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TIA CIATATIA CIATATIA CIATATIA CIATA e a Pequena frica no Rio de Janeiro
Heitor dos Prazeres. Batuque no samba. 1965. leo s/tela, 63x50 cm. In: Cinqenta anos de samba. Calendrio Pirelli, 1968.
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Cesar Maia
SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA
Helena Severo
DEPARTAMENTO GERAL DE DOCUMENTAO E INFORMAO CULTURAL
Graa Salgado
DIVISO DE EDITORAO
Heloisa Frossard
CONSELHO EDITORIAL
Graa Salgado (presidente), Margareth da Silva Pereira,
Renato Cordeiro Gomes, Alexandre Mendes Nazareth,
Heloisa Frossard, Margarida de Souza Neves, Paulo Elian
dos Santos, Anna Maria Rodrigues, Lygia Marina Pires de
Moraes, Heloisa Buarque de Hollanda e Beatriz Resende.
TIA CIATA e a Pequena frica
no Rio de Janeiro
Roberto Moura
1995 2 Edio
revista pelo autor
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro Secretaria Municipal de Cultura
Departamento Geral de Documentao e Informao Cultural Diviso de Editorao
Coleo BIBLIOTECA CARIOCA Volume 32 Srie publicao cientfica Organizadora Heloisa Frossard 1995 by Roberto Moura Printed in Brazil /Impresso no Brasil ISBN 85-85632-05-4 Capa e projeto grfico da coleo
Heloisa Frossard Equipe de editorao
Clia Almeida Cotrim, Diva Maria Dias Graciosa, Paulo Roberto de Arajo Santos e Rosemary de Siqueira Ramos
Pesquisa ngela Nenzy, Cida Dacosta e Elizabeth Formaggini
Reprodues fotogrficas Antnio Luis Mendes Soares, Henrique Sodr e Roberto Machado Junior
Gravaes Paulo Baiano Fortes
1 Edio: 1983; FUNARTE, Coleo MPB. Instituto Nacional de Msica/ Diviso de
Msica Popular Monografia vencedora do concurso sobre a vida e obra de Tia Ciata promovido pela FUNARTE. Comisso julgadora: Trik de Souza, Ary Vasconcelos, Lygia Santos, Paulo Tapajs, Ana Maria Bahiana e Albino Pinheiro. Agradecimento especial: IBAC/FUNARTE pela cesso dos fotolitos das imagens catalogao: Diretoria de Bibliotecas C/DGDI
Moura, Roberto, 1947- M929
Tia Ciata e a Pequena frica no Rio de Janeiro/Roberto Moura. 2 edio Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Diviso de Editorao, 1995.
178 p.: il. (Coleo Biblioteca Carioca; v. 32. srie publicao
cientfica)
1. Negros Rio de Janeiro (RJ). 2. Tia Ciata. 3. Almeida, Hilria Batista Biografia. 4. Msica popular brasileira Rio de Janeiro (RJ) Histria e crtica. 5. Abolio Brasil. I. Ttulo. IL Srie.
CDD 305.89608153 CDU 816.356.4(815.3-96)
Diviso de Editorao C/DGDI rua Amoroso Lima n 15, sala 112 Cidade Nova 20211-120 Rio de Janeiro RJ Telefone (021) 273-3141 Telefax (021) 273-4582
ORELHAS DO LIVRO Roberto Moura focaliza um Rio de Janeiro subalterno,
eventualmente marginal, indefinido, a partir da virada do ltimo
sculo, que teria particular expressividade no engendramento da
identidade moderna da cidade. Ao lado da histria de Tia Ciata e
da dispora baiana no Rio, um trabalho de contexto que inter-
relaciona e desvenda esta cidade, em contrapartida quela que se
civiliza no Centro e na Zona Sul, redefinida pela reforma do prefeito
Pereira Passos. Abrindo a obra com um painel da situao poltica
nacional, quando da Abolio e do advento da Repblica, o autor
traa o roteiro da vinda dos negros de Salvador para o Rio de
Janeiro, uma histria possvel, uma histria banal, sublime,
vergonhosa. E mostra como a colnia baiana se impe no mundo
carioca, em torno de seus lderes vindos dos postos do candombl e
dos grupos festeiros, cuja influncia se estenderia a toda a
comunidade heterognea que se formou nos bairros, em torno do
cais do porto e depois na Cidade Nova, tocada pelas
transformaes urbanas.
So revisitadas figuras lendrias como Hilrio, o mais
fecundo fundador de ranchos e sujos do Carnaval carioca; a casa
de candombl de Joo Alab, com as tias Amlia, me de Donga,
Perciliana, me de Joo Baiana, e a mais famosa de todas, Tia
Ciata, cuja casa se tornar a capital na Pequena frica, em torno
da Praa Onze.
Mais do que em qualquer cidade brasileira, a diversificao
da vida e o ritmo cosmopolita do Rio de Janeiro permitiriam que
certos hbitos musicais dos negros se encontrassem com a msica
ocidental de feio popular. O maxixe e o seu sucessor, o samba,
acharam terreno propcio na Cidade Nova: festeiros baianos,
msicos e compositores negros, em processo de profissionalizao,
e empresrios da catica vida noturna da cidade criariam as
formas da cano popular carioca, antecedendo uma gerao de
compositores que, junto com burgueses de Vila Isabel, depois de
1930, fariam a poca de ouro da msica popular brasileira.
Assim definida por uma densa experincia scio-cultural,
quase sempre omitida pelos meios de informao da poca,
sedimenta-se, j no fim da Repblica Velha, uma verdadeira cultura
popular carioca, que se mostraria, ao lado dos novos hbitos
civilizatrios das elites, fundamental na redefinio do Rio de
Janeiro e na formao de sua personalidade moderna.
Fruto do encontro de uma
fluminense com um paraense no Rio
de Janeiro, Roberto Moura, pai de
Pedro e Alice, tricolor.
Cineasta, dirigiu e produziu na
Corisco Filmes, desde os anos 70,
firmemente sediada na praa
Tiradentes, uma linha de
documentrios que lanam olhar
potico-antropolgico sobre a cidade,
abordando as repercusses da modernidade no povo negro e sua
expresso atravs da indstria cultural. Filmes e livros, como os
escritos e filmados sobre Tia Ciata e Cartola.
Nos anos 80, comeou a experimentar a fico numa srie de
trabalhos que desembocaram num filme protagonizado por
Grande Othelo, uma biografia precoce de uma gerao ps-
Cinema Novo. Esse longa foi sua tese em Cinema no doutorado da
Escola de Comunicao e Artes da Universidade de S. Paulo,
depois de ter se graduado e feito o mestrado na Escola de
Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro. , h
alguns anos, professor do Departamento de Cinema e Vdeo da
Universidade Federal Fluminense, e com a equipe temperada por
profissionais e alunos que est realizando seus novos projetos:
uma pesquisa sobre a representao do Rio no cinema e um novo
filme que, novamente da Tiradentes, busca a cidade.
SUMRIO
NOTA DO AUTOR
APRESENTAO 1 EDIO
ABOLIO & REPBLICA: A SITUAO POLTICA NACIONAL
DE SALVADOR PARA O RIO DE JANEIRO
O RIO DE JANEIRO DOS BAIRROS POPULARES
VIDA DE SAMBISTA E TRABALHADOR
GEOGRAFIA MUSICAL DA CIDADE
A PEQUENA FRICA E O REDUTO DE TIA CIATA
AS BAIANAS NA FESTA DA PENHA
A POLMICA DO PELO TELEFONE
AS TRANFORMAES NA COMUNIDADE NEGRA E A VIDA NO RIO DE JANEIRO NO INCIO DO SCULO
LBUM DE FAMLIA
LEMBRANAS, IMPRESSES & FANTASIAS
BIBLIOGRAFIA
NOTA DO AUTOR
Uma oportunidade de reescrever algumas partes e
acrescentar coisas do que se conversou ou publicou nesses dez
anos que separam a primeira desta edio. E de trazer no captulo
GEOGRAFIA MUSICAL DA CIDADE ponto partida para o
trabalho que escrevo agora sobre o nascimento e a peculiaridade
da indstria cultural no Brasil, os pioneiros negros do espetculo-
negcio na reinveno do Rio de Janeiro, algumas idias mui
abrangentes, latinoafromundistas, fruto dos papos e trocas de
textos com meu amigo Alejo Ulloa. Mas basicamente o mesmo
livro, um dos trabalhos que mais me deu alegria pela
multiplicidade de coisas que me trouxe e provocou.
E ele teve uma verso cinematogrfica, se eu puder dizer
assim, pela maneira extremamente livre que lidei com o livro, j
que sabia que o autor no ia reclamar. O filme, um mdia
metragem 16mm OK JUMBEBA A PEQUENA FRICA NO RIO
DE JANEIRO, um documentrio elaborado com recursos
ficcionais, se organiza em pequenas cenas, suscitadas por charges
da poca dramatizadas por atores, em torno da revolta popular de
1904. Um trabalho surpreendente para alguns a quem sou
apresentado pelo livro sem saber que perteno ao Cinema, e
esperam uma ilustrao audiovisual do que leram. Mas j em seu
prlogo as imagens vem sujas, desordenadas, preferindo soluo
institucional sugerir um filme primitivo de uma outra era. As
partes que ficcionam os acontecimentos na virada do sculo
procuram aquele cinema pr-giftiano que se fazia num surto
precoce no Rio da poca 200 filmes por ano, escuta essa, eram
filmados aqui antes de se organizar o sistema internacional de
distribuio que ainda nos ocupa! Os elementos conceituais do
samba e suas entidades em sua marcante & conflituada presena
na cidade do Rio de Janeiro, a possibilidade que o Cinema trs de
buscar um olhar da poca a partir dos pintores e desenhistas
negros, sugerindo com suas imagens, procedimentos
cinematogrficos.
