8/10/2019 MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo - De Onde Vem, Para Onde Vai
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Neoliberalismo - de onde vem, para onde vai?,
Reginaldo C. Moraes
Texto integral do livro publicado pela editora Senac, S. Paulo, em 2001.
Foram retiradas as ilustraes e alterada a diagramao, produzidas pela editora.
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Sumrio
Introduo
O liberalismo clssico
Neoliberalismo o que e de onde vem
Modelos tericos e orientaes polticas
Mtodos e pressupostos da public choice
Neoliberalismo e bens pblicos
Polticas sociais, polticas pblicas qual o lugar dessas coisas?
Os neoliberais... por eles mesmos
Os neoliberais... e seus crticos
Reflexes crticas e algo trgicas a respeito de um futuro sempre possvel
Cronologia
Glossrio
Sugestes de leitura
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Introduo
O que o neoliberalismo? De onde
surge? O que pretende? Quem o defende?
Quem o critica?
Este livro procura oferecer algumas
respostas para perguntas como essas. Desde
logo porm preciso deixar claro que volta e
meia o leitor encontrar aqui termos com
significados prximos. Por exemplo: liberais,
ultraliberais, neoliberais, neoconservadores,nova direita. Estes rtulos aproximam-se
muito, porque os liberais contemporneos so
herdeiros de duas tradies ideolgicas que se
foram fundindo durante o sculo XIX: o
pensamento liberal e o pensamento
conservador. O neoliberalismo econmico de
nossos dias adota pontos de vista polticos que
em sua grande parte foram formados pelos
conservadores do sculo XIX.Outro aviso, antes de comear a leitura.
Quando se utiliza a expresso "liberal" no
continente europeu, o que se tem em vista
aquele pensador ou politico que defende as
idias econmicas do livre mercado e critica a
interveno estatal e o planejamento. So
aqueles que se opem ao socialismo, social-
democracia, ao Estado de bem-estar social.
Mas a palavra "liberal" nos Estados Unidos
quer dizer quase o contrrio: ela se aplica
principalmente a polticos e intelectuais
alinhados com o Partido Democrata e que
apiam a interveno reguladora do Estado e
a adoo de polticas de bem-estar social,
programas que os neoliberais recusam.
De qualquer modo, o termo
neoliberalismo leva a vrios significados:
1. uma corrente de pensamento e uma
ideologia, isto , uma forma de ver e
julgar o mundo social;
2. um movimento intelectual organizado,
que realiza reunies, conferncias e
congressos, edita publicaes, cria think-
tanks, isto , centros de gerao de idias
e programas, de difuso e promoo de
eventos;
3. um conjunto de polticas adotadas pelos
governos neoconservadores, sobretudo a
partir da segunda metade dos anos 70, e
propagadas pelo mundo a partir das
organizaes multilaterais criadas pelo
acordo de Bretton Woods (1945), isto ,
o Banco Mundial e o Fundo MonetrioInternacional (FMI).
Mas todos esses significados tm uma
coisa em comum: sugerem o retorno a um
modelo ideal. Em primeiro lugar, retomam,
atualizam e propagam os valores do
pensamento liberal e conservador dos sculos
XVIII e XIX. Em segundo lugar, tambm
pregam a volta a uma forma de organizaoeconmica que teria vigorado, por pouco
tempo, no meio do sculo XIX (com o livre-
cambismo imposto pela Inglaterra) e no perodo
de 1870-1914, a fase mais "globalizada" da
economia mundial, com a livre circulao de
capitais e mercadorias, no regime monetrio do
chamado padro ouro. Desse modo, o
liberalismo clssico foi em certa medida a
ideologia do capitalismo comercial e
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manufatureiro em expanso - e um ataque s
regulaes polticas produzidas pelas
corporaes de ofcio e pelo Estado
mercantilista. Pode-se dizer que o
neoliberalismo, de modo semelhante, a
ideologia do capitalismo na era de mxima
financeirizao da riqueza, a era da riqueza
mais lquida, a era do capital voltil - e um
ataque s formas de regulao econmica do
sculo XX, como o socialismo, o
keynesianismo, o Estado de bem-estar, o
terceiromundismo e o desenvolvimentismo
latino-americano.
Para entender o neoliberalismo
preciso, inicialmente, registrar quais so as
idias mestras do liberalismo clssico e contra
quem elas se movem: as instituies
reguladoras do feudalismo, das corporaes de
ofcio e do Estado mercantilista. E o que
faremos no captulo O liberalismo clssico.
Depois, simetricamente, poderemos
compreender melhor as idias centrais do
neoliberalismo. Veremos tambm, nos captulos
seguintes at o captulo Polticas sociais,
polticas pblicas, os inimigos contra os quais o
neoliberalismo se volta, as formas de regulao
econmica do sculo XX: o Estado keynesiano,
os sindicatos e as polticas de bem-estar social
nos pases desenvolvidos, o Estado
desenvolvimentista e a chamada democracia
populista nos pases subdesenvolvidos.
Depois de expor as idias e a histria do
neoliberalismo, selecionamos para o leitor, nos
captulos Os neoliberais... por eles mesmos e
Os neoliberais... e seus crticos, algumas
passagens exemplares de seus defensores e
crticos. Finalmente, no captulo de concluso,
delineamos um balano mais pessoal e
posicionado dos valores e das polticas
neoliberais.
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O liberalismo clssico
A pedra fundamental do liberalismo costuma
ser identificada com Adam Smith, mais
especialmente com a publicao de A riqueza
das naes, em 1776 com certeza um dos
livros mais reeditados e citados dos tempos
modernos.
Smith afirma que o mundo seria melhor
mais justo, racional, eficiente e produtivo
se houvesse a mais livre iniciativa, se as
atitudes econmicas dos indivduos e suas
relaes no fossem limitadas por regulamentos
e monoplios garantidos pelo Estado ou pelas
corporaes de ofcio. Prega a necessidade de
desregulamentar e privatizar as atividades
econmicas, reduzindo o Estado a funes
definidas, que delimitassem apenas parmetros
bastante gerais para as atividades livres dos
agentes econmicos. So trs as funes dogoverno na argumentao de Smith: a
manuteno da segurana interna e externa, a
garantia da propriedade e dos contratos e a
responsabilidade por servios essenciais de
utilidade pblica.
Segundo a doutrina liberal, a procura do
lucro e a motivao do interesse prprio so
inclinaes fundamentais da natureza do
homem. Elas estimulam o empenho e oengenho dos agentes, recompensam a
poupana, a abstinncia presente, e remuneram
o investimento. Alm disso, premiam a
iniciativa criadora, incitando ao trabalho e
inovao. Como resultado, cria-se um sistema
ordenador (e coordenador) das aes humanas,
identificadas com ofertas e demandas mediadas
por um mecanismo de preos. Esse sistema
social revelaria de modo espontneo e
incontestvel as necessidades de cada um e de
todos os indivduos. O sistema tambm
indicaria a eficcia da empresa e dos
empreendedores, sancionando as escolhas
individuais, atribuindo-lhes valores negativos
ou positivos. Alis, em 1789, Bentham faria
esta declarao lapidar: "A livre concorrncia
equivale a uma recompensa que se concede
queles que fornecem as melhores mercadorias
pelos preos mais baixos. Ela oferece uma
recompensa imediata e natural, que uma
multido de rivais alimenta a esperana de
conseguir, e atua com maior eficcia que um
castigo distante, do qual cada um talvez espere
escapar".
As virtudes organizadoras e
harmonizadoras do mercado so sintetizadas
por Smith:
Assim que os interesses e os
sentimentos privados dos indivduos os
induzem a converter seu capital para as
aplicaes que, em casos ordinrios, so as
mais vantajosas para a sociedade [...]. Sem
qualquer interveno da lei, os interesses e
os sentimentos privados das pessoas
naturalmente as levam a dividir e distribuir ocapital de cada sociedade entre todas as
diversas aplicaes nela efetuadas, na
medida do possvel, na proporo mais
condizente com o interesse de toda a
sociedade.''1
1Adam Smith,A riqueza das naes - investigaosobre sua natureza e suas causas, vol. 2 (So
Paulo: Abril Cultural, 1983), p. 104.
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Para batizar esse aparente milagre,
Smith cunhou uma expresso que ficaria
famosa: a sua "mo invisvel" do mercado
tornou-se a frmula preferida dos economistas
liberais. Segundo suas palavras, o novo sistema
seria bvio e simples, ainda que, ao longo da
histria, tivesse encontrado tantas dificuldades
para se afirmar:
[...] uma vez eliminados inteiramente
todos os sistemas, sejam eles preferenciais
ou de restries, impe-se por si mesmo o
sistema bvio e simples da liberdade natural.
Deixa-se a cada qual, enquanto no violar as
leis da justia, perfeita liberdade de ir em
busca de seu prprio interesse, a seu prprio
modo, e fazer com que tanto seu trabalho
como seu capital concorram com os de
qualquer outra pessoa ou categoria de
pessoas.
2
Em 1817, David Ricardo generalizaria o
argumento de Smith, estendendo-o para o
conjunto da sociedade pensada. em termos
internacionais. As virtudes da diviso social do
trabalho ganham a forma mais ampla da
doutrina das "vantagens recprocas" resultantes
de uma especializao natural dos pases nessa
diviso do trabalho:
Num sistema comercial perfeitamente
livre, cada pas naturalmente dedica seu
capital e seu trabalho David Ricardo
atividade que lhe seja mais benfica. Essa
busca de vantagem individual est
admiravelmente associada ao bem universal
2
Ibid.,p.47.
do conjunto dos pases. Estimulando a
dedicao ao trabalho, recompensando a
engenhosidade e propiciando o uso mais
eficaz das potencialidades proporcionadas
pela natureza, distribui-se o trabalho de
modo mais eficiente e mais econmico,
enquanto pelo aumento geral de volume de
produtos difunde-se o benefcio de modo
geral e une-se a sociedade universal de todas
as naes do mundo civilizado por laos
comuns de interesse e de intercmbio. Este
o princpio que determina que o vinho seja
produzido na Frana e em Portugal, que o
trigo seja cultivado na Amrica e na Polnia,
e que as ferramentas e outros bens sejam
manufaturados na Inglaterra.3
Mais uma vez afirma-se que o mercado
o melhor caminho para gerar eficincia,
justia e riqueza. Eficincia, porque propicia o
uso mais eficaz das potencialidadesproporcionadas pela natureza, distribui o
trabalho de modo mais econmico. Justia,
porque estimula a dedicao ao trabalho e
recompensa a engenhosidade. E riqueza, j que,
pelo aumento de volume de produtos, difunde-
se o beneficio. Os resultados da liberdade
econmica so a paz e a harmonia
internacional.
