provocação para chocar o público. Essa torção no realismo e na lógica permitia ampliar o campo da imaginação e pensar em novos meios de expressão.
Os artistas e os bonequeiros puderam, pois, utilizar todas as formas e todas as funções vitais dos objetos, do animismo à técnica da colagem para descobrir as suas conjugações. Seguindo os passos dos surrealistas, davam aos objetos novas significações e funções simbólicas. Muito rapidamente viram‐se no centro das experiências, dos prazeres e das hesitações da sociedade de consumo com seus refrigeradores, seus aspiradores, seus carros e seus aviões. Nós os possuímos, servimo‐nos deles cotidianamente, e de repente vamos encontrá‐los em cena, transformados em personagens (miniaturizados se for preciso). Como é grande a tentação de utilizar esses objetos, de uma diversidade, de uma riqueza, e de um refinamento inigualáveis! Atraentes, coloridos, multi‐funcionais, obras da indústria, eles encerram possibilidades ilimitadas. Prontos para serem tomados, só pedem por isso. Sem complicação, o boneco tem as mesmas qualidades. Para alguns, o boneco está em desuso e diz respeito a um artesanato em vias de desaparecimento. A escolha parece então fácil. O paradoxo quer que ao introduzir os objetos no teatro, nós nos liberemos de sua autoridade. Os bonequeiros que utilizam objetos com fins dramáticos e espetaculares devem esquecer suas funções utilitárias. Em cena, um aspirador, no lugar de limpar tapetes, transforma‐se em dragão, em guardião, em papa‐moscas. Se precisar de um barco ou um avião para as necessidades do seu espetáculo, o bonequeiro pode miniaturizá‐lo para se tornar seu senhor absoluto. No teatro de objetos, os objetos veiculam as idéia e a imaginação do artista. Pode‐se imaginar que, em nome da sociedade, os artistas vingam‐se da excessiva imponência dos objetos na vida cotidiana, lembrando que o homem é sim o senhor e que só depende dele, querer dar‐lhes uma nova significação espiritual e estética.
O teatro de objetos atinge seu apogeu nos anos 80. Já evoquei as primeiras tentativas de Joly em 1948 com Parapluies et Ombrelles (Guarda‐Chuvas e Sombrinhas), de Lafaye ou de Ryl. A Polônia conhece suas próprias experiências pela iniciativa de escritores, como com a peça bastante popular de Zbigniew Wojciechowski, Que Horas São? (Która Godzina?, 1964) narrando uma greve dos relógios e de outros objetos. Os tchecos os seguiram com o Teatro Drak: Se as Crianças Soubessem (Si les Enfants Savaient...) (1972) e Como Nós Tocamos e com que Instrumento? (Comment Jouons‐Nous et de Quel Instrument?) (1975) Os objetos fazem sua primeira entrada em cena, interpretam personagens e tomam parte na ação. Alguns anos mais tarde, os elementos épicos unem‐se a eles para transformar o espetáculo em falas de narradores que utilizam bonecos ou objetos para ilustrar o tema da peça. O objeto torna‐se então um campo de experiência para os bonequeiros.
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Philippe Genty
A evolução da arte de Philippe Genty, em seu primeiro período, é bastante esclarecedora com respeito a essa passagem do teatro de marionetes ao teatro de objetos. Genty começa sua carreira nos anos 60, com uma viagem de estudos pelo mundo que lhe faz descobrir a arte do boneco em todas as latitudes. Influenciado pela tradição do cabaré de bonecos, ele aprecia os esquetes curtos que compõem os programas de Music‐Hall (Olympia ou Casino de Paris). Entre seus maiores sucessos da época figura o melancólico Pierrot a que já me referi. Les Autruches (As Avestruzes) é um outro número célebre utilizando a técnica do “teatro negro”. Um grupo de avestruzes dança acompanhada por uma música de Tchaikovski. Uma delas perde suas calças, suscitando a curiosidade de suas vizinhas que continuam a dançar. Aquela, para grande surpresa de suas vizinhas, põe um ovo quadrado, o que é uma atração suplementar. A simplicidade do tema é compensada pela acentuação das reações das avestruzes, nas quais o público reencontra suas próprias reações: incômodo, curiosidade, sentimento de superioridade, vergonha... Reatando com a tradição dos espetáculos alegóricos com animais, Genty faz nascer como por encanto um universo teatral próprio, onde os pequenos problemas são resolvidos com humor.
Após seu sucesso com bonecos clássicos, Genty lança‐se nas experiências que o conduzem ao teatro da matéria. Em Rond comme un Cube (Redondo como um Cubo), ele faz uso de um tecido, em que os atores se dissimulam atrás ou dentro compondo a seu gosto. Este tecido se metamorfoseia em personagem de uma ou duas cabeças (cabeças de boneco), tomando dimensões e formas as mais variadas, ocupando às vezes mesmo toda a cena. Além disso, a iluminação por baixo do tecido oferece novos recursos. Ele representa um grande lago onde brincam flora e fauna, dentro ou fora da água. Múltiplas metamorfoses fazem aparecer todo tipo de personagens, até que se destacam duas personagens bicéfalas (cada uma delas é dirigida por dois animadores escondidos atrás), que saltam sobre a cena dançando e mudando de forma. A vida da matéria torna‐se então o tema dos espetáculos de Genty. Seu teatro assume assim uma nova orientação artística que se sobressai na utilização de matérias, de atores e de dançarinos a serviço de uma mensagem visual coerente.
Por trás desse humor de cabaré abriga‐se, ao que parece, um credo artístico, talvez uma filosofia que se manifesta claramente nos espetáculos seguintes: Désir Parade, Dérives e Ne m’Oublie Pas, que Genty evoca com frequência durante suas entrevistas: O que me apaixona cada vez mais é a questão do homem em conflito consigo mesmo, a confrontação entre a coisa animada e o que a anima, quando o personagem torna‐se ora um espelho, ora diretamente o objeto do conflito e que ele exprime o interior e o exterior do ator. É fascinante. Perturbador também. Porque isso chama ao animismo que cada um traz em si – manipulador ou espectador. A muralha do consciente é abalada, mergulhamos nas angústias e nos fantasmas. Na mesma tensão, o mesmo combate entre o homem e o boneco. Na mesma relação de enfeitiçamento.108
108 Didier Méreuze. Philippe Genty. Théâtre de la Ville, temporada 91‐92, p. 4
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Genty está convencido de que para o artista o mundo material é uma fonte de inspiração tão rica quanto a natureza: seu encontro com o oceano e o choque provocado por sua descoberta do deserto modelaram sua imaginação e sopraram‐lhe que um objeto, um material, um tecido, bem utilizados, podiam igualmente tornar‐se uma fonte de atração e guiar suas pesquisas artísticas: Nosso trabalho a partir do material (o termo material devendo ser tomado em seu sentido amplo: formas realistas, abstratas ou matérias brutas) é uma fonte constante de descobertas e de renovação, mas também de frustrações porque a matéria tem seu próprio discurso, às vezes em contradição com o caminho da encenação. Qualquer volume traz em si uma dinâmica que lhe é própria e que difere segundo a natureza do material. É preciso então ficar totalmente disponível para a escuta, mas quanta frustração para o autor. Entretanto, embora sabendo disso, a cada criação caio de novo na armadilha, encontro‐me fascinado pela forma que se desprende da matéria, impõe seu caráter, se desenvolve, se expande, evolui, depois se sufoca, se esgota, para atingir seu declínio. Durante esse tempo ela produziu outras formas que, por sua vez, propõem outras direções de pesquisa109.
A matéria é, pois, um “texto do possível e do limite”, que abriga novas possibilidades. Certos artistas mostram‐se prontos a se tornarem escravos do objeto para evitarem sê‐lo da palavra. Eles, aliás, estão conscientes disso. Genty pensa ganhar assim sua liberdade, já que o objeto e a matéria são mais aptos do que a palavra para transmitir símbolos suscetíveis de todas as interpretações possíveis110.
Florilégio de teatro de objetos
Nesse espírito, inúmeras companhias de teatro de objetos se distinguem desde os anos 80 nos festivais internacionais. Elas são principalmente italianas (Teatro delle Briciole, Alessandro Libertini, Assondelli e Stecchettoni, Hugo e Ines), e francesas (Manarf, le Vélo Théâtre e le Théâtre de Cuisine). Christian Carrignon e Cathy Devillle, fundadores do Théâtre de Cuisine, não escondem que seu teatro não tem nada a ver com o teatro de bonecos e que eles absolutamente não conhecem o universo dos bonequeiros111 . Ele define o teatro de objetos como sendo o resultado da relação existente entre os olhos, as mãos, as coisas e a energia pessoal que nisso se coloca. Designa, pois, um papel particular ao ator e precisa que é formidável controlar as emoções com uma chave de fenda112. Journal de Voyage (Diário de Viagem) conta as experiências da vida corrente ilustradas por objetos com os quais Carrignon se diverte como com brinquedos. As metáforas visuais se sucedem. O herói (um homem) encontra um amigo, uma pequena figura que traz apertado junto ao corpo um globo terrestre. Ele põe seu amigo no bolso, o globo em sua mochila e, equipado de amizade e de sonhos, toma o caminho. Outro exemplo: uma cena de escalada do mobiliário de um apartamento. Quando a figurinha cai da parede rochosa formada pelo encosto de uma
109 Philippe Genty.La Compagnie Philippe Genty. Actualité de la scénographie, 1987, no. 31, p. 98.
110 Jean‐Loup Temporal interroga Philippe Genty. UNIMA‐França, 1983, no. 81, p.7.
111 Théâtre d’objets: L’objet même du théâtre. Marionnettes, 1985, no. 7, p.45.
112 Ibidem,p. 44.
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cadeira, ela mergulha num abismo correspondente a sua altura. Reencontramos aí a mudança de perspectiva das Viagens de Gulliver. Há a imaginação do autor e a ingenuidade da criança.
Manarf construiu seu renome com o espetáculo Intime, Intime (Íntimo, Íntimo) que nada mais é do que uma nova interpretação de Chapeuzinho Vermelho. O fundador da companhia, Jacques Templereau, joga o papel do clown Giglo que conta esta história clássica numa cozinha, verdadeiro cafarnaum. Chapeuzinho Vermelho é representada por uma maçã verde, o Lobo por uma verdadeira cabeça de bacalhau de dentes poderosos, a Avó por uma cozida. Templereau utiliza objetos‐personagens e outros acessórios em situações incomuns que suscitam todo tipo de associação de idéias113.
O fato de poder criar novas conotações e suscitar metáforas torna esse teatro de objetos muito atraente. Charlot Lemoine e Tania Castings, que criaram o Vélo Théâtre, formularam assim as razões que os levaram a escolher o teatro de objetos: Os objetos, mostrados e manipulados, tomam uma significação particular e tornam‐se uma espécie de linguagem. Tanto para o espectador como para o ator, aqui se esconde o caminho que leva à imaginação das pessoas, compreendida em qualquer língua e em qualquer cultura114.
Aos objetos comuns, que, de fato, utilizam raramente, eles preferem brinquedos ou miniaturas da realidade. Assim em Appel d’Air (Pedido de Ar), o Menino (um ator) vive em sonho suas experiências e suas quimeras cotidianas. Ele está cercado de imagens de arranha‐céus de cimento de onde só é possível escapar de avião. O Menino alimenta os aviões como se alimentasse pombos, amarga metáfora das necessidades atávicas do ser humano. Um poeta pode exprimir seu talento em qualquer tipo de teatro e sobretudo no teatro de objetos.
A colaboração entre duas companhias de teatro, o Théâtre Écarlate e Nada Théâtre, leva à criação de um espetáculo onde o lugar cênico, mais do que os próprios objetos, diz respeito ao teatro de objetos. Em Grandir (Crescer), três atores estão frente a uma grande mesa com várias gavetas. Eles contam sua vida servindo‐se de pele de camurça. Estes três personagens são seu alter ego e fazem desfilar seus vida sem sair do lugar. A mesa asssume uma função simbólica enquanto mundo cheio de furos (gavetas) para dissimular surpresas e acontecimentos inesperados. As gavetas fornecem aos atores cenários, símbolos dos lugares da ação, sob forma de pedras, areia, folhas, água, uma série de elementos de paisagens que jogam um papel ativo. O efeito é dos mais teatrais, essa dupla visão desses símbolos, às vezes pegando o espectador de surpresa em função de seus aspectos físicos e autênticos. A originalidade do espetáculo se manifestava pela técnica de substituição dos cenários, efetuada segundo as mesmas regras que a dos personagens pelos objetos.
113 Isabelle Hervouet, Le Théâtre d’objets,Mémoire. E.S.N.ªM. Charleville‐Mézières, 1989.
114 Penny Francis. Velo theatre.. Drama made of things. (Vélo Théâtre. O teatro feito de objetos). Animations, 1989, no. 4, p. 79.
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Assim, os objetos (em tamanho natural, miniatura ou sinédoque) ora são ícones representando o mundo dos objetos, isto é nossa realidade imediata, ora os veículos de significações novas dadas pelo artista. O objeto pode também jogar os dois papéis, como os guarda‐chuvas de Joly e a maçã verde no papel de Chapeuzinho Vermelho do Théâtre Manarf. Gyulio Molnar segue o mesmo caminho com um programa miniatura intitulado Les Petits Suicides (Os Pequenos Suicidas). Sentado a uma mesa, ele apresenta pequenas histórias, fábulas, com objetos dos quais conserva seus traços característicos. Em La Tragédie de l’Aspirine (A Tragédia da Aspirina), ele encena um grupo de balas (caramelos) que brincam em cima da mesa como crianças. A aspirina gostaria muito de se juntar a elas, mas as balas a rejeitam. Ela então se disfarça de bala, mas é desmascarada. Desesperada, vencida por sua solidão, ela salta num copo de água e se dissolve fazendo dezenas de bolhinhas. Se essa historinha evoca o universo infantil e os problemas que encontram as crianças, o suicídio da aspirina obedece as propriedade naturais do medicamento. Assim, o jogo com o objeto se realiza em espaços cênicos muito diferentes; desde pequenos esquetes como La Tragédie de l’Aspirine a espetáculos mais elaborados como Grandir.
Teatro de projeção
À luz dos exemplos citados, fica evidente que o teatro de objetos, que utiliza objetos do cotidiano, objetos fabricados, os ready‐made ou objetos amorfos que jogam o papel de personagens virtuais, mesmo de personagens dramáticos, impõe novas tarefas ao animador ou a seu parceiro, em geral visíveis para o espectador. Roger‐Daniel Bensky tem uma outra visão deste teatro. Ele desenvolve a idéia de “projeção” que justifica a atitude do ator em relação ao boneco e ao objeto num processo de criação teatral. Segundo ele, essa atitude é a mesma tanto em relação ao boneco como quanto ao objeto: O jogo com o objeto, que na realidade é um solilóquio quando se produz fora de um espaço cênico, só visa a vencer simbolicamente o que surge como a indiferença ou a passividade do outro, por uma projeção sobre o objeto de conflitos subjetivos. Na ausência de um público, o personagem dramático desaparece, para ceder lugar ao mito pessoal. A plasticidade do objeto torna‐se o meio de “teatralizar” o pensamento. Este “joga” seus conflitos materializando‐os sobre o objeto. Visto desse ângulo, compreende‐se que o teatro de bonecos tenha podido desencadear, por uma relação de parentesco, uma reflexão sobre o objeto que ultrapassa o teatro propriamente dito. Tendo abolido a visão dramática que lhe propunha o espetáculo teatral, a imaginação é a partir daí livre para se projetar sem entrave algum sobre a matéria e torná‐la eloqüente115.
Se o princípio da projeção artística é respeitado, seu desenvolvimento é, entretanto, muito mais complexo. Cada boneco (teatral) possui em si mesmo um programa de jogo, constituído por sua expressão plástica, sua construção e suas capacidades de animação. Para realizar esse programa, o bonequeiro deve obedecer ao boneco, como se vê nas relações que existem entre a boneca “mágica” e seu animador. O bonequeiro está a serviço do boneco, o que quer dizer que ele lhe permite realizar seu programa definido, desde o momento em que lhe é dada a vida. Os críticos italianos
115 Roger‐Daniel Bensky. Pesquisas sobre as estruturas da simbólica da marionete ª G. Nizet, Paris, 1971, p. 110..
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Pietro Bellasi e Pina Lalli, abordam o teatro de bonecos por um outro viés. Ele representa para eles um conjunto de signos dinâmicos, testemunha da cultura contemporânea, e servem ao processo de comunicação: Em todo caso, o teatro de objetos deve ser considerado como uma tentativa de estudar (num plano panorâmico e interno) um labirinto de signos e de formas de caráter social. Parece que esse terreno arqueológico oferece a possibilidade de compreender a dinâmica social do mito, do rito, das diferenças, das metáforas. O quadro complexo do mundo contemporâneo poderia ser representado em toda sua polifonia: antes de tudo numa “polifonia cultural”, na qual se escondem as modulações de um discurso ao mesmo tempo subjetivo e coletivo, psicológico e social, antropológico e histórico.116
Essa visão não teve continuidade, e deu‐se o mesmo caso com o Teatro das Coisas (Thing Theatre), proposto por Dennis Silk, poeta israelense e teórico do teatro de bonecos. Seu objetivo foi o de pôr em evidência a fraqueza do ator dramático que perdeu a força das coisas, força disseminada nas dezenas de emoções pessoais inseridas em seus papéis. De onde a idéia de criar um teatro das coisas que concentre com força e talento a expressão dramática. Craig propunha ao ator aprender a gestualidade estilizada do boneco, Silk aconselha ao mesmo ator ir se formar nas grandes lojas. Não é pura provocação, porque ele revela pouco a pouco suas preferências amadurecidas por sua experiência do teatro de bonecos e do teatro plástico. Elas vão em direção ao objeto, a máscara (a concentração do olhar), o boneco e as partes objetivadas do corpo humano. Uma verdadeira escola de atores deveria ter aulas onde o ator vivo e a escova de sapatos fizessem seus estudos juntos. O ator vivo imitaria a força de expressão de alguma maneira mascarada da escova de sapatos, e a escova a dinâmica e a diversidade do ator pessoal. E um verdadeiro teatro deveria oscilar entre a vitalidade de uma vida pessoal e a letargia da vida das coisas. A saúde, no teatro tanto quanto na vida, é um equilíbrio entre esses dois extremos.117
As proposições de Silk são bastante precisas: ele imagina mesmo inventar uma linguagem dos objetos, mas só um artista que pusesse sua teoria do teatro de coisas em prática poderia confirmar o seu bom fundamento. Em sua obra dramática, Silk ateve‐se apenas ao mundo dos homens e dos bonecos. A teoria do teatro de coisas não passa então de pura fantasia de poeta?
De minha parte, constato que o objeto não é portador de nenhum programa de jogo teatral, mas dotado de um programa utilitário. O bonequeiro rejeita este programa e inventa, para o objeto, um programa de atuação em função de sua imaginação. Não é o bonequeiro que está a serviço do objeto, mas o contrário. Esta é, entre outras, a razão porque a maior parte dos bonequeiros contemporâneos têm objetivado seus bonecos, rejeitando o que restava de sua força mágica. Eles fizeram deles instrumentos dóceis respondendo aos élans criadores do artista. O boneco viu suas funções culturais evoluírem; o objeto viu suas funções utilitárias rejeitadas para substituí‐las por funções teatrais.
116 Pietro Bellasi e Pina Llali. Gli esploratori dell’imaginario (Os exploradores do imaginário). In: Recitare com gli oggetti. Microteatro e vitta quotidiana. Cappelli, Bologne, 1987, p. 9.
117 Dennis Silk.When We Dead Awaken. Animations, 1989, no. 4, p. 83.
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Essa distinção entre boneco e objeto não encontra unanimidade. Influenciado por Francis Ponge (La Rage de l’Expression (A Raiva da Expressão), Gérard Lepinois pensa que o mundo dos objetos forma um todo e conserva sua característica principal, sejam quais forem a forma e as funções que tomem esses objetos: Nós estamos nos antípodas da expressão, em todo caso, direta dela, do antropomorfismo mais ou menos pessoal. Ora, face a seus bonecos ou objetos ou figuras, a alternativa do bonequeiro é a mesma. Ou ele terá a facilidade, a complacência da humanidade indolente, de os antropomorfizar, seja na sua aparência, em sua manipulação ou por seu tipo de jogo ou ausência de jogo, se ele é à vista, ou ele aproveitará a lição de Ponge e inverterá o problema: ele enriquecerá o espetáculo, e a si mesmo, passando realmente por seus objetos, não para fazer o elogio do inumano – objeto, animal ou deus ‐, mas para ter uma chance de ampliar as fronteiras do que Ponge chama o “espírito humano118”.