Essa nova edio tem a parceria incisiva e carinhosa de
Heloisa Frossard, com quem discuti e trabalhei todas as fases
desses 2.000 livrinhos, cada um dedicado a algum e todos a essa
cidade nesse final de milnio.
Roberto Moura
Dezembro de 1994
[pg. 09]
APRESENTAO PRIMEIRA EDIO
Este livro o desdobramento de um trabalho realizado
inicialmente em cinema sobre o Rio de Janeiro subalterno e
eventualmente marginal, redefinido a partir da virada do sculo
que teria uma particular expressividade para essa cidade no
engendramento de sua identidade moderna.
Em torno da Corisco Filmes, organizamos um pequeno
centro de informao primariamente voltado para a vida carioca,
que, tendo produzido filmes sobre o tema, agora termina esse
primeiro texto como resposta s prprias dificuldades de pesquisa
e resultado das discusses que mantivemos nesses anos de
trabalho. Assim, ao lado da histria da Tia Ciata e de sua dispora
baiana no Rio de Janeiro, tomou corpo a nostalgia por um
trabalho de contexto que interrelacionasse e desvendasse este Rio
de Janeiro, em contrapartida quele que se civiliza no Centro e
na Zona Sul, redefinido pela reforma do prefeito Passos. Tal
postura alongou o texto e acabou por lhe dar essa feio final,
onde preocupao didtica e informativa se junta o intuito
ensastico e especulativo.
Alm de todos que participaram dos filmes que comeamos a
rodar nos anos 70, cada um sua maneira parceiro nessa
proposta, nesse trajeto, fui apoiado no trabalho de pesquisa deste
livro por ngela Nenzy, com quem tanto discuti as questes sobre
as religies negras no Rio; Elisabeth Formaggini, que muito
contribuiu para o levantamento da situao do mercado de
trabalho e particularmente da presena da mulher, alm de liderar
a pesquisa iconogrfica, e Cida Dacosta, que, inicialmente
trabalhando na parte administrativa, bandeou-se para a pesquisa
por seu interesse responsvel pela situao do negro na cidade.
Formou-se ento uma equipe criativa e profissional onde quase
sempre trabalho foi prazer. Ainda na Corisco, Roberto Machado
Jr., Antonio Luis Mendes Soares e Henrique Sodr se ocuparam
das fotos e reprodues; e Paulo Baiano Fortes, das gravaes
das entrevistas, sempre feitas com qualidade esperando o cinema.
Pedro Wilson Leito leu e criticou o texto entre viagens. Amigos,
irmos. Do Departamento de Editorao da Funarte, Suzana
Martins revisou o texto com tcnica e realismo, enquanto Martha
Costa Ribeiro fez a diagramao das fotos com sua sensibilidade
esclarecida.
Sinto que fazemos parte de um movimento maior, no
codificado ou institucionalizado, mas que parte de sensibilidades
fundamentais comuns e de um projeto de mudana que
transcendem a origens sociais e culturais, ou geraes, que
repudia as desigualdades como valoriza as diferenas, que se volta
para o passado para dimensionar o presente. A ns, o futuro.
Roberto Moura
[pg. 11]
TIA CIATA e a Pequena frica no Rio de Janeiro
ABOLIO E REPBLICA: A SITUAO POLTICA NACIONAL
Jamais se aninhou em mim qualquer preconceito de raa. Cresci, e me fiz homem, amando os meus semelhantes, tratando com especial deferncia e carinho os pretos, os mulatos, os mais humildes. Pensava, assim, resgatar a injustia da escravido a que foram submetidos. Como j disse antes, minha famlia foi entusiasta da Abolio. E quanto ao aspecto concreto e pessoal da questo: poder parecer que minha resposta a este item contradiz a dada ao anterior. Mas no h tal: fui sincero, como serei ao responder o ltimo. Falo a um socilogo, a um fino psiclogo e estou certo, ele me compreender. No veria com agrado, confesso, o casamento de um filho ou filha, irmo ou irm, com pessoa de cor. H em mim foras ancestrais que justificam essa atitude. So elas, percebo, mais instintivas do que racionais, como, em geral, soem ser aquelas foras, sedimentadas, h sculos, no subconsciente de sucessivas geraes. Depoimento de Luiz de Toledo Piza Sobrinho, nascido em 1888, respondendo a enqute realizada por Gilberto Freyre para o livro Ordem e Progresso.
Com a Independncia e a formao do Imprio, configura-se
uma nao brasileira nos moldes definidos pela moderna poltica
internacional. O pas se transforma. Mas nem tanto: da prpria
casa real portuguesa herdamos soberanos, e poucas foram as
transformaes operadas no regime produtivo e nas relaes
sociais. Do autoritarismo de Pedro I personalidade poltica
ambgua de Pedro II, s chegamos Abolio atravs da,
finalmente insustentvel, presso internacional isso dito sem
minimizar a importncia da campanha abolicionista, mas apenas
aferindo seu peso. O sistema poltico-administrativo do Imprio
parecia no acompanhar as necessidades de mudana exigidas
pelos sistema econmico internacional, justificadas tanto pela
argumentao ideolgica da burguesia europia e dos
revolucionrios ianques, como pelas exigncias operacionais do
capitalismo. Assim, o golpe republicano na madrugada de
novembro de 1889 pega surpreendida a cidade, sua gente alheia
trama poltica definida pelo encontro de liberais burgueses,
organizados num movimento republicano sem fora popular, com
uma faco do conflituado Exrcito nacional particularmente
incompatibilizada com o governo monrquico, encontro que d
materialidade impalpvel das idias o peso das armas. O apoio
internacional, no pronto reconhecimento da Repblica brasileira
pelos pases centrais e posteriormente pelos bancos ingleses,
completaria a manobra que marca fundas alteraes na vida
nacional: o incio de nossa modernidade.
A confirmao pelo novo regime do disposto pela Lei de
Terras de 1850 que legalizara o monoplio [pg. 15] por uma
minoria sobre as terras disponveis, restringindo o acesso
propriedade primria, mesmo contra opinies isoladas de alguns
abolicionistas e republicanos considerados radicais que, desde
antes, propunham uma reforma agrria contemplando
principalmente aqueles que tinham sido escravizados garantia
na prtica a reproduo do padro de poder e de apropriao
diferencial da riqueza. Antigos segmentos populares vindos ainda
da Colnia, muitos interioranos, e migrantes recm-chegados so
confrontados com a implantao de um processo de proletarizao
nas cidades, que se absorve s alguns enquanto muitos seriam
condenados marginalidade, aproxima esses homens diversos em
um formidvel encontro. Crescem e se sofisticam classes mdias
urbanas, favorecidas pelo reaparelhamento estatal e pelo
progresso industrial, para quem prioritariamente seria montada
uma indstria do entretenimento, que daria voz, entretanto, ao
negro, omitido num pas que se queria ocidental. No topo,
redefinem-se posies no bloco de poder entre as elites nacionais,
fortemente mimetizadas com a burguesia europia.
O progressivo deslocamento do poder decisivo das
oligarquias para setores mais modernos ligados ao caf,
indstria nascente e ao comrcio internacional, tem como
contrapartida uma abertura, pelo menos formal, do espao
poltico, ocasionando um recrudescimento das oposies lideradas
por setores das elites alijados episodicamente do poder, mas
tambm por alguns setores das classes mdias e do nascente
operariado, oposies essas, de baixo para cima, que seriam
imediatamente compreendidas pelo sistema como uma ameaa
situao instituda, como uma transgresso s regras tcitas do
jogo. A reao a essas manifestaes iria do autoritarismo
hierrquico introjetado pela experincia histrica com o mando
irrefreado, ao ritualismo eleitoral, que tem seu auge na prpria
Repblica Velha, a poltica institucional manipulada pelos
demagogos conservadores e oportunistas, o controle estatal
sufocando o nascente sindicalismo e as demais tentativas de
organizao fora da rbita oficial.
Em nossa verso tropical da democracia burguesa, a minoria
que se constitua na classe possuidora nacional teria no Estado
sua principal rea de manobra. Com uma precria legitimao
eleitoral, os governos republicanos definem as metas sociais, j
que a prpria nao no seria capaz de fix-las em prol do
progresso nacional, a privatizao do poder justificada com o
mal necessrio em virtude da permanente subestimao da
maioria. O povo vil, a plebe, a malta, a ral, o povo de negros
libertos, para quem no seria destinado nem o acesso terra nem
os investimentos em educao ou treinamento tcnico reclamados
anteriormente. Homens que passam a conviver nos cantos das
grandes cidades brasileiras, nas suas ruas, nos seus bairros
populares e favelas, com italianos, portugueses, espanhis,
franceses e francesas, poloneses e polacas, tocados de uma
Europa superpovoada e em crise.
Como pertencendo a um outro Brasil, so mantidos fora do
mercado de trabalho e da vida poltica nacional negros, caboclos e
brancos pobres, se mestiando, alheios s grandes cenas da vida
nacional e ausentes de sua histria oficial. Apesar da ruptura
determinada pela Abolio, com a modernizao de aspectos do
sistema produtivo, o pas no oferecia a esses homens,
principalmente aos libertados, alternativas para a reordenao
de suas vidas a partir de uma nova posio na sociedade nacional,
a no [pg. 16] ser as construdas por eles mesmos. Assim, por
algumas vezes esses homens se uniriam rebelados nas cidades e
no interior, como em Canudos, onde, por algum tempo, o engenho
militar popular e o conhecimento da terra derrotam divises do
Exrcito, ou no cangao, quando arte e desespero terminam
esmagados pela inexorvel rotina da represso.