Contra quem lutam os pais fundadoresdesse liberalismo? Quais so os obstculos que,
na sua opinio, impedem a efetivao do
"sistema de liberdade natural", que eles
acreditavam ser to evidentemente vantajoso
3 David Ricardo, Princpios de economia
poltica e tributao (So Paulo: Abril,
1982), p. 104.
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para todos, mas to difcil de realizar-se na
histria dos pases que examinavam? Quem
teimava em regulamentar a livre iniciativa de
modo to visivelmente irracional, impedindo a
emergncia de indivduos criativos e
empreendedores? Adam Smith descreve esse
sistema de restries e ordenamentos e aponta
os responsveis pela sua manuteno:
E dessa forma que todo sistema que
procura, por meio de estmulos
extraordinrios, atrair para um tipo
especfico de atividade uma parcela de
capital da sociedade superior quela que
naturalmente para ela seria canalizada, ou
ento que, recorrendo a restries
extraordinrias, procura desviar
foradamente, de um determinado tipo de
atividade, parte do capital que, caso
contrrio, naturalmente seria para ela
canalizada, na realidade age contra o grandeobjetivo que tenciona alcanar. Ao invs de
acelerar, retarda o desenvolvimento da
sociedade no sentido da riqueza e da
grandeza reais e, ao invs de aumentar,
diminui o valor real da produo anual de
sua terra e de seu trabalho.4
A argumentao de Smith clara. Para que o
mundo seja mais livre, justo e rico, necessrioque a disciplina annima e invisvel da
concorrncia substitua a disciplina visvel das
hierarquias arcaicas. E onde esto essas
hierarquias perniciosas? So as obrigaes
tradicionais e personalizadas das instituies
medievais, os regulamentos das corporaes de
ofcio e as leis do Estado mercantilista. Smith
4 [Adam Smith, cit., pp. 46-47.]
elogia a virtuosa mo invisvel do mercado
contra a viciosa mo visvel do poder poltico.
Portanto, os inimigos do progresso, na
viso liberal, so facilmente identificveis: os
regulamentos estatais - mais especificamente, a
poltica econmica dirigista do mercantilismo -
e as corporaes. So exemplos desse tipo de
entrave os regulamentos sobre materiais,
tcnicas, preos e monoplios, mo-de-obra
(como, na Inglaterra, a Lei dos Aprendizes, de
1563; as Leis dos Pobres, unificadas em 1601
pela rainha Elizabeth; e a Lei do Domiclio, de
1662). Notemos portanto que o pensamento
liberal nasce, fundamentalmente, como uma
negao de outro mundo, como outro sistema
de valores e idias. Pelo menos uma em cada
quatro pginas deA riqueza das naes
dedicada crtica do mercantilismo.
Os entraves mercantilistas
Frana e Inglaterra so os exemplos
mais acabados dessa regulamentao e, por isso
mesmo, os mais condenados pela crtica liberal
nascente.
Quem l o clssico livro de Mantoux
sobre a Revoluo Industrial na Inglaterras
encontra um bom retrato: a histria econmica
dos sculos XVII e XVIII seria caracterizada
pela tutela dos poderes pblicos sobre aindstria, "um regime estabelecido pelo
costume e consagrado pela lei".5
Alguns regulamentos e leis teriam
sobrevivido, com ligeiras mudanas, desde a
Idade Mdia, como o controle minucioso (e
5Paul Mantoux, A Revoluo Industrial no sculoXVIII - estudo sobre os primrdios da grandeindstria moderna na Inglaterra, capitulo 1, trad.
Sonia Rangel (So Paulo: Unesp/Hucitec, s/d.).
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tortuoso) da vida econmica (fabricao,
venda, comrcio) pelos poderes pblicos e
pelas guildas. A idia de proteo comercial,
lembra Mantoux, tambm j existia, mas teria
ganho extraordinria fora com o
desenvolvimento de grupos nacionais e do
comrcio exterior, com a passagem da
"economia das cidades" para as "economias
nacionais". Na Inglaterra, isso teria ocorrido
sobretudo entre os sculos XV e XVI. Na
prtica, a prpria poltica mercantilista teria
nascido nessa poca, ainda que seu sistema
doutrinrio viesse a constituir-se mais tarde,
com a adoo do protecionismo extremado, do
apoio s indstrias nacionais, das reservas de
mercado, etc.
A indstria txtil na Inglaterra parece
ter sido um exemplo cabal de super-
regulamentao. O Parlamento baixava normas
regulando tudo: fabricao, empacotamento,
circulao, transporte e venda. Normasmeticulosas e verdadeiros exrcitos de
vigilncia e fiscalizao procuravam proteger a
indstria e evitar fraudes, mas tinham um
efeito indesejado: com o tempo tambm
impediam aperfeioamentos.
No decorrer do sculo XVIII, lembra
Mantoux, podia-se atestar a decadncia dessa
legislao de perfil e origem medievais. Mas o
sistema mercantilista, de origem mais recente,estava ainda em vigor. E era esse o alvo da
crtica liberal de Smith.
Por um lado, os regulamentos ficavam
cada vez mais rgidos, complexos e difceis de
manter contra as burlas, os artifcios, o
contrabando. Por outro lado, proteo to
grande inibia (e dispensava) a inovao, diria
Smith. Os "funestos resultados" do monoplio
e da proteo exagerada eram apontados pelos
crticos liberais.
E realmente era bastante vasto o corpo
legislativo que enclausurava a nascente econo-
mia manufatureira-industrial. Um denso
sistema de monoplios e privilgios especiais,
concedidos pelo poder real, protegia a indstria
nativa da competio aberta. Um papel
relevante cabia poltica econmica externa,
com as leis de navegao, os regulamentos
sobre as colnias, as taxas restringindo a
importao de vrios artigos, as subvenes e
incentivos a exportadores (reembolsos e
isenes fiscais). Tambm as leis de domiclio,
as leis dos pobres e dos aprendizes constituam
entraves, cerceando a imprescindvel
mobilidade e o livre uso da fora de trabalho.
Na Frana, o modelo de dirigismo alvejado
pela crtica liberal era encarnado em Colbert,
cujos Rglements (1666-1730) sobre as
manufaturas cobriam milhares de pginas,
estabelecendo controle minucioso,uniformizando produtos e processos. E
tambm aqui, aos meticulosos regulamentos
sobre todas as esferas e momentos da vida
econmica, somavam-se necessariamente
sistemas complexos e pesados de vigilncia
sobre fabricantes e comerciantes, tornando
visvel a presena reguladora do soberano em
cada tomo do reino.
As corporaes
A crtica liberal voltou-se tambm
contra as corporaes de ofcio e contra o
privilgio dos mestres, que constituam
entraves liberdade do indivduo de passar de
uma profisso a outra ou simplesmente de
exercer um ofcio que fosse do seu interesse.
Aos olhos de liberais como Smith, as guildas
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eram outro meio de realizar a inconveniente
poltica de entraves, ao criar canais
obrigatrios de controle, plane-
jamento e direo da produo
artesanal, que determinavam quantidade e
qualidade das mercadorias, preos, margem de
lucro, regulamentando tambm a abertura de
novas lojas e pontos-de-venda, estabelecendo
regras bastante estritas sobre os artesos e a
mo-de-obra em geral (normas de obrigatrio
cumprimento quanto a aprendizagem,
emprego, salrio e assistncia).
Smith batia duro nas corporaes.
Afirmava que as reunies de "pessoas da
mesma profisso [...] terminam em uma
conspirao contra o pblico, ou em algum
incitamento para aumentar os preos". Se no
se pode evit-las, "nada se deve fazer para
facilit-las e muito menos para torn-las
necessrias"6. Do que que Smith est
falando, concretamente? As corporaeseramfacilitadas quando se baixavam regula-
mentos obrigando a inscrio dos membros de
uma profisso num registro pblico, o que
abria caminho a contatos que viravam
conluios. Eram induzidas necessidade
quando os regulamentos autorizavam os
membros de uma profisso a impor taxas
(estendendo portanto o acordo feito entre
alguns, agora, para o universo de todos, nofuturo). A mensagem de Smith era clara: a
autoridade pblica, em vez de regulamentar a
existncia de corporaes, deveria atuar
desestimulando sua manuteno e desauto-
rizando os regulamentos que elas pretendiam
impor.
6Adam Smith, op. cit., vol. 1, p. 139
A ordem poltica liberal
A partir dessa matriz, constituda
basicamente j nas ltimas dcadas do sculo
XVIII, a tradio liberal desdobrou-se em dois
grandes princpios programticos:
1) A procura do interesse prprio
conduz ao ajustamento entre os indivduos e
a uma determinada harmonizao dos
diferentes esforos e vontades. Delineia-se a
convico na existncia de "leis
econmicas": as aes intencionais das
pessoas produzem, de modo no intencional
(e necessariamente de modo no
intencional), regularidades semelhantes s
leis de um sistema fisico.
2) 0 poder poltico deve ser
cuidadosamente limitado pela lei.
Reparemos ainda uma vez nesta convicofundamental dos liberais: deve-se limitar a
interveno do poder poltico (as aes do
soberano, seja ele rei ou parlamento) para
permitir que os indivduos vivam como bem
entendam. A figuram a defesa das liberdades
individuais, a crtica da interveno estatal, o
elogio das virtudes reguladoras do mercado. A
defesa da propriedade privada tambm tem
esse sentido, sendo apresentada como umagarantia para a independncia do indivduo
perante a tirania dos soberanos polticos.
