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A “explosão da cidade” e a trajectória do capitalismo Bruno Lamas
Nota prévia: o presente texto constitui a versão escrita de uma apresentação efectuada em Lisboa, a 3 de Outubro de 2013, na sessão “A ‘explosão da cidade’ e a trajectória do capitalismo” do seminário “Pensamento Crítico Contemporâneo e Cidade”, organizado pela Unipop e a revista Imprópria, no âmbito da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2013
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“A produção capitalista procura constantemente superar essas barreiras que lhe são imanentes, mas só as supera por meios que lhe antepõem novamente essas barreiras e em escala mais poderosa. A verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital (...)”.
Karl Marx, Livro III de “O Capital”
Há já alguns anos que se constata o facto histórico certamente assinalável de que o
mundo é hoje um lugar predominantemente urbano, ou seja, que mais de metade da
população mundial vive em cidades. Mas essa constatação recorrente parece vir
sempre acompanhada por dois sentimentos contraditórios: por um lado, uma espécie
de celebração do que parece considerar-se ser em si mesmo uma conquista
civilizacional; mas, por outro lado, uma profunda sensação de assombro, porque na
verdade não sabemos exactamente muito bem como chegámos aqui, porque não se
prevê que a tendência geral refreie e porque os problemas usualmente associados à
urbanização parecem não parar de aumentar.
É extremamente difícil estimar com exactidão para as épocas pré-modernas a quota-
parte urbana da população mundial. O que sabemos é que, após oito mil anos de
urbanização, a quota-parte urbana da população mundial no ano de 1800 era de apenas
2% e que desde aí progrediu rapidamente, chegando aos 30% em 1950, aos 47% em
2000 e, de acordo com as Nações Unidas, ultrapassou os 50% em 2008. O que aqui
desde logo parece relativamente claro é que a força do crescimento urbano moderno
não possui equivalente nas sociedades pré-modernas. Mas também não é difícil
verificar que nas épocas pré-modernas a urbanização de uma cidade era bastante
independente da urbanização (ou do declínio) de outra, enquanto que a sociedade
moderna constituiu um sistema urbano verdadeiramente mundial, onde a urbanização
de certas regiões não é autónoma do que acontece noutros pontos do mundo. Este
sistema urbano mundial é na verdade pouco mais do que a expressão territorial do
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sistema mundial de trabalho abstracto que é o fundamento do capitalismo, algo que
nenhuma estimativa estatística nos poderá revelar por si mesma. Por isso, a
problemática da urbanização moderna também não é apenas a de uma questão
quantitativa ou de mudança de ritmo do crescimento das cidades; é antes a da própria
relação entre cidades e capitalismo.
Claro que o problema pode ser ultrapassado se simplesmente declararmos, como faz
Fernand Braudel, que “no Ocidente, capitalismo e cidades, no fundo, foi a mesma
coisa” (Braudel 1992: 453) ou que se falarmos em “dinheiro, o mesmo é dizer as
cidades” (Braudel 1992: 450). Com isto, não só se afirma uma identidade entre cidade,
capitalismo e dinheiro, como se afirma uma identidade trans-histórica de cada um dos
fenómenos consigo mesmo. A cidade pré-moderna e moderna são a mesma coisa; o
capitalismo nasceu no neolítico e o dinheiro sempre foi capital. Ou seja, está-se no
bom caminho para não se perceber nada nem de cidade, nem de capitalismo, nem de
dinheiro. Pouca coisa é tão conceptualmente desastrosa e ideologicamente
consequente quanto a retroprojecção de categorias e fenómenos especificamente
modernos (como o trabalho, o dinheiro, o capital, o mercado, etc.) em todas as
sociedades do passado ou a sua hipostasiação como dados da “natureza humana”.