Com a Abolio se rompem muitas das formas anteriores de
convivncia entre brancos e negros e mesmo entre negros e
negros. Anteriormente, seja atravs de eufemismos religiosos que
ganhariam tradio e complexidade na vida brasileira, seja nas
festas populares retraduzindo as franquias governamentais para o
melhor controle da massa cativa, o negro havia conseguido manter
aspectos centrais de suas culturas, fundando tradies que se
incorporam de modo prprio na aventura brasileira. Entretanto,
tanto as grandes concentraes propiciadas pelas plantaes,
como seus pontos de encontro nas cidades, se dispersam neste
momento de transio, vivendo o negro no Brasil novamente a
situao de ruptura de seu mundo associativo e simblico frente
s estruturas sociais em mutao.
A intensa imigrao de operrios europeus que ocorre no
perodo no vinha atender s necessidades internas de mo-de-
obra, j que esta era abundante, se justificando no s pelas
vantagens tcnicas que os estrangeiros j proletarizados
ofereceriam s nossas primeiras indstrias, mas principalmente
pelas ideologias raciais que suportavam os grandes investimentos
do Estado, idealizando o imigrante como agente culturalmente
civilizador e racialmente regenerador de um Brasil idealizado por
suas modernas classes superiores. Assim, as extensas massas
de trabalhadores nacionais que chegam s cidades centros
antiescravagistas do perodo anterior, logo, smbolos e promessas
de liberdade passam a transitar sem condies de penetrar em
seu mercado de trabalho regular e sustentar suas regras, sejam
eles negros ou nordestinos expulsos pela seca, funcionando como
um exrcito proletrio de reserva entregue aos servios mais
brutos e sem garantias, exercendo efeitos depressivos sobre as
condies de remunerao.
Alm disso, o mercado capitalista, colocando os homens uns
diante dos outros em termos unicamente do valor de seus bens e
de sua fora de trabalho, e assim posicionando-os socialmente,
impe uma nova lgica que de imediato no absorvida nem
utilizada em suas possibilidades pelos trabalhadores nacionais,
vindos de outras tradies civilizatrias, de outras experincias. A
teimosia de alguns em se ater ao mnimo para a subsistncia. A
ausncia de uma tica da venda do trabalho e de uma motivao
para a acumulao. Muitos no compreenderiam inicialmente a
natureza essencial do trabalho livre, da mercantilizao do
trabalho, que separa este da pessoa do trabalhador; ou ento
visceralmente se opunham a essas concepes, o que atrasa entre
ns o surgimento de uma conscincia profissional em sua
expresso ocidental moderna. O uso da competio e do conflito
em relaes contratuais se chocava com as tradies de lealdade
do trabalhador nacional, situao que seria vivida de forma
simetricamente oposta pelos antigos senhores, agora tornados
patres, que esperavam vinculaes e obrigaes de seus
subordinados que de muito ultrapassavam as novas relaes
profissionais estabelecidas.
Despossudos de bens e de conhecimentos valorizados nesse
mercado, eles se ajuntam na cena das [pg. 17] cidades, em bairros
que, com a ampliao da cidade, progressivamente vo se
afastando dos setores aristocrticos; ou ento em suas cozinhas e
oficinas. Uma vida subalterna que vai da brutalizao extrema
vitalidade. Uma histria mal contada ou omitida, que s aparece
no pragmatismo estatstico dos servios sanitrios ou da
represso, nos desconcertantes esteretipos da nacionalidade
surgidos na arte popular filtrada pela indstria de diverses.
Pontos de luz e de escurido que irregularmente se completam.
Uma histria que comea na Bahia para se transferir para o Rio
de Janeiro. Uma histria possvel mas despercebida. Uma histria
banal, sublime, vergonhosa. [pg. 18]
DE SALVADOR PARA O RIO DE JANEIRO
A extino do elemento servil pelo influxo do sentimento nacional e das liberalidades dos particulares, em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente de tal modo que hoje aspirao aclamada por todas as classes, com admirveis exemplos de abnegao por parte dos proprietrios. Quando o prprio interesse privado vem espontaneamente colaborar para que o Brasil se desfaa da infeliz herana, que as necessidades da lavoura haviam mantido, confio que no hesitareis em apagar do direito ptrio a nica exceo que nele figura, em antagonismo com o esprito cristo e liberal das nossas instituies. Princesa Isabel, Fala do trono: 13 de maio de 1888.
Salvador, antiga capital, no incio do sculo XIX uma
surpreendente cidade do mundo colonial portugus. Porto
exportador reunindo gente de diversos interesses onde renascia
uma forte aristocracia local, porto negreiro abastecendo a regio
das Minas Gerais, Salvador seria a cidade colonial em que o negro
tinha maior presena, onde a chegada de iorubas e islmicos daria
novas cores e significados s fortes tradies festeiras dos bantos.
L se deflagram as grandes revoltas urbanas, conflitos que legam
sociedade brasileira da Primeira Repblica o temor de levantes
negros nas capitais, expresso pelas instituies policiais por uma
duradoura vigilncia e intolerncia.
Em 1584 o padre Anchieta faz uma estimativa: existiam j
trs mil negros na Bahia. Na verdade, o trfico se inicia logo que
se define uma inteno prtica de explorao da terra descoberta
merc do governo portugus, e o primeiro negreiro aporta na
terra brasileira antes mesmo que se estabelea o governo geral. Os
negros que chegam ao porto de Salvador so da Guin, o que
significa apenas que eram mandingas, berbecins, felupos, achatis,
berberes e de outras etnias, povos mais ou menos conhecidos aqui
genericamente como bantos.
O mercado negreiro de Salvador continuaria com os mesmos
endereos, que definiam a presena esmagadora de bantos por
sculos. Entretanto, a conquista pelo Daom do porto de Ajud em
1725, favorecida por uma srie de circunstncias, faz com que o
rumo dos navios que abasteciam a capital baiana se mude para a
Costa da Mina. As epidemias de bexiga que se sucediam nos
portos sujos e ensangentados dos negreiros, e o excepcional
valor de que desfrutava o fumo baiano no mercado da Mina, fazem
conveniente a mudana do negcio, e logo os traficantes
portugueses passam a apregoar a qualidade superior do novo
produto: o negro sudans. A pior parte da safra do fumo baiano,
enviado para o negcio com os vendedores de homens africanos,
concorria no mercado africano com outro refugo, a famigerada [pg.
19] aguardente Roma, oferecida pelos comerciantes ingleses,
levando vantagem os negreiros portugueses de Salvador, pais da
aristocracia da cidade.
As relaes entre Bahia e Daom seriam intensas. O
comrcio de escravos era por vezes mediado por negros nascidos
no Brasil, como o mulato Flix de Sousa, o Chach, ttulo
concedido pelo rei de Daom. Homens fabulosamente ricos e
poderosos controlavam o negcio do fumo, utilizando negros
aprisionados na frica subquatoriana em guerras fomentadas
para satisfazer o apetite do mercado escravagista. Embaixadas
daomeanas visitam Salvador por vrias vezes, a partir do final do
sculo XVIII, para acertar os negcios e garantir as prioridades de
que gozavam com os interesses locais, tentando conseguir o
monoplio do fornecimento, acordo que nunca vem a se dar. Dos
negros que chegam, parte considervel negociada para o
trabalho das minas, mas os muitos que ficam na cidade comeam
a transformar a populao escrava, embora sempre se mantenha
a forte presena banto, atravs dos seus descendentes nascidos
no cativeiro, antes mesmo da chegada de novos africanos do
trfico com Angola, que nunca vem a se interromper, apenas
perdendo a expresso anterior. Os iorubas ou nags ganham
prestgio do meio negro, assim como os islamizados vindos do
outro lado, com a chegada recente e macia dos prisioneiros da
guerra, vindo entre eles negros cultos, conscientes do valor de
suas culturas expressas por elaboradas filosofias e prticas
religiosas.
Se o negro escravizado em Salvador no perde seus hbitos
coletivistas, teimosamente mantidos, seus vnculos de linhagem e
famlia, que no caso dos iorubas eram pontos de referncia
religiosa essenciais, so inevitavelmente destrudos. Mortos na
viagem ou precocemente no cativeiro, j que era mais barato
comprar africanos adultos do que criar seus filhos, separados
entre diversos compradores, nos primeiros tempos da Colnia so
poucos os exemplos dos ncleos de africanos que se mantm na
nova terra. Aqui se torna necessrio, uma vez que a cultura
trazida desprendida das formas sociais africanas, que sejam
recriados os meios de convvio e organizao da religio e fora da
rbita de controle dos escravagistas, onde proibida.
A prpria sobrevivncia do indivduo escravizado dependia
de sua repersonalizao, da aceitao relativa das novas regras do
jogo, mesmo para que pudesse agir no sentido de modific-las, ou
pelo menos de criar alternativas para si e para os seus, dentro das
possibilidades existentes na vida do escravo. So inimaginveis os
choques, a perda da liberdade, a viagem no negreiro, a exposio a
uma nova sociedade onde seria escravizado, que se somam para o
indivduo. Aqui, cada negro viveria imerso em duas comunidades
distintas, grande parte do tempo em contato com a sociedade
branca que o fora a adaptar-se a sua nova condio e funes, o
que implica uma srie de aprendizados sobre a nova cultura.
Homens ajuntados, vindos de diversas procedncias, irmanados
pela cor da pele e pela situao comum, que redefinem suas
tradies como escravos nessa sociedade paralela do mundo
ocidental-cristo.