Nesse caso, quem organiza a expressão dos objetos em cena? É o animador, o narrador ou um performer (um ator) que também joga o papel de testemunha dos acontecimentos? Enquanto tal, ele deve atestar de sua autenticidade por suas próprias reações, provar que todos os acontecimentos que se produzem no mundo dos objetos arbitrariamente reunidos suscitam nele verdadeiras emoções profundas. O jogo dos objetos distingue esse teatro dos outros teatros, mas põe de novo também em causa o bem fundado de seu nome. Os Teatros de Cozinha tentam nos persuadir de que a projeção da ação se faz pela intermediação do ator que continua sendo ele mesmo: No teatro de objeto, o ator jamais entra na pele de personagens. Eles são eles mesmos em cena, desenvolvem certas particularidades de sua personalidade, mas jamais a serviço, por exemplo, de um texto. Jacques Templereau fazendo Chapeuzinho Vermelho permanece Jacques Templereau119.
Será o jogo do ator “no meio” de objetos e não “com” objetos que constitui a natureza do teatro de objetos? Só a fé intensa e manifesta do ator nos acontecimentos que se desenvolvem, pode nos convencer de que sobre a cena se passam coisas importantes? O jogo do ator repousa essencialmente sobre a sugestão e a concentração. É por essa razão que aprecio particularmente esta história citada por Isabelle Hervouet a respeito do teatro de objetos: Um Marajá, precisando escolher seu ministro, anunciou que ficaria com o homem que fosse capaz de dar a volta na cidade caminhando encima de suas muralhas e levando na mão um copo cheio de leite sem derramar uma única gota. Inúmeros candidatos tentaram, mas assustados ou distraídos pelos gritos lançados a sua volta, derramaram o leite. “Estes, disse o Marajá, não serão meus ministros.” Chegou um homem a quem nenhum grito, nenhuma ameaça, nenhuma distração pode fazer levantar os olhos que ele mantinha fixos na beira do copo.
“Fogo!” ordenou o comandante das tropas.
Ele não se mexeu.
“Este é um verdadeiro ministro!” disse o maharadjah. ʺVocê não ouviu os gritos?” peguntou‐lhe depois. 118 Gérad Lepinois, Intervenção no Encontro Internacional dos críticos de teatro. Instituto Internacional da Marionete, Charleville‐Mézières, setembro de 1988.
119 Teatro de objeto: o objeto mesmo do teatro. Marionnettes, 1985, mno. 7, p. 44
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“Não”.
“Você ouviu os tiros?”
“Não, eu olhava o leite”.120
Concentrar‐se sobre o objeto e fazer crer aos espectadores na vida dos objetos é uma nova tarefa para um ator de teatro. A força de sua atitude e de seus comprometimentos condiciona a ilusão de lhes dar vida. Tal o bonequeiro que dá vida ao boneco por meio da manipulação, o ator jogando com objetos os faz viver mas, atenção, por meios intermediários, pela projeção de sua crença na vida do objeto e pela atenção do espectador. É uma atitude comparável ao animismo, entretanto ligeiramente diferente. O animismo é um ato de crença inscrito no texto do espetáculo. A ação de um ator com objetos se destina intimamente aos espectadores, num élan comum, creio comigo. Por esta razão este ator me parece ser mais próximo do xamã ou do charlatão do que do homem de teatro.
Teatro da matéria
O teatro de objetos fez uma irrupção retumbante nos anos 80, parecendo às vezes ameaçar a existência das outras formas de teatro de bonecos. Hoje, a onda de interesse pelo teatro de objetos caiu um pouco, mas ele não deixa de ser um gênero importante e mesmo rival dos outros gêneros de “teatro impessoal”. Seu primo próximo, o “teatro da matéria” de nome talvez menos conhecido, possui já um certo renome e uma teoria, posta em prática pelos bonequeiros alemães. Nós a devemos a Werner Knoedgen, bonequeiro e educador, que publicou em 1990, Le Théâtre Impossible. Phénoménologie du Théâtre de Figure121. Uma obra na qual ele tenta definir o lugar do teatro de bonecos entre os gêneros vizinhos e definir as características desta forma derivada que é o “teatro de figuras” e, sobretudo, o “teatro material”.
O que é o teatro de figuras? O “teatro de figuras” é caracterizado por sua similitude com o “teatro material” (Materielles Theater), que compreende várias variantes. A primeira variante é um teatro fundado sobre uma matéria informe (que toma forma durante o espetáculo); o verdadeiro “teatro da matéria” (Materialtheater) faz parte disso. Segunda variante: os teatros que se apóiam sobre um material de forma definida, como o teatro de objetos, o teatro de máscaras, o teatro de bonecos moderno ou o teatro a partir de elementos do corpo humano (das mãos, por exemplo). A tarefa do teatro de figuras (portanto do Darsteller) é de criar um papel. Knoedgen, com toda lógica, evita o termo de “personagem” que ele substitui por este termo formal de “papel”. Seja lá como for, criar um papel, no teatro de figuras, não é a mesma coisa que no teatro dramático: Devido ao fato de que ele sugere a vida nas coisas privadas de vida, devido ao fato de que ele representa o ativo em ajuda a uma coisa passiva, o ator do teatro de figuras se 120 Isabelle Hervouet. O teatro de objetos. Mémoire. E.S.N.ªM. Cahrleville‐Mézières, 1989.
121 Werner Knoedgen. Das Unmögliche Theater. ZurPhänomenologie des Figurentheaters (O Teatro impossível. A respeito da fenomenologia do teatro de figuras). Verlag Urchhaus Johannes M. Mayer, Stuttgart, 1990.
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distingue do ator dramático. Ele transfere, com efeito, seu papel a um objeto material e toma assim suas distâncias com relação a esse papel, como se ele pudesse negar a si mesmo embora sabendo que esse objeto‐papel jamais poderá substituí‐lo, a ele, isto é, ao único sujeito‐manipulador presente: ele resta um meio de expressão objetivado, um simples instrumento de seu espetáculo 122.
Essa análise poderia se aplicar a todas as variantes do teatro material, mas a distinção entre o objeto (o material) e o sujeito (o ator animador) não é tão simples como parece. Acontece com freqüência que objeto e sujeito estejam igualmente presentes num papel e que não se possa distingui‐los claramente (por exemplo, quando o ator empresta ao equivalente material do papel suas próprias mímicas). Knoedgen se interroga sobre os inúmeros aspectos do trabalho com o material, seja ele trabalhado ou bruto. É interessante ver que a despeito da originalidade de sua teoria do jogo em “seu” teatro material, encontramos aí observações feitas em trabalhos anteriores sobre os bonecos. Assim, ele chama “dualidade do teatro” (Doppelung des Theaters), a “opalinização” do boneco ou a “visão dupla” do teatro de bonecos, isto é, o jogo permanente de elementos de ficção e de elementos extraídos da realidade. No teatro material, o ator não saberia se identificar com seu papel, como no teatro de atores. A imagem representada nesse teatro é composta de dois elementos, o que incita Knoedgen a tirar a seguinte conclusão: Dado que a imagem no teatro de figuras é dividida, o sujeito cênico pode escolher livremente aparecer num papel ou fora do papel. Entretanto, é verdade que a imagem é contraditória, e que esta formidável liberdade pode ser percebida como sendo ao mesmo tempo funcional e criadora, este teatro de figuras à retroação permite aos espectadores participarem de um ato de criação formidável: o comportamento do ator se transforma em matéria, a matéria começa a agir. Os objetos tornam‐se atores. Aquele que atua e seu papel, o sujeito e o objeto, constituem a síntese suprema, dialética, de um espetáculo comum123.
Os detalhes fornecidos devem seu sabor ao trabalho de Knoedgen. É um dos raros livros que tenta esboçar de uma maneira nova e numa linguagem nova, um quadro do teatro saído do boneco tradicional. Os fenômenos artísticos que aborda são tão ricos que sua descrição é mais complexa do que lhe pede a autópsia. O rigor intelectual da teoria de Knoedgen é colocado em prática por um círculo de artistas restrito (e essencialmente pela escola do teatro de figuras de Stuttgart). Ao se agarrar ao conceito de papel, limita‐se a universalidade da teoria de Knoedgen sem, entretanto, diminuir o alcance enquanto sistema para descrever as orientações do teatro “impessoal”.
O rigor da poética desse prático e teórico que é Knoedgen pode nos servir de baliza. Entretanto a criação artística, como vimos, escapa facilmente a todas as regras e
122 Werner Knoedgen. Das Unmögliche Theater. ZurPhänomenologie des Figurentheaters (O Teatro impossível. A respeito da fenomenologia do teatro de figuras). Verlag Urchhaus Johannes M. Mayer, Stuttgart, 1990, p. 19.
123
� Werner Knoedgen. Das Unmögliche Theater. ZurPhänomenologie des Figurentheaters (O Teatro impossível. A respeito da fenomenologia do teatro de figuras). Verlag Urchhaus Johannes M. Mayer, Stuttgart, 1990, p.109
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aparece com freqüência como expontânea, inesperada e quase fácil. Bem no início de sua carreira, o grande bonequeiro Feike Boschma, foi tentado por diferentes materiais que ele transformava em “bonecos” conservando ainda seu caráter material. Por ocasião de seu aniversário de 75 anos ele revelou seus segredos: Às vezes, enquanto eu caminhava pela rua, meu olhar se fixava numa peça de tecido ou num xale, numa vitrine ou num carro de um vendedor, que me excitava enormemente. Sem saber ainda o que eu faria disso, eu sentia a necessidade de adquiri‐lo. Quando voltava para casa, começava um processo estranho: eu improvisava diante do espelho sem nenhuma idéia particular. Eu estabelecia, entretanto, em que lugar eu deveria tomar o pano para descobrir uma forma interessante levando em conta a cor e o movimento. As coisas começavam então a ganhar forma. Eu colocava o tecido embaixo e prendia a ele alguns fios de linha para lhe dar uma forma correspondente à imagem improvisada. Aqui e ali eu acrescentava alguns arames para ter a possibilidade de mover o tecido. Assim nasciam certas relações entre formas pré‐estabelecidas ou nascidas do movimento.124
Depois ele buscava um tema. Uma escolha ditada pelo material posto em cena pelo bonequeiro e guiada por suas intuições e suas capacidades. Tudo terminava pela representação de um papel onde a parte do acaso era muito importante. Este acaso não corresponde exatamente ao intelectualismo da teoria de Knoedgen.
É importante se perguntar se essa teoria descreve a realidade do teatro de figuras, do teatro da matéria, ou se ela é o seu programa. Seria uma resposta às interrogações inquietas que nos colocamos então sobre o sentido da prática do teatro de bonecos e do teatro impessoal em geral? Knoedgen estabelece uma classificação de todas as correntes inovadoras e tenta situá‐las segundo as convenções clássicas do teatro. A intenção é nobre se se admite que o artista e o espectador de hoje se sentem solidários dessa terminologia. Mas, quer a teoria de Knoedgen seja ou não um programa, é preciso levar em conta a prática teatral. E, nessa prática, existe um lugar para o teatro da matéria? Sim, e os antigos alunos da escola de Stuttgart, como Sigrun Kilger ou Hartmut Liebsch, empregam cada vez com mais freqüência o termo de teatro da matéria e aplicam‐lhe as regras com sucesso, como em La Ballade des Pendus (A Balada dos Enforcados), segundo Villon. Sózinhos, os espetáculos da escola de Stuttgart dão a melhor garantia de seu futuro.
O exemplo citado abaixo é importante porque foi escolhido pelos criadores da escola Albrecht Roser e Werner Knoedgen: No meio da peça, vê‐se no chão duas escadas de cabeça para baixo. Elas estão cobertas pelo tecido. Aparece então uma forma que se pode tomar por um barco. Sobre este barco se encontram agora personagens que se escondem sob um tecido. O tecido é então como um manto de neve que recobre uma paisagem com personagens. E este grande manto muda de significação a cada vez que um personagem se manifesta embaixo e lhe dá uma nova forma. Cada modificação fecha um campo de imagens e abre um novo. A sucessão das imagens faz nascer nos espectadores associações de idéias muito fortes. Por essa razão, a palavra é
124
� Feike Boschma. Uber Marionetten (Sobre a marionete). Traduzido do holandês ao alemão por Cilli Wang Osterreichische Puppespiel‐Journalette “Opus” 1996, No. 48, p. 9.
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totalmente deixada de lado. É portanto uma peça sem palavras. Só existem tons, murmúrios. No início, uma orquestra toca uma música mecânica que evoca a produção de uma usina. Depois se utilizam ruídos de tecido originais – pode‐se dizer assim – enquanto fonte de linguagem. As coisas começam a falar, elas ganham uma linguagem acústica própria.125
Nós encontramos aqui a prática do teatro contemporâneo (não apenas a do teatro da matéria), que ao modificar o papel dos acessórios e dos objetos, transforma sua significação primeira. Mas o que no teatro dramático não passa de um elemento de uma gama de jogo mais extensa, constitui aqui a matéria de todas as ações. A concentração da expressão e da forma dota o teatro de um novo traço característico. O tempo nos dirá se os postulados de Knoedgen têm mais futuro que as experiências do teatro plástico e do teatro da matéria que nós já conhecemos. Ele ainda tem uma relação com o teatro de bonecos, suas tradições e sua história? Garante a sua continuidade? O teatro de bonecos não é, ao contrário, uma das aspirações seculares do homem de encontrar uma maneira de substituir o teatro de rosto humano?
Sob diversas formas, em particular na performance, chegou a se utilizar o corpo humano enquanto material como os Acionistas de Viena tais como Gunther Brus, Rudolf Schwarzkloger e Hermann Nitsch126. Assim, além da invasão em cena dos objetos da vida cotidiana, assiste‐se a uma reificação do corpo humano. Entre os bonequeiros contemporâneos, Hugo e Inês, uma companhia de pantomima, faz um enorme sucesso com as mãos, pés, cabeças e joelhos que cenicamente têm vida própria. Os personagens principais de Un Jour, Les Mains (Um Dia, As Mãos) espetáculo apresentado pela Companhia Pascal Sanvic dispõem da mesma autonomia. Do mesmo modo, na Polônia, o diretor Krzysztof Rauy, apresenta em seu Teatro Trzy Czwarte (Os Três‐Quartos) de Zusno o espetáculo Jan, Jean, Giovanni, John, Ivan... (1995), no qual utiliza mãos como material para criar personagens dramáticos. A novidade repousava no fato de que elas não eram personagens, mas serviam de matéria bruta. Os personagens são assim criados a partir de várias mãos; os rostos evocam os retratos alegóricos de Archimboldo, chegando a sugerir palavras e cantos. Os espectadores ficaram mais impressionados por essa nova matéria, essa evocação teatral da vida humana do nascimento à velhice, do que pelos personagens que as mãos buscavam imitar.
O boneco cristaliza o desejo do homem de encontrar um substituto artificial para o ator, talvez um substituto para o homem. A humanidade se contentou durante séculos em criar golems, andróides, autômatos, robôs e todo tipo de bonecos. Mas hoje, e é isto que faz a originalidade de nossa época, descobrimos que elementos da realidade,
125 Eine neue Aesthetik des Figurentheaters. Gespräch anläslich des Figurentheater‐Festivals in Ljubljana, Jugoslavien, mit Albrecht Roser und Werner Knoedgen (A nova estética do teatro de figuras. Conversa entre Albrecht Roser e Werner Knoedgen por ocasião de um Festival do teatro de figuras em Ljubljana, Yugoslávia) . Bühnenkunst, 1988, no. 2, p. 81‐82.
126 Peter Simhandl, Bildtheater. Bildende Kunstler des 20 . Jahrhunderts als Theaterreformer (O teatro de Imagens. Os artistas plásticos do século XX reformadores do teatro). Gadegast, Berlim, 1993.
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objetos e mesmo corpos humanos reificados podem nos servir de intermediários, significantes ou não, para descrever, apreender e refletir o mundo.
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V - S O C I E D A D E
Mudar o estilo do teatro de bonecos corresponde mais ao desejo de modernizá‐lo do que à vontade de reagir à certas situações sociais. Já empobrecido durante seu período itinerante ao curso dos séculos XVIII e XIX, não há outra preocupação, um século depois, que a de conquistar um status artístico. Além do mais, os adultos tomaram o lugar das crianças nas salas, e os bonecos são obrigados a responder à demanda de três públicos: as crianças e seus pais, os responsáveis pela educação, representantes frequentemente das instituições, e o público adulto, supostamente conhecedor do valor artístico do boneco.
Quando têm um suporte oficial, os bonecos cooperam com o sistema educativo e são pressionados a aceitar a ideologia, o que pouco apreciam. Um marionetista que atua para crianças, consciente da importância de sua missão, compõe ele mesmo seu programa artístico e educativo. Quase todos os marionetistas declaram seu compromisso com este senso. Leokadia Serafinowicz e Wojciech Wieczorkiewicz, diretores do Teatro de Marionetes Marcinek de Poznan, assumiram, nos anos 60‐70, a idéia de um teatro cognitivo e provocante. Tido o pesar do espectador, nós assumimos o dever de sensibilizá‐lo aos problemas da vida contemporânea. Sem negar‐lhe o direito de rir e de se divertir, tampouco de se emocionar, nós queremos confrontá‐lo com diferentes problemas e obrigá‐lo a assumir uma posição. Nós queremos dizer‐lhe a verdade sobre a complexidade do mundo e a necessidade de fazer escolhas. Esta é nossa necessidade de realismo. Não escondemos nossas próprias idéias, mas utilizamos habitualmente insinuações. Para nós, a verdade que se descobre sozinho tem mais valor que a verdade dada127.
Esta atitude tem pelo menos duas funções: ela define a posição ideológica do teatro e delimita um campo de pesquisa artística. Na Polônia, é necessário esperar os anos 60 para que as autoridades aceitem o programa sem nenhuma intervenção. O mesmo aconteceu nos outros países socialistas. Os teatros voltaram‐se em seguida para ‘valores humanos’, diferentes da ideologia totalitária, imposta ao teatro da Alemanha Oriental e na Rússia. O teatro de alusão política, realmente de oposição – a palavras cobertas‐ e de contestação apareceu lá, mas sua linguagem continuaria metafórica e deixaria de lado o estilo do teatro oficial.
Teatro de contestação
A contestação se exprime pela escolha do repertório. No teatro infantil, as adaptações do folclore desenvolvem o sentimento nacional e têm uma função política e cultural. O folclore não suscita nenhuma reserva já que a doutrina leninista concilia um lugar priviliegiado à cultura popular. Ao contrário, trabalhar com os autores proibidos (como Mrozek e Beckett no Teatro de Marionetes de Budapeste), expõe os teatros à censura. A pressão desta varia conforme o país, a data de instauração do regime
127 Programa do Festival internacional de teatro de marionetes, Varsóvia, 16‐26 de junho de 1962.
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comunista e a tradição local: se os teatros de marionetes poloneses e húngaros podiam montar as peças de Brecht nos anos 60, os teatros russos só o fizeram dez anos mais tarde. Os teatros do Leste alemão só se interessaram por ele no final dos anos 70, quando a moda do dramaturgo já havia passado a algum tempo.
Nos países socialistas, como a Polônia, o poder controlava a evolução da arte através de estruturas administrativas e uma parte da crítica não negligenciava o teatro de marionetes. Os Aborrecimentos de Guignol, de Jan Wilkowski, criado na época de Khrouchtchev, foi uma denúncia de todas as formas de exploração, inclusive as do poder socialista, e isso é um segredo de Polichinelo. Alguns anos depois esta peça tornou‐se ideologicamente perigosa, conforme um crítico de Torun, em 1965: «Guignol parece dirigido contra o poder burguês, mas nós temos hoje a impressão de que ele se eleva contra todas as formas de poder ». O Teatro Drak escolheu temas emprestados do teatro russo para falar dos problemas da Tchecoslováquia contemporânea. Daí nasceu a metáfora da sede de liberdade, Enfin, Unicum (1978) e a análise da sociedade cativa através da adaptação de Dragon de Evguenii Schwartz, O Canto da Vida (1985). A maneira como estes espetáculos foram administrados no leste e no oeste é reveladora. No leste, o sucesso de um espetáculo é medido pela liberdade de expressão, fortemente discutida pela censura ou pelo comitê do partido comunista. O Canto da Vida é, portanto, considerado como o resultado de um compromisso. Ainda que no oeste a crítica evoque a resistência dos artistas em interpretar os espetáculos – foi o caso deste espetáculo – como uma manifestação de oposição.