Montesquieu chegou a dizer que a inveno da
letra de cmbio, uma riqueza mvel que
atravessava fronteiras de reinos e principados,
era uma espcie de antdoto contra a tirania, j
que levava os aprendizes de ditador a pensar
duas vezes antes de inventar novas taxas,
impostos e confiscos.
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E certo que ainda cabe um papel ao
Estado, mas suas funes devem ser
claramente limitadas. O soberano no deve
tentar dirigir a vida dos indivduos,
empurrando-os para atividades mais
condizentes com o interesse da sociedade. No
h sabedoria ou conhecimento humano que
baste para isso. Toda tentativa nesse sentido
ser intil e nociva, diz Smith:
Segundo o sistema da liberdade natural, ao
soberano cabem apenas trs deveres; trs
deveres, por certo, de grande relevncia, mas
simples e inteligveis ao entendimento
comum: primeiro, o dever de proteger a
sociedade contra a violncia e a invaso de
outros pases independentes; segundo, o
dever de proteger, na medida do possvel,
cada membro da sociedade contra a injustia
e a opresso de qualquer outro membro da
mesma, ou seja, o dever de implantar umaadministrao judicial exata; e, terceiro, o
dever de criar e manter certas obras e
instituies pblicas que jamais algum
indivduo ou um pequeno contingente de
indivduos poderio ter interesse em criar e
manter, j que o lucro jamais poderia
compensar o gasto de um indivduo ou de
um pequeno contingente de indivduos,
embora muitas vezes ele possa atcompensar em maior grau o gasto de uma
grande sociedade.' [Adam Smith, op. cit.,
vol. 2, p. 147.]
As duas primeiras funes, defesa
externa e ordem interna, so mais ou menos
bvias, atividades tpicas de governo. A
terceira mais complicada, e daria margem a
muita controvrsia entre os liberais nos dois
ltimos sculos. Porque Smith no diz como
delimitar o espao legtimo das obras e
instituies pblicas que o soberano poderia
criar e manter. E certo que diz claramente que
elas s existiriam se no houvesse
possibilidade de oferta pelos interesses
privados. E um critrio bastante restritivo, mas
cujos limites so difceis de definir de uma vez
para sempre.
Repare-se que Adam Smith no afirmaapenas que ilegtimo atribuir ao soberano opapel de gerenciar as atividades dosparticulares, ou de desenhar o mapa das ocupa-es e ofcios da sociedade. Ele diz tambmque essa pretenso irrealista, uma vez quetais decises dependeriam de informaes ecapacidade de processamento que superam aspossibilidades de qualquer crebro humano.
No sculo XIX, o pensamento liberalaproxima-se cada vez mais de correntes con-servadoras e tenta afirmar e reforar essas
restries. Por um lado, procura reduzir apresena do soberano poltico na sociedade,limitando e/ou dirigindo estritamente asintervenes do Estado na economia. Por outrolado, busca reduzir o crculo dos indivduosaos quais permitida a interveno sobre oEstado - da a luta dos liberais contra osufrgio universal e outras manifestaespolticas das massas populares. Por isso, desde
seu nascimento o liberalismo distanciou-se delemas como "cada cabea, um voto" e oconflito entre liberalismo e democracia tornou-se cada vez mais agudo.
Reviso liberal-conservadora no sculo XIX
Para sermos exatos, j no final do
sculo XVIII alguns autores liberais, como
Edmund Burke (1729-1797), comearam a
reforar o lado conservador dessa doutrina.
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Um dos temas dessa reviso do liberalismo -
acentuada durante o sculo XIX - ganhar
relevo na viso neoliberal: os limites que
podem ou devem ser impostos participao
poltica. Entre os autores que produziram
argumentos nessa direo destacam-se, alm
de Burke, Benjamin Constant (1767-1830),
Thomas Macaulay (1800-1859) e Henri
Maine (1822-1888).
A linha geral de sua argumentao era
a seguinte: a liberdade individual e a
capacidade de reflexo poltica esto
intimamente associadas com a propriedade
privada. Ora, os novos tempos foram
marcados pela chegada das massas populares
vida poltica - por meio da organizao
sindical ou partidria ou da conquista do
sufrgio universal. Como resultado, a
mquina do Estado e as decises polticas
ficaram sob o cerco das massas. A
preocupao central desses autores, que serretomada no sculo XX pelos neoliberais, era
portanto evitar a "politizao" da vida
econmica. Para isso eles propunham:
1. limitar o acesso ao sufrgio, concedendo-se o direito de voto somente aosproprietrios ou detentores de certamargem de renda, por exemplo;
2. limitar o mbito do sufrgio,neutralizando seus poderes pelo firmeestabelecimento de questes e funespblicas que, definitivamente, deveriamestar imunes ao voto e ao poltica dopblico. Alguns cargos no seriamelegveis nem fiscalizados peloParlamento. Algumas decises seriamexcludas da alada do Parlamentomediante clusulas constitucionais ou leisfundamentais que s poderiam ser
mudadas com muita dificuldade.
Se essas limitaes no fossem
estabelecidas, diziam os liberais, o mundo
poltico se transformaria no reino da "rapina".
O direito de voto se converteria numa arma de
saque dos despossuidos contra os proprietrios,
e aqueles que "no se dessem bem" no
mercado poderiam pretender recuperar terreno
mediante a ao poltica do Estado, a
tributao progressiva e a imposio de leis
sociais aos proprietrios. Seria uma espcie de
"chantagem" poltica.
Benjamin Constant dizia, de modo claro
e alarmista, que se os no proprietrios fossem
titulares de direitos polticos, seriam levados a
perseguir "objetivos predatrios e anrquicos"
e, assim, "demolir a sociedade", impondo taxas
descabidas e irracionais aos proprietrios,
engendrando um "sistema de confisco velado".
Segundo Constant, para a "classe
laboriosa" os direitos polticos "serviro
infalivelmente para invadir a propriedade. Elasmarcharo por esse caminho irregular, em vez
de seguirem a rota natural, o trabalho: seria
para elas uma espcie de corrupo; e, para o
Estado, uma desordem"! 7
William Lecky (1838-1903) tambm se
apavorava com essa perspectiva: "Nas mos de
uma democracia, a taxao poderia produzir os
meios de reparar desigualdades de fortuna,
habilidade ou diligncia". Mas adverte paraaquilo que considera uma rapina: "a classe
numericamente preponderante votando e
gastando dinheiro que uma outra classe e
obrigada a pagar".8
7Benjamin Constant,De la libert chez lesmodernes (Paris: Pluricl, 1980), textos escolhidospor Marcel Gauchet, p. 112.8William Lecky, Democracy and Liberty, vol. 1
(Indianpolis: Liberty Classics, 1981), p. 232.
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No final do sculo XIX, essas idias
seriam aprofundadas e radicalizadas por
Herbert Spencer (1820-1903). Seu livro
Indivduo contra o Estado defende o sistema
da concorrncia como uma espcie de
"seleo natural" dos mais aptos, um
darwinismo social. Spencer ataca duramente a
democracia, a interveno estatal na economia
e a criao de polticas sociais. Algumas das
idias de Spencer seriam depois retomadas
quase literalmente pelos autores neoliberais
contemporneos.
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Neoliberalismo - o que e de onde vem
Aquilo que se tem chamado de neoliberalismo,
como dissemos, constitui em primeiro lugar
uma ideologia, uma forma de ver o mundo
social, uma corrente de pensamento. Desde o
incio do sculo XX podemos ver tudo isso
apresentado por um de seus profetas, o
austraco Ludwig von Mises (1881-1973). Mas
um discpulo dele, o tambm austraco
Friedrich von Hayek, que ter o papel de lider e
patrono da causa. Seu O caminho da servido,
lanado em 1944, pode ser apontado como um
manifesto inaugural e documento de referncia
do movimento neoliberal. Nos anos seguintes,
Hayek empenhar-se-ia na organizao de uma
"internacional dos neoliberais", a Sociedade do
Mont Plerin, fundada na cidade do mesmo
nome (na Sua) numa conferncia realizada em
1947. O caminho da servido um livro de
combate, provocativamente endereado "aos
socialistas de todos os partidos". No dirige seu
fogo apenas contra os partidrios da revoluo
e da economia globalmente planificada, mas a
toda e qualquer medida poltica, econmica e
social que indique a mais tmida simpatia ou
concesso para com as veleidades reformistas
ou pretenses de fundar uma "terceira via"entre capitalismo e comunismo. Lembremos, de
passagem, que se aproximavam as eleies de
1945 na Inglaterra e o Partido Trabalhista, alvo
visvel de Hayek, preparava-se para ganh-las
(como de fato ganhou). Sublinhemos ainda um
trao que seria marcante no fundamentalismo
hayequiano: a insistncia na necessidade de
guardar intactos os princpios da "sociedade
aberta". Da vem a sua crtica do Estado-
providencia, tido como destruidor da liberdade
dos cidados e da competio criadora, bases da
prosperidade humana.
O liberalismo clssico havia assestado
suas baterias contra o Estado mercantilista e as
corporaes. Os neoliberais procuraram desde
logo construir um paralelo com aquela situao,
para justificar seu combate e apresent-lo como
a continuao de uma respeitvel campanha
antiabsolutista. Segundo eles, os inimigos
vestiam agora outros trajes, mas revelavam as
mesmas taras e perverses. Um desses inimigos
era o conjunto institucional composto pelo
Estado de bem-estar social, pela planificao e
pela interveno estatal na economia, tudo isso
identificado com a doutrina keynesiana. O
outro inimigo era localizado nas modernas
corporaes - os sindicatos e centrais sindicais,que, nas democracias de massas do sculo XX,
tambm foram paulatinamente integrados nesse
conjunto institucional. Alm de sabotar as bases
da acumulao privada por meio de
reivindicaes salariais, os sindicatos teriam
empurrado o Estado a um crescimento
parasitrio, impondo despesas sociais e
investimentos que no tinham perspectiva de
retorno.Para os pases latino-americanos, os
neoliberais fazem uma adaptao dessa cena:
aqui o adversrio estaria no modelo de governo
gerado pelas ideologias nacionalistas e
desenvolvimentistas, pelo populismo... e pelos
comunistas, evidentemente. A argumentao
neoliberal tem uma estratgia similar do
sermo. Primeiro, desenha um diagnstico
apocalptico. Em seguida, prega uma receita
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salvacionista: forte ao governamental contra
os sindicatos e prioridade para uma poltica
antiinflacionria monetarista (doa a quem doer)
- reformas orientadas para e pelo mercado,
"libertando" o capital dos controles
civilizadores que lhe foram impostos por
duzentos anos de lutas populares.