Acostumada com o carter festeiro do banto, que abria suas
celebraes na rua baiana se apropriando do calendrio catlico,
criando novas tradies na antiga capital, a mudana do trfico
para a Costa da Mina povoa Salvador com negros sudaneses,
vindos de culturas extremamente elaboradas e com forte [pg. 20]
sentimento nacional (aqui falamos das naes africanas),
prontos a se organizar separados, diversos, e da resistncia
cultural partir para a revolta armada.
Preta Baiana. Ilustrao de Marques Jnior. In Luiz Edmundo, O Rio de
Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro, Conquista, 1957. 5v., v.l., p.99.
Preta Mina. In Luiz Edmundo, op. cit., v.l, p. 101.
Relata Nina Rodrigues o que provavelmente o babala
Martiniano Eliseu do Bonfim lhe contou: Em 1802, o Dam-Foit
Othman, constituindo-se, com os fiis, em dijema, ou associao
religiosa e militar, (...) inspirou-se no mesmo fanatismo religioso
que lanou os rabes vitoriosos sobre a frica e sobre a Europa
(Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil). Na frica, as jihd,
guerras santas islmicas que se iniciam no sculo XIX,
forneceriam escravos para Salvador, exportando tambm o esprito
guerreiro e independente dos contendores. Com as lutas
religiosas, negros islmicos haussas (aus) e mals, que j eram
enviados anteriormente pelos azares do trfico, vm agora em
maior nmero juntamente com seus adversrios na frica,
iorubas e jejes. O islamismo, como ideologia religiosa e guerreira,
passa a ter grande influncia entre os escravos em Salvador,
operando um movimento cultural de grande importncia que se
fortalece na marginalidade com a organizao de cultos religiosos
e sociedades secretas. No Isl fica explcito que a funo do Estado
servir lei divina, implicando a converso num projeto poltico
de tomada do governo (uma teocracia almejada, como diz Manuela
Carneiro da Cunha em Negros, estrangeiros) que seria liderado por
um lder religioso letrado, como foi Licutan na revolta mal
baiana.
Continua Nina:
repelidos pelos fuls, os negros haussas caram sobre o grande e
poderoso reino central de Ioruba e [pg. 21] destruram-lhe a capital
Oy. No reinado de Arogangan, Ioruba perdeu, em 1807, a provncia
Ilorim, cujo governador Afunj, sobrinho do rei, se serviu dos haussas
para declarar-se independente. Os maometanos em 1825 queimaram
vivo a Afunj e desde ento elegeu-se ali um rei ou governo
muulmano. Ilorim tornou-se por este modo um centro de propaganda
do islamismo nos povos iorubanos ou nags (Nina Rodrigues, op. cit.).
Inicia-se, assim, com a guerra civil que divide o imprio ioruba de
Oy no incio do sculo XIX, irradiando o islamismo de Ilorin onde
se reuniram iorubas islamizados com haussas, um processo de
transnacionalizao, que teria seqncia imediatamente depois no
Brasil, um movimento multitnico que toma o Isl como
linguagem. Um projeto poltico embutido num projeto religioso,
reunindo sob a bandeira do islamismo diversos grupos tnicos.
Esse processo de transnacionalizao se amplia no Brasil entre os
prprios adversrios na frica, atravs dos prisioneiros de ambos
os lados que se reencontram aqui, em condies comuns como
escravos em um novo mundo. A revolta de 1809 rene pela
primeira vez haussas e nags, o processo se expandindo a ponto
do movimento de 1835 unir oito naes em Salvador contra o
poder colonial.
A antropologia brasileira clssica privilegiou o estudo dos
negros sudaneses que se concentram em Salvador, enquanto na
maioria das outras provncias seguia-se o trfico com a costa de
Angola. O livro de Lus Viana Filho, O negro na Bahia,
significativamente prefaciado pela mestria de Gilberto Freyre,
mesmo trazendo como novidade uma reavaliao da presena
numrica de negros bantos na Bahia, mantm a tese de sua
inferioridade frente aos nags (iorubas), e da diluio de suas
marcas civilizatrias numa cultura popular urbana liderada pela
Igreja e vulgarizada para o consumo das grandes camadas
escravizadas da populao. Tal fato teria determinado na poca a
no participao dos bantos nos movimentos insurrecionais
baianos.
As religies banto partiam do culto dos ancestrais, dos
grandes personagens da comunidade que retornavam
incorporados nos seus cavalos, atualizando suas caractersticas
frente s novas situaes enfrentadas por seu povo. Apesar da
dita pobreza da mtica banto, em relao aos sudaneses, fato
reconhecido por todos os etngrafos, o que resultou na sua quase
total absoro no Brasil, pelo feitichismo jeje-nag (Artur Ramos,
O negro brasileiro), essas concluses parecem esconder tanto o
pouco conhecimento real da cultura dos povos subequatorianos,
como uma no compreenso do sentido dinmico fundamental de
seu complexo civilizatrio, menos comprometido com a
manuteno de formas tradicionais fixas, sensvel s conjunturas
histricas vividas e aos encontros culturais. Edison Carneiro, um
negro doutor mais versado nos bantos, dizia que na Bahia, j na
primeira metade do sculo XIX, talvez s houvesse um candombl
estritamente afro-banto, o do pai Manuel Bernardino no Bate-
Folha, o que pode ser compreendido tanto como prova da
fragilidade de suas formas culturais superadas pelos cultos nas
naes iorubas, como numa reavaliao, percebida sua extrema
vitalidade assimiladora, que no inconsciente coletivo do negro
brasileiro faria aflorar uma multido de entidades novas, ndios,
caboclos, [pg. 22] santos catlicos, representaes de seu novo
mundo social que, atravs das novas religies afro-brasileiras,
seriam integradas numa cosmogonia comum onde ganham
Inteligibilidade, preservadas suas caractersticas e posies.
Se o banto escravizado marca sua presena em Salvador
pela transformao que opera nas caractersticas das festas do
calendrio catlico hegemnico na cidade, o negro sudans se
voltaria para a atividade de flagrante resistncia, se distinguindo
explicitamente no s dos brancos, como inicialmente dos negros
das outras naes a quem apresentado pelo proselitismo poltico
dos islmicos. A poltica do conde dos Arcos, permitindo a
retomada dos encontros de naes, para que surgissem
rivalidades dentro da massa escrava, j que a experincia comum
do cativeiro aproximara indivduos atomizados vindos de diversas
etnias, se revela eficiente para que muitas rebelies fossem
denunciadas por escravos rivais, mas no impediria a
aproximao de haussas e iorubas. Os textos existentes repetem
as informaes tentando uma tipologizao do escravo a partir da
oposio bsica de bantos e sudaneses, pouco esclarecendo sobre
as alianas entre iorubas e mals, os antigos adversrios nas
cruzadas islmicas, invocando coincidncias culturais superiores,
e portanto seu impulso comum para o enfrentamento da
sociedade escravagista, onde brancos e mulatos no eram
diferenciados como inimigos.
O que certo a denncia por parte de um indivduo cujo
nome o governador no declina, apesar de afirmar ser de
probidade e empregado nesta cidade, de um extremamente
articulado levante haussa em 1807 em bairros de Salvador e suas
redondezas, que duramente reprimido pelo poder colonial com
execues e aoites. Registra ainda o conde da Ponte a apreenso
de armas, alm de certas composies supersticiosas e de seu
uso a que chamam mandingas, com que se supem invulnerveis
e ao abrigo de qualquer dor ou defesa. Uma sociedade secreta
negra, Obgoni, estaria por trs de nova rebelio que explode dois
anos depois, quando os haussas, dessa vez j apoiados pelos
nags, agridem as propriedades em volta da capital, terminando
por ser esmagados pela tropa. Apesar dos redobrados cuidados
dos capites-de-mato, feitores e policiais, as revoltas se sucedem
durante as primeiras dcadas at a grande insurreio de janeiro
de 1835, quando mesmo novamente denunciados por uma negra
forra, forando o abortamento da luta, os negros chegam a tentar
dominar o quartel dos permanentes da Mouraria, mantendo pela
Barraquinha, na Baixa do Sapateiro, e finalmente em guas de
Meninos, a luta com a tropa organizada, sendo finalmente
derrotados depois de batalha cruenta.
Se a liderana guerreira era dos haussas islmicos, a vida
religiosa da cidade redefinida com a chegada da grande religio
dos iorubas, seus orixs conquistando os terreiros que batiam
tarde da noite, disfarados como meras reunies festivas. Mesmo
nas casas dos bantos, os orixs iorubas passam a descer juntos
com suas entidades, expresso das identidades e compatibilidades
entre a mstica dos diversos africanos. O proselitismo, e, por outro
lado, a intolerncia dos haussas com a vida religiosa das outras
naes, acirrando rivalidades, e a perseguio e violncia que lhes
sobrevm a partir de suas constantes revoltas, faz que suas casas
de culto caiam na marginalidade, e que muitos dos iniciados
tenham que se [pg. 23] isolar ou mesmo desaparecer da cidade,
alguns de volta para a frica, outros tambm subindo de navio
para a capital do Imprio.
Grupo de antigos carregadores africanos. In: Artur Ramos, O negro brasileiro. 3.ed. So Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1951, p.16 (Brasiliana, 188).