No oeste poucos teatros de bonecos abordaram os problemas da sociedade e as questões políticas. Pelo que se sabe, a participação do teatro de marionetes no Maio de 68 nunca foi confirmada128. Os programas satíricos de televisão, como The Bebette Show ou Spiting Image, servem tanto à crítica como à popularidade dos homens políticos e dos artistas que são seus objetos. Os bonequeiros, preocupados com sua sobrevivência, raramente procuravam seu público nos grupos contestatórios. Um estudo sobre a responsabilidade da crítica e de sua influência sobre a vida cultural e sobre o teatro de bonecos, tudo, como os meandros de intenções e significações ocultas que o público e algumas vezes os cúmplices do poder descobriam nos espetáculos, merece, alhures, uma análise mais profunda.
Os bonequeiros podiam, em um contexto de liberdade, mostrar‐se sensíveis à situação política. Em Estocolmo, Michael Meschke marcou seu comprometimento desde a criação de Ubu Rei, em 1964. Este espetáculo, dentro de uma social‐democracia como a da Suécia, pode ser outra coisa que não um comentário filosófico sobre a tirania? Dentro de um país totalitário, a peça poderia ter um impacto político, mas alguns recusaram seguir Meschke, outros o convidaram depois. A história da criação política apresenta mais um paradoxo. As peças revolucionárias não traduziam necessariamente a expressão de um compromisso como o conta Meschke com preplexidade: Nós montamos da mesma maneira A Morte de Danton, em 1971. Em nosso espírito, era nossa maneira de 128 Julia Bloch‐Frey, As marionetes e a contestação social em: Cultures, volume II, n.3, 1975, Théâtre et artisanats contemporaines, Presses de l’Unesco et de la Bâconnière, UNESCO, 1975, p.58.
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contribuir para o debate sobre a revolução, que naqueles anos atingiu seu ápice. Nós dizíamos que a revolução era tanta que ela assegurava o restabelecimento da sociedade. Na peça de Buchner sobre a revolução francesa, os objetivos da revolução e a justificação da violência são postas em dúvida: Danton, racionalista que ama a vida, foi vencido pelo reino de terror de Robespièrre, que abriu o caminho para o fascismo de Napoleão. Na atmosfera carregada dos anos 70, quando apareceu o terrorismo, representar este drama no teatro com a sombra e o pó sobre a figura parecia deslocado. Nossa realidade cotidiana devia ser retratada. Havia, portanto, melhor lugar que o Parlamento sueco, cena da ação da verdadeira vida política? Nós o pudemos realizar porque o prédio estava provisoriamente fechado para trabalhos129.
O lugar é muito bem pensado. Os espectadores ficavam muito impressionados, ao deixar o Parlamento, em ver a guilhotina chegando a ser utilizada.
Os protestos dos intelectuais liberais são ʺbelosʺ demais para serem verdadeiros? É possível fazer um teatro de contestação? É este o verdadeiro teatro? E qual é a força da contestação se ela é um jogo? Peter Schuman dá uma resposta. Aquele que deseja protestar contra a injustiça levanta e cria. A revolta deve ser espontânea. Ela não é boa como profissão. Um espetáculo contestatório mesmo que bem montado não provoca mais que risos. É uma catástrofe130.
Evidentemente, Meschke não pratica a contestação profissional e alimenta nobres intenções com seu engajamento. No entanto, a observação de Schuman leva a pensar sobre a parábola bíblica do rico e da cabeça da agulha. O profissional do teatro perdeu a virgindade, que é a condição sine qua non do contestador. Neste período, o apolitismo da maioria dos marionetistas inquieta certos artistas e espectadores do teatro de bonecos como Michel Poletti, que declarou em 1971: Guignol pertence ao século XIX. Ele abriu uma via que nem aqueles que crêem ser seus herdeiros, nem os novos marionetistas seguiram. A marionete deveria fazer mais que Guignol, ela não faz nem tanto quanto. Ela perdeu, tecnicamente falando, sua violência. Socialmente, a coragem da subversão. Ela tornou‐se um produto de consumo, mesmo que seus criadores creiam agir dentro da gratuidade do rosa e do lenga‐lenga. Ou para tornar‐se mais que uma batata finamente decorada, a marionete deveria começar por seguir o exemplo de Guignol. Ela poderia em seguida preocupar‐se com a estética, o humor, ou a metafísica. Não há teatro “mignon” que seja uma arte131.
Poletti pesquisa um teatro total com as marionetes e figuras de todos tipos, manipuladas ou acionadas por mecanismos; os dispositivos, as técnicas de iluminação modernas com seus tubos stroboscópicos, o cinema, uma música pop ensurdecedora, geralmente composta por Corry Knobel. Seus bonecos são geralmente feios, freqüentemente plásticos, de cores desagradáveis. Suas qualidades reais não aparecem senão no curso da ação. Barthélémy (1970) dá uma perfeita imagem de seu estilo: um herói assiste a diversos episódios sangrentos da História, tanto como ator quanto como
129 Michael Meschke, Em busca de uma estética da marionete (À la recherche d’une esthétique de la marionnette). Indira Gandhi National Centre for the arts & Sterling Publishers Private ltd, Nova Déli, 1992, p.116.
130 Stefan Brecht. Peter Schuman’s Bread and Puppet Theatre. The Drama Review, n.14/3, 1970, p.64.
131 Michel Poletti. <Guignol est mort. Vive Guignol!>. Puppenspiel und Puppenspieler, n.2, 1971, p.32‐33.
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observador. Aparecem sobre a cena, atores e bonecos, gravuras do passado (em diapositivo), documentos apresentados com uma ironia mordaz e um humor que choca a sensibilidade e a imaginação do espectador. ʺA noite de São Bartolomeu de 1572 conta a vida à 12.000 pessoasʺ, declaram os autores do espetáculo, antes de convidar os espectadores a procurar analogias com o mundo contemporâneo132.
A crítica e teórica do teatro para crianças, Melchior Schedler atribui‐se ao teatro de marionetes moderno e sobretudo à sua interpretação educativa pelas mesmas razões. Ele denuncia violentamente a recuperação dos heróis populares como Hanswurst ou Kasperle. Estes personagens têm representado sempre o cidadão comum, opondo‐se às classes dominantes. Com o conde Pocci, a sociedade burguesa tinha tentado recuperar Kasperle de seus fins ideológicos. Na Alemanha, as ambições de Max Jacob, marionetista do entre‐guerras, pregavam, no lugar da revolta, a aceitação e a auto‐satisfação. Depois de Schedler, esta atitude correponde à espera dos movimentos de jovens fascistas, e determina, na Alemanha, o primitivismo educativo do teatro de marionetes e seu apolitismo. Que Kasper seja fascista é evidente, escreve ele. É o ʺferreiro das almasʺ que ʺmostra às pessoas a importância da comunidadeʺ, uma super‐figura no sentido pedagógico, sobre quem podemos dizer ʺeu gostaria de ser como eleʺ. Por outro lado, nós já atingimos este ideal, que é uma projeção interior de sua imagem. Ou, para retomar a idéia de Albert Drach: ʺela representa o que desejamos serʺ. Poderíamos colocar estas palavras como explicação de toda a história de Kasperle depois Pocci. Uma vez privado das particularidades de sua classe social e arrancado de seu meio, ele perdeu sua humanidade vibrante e imobilizou‐se, homúnculo vagando livremente, portador de uma mensagem educativa ou responsável pela expressão da opinião da maioria silenciosa133.
Recoing, na mesma época, sonha com uma marionete «arte da revanche, arte da vingança». Ele conhece suas tradições, suas capacidades expressivas e trata da atualidade, dos problemas da imigração operária, por exemplo, em Les Contes de ma Charrette. Consciente dos perigos do conformismo e interrogado em 1979 por Yvon Davis sobre o radicalismo possível dos bonecos, ele respondeu: ... a marionete é uma arte da vingança. Ela é capaz, com os meios primitivos, de afirmar uma enorme superioridade. Antoine Vitez diz substancialmente que seria insuportável que um ator arrancasse em cena, diante do público, as asas de uma borboleta; ao contrário, se é uma marionete que corta a cabeça de uma outra, seria irresistível e completamente justificado! A marionete representa uma metáfora possível da vingança do homem contra as forças que o oprimem.|...| o teatro de marionetes deve voltar a ser um teatro de classe, o que ele finalmente sempre fora. O que ele tem de triste, é que nos países onde retomou sua vocação de teatro de classe, ele tornou‐se um teatro conformista. Na França, felizmente, podemos ainda fazer um teatro irritante para os poderosos134.
132 Ursula Bissegger, Puppentheater in der Schweiz (O Teatro de bonecos na Suíça). Éditions Theaterkultur, Zurique, 1978, p.237.
133 Melchior Echedler, Shlachtet die blauen Elefanten! Bemerkungen über das Kinderstück (Matamos os elefantes azuis! Observações sobre as peças para crianças). Beltz Verlag, Weinheim und Basel, 1973, p.166.
134 La marionnette: un art de la vengeance (A marionete: uma arte da vingança). Entrevista com Alain Recoing. Théâtre public, novembro‐dezembro 1979, p.27.
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Teatro pobre
ʺTeatro contestadorʺ e ʺteatro irritanteʺ se opõem, pois eles não têm nem o mesmo contexto nem os mesmos objetivos. Nessa situação, a chegada de Peter Schuman e da trupe americana do Bread and Puppets Theatre na Europa, em 1968, foi um verdadeiro evento. Françoise Kourilsky135 consagra uma obra à historia deste teatro contestador tornado tão célebre. Depois de estudos artísticos na Alemanha, Schuman parte nos anos 60 para os Estados Unidos, com sua esposa Elke, onde desenvolve pouco a pouco sua atividade de marionetista. Em um primeiro momento instintivamente, depois conscientemente, ele se situa fora do Teatro e lá permanece. É a partir daí que sua resplandecência se espalha sobre seus vizinhos de rua, e sobre o mundo inteiro. Tendo assim o prazer de fazer a festa, sem remorso nem características de uma civilização sempre pressionada, não faz do teatro mais uma comunidade sem dinheiro, mais preocupado em se divertir e em fazer pequenos trabalhos que em fazer arte. Schumann ensaia todas as formas espetaculares, vinculando‐se às verdades primeiras: os espetáculos com bonecos de pequeno tamanho, chegando a uma forma de teatro íntimo; os espetáculos de rua com marionetes gigantes, renovando com os desfiles de carnaval e os mistérios. Seus primeiros espetáculos têm como tema as dificuldades da vida cotidiana. Os seguintes abordam os problemas morais de nossa época, que o conduz à política. Então foi notada a força de seus espetáculos, que associam a simplicidade do julgamento moral à simplicidade dos meios, nas fronteiras na arte naif.
O Bread and Puppets Theatre foi sensação na Europa, em parte porque utiliza temas míticos que todo mundo conhece, e em outra porque estabelece uma real comunhão com o público. Schuman volta‐se para as fontes do teatro, da cultura humana e dos problemas sociais; ele renova a forma teatral, a relação com o público e encaminha‐se na direção de uma forma ritual. Dessa forma, ele constrói um forno para fazer ele mesmo seu pão e dividí‐lo com os espectadores no fim do espetáculo e organiza os desfiles de rua para todos os participantes que desejam reunir‐se com os ʺPuppetsʺ, com os bonecos ou com as máscaras, a pé ou sobre as pernas de pau. Ela organiza igualmente os encontros anuais com o público, em Glover, em sua fazenda em Vermont, para improvisações teatrais.
Em 1964, ele inaugura seu programa através de uma célebre declaração: ʺDo pão e das Marionetesʺ: É um pedaço de pão que nós vos damos ao mesmo tempo que um espetáculo de marionete porque pão e nosso teatro vêm juntos. Há muito tempo a arte e o estômago foram separados. O teatro era um divertimento. O divertimento pela epiderme, o pão pelo estômago. Os antigos ritos do pão, o cozimento, o consumo, a oferenda do pão foram esquecidos. O pão se decompôs, ele virou mingau. Nós queríamos que vocês retirassem seus calçados quando viessem ver as marionetes, ou então nós desejávamos abençoar‐vos com um arco. O pão os lembra o sacramento do alimento. Nós queremos que vocês compreendam que o teatro não é uma forma estabelecida, que não é um lugar de comércio como vocês pensam, o lugar onde se paga e se recebe qualquer coisa. O teatro é outra coisa. Ele tem mais de pão, ele é mais um desejo. O teatro é uma
135 Françoise Kourilsky, Le Bread and Puppet Theatre (O Teatro Bread and Puppet). La cite, Lausanne, 1971.
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forma de religião. Ele é a alegria. Ele pronuncia os sermões e constrói um ritual próprio dentro do qual os atores tentam elevar sua vida à pureza e ao êxtase que contêm as ações das quais participam136.
O primeiro espetáculo em que falou disto é Le Feu (Fogo), em reação à crueldade do napalm utilizado durante a guerra do Vietnã. A ação se desenrola em uma semana, um toque de campainha do narrador (Schuman) e um cartaz de papelão com os dias marcando o tempo que passa. Atores mascarados apresentam as cenas da vida cotidiana dentro de uma aldeia vietnamita, onde a vida beira a morte, da qual eram prisioneiros. O fogo surge no último dia. Eis aqui a cena final: Schuman dá toque na campainha e sai. Entra uma vietnamita toda de branco. Ela se senta no meio da cena, a cabeça voltada para o público. Ela se imobiliza. Três homens com capacetes – de americanos‐ entram em cena armados com grandes bastões, cordas e grades. Eles montam ruidosamente uma clausura ao redor da mulher. Eles saem. Um momento de silêncio. Depois a vietnamita se inclina na direção do chão e se coloca a desenrolar um rolo de fita adesiva vermelha: sem se apressar, metodicamente, ela corta dois pedaços dessa fita e os cola sobre sua roupa branca, ao redor de suas mãos e de seus braços. No momento em que a Vietnamita se inflama, os três homens entram. Eles trazem máscaras de cego. Eles fazem a volta na jaula tateando. Saem. A mulher se meche cada vez com mais dificuldade. Mas ela prossegue sua autodestruição. O barulho do rolo que se rasga ecoa no silêncio; diríamos as chamas que crepitam e a fritura dos corpos que queimam. A mulher gruda imediatamente o adesivo sobre as bochechas, a boca e os olhos. De repente ela cai e se contrai sobre si mesma. Ela conduz em sua queda a jaula que a aprisiona. Aparece um cartaz com a palavra «Fim»137.
Será em seguida L’Appel du Peuple pour la Viande, criado em Nova Iorque em 1969 e apresentado um pouco depois na Europa, que produzirá a maior impressão na crítica e no público. O espetáculo, a história da humanidade, conduz à guerra do Vietnã. Os atores utilizam máscaras, marionetes e imensos bonecos de vara cuja maioria já figurara nos espetáculos precedentes. O espetáculo começa com a dança de Urano com sua Mãe, a Terra, na ocasião de seu casamento, e termina com a morte de Urano e o nascimento de Cronos. Depois de ter feito justiça à pré‐história, Schuman passa ao Antigo Testamento. Antes da aparição do homem, o mundo é habitado por animais brancos vestidos com máscaras munidas de proibições de solidão. Coro e auxiliares do drama, eles desenvolvem um papel importante para o desenvolvimento da ação. A criação de Adão e Eva foi feita através de metáfora: eles saem de um plástico transparente que faz nascer todas formas de associação de idéias. Segue uma série de cenas, das quais a genealogia de José utiliza, ela também, uma forma metafórica: os atores atiram sobre José adormecido pedaços de tecido que simbolizam as gerações sucessivas. A segunda parte mostra a cólera de Herodes. Uma marionete de vara tricéfala segurada por um
136 Françoise Kourilsky, Le Bread and Puppet Theatre (O Teatro Bread and Puppet). La cite, Lausanne, 1971, p.249.
137 Kazimierz Braun, op.cit., p.123‐124.
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ator representa os Reis Magos. Ela corre através da cena, perseguida por um rebanho de animais. José e o Menino Jesus fogem, eles também. Mas a violência conquistou o mundo. Na terceira parte, assistimos ao massacre dos inocentes e ao bombardeio de Belém. Sobre a cena resta nada a não ser os soldados, as mulheres e as crianças. Uma mulher relata o testemunho de um vietnamita sobre o ataque de sua aldeia pelos ʺaviões em forma de peixeʺ. Em Belém também, ouvimos o zumbido de aviões, um enorme avião‐peixe é projetado sobre a cena por detrás. As mulheres caem no chão. Na parte seguinte, um apólogo moderno. Os atores citam aforismos do Evangelho. Na presença de uma grande marionete de vara que representa Cristo, eles contam as ʺhistórias de Jesusʺ, dentre as quais a história do trigo e da boa semente (o entágono, o homem de negócios e Cuba) e a dos falsos profetas (Nixon). Seguem os preparativos da Ceia. Uma mulher munida com uma grande panela se aproxima da marionete de Jesus e tira sangue de seu flanco, por um longo momento, enquanto os atores repartem o pão com o público.
Um artista dificilmente pode ir muito além da condenação de sua própria civilização, e um crítico constatar com mais que severidade sua queda. Schuman persegue sua revolta permanente contra a crueldade e a injustiça, aperfeiçoando sua técnica, sem dúvida mais teórica que prática. Espetáculos como L’Attrapeur d’Oiseaux en Enfer, Jeanne d’Arc, Le Chemin de Croix, Le Boucher du Cheval Blanc são a expressão de seu inconformismo e de sua incapacidade de calar‐se diante do mal e da opressão. A arte de Schuman perturba a boa consciência dos espectadores e artistas, os força quase a se mobilizar. Os efeitos foram, no entanto, demasiado limitados. Dezenas de artistas americanos e europeus dividiram durante algum tempo a vida da trupe, com o desejo de comer cada dia seu pão, de participar de sua arte. Eles constituem hoje uma boa parte da geração de artistas do teatro e do teatro de bonecos que mais adotaram os valores estéticos do Bread and Puppets Theatre.
Schuman tinha outras ambições que as de reformar o teatro de marionetes nos anos 50 e 60. Criar uma nova arte do boneco não era seu objetivo principal. Seu teatro pobre, engajado, e seus meios de expressão estão em completa harmonia com suas conquistas de posição e contêm quase todos os princípios da transformação da marionete, já adquiridas na Europa, a saber: o abandono da tendinha, a busca por novos espaços teatrais, a mistura entre meios de expressão, a liberdade daquele que anima a marionete para se mostrar, a passagem da linguagem descritiva e mimética para uma linguagem poética, e finalmente, a renúncia ao texto dramático em proveito da narração. A força de Schuman é ter reformado as estruturas dramáticas. Sua influência dentro de seu domínio foi considerável, pois ele associou os motivos literários que todos nós poderíamos reconhecer. O teatro já utilizara este tipo de colagem no passado e, entre os marionetistas, Jan Dorman foi o único a isso recorrer, em grande escala. Schuman fez o mesmo pela necessidade de improvisação e para atualizar os eventos míticos ou fictícios. Em L’Incendie, ele liga a história da aldeia vietnamita ao ciclo dos Sete dias, evocando a Paixão e a Ressurreição. The Cry of the People for Meat, evoca claramente temas do Evangelho e da atualidade: o bombardeio de Belém é uma síntese do massacre dos Inocentes e dos camponeses vietnamitas; a Crucifixação, um ato universal da aviação
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americana. Ao atualizar o mito, Schuman afirma seus princípios dramatúrgicos. Assim, Notre Cirque de la Résurrection Domestique compara a história da Crucifixação com a da sociedade americana.
Cada espetáculo, ou quase, contém elementos de ritual. Mas é com Domestic Resurrection Circus, apresentado pela primeira vez no Godard College, em 1974, reprisado todo ano em Glover, que se encarna o melhor dessa idéia. O espetáculo138 tem ao mesmo tempo um quê de festa de feira, de circo, de festa religiosa e de teatro de vanguarda. A entrada é livre. A multidão se acomoda num campo de doze hectares onde se desenrolam numerosos espetáculos em pequena escala. Pequenos ou grandes, os espetáculos têm um tema em comum: Le Combat Contre la Fin du Monde. Ao cair da noite, os espetáculos começam com um incrível cortejo do qual participam mais de cem atores e bonecos gigantes. O cortejo chega a uma antiga pedreira de cascalho em forma de ferradura, um anfiteatro natural, que pode acolher dezenas de milhares de espectadores. É la que acontece o espetáculo principal, que geralmente termina com o pôr‐do‐sol. É uma sucessão de quadros de estrutura flexível, que representam os grandes temas do ano.