Examinemos esse cenrio - o mundo
que nossos neoliberais vem e rejeitam.
A crise das regulaes
No sculo XIX o livre mercado era um
mundo imposto pela dominao inglesa. Muitos
dos pases hoje desenvolvidos adotaram, para
crescer, polticas opostas pregao liberal.
Estados Unidos, Alemanha e Japo, por
exemplo, utilizaram amplamente a interveno
estatal, o protecionismo, o apoio do poder
pblico para implantar e fortalecer a indstria, o
comrcio, os transportes, o sistema bancrio.Perodo em que estadistas e pensadores
louvavam a livre concorrncia como o caminho
para a prosperidade, o sculo XIX foi tambm
coroado por severas crises de superproduo,
pnicos financeiros e pela disputa de grandes
potncias na corrida para dominar imprios
neocoloniais. Suas primeiras dcadas foram
marcadas por guerras continentais e sucessivas
revolues. Esse clima fortaleceria o tema da"rebelio das massas". Jornalistas, polticos,
intelectuais, romancistas e cineastas alertavam
para o perigo de um mundo que ficara
permevel presena da plebe na poltica. Para
completar a conturbada cena, a monumental
crise de 1929 daria ainda mais autoridade s
sadas reguladoras que vinham sendo
formuladas por liberais reformistas, adeptos da
interveno estatal, desde o incio do sculo.
Desse modo, abriu-se o caminho para
que brilhasse a estrela da filosofia social
exposta por John Maynard Keynes no final de
sua Teoria geral do emprego, do juro e da
moeda. Esse livro foi publicado em 1936 mas,
em vrias de suas passagens, retomava
problemas que o autor vinha analisando desde
os anos 20. Segundo a doutrina
keynesiana, o Estado deveria manejar
grandezas macroeconmicas sobre as quais era
possvel acumular conhecimento e controle
prtico. O poder pblico, desse modo,
regularia as oscilaes de emprego e
investimento, moderando as crises econmicas
e sociais. O New Deal americano e o Estado de
bem-estar europeu iriam testar (e aprovar
durante bom tempo) a convivncia do
capitalismo com um forte setor pblico,
negociaes sindicais, polticas de renda e
seguridade social, etc. Em suma, em pouco
tempo, o Estado viu-se em condies e naobrigao de controlar o nvel da atividade
econmica, inclusive o emprego, atravs de
instrumentos como a poltica monetria a taxa
de juros e os gastos pblicos.
Esse era o chamado "consenso
keynesiano", que se tornara avassalador no
ps-guerra. Tudo parecia dar legitimidade a
essas variadas formas de planificao, que
visavam corrigir, por meio da ao polticadeliberada, os efeitos desastrosos das
flutuaes de mercado. Pode-se dizer que esse
gerenciamento macroeconmico era
conservador, j que buscava conter os traos
mais autodestrutivos do capitalismo, isto , sua
tendncia a criar crises cclicas e
progressivamente mais amplas, efeitos
externos indesejados (falhas do mercado) e
impasses polticos delicados. Disse Skidelski,
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um bigrafo de Keynes, com tom desafiador:
Keynes ofereceu uma chance de sobrevivncia
democracia liberal - quem mais o fez?
As polticas orientadas por essa doutrina
reformadora pareciam firmemente estabele-
cidas. Na Inglaterra, por exemplo, no atraam
apenas os reformadores, trabalhistas, fabianos e
"novos liberais" - o que seria compreensvel -,
mas tambm os conservadores liderados por
Harold MacMillan. Parecia disseminado e
solidamente implantado um amplo acordo sobre
o papel positivo do Estado: na criao de pleno
emprego; na moderao de desequilbrios
sociais excessivos e politicamente perigosos; no
socorro a pases e reas economicamente
deprimidos; na manuteno de uma estrutura de
servios de bem-estar (habitao, sade,
previdncia, transporte urbano, etc.); na gradual
implantao de polticas sociais que atenuassem
desigualdades materiais acentuadas pelo
funcionamento no monitorado do mercado,etc.
Uma outra face ou implicao desse
fenmeno igualmente importante. Com essas
medidas, desenhava-se como aceitvel e
desejvel um novo modo de produzir decises
polticas, novas formas de participao na
poltica. Consolidava-se um novo mundo
poltico, marcado pela negociao entre
corporaes empresariais e proletrias,intermediadas e institucionalizadas pelo poder
pblico. Processavam-se desse modo mudanas
profundas na esfera pblica e na esfera privada,
um novo modo de funcionamento para as
democracias de massa do Ocidente.
O historiador Ben Seligman disse certa
vez que Keynes era "expresso do desespero e
da esperana". Na Amrica Latina um papel
similar coube Comisso Econmica para a
Amrica Latina (Cepal) e a homens como Raul
Prebisch e Celso Furtado. No lado de baixo do
equador, os demnios dos neoliberais tinham
estes nomes: Estado desenvolvimentista e
nacional-populismo como forma de integrao
poltica das massas operrias e populares da
Amrica Latina.
Em resumo, eram esses os fantasmas
que os neoliberais pretendiam exorcizar. Duran-
te dcadas os principais defensores das idias
neoliberais foram vistos como pensadores
excntricos, sobreviventes de um laissezfaire
paleoltico e sem futuro. Dinossauros do livre-
cambismo. Esse diagnstico foi alis
repetidamente enunciado entre estadistas,
cientistas sociais, homens de mdia. Hoje
sabemos claramente o quanto essa avaliao era
errnea, como ela subestimava perigosamente
essa ideologia que estava apenas adormecida,
espera do momento oportuno.
Mesmo isolados e na defensiva, osneoliberais preservaram suas crenas ortodoxas.E voltaram cena, na ocasio propcia, no fimdos Trinta Gloriosos, os anos de reconstruo edesenvolvimento do capitalismo do ps-guerra,tempos que pareciam entronizar okeynesianismo e a economia capitalistaregulada como padres incontestveis depensamento e ao. No final desse perodo, ascompanhias multinacionais espalhavam pelomundo suas fbricas e investimentos emovimentavam gigantescos fundos financeirosenvolvidos nesses processos - lucros a seremremetidos, royalties, patentes, transferncias,emprstimos e aplicaes. No incio dos anos70, as autoridades monetrias americanasanunciavam que as coisas estavam muitomudadas: o dlar no teria mais conversoautomtica em ouro. Em 1974, registrou-se pela
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primeira vez a estagflao - um misto deinflao alta e estagnao que afetavam oconjunto dos pases capitalistas desenvolvidos.
Crescia o mercado financeiro paralelo quedesafiava as regulamentaes nacionais:comrcio de aes, de ttulos pblicos, dedivisas, as formas de riqueza intangvel elquida do capitalismo de papel. Mas aindaseriam necessrios alguns anos de crise e deinsistente pregao para que o novo iderioimpusesse sua hegemonia.
Vale a pena lembrar um evento que iria
antecipar algumas das bandeiras importantes dorenascer neoliberal. Em 1975, os documentosda chamada Comisso Trilateral alertavam paraum problema fundamentalmente poltico: asobrecarga do Estado levava ingovernabilidade das democracias. Para esseimpasse, autores como Samuel Huntington,Daniel Bell, Irving Kristol e ZbignewBrzezinski enunciavam um receiturio
inflexvel: era preciso limitar a participaopoltica, distanciar a sociedade e o sistemapoltico, subtrair as decises administrativas aocontrole poltico.' 9
Desse modo, a quarentena dosneoliberais comeou a romper-sedecididamente na metade dos anos 70. Logo emseguida, lderes partidrios alinhados comprogramas neoliberais conquistaram governos
de importantes pases: em 1979, MargaretThatcher, na Inglaterra; em 1980, Reagan, nosEUA; em 1982, Helmut Kohl, na Alemanha10.
9Ver M. Crozier et al., The Crisis of Democracy(Nova York: Nova York University Press, 1975).
10Para uma exposio das polticas da nova direita,ver por exemplo: David G. Green, The New Right- The Counter-Revolution in Political, Economicand Social Thought (Nova York/Londres,Harvester/Wheatsheaf, 1987); Grahame Thompson,
The Political Economy of the New Right (Londres:
A rigor, porm, as primeiras grandesexperincias de "ajuste" neoliberal foramensaiadas na Amrica Latina: em 1973, no
Chile, com Pinochet, e em 1976, na Argentina,com o general Videla e o ministrio deMartinez de Hoz11.. Nos anos 80, os programasneoliberais de ajuste econmico foram
Pinter Publishers, 1990); Andrew Gamble, TheFree Economy and the Strong State - The Politics ofThatcherism (Londres: MacMillan, 1988); RalphMiliband et al., El Neoconservadurismo en GranBretanay Estados Unidos - retricay realidad
(Valncia: Alfons el Magnnim, 1992).11Para um balano duro das polticas e crenas danova direita, especialmente no caso ingls, vale apena ler um autor antes entusiasta doneoliberalismo e agora crtico acerbo do"fundamentalismo de mercado": John Gray, Falsoamanhecer - os equvocos do capitalismo global, trad.Max Altman (Rio de Janeiro: Record, 1998); domesmo autor, Endgames -Questions in LateModern Political Thought (Cambridge: PolityPress, 1997). Para o caso chileno, ver Juan Gabriel
Valdes, Pinochet's Economists - The Chicago Schoolin Chile (Cambridge: Cambridge University Press,1995). Sobre a Argentina, ver Javier Alberto Vadell,Neoliberalismo e consenso na Argentina (1976-1991), dissertao de mestrado em cinciapoltica (Campinas: IFCH/Unicamp, 1997). Nonos estenderemos sobre os detalhes da histriapoltica desse movimento de idias nos principaiscentros produtores de ideologia neoliberal. Paraquem se interesse por essa histria, h doisimportantes e minuciosos estudos. Richard
Cockett analisa os centros de elaborao edifuso da doutrina neoliberal na Inglaterra emThinking the Unthinkable - Think-Tanks and theEconomic Counter-Revolution (1931-83) (Londres:Fontana Press/HarperCollins, 1995). Para o casonorte-americano, ver George Nash, TheConservative Intellectual Movement in America(since 1995) (Wilmington: Intercollegiate StudiesInstitute, 1996). Ainda nessa linha, ver JamesAllen Smith, The Idea Brokers - Think-Tanks andthe Rise of the New Policy Elite (Nova York: The
Free Press, 1991).