Por volta do fim do primeiro quarto de sculo chegam a
Salvador quatro africanos livres do golfo de Benin que fundariam o
candombl do Iy Omi Ax Air Ontile, situado perto da igreja da
Boa Morte, no bairro da Barraquinha, em cuja irmandade depois
ingressariam. Iy Nass, filha de uma escrava baiana que voltara
para a frica, Iy Det, e Iy Kal, juntas com um Wassa,
sacerdote com alto ttulo religioso, vm de forma deliberada fundar
uma casa de orix, trazendo seu ax e seus fundamentos para os
negros de origem na Bahia. Iy Nass, ao contrrio do que
geralmente acontecia na frica, onde os homens lideravam os
terreiros, se torna Yalorix e d nome casa, Il Iy Nass (casa
da me Nass), que ganha fora e respeito entre os iorubas. Esse
terreiro, que muda muita vezes de stio, at se instalar
definitivamente no bairro do Engenho Velho, sem dvida a
instituio negra mais duradoura na histria brasileira, central na
vida religiosa de Salvador. [pg. 24]
Marcelina seria a substituta de Iy Nass depois de sua
morte j depois da metade do sculo, mas sua sucesso
provocaria uma ciso que redunda na fundao de outro
candombl no Rio Vermelho que tambm se celebrizaria, o Iy
Omi Ax Iy Mass, que fica conhecido com o nome do antigo
proprietrio do terreno, Gantois. ainda do velho Il Iy Nass,
outra vez dividido na sucesso de Me Ursulina, que Aninha, filha
do afamado Bamboch, lidera outros dissidentes para uma nova
casa: o Ax de Op Afonj. Trs candombls tradicionais na vida
baiana, e centrais em sua histria moderna, na histria
subalterna do Brasil. Outros candombls ioruba surgiriam em
Salvador, como o Alaketu, fundado no Matatu Grande, local hoje
chamado Lus Anselmo, por duas princesas, que a histria conta
terem sido alforriadas pelo prprio Oxumar, o Il Ogunj,
tambm no Matatu, e outros j com fortes razes de Angola,
chamados de Caboclo, caracterizadas tambm pela forte presena
da mstica dos ndios do interior baiano, em um encontro de
similitudes religioso-filosficas e cumplicidades sociais.
O candombl trazido por
Iy Nass e para o Brasil , de
uma forma, um culto novo,
pois compensa as lacunas na
cosmogonia nag ocasionadas
pela escravatura com uma
nova organizao ritual,
incorporando num s terreiro
os cultos das principais
cidades iorubas, diversamente
do que ocorria na frica, onde
eles se davam em templos
separados. O terreiro toma a
forma simblica do prprio
continente africano, os orixs
das cidades com seus
assentamentos no barraco,
enquanto as entidades do cu aberto so cultuadas em sua mata.
O prprio termo candombl, s aqui teria o significado de culto, ou
casa [pg. 25] religiosa, e a forma acabada do Il Iy Nass, do
Gantois, do Il Ax Ap Afonj e dos outros terreiros tradicionais,
se manteria como estrutura central das organizaes religiosas
negras no Brasil.
A extino do trfico negreiro ingls em 1807 ocasiona
mudanas fundamentais no trfico de escravos para o Brasil.
Movidos por razes morais e humanistas firmemente aliceradas
Negra baiana. 1909. Postal da coleo Antonio Marcelino. Funarte, Ncleo de
Fotografia, 1982.
por forte pragmatismo econmico, que confia nas vantagens que
traria a modernizao do sistema de trabalho liberando grandes
parcelas de capital imobilizadas na compra de escravos, os
ingleses passariam a no permitir a concorrncia dos pases
escravagistas, j que os primeiros momentos de implantao do
sistema do trabalho livre poderiam dar vantagens aos que se
valessem dos negros cativos. Sua diplomacia, amparada pelo forte
poderio naval, passa a impor uma srie de medidas restritivas,
que se iniciam com o tratado de 1810 assinado pelo temeroso
governo portugus. Este comprometia Portugal a no negociar fora
dos domnios portugueses na frica e vedava os negcios com
Bissau e Molembo, que caem definitivamente na influncia
francesa, e com Ajud na Costa da Mina. Cinco anos depois, esse
tratado seria complementado com o compromisso formal de
Portugal de cessar o trfico com toda a costa africana ao norte do
Equador, impedindo, pelo menos no plano formal, o comrcio
baiano com seus tradicionais parceiros. A partir da, todos os
escravos que entram oficialmente no porto de Salvador seriam de
procedncia angolana, o que uma verdade apenas parcial, se
caracterizando os anos que separam este ltimo tratado da Lei
Euzbio de Queirs de 1850, proferida pelas cmaras brasileiras,
que marca o fim efetivo do comrcio escravo no pas, por uma luta
surda entre contrabandistas e os vigilantes brigues ingleses.
O Brasil na poca da Independncia era ainda bem pouco
urbanizado. Os interesses colonialistas fizeram com que o pas
ficasse inteiramente voltado para fora: as grandes cidades-portos,
como Salvador, locais de embarque do produzido pela
monocultura ou pelas minas, eram os centros de administrao e
controle, locais de desembarque do necessrio para manuteno
do sistema produtivo subordinado, instrumentos, aparelhos,
manufaturas, algum alimento, e, principalmente, escravos. O
negro era fundamental no nosso mundo colonial, e a Abolio s
seria assinada quando as presses internacionais e internas
tornam o regime insustentvel. Assim,
num sistema dominado pelo trabalho servil fatal que inmeras
atividades sejam entregues aos escravos. A eles cabe todo o trabalho
considerado vil pela populao branca de origem europia, que mesmo
pobre, no quer se rebaixar executando certos servios manuais. Alm
disso, todo imigrante pretende encontrar alm-mar um estado superior
ao que possua na Europa. Os relatos dos viajantes estrangeiros
mostram os escravos atrelados aos trabalhos mais diversos desde o
comeo do sculo XVII. E a mo-de-obra livre era rara. O trabalho
escravo indispensvel e a figura do senhor que aluga seus escravos
encontra-se em todas as cidades brasileiras (Ktia M. de Queirs
Mattoso, Ser escravo no Brasil).
No s at a metade do sculo o comrcio escravo mantido,
seja legalmente com a costa de Angola, como ilegalmente com a
venda dos vindos da Costa da Mina, mais valorizados, como se
mantm internamente depois de impedido o trfico, tornando-se a
maior fonte de renda da provncia da Bahia. [pg. 26]
Finalmente, as contnuas
revoltas negras em Salvador e
a rudeza da fiscalizao
inglesa, foram finalmente o
governo imperial a aceitar o
fim do trfico, continuando o
comrcio escravagista a atuar
internamente, tambm de
forma bastante lucrativa,
vendendo escravos do Nordeste para as plantaes de caf do Sul.
Apesar da denncia moral da escravatura pelo movimento
Baiana quituteira. Foto Roberto Moura,
1976.
abolicionista, o negcio negreiro no era na poca socialmente
infamante nem dava dores de conscincia aos donos da Cidade
frente Igreja ou ao governo colonial, que, acumpliciados, s
cederiam em suas rendosas transaes, quando no restavam
mais meios prticos de mant-las. Henri Cordier registra em seu
livro Mlanges amricains um relato do baro Forth Rouen sobre
sua passagem em Salvador:
Numa igreja da cidade tive a oportunidade de ver, entre um grande
nmero de ex-votos, um quadro bem recente representando um navio
negreiro sob pavilho brasileiro, sendo perseguido por dois barcos, um
francs e outro ingls. No cu, aparecia a figura de Cristo que, com
sua mo poderosa protegia o navio brasileiro, permitindo-lhe escapar
do perigo e entrar calmamente na enseada.
De qualquer forma, depois de anos de trfico contnuo com a
frica, a Bahia liquidava sua populao escrava. Dos quinhentos
mil que teria pelo incio do sculo XIX, em 1874 no restaram
mais, de acordo com as estatsticas, que 173.639 escravos. A
decadncia do acar brasileiro frente concorrncia no mercado
internacional e a progressiva importncia econmica que assumia
o caf que se expande em municpios do Rio de Janeiro, Minas
Gerais e So Paulo, faz com que grandes levas de negros sejam
vendidas a preos crescentes para o Sul. As plantaes cafeeiras
haviam sido supridas no primeiro momento, no segundo quarto do
sculo XIX, pelo excedente de escravos acumulado na regio
mineira. O esgotamento desta fonte, agravado pelo trmino do
trfico africano, diminui a oferta, subindo astronomicamente a
procura e os preos por pea, j que inicialmente os fazendeiros
no consideravam a possibilidade de mobilizar trabalhadores
livres como uma alternativa.
Assim, o Rio de Janeiro, com sua cultura de caf localizada
principalmente no vale do Paraba, seria um importante
comprador, seguido por So Paulo, que se expandia e que no
momento seguinte optaria por uma soluo mais moderna
atraindo o imigrante europeu, embora ainda oferecendo condies
[pg. 27] econmicas e sociais praticamente insustentveis para o
trabalhador rural na grande empresa cafeeira. A provncia do Rio
de Janeiro, de 119.141 escravos em 1844, no incio da dcada de
1870 passa a contar com mais de trezentos mil, dos quais grande
parte havia chegado da frica atravs dos portos do Nordeste,
muitos vindos de Salvador, podendo se imaginar que tambm
sudaneses da Costa da Mina e do golfo de Benin foram vendidos
para essas bandas.
Os negros vendidos em Minas Gerais enfrentavam enormes
caminhadas, acompanhados pelos feitores montados na direo
de suas novas senzalas no vale do Paraba. As estradas de ferro
que vo se instalando sob o comando dos engenheiros ingleses,
smbolos do progresso, tambm curiosamente possibilitariam o
trnsito de milhares de escravos. Muitos homens de dinheiro,
afetados pelo estado de depresso por que passava a provncia da
Bahia, passam a se valer dos altos lucros da venda de negros,
enviando-os para o Sul por navio, sendo que somente entre os
anos de 1872 e 1876 chegam ao Rio de Janeiro 25.711 escravos
vindos do Norte e Nordeste.