A ação comporta geralmente quatro movimentos. O primeiro apresenta «a ordem natural do mundo». Ao redor do anfiteatro, os bonequeiros passeiam com um enorme boneco chamado Face de Deus, cantando um hino tradicional. O segundo é consagrado aos eventos históricos e políticos. O terceiro apresenta a luta do bem contra o mal e termina com a grande Dança da Morte. O movimento final começa com a aparição de uma personagem gigantesca, Mãe Terra. A Mãe Terra carrega uma tocha com a qual ela coloca fogo nas figuras representantes de forças negativas dispostas pela arena, no mesmo momento em que a noite cai. Acima do fogo se elevam passáros brancos na ponta de longos bastões animados pelos atores, ao som melodioso de uma orquestra. Este espetáculo revela a crença no rito e no divertimento popular. Poderíamos compará‐lo aos mistérios da Idade Média, bem que Schuman pesquisa, lembra ele, a associações de idéias muito maiores e menos evidentes: ao modificar a pompa religiosa tradicional com uma dose de divertimento popular, Schuman criou um meio que condiz ao tikkun, para curar ou reparar o mundo. Os bonecos gigantes ajudam a transmitir e a personificar as forças cósmicas do bem e do mal, que geralmente são o tema principal do teatro de Schuman. Eles também ajudam a inscrever toda a paisagem dentro da cena. Dessa forma os arquétipos humanos, os animais, as colinas, a floresta, o sol, o céu e as estações são unidos dentro da reconstituição épica anual da decadência da humanidade e de sua Redenção139.
O fim tem uma característica otimista, em perfeita harmonia com o mito universal da Redenção. Não esqueçamos que Schuman é capaz de glorificar ou destruir o valor do mito. Ele denuncia o mito do sucesso americano para revelar o seu outro
138 Stephen Kaplin. Signs of Life: An Analysis of contemporary puppet theatre in New York City. A thesis (manuscript) (Análise do teatro de bonecos contemporâneo em Nova Iorque. Tese (manuscrita). New York University, 1989, p.53.
139 Ibidem, p.56.
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lado do cenário e cria Christophe Colombe, na ocasião da celebração da descoberta da América, para evidenciar o caráter mentiroso desse mito.
Teatro ritual
Na Espanha, nos anos 70, próximo do Bread and Puppet Theatre, Els Comediants baseiam seu procedimento sobre o ritual e a ironia do mundo moderno. Eles respeitam os postulados dos reformadores do teatro do início do século, a saber: romper com a divisão fixa entre cena/sala, retomar as relações com o mito e o ritual, fazer do divertimento um elemtno cultural, liberar o teatro da ditadura da literatura. Eles renunciam ao texto para colocar sua inspiração dentro de imagens e de personagens representantes da vida cotidiana catalã e se voltam na direção de uma atmosfera de divertimento geral. A peça era politicamente suspeita porque naquela época Barcelona permanecia uma cidade tomada pelo regime franquista. Ela era tanto mais uma ruptura com as convenções teatrais que os jovens atores tinham recursos das marionetes, dos atores, das máscaras, das cabeças e dos gigantes.
Na tradição espanhola, durante a fiesta, personagens diversos desfilam na rua, dentre os quais os cabezudos, como se chama os personagens com enormes cabeças que representam os tipos populares da cidade ou da região. Os corpos desses gigantes e suas cabeças são movidos do interior. Nos desfiles tradicionais, eles representam os Mouros, para comemorar a invasão da península ibérica. Els Comediants atribuem aos gigantes um novo papel: o de encarnar o poder, todos os poderes, governamentais, locais e religiosos. Este novo papel é portador de tensão e de ação dramática. Assim, Non Plus Pris (1972) é um divertimento desenfreado, em que o jogo instantâneo dos participantes constitui a trama. Este jogo desaparece desde que os representantes do poder fazem seu carnaval e privam o povo de sua festa. As críticas não faltam para fazer notar a imoralidade desse rito.
Entre 1977 e 1979, a companhia encontra seu verdadeiro estilo e seus temas de inspiração. Els Comediants renunciam aos temas autóctones para interessar‐se por temas de uma dimensão universal e antropológica. O início da festa e do desfile de rua não muda, mas o conteúdo é muito mais forte. Qual fosse o tema, a fiesta é para eles um divertimento puro, uma recusa à seriedade e às obrigações. Eles desejam semear a alegria de viver, sem patronagem laica, nem santos padroeiros e evocam as lendas e os mitos, mais frequentemente pagães, porque eles trazem uma explicação ao seu desejo de viver. Basta evocar os saturnais, ʺas liberdades de dezembroʺ, as festas de bufões para virar o mundo do avesso, para fazer por pouco tempo um mundo onde os papéis são invertidos, onde o Riso toma o lugar da Seriedade e o Bufão o do Rei para reencontrar a harmonia perdida do mundo. ʺPara nós, explica Joan Font, é mais importante emocionar o público do que nos fixarmos em uma idéia, desejamos produzir um choque elétrico que transmite melhor qualquer mensagemʺ.
Dimonis, apresentado no exterior, não corresponde às mesmas inspirações. Os atores, vestindo máscaras de diabo, triunfam forças do bem representadas por anjos. Joan‐Anton Benach interpreta este espetáculo como prova da radicalização dos Els Comediants: Eu não preciso de manifestos éticos e estéticos para dizer o que penso, Els
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Comediants são uma trupe feroz e de um radicalismo absoluto em seus espetáculos. Esta radicalização é a pura consequência de uma motivação que é muito mais profunda que a de empurrar para a direita ou para a esquerda. É a conseqüência de uma vocação e de um instinto dramático notável ou, se preferirmos, da esperteza e da diversão. Nós não avançamos com argumentos racionais contra o poder, não discutimos com ele, não nos expomos a grandes reclamações. O poder é uma estrutura superior, contestada por princípio, digna de ser regularmente ridicularizado pelo encontro de suas forças e os símbolos marginais são a pressão dos impulsos lúdicos e vitais dos homens de nosso tempo, prontos para ridicularizar todas as convenções sociais que freiam esses impulsos (...). Igrejas, palácios e prefeituras são os lugares que provocam Els Comediants e que neles suscitam um violento desejo de se combate‐los através de uma alegoria perversa. O ataque ao castelo de Maschio Angioino em Nápoles (1982), interpretado pelos nossos «demônios» espanhóis como o intuito de resgatar os prisioneiros capturados pelos Franceses, era mais que um divertimento recordado de um episódio histórico; era um protesto contra a hipocrisia e todas as formas de colonialismo. Em 1983, a multidão massageada sobre as praças e nas ruas d’Avignon puderam assistir à conquista do Palácio dos papas pelos diabos catalães. Durante o último grande momento do festival, Els Comediants abandonaram suas barcas sobre as margens do Rhône e ocuparam literalmente os monumentos centrais da cidade, seguindo sua inspiração, mas a conquista do imponente bastão do papado e o anúncio à cidade e ao universo do triunfo das forças subterrâneas sobre o poder eclesiástico eram a verdadeira razão de ser do espetáculo140.
Xavier Fabregas, outro crítico, qualifica dimonis d’auto sacramentales da mitologia pagã, é o que os torna às vezes tão medievais e tão escandalosamente contemporâneos. Prefiro, no entanto, a definição de Benach, para quem a atitude dos Les Comediants é um ʺarqueo‐anarquismoʺ.
Que alguns refiram‐se à numerosos temas míticos e à prática do rito, como o Bread and Puppets Theatre, ou que outros tentem contestar as verdades míticas dentro de um rito do mundo ao inverso, como Els Comediants, estas práticas teatrais estilizam os problemas da vida a partir de antigos comportamentos populares e utilizam uma linguagem adaptada à nossa época. Se aceitamos que o senso do poder e da autoridade dominam nossa realidade é secundário, o essencial de nosso encontro com esses grupos permanece nas suas proposições em aceitar uma nova forma de comportamento social, quer dizer, o ritual como lugar de expressão das tensões individuais e sociais. Como é que o povo, conhecido o ritual da revolução, se satisfará com seu equivalente teatral e artístico?
Fazer frente à história
Se desconfio do ritual renovado como forma contestatória, não se pode negligenciar sua função cultural e social. A comunhão ʺdo pão e da marioneteʺ cria uma comunidade universal. Ela conserva, malgrado a desvalorização do conceito de mito, referências longínquas com uma comunidade sagrada. Les Saturnales e o ʺmundo ao
140 Joan‐Anton Benach, Crónica de una fascinante transgresión (Crónica de uma transgressão fascinante). Em: Comediants 15 Anos. Centre de documentación teatral, El Publico, Madri, janeiro de 1988, p.16..
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inversoʺ são conceitos históricos e o riso considerado como comportamento humano conserva sua força purificadora. Sem fanfarras e sem outras declarações de engajamento político, o teatro de bonecos continua a tratar, de sua maneira, os problemas morais e sociais, em particular, através de retrospectivas sobre os eventos trágicos da guerra e sobre os problemas sociais e políticos que caracterizam nossa sociedade.
Os primeiros concernem à tragédia do holocausto. Privilegio a análise de situações escatológicas ou a descrição de reações de pessoas tendo padecido a um choque psicológico, tendo sobrevivido à guerra com heroísmo e se deparando com a incapacidade de viver sem os seus próximos. O Teatro da Comuna de Aubervilliers monta em 1984 O Marionetista de Lodz, de Gilles Segal. Esta encenação de Jean Paul Roussillon faz uso da marionete para evocar um certo judeu, Finkelbaum, evadido de um campo de concentração. Esta peça de teatro dramático foi igualmente encenada no teatro de bonecos, como o Figurentheater em Rogenbogen ou o Theater ACT, em Nuremberg. O Théâtre Banialuka, de Bielsko‐Biala monta em 1986 O Pequeno Grande Rei, de Joanna Kulmowa, que nos fala dos últimos instantes do grande pedagogo polonês de origem judia Janusz Korczak, antes de sua execução. O mesmo tema é tratado por artistas russos e ucranianos no Teatro Municipal de Kiev, em Tudo vai bem... (Vse Bude Garazd..., 1996) por Irina Uvarova, onde o holocausto e os sofrimentos das crianças judias se inscrevem em uma sucessão de eventos trágicos e inumanos que constituem a história da humanidade.
Dos temas da atualidade abordados pelos teatros, evocarei o Théâtre de la Poudrière, que, na Suiça, optou por tatar a vida dos imigrantes na Europa: Exilados (1990, Neuchatel). Gustav Gysin testemunha: os exilados almejam a presença daqueles que permaneceram no país. Eles enderessam suas cartas, mas acabam por nunca contar sobra elas. No momento em que os pensamentos dos emigrantes se voltam para seus compatriotas, sentados sobre os balanços acima da área de jogos, os marionetistas tocam os balanços e os colocam em movimento. Em Noel, uma pequena luz brilha em cima de cada personagem. De tempos em tempo, um balanço desce numa tentaiva inútil de tocar aqueles que vivem embaixo, no exílio141.
O teatro se utiliza também do eco da atualidade das mudanças políticas da Europa Oriental, como o testemunha o espetáculo alegórico de Vitalis Mazuras, A Desinteria, montado em 1989 no Théâtre de Marionnettes de Vilnius, na Lituânia. Trata‐se de uma crônica da história do seu país báltico, desde a Segunda Guerra Mundial, interpretada pelos atores e com recursos plásticos. A metáfora da convalescência da cultura lituana (um campanário queimado envolto por ataduras) é o ponto culminante. Esta retrospectiva política foi uma prova de coragem cívica no momento em que a independência da Lituânia era novamente o objeto de negociações com seu poderoso vizinho.
Outros acontecimentos como a divisão da antiga Iugoslavia em pequenos estados nacionais, a guerra étnica da Bósnia, o sofrimento de milhares de pessoas, o choque da
141 Gustav Gysin. Exiles – le spectacle en création suisse à la Chaux‐de‐Fonds. Puppenspiel und Puppenspieler, Zurique, 1991, n.2, p.25‐26.
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comunidade internacional, levaram artistas a se perguntar sobre a solidariedade humana e as dimensões dos horrores perpetrados pelo homem. Alguns protestaram contra este estado de coisas através de declarações ou de ações humanitárias, mas não vimos muitas produções teatrais próprias a emocionar um público maior. Não havia muitos espetáculos de caráter artístico que fizesse ressentir‐se o caráter trágico do destino humano. Não vimos mais que espetáculos de intervenção, como As Crianças de Saravejo (texto, cenário e marionetes: M. Mescke), no Marionetteatern de Estocolmo, em 1994. Em cena, casas em ruinas, atiradores de elite escondidos e habitantes fazendo fila pela água. Nada mais do que o relatado pela imprensa cotidiana, mesmo que Meschke substitua os rostos dos civis por alvos142.
As grandes mudanças sociais são às vezes acompanhadas por uma tomada de consciência dos artistas sobre o destino dos homens e da sociedade. A arte, através de sua história, nos esclarece com numerosos exemplos. A modernização do teatro pode ser ela mesma um sinal dessas mudanças fundamentais? E a atitude modernista, com sua aspiração ideológica, procura um senso político nos espetáculos? Schumann, que ama formular manifestos artísticos, responde: A que o modernismo nos conduziu? Ele destruiu o tabu da percepção. Ele liberou a força das mãos e dos espíritos, força cujas mãos e espíritos não tinham consciência. O drama do Modernismo é seu fracasso político e social, sua incapacidade em aplicar na situação histórica outra coisa que as descobertas formais. O processo liberatório do Modernismo foi recolocado entre as mãos da arte e de tudo o que a ela se liga. Os gloriosos ideais do Modernismo não se podem penetrar nem dentro dos hábitos nem dentro dos atos dos órgãos de poder. Pode ser necessário questionar até onde o Modernismo teve intenção de ir? Em um momento ou em outro seus sonhos ultrapassaram a Revolução russa a qual superou para sobreviver? Kandinsky e Schoenberg acreditavam nas aspirações superiores, quase religiosas, do Modernismo, mas a Alemanha nazista e o capitalismo moderno fizeram com que estas esperanças se degenerassem e deram uma especialização dentro do domínio de suas práticas puras, esotéricas, que nós associamos atualmente à ʺArte Modernaʺ143.
DENTRO DO CONTEXTO DA TRADIÇÃO POPULAR
Diante das múltiplas transformações do teatro de marionetes, a marionete popular seguiu inexoravelmente seu caminho. Da tradição do bufão, do Evangelho ou dos arquétipos modernos da literatura, ela leva os marionetistas no sentido dos mitos de nossa civilização. Este retorno às fontes é circunstancial desde que as pesquisas antropológicas ocuparam a imaginação de alguns encenadores contemporâneos como Brook, Grotowski e Barba.
A transformação da arte da marionete na Europa não afeta a marionte tradicional e seus valores intrínsecos. Não há contradição entre as transformações dos meios de expressão do teatro dito artístico e a manutenção da característica local, muitas vezes
142 Michael Meschke. Grenzüberschreitung zur Aestherik des Puppentheatres (Ultrapassar fronteiras através da estética das marionetes). Wilfried Nold, Frankfurt‐am‐Main, 1966, p.158‐160.
143 Peter Schuman. The Radicality of the Puppet Theatre (O radicalismo do teatro de bonecos). The Drama Review, vol.35, n.4, Winter 1991, p.82.
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nacional, de certos gêneros teatrais? Todos os sistemas culturais podem facilmente legitimar seu funcionamento paralelo e não contraditório. Mesmo o romantismo procurava uma legitimação dentro da tradição folclórica. A obra folclórica preserva efetivamente os valores que podem revestir um caráter único quando certas condições são reunidas: o isolamento geográfico, político, ideológico. Este isolamento favorece no curso dos séculos o nascimento e a perenidade de teatros locais os quais qualificamos hoje de teatros folclóricos, populares ou tradicionais. Estes teatros existem ainda nos nossos dias e sua sobrevivência carrega um sentido particular no contexto das mudanças incessantes dos meios de expressão. São os pupi siciliani e os teatros de marionetes de fio da França, Bélgica, Espanha ou Portugal, ou os pequenos teatros ambulantes dos heróis populares, como Pulcinella, Polichinelo, Punch, Petrouschka ou Kasperle, ou ainda os teatros de sombras com Karagoz e Karagiosis; os teatros que fazem uso do repertório do Mistério e da Natividade, de Fausto ou de Don Juan.
Os artistas e os amadores apaixonados pelo folclore mantêm esses teatros em atividade, porque ele praticamente não existe mais como ambulante, com pessoas simples para as quais a marionete era um meio de subsistência, de sobrevivência muitas vezes, e com marionetistas de rua que estendiam seu chapéu em troca da representação. Os ambiciosos homens de teatro da província que desejavam imitar os espetáculos dos teatros parisienses ou berlinenses com seus bonecos também desapareceram. As condições que precederam ao nascimento desta arte popular, no campo como nas cidades, são descritas por sociólogos da cultura como Arnold Hauser144, que fez uma distinção entre a cultura do campo, a cultura popular e a cultura de massa, aquela de países da Europa e da América do Norte, que hoje produzem uma arte homogeinizada.
A tradição do personagem cômico permanece a mais popular. O teatro de marionetes utilizou‐se da personagem alegre, do rebelde, do bufão e abusou de jovialidade, estes personagens cômicos, de Vidusaka à Kasperle e Guignol passando por Pulchinella. Spejbl e Hurvinek foram os últimos moicanos desta família. Mesmo privada de seu público popular, a tradição se manteve. Os heróis ainda desempenham um papel que não é o seu. Assim, Kasperle torna‐se um herói do teatro para crianças e se engaja, momentaneamente, na política (Kasper o Vermelho). Nos anos 70, ele reaparece, tal como uma citação, nos espetáculos de Waschinsky e de Podehl. O Petrouschka russo se engaja na luta de classes (principalmente em benefício da Revolução de Outubro), depois é destituído por Obraztsov, que o considerava um personagem inútil.
O repertório de Stravinski dá um novo renome artístico tanto aos teatros húngaros quanto aos romenos nos anos 60. Ele igualmente recupera os personagens dramáticos populares do teatro tcheco e polonês nos anos 70. Laszlo Vitez, em Budapeste, é um fenômeno excepcional. A tradição desse herói popular perpetuou‐se graças a Henrik Kemeny, marionetista mambembe, extremamente habilidoso, que deu‐lhe novamente vida na época de múltiplos festivais, ainda que ele seja obrigado a deixar seu castelete e suas marionetes no estoque do museu do teatro. 144 Arnold Hauser. Filozoficzna historia sztuki (História filosófica da arte). Panstwowy Intytut Wydawniczy, Varsóvia, 1970, p.269. Trad. De Danuta Danek e Janina Kamionkowa.
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Na Inglaterra, a comédia de Punch e Judy provou uma extraordinária longevidade, cerca de duzentos anos (sem contar os anos de celibato de Punch), graças a artistas que são às vezes marionetistas, clowns ou mágicos. Ela é, por isso, um simples meio dentre todos os que eles têm a sua disposição. Evoluindo no decorrer dos anos, Punch hoje domina a cena, como o provam as incontáveis interpretações que ele conheceu no século XIX. Nossos contemporâneos fizeram inclusive interpretações feministas e punk.
A comédia de rua suscita também o interesse dos teatros de repertório. Na França, Alain Le Bon, artista de espírito mambembe, se utiliza de Punch considerando‐o como essência da natureza humana, ele interpreta sua ʺcomédiaʺ e mantém a tradição. Le Bon compôs o papel de um personagem, o clown‐ balbuciante Grossalino e batiza sua trupe de Cirk’Ubu, unindo assim a tradição do teatro mambembe com as tendências grotescas da vanguarda. Punch (1984) foi sua primeira criação. Nem reconstrução nem pastiche, o espetáculo é digno do verdadeiro, do grande e belo teatro, no qual a filosofia é atirada aos espectadores. Seu teatro é um espaço coberto de acessórios de circo ou de uma peça rural de outrora. Uma trupe de marionetes músicos sai astuciosamente do lugar da cena, um paravento surge dos quadros sobre os quais se desenvolve a ação em conformidade com o espírito anarquista de Punch. O repertório se enriquece com Punch ou o Outro Don Juan (1987) e A Tentação de Existir ou a Cômica Ilusão (1991).
Grossalino tece comentários truculentos sobre a existência, caindo muitas vezes num discurso moralista ou em uma filosofia barata. O amor, a violência, a existência humana, a insignificância de nossos desejos são seus temas favoritos. Le Bon aborda o texto da comédia respeitando os hábitos dos artistas populares que cortam o material dramático em função de suas necessidades. Punch luta com seu vizinho, um médico e um carrasco, e, sobretudo, com a morte, porque ele deseja aproveitar a vida em todos os seus aspectos. A cena com a Morte se distingue de todas as outras. Ela não é cômica. É um discurso existencial, escatológico. Em suma, a criação de Le Bon tem uma caracterítica – à primeira vista‐ perversa, que consiste em utilizar uma forma grotesca para exprimir reflexões bastantes sensíveis sobre o teatro, a arte e a vida em geral.