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impostos a pases latino-americanos comocondio para a renegociao de suas dvidasgalopantes. Da se passou vigilncia e ao
efetivo gerenciamento das economias locaispelo Banco Mundial e pelo FMI: 1985, Bolvia;1988, Mxico, com Salinas de Gortari; 1989,novamente a Argentina, dessa vez com Menen;1989, Venezuela, com Carlos Andrs Perez;1990, Fujimori, no Peru. E, desde 1989, oBrasil, de Collor a Cardoso.
Examinaremos a seguir as ideias-chave
da doutrina neoliberal e suas principais
vertentes e escolas.
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Modelos tericos e orientaes polticas
Diretrizes estratgicas da poltica
neoliberal e suas formas de manifestao
tpicas
Tentemos agora uma primeira sntese
das principais idias neoliberais. Elas acentuam
duas grandes exigncias gerais e
complementares: privatizar empresas estatais e
servios pblicos, por um lado; por outro,
"desregulamentar", ou antes, criar novas
regulamentaes, um novo quadro legal que
diminua a interferncia dos poderes pblicos
sobre os empreendimentos privados. O Estado
deveria transferir ao setor privado as atividades
produtivas em que indevidamente se metera e
deixar a cargo da disciplina do mercado as
atividades regulatrias que em vo tentaraestabelecer.
Esses lemas so contudo muito amplos
e genricos. O leitor pode v-los
particularizados em alguns tpicos bastante
especficos, facilmente localizveis na luta
politica e ideolgica que se trava
cotidianamente na mdia ou nos confrontos
eleitorais. A as bandeiras neoliberais aparecem
mais concretamente:
protestos de empresrios contra
presses fiscais, apresentadas como
insuportveis;
denncias de polticos
conservadores contra as polticas
redistributivas, caracterizadas como
paternalistas e desastrosas;
campanhas de organizaes
empresariais contra a extenso de
atividades do setor pblico a domnios
afirmados como "naturalmente"
privados;
resistncia contra a
regulamentao supostamente
hipertrofiada dos contratos entreparticulares (normas sobre aluguis,
direito do trabalho e previdncia,
mensalidades escolares, etc.).
Registre-se ainda, com destaque, um
argumento bastante freqente e forte, o tema do
efeito perverso provocado pelo "Estado-
providencia" ou "Estado de bem-estar":
buscando proteger o cidado das desgraas da
sorte, o Estado aparentemente benfeitor acabana verdade produzindo um inferno de ineficcia
e clientelismo, pesadamente pago pelo mesmo
cidado que primeira vista procurava
socorrer12. importante destacar esse
argumento em particular porque ele abre
caminho para que os neoliberais ampliem e
estendam a frente de batalha nas campanhas
pela privatizao: pregam a transferncia, para
a iniciativa privada, tambm das atividadessociais (educao, sade, previdncia, etc.)
12 ' A esse respeito, a revista Dilogo publicou emseu nmero 2, vol. 23, 1990, artigos dosconservadores americanos Nathan Glazer eCharles Murray, com resposta crtica de AlbertHirschman. O artigo de Hirschman sintetizaargumentos que ele desenvolve mais longamenteemA retrica da intransigncia (So Paulo: Cia.
das Letras, 1995).
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tidas anteriormente como beneficirias do
desmonte do Estado-empresrio (o estado
produtor de bens industriais, sobretudo).
Tudo isso nos apresentado no apenas
como algo desejvel, mas tambm como algo
finalmente acreditvel, pela fora dos prprios
eventos econmicos, impondo-se mesmo com
evidncia, com a fora de um "pensamento
nico". E por qu? De onde vem essa segunda
qualificao? Do fato, tido como irreversvel,
de que o Estado nacional teria perdido hoje
aquelas ferramentas de regulagem econmica
que mencionamos.
Com os novos produtos financeiros
globalizados, emergiria um novo gerente das
polticas nacionais, isto , uma nova soberania,
que se sobrepe s soberanias nacionais outrora
constitudas por processos eletivos. Lembremos
que esses "antigos" processos so qualificados
pelos neoliberais como corrompidos, viciados,
demasiadamente submetidos aos impulsosimediatistas e ressentidos das massas votantes,
chantagem do sufrgio universal enfim - o
sufrgio contra o qual o liberalismo sempre
lutou denodadamente em todos os cantos do
mundo.
A mundializao financeira, j
absolutamente firmada no final dos anos 70,
determinaria as chacoalhadas neoliberais dos
anos 80. A generalizao dos mercadosfinanceiros, a nova "ordem espontnea", subtrai
dos governos nacionais grande parte de seu
poder, como a liberdade de cunhar moeda e
criar dvida pblica. Decreta-se, com festa e
regozijo, o "fim da iluso monetria" e dos
projetos de desenvolvimento nacional. Os
grandes credores e detentores de liquidez -
aquilo que se reverencia misteriosamente como
"o mercado" - tm agora instrumentos para
castigar pases "abusados" e irresponsveis,
aqueles cujos dirigentes "no fizeram a lio de
casa". A nova integrao internacional das
finanas, recosturada, revigora o poder de
presso dos financistas sobre as polticas
econmicas nacionais. Ficam cada vez mais
difceis as polticas nacionais deliberadamente
deficitrias, fundadas na capacidade de emitir
"moedas polticas", moedas sem lastro, visando
garantir metas sociais e polticas como pleno
emprego e desenvolvimento nacional e
reorientar as economias.
Esse pensamento, que no imediato ps-
guerra era dado como morto, curiosamente
consegue agora pautar at as reunies de seus
positores, como lembra a avassaladora
dominao do pensamento nico sobre partidos
socialistas e social-democratas (o Partido
Socialista Operrio espanhol, o segundo
governo Mitterrand na Frana, os trabalhistas
da Nova Zelndia).
O cenrio que se lamenta e aquele que se
exalta
O sculo XX visto pelos
neoconservadores como um caminho de queda,
penitncia e redeno. Como dissemos antes, a
argumentao neoliberal tem uma estratgia
similar do sermo. Inicialmente, aponta osgrandes males e pecados do Estado
intervencionista:
a regulao legislativa, a atuao
do Estado-empresrio e a oferta de bens
pblicos, e os servios de proteo
social confundem os sinais emitidos
pelos mercados, o que leva ao emprego
irracional dos recursos materiais e, no
menos importante, dos empenhos
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subjetivos dos agentes (deseduca os
indivduos);
o Estado transforma-se em
instrumento de grupos de presso que
tentam firmar seus privilgios utilizando
o discurso demaggico das polticas
sociais;
o crescimento das despesas
pblicas leva ao aumento das
necessidades financeiras dos governos
(endividamento, emisso monetria,
inflao);
o crescimento da tributao pode
provocar efeitos indesejveis que se
propagam por todos os poros da
sociedade: falta de estmulo ao trabalho,
evaso e fraudes fiscais,
desenvolvimento de economia
subterrnea (informal).
A redeno vem de forma um tanto
miraculosa, embora implique dolorosaspenitncias. A globalizao financeira, a
liberalizao da economia mundial, a
internacionalizao das atividades econmicas
limitam a possibilidade de ao do Estado, que
tem seu poder erodido em duas direes:
para baixo, transferindo-se
competncias para as coletividades
locais: construo escolar, formao
profissional, servios urbanos, sade eassistncia social, etc.;
para cima, os Estados nacionais
cedem parte de suas competncias a
outros tipos de organizaes: Grupo dos
Sete (G-7), Acordo Geral de Tarifas e
Comrcio (Gatt), Organizao Mundial
do Comrcio (OMC), Comisso
Europia, etc. O Estado nacional deixa
de ser a fonte nica do direito e das
regulamentaes. Prerrogativas
reguladoras (deliberaes sobre poltica
econmica, monetria, cambial,
tributria, etc.) so transferidas para
administraes supranacionais, que
aparecem como as guardis de uma
racionalidade superior, imunes s
perverses, limites e tentaes
alegadamente presentes nos sistemas
polticos identificados com os Estados
nacionais.
Reparemos bem nisso: a ideologia
neoliberal prega o desmantelamento das regula-
es produzidas pelos Estados nacionais, mas
acaba transferindo muitas dessas regulaes
(produo de normas, regras e leis) para uma
esfera maior: as organizaes multilaterais
como o G-7, a OMC, o Banco Mundial, o FMI,
dominadas pelos governos e banqueiros dos
pases capitalistas centrais. Durante os sculosXIX e XX, os movimentos trabalhistas haviam
lutado para conquistar o voto, o direito de
organizao e, assim, influir sobre a elaborao
de polticas, definio de leis e normas. Agora
que conquistaram esse voto, o espao em que
ele se exerce esvaziado em proveito de um
espao maior, mundializado, onde eles no
votam nem opinam.
Essa situao mereceu um comentriointeressante de Andr Gorz:
Jamais o capitalismo havia conseguido
se emancipar to completamente do poder
poltico. Mas preciso acrescentar que os
estados que ele ataca so os Estados
nacionais. E que ele s consegue domin-
los colocando em cena um Estado
supracional, onipresente, que possui suas
prprias instituies, aparelhos e redes
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[...]. Com o Estado supracional do capital
aparece pela primeira vez um Estado
emancipado de toda territorialidade e cujo
poder, ainda que se imponha aos estados
territorializados a partir de fora, no recria
fora deles um outro lugar para a poltica.