Entretanto, surgem possibilidades para alguns da populao
negra de Salvador. Se muitos escravos recm-chegados ou j
trabalhando no estado so transferidos abruptamente para o Sul,
muitos se alforriariam, aumentando uma classe intersticial de
negros livres que tomam as ruas com seus interesses e ofcios
junto aos negros de ganho, gente que sobe e desce as ladeiras, que
toma o espao dos cantos, das beiras, das madrugadas, das feiras,
gente que aprende o fascnio da velha cidade baiana, onde, mesmo
inferiorizada, acharia suas alternativas de resistncia e prazer. De
um escrito de 1870:
Poucas cidades pode haver to originalmente povoadas como a Bahia.
Se no se soubesse que ela fica no Brasil, poder-se-ia sem muita
imaginao tom-la por capital africana, residncia de poderoso
prncipe negro, na qual passa inteiramente despercebida uma
populao de forasteiros brancos puros. Tudo parece negro: negros na
praia, negros na cidade, negros na parte baixa, negros nos bairros
altos. Tudo o que corre, grita, trabalha, tudo o que transporta e
carrega negro (Robert Av-Lallemant, Reise Durchnord-brasilien).
Pela cidade se dividem os pontos das naes, negros que
saam de casa com tarefas, ou gente de ofcio, operrios,
pedreiros, carpinteiros, ferreiros, sapateiros, cocheiros, barbeiros,
msicos, dividindo seus ganhos com os senhores. Estes ficam com
a parte do leo, aqueles guardando, de tosto em tosto, as sobras
para a compra da cara, portanto difcil, alforria. Geralmente, uma
vez obtida a alforria, continuavam nos mesmo ofcios, os que
podiam abrindo uma portinha onde exploravam suas habilidades
ou instalavam um pequeno comrcio. Suas roupas eram feitas
pelas mulheres com o algodo grosso dos sacos: calas de enfiar
de canos curtos, camisoles compridos com bolsos, s vezes sem
mangas, vestimentas quase invariavelmente complementadas por
gorros, tambm de algodo grosso.
Ainda no incio de sculo XX, restavam alguns desses
pontos, onde se reuniam africanos, cada vez menos numerosos.
Pierre Verger reconstri Salvador de um pouco antes, da segunda
metade do sculo passado [pg. 28]
Na cidade baixa, nos Arcos de Santa Brbara ficam os guruncis.
Passos adiante entre os Arcos de Santa Brbara e o hotel das Naes,
alguns velhinhos cansados e modorrentos, ltimos representantes da
outrora enrgica, belicosa e aguerrida colnia dos Haussas, ali
diariamente se renem. Mais numerosos so os cantos dos Nags.
No canto do Mercado, rua do Comrcio ao lado dos Cobertos
Grandes, em mais de um ponto da rua das Princesas em frente aos
grandes escritrios comerciais, se congregam velhos Nags. So
tambm dos Nags os cantos da cidade alta: rua da Ajuda, no largo
da Piedade, na ladeira de S. Bento. No canto do Campo Grande, a
alguns Nags se renem uns trs ou quatro Gegs (Pierre Verger,
Notcias da Bahia de 1850).
Com a melhora das vias de comunicao abertas pelas
tropas de bois a partir do incio do sculo XIX, e com a abertura
das estradas de ferro na provncia, a migrao do campo para a
capital se intensifica, por vezes carregando trabalhadores rurais
de outras provncias nordestinas tocados pela seca, situao que
chegaria a seu pice depois com os flagelos de 1868 e 1871. A
migrao contnua somava-se o nmero crescente de negros forros
disputando posies no mercado de trabalho de Salvador,
diminuindo a oferta e agravando as condies de moradia e de
fornecimento de alimento para os trabalhadores livres na cidade.
Os bairros populares se superlotam, os negros se juntam em
casares alugados, geralmente com os irmos de nao. So os
hbitos da vida comum que os protegeriam nesses duros anos de
transio. Muitos pensam em voltar para a frica, outros, aqui j
nascidos, no saberiam mais para onde se dirigir num continente
rasgado pelas disputas colonialistas. Talvez valesse mais a pena,
muitos pensavam, tentar a sorte em outra cidade brasileira.
Na verdade, se trava no perodo uma luta surda entre
trabalhadores livres e donos de escravos, provocando o
aparecimento de uma srie de disposies municipais, vedando a
ocupao de funes pblicas e de alguns ofcios aos escravos. S
aos livres nacionais facultado trabalhar no transporte de
saveiros da cidade a partir de 1850. Em 1861 a vez dos
estivadores protestarem junto ao presidente da provncia quanto
ao nocivo e contumaz ascendente que h formado o abuso da
introduo de escravos no servios da profuso de atividades no
porto desta cidade. Tambm nas obras pblicas, uma das
possibilidades que se abrem a indivduos sem especializao
profissional, a partir de 1848, fica impedida a contratao de
escravos. No constituindo a indstria ainda uma fonte de
absoro significativa de mo-de-obra, e os empregos no
funcionalismo pblico se reservando a uma minoria mais
instruda, restam como sada para o grande nmero de
desempregados os pequenos ofcios e o comrcio ambulante,
expedientes que se tornam tradicionais para grande faixa da
populao, marginalizada das possibilidades regulares de trabalho
at nossos dias.
A Alforria nunca uma aventura solitria. A carta de
alforria um ato comercial, raramente um ato de generosidade. A
afirmao de Ktia Mattoso resume bem a questo das cartas de
alforria. Se a legislao garantia ao escravo dentro da perspectiva
crist ressuscitar como homem livre, a compra de sua prpria
liberdade se reveste de extrema dificuldade, s sendo possvel com
o concurso das juntas de [pg. 29] auxlio mtuo ou com a ajuda
dos parentes. O preo de referncia era o de sua compra
atualizada pelos novos preos do mercado, o proprietrio s o
alforriando quando o negcio lhe era favorvel, possibilitando a
compra de um escravo mais moo. Frequentemente, o escravo
passava por um perodo intermedirio em que continuava devendo
obrigaes ao senhor, ou pagando parcelas peridicas sobre seu
valor de venda. A liberdade, entretanto, era apresentada ao
escravo no como um direito mas como uma recompensa. E
para obt-la, precisava conquistar o senhor com seu
comportamento e seu esforo, sem que isso absolutamente
significasse a dispensa do pagamento em moeda corrente.
particularmente
significativo naquele momento,
e para o prprio destino do
negro no pas, esse grupo
intermedirio de libertos, sua
paradigmtica cidadania de
segunda classe, suas
possibilidades de trnsito e
influncia. Se eles eram
homens livres, havia restries
legais institudas aos seus
direitos de cidadania. No
sistema eleitoral onde o acesso
ao voto e aos cargos era
proporcional propriedade e
aos rendimentos, o liberto, qualquer que fosse sua fortuna, votava
apenas nas primrias, no podendo ingressar nas ordens
religiosas, no alto funcionalato ou oficialato do Exrcito e da
Marinha, podendo no mximo se eleger para vereador e ingressar
na tropa ou Guarda Nacional, isso se nascido no Brasil, tendo
direito a propriedade e relativa capacidade civil.
Na verdade, a lei considerava o forro a partir de duas
preocupaes: o abastecimento de mo-de-obra, e a segurana da
sociedade por eles ameaada. Muitas alforrias j eram
condicionais, prevendo anos intermedirios de servio antes da
alforria completa. As restries econmicas e policiais presena
Baiana na lavagem do Bonfim. Foto de Antonio Luiz Mendes Soares, 1977.
do negro em geral em Salvador indicavam que o pas legal os
queria, mesmo depois de libertos, de volta ao eito. J o levante de
1807 provocara a proibio da livre circulao dos escravos depois
das nove da noite, [pg. 30] visando impedir os preciosos
momentos de encontro dos negros depois do dia de trabalho.
Havia, desde antes da Independncia, um antiescravismo que
argumentava em razo do medo do aumento incontrolado da
populao negra, medo que ampliara seus argumentos com a
ecloso da revoluo haitiana e depois das insurreies baianas,
culminando com a revolta mal em 1835, suscitando medidas
draconianas na legislao provincial e aps 1835 na legislao do
Imprio.
Lei nacional em
10.06.1835 punia com pena de
morte os escravos que
matassem ou ferissem
gravemente seus senhores. A
Assemblia Provincial do Rio
de Janeiro chega a pedir em
1835 que se impea o
desembarque de escravos da
Bahia e principalmente o de
libertos de qualquer estado na
capital, j que esses eram
considerados os fomentadores
das revoltas. Escreve o
presidente da provncia da
Bahia: Os insurgidos
entretinham comunicaes e
inteligncias, as quais no podiam ser convenientemente
Negras baianas com vestimentas tpicas. In: Luiz Viana Filho, O negro na Bahia. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1946, s.n.p. (Documentos Brasileiros, 55).
entretidas seno pelos libertos, que podiam livremente dispor de
seu tempo, e de suas aes para formar proslitos e partidrios de
seus desgnos. Vrias assemblias provinciais afirmavam em
moes enviadas ao governo central a existncia de sociedades
secretas de escravos e forros apoiando propagadores de doutrinas
subversivas entre os escravos de grandes propriedades, onde
penetravam disfarados de vendedores ambulantes, justificando
assim o estabelecimento de limitaes circulao dos negros.