Ora, o facto de a cidade não ser um fenómeno especificamente moderno não significa
que possamos assumir para ela uma mesma identidade transhistórica em
desenvolvimento desde o neolítico. Este entendimento ideológico positivista, que se
limita a constatar a continuidade histórico-empírica do artefacto urbano e sua inércia
material, nunca consegue ver nas cidades nada para além de um amontoado de pedras,
tijolos e cimento. Contra este banal positivismo, não é por isso inteiramente inútil a
distinção clássica da cidade como associação humana — civitas — e a cidade como
lugar e artefacto físico — urbs. Impõe-se no entanto uma correcção fundamental à
interpretação moderna tendencialmente politicista do conceito de civitas e que nele
não vê outra coisa senão sucessivas formas políticas de associação humana,
conscientemente escolhidas e sem quaisquer pressupostos. É que desse modo
escamoteia-se o carácter inconsciente das próprias formas de integração e consciência
social até hoje existentes e as correspondentes “matrizes apriorísticas” (Robert Kurz)
autonomizadas de percepção e acção humana; aquilo que Marx tentou captar com o
seu conceito de “fetichismo”. Esse momento fetichista estava aliás flagrantemente
presente no significado original do conceito romano de civitas, que exaltava
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justamente o carácter transcendental e apriorístico de toda a estrutura social romana,
enquanto vínculo social metafísico acima dos cidadãos, e que entre outras coisas se
traduzia em celebrações religiosas específicas no acto sagrado de fundação das
cidades, a maior parte das quais ainda hoje existentes. O que importa talvez assumir da
distinção civitas/urbs é que se trata, no fundo, da diferença entre o processo (social) e
o resultado (material) intrínsecos à urbanização, mas em que o primeiro está longe de
ser verdadeiramente consciente para os próprios agentes e o segundo sobrevive
historicamente às formas de integração social que lhe deram origem.
Mas de que modo é que isto nos pode ajudar a compreender a relação entre as cidades
e o desenvolvimento histórico do capitalismo? Parece-me que devemos fazê-lo através
de um aprofundamento de quatro problemas: em primeiro lugar, realizar uma
diferenciação muito clara entre as cidades pré-capitalistas e capitalistas, tanto nas suas
diferentes formas sociais fetichistas quanto nas respectivas formas urbanas; em
segundo lugar, o processo histórico de constituição do capital, ou seja, o problema da
“transição do feudalismo para o capitalismo” e o papel das cidades nesse processo; em
terceiro lugar, a lógica e o funcionamento interno do capitalismo “que se move sobre
sua própria base” (Marx 2011: 195), ou seja, a territorialização progressiva do
capitalismo como “sociedade do trabalho” e “modo de produção baseado no valor”
(Marx), sobretudo desde a segunda metade do século XIX, que se traduziu na
“explosão urbana” do último século; e em quarto lugar, a expressão territorial da crise
global no sistema urbano mundial. Claro que não posso aprofundar aqui todas estas
questões; mas posso procurar balizar um pouco melhor as problemáticas e alongar-me
um pouco mais naquelas onde a retroprojecção das categorias modernas é mais
comum.
Um dos anacronismos recorrentes é o de procurar explicar a origem das cidades a
partir do “mercado”. Desse modo claramente ideológico, Jericó (8000 a.C.) e Çatal
Huyuk (7500 a.C.), ou pelo menos Ur (3800 a.C.) e Uruk (4000 a.C.), já se
destacavam como importantes mercados ou até mesmo como importantes locais de
“produção simples de mercadorias”. Com mais ou menos ênfase, esta ideia aparece em
autores tão diferentes como Braudel ou Jane Jacobs. Claro que desse modo também já
se fala aí da existência de trabalho, dinheiro, valor e capital. E por isso o marxismo
tradicional também participou nesse ontologização das categorias modernas,
procurando demonstrar empiricamente as teses de Engels sobre o “papel do trabalho
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na transformação do macaco em homem” e de que a “lei do valor” tem “validade
económica geral” pelo menos desde há “cinco ou sete milénios” (Engels 1986: 328).