Pelo contrrio, ele independente e
separado de toda sociedade, situado em
um no-lugar, a partir do qual ele limita e
regulamenta o poder das sociedades de
dispor de seu lugar. Sem base social nem
constituio poltica, ele um puro
aparelho que expressa o direito do capital
mundializado. Poder sem sociedade, ele
tende a engendrar sociedades sem poder,
coloca em crise os Estados, desacredita a
poltica, submete-a s exigncias de
mobilidade, de "flexibilidade", de
privatizao, de desregulamentao, de
reduo dos gastos pblicos, dos custos
sociais e dos salrios, todas essas coisaspretensamente indispensveis ao livre jogo
da lei do mercado.13
Terremotos no mundo do trabalho
Dentro de tal quadro, qual o perfil do
novo mundo produtivo que se delineia? O que
desaparece e o que emerge no mundo do
emprego, por exemplo? Em seu livro JobsShift14, o consultor de administrao William
Bridges aponta o caminho das penitncias, com
o fim do assalariamento clssico, da lgica do
132 Andr Gorz, Mislres du prsent - richesse dupossible, trad. do autor (Paris: Galile, 1997),pp. 30-31.
14William Bridges,Jobs Shift. H traduobrasileira:Mudanas nas relaes de trabalho (So
Paulo: Makron Books, 1995).
emprego permanente, dos acordos e
regulamentos protetores, dos salrios
calculados automaticamente a partir de
convenes coletivas detalhadas.
A seu ver, novas formas de organizao
do trabalho e da empresa fariam generalizar-se
outras noes: autonomia; gesto e contratao
flexveis; ajustes permanentes na durao e na
qualidade do trabalho; vnculo estrito entre
salrio e desempenho; individualizao das
remuneraes; percursos profissionais no
padronizados (os chamados ziguezagues na
histria de vida profissional).
Desapareceria a distino hoje muito
ntida entre organizao (empregador) e indiv-
duo (empregado), e o novo mundo seria
povoado de novos agentes econmicos,
"patres de si mesmos". Adeus ao proletariado,
diriam eles. Grandes empresas produtivas
transformar-se-iam em ncleos gestores mais
ou menos enxutos, em torno dos quaisorbitariam "competncias externas" de
indivduos e pequenos grupos "parceiros",
terceirizados.
Uma nova ideologia est associada a
essas mudanas. Nessa nova moral, o socorro
misria absoluta talvez ainda permanea como
valor coletivo. Mas cada vez mais separada da
noo de seguridade, que deve antes ser vista
como um fenmeno privado, envolvendopoupana, investimento e capitalizao,
previdncia enfim, no sentido estrito do termo.
Nesse novo mundo moral, quem prev, ter -
quem no prev... Multiplicar-se-iam as
adeses a organizaes intermedirias no
governamentais, cada vez mais empenhadas na
soluo privada e setorizada de problemas
relativos a educao, a polticas de amparo
pobreza absoluta, habitao, sade, atividades
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culturais, etc. - atividades e servios antes
cobertos por organismos polticos submetidos a
votaes (nacionais ou locais). A "comunidade
solidria", a filantropia e a caridade aparecem
como complemento das tais "reformas
orientadas para e pelo mercado". Tudo isso est
nos relatrios do Banco Mundial e de outros
organismos de "monitorao externa". Sem
muito mistrio.
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As trs grandes escolas do pensamento neoliberal
Podemos dizer que o pensamento
neoliberal desdobrou-se, no ps-guerra, em
algumas linhas ou variantes. Trs delas so
mais claramente definidas, embora uma quarta,
a dos "anarco-capitalistas" ou minimarquistas,
como Robert Nozick, devesse ser lembrada.
Mas as trs principais so, pela ordem das
"datas de nascimento":
1) escola austraca, liderada por
Friedrich August von Hayek, o
patrono de todo o pensamento
neoliberal contemporneo;15
2) escola de Chicago, personificada em
T. W. Schultz e Gari Becker
(ligados teoria do capital
humano) e principalmente Milton
Friedman (1912- ), o grande
homem de mdia dessa escola;16
3) escola de Virgnia ou public choice,
capitaneada por James M. Buchanan
(1919- ).
Friedrich A. von Hayek
O grande nome da corrente neoliberal
15' Para um estudo mais especfico do pensamento deHayek, ver meuHayek e a teoria poltica doneoliberalis rro econmico 1,1, Coleo TextosDidticos (Campinas: IFCH/Unicamp, 1999).16Alguns dos mais importantes textos de "difuso"da doutrina foram publicados no Brasil, entre elesos trs livros de Milton Friedman: Liberdade deescolhei; trad. Ruy Jungman (Rio de Janeiro:Record, s/d.), Capitalismo e liberdade, trad.Luciana Carli (So Paulo: Nova Cultural, 1985) eAtirania do status quo, trad. Ruy Jungman (Rio de
Janeiro: Record, s/d.).
sem dvida Friedrich August von Hayek (1899-
1992). Herdeiro da chamada escola austraca de
economia, o pensamento de Hayek um
descendente das reflexes de Carl Menger
(1840-1921) e da posio ardorosamente
antiestatista e anti-socialista de Ludwig von
Mises.
Uma data marcante na vida intelectual
de Hayek 1937, quando seu ensaio-
conferncia Economics and Knowledge assinala
a sua mudana de campo das matrias mais
tcnicas da cincia econmica para temas
prximos da epistemologia, do direito, da
cincia poltica. Hayek comea a elaborar
aquilo que considera sua idia mais importante,
a concepo de "ordem espontnea": o modelo
das decises descentralizadas e do
conhecimento disperso, que considera como umideal de otimizao no uso dos recursos, da
gerao de relaes sociais livres, harmnicas e
dinmicas. E tambm desse modelo que deriva
a afirmao da impossibilidade do
planejamento, utopia fundada, a seu ver, na
quimera de um conhecimento centralizado que
supostamente orientaria aes centralizadas.
Esse modo de ver o mundo social
compartilhado por praticamente todas ascorrentes neoliberais. Em que consiste?
Vejamos isso com um pouco mais de detalhe.
O mercado , nessa viso, um processo
competitivo de descoberta. Nele, inumerveis
indivduos movem-se orientados pelos seus
interesses prprios. O mercado a combinao
desses planos e atividades individuais de
produtores e consumidores. Os elementos
motores desse mundo so a funo
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empreendedora do indivduo e a concorrncia,
no interior de uma complexa diviso social do
trabalho. A ordem do mercado produto das
atividades dos indivduos, mas no do desgnio
nem da deliberao de ningum em particular.
No resultado de uma razo, em sentido
estrito. Alis, todas as instituies econmicas,
polticas e culturais positivas so resultados de
uma evoluo espontnea. Haveria um processo
seletivo, meio darwinista ou lamarquiano, em
que formas de organizao social competiriam
entre si. Elas seriam comparadas e adotadas
pelos grupos humanos conforme sua opero-
sidade e eficincia. Os participantes do
mercado tomam decises olhando o sistema de
preos do mercado livre - assim que ajustam a
todo momento seus planos de produo e de
consumo. Graas a esse ambiente se dissemina
o conhecimento sobre quais bens esto
disponveis, quais so escassos, quanto custam,
quais podem ser combinados nesta ou naquelaocasio, etc. Sem essa liberdade de iniciativa
descentralizada, esse mundo enorme de
conhecimentos no estaria disponvel para os
indivduos, os agentes econmicos, nem
poderia ser utilizado plenamente. Uma
sociedade livre, sem planejamento e sem
coero estatal, utiliza mais conhecimento e,
portanto, mais flexvel, eficiente, livre, plural
e criativa. Essas idias so elaboradas porHayek j nos anos 30, como base de sua defesa
do liberalismo e como instrumento de ataque
planificao e ao intervencionismo estatal.
Em 1944, Hayek edita seu mais
conhecido manifesto poltico, 0 caminho da
servido. Contudo, os tempos ainda eram
favorveis a Keynes, com quem Hayek tivera
um malsucedido entrevero nos anos 30. 0
tratado em que expe mais extensa e
detalhadamente as convices jurdicas e
polticas de "velho liberal", The Constitution of
Liberty (1960), ainda emerge nesse clima,
amplamente simptico ao welfare state (Estado
de bem-estar social). Apenas no final dos anos
70 ele deixa de ser visto como um excntrico
ou marginal. New Studies in Philosophy,
Politics, Economics and the History of Ideas
(1978) e Law, Legislation and Liberty (1982)
j encontram ambiente menos hostil e
assumem um tom claramente menos defensivo.
Seu ltimo livro, The Fatal Conceit (1988) ,
com toda a certeza, o mais agressivo e
fundamentalista - quase religioso - na defesa
da economia de mercado.
A segunda parada em nosso roteiro a
Universidade de Chicago. Nas primeiras
dcadas do sculo, o Departamento de
Economia dessa universidade ostentara entre
seus quadros nomes do porte de Jacob Viner,
Frank Knight, Henry Simons. Nos anos 40, aescola passa para a liderana de T. W. Schultz,
celebrizado pelos seus estudos sobre
agricultura e educao (a teoria do capital
humano). E ainda nessa
poca que ala vo a carreira acadmica
de Milton Friedman. Depois dos anos 50, a
viso de Friedman e George Stigler torna-se
hegemnica. Contudo, no currculo de Chicago
figura ainda um outro item, impossvel deesquecer. No final dos anos 50, seus
economistas firmaram acordos de cooperao
com a Universidade Catlica do Chile,
iniciando uma metdica e bem-sucedida
operao de transplante ideolgico. Atravs
desse acordo foram treinados os economistas
que mais tarde viriam a ser quadros dirigentes
do governo Pinochet (1973-1989), no primeiro
grande experimento neoliberal "a cu aberto".
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Fora dos livros, na prtica poltica efetiva, os
"Chicago Boys" de Pinochet anteciparam
procedimentos que iriam ganhar relevncia
mundial nos anos 80, sobretudo com os
governos Reagan e Thatcher.