Em Bruxelas, Jose Geal, ator, autor, diretor de um teatro para crianças, é doravante Toone VII. Ele atingiu a perfeição no papel de diretor do Théâtre Toone, um dos teatros populares mais famosos, que se constitui em uma das atrações da capital belga, na qual os turistas poderiam ser assimilados a um público popular. Segundo a tradição, Geal recita ele mesmo todos os textos, altera sua voz quando se faz necessário, à vista e nas coxias. Ele faz com que artistas experientes construam os bonecos e engaja marionetistas experientes para anima‐los. Ele possui um senso desenvolvido do papel artístico e folclórico do Théâtre Toone, segundo um cronista de Bruxelas, Alain Viray145.
Geal‐Toones tem consciência de que é em vão querer impedir que um estilo desapareça. Assim ele tem a iniciativa de renovar e aumentar o repertório
145 Andrée Longcheval e Luc Honorez. Toone et les marionnettes de Bruxelles. Paul Legrain, Bruxelas, 1984, p.87‐88.
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melodramático e de colaborar com artistas à margem das correntes tradicionais. Ele monta peças literárias renomadas, como El Cid, Ruy Blas, Cyrano, Escola de Mulheres, as quais adapta e encena no dialeto bruxelense. Em 1979, Geal se lança em uma importante inovação. Na encenação de Geneviève de Brahant, a ópera de Erick Satie, ele introduz atores e cantores ao lado de seus gordos bonecos. Eles foram muito aplaudidos tão logo se apresentaram nos palcos da Ópera Cômica, em Paris. Refletindo sobre mudanças de maior amplitude, Geal convida Margareta Nicolescu para encenar, no Teatro Toone, As Três Esposas de Don Cristóbal, de Garcia Lorca (cenografia: Mioara Buescu, 1985).
Tal convite foi sintomático. Em entrevista que fiz com Margareta Nicolescu, ela lembrou de sua experiência bruxelense, e compartilhou comigo as dúvidas que a perseguiram antes de começar seu trabalho. Decidida a respeitar a tradição, desejava igualmente ser fiel a si mesma e à sua estética pessoal: eu eliminei o castelete e deixei apenas o platô. Não disse que mudei a tradição: foi uma ruptura com a tradição. Ela se fez presente durante os processos de teatralização. Em seguida, a equipe de intérpretes era normalmente submissa à voz do narrador (diga‐se José Geal) e eles trocavam entre si seus bonecos a fim de seguir essa voz). Eu redistribuí os papéis, e para sua grande surpresa eles foram solicitados a interprestar os personagens. Eles aceitaram um outro processo de realização teatral, era um teatro de personagens que respondiam às situações dramáticas, aos eventos dramáticos sugeridos pelo texto de Garcia Lorca, interpretado por uma única voz, a de José Geal. Sua voz tinha todos os registros, como de costume. Em seguida fabricamos os bonecos. Eu não queria compra‐los em uma grande loja, onde há milhares de marionetes que podem fazer tão bem o papel de um cavaleiro quanto de um rei ou uma vítima. Confeccionamos os bonecos conforme a identidade visual de cada personagem, já que a idéia do espetáculo era diferente nos planos plástico e estético. Seu movimento se aproximava ao dos bonecos de vara, mas eles tinham a possibilidade de tornarem‐se personagens, de não permanecer como efígies. Meu trabalho com José Geal como narrador foi muito interessante. José ditava o texto normalmente e a equipe em cena seguia seu ritmo, na atitude dos corpos, nas entradas e saídas. Ela seguia o ritmo que ele impunha com sua energia e sua voz. Sugeri a ele que o teatro vive também de silêncios, de mudanças de ritmo e também de precipitações e atrasos. Eu desejava que trabalhássemos o texto com um espírito que se aproxima do jogo. Às vezes o jogo é gestual, o movimento que vive, permitamos, portanto, que viva, que jogue146.
Nicolescu introduziu um elemento do jogo dramático moderno. Ela propôs um novo tipo de teatralidade que se exprime particularmente pela utilização vertical da cena, pelas metamorfoses do espaço e da cenografia, a partir das novas relações entre o narrador do texto e os manipuladores dos bonecos. Tal confrontação trouxe à tona todas as diferenças, às vezes imperceptíveis, entre teatro tradicional e teatro artístico. O espetáculo foi bem recebido pelo público e pela crítica, mas José Geal não repetiu a experiência nem com Nicolescu, nem com outro encenador. Podemos com isso entender que ao ter consciência de um limite possível para a arte que ele praticava, preferiu retornar à prática tradicional.
146 Entrevista de Henryk Jurkowski com Margareta Nicolescu em 17 de novembro de 1993 em Charleville‐Mézières.
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Estes tipos de teatro foram dirigidos cada vez mais freqüentemente por gestores ou por artistas cultuados. Jacques Ancion, diretor do teatro Al Botroule, em Liège, comprou a marionete de seu Tchantchès, uma personagem popular incontornável para todos marionetista valão, em um antiquário onde estavam à venda objetos importantes de um famoso marionetista, Pierre Wislet. Em 1989, ele publica uma breve evocação de seus vinte e cinco anos de atividade, na qual dá provas de seu senso criativo e de sua erudição: O que é uma marionete? Darei uma definição à lá belga: como bem sabemos, a marionete é uma matéria personalizável. O miraculoso na marionete é que nela tudo é de madeira. Exceto a língua. E que ela pode, com a cumplicidade do espectador, animar‐se sobre o recital. Pouco a pouco, de objeto ela se torna uma presença – dizia Claudel. Ela não é um ator que fala, é uma palavra que age. Contigo, ela têm lugar, soberbamente. 147
No boletim regularmente publicado há quinze anos, Ancion comenta e oferece extratos de textos literários em contato com seus espetáculos. Eles constituem uma excelente e prazerosa fonte de documentação de repertório. Eles são também a crônica de um percurso artístico.
Na Itália, Bruno Leone, um dos maiores criadores de Pulcinella em espetáculos de rua, contribuiu muito para a renovação desta personagem no teatro italiano contemporâneo. Consciente de sua missão, suas reflexões teóricas, comentários sobre seu papel e sua estrutura dramática servem muito bem ao conhecimento desta arte pelos mecenas culturais. Os numerosos diálogos e ações do espetáculo de marionetes constituem o desdobramento e a oposição de um mesmo elemento: de um lado, Pulcinella, que reúne todos em um, e do outro seu alterego, sob a forma de uma mulher, de um cachorro, de um policial, da morte. Quando falamos dos sentidos ocultos e da origem da marionete, não podemos esquecer que paralelamente à antiga tradição que aborda temas universais da alma humana e popular, existe também o caráter da personagem, nascido da aproximação que cada marionetista separadamente mantém com seu público e sua experiência de vida. Em todo caso, temos dois espíritos e duas origens aparentemente muito distantes uma da outra, mas tão estreitamente ligadas, que separá‐las seria absurdo; o marionetista tem um papel de mágico, que consiste em formar um todo fundado em um distante saber e na experiência presente.148
Mimmo Cutichio, de Palermo, fez o mesmo. Proveniente de uma família conhecida como pupari siciliani, ele renovou e perpetuou a tradição das marionetes sicilianas, de modo que conservou o repertório e as convenções do jogo. Os irmãos Pasqualino, de Roma, procedem diferentemente. Giuseppe Pasqualino dirige o Teatro dei Pupi Siciliani dei Filii Pasqualino, para o qual Fortunato Pasqualino, conhecido escritor italiano, elabora novos textos. Os irmãos Pasqualino conservam as marionetes e as formas de jogo tradicionais, mas tentam aumentar seu repertório. Os resultados de seus esforços nem sempre são convincentes, mesmo que tentem corresponder às expectativas do público romano. Podemos compreender que eles desejem substituir o
147 Jacques Ancion, Éloge de la Tringle, Liège, 1989, p.5.
148 Bruno Leone. La Guarattella. Burattini e burattini a Napoli (La Guarattella. Les Guignols et les guignolistes à Naples). Clueb, Bologne, 1987.
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personagem cômico siciliano por um Pulcinella mais popular e mais ativo no sentido dramático em Pulcinello parmi les Sarrasins, e adaptar à cena siciliana o tema de Dom Quixote em Triomphe, Passion et Mort du Chevalier de la Manche. Mas daí a introduzir a personagem do Pinóquio à corte de Carlos Magno (Pinocchio alla Corte di Charlemagno)! É evidente que o teatro popular, como o feito por eles, não se preocupa muito com os anacronismos que, aos olhos do público, seriam uma figura de estilo. Utilizar voluntariamente e com criatividade o anacronismo demanda um difícil equilíbrio entre os temas. Por isso, não parece que as colagens de Fortunato Pasqualino tenham enriquecido de alguma maneira os temas escolhidos.
Podemos nos perguntar se atualmente existe algum tipo de espetáculo tradicional que permanecera tão intacto como as representações da Natividade. Na Europa do Leste, todos espetáculos eram realizados por companhias autenticamente populares. Todos adolescentes de uma vila ou de um burgo conservavam em casa, de um ano ao outro, os bonecos e um pequeno teatro (um vertep, um betljka, une szopka149). À época das festas de Natal, eles iam de casa em casa apresentar seu espetáculo cantando os cânticos. Tal tipo de espetáculo foi proibido na União Soviética, por ser considerado como uma propaganda religiosa. Na Polônia as proibições foram mais breves, e a szopka volta a figurar nos programas dos teatros nos anos 60, mas poucos marionetistas profissionais se apoderaram do tema. Russos, Ucranianos e Bielo‐russos aguardaram os anos 90 para resgatar vertep e betlejka. A tradição dos cantores e dos comediantes camponeses renascerá? Nada é menos certo!
A situação era diferente no Oeste, onde quase todos os teatros tradicionais (Liége, Bruxelas, Roubaix, Cadix) montavam a cada ano a história do Nascimento do Menino Jesus. Também em Besançon (com a participação de Barbizier, célebre personagem local), o Teatro dês Manches, em Balai, sob a direção de Jean‐René Bouvret, adaptou o tema. Mas os marionetistas que representavam a Natividade buscaram sua inspiração fora do Evangelho. Eles foram procura‐la nos apócrifos, na tentativa de renovar a tradição popular e misturar numerosos anacronismos. Assim, o Menino Jesus da Natividade de Besançon, nasceu em uma garagem, aonde chegaram os Reis Magos e o Ministro da Cultura. Pela mesma razão, em um vertep encenado em Kiev em 1993, apareceu um mercador ucraniano que introduziu fraudulosamente os merchandises na Polônia.
Certos artistas acreditam na possibilidade de conservar uma arte popular autêntica e o reivindicam, como Alexandre Passos d’Evora, em Portugal, que fez uma reprise dos espetáculos da trupe Bonecos de Santo Aleixo. A cenografia e os bonecos desta trupe representam uma tradição que remonta ao século XVI (com as varas suspensas verticalmente na abertura da cena para esconder as varas dos bonecos), mas o tema das histórias é deste século. O último a utilizar tais marionetes foi o camponês Antonio Talhinhas, que, nos anos 70, representava o Auto da Criação do Mundo e Auto do
149 Henriyk Jurkowski. A History of European Puppetry. From its origins to the end of the 19th century (L’histoire de la marionnette en Europe. De son origine jusqu’`a la fin du XIXe siècle). Edwin Mellen Press, Lewiston NY, 1996, p. 291‐300.
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Nascimento do Menino Jesus. Em 1979, o Conselho Regional de Évora adquiriu o seu teatro e seus bonecos, os quais confiou ao Centro Cultural da cidade. É dessa maneira que Alexandre Passos recria os espetáculos de Talhinhas e os mostra com sucesso nos anos 80, geralmente nas vilas, sobretudo, em época de festivais. Se Passos seguia as precisas indicações de Talhinhas, ele não pôde garantir a seus artistas de madeira nem seus animadores agricultores sazonais, nem seu público camponês. Os autos não seriam mais que citações de uma época que não voltará. Uma peça de museu que de tempos em tempos pode ser admirada pelo público.
Encontramos, assim, duas aproximações da tradição popular. A primeira procura conservar as formas do teatro popular ou plebeu na tentativa de reconstituir as formas desaparecidas e conquistar um público de conhecedores, público o qual, em outro tempo, exerceu um papel considerável para manter este teatro vivo. Numerosos marionetistas preferem esta primeira solução, visto que alguns conservam os teatros populares em sua forma antiga e consagram seus esforços a organização de festivais e conferências. A segunda aproximação consiste em adaptar e modernizar a tradição ou nela inspirar‐se artisticamente.
NA PERSPECTIVA DO MITO
A história da cultura é uma lenta assimilação da experiência continuamente renovada da humanidade, desde suas origens. Os antropólogos gostam de dizer que os primeiros impulsos datam da era do mito. Felizmente, tal época ainda não terminou! O homem ainda é capaz do pensamento mítico; ele pode criar novos mitos, coletivos ou individuais, e confronta‐los à realidade. O conhecimento do mundo também não tem limites. A mitologia nos ajuda a construir uma imagem coerente, interrogá‐la e compreendê‐la. Claude Lévi‐Strauss sublinha que nada lembra tanto o pensamento mítico quanto as ideologias políticas. Ele se refere à história da Revolução Francesa, época em que, segundo Michelet, “tudo era possível ... o tempo desaparecera ...pois fora partido por um raio de eternidade”150, já que o pensamento mítico favorece uma certa liberdade de não se dizer a verdade total (o mito do eldorado americano ou do comunismo).
O pensamento mítico é uma imagem que se forma sem que busquemos inevitavelmente verificar sua autenticidade. Quando um outro cria uma imagem do mundo, ele procede a uma operação cosmológica (afirma Umberto Eco). O público visualiza a imagem, mas ela depende de seus conhecimentos culturais, e assim o público assume a responsabilidade. Por analogia, o Teatro pode muito bem se tornar um vasto campo de criação de mitos, e por isso não surpreende que isso o interesse. Da mesma forma a psicologia revelou novos aspectos do mito; a expressão do subconsciente do indivíduo e do inconsciente coletivo se refere à memória psíquica do homem, que vive em um mundo de pulsões e de situações primordiais. O mito assim perpetuado se manifesta através da arte sob a forma de arquétipos ou de topos.
150 Claude Levi‐Strauss. Anhtropologie structurale. Plon, Paris, 1958, p.231.
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A marionete e o teatro de marionetes alimentam seus próprios mitos e suas próprias mitologias? O tema é vasto, assim me limitarei a explicar como os diferentes aspectos do mito encontram expressão no teatro de marionetes, enquanto o repertório, por sua vez, se alimenta de mitos. Empregamos o mito original, aquele que explica a ordem do mundo: o nascimento dos deuses, dos homens, o destino da humanidade, a genealogia das instituições e as regras morais humanas expressas através de ritos e rituais, conservados até hoje pela narração e, de uma forma deformada, a fábula. O ritual mítico está na origem do fundo e da forma da arte dramática. Com sua prática, o teatro se apóia nos arquétipos que revelam imagens subconscientes, constituem a matéria da expressão artística sob a forma de contos modernos como Fausto, Dom Quixote, Don Juan. Ele é alimentado por todos que participam do pensamento mágico e vivem os mitos contemporâneos.
Na Europa Central, por exemplo, os teatros cultivam a tradição dos temas da Renascença, com Fausto e Don Juan, enquanto os folcloristas alemães e tchecos do século XIX enumeraram um número impressionante de encenações no teatro de marionetes. Este tema continua a suscitar bastante interesse, ainda que os meios de expressão mudem.
Fausto
O Fausto tcheco encenado por Matej Kopecky, no Teatro Drak, conheceu sua glória. Carl Schröder, marionetista de Dresden, consagra sua vida à Fausto, e suas numerosas realizações se afastam pouco a pouco do apólogo popular para aproximar‐se da concepção de Marlowe, quer dizer, de Fausto a procura de sua verdade sobre a realidade. Schroeder representa sempre o sujeito, desesperado por nunca encontrar seu ideal de apreender o “Espírito Renascença” autêntico da obra. 151 O Doktor Faust realizado por Helena Sitar em Ljubljana, em 1990, inspira‐se em uma encenação dos anos 20 do célebre marionetista esloveno, Milan Klemencic, e reconstitui perfeitamente seu estilo.
Fausto, um dos arquétipos mais importantes da cultura européia, faz parte de um grande repertório. Já lembrei de L’Etat du Destin de Faust (Stan Losow Fausta, 1966), de Andrzej Dziedziul, que apresenta uma visão misógina do mundo. Quase vinte anos depois, em 1984, o artista e marionetista Neville Tranter, criador do Stuffed Puppet Theatre, apresenta Fausto em um outro jogo em Os Sete Pecados Capitais (Seven Deadly Sins). Tranter, no início, parece interessar‐se pelas fraquezas da natureza humana. Ele se vestiu como Mefistófeles, seus bonecos representam os sete pecados capitais. Cada boneco (pecado) revela suas paixões em um monólogo: o Orgulho, a Luxúria, a Inveja e cada um tenta negociar seus desejos, tanto com Mefisto quanto com o público. (A Inveja: Deixem‐me vossos bens, de qualquer maneira amanhã vocês não estarão mais aqui...). Mas os pecados aludem à presença de Fausto na sala. Eles lhe falam. Eles o chamam. Finalmente Fausto cai nas mãos de Mefisto e lhe arranca a máscara sob a qual
151 Inge Borde. Das Puppenspiel vom Doktor Faust (La pièce de Docteur Faust à la marionette). Mitteilugegn, Dresde, 1977, n. 1‐2, p.33.
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descobrimos o rosto de Tranter, que grita desesperado. Tranter não propõe um comentário original sobre Fausto, mas confirma o caráter metafórico de todas as representações existentes.
Em 1989, o Théâtre du Fleuve cede à tentação de Fausto. Para nosso assombro, podemos reconhecer uma filiação ao pensamento misógino de Andrzej Dziedziul. Depois de uma perspectiva histórica do sujeito, o espectador se depara com um busto decomposto e cortado de Marguerite, para descobrir uma verdadeira máquina infernal. Aqui, tal visão surrealista, barroca e a destruição de corpos humanos não servem a outra coisa que a busca das razões do pecado.152
No mesmo ano, Fausto foi representado com a colaboração de Jadwiga Mydlarska‐Kowal na cenografia. Ele inclui o tema em uma obra dramática que representa a condição humana sob três ângulos diferentes. Esta encenação de Goethe coroa sua interpretação moralizante de O Processo, de Kafka, e um comentário irônico sobre a metafísica do exercício de poder de Gyubal Vlleÿat, de Stanilaw Witkiewicz. Depois da exposição do destino humano, Hejno mostra as instâncias que animam o indivíduo e que ele reconhece no Prologue au Ciel, de Goethe, em que, como sabemos, Deus e Mefistófeles apostam sobre o destino de Fausto.
O espetáculo é encenado em muitos planos, dentre os quais um castelo e um teatro miniatura arrumado como um interior todo com cortinas negras estendidas. O Prólogo ao céu é encenado em um teatro de marionetes. Deus e os Arcanjos são representados com pequenos bonecos brancos, que se parecem com miniaturas de gesso. Nesta companhia, Mefistófeles é um joguete, negro, encapuzado, turbulento. O teatro de bonecos se expande. Mefistófeles escorrega pelo biombo com uma forma humana. Vestido com uma roupa de couro negro que se adapta à suas formas. Apenas sua cabeça e mãos a ultrapassam. Sobre seus ombros, uma capa preta e asas de morcego de gaze. Mefistófeles, dissimulado de serpente, íncubo e sucubo às vezes. Ele é interpretado por uma mulher e não deixa Fausto em nenhum passo. É entre eles que as coisas acontecem e são eles que provocam todos os acontecimentos. Fausto é interpretado por um ator, dissimulado com uma toga de sábio que anima a cabeça e os braços de um boneco. Hejno interpreta seu Fausto nestes dois teatros que se enquadram na convenção e são teatro dentro do teatro. Neste contexto, tudo é demonstração, experiência e verificação – é um jogo, não é um jogo sério. É também o tema de Fausto. 153
Este é um ponto em que estou em desacordo, ainda que este julgamento se inscreva na lógica da descrição do espetáculo. ʺTudo é jogoʺ, como nos assopra nosso espírito pós‐moderno, mas isso não significa dizer que o jogo não é um jogo sério. Bem jogar é um ato muito sério, mesmo que ele não resulte necessariamente em uma ilusão cênica. Dez dezenas constituem um remarcável modelo das dependências existenciais do homem e dos esforços que ele faz para satisfazê‐las. Ele será jogado por tanto tempo quanto o homem se interrogue sobre seu destino.
152 Simona Souckova. Le Poème scénique. Sur le Faust du Théâtre du Fleuve. Marionnettes UNIMA‐France, n.23‐24, p.50.
153153 Henryk Izydor Rogacki. Trzy teatry Fausta (Les trois théâtres de Faust). Teatr Lalek, 1990, n.1, p. 10‐11.
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Don Juan
O tema literário de Don Juan ultrapassa o de Fausto quanto ao número de peças escritas. Mas o tema parece ter perdido boa parte de sua força em função de suas inumeráveis variações. Em uma delas aparece um Don Juan velho que perdeu seu charme juvenil. A revolução dos costumes também reduziu a importância do problema colocado por este sedutor. No entanto, os teatros continuam montando Don Juan por diversas razões: para renovar algum costume religioso local (na Espanha), para recuperar o estilo do teatro popular (na República Tcheca e na Polônia), para retomar o tema das melhores versões literárias.