Por tudo isso, foram sempre desvalorizadas e minoritárias as tentativas modernas de
explicar a génese das primeiras cidades sem recorrer às categorias modernas de
mercado, mercadoria, trabalho, etc., como aquelas de Rykwert (1988) ou Mumford
(1998), que realçavam antes o carácter originalmente religioso das primeiras
ocupações humanas, inclusivamente ao nível da própria forma urbana. No entanto,
mesmo em textos fundadores do entendimento moderno da origem das cidades não
deixam de aparecer pistas para compreensão do carácter fetichista específico das
sociedades pré-modernas e sua matriz religiosa: o arqueólogo marxista Gordon
Childe, por exemplo, no seu ensaio clássico “A Revolução Urbana”, constata que um
dos dez critérios distintivos das primeiras cidades é que “cada produtor primário
pagasse, a partir do pequeno excedente que ele conseguisse retirar do solo com o seu
ainda muito limitado equipamento técnico, uma dízima ou imposto a uma deidade
imaginária ou rei divino que assim concentrava o excedente. Sem esta concentração,
devida à baixa produtividade da economia rural, nenhum capital efectivo teria estado
disponível” (Childe 1950: 11-2). Apesar dos anacronismos evidentes de se falar em
“economia”, “dízima”, “imposto” e “capital” já para o período neolítico, Childe não
deixa de constatar que o destinatário dessa quota do excedente material é uma
entidade transcendente ou um ser humano divinizado, o qual se revela um verdadeiro
problema para o seu entendimento da história como “luta de classes”. Esta
personificação de um princípio transcendente que caracteriza a forma religiosa e que
atravessa toda a estrutura social das sociedades pré-modernas subsistiu, com mais ou
menos intensidade, até à constituição do mundo moderno capitalista. Mas neste, o
princípio social apriorístico não se encontra mais personificado em nenhum ser
humano mas é antes objectivado nas mercadorias e no dinheiro (sobre isto ver Kurz,
no prelo). E a história desta transformação não deixou de ficar também ela
territorializada.
Apesar das inúmeras diferenças entre as cidades pré-modernas, há um elemento
comum que, embora não seja absoluto, as distingue em conjunto profundamente das
cidades modernas: as muralhas. Diversos historiadores chamaram já a atenção para
este aspecto mas parece-me que as respectivas ilações estão longe de estarem
suficientemente exploradas. A esmagadora maioria das cidades pré-modernas era
muralhada; as excepções são raras e estão identificadas e justificadas, tanto pelas
Figura 1. Ur (3800 a.C.)
Figura 2. Uruk (4000 a.C.)
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condições naturais da própria cidade ou da região onde se insere (ex.: Veneza, ou
Inglaterra e Japão), como pela existência de uma teocracia estável ou de um poder
militar de tal modo avassalador que tornavam as muralhas desnecessárias (ex. antigo
Egipto, Esparta). Nesse sentido, para as sociedades pré-modernas era absolutamente
impensável uma cidade não ser muralhada. Não é por isso mero acaso que as palavras
que em inglês, alemão, holandês, russo e chinês designam hoje “cidade” designavam
primitivamente “muralha” ou seus semelhantes (cerca, muro, baluarte, etc.). O
entendimento usual é que as estruturas das muralhas medievais subsistiram até ao
advento do mundo moderno e, a partir do século XIX, foram sendo sucessivamente
demolidas para dar lugar às expansões urbanas modernas. Esta história é entretanto
muito mais complicada e parece-me que nos pode ajudar a compreender um pouco
melhor a chamada “acumulação original do capital”.
A propósito da chamada “transição do feudalismo para o capitalismo”, historicamente
balizada pelos séculos XIV e XVI, duas polémicas são hoje consideradas clássicas
para o entendimento do papel da cidade na constituição capitalista: o “Debate Dobb-
Sweezey” (Dobb et al. 1978), desenvolvido na década de 1950 e que foi
exclusivamente intramarxista; e o chamado “Debate Brenner” (Aston and Philpin
1995), desenrolado na segunda metade da década de 1970 e com um carácter teórico e
disciplinar mais amplo. Ambos os debates, de modo mais ou menos explícito, tinham
a cidade como pano de fundo da discussão, sem no entanto prestarem muita atenção às
profundas transformações urbanas desse período. O que aí estava em causa, e mais
uma vez de forma anacrónica, era a cidade como mercado e nada mais. Entretanto,
uma questão diversas vezes colocada em ambos os debates mas nunca
verdadeiramente aprofundada foi a da crescente necessidade dos senhores de novas
fontes de receita para alimentar as guerras daquele período. E aqui se verá que a
cidade foi muito mais do que pano de fundo.