O terceiro elemento de nossa histria -
ltimo mas no menos importante - aparece
com James M. Buchanan, principal nome da
chamada escola de Virgnia. Em 1957,
Buchanan lidera a fundao do Thomas
Jefferson Center for Studies in Political
Economy, na Universidade de Virgnia, que d
lugar logo depois ao Center for Study of Public
Choice, no Virginia Polytechnick Institute
(1969-1982), transplantado em seguida para a
George Mason University, em Fairfax. Desde
ento, a public choice vem se tornando
importante referncia intelectual para as
reformas neoliberais. Em The Calculus of
Consent (1962), Buchanan e Tullock definem
seu tema: estender as premissas damicroeconomia ao comportamento poltico dos
indivduos. Em outros termos, dizem que os
fenmenos macropolticos teriam
microfundamentos no comportamento
individual. Deveramos portanto descobrir o
modo pelo qual interesses diferentes e
conflitantes so reconciliados, ou agregados,
numa "escolha coletiva". Na sua anlise das
instituies polticas, Buchanan faz umaimportante distino entre as escolhas coletivas
feitas dentro de certas regras e a escolha das
prprias regras nas quais as primeiras se
efetivam. O estudo dos enquadramentos
institucionais teria resultados aplicados:
definiria quais as regras de deciso e
ordenamento social e poltico que menos
precisam de coero e de condicionamentos
ticos (boa vontade, altrusmo, etc.), aplicando-
se portanto aos homens "como eles realmente
so".
A linha explorada por essa escola, a
"anlise econmica da poltica", tem alguns
importantes ancestrais recentes: J. A.
Schumpeter, com Capitalism, Socialism and
Democracy (1942); Kenneth Arrow, com Social
Choice and Individual Values (1951); Anthony
Downs, comAn Economic Theory of
Democracy (1957). Mas o livro que de certo
modo "funda" a escola o citado The Calculus
of Consent, de James Buchanan e Gordon
Tullock. Cabe ainda mencionar um ensaio
muito influente nessa direo, publicado alguns
anos depois: The Logic of Collective Action
(1965), de Mancur Olson.17
Veremos no prximo captulo mais
detalhes dessa viso de mundo que deu voz e
forma a muitas imagens e idias do pensamento
neoliberal de nossos dias.
Mtodos e pressupostos dapublic choice
Vejamos quais so as principais idias
da escola de pensamento neoliberal conhecida
comopublic choice. Seus argumentos, imagens
e bandeiras polticas tm sido o centro de
influentes confrontos ideolgicos recentes. Eles
podem ser encontrados nas imagens e exemplos
utilizados na mdia, em muitos editoriais eartigos polmicos a respeito de temas como a
privatizao, a desregulamentao e as polticas
pblicas. Esto presentes tambm nos relatrios
e documentos que o Banco Mundial vem
emitindo, desde os anos 80, sobre as politicas
17 Os livros de Downs e Olson foramrecentemente traduzidos e publicados pela
Edusp, 1999.
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sociais na Amrica Latina, por exemplo.
At o incio dos anos 80, o economista-
chefe do Banco Mundial era Hollis Chenery,
um "desenvolvimentista" doutorado em
Harvard que sustentava um ponto de vista
favorvel planificao do crescimento
econmico e dirigia o departamento de pesquisa
do banco. Chenery foi ento substitudo por
Anne Krueger, liberal entusiasta vinda da
Universidade de Minnesota e uma das criadoras
da teoria da rent-seeking (que veremos mais
adiante). O modelo da rent-seeking society
tornou-se o instrumento predileto da public
choice para caracterizar politicas pblicas,
regulaes estatais e estratgias macroeco-
nmicas. O departamento de pesquisa e
os documentos analticos do Banco foram
penetrados pelo jargo e pelos procedimentos
da escola.18'
O comportamento poltico a partir dosmodelos da microeconomia
A public choice procura analisar a
poltica, a histria, o comportamento social e as
estruturas legais e constitucionais utilizando os
mtodos e pressupostos da microeconomia
neoclssica. Seus pontos de partida so aqueles
estabelecidos por essa vertente terica desde o
sculo XIX:18 A ttulo de exemplo, ver Nancy Birdsall &Richard H. Sabot (orgs.), Opportunity Foregone:Education in Brazil (Washington: BancoInteramericano de Desenvolvimento, 1996);Shahid Javed Burki & Gillermo E. Perry, Beyondthe Washington Consensus: Institutions Matter(Washington: Banco Mundial, 1998); NancyBirdsall & Estelle James, Efficiency and Equity inSocial Spending (Washington: Banco Mundial,
1990).
o homem econmico, dotado de uma
racionalidade calculadora, que procura
obter o mximo de resultados a partir dos
recursos escassos de que dispe;19
as escalas de preferncias e valores
desse indivduo e a sua "lgica da escolha";
as condies da chamada concorrncia
perfeita: os indivduos so atomizados, a
informao razoavelmente distribuda e os
bens so relativamente homogneos, de
modo que o sistema se aproxima de um
modelo auto-ajustado.
A partir desses pressupostos - os quais,
repita-se, estendem as premissas da
microeconomia explicao e previso do
comportamento poltico dos indivduos -, torna-
se possvel, por um procedimento basicamente
dedutivo,
compreender o modo pelo qual interesses
diferentes e mesmo conflitantes so
reconciliados, ou agregados, numa "escolhacoletiva";
desenvolver o "estudo das propriedades
operatrias de conjuntos alternativos de
regras polticas", um estudo comparativo (e
portanto, em ltima anlise, avaliativo) dos
diferentes (e alternativos) sistemas de
deciso poltica, dentro dos quais se do as
escolhas e se revelam as preferncias;
prever as conseqncias de cada umdesses sistemas ou aparatos (tipo de
sociedade e economia que geram e
problemas da resultantes);
19 Segundo Dennis Mueller: "O pos tuladocomportamental bsico da public choice, talcomo na economia, que o homem egosta,racional e maximizados de utilidade". Dennis C.Mueller, Public Choice II (Cambridge: Cambridge
University Press, 1989), pp. 1-2.
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definir dispositivos constitucionais
superiores (mais democrticos, ou mais
"eqitativos", mais eficientes, etc.); e, por
oposio,
expor os defeitos da ordem atual
(Estado de bem-estar, intervencionismo,
demo-
cracia ilimitada e baseada no voto
majoritrio, nos grupos de interesse, etc.)
O funcionamento da ordem de mercado
visto como um paradigma, um modelo de
funcionamento para as outras instituies
sociais. Assim, a pretenso desses analistas
descobrir quais as regras constitucionais que,
no plano das decises coletivas (no-mercado),
mais se aproximam da perfeio exibida por
essa ordem (a do mercado). E o que chamam de
"economia constitucional", uma nova teoria do
contrato social, que propicie uma reconstruo
da ordem social e poltica.
Como dissemos, o estudo dosenquadramentos institucionais teria resultados
aplicados: definiria quais as regras de deciso e
ordenamento social e poltico que menos
precisam de coero e de condicionamentos
ticos (boa vontade, altrusmo), aplicando-se
aos homens "como eles realmente so". Ou, se
quisermos usar o clich que se apresenta na
polmica mais imediata: mais mercado, menos
Estado.
Rent-seeking a sociedade de predadores
em que todos perdem
Vejamos um pouco mais dessa
preocupao examinando a estrutura estilizada
de um de seus temas prediletos, o da sociedade
de rent-seeking (captura de rendas).
Segundo essa "teoria", o
intervencionismo estatal propicia "situaes de
renda", ou seja, posies na sociedade que
permitem a um agente (indivduo, empresa,
grupo) capturar vantagens superiores quelas
que obteria no mercado, no reino dos preos e
"custos de oportunidade". So, em suma,
vantagens de posio favorecidas por artifcios
legais. Da decorrem dois males, ou
perverses: esses agentes investem seus
esforos e recursos mais na busca predatria de
privilgios do que em aumentar o produto
global; os "tomadores de deciso", na
administrao pblica, so "ofertadores de
rendas", isto , empregos ou legislao em
troca de benefcios monetrios (corrupo) ou
apoio poltico.
Percebamos em detalhe o encadeamento
lgico.
Em primeiro lugar, afirma-se que os
instrumentos regulatrios (interveno
poltica na economia) quase fatalmente geramoportunidades para rent-seeking e outras
deformaes. Da, evidencia-se a necessidade
de evitar a criao de tais instituies
interventoras-reguladoras (ou desmantel-las,
quando existentes) e limitar a "democracia
majoritria" em vigor, que vulnervel a tais
lutas predatrias (podendo at mesmo
estimul-las). Isto pode ser feito por diversos
caminhos, como: reduzindo ou qualificando o acesso ao
voto;
impondo clusulas constitucionais ptreas
que cerceiem drasticamente as
deliberaes do legislativo e da
administrao (executivo);
dando ao judicirio (ou a algum agente que
esteja acima das disputas partidrias,
fracionais ou corporativas) poderes para
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limitar ou revogar decises dos eleitores
(ou dos legisladores-representantes)
com base em uma "racionalidade" mais alta
(que esse agente privilegiado teria
autoridade para definir).
Vejamos essa argumentao de outro
ngulo. Nossos autores diriam:
1) 0 paradigma dominante dos
procedimentos de deciso poltica a
votao pelo princpio majoritrio.
2) Esses procedimentos levam a resultados
ilgicos (circulares ou caticos), perversos
(produzem o oposto do que se busca) e
injustos (provocam confiscos e rapinas). E
geram ineficincias: a legislao resultante
torna artificialmente rentveis atividades
"naturalmente" absurdas, distorcendo ou
esterilizando os efeitos positivos da
alocao de esforos e recursos atravs da
competio no mercado.
3) 0 resultado uma sociedade de "somanegativa", uma sociedade que anda para trs. O
mundo poltico, nessa perspectiva, tem pelo
menos cinco vcios bastante claros:
refora o poder dos que j esto por
cima;
permite e/ou estimula a manipulao
dos programas e das aes pblicas;
supe, aumenta e explora a ignorncia
dos eleitores; dominado por grupos de interesses
organizados;
favorece a "troca de favores" no
legislativo, etc.
Veja-se esta passagem de Buchanan, em
que se casam elementos relativos ao mtodo, ao
diagnstico/prognstico relativo situao de
rent-seeking (aplicao do mtodo) e,
finalmente, uma dimenso normativa (uma
poltica para a situao):
A noo bsica muito simples e, mais
uma vez, representa a transferncia da teoria
standard de preos para a poltica. Da teoria
de preos aprendemos que os lucros tendem
a se igualar, devido ao fluxo de
investimentos entre diferentes
oportunidades. A existncia ou aparecimento
de uma oportunidade de obteno de lucros
diferencialmente mais elevados atrair
investimentos at que os retornos se
equalizem em relao queles genera-
lizadamente disponveis na economia.