Forros podiam ser expulsos do pas sob simples suspeita de
revolta, e para eles se estabelece um imposto de dez mil-ris
anuais, sob pena de dois meses de priso, s sendo dispensados
os invlidos, os empregados em fbricas (algodo, acar) e os
delatores...
Africanos eram objeto de maior ateno, aptridas, nem
eleitores nem elegveis, obstados a [pg. 31] incorporar-se em
qualquer instituio nacional. Indesejveis. Em 1831 se estabelece
a proibio do desembarque de africanos livres no pas, lei que
vigora at 1868. A eles se probe adquirem bens de raiz, alugar ou
arrendar casa, a no ser com autorizao especial do juiz. Mesmo
depois da proibio do trfico em 1851 os africanos apreendidos
em negreiros em guas brasileiras, embora declarados livres, eram
distribudos pelo juiz de rfos para aprendizado com
empregadores sendo estipulado salrios irrisrios. O chefe de
polcia baiana Sousa Martins explicita a posio da administrao
da provncia em 1835:
no sendo os africanos libertos nascidos no Brasil, e possuindo uma
linguagem, costumes e at religio diferente dos brasileiros, e pelo
ltimo acontecimento declarando-se to inimigos de nossa existncia
poltica; eles no podem jamais ser considerados cidados brasileiros
para gozar das garantias afianadas pela Constituio, antes devendo-
se reputar estrangeiros de naes com que o Brasil se no acha ligado,
por algum tratado, podem sem injustia serem expulsos quando
suspeitos ou perigoso.
Francisco Gonalves Martins, chefe da polcia na poca da
revolta mal, se torna presidente da provncia da Bahia de 1849-
53 e, com sua obsesso pelo perigo africano, defende limitar o
escravo esfera da agricultura e coagir os libertos a voltar para a
frica. Durante sua gesto amplia as excluses dos escravos a
ocupaes urbanas, probe aos negros o aprendizado de
determinados ofcios, estabelece impostos aos artfices urbanos, e
aumenta a insegurana com a ao repressiva da polcia, que
enche as prises com libertos, aumentando as levas de forros que
partem, alguns para a frica, muitos para o Rio de Janeiro.
Embora o crescimento da populao forra, com o aumento
da oposio escravatura, fosse maior do que o da populao
branca, a oposio dos forros, s se manifesta na poltica oficial,
depois da dcada de 1870, quando aparecem lderes mulatos
como Jos do Patrocnio e Andr Rebouas, e, mais
definitivamente, quando surge uma pequena classe mdia de
mulatos. Afinal,
com um padro de povoamento escasso e a ausncia de uma camada
significativa de brancos pobres, no que contrastaria fortemente com o
Sul dos EUA, o Brasil necessitava criar uma camada intermediria que
desempenhasse os trabalhos que os brancos desdenhavam e que os
escravos no podiam ser autorizados a desempenhar: atividades de
tipo intersticial, militares e econmicas, que s poderiam se
preenchidas no Brasil pelos mestios livres e libertos (Marvin Harris,
Patterns of race in the Americas).
Gilberto Freyre escreveu no monumental Casa Grande e
Senzala:
Desses centros de alimentao afro-brasileira decerto a Bahia o mais
importante. A doaria de rua desenvolveu-se como em nenhuma
cidade brasileira, estabelecendo-se verdadeira guerra civil entre o bolo
de tabuleiro e o doce feito em casa. Aquele, o das forras, algumas to
boas doceiras que conseguiram juntar dinheiro vendendo bolo.
verdade que senhora das casas-grandes e abadessas de convento
entregaram-se [pg. 32] s vezes ao mesmo comrcio de doce e
quitutes; as freiras aceitando encomendas, at para o estrangeiro, de
doces secos, bolinhos de goma, sequilhos, confeitos e outras
guloseimas. Mestre Vilhena fala desses doces e dessas iguarias
quitutes feitos em casa e vendidos na rua em cabea de negras mas
em proveito das senhoras mocots, vataps, mingaus, pamonhas,
canjicas, acas, abars, arroz-de-coco, feijo-de-coco, angus, po-de-
l de arroz, po-de-l de milho, rolete de cana, queimados, isto ,
rebuados etc.(...)
Mas o legtimo doce ou quitute de tabuleiro foi o das negras forras. O
das negras doceiras. Doce feito ou preparado por elas. Por elas
prprias enfeitado com flor de papel azul ou encarnado. E recortado
em forma de corao, de cavalinhos, de passarinhos, de peixes, de
Embarque de negros africanos da Bahia para a frica aps a libertao dos escravos. In: Luiz Viana Filho, op. cit., cap. 4
galinhas s vezes com reminiscncias de velhos cultos flicos ou
totmicos. Arrumado por cima de folhinhas frescas de banana e dentro
de tabuleiros enormes, quase litrgicos, forrados de toalhas alvas
como pano de missa. [pg. 33]
Com o esfacelamento da famlia africana pela escravatura,
geralmente em torno da mulher que comea a se formar uma nova
famlia negra entre os forros, assim como so principalmente elas
que mantm o culto. As precrias condies de moradia e de
trabalho a que fica exposta a maior parte dos libertos fazem com
que a prole fique, na maior parte das situaes, sob a
responsabilidade nica da mulher, que, com a precariedade das
ligaes, tem geralmente filhos de diferentes pais. O descompasso
psicolgico ocasionado pela libertao depois de uma vida de
cativeiro, a incerteza frente s ambiguidades da nova situao
foram o negro liberto a se amoldar a expedientes para sobreviver,
vivendo aqui e ali, trocando de quarto nas casas de cmodos de
nao, ou se instalando em casebres erguidos longe do Centro da
cidade.
As mulheres respondem com bravura situao: uma vez
forras, e entre estes so maioria, procuram trabalho ligado
cozinha ou venda nas ruas de pratos e doces de origem africana,
alguns do ritual religioso, a comida de santo, e recriaes profanas
propiciadas pela ecologia brasileira. Algumas trabalham ligadas s
casas aristocrticas, onde recebem sua cidadania de segunda
classe; outras preferem se manter trabalhando em grupo,
geralmente como pequenas empresrias independentes,
cooperativadas, produzindo e vendendo sua criaes. Verger fala
do esprito ao mesmo tempo empreendedor e dominador da
mulher: o homem se enfraquece no abandono do filho e com a
perda da liderana que a mulher assume na vida religiosa. dela
que depender muito o destino e a continuidade do grupo, o poder
redefinido entre os sexos, a poligamia africana dos machos
senhores superada pelo matriarcalismo que se desenha nos
bairros afastados de Salvador, como depois aconteceria no Rio de
Janeiro.
Na escravatura, quando o escravo era integrado famlia do
senhor como criado, o nmero menor de homens e a
instabilidade da sua vida, sempre merc de ser vendido e ento
enviado para outro lugar, no importando a durao ou
significado das relaes que mantivesse com o grupo ou com
indivduos do grupo em torno de seu antigo dono, torna as
relaes amorosas preferencialmente provisrias. Mesmo o
casamento formal entre escravos, que era eventualmente
autorizado pelos senhores, no impedia a separao dos cnjuges,
acaso aqueles o decidissem. Era tambm comum casais formados
arbitrariamente, a partir dos interesses na reproduo dos
escravos por parte dos senhores. A criana geralmente s tinha
me, integrando-se comunidade de senhores e escravos, com
seus aposentos comuns ou rigorosamente separados, se
sobrepondo vida familiar do negro, praticamente inexistente.
As irmandades para leigos floresceriam na Igreja durante a
Colnia, como um expediente regulador do comportamento e das
relaes sociais entre grupos racial e socialmente diversos,
amortecendo os choques, fazendo com que cada um se sentisse
igual entre os seus, estes cuidadosamente definidos pela
organizao eclesistica. J os dominicanos haviam enviado seus
missionrios frica apoiados pelo Estado portugus, difundindo
o culto de santos e virgens negras num catolicismo separado.
Este, ao incorporar elementos culturais do novo grupo abordado,
redefinia-os de acordo com os princpios da cristandade, e mais
especificamente, de acordo com as necessidades de manuteno
da dominao [pg. 34] imposta ao africano: o sacerdote era
definitivamente associado ao soldado conquistador e ao
mercenrio escravagista.
As irmandades partem dos nexos iniciais de distino entre
os indivduos, grupando-os, assim, a partir de suas caractersticas
raciais e sociais, e cultivando-as como rivalidades. Irmandades
ligadas a uma nao, ou exclusivamente a um sexo, irmandades
de negros africanos, negros brasileiros, de mulatos e,
evidentemente separadas, irmandades de brancos. Integrados
todos como fiis, mas percebidos como diversos e assim
hierarquizados, eis o princpio da Igreja colonial, uma ordem
coreograficamente explicitada no espetculo das procisses,
assegurando a diferenciao das raas e a diviso no meio
escravo. Esse catolicismo negro geraria uma srie de subcultura
de etnias, de castas, se constituindo, com a Independncia e
depois com a Abolio, em embrio das subculturas de classe.
no seio das confrarias negras que as tradies africanas
ganhariam o espao necessrio sua perpetuao na aventura
brasileira, sincretizadas com o cdigo religioso do branco, de
maneira mais ou menos formal, inicialmente apenas como um
disfarce legitimador, mas progressivamente absorvendo o
catolicismo como uma influncia profunda que se expande nas
religies populares urbanas negras da modernidade.