Ora, antes de mais é preciso ter em mente que aquilo que em termos categoriais está
em causa na transição do feudalismo para o capitalismo é o processo histórico de
“transformação do dinheiro em capital” (Marx). É sabido que o dinheiro existia antes
do capitalismo, mas de modo algum a sua função social pode ser considerada idêntica
à que desempenha no capitalismo. Nas sociedades pré-modernas o dinheiro possui
uma função religiosa ou de intermediação de relações de reciprocidade e obrigação
pessoal (dádivas, contra-dádivas, oferendas, sacrifícios, etc.), também elas
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vincadamente religiosas, que de modo nenhum pode ser equiparada à lógica
autonomizada de “riqueza abstracta” (Marx) e “encarnação de trabalho abstracto”
(Marx) que é específica do capitalismo. Diversos historiadores e antropólogos, como
Karl Polanyi (2001), Jacques Le Goff (2003) e Marcel Mauss (2001), forneceram
pistas no sentido dessa diferenciação, mas sem que estas tenham sido estudadas de
forma sistemática, como Robert Kurz (no prelo) procura fazer na sua obra recente
“Dinheiro sem valor”. Por isso, também de modo algum se pode dizer que as
sociedades pré-modernas possuíam uma “economia”; chamada de atenção que aliás há
muito foi feita por Moses Finley (1980), no que respeita a antiguidade greco-romana,
e por Polanyi de um modo mais abrangente com a sua tese da “desincrustação” da
economia capitalista. A economia, como esfera autonomizada e desvinculada das
relações sociais e caracterizada por um mercado impessoal e anónimo, é algo
específico da sociedade capitalista. E o que aí está em causa é o dinheiro como
pressuposto e finalidade da produção, como “deus das mercadorias” (Marx), valor que
se valoriza a si mesmo, ou seja, capital.
O que investigações mais aprofundadas poderão mostrar como absolutamente decisivo
para a “transformação do dinheiro em capital” são as exigências impostas por aquilo a
que historiografia chama a “revolução militar”, quer dizer, os processos históricos
estruturais associados à invenção das armas de fogo no século XIV e à formação das
máquinas militares e estatais modernas que garantiram a supremacia da Europa do
homem branco nos séculos seguintes (seguimos aqui Kurz, no prelo). Foi, por um
lado, o canhão (inventado no século XV) e a formação e manutenção de exércitos de
mercenários (que são também os primeiros verdadeiros assalariados) e, por outro, as
brutais e correspondentes transformações arquitectónicas nas fortificações das cidades
que, em conjunto, se tornaram um verdadeiro monstro insaciável de recursos que
promoveu a brutal monetarização de toda a reprodução social e a constituição do
capital.
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Figura 3. Ilustração do livro de Leonhard Fronsperger (c.1520-1575) Kriegsbuch (1573).
Do lado da artilharia temos uma primeira corrida ao armamento, pautada pela procura
crescente de metais, o desenvolvimento das indústrias mineira e siderúrgica e o
aparecimento de uma proto-indústria das armas de fogo. Do lado das fortificações
urbanas temos transformações igualmente marcantes: as velhas muralhas medievais
deixaram de cumprir a sua função face ao canhão; foram erguidas novas muralhas
mais baixas mas substancialmente mais largas e aumentado o espaço de manobra
interno para permitir a deslocação dos canhões de defesa da cidade; no final, o espaço
exigido para a nova muralha era quase sempre superior à área da própria cidade
(Mumford 1998: 390; Kostof 1992: 31). Essas novas fortificações, com a conhecida
configuração em estrela (a chamada trace italienne) e cujo exemplo mais conhecido é
porventura a cidade italiana de Palmanova, eram extremamente difíceis de erguer e
ainda mais de alterar. Exigiam uma mobilização de recursos em tudo equivalente à da
proto-indústria do armamento, e em conjunto com ela provocaram por toda a Europa a
monetarização generalizada de todos os impostos e o correspondente “esmiframento”
da população com o fim de alimentar a ascendente máquina estatal militar
desvinculada da reprodução social. Não é à toa que Marx constata: “No tempo do
advento da monarquia absoluta, com a transformação de todos os impostos em
impostos em dinheiro, o dinheiro aparece de facto como o Moloch ao qual é
Figura 4. Ilustração do livro de Sébastien Le Prestre de Vauban (1633-1707) Maniere de Fortifier(1689)
Figura 5. A cidade de Palmanova, em Itália, é porventura o exemplo mais acabado da forma em estrela da trace italienne. A sua construção começou em 1593 e prolongou-se até cerca de 1810.
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sacrificada a riqueza real” (Marx 2011: 145-6). No caso das muralhas, o seu papel até
era duplo: por um lado, serviam de defesa da artilharia pesada; por outro, cumpriam
igualmente um papel enquanto barreira alfandegária sorvedoura de dinheiro. Foi assim
mesmo, de cima para baixo e de forma sangrenta, que o dinheiro tomou conta de toda
a produção e reprodução social e foi através desse processo violentíssimo que as
cidades-capitais e aquilo a que nós modernos chamamos “estado” e “economia”
vieram ao mundo. Com eles veio também “o trabalho livre e a troca desse trabalho
livre por dinheiro a fim de reproduzir e valorizar o dinheiro” (Marx 2011: 388).