Portanto, o que deveramos prever quando a
poltica cria oportunidades de lucros, ou
rendas? O investimento ser atrado em
direo a essas oportunidades [...] e
engendrar tentativas de obter acesso s
rendas. Quando o Estado licencia uma
profisso, quando atribui cotas de
importao e exportao, quando alotafaixas de TV, quando adota planejamentos
quanto ao uso do solo, podemos esperar que
haver desperdcio de recursos em
investimentos destinados a assegurar a fatia
favorecida. [...] Como a expanso moderna
do governo oferece mais oportunidades para
a criao de rendas, devemos esperar que o
comportamento maximizador de utilidade
dos indivduos leve-os a desperdiar maisrecursos na tentativa de assegurar "rendas"
ou "lucros" prometidos pelo governo.20
O oposto desse mundo "viciado" da
poltica o mundo governado pelo mercado,
que segundo esses autores minimizaria os
20 [James Buchanan, "The Economic Theory ofPolitics Reborn", em Challenge, 31 (2), trad. do
autor, 1988, p. 8.]
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defeitos acima mencionados. Talvez aqui, como
exerccio de pensamento, o leitor possa voltar
aos itens mencionados (os cinco vcios da
poltica) e imaginar, em contrapartida, as
virtudes do mercado.
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Neoliberalismo e bens pblicos
As escolhas no mundo do no-mercado
O que tm a dizer os neoliberais sobre o
universo dos bens pblicos e servios
coletivos?
Registremos um ponto de vista
dominante nos anos de reconstruo do ps-
guerra. Durante vrias dcadas, Introduo ei
anlise econmica, o celebrado livro de Paul
Samuelson, foi (ou ainda ) o catecismo das
classes escolares de economia. Nele, o autor
apresenta a economia como uma doutrina mais
ou menos acabada e um mtodo de resoluo de
problemas. Ambos so construdos a partir de
uma afirmao de base: toda sociedade precisa
resolver um problema sintetizado em trs
perguntas: o que produzir, como e para quem.
Os procedimentos para a tomada de deciso
deveriam conduzir portanto, em primeiro lugar,a uma determinada agregao de preferncias,
uma transformao das mltiplas preferncias
individuais em decises coletivas.
Conseqentemente, levariam a uma correspon-
dente alocao e distribuio dos recursos.
A partir da, Samuelson descreve as
sociedades atuais do Ocidente como economias
mistas nas quais o problema equacionado e
resolvido por dois grandes algoritmos,dispositivos de resoluo de diferenas: o
mercado, ou sistema de preos, e o aparato de
deciso poltica (cujo modelo puro o voto).
Quanto ao mercado, a sua definio
lapidar e entusiasta:
Um sistema competitivo um esmerado
mecanismo para a coordenao inconsciente
atravs de um sistema de preos e mercados,
um dispositivo visando combinao do
conhecimento e das aes de milhes de
indivduos diversos. Sem contar com uma
inteligncia central, resolve um dos mais
complexos problemas que se possa imaginar,
envolvendo milhares de variveis e relaes
desconhecidas.21
Nesse modelo tambm usual a
imagem do mercado como referendo
permanente22. Ou seja, atravs da procura, os
consumidores manifestam sua vontade e
direcionam o sistema produtivo: definem quais
bens e servios sero produzidos, quantos e
quando. E uma espcie de plebiscito invisvel.
Nele, os indivduos possuem um nmero
desigual de votos, corporificados em cdulas de
dinheiro. Atravs dessas notas, tomam decises.
A apurao dos votos, ou seja, o escrutnio das
necessidades e demandas sociais, feita pelomercado. Supe-se a que os indivduos devem
pagar pelo bem que desejam. Ou seja: votar no
mercado-plebiscito, com as cdulas de que
dispem. Aplica-se nesse caso o chamado
princpio de excluso: quem no paga... no
pega.
Com os bens pblicos, contudo, nem
sempre o princpio de excluso pode ser
aplicado eficientemente, ainda que em certoscasos pudesse s-lo. Pode-se cobrar do cidado
o espao que ocupa no seu passeio pelos
parques, ou o tempo em que permanece sentado
nos bancos da praa, ou o benefcio da
iluminao das ruas.
21' Paul Samuelson,Introduo anliseeconmica, vol. 1 (So Paulo: Agir, 1973), p. 67.22Ibid.,p.91
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Na tradio econmica representada
por Samuelson, um lugar especial caberia aos
bens pblicos, devido a alguns fenmenos:
impossibilidade de aplicar o princpio
de excluso;
monoplios naturais (impossibilidade
tcnica de contar com dois ofertadores do
mesmo bem num mesmo espao);
economias de escala e "conjuno" de
oferta (oferta e custos so fixos ou pelo
menos no linearmente proporcionais ao
nmero de clientes);
externalidades (efeitos, positivos ou
negativos, no computveis e portanto no
"cobrveis" de determinadas atividades).
Como o consumo dos bens pblicos no
depende clara e diretamente do pagamento -
que o voto vlido no mercado -, as
preferncias dos consumidores e usurios no
so reveladas atravs de gastos efetivos,
individualizveis e visveis a olho nu. Emoutras palavras, os economistas reconheciam a
a existncia de atividades geradoras de
beneficios que no podem ser comercializados
(e registrados em escalas de preos) porque
seria impraticvel confin-los a agentes
individuais.
No h, nesse caso, demanda no sentido
estrito. H contudo uma pseudodemanda, um
quase-mercado. Qual o procedimento vivelpara verificar essas preferncias, para fazer com
que se revele essa curva de pseudodemanda?
Ela se revelaria mediante um processo poltico -
voto, presses, motins, barricadas - e no por
mecanismos de mercado. Enquanto neste
ltimo havia demanda em sentido estrito e voto
em sentido lato, no caso dos bens pblicos h
demanda em sentido lato e voto em sentido
estrito. Nesse caso, as preferncias apareceriam
sob a forma de programas em disputa numa
determinada arena poltica.
No primeiro caso, a escolha (eleio)
era revelada por um simulacro do voto ou
referendo - ou, na metfora neoliberal
extremada de Von Mises, pelo verdadeiro e
legtimo referendo, o das trocas, usurpado pelo
falso, o da democracia poltica. Cada
consumidor vota com um nmero incerto de
cdulas e desse modo determina o que a
sociedade vai ser, para onde vai se inclinar a
configurao produtiva, isto , quantos e quais
efetivamente viro a ser os sapateiros,
aougueiros, padeiros, cervejeiros, etc. Compra
literal, votao metafrica. No caso dos bens
pblicos, analogamente, mas invertendo os
termos, teramos um simulacro do mercado
(uma quase demanda) e um real processo de
votao.
Rumo ao mercado e ao quase-mercado
A public choice nasce justamente do
estudo da diferena entre esses dois universos e
da tentativa de conduzir um deles ao modo
operativo do outro - tornar as "decises no-
mercado" mais prximas das "decises do tipo
mercado", como diz Buchanan. Por isso,
peculiar a maneira como essa escola de
pensamento interpreta e contesta a situaodescrita por Samuelson. Aceita, desde logo, a
distino entre os dois mecanismos de
manifestao e agregao das preferncias:
1) Mercado - o mundo das escolhas
individuais, das iniciativas descentralizadas.
Nele, a preferncia revela-se pela adeso (ou
abandono) do cliente a um fornecedor, pela
substituio de um bem/servio por outro, etc.
2) Poltica - o terreno das escolhas e
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decises coletivas, das iniciativas
centralizadas, dos espaos, bens e servios
compartilhados ou consumidos em comum.
Aqui, a preferncia revela-se pelo apoio ou
veto a programas polticos.
No mercado, temos um referendo
permanente, silencioso, impessoal e de imediata
apurao. Na poltica, um referendo que se
realiza apenas de tempos em tempos,
personalizado, ruidoso e de suspeita eficincia
(circularidade, apurao mais vulnervel
fraude, etc.). Equacionados desse modo os
termos do problema, a pergunta que nossos
neoconservadorers fazem tem uma resposta em
grande medida j preparada: nesse terreno, o
das escolhas sobre bens pblicos e aes
coletivas, ser possvel criar instituies e
mecanismos que emulem o mercado? Seria
melhor que assim fosse - ento... como fazer
para que assim seja?
Para justificar suas propostas, comeampor observar o seguinte: alguns bens tidos
usualmente como pblicos no so
necessariamente pblicos, ou no precisam ser
obrigatoriamente pblicos nem inteiramente
pblicos. Os advrbios apontam a sada.
1) Em muitas situaes pode-se
individualizar o usurio (consumidor ou
cliente) e cobrar pelo acesso ao bem - o caso
dos servios educacionais. Aqui, trata-seclaramente de substituir um mecanismo de
manifestao das preferncias - as decises
polticas - por outro mais eficiente e confivel,
o mercado. Em vez de uma poltica pblica de
educao, deixa-se que os indivduos faam a
sua poltica de educao no mercado de
servios escolares. Um "subcaso" pode ser
previsto nessa alternativa. Mesmo que se queira
- por algum motivo tico ou poltico - garantir o
acesso a esse bem para indivduos que no o
podem comprar, no necessariamente a
proviso do bem deve coincidir com a
produo23.
2) Com relao a casos menos claros,
possvel optar por outra estratgia - tornar
locais a produo e/ou distribuio de
determinados bens e servios antes oferecidos
num mbito regional ou nacional e, desse
modo, segmentar ou "particionar" a cidadania
para tornar mais "competitiva" a oferta dos
bens e servios. Viabiliza-se para o cidado,
aqui j convertido em usurio ou consumidor, a
escolha entre fornecedores, criando situaes
que permitam este tipo de comportamento, a
resposta a este tipo de alternativa: "Se voc
quiser essa cesta de bens, a esse preo, v para
a cidade X; se quiser outra configurao v para
a cidade Y". Enfim, viabiliza-se a existncia de
estruturas, regras e p