Nas interpretações populares de Don Juan, o elemento aventureiro figura primeiro no século XVIII, montado por uma companhia de marionetistas amadores. A encenação do texto de Molière por Dominique Houdart (1984) não renovou esta tradição, ele se interessa pela arte barroca na qual o mito de Don Juan se inscreve naturalmente. Segundo Houdart, Don Juan não existe. Ele nada mais é do que uma máscara, sucessivamente sedutora e atéia, audaciosa e desonesta. Além disso, ele não tem rosto, apenas uma luz, um reflexo, uma armadilha, uma ilusão barroca. Por isso ele não pensou em fazer uma encenação moderna do tema, mas teatralizar o mito tal como o entendiam Molière e Mozart, e, bem entendido, Houdart ele mesmo: o comediante está presente, ele é o homem contemporâneo que faz reviver o mito de Don Juan, que o coloca em cena. Ele é o mestre de cerimônia; o ator lúcido do papel que interpreta, a serviço do mito que se jogam aos outros, a sociedade, a moral, a religião, Deus. 154
Mitos e folclores
É difícil invocar a tradição quando o mito e suas funções universais são também afirmados. Os mitos ontológicos existentes remontam ao estado de formas primárias e imutáveis. Os arquétipos literários estão à disposição dos artistas que se deparem com seu conteúdo, para explicá‐lo ou racionalizá‐lo. Depois de múltiplos ensaios, eles utilizam a força do mito para extrair uma explicação secundária (Fausto misógino) ou expiatória (Don Juan não existe). Através do percurso do repertório destes dois arquétipos que são Fausto e Don Juan, a marionete clássica se afirma como responsável pelas versões populares de seu mito e os marionetistas progressivamente incorporaram diversos elementos da modernidade em seus espetáculos. No Teatro, numerosos artistas fizeram o mesmo retorno às fontes, como Henri Cohen, Emil Burian, Leon Schiller, Giorgio Strehler, ... No teatro de marionetes, lembramos a atividade de Julia Slonimska, de São Petersburgo, e a dos encenadores tchecos e poloneses. Na República Tcheca, os bonecos de varas tradicionais seriam utilizados para montar o repertório do renascimento nacional no espírito da tradição. As peças patriotas atribuídas a Prokop Konopasek (Oldrich et Bozena) e as de Jan Lastovka (um ciclo de peças sobre o chefe hussita Jan Zizka) seriam particularmente apreciadas pelos teatros e público tchecos, apresentadas com os grandes eventos glorificados pela lembrança da grande época. Os
154 Dominique Houdart. Dom juan. Compagnie Dominique Houdart. Marionnettes UNIMA‐France, n.3, p.14.
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marionetistas tchecos não tiveram a chance de que este tipo de emoção pudesse ser evocada pelos espetáculos de marionetes?
Na Polônia, a ligação com a tradição da marionete se exprime pela memória coletiva da szopka, cujas interpretações religiosas são inumeráveis. Seu lambe‐lambe (um teatro em miniatura desmontável) freqüentemente serviu de modelo, notadamente para as cenografias de Adam Kilian e de Ali Bunsch. Nos beneficiamos com grandes encenadores do teatro como Leon Schiller e Kazimierz Dejmek, e do teatro de marionetes polonês, como Stanislaw Ochmanski, cujo grande sucesso foi Tryptique Vieille‐Pologne (Tryptik staropolski, cenografia: Zenobiusz Strzelecki, 1972). O texto retoma temas muito populares do teatro barroco da Europa central: Judyta e Holofernes (Judyta i Holofernes), O Filho Pródigo (Syn Marnotrawny) e A Decapitação de Dorotéia a Mártir (Sciecie Panny Doroty). O contraste da linguagem histórica com as marionetes estilizadas teve um efeito revelador, o mesmo que a transcrição de composições barrocas de Stefan Sutkowski. Mas o grande valor do espetáculo é manter sua mensagem universal e atual, que não se perde em uma reconstrução estilística. Poderia ela servir de modelo para tratar o repertório antigo?
A ópera barroca
É neste espírito que, nos anos 80, a Ópera Barroca para marionetes suscita uma certa efervescência? Particularmente, as óperas francesas e italianas, para as quais alguns artistas fizeram um trabalho de pesquisa e reconstrução histórica, chegando a reconstruir um teatro de marionetes barroco. Assim, Vasa Marionette Opera, de Malmö, monta Girello, de Filippo Accaioli, sobre a música de Jacopo Melani. Les Menus Plaisires du Roy, da Bélgica, L’Ombre du Cocher Poète, Pierrot Romulus ou Le Ravisseur Poli, de Le Sage e de Orneval. Na origem destas iniciativas, respectivamente o compositor Gabriel Bania e o músico e musicólogo Jean‐Luc Impe. O primeiro espetáculo respeita as convenções da ópera italiana do fim do século XVII, o segundo figura entre as primeiras experiências da ópera cômica na França, por volta de 1720. Bania e Impe, com muita intuição, observam atentamente o acento sobre a interpretação musical (com instrumentos antigos) e distinguem o programa de música vocal e instrumental, que se desenvolvia na frente da cena ou no limite das coxias, da ação cênica das marionetes. Tudo leva a crer que é, com efeito, assim que as marionetes se apresentavam em cena como ilustração animada da música. Observamos este mesmo interesse pelo barroco em Portugal, onde tentaram fazer renascer a obra de Antonio Jose da Silva, excelente autor de óperas do início do século XVIII. Da Silva compôs a maior parte destas óperas para marionetes e popularizou as tradições italiana e francesa em Portugal. As companhias de marionetes portuguesas montam freqüentemente tais obras. A Vida de Ésopo (La Vie de Ésope, 1991), encenada pelo Teatro de Marionetes de Porto, parece ser o espetáculo que mais se aproxima dos espetáculos antigos, mesmo que os animadores à vista e seu jogo interativo com o público reflitam as tendências modernas do teatro. Da Silva explorou muitos temas populares, como Dom Quixote, Medéia e Anfitrion, que traduziam bem o espírito do teatro barroco.
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A experiência diacrônica da cultura é um fato evidente. Tão evidente quanto a utilização feita do patrimônio dos séculos precedentes. Tal regra, uma das mais importantes da evolução da cultura, concerne todos os domínios da arte. Neste plano, a experiência dos artistas marionetistas nada tem de extraordinária que pudesse distinguir a particularidade do teatro de marionetes. Salvo uma coisa: certas formas de arte tradicional ainda são persistentes enquanto que outras desaparecem sob nossos olhos. Elas se distanciam pouco a pouco e a lembrança de seu esplendor tem ainda um caráter mítico. Qualquer que seja a forma estilística do teatro tradicional, com um espírito de continuidade ou de reconstituição, ela permite ao teatro de marionetes permanecer fiel aos arquétipos e aos mitos literários, que nada perderam de sua força. Qual é então o lugar da mitologia dentro do repertório do teatro de marionetes e de que maneira ele reage aos mitos contemporâneos?
Mitos de origem
O teatro de marionetes, neste último quarto de século, mostrou‐se extremamente sensível aos temas míticos. Os mitos não saíram de cartaz: Gilgamesh, A Ilíada e A Odisséia, o Kalevala, a Canção dos Nibelungos, Râmâyana, Mahabhârata, os mitos esquimós, africanos, indianos, os mitos do povo da Sibéria, etc.
Os criadores são animados por diversas intenções, mais freqüentemente atraídos pela aventura que propõe o mito, do que pelo mito ele mesmo. Ele permite expressar uma opinião sobre os problemas contemporâneos (como A Ilíada na encenação do Teatro Il Carretto), mas é raro que o mito seja um quadro da história do homem, da Gênese ao Apocalipse, como em Gilgamesh, do Teatro Gioco Vita. Tal epopéia é um mito cujas origens se perdem na noite dos tempos e mantém ainda hoje um valor universal. Podemos opô‐lo aos mitos locais que cumprem as mesmas funções e que, para alguns, preservam um elemento importante da identidade nacional. O mito local ou universal não é apenas uma fábula ou uma aventura, mas uma obra cosmogônica. O teatro e a marionete apreendem a partir deste momento a verdadeira função e a verdadeira significação: uma visão do homem, de seu destino, suas aspirações, sua moral, uma reflexão sobre a ordem cósmica ou sobre a identidade nacional, como foi o caso de Kalevala, na Finlândia na época romântica, e mais recentemente nos países bálticos (sob o poder soviético), particularmente na Lituânia.
As lendas lituanas, balançadas por temas míticos, são o centro de interesse de Vitalis Mazuras, do Teatro de Marionetes Lele, em Vilnius. Le Petit Canard de Cendres (1971) é uma lenda e uma fantasia infantil. Le Garçonnet Enchanté (1974), ainda que apresentada em versão para crianças, oferece uma perfeita possibilidade de penetrar nos mistérios da cultura lituana. O primeiro espetáculo tem uma dimensão simbólica. Sugite, uma pequena órfã abandonada, termina por desaparecer nas chamas. De suas cinzas nasce um patinho cinza. Desde o começo da peça, Sugite leva uma vida sagrada. Ela é representada como um ídolo, vivendo em uma cabana de madeira. O irmão de Sugite é um cavaleiro imóvel, um centauro sem força e sem vontade. Abaixo deste mundo prisioneiro do destino, surge o espaço de forças impuras. Elas dominam a natureza e determinam a sorte do homem. Mas ele pode renascer simbolicamente de suas cinzas, como o pequeno pato pardo Sugite.
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Lê Garçonnet Enchanté é um sujeito lírico, a projeção do psiquismo de uma criança que tenta organizar o mundo a sua volta. Este mundo aparece sucessivamente à criança sob a forma de uma Criatura de camisa vermelha, de Mulheres adornadas de cinza, ou de Irmãos lavradores. O menino confia em seus amigos. Seus amigos lhe constroem uma pequena casa, uma capela sobre um apoio que se torna o modelo do mundo e um ponto de apoio; um sincretismo popular que associa temas pagães a sua sublimação cristã.
Estes dois espetáculos são uma adaptação de temas e de lendas populares, mas sua significação é determinada pela problemática do mito e suas relações com o mundo contemporâneo. O aspecto original do mito desapareceu porque Mazuras desejava fazê‐lo exercer outro papel. Ele não revelou apenas a origem da comunidade lituana, mas também uma mensagem otimista para passar a seus contemporâneos. Na época, a Lituânia ainda não tinha recuperado sua independência.
O eterno retorno
O mito se realiza através do ritual que constitui uma experiência religiosa comum e coletiva. É do ritual que nasceu o teatro e o retorno atual à cerimônia ou ao rito não representa uma reviravolta na concepção de teatro. Artaud exigiu o primeiro retorno ao rito e foi amplamente regular, ao menos na intenção. Os artistas contemporâneos que se apóiam no mito como fonte formal ou como forma de apresentar um comportamento coletivo, mudam a direção de seus verdadeiros valores e a transpõem para a vida atual, privada de sacralidade. Os teóricos do mito e os historiadores da religião155 não estariam de acordo, eles que consideram o mito como expressão das tendências religiosas do homem, como revelador dos lugares com as forças do cosmos, como portador do ʺsagradoʺ em oposição ao ʺprofanoʺ de uma civilização racionalista e laica. A utilização do mito no teatro é expressão de uma experiência com o sagrado, é a aspiração a uma perspectiva cosmológica ou é uma pesquisa de temas atraentes? Quanto ao rito, os teatros utilizam esta forma em nome de uma experiência e de uma prática comuns ao sagrado ou vêem uma estrutura original que permite um jogo interativo com o público?
O rito contemporâneo pode ter uma função cultural. O boneco o testemunha através da experiência da trupe Den Bla Hest (O Galo Azul), dirigida por Alexandre Jochwed, em Aarhus, que intenta representar as funções culturais da marionete através dos usos e costumes no curso da história: Memórias de Boneco (Mémoires de Marionnette, 1990). O grupo de artistas que participou dos diferentes ritos representa a memória cultural da marionete. Assim, o público a vê nascer como um ídolo de madeira e acompanhar o homem em seus papéis de cândido ou de bom pastor, em suas tentativas de relacionar‐se com a divindade, que recebe por sua vez tantas homenagens quanto ridicularizações, tanta veneração quanto desprezo. Ao manipular seus bonecos, os homens transformam a si mesmos em autômatos que se lançam, como Pinóquio, a
155 Mircea Eliade. Le Sacré, le mythe, l’histoire. Recueil d’essais. Panstwowy Instytut Wydawniczy, Varsovie, 1970.
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procura de sua própria humanidade, ou, ao contrário, buscam seu golem tal como os alquimistas.
O espetáculo prova que o boneco está presente em toda a cultura humana, ele explica nossos sonhos e aspirações. Seu conceito está associado ao mito e aureolado pelo rito. É assim que encontramos o tema da crucificação no episódio do Carnaval dês Fous. A dança dos bufões mascarados é interrompida pela intervenção de um castelete de bonecos de varas acima do paravento, entre eles, um Jesus crucificado que carrega um boné com sinos de bufão. Que o sagrado seja transformado em chacota neste ambiente de carnaval choca e emociona, tanto mais quanto o gozador é tocado pela força do símbolo que ironizava: suas mãos não dão mais conta de carregar o fardo sagrado e a Cruz pouco a pouco afunda e desaparece.
Este espetáculo, onde o rito é mais uma forma de expressão que uma experiência comum, não faz renascer a comunhão dos valores espirituais. Ela não se aproxima do sagrado. Pelo contrário, ao julgarmos pelo fim da peça, ela denuncia principalmente nossa incapacidade de entendê‐lo. A incapacidade, mas também a insuficiência e a solidão. Tal solidão de que o homem tem consciência é que está na origem de sua força e de sua dignidade. O tom profano é assim profundo e pleno de expressão. Isto é muito perceptível no domínio do boneco. Björn Fühler, artista sensível aos valores espirituais da cultura, percebeu uma interessante coincidência entre a laicização da arte e o abandono da muito antiga noção do bonceo: Tal evolução do profano em todos os domínios da arte conduziu, pouco a pouco, à das expressões puramente subjetivas. Que forças veiculamos então para a mediação de nossos bonecos, formas animadas e objetos? Já constatamos uma certa reticência no emprego da palavra ʺbonecoʺ. Fala‐se em teatro de figuras ou de objetos. Pode ser que assim se deseje afastar‐se mais ou menos conscientemente de um aspecto religioso e tradicional do teatro de bonecos, substituído pelo preconceito de que se trata de uma arte infantil.
Por outro lado, as formas utilizadas são freqüentemente despersonalizadas, os rostos perdem sua intensidade de personagem em suas fisionomias. Os objetos animados ou de formas mais abstratas sugerem a pista de uma presença e substituem a efígie humana ou animal. Eles não são contudo eternos, pois se tornam novamente signos no sentido forte do termo. Podemos reconhecer tal processo em outros domínios da arte: as formas de expressão são ʺliberadasʺ dos restos de seu aspecto tradicional e pudemos assistir a uma explosão de todos tipos de experimentações. Foram rompidos os pontos da tradição religiosa ou mágica com seu saber fazer específico, cada um retira forças de sua relação individual com as forças que o envolvem ou que o habitam, mais ou menos levado pela evolução rápida de nossa civilização.156
Esta opinião pode parecer errônea ao observarmos a atração suscitada pelo mito e o rito no teatro de bonecos e no teatro. Mas não teríamos razão ao julgá‐la assim. O mito entra no teatro como tema atraente, como elemento de colagem dramática, como forma de espetáculo ao qual freqüentemente falta uma dimensão sagrada. Mesmo laica, a utilização do mito, do mistério, do rito, é um meio de agir sobre o inconsciente do
156 Björn Fühler. La Marionnette, objet de transmssion du sacré. Marionnettes. UNIMA – France, n. 17‐18, p.50.
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público e detém, assim, importante valor estético. Hejno toma emprestada esta via e representa a experiência humana como um mistério equivalente às mensagens místicas. La Tragicomédie de Calixte et de Melibée (La Célestine), de Fernando Rojas (cenografia: Eugeniusz Stankiewicz, 1983), abre‐se sobre uma procissão religiosa, um cortejo de artistas. A fachada religiosa do século XV dissimula os desejos da carne, a qual clama por seus direitos e oferece assim uma chance aos intermediários, o que provoca uma catástrofe, já que trata de verdades amorosas. Da mesma forma, em O processo, de Franz Kafka (cenografia: Jadwiga Mydlarska‐Kowal, 1985), Hejno e Mydlarska utilizam bonecos hiper‐realistas manipulados à vista pelos atores, evocando a técnica do ningyo joruri. As representações têm um caráter simbólico e fazem implicitamente referência ao Último Julgamento, de Leonardo da Vinci, e a uma capela ardente, signo de memento mori (lembrança para a morte). A simbólica se transpõe em momentos aos bonecos, particularmente nas cenas eróticas, em que o corpo da mulher se abre completamente, aureolado de vermelho. Os meios utilizados na obra sublinham as emoções dos heróis e revelam suas reações íntimas ou então seu exame de consciência. Hejno renuncia às interrogações existenciais de Kafka. A pressão do mundo exterior e a culpa por existir cedem ao desejo do homem de acertar suas contas consigo mesmo. O desenvolvimento transformou‐se em um apólogo moderno que possui uma dimensão psicológica.
Fühler remarcaria esta importante evolução. Assim, ao nos distanciarmos do mito, ao nos voltarmos para a perspectiva cosmológica, nos voltamos para nós mesmo, para nossas experiências pessoais, subjetivas. O mito do sagrado é substituído pelos mitos individuais. No mais, a psicologia contemporânea tem um efeito secundário de produzir alienação. Ao nos revelar nossa vida psíquica inconsciente, ela não revela em nós o sentimento de uma comunhão do destino humano, mas fornece instrumentos para definirmos nossas emoções pessoais. Tal fenômeno não diz respeito somente ao teatro de bonecos, mas ao conjunto da arte contemporânea. A psicologia exerce um importante papel nas imagens evocadas, nos processos que são a experiência, a criação e a verdade. Graças aos artistas fomos beneficiados por essa tomada de consciência. 157 Eles têm o sentimento de desbravar forças desconhecidas e obscuras de nossos instintos, mas rejeitam a terminologia extrema da psicanálise, que associa a origem dos desequilíbrios a problemas da libido.
Desde o teatro de bonecos aos meios de expressão variados, o mito de Narciso exprime perfeitamente o fato de que o boneco, dominado por seu manipulador, aspira a exprimir seu talento e sua vida interior. O narcisismo é uma característica da arte contemporânea e compreendemos que ele determina facilmente o sarcasmo dos filósofos. O aforismo de Cioran, o qual é necessário apreendermos com precaução, é rápido sobre o sujeito: como os meios de expressão são utilizados, a arte se volta na direção do sem sentido, de um mundo privado e intransmissível. A chama daquilo que é inatingível, seja na pintura, na música ou na poesia, se apresenta neste momento arcaico e vulgar. O que é público
157 Ver apontamentos da entrevista de Henryk Jorkowski com Paska em 1/07/93. Manuscrito.
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desaparecerá e, em breve, a arte conhecerá o mesmo destino. Uma civilização que começou com suas catedrais, terminará sob o mesmo hermetismo da esquizofrenia.158
Teatro dos estados da alma
Com distanciamento e sem exagero, constatamos que os espetáculos com temas psicológicos fazem uma entrada distinta no teatro de bonecos, onde o boneco estava restrito a não exprimir mais que comportamentos exteriores. Nos Estados Unidos, o primeiro artista a exprimir suas obsessões com os bonecos foi sem dúvida Robert Anton. Entre 1960 e 1987, no seu estúdio da East‐Village, em Nova Iorque, ele encena diante de um público restrito, composto em sua maioria por convidados. Anton manipula a vista os bonecos de cerca de 25cm, de luva e de varas. O espetáculo apresentado em uma de suas turnês pela Europa o tornou célebre. Os dezoito espectadores, escreveu Guy Dumur sobre uma das apresentações no castelo de Vincennes, em Paris, sentam‐se sobre a bancada, todos contra uma espécie de balcão atrás do qual aparece apenas metade do corpo de Robert Anton, vestido com um veludo negro, o rosto grave e tenso. A mão recoberta com um lençol preto, ele tem na ponta de seu dedo indicador minúsculas cabeças de 3 cm de altura, muito realistas e freqüentemente articuladas: as bocas abrem‐se para sorrir, os olhos podem ser arrancados, as mãos, não maiores que uma unha, complementam as representações antropomórficas que são um dos aspectos da arte de Robert Anton. 159
Anton é como um deus do outro lado de suas criaturas, que dele escapam e a ele voltam em seus momentos de desespero. Seu espetáculo é como um rito, um mistério e uma cerimônia. Anton parece em transe, sua atenção é concentrada nos bonecos como se os personagens o conduzissem a lugares desconhecidos e inesperados. Ele às vezes é o criador de sua peça e um tipo de espectador privilegiado. Ele preside suas ações mas não as controla plenamente 160 e faz uma demonstração de possíveis diferentes metamorfoses. Uma ʺdama de lixoʺ põe um ovo que se transforma na cabeça de um homem sem rosto, o ovo abre, dele sai um ʺpássaro fêmeaʺ que abandona sua máscara de bico e descobre seu rosto de ʺcantoraʺ altiva. Quando Anton a compara com a cabeça do pássaro abandonado, ela foge, aterrorizada161. Anton impõe a seus personagens um ritmo de metamorfose infernal. Ele as confronta com seu ser inibido ou abandonado, provocando comportamentos excessivos e surpreendentes. Ele cria um universo de criaturas fantásticas no qual não podemos nos impedir de ver os símbolos de nossos próprios traumas.