Mas como Marx (2011: 432) também afirmou: “É da natureza do capital mover-se
para além de todas as barreiras espaciais”. Nesse sentido, as novas muralhas não
tardaram por isso a revelar-se elas próprias um obstáculo à plena constituição do
capitalismo. Por um lado, a formação do estado moderno havia tornado supérflua a
sua função defensiva; por outro lado, a dissolução dos vínculos pessoais associados à
propriedade fundiária feudal pela transformação do solo em mercadoria tinha
promovido um significado completamente monetarizado de todo aquele amplo espaço
ocupado pelas muralhas em centenas de cidades europeias. O sinal destas mudanças
foi dado em Paris. A tomada da Bastilha, que marca “oficialmente” o princípio da
Revolução Francesa, foi precedida em dois dias por um acontecimento porventura
mais significativo: uma revolta popular generalizada contra a muralha exclusivamente
alfandegária erguida por Luis XVI, (chamada de Ferme Générale) desenhada pelo
arquitecto Claude-Nicholas Ledoux, e que culminou no saque e incêndio de vários dos
seus postos alfandegários.
Figura 6. A cidade de Dunkerque (França) em 1575 (em cima) e cerca de 1700-1710 (em baixo). A partir do final do século XVII, a cidade passou a ter uma das doze principais grandes fortificações que Vauban nessa época projectou para a constituição do sistema de defesa das fronteiras francesas. A escala e rapidez das intervenções que a cidade sofreu fazem dela um caso paradigmatico das profundas transformações associadas à "economia política das armas de fogo" (Robert Kurz) entre os séculos XVI e XVIII.
Figura 7. Planta de Paris de meados do século XIX. A azul a Ferme Générale.
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Até agora limitámo-nos geograficamente ao que se passa fora e no limite das cidades.
Mas o processo de constituição do capital foi promovido paralelamente também pelo
que se dava dentro das cidades. Considerando que o valor é uma forma de “riqueza
abstracta” baseada no “dispêndio de força de trabalho humana sem atender à forma do
seu dispêndio” (Marx), cuja magnitude é medida em tempo, é evidente que a
temporalidade é uma componente fundamental da constituição do capitalismo. A
partir de pistas dadas por historiadores medievalistas, o historiador americano Moishe
Postone abriu caminho para uma promissora interpretação crítica da temporalidade
moderna. Depois do seu crescimento demográfico nos séculos XII e XIII, as cidades
medievais começaram a desenvolver uma maior necessidade de regulação do tempo
social. Alguns autores defendem que foram as necessidades materiais da densidade e
complexidade da vida urbana que levaram ao desenvolvimento das horas constantes;
Postone defende, no entanto, e a nosso ver acertadamente, que o surgimento da forma
temporal abstracta característica da sociedade moderna não pode ser compreendida
adequadamente apenas em termos da natureza da vida urbana per se. Afinal de contas
já existiam grandes cidades noutras partes do mundo muito antes do desenvolvimento
das horas constantes nas cidades medievais do ocidente; e para além disso, até ao
século XIV, o dia de trabalho na Europa medieval continuava a ser medido de forma
natural pelo tradicional sol-a-sol, instituído pelo ‘tempo da igreja’ (horae canonicae).
Neste sentido, a razão para o surgimento das horas constantes deve ser baseada numa
forma sócio-cultural particular e não num factor material geral como a concentração
urbana ou o avanço tecnológico.
Para Postone, os sinos de trabalho eram uma expressão de uma nova forma social que
tinha começado a aparecer no fim da Idade Média, particularmente nas cidades que se
tinham especializado na produção de tecido, como as da Flandres. Numa primeira
fase, o trabalho era pago ao dia pelos próprios mercadores de tecido; isto significou
que durante a crise económica dos fins do século XIII que afectou profundamente a
tecelagem, os trabalhadores deste ramo ficaram profundamente vulneráveis a situações
de pobreza, passando eles próprios a exigir o prolongamento do dia de trabalho, para
além do dia tradicional de sol-a-sol, de forma a aumentar os seus salários — não
podemos esquecer que a riqueza ainda era medida pela produção absoluta de tecido.
De acordo com Le Goff, foi justamente nesta fase, e como forma de controlo pelos
mercadores da ‘real’ dimensão do dia de trabalho, que se multiplicaram os sinos
municipais de trabalho pelas diversas cidades medievais europeias, pondo fim ao
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domínio histórico do tempo da igreja. Não foi preciso muito tempo para que os sinos
dessem lugar aos relógios mecânicos, ainda de horas variáveis. Durante a segunda
metade do século XIV espalharam-se por todo o mundo urbano europeu diversas
torres municipais com relógios de um só ponteiro, que passaram lentamente a reger
toda a vida quotidiana urbana. No final desse século a temporalidade abstracta e
homogénea das vinte e quatro horas já servia como ordenador temporal de diversos
trabalhos concretos nos principais centros urbanos europeus, e com isso a própria
cidade do fim da Idade Média ganhava um novo significado. Como constatou o
medievalista Aron Guretvich: “Dissemos que a cidade se tinha apropriado do seu
próprio tempo e isto é verdadeiro, no sentido em que o tempo escapou ao comando da
Igreja. Mas, em contrapartida, foi também precisamente na cidade que o homem
deixou de ser dono do tempo. Tendo, com efeito, recebido a possibilidade de se escoar
sem ter em conta os indivíduos e os acontecimentos, o tempo impôs a sua própria
tirania, à qual os homens tiveram de submeter-se. O tempo subjugou-os ao seu ritmo,
forçou-os a agir mais depressa, a despachar-se, a não deixar escapar um instante”
(Gurevitch 1990: 174-8). Esta “tirania do tempo” é no fundo a tirania da “valorização
do valor” (Marx) como forma social fetichista emergente, intermediada pela paralela
coerção estatal e a máquina militar desvinculada. Esta interpretação também poderá
dar um novo significado à constatação de Le Goff de que “o século do relógio é
também o do canhão” (Le Goff 1980: 70-1).
Figura 8. Gravura da Praça de São Marcos, em Veneza, datada de 1500. Ao centro, atrás, a torre do relógio de São Marcos, inaugurado no ano anterior.
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Mas antes de se generalizar por toda a vida social, como nos diz Kurz, “o tempo
começou por se tornar abstracto, independente e absoluto apenas num espaço social
determinado, que é precisamente o espaço funcional da economia empresarial
desvinculado” (Kurz 2004). No âmbito do processo histórico de valorização do valor
emerge assim uma dissociação social, temporal e espacial das actividades produtivas
em relação a todas as outras actividades e momentos da reprodução social quotidiana,
que passam daí em diante a ser encaradas como um entrave à ‘produtividade’, uma
noção que começava então a surgir. Não se trata por isso da definição de um mero
espaço de produção de bens materiais; trata-se antes de um espaço de valorização do
trabalho abstracto e de “riqueza abstracta”. A relevância histórico-social desta
desvinculação é mais evidente na separação trabalho-residência, mas na verdade não
se trata propriamente de uma separação; é que não estamos perante o simples separar
de duas coisas que estavam juntas mas antes da constituição de ambas em separado.
A vida quotidiana pré-moderna é um todo social integrado, no qual não existe nem
trabalho nem propriamente residência; apenas o capitalismo constituiu tais esferas
desvinculadas que se pressupõem reciprocamente, ao mesmo tempo que a cada uma
foi atribuída uma conotação sexual específica: os homens para os espaços de trabalho
e de valorização da “riqueza abstracta” e as mulheres para os espaços domésticos e do
consumo material-sensível das mercadorias.
Aquilo que progressivamente se generalizou e consolidou, sobretudo a partir do meio
do século XIX, foi uma definição de cidade como espaço de concentração e
valorização do trabalho abstracto. Desse modo assiste-se a uma generalização da
separação social e espacial das práticas humanas, que se expande das fábricas para o
espaço urbano, e cujo primeiro exemplo é porventura as obras de Hausmann em Paris.
Aqui começamos já a falar do capitalismo como totalidade social constituída, como
“sociedade do trabalho”, ou como Marx falava, do funcionamento do capitalismo
“sobre a sua própria base”.