Nos Estados Unidos, Roman Paska o sucede. Ele faz suas primeiras aparições em festivais europeus nos anos 80, em que apresenta Linha de Vôo, uma peça sobre a iniciação e a identificação. Ela constitui a primeira parte de uma trilogia (as duas outras
158 E.M.Cioran. Aforyzmy (Aforismos). Czytelnik. Varsovia, 1993. Trad. De Joanna Ugniewska.
159 Guy Dumur. La divine comédie de Lilliput. Le Nouvel Observateur, 11 de outubro de 1976.
160 David Rieff. Anton’s Agon. Life, 6/7, 1982, p.38‐39. Citado por Stephen Kaplin, Signs of life: an analyses of Contemporary Puppet Theatre in New York City. 1989, p.58.
161 Stephen Kaplin. Signs of life: an analyses of Contemporary Puppet Theatre in New York City. 1989, p.58.
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foram Ucchelli: As Drogas do Amor e O Fim do Mundo, que terminam com o triunfo da dor de viver, primeira piada com final feliz). Paska é perfeitamente consciente ao exprimir os problemas de sua geração. Se esses espetáculos podem evocar ritos simbólicos, são ritos intelectuais. Ele se questiona indefinidamente sobre a arte do teatro de bonecos e sobre a sua arte em particular. Ele não vê sua criação como um psicodrama pessoal. Eu gostaria que minhas peças tivessem um valor universal, no bom sentido tradicional do termo. É verdade que me interesso pelos problemas psicológicos. Todas minhas peças tratam da consciência de si porque eu busco voluntariamente introduzir o drama psicológico no teatro de bonecoes. Com efeito, tenho chamado vários de meus espetáculos de ʺpequenos dramas mentaisʺ, o que pode soar bonito ou elegante demais. Pelo que eu saiba, a psicologia tem uma enorme influência sobre a arte do século XX, para não se dizer que sobre a toda a arte. O prazer intelectual tanto quanto os estudos sobre a vida psíquica têm fascinado nossa civilização em muitos aspectos, e é isso que faz com que o americano médio hoje em dia chegue em casa e se plante todas as noites diante da televisão para assistir a dramas psicológicos de uma banalidade aflitiva. Um filme policial em que o policial tente entender os motivos do crime porque este ato é a expressão dos problemas psicológicos do criminoso...
Penso que é por isso que eu faço, existem boas razões, socialmente aceitáveis. Creio, como os budistas, que transformar a vida não é possível se não através do pesar do desenvolvimento da vida psíquica. Creio que é resolvendo tais problemas pessoais que podemos resolver os problemas sociais162.
Paska desenvolve sua arte a partir de modelos indonésios quanto à maneira de atuar e interpretar o texto. Ele a apresenta como uma espécie de ʺdalangʺ americano moderno. Ele empresta sua voz aos personagens que anima sozinho com um cabo fixado na cabeça do boneco e varas para os braços. Uma vez dado o tema do espetáculo, ele deve abandonar, como Richard Teschner antes dele, os bonecos ʺjavanesesʺ demais por marionetes cuja expressão, acessórios e símbolos pertençam à civilização européia e americana.
Terceiro concorrente da América, descoberto por ocasião de sua turnê pela Europa, o marionetista Eric Bass. Sob o charme e, pode ser, sob a pressão de suas origens judaicas e de sua herança familiar, é neste contexto que elabora a metáfora sobre a relação do homem com seu passado e sua herança. Bass tem uma visão de mundo sublimada pela nostalgia. Seu universo é o do paraíso perdido.
Ele inicia sua carreira em 1970, com a criação de três espetáculos: Retratos do Outono, Areia e Convites para o Céu. Todos evocam as lembranças da infância, inspirados no folclore judaico e na distante felicidade do passado. Areia (1985) distingue‐se dentre estas três obras porque tudo reside no mundo das lembranças, ele evoca o problema do tempo que passa e assume uma dimensão mais universal.
Em cena (de um teatro em miniatura) uma mulher e depois um homem (atores) sonham. A cenografia é em tons amarelos e marrons, que aos poucos se tornam verdes e amarelos. O amarelo é a cor da areia, ela está por tudo, ela flui na ampulheta, derrama e se espalha sobre a
162 Entrevista de Henryk Jurkowski com Roman Paska, 1 de julho de 1993 (manuscrito).
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cena, e finalmente dela saem todos os personagens. A areia é o tempo. Os que dormem sonham com seus ancestrais, ao menos as duas últimas gerações. Aparecem ao lado deles criaturas e objetos simbólicos: serpentes, uma galinha (como em Bruno Schulz), uma mulher‐ampulheta, um pequeno cordeiro, um menorah (candelabro de sete braços), que mudam de dimensões. É uma história mais longa, a encenação de uma canção israelita que conta a história de uma andorinha e de um bezerro conduzido ao abatedouro em uma charrete e que vê o carrasco encapuzado se aproximar. O bezerro grita de desespero. A areia flui da charrete. Percebemos o crânio de um animal na areia. É o tempo perdido – o paraíso perdido. Acima do homem que dorme aparece um pássaro da noite, talvez o pássaro do tempo. Ele ataca o homem. Mas a mulher chega para sua segurança. O homem lhe estende uma ampulheta. Ela a transforma em dois vidros. Eles bebem (areia) pela eternidade. Existem outras personagens. A areia flui de boca em boca. É a comunhão das gerações. Uma ampulheta turbilha pelos ares.
Bass representa o tema de suas experiências e de suas emoções em A Vila das Crianças, de 1993. Este espetáculo se desenvolve em dois espaços cênicos e apresenta duas histórias aparentemente sem ligação. Elas são ligadas pela personagem principal, um homem moderno preso pelo desejo de voar pelos ares, e uma história extraordinária que se passa em sua própria casa, onde Bass (o homem) apanha um pássaro que se transforma o quanto antes em um filhote. Sua presença provoca a vinda de outros pássaros que enchem a casa e terminam por ser objeto de uma exterminação. Na última cena, vemos ʺnossoʺ homem semi‐nu diante da janela, gradeada, os pássaros não podendo mais entrar. Enquanto o homem tem em suas mãos um pássaro, signo da reconciliação que podemos compreender também como um convite ao respeito à energia espiritual.
Esta polissemia torna o espetáculo hermético, e Bass responde que a peça é inspirada no holocausto, pelas almas inquietas de pessoas assassinadas: se lançarmos sobre ela um enfoque político, veremos a história da exterminação. Mesmo que ela tivesse sido inspirada pelas imagens provindas de uma cultura específica, tais imagens funcionam também, como já mostrei, no nível de outras culturas. Para fora do nível político, existe também um nível psicológico: qual é a mentalidade do exterminador? Qual é o papel da memória cultural (da memória em cada cultura)? E, em seguida, um nível espiritual: podemos obter uma Redenção espiritual? E há também o nível da obra ela mesma: o artista e sua própria metáfora (seu eu pessoal): como o artista pode atingir o sucesso com sua obra (com seu ʺvôoʺ, se ele fecha o guichê de sua consciência?)163.
Objetivar uma obra pessoal não serve para projetar os pensamentos e as emoções de seu autor. Bass, ao explicar‐se, atira contra a natureza do mito mesmo, de seu mito individual que tem uma característica tanto sagrada quanto inexplicável. A passagem de imagens simbólicas às exegeses verbais não pode ser mais que uma infração da lei mítica. Esta não é mais do domínio do crítico que do artista?
Robert Anton, Roman Paska e Eric Bass introduzem novos valores. Eles arriscam falar sobre as inquietações, os medos e até mesmo das obsessões que os atormentam,
163 Eric Bass. Odpowiedz na artykul Henryka Jurkowskiego: Cytac… przedstawienie (Resposta ao artigo de Henryk Jurkowski: <Ler...um espetáculo>). Teatr Lalek, 1994, n.2, p.21.
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coisa que até então estava reservada a outros domínios da arte. Não quero com isso dizer que os marionetistas europeus ignoravam tais questões, mas eles o faziam geralmente com mais objetividade, como se contassem uma história na terceira pessoa, e a história fosse de heróis. Os americanos, estes, falam em primeira pessoa, rompem com a convenção que quer que o teatro de bonecos seja um teatro de ação, em benefício de um teatro de bonecos íntimo.
Alguns marionetistas, na Europa, se interessam por temas psicológicos. Tal tendência foi representada na França por Jean‐Pierre Lescot e François Lazaro, embora ambos falem em nome do homem em geral e estudem o contexto existencial no qual vivem. Lescot se interessa pelas leis da composição: a arte repousa sobre o enquadramento, sobre a escolha da matéria e sua inscrição no espaço. O teatro pode assim ser um lugar de exposição. Lescot é um poeta da palavra e tira sua inspiração da psicologia e da mitologia contemporâneas. Os dois pólos que são o amor e a morte o interessam por suas dimensões escatológicas e encontrar sua expressão no domínio do espírito e dos sentimentos. Depois de diversos espetáculos poéticos para crianças e de numerosas experiências formais na área do teatro de bonecos e de sombras, ele aborda o universo do mito e da psicologia com O Jardim Petrificado (1985), espetáculo realizado em colaboração com Christian Chabaud (Companhia Daru), uma adaptação moderna de A Divina Comedia, de Dante. Os dois criadores declaram em tal ocasião: Emprestamos as pegadas perdidas do Poeta para caminhar pela obscuridade de sua imaginação inquieta, e junta‐las às nossas, e percorrer suas florestas, seus precipícios, seus atalhos, seus montes, seus lagos, seus espaços estelares; enfim. Dante, ser humano só, assombrado pelo caminho da vida, ʺpó aos olhos de Deusʺ, é impetuoso no grande drama da Natureza em movimento e não consegue mais tecer o fio de sua existência, de sua arte. Ele duvida, ele tem medo, ele desaba... para renascer.164
Mas a peça não evoca apenas incidentes psicologizantes de Dante. É uma soma de experiências de outros espíritos sensíveis, tais como Goya, Sully, Prudhomme, Apollinaire, Kafka, ou Éluard. A Divina Comédia se transforma em uma colagem de confissões de poetas de todas as épocas, como uma viagem iniciática. A poesia é um meio de exorcizar o medo de viver, é, portanto, um meio para se reconciliar com a vida, se é que isso seja possível!
Esta experiência com Chabaud é uma introdução a propósitos mais pessoais, como A Sentinela dos Espelhos (1990), espetáculo no qual Lescot descobre o segredo da vida que existe entre ʺsombra e luzʺ. A peça nos oferece uma chance, com a intervenção de todos tipos de bonecos, de investigar nosso psiquismo, de recriar imagens que multiplicam nossas sensações e emoções. É uma viagem retrospectiva através de um mundo de figuras teatrais (Punch, Arlequim, as máscaras venezianas, etc.), viagem através da cultura e do teatro que são ameaçados, como o mundo dos homens, pelo medo: Tentei mostrar a relação de meus personagens com o medo da morte, aquele que está contido na imagem do espelho. Figuras como Punch e Arlequim, que ironizam este medo, 164 Christian Chabaud, Jean‐Pierre Lescot. Teatro. O Jardim Petrificado. CAC, Les Gémeaux, dezembro 1985, p.6.
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exorcizam a morte, são cada vez mais privados de sua força, de sua facilidade para ir além da morte. Com tudo o que se passa na cena do teatro, eles terminam por serem eles mesmos vencidos pela ʺgrande dorʺ: é grave para os bonecos! Quando as máscaras do exorcismo da dor chegam a um resultado aterrorizante, eles perdem a confiança em seu significado, seu papel... Deixando de estar a altura expressiva da vestimenta que usam. Os personagens perdem a força de sua ironia sobre a vida, o amor, a morte. Eles são tão atormentados pela dor que terminam por tornarem‐se terrivelmente humanos165.
A Sentinela dos Espelhos é uma viagem entre arquétipos que assumiram a forma de signos visuais da cultura teatral; eles nos falam das emoções ressentidas pelas gerações precedentes, provocam assim nossas emoções, exprimindo a eterna problemática do homem descrita por Freud: a dor existencial, o conflito entre o instinto de vida e a ameaça da morte demandando serem sublimados, atenuados como se produz no ato de criação de uma obra de arte.
Depois de ter colaborado durante muitos anos com a Companhia Daru, François Lazaro empreende um trabalho artístico independente com Les Portes du Regard (1985), Lê Horla (1987) et Solitude (Samotnosc, 1988), seguindo Bruno Schulz. O primeiro espetáculo tem por tema a ʺpassagemʺ, a ʺtravessiaʺ, e se apóia sobre uma colagem de textos de Rimbaud, Bachelard e Laing, um psicanalista norte‐americano. A estrutura é emprestada do rito de passagem de culturas primitivas. Eu devorei então o livro de um etnólogo sobre os ritos de passagem, declara Lazaro. Eu me dei conta de que o espetáculo era construído como os ritos de passagem. Aquele começa com as premissas que são uma exposição.. Vem em seguida o momento cruel em que o raspamos, tiramos sua roupa, sua humanidade: você é reduzido ao estado de um grito, de uma violência. Então vem a iniciação: vos mostramos os objetos rituais e os mistérios da vida. No final desta caminhada, vos explicaremos166.
Retomamos o tema da iniciação e o da finalidade da existência e dos atos humanos. Os bonecos grosseiros, como que inacabados, sugerem este estado de devir do homem. Le Horla, seguindo Maupassant, e Solitude, seguindo Bruno Schulz, evocam o problema dos limites da loucura na relação do homem com o mundo. Ainda que a trama destas duas obras seja bastante diferente, Lazaro desenvolve de uma mesma maneira as relações do manipulador e do manipulado (animação à vista) através de uma brilhante metáfora (particularmente em Solitude). Acrescentamos que o tema e o jogo dos intérpretes (particularmente em Le Horla) contribuem para dar uma dimensão psicológica à peça.
Realizada na Polônia, no Teatro Banialuka, em Bielsko Biala, Solitude (cenografia: Gerzi Zitman) é uma colagem de temas extraídos de Sanatorium au Croque‐Mort167, de
165 Alain Potvin, Jean‐Pierre Lescot. La Temoin magnifique. Village Val‐de‐Marne, n.564, 2/5/90.
166 La vie est une longue loyage. Entretien avec François Lazaro. Marionnettes, n.10, 1986, p.11.
167 Bruno Schulz. Le Sanatorium au croque‐mort. Editions Denöel, Paris, 1974. tradiction de Thèrése Douchy, Allan Kosko, Georges Sidre, Suzanne Arlet.
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Boutiques de Cannelle168e de outras novelas. Em cena, um ator, o Herói, tenta reconhecer suas lembranças. Ele está atrás de uma grande mesa, metáfora de ʺa mesa da vidaʺ, de ʺa mesa da infânciaʺ, coberta de objetos e esboços de bonecos que estimulam sua imaginação e o permitem retornar ao passado, onde ele reencontra sei pai e sua mãe, com seus hábitos e paixões. Os objetos são dirigidos por criações de um outro mundo, artistas, enfermeiros ou internos do sanatório, ou pelas forças delirantes que tentam dominar o Herói. Elas terminam por atingir seus objetivos. Com a ajuda de bandagens, elas o transformam primeiro em um boneco, depois em múmia, é assim que ele terminará seus dias. O surrealismo das lembranças assume uma realidade de pesadelo.
Este espetáculo reflete uma tomada de consciência e as aspirações artísticas dos marionetistas dos anos 80. Na realidade, não é o encenador marionetista que conta suas lembranças diante do público, mas o Herói da peça que o faz em nome do autor do espetáculo. Nós penetramos na intimidade do criador que, com a ajuda da narração, nos introduz nos estados e emoções que são seus e transformadas em jogo a partir de sua experiência vivida. A distribuição dos papéis entre os atores, marionetistas e acessórios é carregada de metáforas. O Herói, Jozef, conserva seu próprio rosto, os internos do sanatório têm pseudo‐máscaras em forma de cabeças enfaixadas. A faixa de Jozef marca a metamorfose que nele se opera e é, sobretudo, o signo de seu destino. Muitos personagens evocados nascem dos braços dos internos – enfermeiros , é o signo de sua própria existência. A mãe do Herói, em forma de um polvo, é um comportamento satírico claro. O pai do Herói, um boneco, é uma personagem mais humana, possui uma cabeça expressiva, mas ele também está submisso às leis de comparações surrealistas e, em certo momento, se reencontra mesmo em uma sopeira, situação nada habitual e muito deprimente.
Espetáculos com temas psicológicos são de fato pouco numerosos no teatro de bonecos. A experiência de Naviler Tranter nos fornece os novos elementos da compreensão de seu mundo interior. Tais espetáculos sublinham, sobretudo, os aspectos de dependência entre heróis, visualmente representados pelo estado de dependência no qual se encontra o boneco em relação ao manipulador. Os pecados de Sete Pecados Capitais não são apenas a projeção da personalidade de Mefistófeles, mas também das criaturas que ele aprisionou. Em O Manipulador, o Clown Nero (um ator) utiliza seus bonecos com cinismo e os tortura de maneira quase masoquista. Este tipo de dependência pode muito bem ser percebida como o mecanismo do mundo, ao invés de servir para definir o estado psicológico do manipulado, como em Lazaro. Tranter utiliza a tensão psicológica do aspecto de dependência recíproca para assegurar um efeito dramático. Em Quarto 5 (Chambre 5), ele abandona este sistema simplista em benefício de uma ação cênica com a característica de um thriller psicológico. Ele interpreta ele mesmo o papel de um enfermeiro que vai dissecar um doente suspeito, com ou sem razão, de ter cometido um crime. Nos perguntamos, ao final de espetáculo, se o
168 Idem. Boutiques de cannelle. Editions Denöel, Paris, 1974. tradiction de Thèrése Douchy, Georges Sidre, Georges Lisowski.
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enfermeiro não é psicopata, porque os limites da loucura são impossíveis de se definir. O quadro psicanalítico do espetáculo parece mais um meio artístico de forçar a atenção do que uma pesquisa sobre os estados da alma.
Malgrado a atmosfera neurastênica de seus espetáculos, Tranter parece fascinado pela teatralidade que lhe permite, por um lado, exprimir suas próprias emoções, e, por outro, exercer uma ascendência sobre o público com a ajuda da ficção e da força de sugestão. Esta dependência recíproca entre o animador e os bonecos (no jogo à vista) o intriga, e dela ele abusa: quem anima quem? Quem depende de quem: este tema está no coração de todos os espetáculos de Tranter. Ele analisa o problema friamente, sem emoção. Depois da encenação de Macbeth (1990), ele anuncia uma mudança de orientação: Com Macbeth, quer dizer, ensaiando montar a tragédia de Macbeth, eu atentei para um ponto crítico da relação entre o boneco e o bonequeiro. Eu interpreto a personagem Macbeth como ator e manipulo todos os outros personagens. É uma adaptação do original, as cenas são concisas, elas fazem a ação e a intriga progredirem num ritmo que parece crível. O fato é que consagro a maior parte de minha energia para manipular os bonecos e organizar o cenário. Significa que eu devo igualmente fazer passar a verdadeira tragédia de Macbeth ao mesmo tempo como personagem e como ator manipulador que tira o boneco de seu destino. Macbeth é, deste ponto de vista, o espetáculo mais difícil e mais complicado de todos com que já trabalhei. Isto me obriga a ir ao limite extremo de meus esforços e sei que quando Macbeth morrer eu deverei dar uma nova direção ao meu trabalho com bonecos169.