Ora, a forma temporal da medida da “riqueza abstracta” implica uma relação
contraditória e dinâmica entre valor e trabalho abstracto, entre riqueza abstracta e
produtividade material. Mediada pela concorrência, esta contradição inerente à
“valorização do valor” implica uma trajectória histórica e geográfica muito particular:
uma produtividade material crescente em unidades temporais cada vez mais pequenas
e uma correspondente necessidade de expansão do mercado. Ou seja: a “valorização
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do valor” é um processo social dinâmico e objectivo de crescente intensidade temporal
(produtividade) e progressiva expansividade geográfica (mercado mundial). Este
processo imprime na modernidade uma dinâmica interna, objectiva e inconsciente,
completamente desconhecida nas sociedades pré-modernas. Enquanto nestas o
princípio social metafísico mantinha-se transcendente e funcionava como matriz
religiosa personificada de referência e estabilização social, a metafísica social da
“valorização do valor” é um processo sistemático de objectivação em mercadorias,
tornando-se assim imanente ao mundo e imprimindo-lhe uma dinâmica histórica
de brutal transformação social cega, na qual se inclui evidentemente a urbanização
moderna e o actual sistema urbano mundial.
Evidentemente que na base de tudo isto está a contradição basilar insanável da relação
de capital: por um lado, ele precisa de absorver trabalho abstracto na maior quantidade
possível; por outro lado, a concorrência cria um aumento de produtividade através da
qual a força de trabalho se torna supérflua e é substituída por capital objectivado na
forma de maquinaria. Esta contradição tem um conhecido mecanismo de compensação
que, dito de forma simplificada, se expressa na capacidade do sistema, em cada
aumento de produtividade, absorver maiores quantidades absolutas de força de
trabalho do que aquelas que foram eliminadas através da racionalização ou introdução
de maquinaria. O exemplo disso foi o fordismo: ao mesmo tempo que a linha de
montagem reduzia o tempo de trabalho para cada mercadoria, permitia também a
absorção de maiores quantidades absolutas de força de trabalho. O resultado foi uma
“sociedade do trabalho” a todo o vapor, o arranque da urbanização mundial
generalizada e o progressivo embaratecimento generalizado de mercadorias
inicialmente vendidas como bens de luxo (automóvel, frigoríficos, máquinas de lavar,
etc.). Datam deste período as teses do urbanismo funcionalista dos CIAM, onde é
evidente a metafísica do trabalho e a temporalidade abstracta da valorização do valor,
sobretudo em Le Corbusier, para quem “a cidade é um instrumento de trabalho”
(Corbusier 1992: vii) e que o planeamento urbano deve “ajudar no nascimento da
alegria do trabalho” (Corbusier 1995: 68); que defende que “a lei das vinte e quatro
horas será a medida de qualquer empreendimento urbanístico” (1995: 10) e que “a
cidade que dispõe de velocidade dispõe do sucesso” (1992: 180).
Obviamente que o mecanismo de compensação interno da trajectória do capitalismo
só pode ser eficaz enquanto a velocidade de inovação dos produtos é superior à
Figura 9. Projecto de Le Corbusier «Cidade Contemporânea" para 3 milhões de habitantes (1922-24).
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velocidade de inovação no processo produtivo. Mas no contexto da 3ª Revolução
Industrial da informática, a relação inverte-se e pela primeira vez a racionalização e
cientifização das forças produtivas torna supérflua mais força de trabalho do que
aquela que consegue absorver. E aqui não se trata apenas de indivíduos mas de
regiões, países e continentes inteiros. O trabalho abstracto, que até aqui tinha
funcionado como forma fetichista de integração social, revela aquilo que nunca deixou
de ser: uma violentíssima forma de exclusão social. Há muito que isto é evidente na
urbanização do continente africano, que, incapaz de concorrer no mercado global,
apresenta fenómenos de uma miserável hiper-urbanização sem a correspondente
criação de emprego, ao contrário do que se verificou na história da urbanização
europeia. Mas também há muito que os fenómenos de desemprego estrutural
massificado atingem as megalópoles dos países do centro do sistema mundial de
trabalho abstracto. E se a isto juntarmos a urbanização financiada a capital fictício e o
custo crescente de manutenção de uma infraestrutura social urbana improdutiva do
ponto de vista do capital, ela própria garantida através de dívida pública, parece de
facto haver motivos para assombro no sistema urbano capitalista mundial. Depois da
“explosão urbana” dos últimos dois séculos, existem agora sérios riscos de muitas
cidades se tornarem verdadeiros “barris de pólvora”.
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