Podemos enfim nos questionar se a teoria do teatro de Maeterlinck, o pai da dramaturgia dos estados da alma, exerceu um papel no interesse que os marionetistas contemporâneos atribuem à psicologia. Os artistas que evoquei são certamente numerosos para conhecer seu repertório para bonecos, mas nenhum dentre eles se inspirou nele para encenar os problemas existenciais do homem. As peças de Maeterlinck que foram encenadas, como La Mort de Tintagiles ou Ariane et Barbe‐Bleue, relatariam fatos mais do que elas sublinhariam a importância psicológica. La Mort de Tintagiles, que Kantor monta com bonecos, confirma que ele estava mais preocupado com as imagens plásticas e simbólicas do que com o aprofundamento dos problemas psicológicos do jovem herói. Deve‐se ao fato de que a dimensão psicológica das peças de Maeterlinck e seu aspecto inovador não aparecem claramente mais do que no contexto do drama realista? Atualmente, depois de um século de prática, os meios de expressão dos dramas psicológicos parecem pouco eficazes, a ação domina no momento em que os artistas contemporâneos estão interessados pela ʺpsicologia puraʺ. Neste domínio, o teatro de bonecos contemporâneo é mais beneficiado por Freud e pela antropologia que por Maeterlinck?
E a energia criadora dos mitos do teatro de bonecos moderno, ela esta presente ou desapareceu? Fossem rurais ou urbanos, os teatros de bonecos populares possuiriam esta energia: perpetuariam a existência do bufão mítico sob a forma de personagens cômicos e construiriam o mito da superioridade do bom senso prático sobre a iniciativa 169 Neville Tranter. Manipulator (Manipulateur). Malic, Revista de Marionetes, n.2, Barcelona, 1991‐1992, p.54.
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de pessoas poderosas e instruídas. Eles perpetuam ainda hoje o mito do triunfo do bem sobre o mal em dezenas de espetáculos para crianças. Só Peter Schumann dá uma perspectiva cosmológica a esta simples verdade. De uma maneira bem geral, o retorno dos bonequeiros ao mito ou ao rito exprime uma ligação aos valores universais, particularmente ao retorno ao paraíso perdido. Ele corresponde às aspirações gerais da cultura contemporânea e não é um privilégio do teatro de bonecos!
O teatro de bonecos e a marionete solista, desde seu nascimento, servem para criar um modelo de mundo (e de mitos). Eles indicam através de metáfora que os seres vivos dependem de forças superiores, principalmente dos deuses e do destino. Como metáfora das dependências fundamentais existentes entre o homem e as forças divinas, o modelo alimenta numerosas histórias, mesmo que não exista uma só e mesma fábula, uma só e mesma história característica do mito. Ele se movimenta lá da primeira generalização filosófica sobre a situação existencial do homem. As obras de Paska, de Lescot e de Tranter exprimem bem como este modelo pode mudar de funções, como ele oscila entre o sagrado e o profano, como, de metáfora, ele transforma uma imagem abstrata do sistema teatral. E nada censura as interpretações metafóricas, simbólicas e nem mesmo psicológicas.
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O nosso século é o da metamorfose do teatro de marionetes. Neste balet incessante entre convenções, os jovens artistas trazem idéias inovadoras e colocam em jogo novos conceitos. O objeto e a matéria se impõem e abrem novos caminhos à arte da marionete. Não se deveria falar antes da arte de um ator ʺimpessoalʺ ou ʺnão‐pessoalʺ que da arte da marionete? E desta perspectiva, como a metamorfose do teatro de marionetes acompanha a desta arte? Como este teatro se inscreve no pensamento teórico de nossa época dita ʺpós‐modernaʺ?
Desde o meio do século, a marionete assimila as grandes correntes artísticas e as grandes tendências da arte dramática. Simultaneamente, uma nítida diferenciação se produz no seio do teatro de marionetes. A multiplicação das correntes contemporâneas não tem como causa a variedade daquelas dos séculos passados. Esta coexistência é característica de uma sincronia e de uma diacronia cultural. Ela constitui, aliás, uma vantagem, pois os teatros contemporâneos escolhem estilos tão diferentes e caminhos artísticos tão variados que sem teatros tradicionais ou clássicos, poderemos nos perguntar se eles habitam os limites do gênero da marionete. O teatro de marionetes adota sem reservas idéias modernas das quais as mais importantes são a artificialidade da arte e o papel preponderante do sujeito criador. O teatro de marionetes se distancia do drama aristotélico, preferindo outros gêneros literários, em particular a forma do teatro épico. Ele faz o mesmo com a ficção da arte dramática, que ele substitui por uma apresentação dos processos de criação, conduzindo ao jogo da realidade e da ilusão. Ele considera a marionete de outro modo, como um ator material, e a situa entre as coisas e os objetos. Ele inscreve o animador de marionetes na escritura do espetáculo e experimenta o personagem dramático, resultando na atomização de sua imagem e na sua decomposição.
Diversas reflexões filosóficas sobre a evolução da arte no século vinte sugerem que nossa época traz novas relações entre sujeito criador e objeto criado, do qual a expressão altera um elemento característico da obra de arte. A crise do sujeito carrega em sua trajetória a do humanismo. Esta reflexão entra na sua fase final com esta declaração provocante sobre esgotamento de nossa cultura: Os filósofos otimistas vêm as coisas deste modo igualmente, mais eles pensam que nossa época pede a destruição de todas as ilusões que nos alimentavam até aqui para descobrir o que faz o fundamento da existência humana. A possível destruição da natureza evidentemente obrigará o homem a se declarar em favor da humanidade.
A crise do humanismo é o resultado das desilusões do modernismo? É bem provável pois, nesta época, o sujeito reina, e não a subjetividade. O autor se desprende de sua obra, tornada impessoal, apesar do fluxo de sua consciência e de seu monólogo interior. O estruturalismo dividiu o autor‐sujeito em códigos sistemáticos, e o pós‐estruturalismo fez progredir o processo descentralizando a estrutura. Finalmente, o pós‐modernismo arrasta a subjetividade que vai invadir todas as criações.
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O funcionamento da noção de sujeito é mais complexa que em outros domínios da arte, pois mais que o sujeito real, o criador, existe sempre um sujeito fictício. A subjetividade da marionete e a existência do teatro de marionetes, não são mais que simulacros. Poderemos mesmo dizer, se não estamos nos limites da arte, que atribuir à marionete um papel de sujeito é pura mistificação. Os dramatis personae que aparecem nos textos dramáticos não tem vida própria, não são mais que uma construção verbal, o que não nos impede de lhes atribuir um papel de sujeito. Partindo do mesmo princípio, nós atribuímos um papel de sujeito à marionete: uma construção plástica extrema que se tem do homem, como no caso das dramatis personae.
A pesquisa sobre a especificidade do teatro de marionetes foi inspirada pela fenomenologia, mais seus primeiros passos foram distorcidos por um grave erro. Buschmeyer e outros pesquisadores se concentraram nas particularidades da marionete e negligenciaram a estrutura dicotômica do teatro de marionetes que contém dois sujeitos: o marionetista e sua marionete. Segundo Braque, ele teria esquecido as coisas e estudado suas relações.
Os modernistas tinham proposto substituir o ator pela marionete, mais sem reconhecer por outro lado sua subjetividade, mesmo se esta foi conferida pelo homem. Só a observação da marionete mantinha sua atenção. Ela parecia, com efeito, garantir que a marionete não seria uma rival do sujeito real, quer dizer do criador da obra de arte. Wassily Kandinsky, desde 1911, assinalara esta evidência: uma obra de arte nasce do ʺsujeito do autorʺ, ʺdo artistaʺ. Craig se declarava artista de teatro e exigia sobre o palco materiais responsáveis. Poderíamos nos mostrar mais explicitamente em favor da expressão arbitrária de um sujeito criador único? Mesmo nos anos 20, Craig fez alguns compromissos sobre o status do comediante, ele não reforça mais o papel dominante do diretor por numerosos anos. O sujeito modernista não vê a presença de outros sujeitos que não ele mesmo: A realidade da obra implica em si seu reflexo, sua consciência de si. O ʺartificialʺ da razão, não deve admitir estrutura ʺegológicaʺ, reclusa e toda fechada em si, ela não deve admitir violência, mesmo se o sujeito autônomo imagina o ambiente. Ele pode ser o olho da câmera, artificial na sua seletividade mas, no entanto, aberto ao mundo que ele permite apresentar em um dia ainda mais claro.
Estas particularidades eram sentidas como medida que as promoviam ao modernismo. Podemos em particular ver um signo, no ensaio de José Ortega e Gasset, A Desumanização da Arte, que data de 1925. A arte clássica enfatiza os elementos humanos de toda sorte de ficção. A arte moderna tem um caráter elitista, ela é reservada aos iniciados, sublinha a consciência que ela tem de si mesma, ela se opõe à arte. Ortega e Gasset, ensina o paradoxo, referido a esse sujeito, não sem um certo exagero: Às vezes, como foi o caso de Schopennhauer e Wagner, a arte se dava por objetivo, nada mais, nada menos, que salvar a humanidade. Agora, a arte nouveau, que pode parecer tão curiosa, procura sua inspiração na zombaria e na pilheria. Toda a arte nouveau foi afinada sobre o mesmo tom. O humor pode ser mais ou menos refinado, percorrer toda uma gama de nuances ultrapassando a farsa banal num piscar de olhos irônico, mais ele é sempre presente na arte nouveau. Não que o sujeito da obra seja cômico, isto seria, com efeito, uma volta a um estilo ʺhumanoʺ, mais na arte,
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aquele que seria o sujeito, zomba de si mesmo. A busca da ficção pela ficção não pode se fazer com um piscar de olhos malicioso.
As observações e conclusões de Ortega e Gasset mostram que o modernismo contém o germe da época que o sucedeu, a saber, o pós‐modernismo. Cinqüenta anos depois, Umberto Eco afirma no prefácio de seu romance O Nome da Rosa que o pós‐modernismo é um traço universal de cada época do qual ele constitui a metalínguagem irônica. Ele aparecia no momento ou na época abandonar sua inocência descobrindo‐se a si mesmo. Ele perde naquele momento sua inocência e não pode ir mais longe que recorrendo à citação e ao disfarce. Ortega e Gasset tinham, parece, outra coisa em mente, de acordo com ele, era a primeira vez que a arte perdera sua inocência, se opondo assim a Eco. Mais ele avaliava como Eco que a arte podia evoluir além de uma farsa auto irônica e burlesca. Nós poderíamos premiá‐lo com o título de primeiro pós‐moderno.
As inovações dos modernistas concernentes a estrutura dramática e a aproximação analítica de elementos tradicionais do drama, também levam em consideração a ontologia dos personagens, como bem demonstrou Pirandello no seu Seis Personagens a Procura de um Autor. Os marionetistas já tinham praticado jogos similares ao dotar suas marionetes de uma pretensa consciência de seu papel, mais essa prática não foi objeto de uma reflexão mais aprofundada e o manifesto de Pirandello seria importante para os marionetistas.
Em conexão, as operações analíticas relacionam o personagem dramático e toda a construção do teatro de marionetes, como objetivo secundário diante da guerra, da crise do drama e da invasão de outros gêneros literários, em particular o gênero épico. Nós temos observado que no teatro de marionetes, o eu épico característico de todos os tipos de narrativas, encontra seu equivalente no eu que joga, a energia visível personificada que anima a marionete e fala por ela. O eu épico utiliza mais frequentemente o pronome ʺeleʺ para designar os heróis da história; o marionetista apresenta ao público a marionete tendo em mente a história, de outra forma dita dos heróis.
Eles também podiam descrever estas operações como as ações de ʺum homem estrutural que monta e desmonta o objeto para estudar as regras de seu funcionamentoʺ. Mas não demorariam a perceber que eles não poderiam prever imediatamente os resultados. A esperança de remontar o objeto era totalmente ilusória. Em alguns outros lugares, um bom número de surpresas esperava os criadores de teatro de marionetes. A primeira era que inumeráveis possibilidades se abririam diante deles a partir do domínio das relações artísticas entre ator e marionete. Eles descobrem então que: o teatro de marionetes possui um leque muito rico de significados que precede de sua textualidadeʺ. De acordo com as últimas reflexões em curso, o espetáculo é um texto que recorre a vários sistemas de signos (ele se distingue assim da literatura) A noção de subjetividade passa assim ao segundo plano. Os elementos que o espetáculo propõe a interpretação do espectador possuem, de fato, o mesmo status do signo teatral. Revelando sua técnica ao público, o marionetista se inscreve na escritura do espetáculo e não pode ser analisado senão enquanto elemento deste texto. De fato, os estruturalistas evocavam abertamente a morte do autor, mais faziam aparecer o ator sobre o palco, ao lado da marionete,
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voltavam a mostrar o autor do personagem dramático. A analogia é então flagrante. O marionetista nega assim sua própria subjetividade. Ele se coloca no mesmo plano que todos os outros elementos do espetáculo. E este define as novas funções da obra artística para compreensão da reprodução da realidade. A mimesis pós‐moderna não imita uma verdade pré‐existente, ela imita uma outra imitação e assim numa seqüência até o infinito. A mimesis pós‐moderna zomba da idéia de que poderia haver um original, uma origem primitiva, uma espécie de sinal que teria precedido a imitação.
Os grandes artistas como Léger e Witkewicz, tinham desejo de transformar o ator, de fazer manchas coloridas nas composições deles. Kantor conseguiu‐o em seus espetáculos. Os artistas do teatro de marionetes se encontravam nesta situação, se conformando a tradição, a interdependência do sujeito e do objeto, tão fortemente enraizada na mais velha metáfora existencial onde o papel de sujeito criador era atribuído a Deus.
A nova teoria textual do espetáculo teatral não foi mais que uma proposta limitada. Ela não afetava nenhum especialista que fez evoluir sua visão do teatro. Eles aceitavam consequentemente que o público não tivesse somente um contato com um mundo formal mais também com o texto, submisso as suas emoções e a sua interpretação. Os pós‐estruturalistas, entre eles Jacques Derrida, propunham uma outra idéia; o texto liberado da opressão do significante não é mais que um terreno de jogo. Pode‐se construí‐lo e desconstruí‐lo, desmontá‐lo e remontá‐lo fora de todo contexto social e histórico. E esta renovação, afeta ainda uma vez as funções da obra artística de compreensão da reprodução da realidade. A supressão da hierarquia entre os significantes, que tem teoricamente relegado ao segundo plano a questão do sujeito, é particularmente interessante, mais esta teoria foi só do pós‐estruturalismo. O teatro não pode se liberar da presença do sujeito porque seu desaparecimento significaria o fim da arte dramática.
Na prática, não houve mais que uma mistura de papéis e de definições. Depois dos anos 60, graças às novas concepções artísticas e a nova assimilação de forças, o ator reencontrara sua hegemonia e se tornara um verdadeiro autor criando com a matéria de seu corpo e de seu psiquismo. Às vezes, a ponto de interpretar‐se a si mesmo. Sinko qualifica este tipo de teatro de ʺteatro da auto‐performanceʺ ou ʺteatro sem semiose teatralʺ, onde o ator deixa entender aos espectadores:ʺEu não atuo, eu sou eu mesmoʺ ou ʺnão é o teatro que vocês assistem, mais a vidaʺ. Eles podem legitimamente se interrogar sobre este tipo de espetáculo de teatro de marionetes. Ele se enche de estilização que se origina do teatro e se reduze a uma demonstração do jogo das marionetes: ʺSou eu quem joga, eu, o marionetista, de quem vocês podem ler o nome no cartazʺ. Toda a argumentação remete, todavia, a palavra estilização, porque ela sublinha a criação e não a vida.
Assim sendo, o ator que vemos manipular suas marionetes é mais um performer que um ator. O teatro de marionetes que exibe a destreza de um marionetista é, em primeiro lugar, uma performance. Da mesma maneira que um ator do teatro de auto performance basta‐se a si mesmo, o marionetista se basta a si mesmo quanto ele utiliza sua energia vital para fazer nascer uma ficção no jogo de suas marionetes e seus objetos.
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Sem respeitar todas as condições da auto‐performance, o marionetista se encontra no limite de dois mundos, seu mundo pessoal e o mundo das coisas, que graças a sua energia consegue criar uma realidade fictícia. O marionetista, o ator e o performer, desafiam o mundo das coisas e dos objetos que, jogando os papéis que lhes foram inicialmente atribuídos, tornam‐se significantes. Dar ao objeto a possibilidade de fazer carreira no teatro é uma maneira de sublinhar sua oposição com relação à marionete que, enquanto sujeito, faz concorrência ao sujeito criador. Seu papel de fato é equivalente ao de um objeto utilitário. O homem retirou‐lhe a procuração que lhe deu anteriormente. Restituindo à marionete seu status de objeto, ele lembra a conexão que ela mantinha com a escultura e lhe abre o campo da problemática das artes plásticas. Estas últimas evoluem de forma diferente do teatro de marionetes e procuram dinamizar seus artefatos. Novas oportunidades se oferecem então para a marionete. Pontuado aqui como sujeito, mais ao contrário, a vontade de procurar no teatro um objeto em movimento que pudesse possuir as mesmas significações que o universo dos objetos que a ele remetem. A marionete pode também tornar‐se um objeto de sentido simbólico, mais seu papel de objeto negou sua antiga vocação. Ela se transformou imperceptivelmente em simulacro, ou em manequim.
Será o fim do teatro de marionete enquanto gênero teatral propriamente dito? Esta questão continua sem resposta. O teatro de marionetes clássico continua a existir e parece que suas forças regenerativas não estariam totalmente esgotadas. Ao contrário, o teatro de marionetes como meio de expressão variada, o teatro de objetos, e este teatro que fala de si mesmo (auto‐temático, eu diria) se impõe como formas de um teatro pós‐moderno. Estes teatros engendrados pelo espírito da marionete clássica, se desgastam seriamente hoje em dia. Numerosos são os críticos que pensam que nenhum retorno é possível. Claude Lévi‐Strauss escrevia já nos anos 50 a propósito do esgotamento das forças da cultura humana: Depois que ele começou a respirar e a se alimentar até a invenção dos engenhos atômicos e termonucleares, passando pela descoberta do fogo ‐ exceto quando ele reproduz a si mesmo ‐ o homem não tem feito outra coisa que alegremente dissociar as milhares de estruturas reduzindo‐as a um estado no qual elas não são mais suscetíveis de integração (...) Se bem que a civilização, ligada a seu todo, pode ser descrita como um mecanismo prodigiosamente complexo, ou nós seríamos tentados a ver a oportunidade que tem nosso universo de sobreviver, se sua função não era de fabricar o que os físicos chamam de entropia,isto é, a inércia (...) Em vez da antropologia, ele poderia escrever ʺentropologiaʺ o nome de uma disciplina dedicada a estudar nas suas manifestações os mais altos processos de desintegração.
A noção de entropia é muito popular entre os escritores pós‐modernos: o fim do mundo é próximo. E é por isso que nossas forças e nossa civilização estão em vias de exaustão. Nós conhecemos todas as formas, todas as possibilidades, todos os temas e todos os sujeitos. Tudo já aconteceu. Não há nada a fazer senão refazer o que já existe, cuidadosamente codificado na nossa consciência. Assim é que poderemos conhecer, conscientemente, praticando então com rigor uma arte auto‐temática onde as antigas convenções ainda são abundantemente praticadas.
Felizmente, a realidade, a época atual e o futuro da arte e da cultura contradizem sua proposição. É verdade que o teatro contemporâneo se nutre dos modelos do
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passado (ritos, mitos, arte primitiva), mais é verdade também que isto constitui um traço novo de nossa sociedade. O princípio da colagem, e consequentemente o da citação, é correntemente utilizado. Ele engendra novas significações, por exemplo, a metáfora e a metonímia. O fim da civilização então, ainda não é para amanhã. De fato, bom número de gêneros artísticos e literários esquecidos, reaparecem hoje como citações de uma arte datada de uma outra época, mais é verdade também que outras as substituem. Não esquecemos que a exaustão do teatro de marionetes enquanto gênero, não é uma novidade. No século XX os adultos, que estavam esgotados, lhe reservou ao uso das crianças, eis um primeiro signo. Em seguida, a existência do teatro foi ameaçada pelos novos divertimentos populares, como o cinema e a televisão. E tudo leva a crer que ele foi completamente esquecido sem seus valores culturais e psicológicos que atraem sem cessar novos adeptos. Desta vez, são os artistas que vem em seu resgate fazendo tudo para lhe devolver sua posição social e seu lugar na arte, e com sucesso. No entanto, o inevitável acontece; as marionetes abriram seus teatros a novas idéias de vanguarda. Eles tem então conseguido manter a presença do teatro de marionetes na marcha da arte do espetáculo artístico, mais este teatro não tem mais a ver com aquele que lhes havia seduzido no começo do século. Eis todo o paradoxo!
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