Entretanto, na rua, evitada pelos aristocratas, domnio do
povinho, do negro, progressivamente se contestam essas
distines no meio popular, e nela surgem as grandes
manifestaes do encontro dessa pluralidade de civilizaes
africanas de extrema expressividade mstico-religiosa. O Ocidente,
via Portugal e seu catolicismo ritualizado, j vira renascer
surdamente no sagrado a festa recalcada pela Inquisio. As
narrativas, como a de Froger, descrevem as procisses medievais
portuguesas:
a do Santssimo Sacramento, que no menos considervel nesta
cidade por uma quantidade prodigiosa de cruzes, de relicrios, de ricos
ornamentos e de tropas em armas, de corpos de ofcios, confrarias e de
religiosos, como tambm ridcula pelos grupos de mscaras, de
msicos e de danarinos, os quais por suas posturas lbricas
atrapalham a ordem desta santa cerimnia (Froger, Voyages de Mr. de
Gennes).
Mas em Salvador que se redefine o calendrio cristo num novo
ciclo de festas populares, quando nos santos catlicos seriam
encontradas correspondncias e identidades associadas aos orixs
nags, homenageados no s em cerimnias privadas, mas, a
partir de ento, com toda exuberncia na festa catlica, nas
ruas, nas praas, nos mercados e mesmo nas igrejas da cidade.
Esse ciclo de festas populares que daria substncia
identidade profunda de Salvador, criando elementos fundamentais
sua personalidade moderna de cidade, se inicia com o Advento,
um ms antes do Natal, aberto pela festa de santa Brbara, a
Ians, que j na metade do sculo XIX tinha a participao
marcante dos africanos, celebrando sua entidade de devoo no
mercado dos Arcos de Santa Brbara. Dias depois homenageada
Iemanj, no dia de Nossa Senhora da Conceio da Praia, a festa
armada em torno de sua igreja, onde, j no princpio do sculo
XIX, se misturavam brancos, pretos e mulatos, as negras com
seus turbantes, suas camisas finamente bordadas e saias
franzidas e rodadas. O Natal era [pg. 35] pretexto para uma srie
de manifestaes dos negros: cheganas, bailes, pastoris, bumba-
meu-boi e cucumbis, que saam rua revelando, mesmo em meio
da dura represso provocada pelas insurreies dos escravos, a
progressiva afirmao do negro na cidade. Os cucumbis baianos
reapareceriam no Rio de Janeiro anos depois, em ranchos negros
onde se cantava e danava msica africana em procisses que
atravessavam os bairros populares, s interrompidas pelas luzes
da manh.
A festa de Primeiro de Janeiro, que tinha seu pice na
procisso de Nosso Senhor dos Navegantes, tambm seria ligada
indiretamente ao negro, j que era patrocinada por capites e
pilotos dos navios negreiros, se acostumando o povo a associ-la
aos batuques de rua, s rodas de samba e capoeira nas praas e
em torno da igreja do santo. Uma das mais importantes, e ainda
hoje celebrada em moldes semelhantes, a do Senhor do Bonfim,
a festa de Oxal, que leva, na quinta-feira que a precede,
inmeros negros sua igreja para a lavagem do cho, numa
manifestao de devoo africana e piedade crist. Mulheres
vestidas com suas roupas rituais brancas levam, com um
equilbrio elegante, potes de barro com gua, acompanhadas de
carros e carroas decorados por bandeirolas e serpentinas sempre
brancas. O prncipe Maximiliano da ustria, insuspeitadamente
excelente cronista, descreve com um sentido cinematogrfico,
onde no est ausente um excelente fecho de cena, uma dessas
ocasies, por volta da metade do sculo passado, enfatizando o
surpreendente convvio da festa africana com a reunio da
sociedade baiana e o rito catlico:
O tumulto de uma feira reinava, neste momento, na praa e na igreja.
A populao negra, em roupas de festa, empurrava-se com muito
barulho. Viam-se suspensas sobre as cabeas caixas de vidro repletas
de comestveis. Pequenos grupos de vendedores de cachaa formavam
como ilhas no meio deste oceano de seres humanos. Ns nos deixamos
levar pela torrente at o edifcio principal. Penetramos, por uma porta
lateral, como gua que se precipita numa represa. Uma longa fila de
jovens e alegres negrinhas ocupavam a extenso de um dos muros.
Seus encantos bronzeados estavam mais velados que ocultos, sob
gazes transparentes. Assumiam as atitudes mais cmodas, as mais
vontade, e as mais voluptuosas vendiam toda sorte de objetos de
religio, amuletos, velas e comestveis que levavam em cestas. Tudo
ocorria muito alegremente na sala. Indo avante com a multido ou em
sentido oposto, chegamos a uma vasta pea decorada de ricos
ornamentos. Alguns utenslios indicavam que era a Sacristia. Um
eclesistico, amarelo como um marmelo, apoiado num cofre, ao lado
dos ornamentos do altar, entretinha-se, da maneira mais ntima, com
algumas senhoras. A corrente nos levou como nos havia trazido,
empurrou-nos e nos arrastou atravs da sala do mercado e nos jogou,
enfim, apertando-nos at quase sufocar, numa grande sala de aspecto
resplandecente. Lustres inumerveis e carregados de velas acesas
desciam do teto; as paredes brancas eram ornadas com quadros. Um
ar de festa e de alegre diverso reinava em todos os rostos. Parecia que
faltavam apenas os violinos para comear a dana. A sala estava
cheia; via-se apenas caras negras, amarelas e morenas, e entre elas as
mais belas mulheres; todas pareciam encantadas e exaltadas pela
influncia da cachaa. Como trofu de festa, elas levavam uma
elegante vassoura. Todos se misturavam e se empurravam. Sentia-se
que era uma festa longamente esperada onde os negros sentiam-se em
casa. A sociedade toda parecia concordar em manter uma conversa
incessante e barulhenta. E ns, tambm, conversvamos alegremente
e em voz alta [pg. 36] atravessando a sala. De repente, na outra
extremidade, notei, em um ponto elevado, um personagem que ia e
vinha com ar inquieto, passava os olhos sobre um livro, olhava ao
redor de si e parecia, de vez em quando, mergulhar e tornar a subir.
Era o eclesistico de cor amarela que cumpria as cerimnias da missa
(pois certamente no se poderia chamar aquilo de missa) (Maximilien
dAustriche, Souvenirs de ma vie).
Alm de se envolver com a organizao das festas religiosas
que se profanizavam nas ruas uma vez cumpridos os rituais, as
irmandades prestavam assistncia social a um meio
completamente ignorado pelas instituies pblicas, com exceo
da fora policial. com as reservas das irmandades que eram
garantidos os enterros dos negros, como atravs delas se
conseguiam alguns recursos para rfos e mesmo um auxlio para
muitos velhos ou incapazes de se sustentar. possvel mesmo se
associar a decadncia das irmandades de cor, por volta do terceiro
quarto do sculo, criao de novas formas institucionais no meio
negro e mesmo de instituies municipais de assistncia pblica,
que absorveriam muitas de suas antigas funes, a larga vivncia
nas irmandades, egb, se somando ao convvio nas suas
associaes creditcias, esusu. As irmandades, assumindo os
moldes burocrticos da associao, com estatutos, por vezes at
exageradamente valorizados, e procedimentos regulares, serviriam
tambm para o negro como uma introduo s formas de
procedimento e trnsito social da modernidade, racionalizadas
pelo sistema de organizao e documentao produzido pelo
Estado moderno e pelas
instituies financeiras,
comerciais e industriais europias.
Juntamente com as irman-
dades, surgem as primeiras
instituies urbanas autnomas
de negros. Juntas de alforria que
se [pg. 37] organizam entre negros
de ganho e libertos, para a compra
da liberdade dos parentes e dos
irmos de nao. Essas
organizaes procuravam apoi-
los tambm nos primeiros passos
depois da compra da liberdade,
quando, uma vez pago o senhor
Ilustrao de Armando Pacheco. In: Luiz Edmundo, op. cit., v.l, p.219.
com todas as suas economias, o negro se via sem recursos, alm
de sua fora e seu engenho, encontrando moradia entre os seus,
no nag Tedo no alto da subida do Alvo, ou na rua dos Capites,
perto da Tira-Chapu, nos bairros populares como o Santo
Antnio Alm do Carmo, nas casas com telhas romanas e sem
forro, com janelas sem vidraa e venezianas de madeira. A prpria
roupa marcava a nova situao, principalmente, sapatos que,
mesmo carregados na mo, davam dignidade de homem livre a
seu proprietrio. notvel tambm a organizao de grupos de
trabalhadores negros, como a Companhia dos Africanos Livres,
que trabalharia com sucesso em obras no Jequitinhonha e em
outras, promovidas pela municipalidade, para modernizar a
cidade arcaica em sua paisagem e nos seus servios, como mais
tarde e mais radicalmente sucederia no Rio de Janeiro.
Relatava Manuel Querino, em Costumes africanos no Brasil:
Praticaram aqui na Bahia, quase o mesmo, os africanos. Ainda no
existiam as caixas econmicas, pois que a primeira fundada na Bahia
data de 1834, no se cogitava ainda das caixas de emancipao e das
sociedades abolicionistas, antes mesmo de se tornar to larga como
depois se tornou a generosidade dos senhorios, concedendo cartas de
alforria ao festejarem datas ntimas, e j havia as caixas de
emprstimo destinadas pelos africanos conquista de sua liberdade e
de seus descendentes, caixas que se denominavam Juntas.
Com esse nobilssimo intuito reuniram-se sob chefia de um deles, o de
mais respeito e confiana, e constituam a caixa de emprstimos.
Tinha o encarregado da guarda do dinheiro um modo particular de
anotaes das quantias recebidas por amortizao e prmios.
No havia escriturao alguma; mas proporo que os tomadores
realizavam suas entradas, o prestamista ia assinalando o recebimento
das quantias ou quotas combinadas, por meio de incises feitas num
bastonete de madeira para cada um.
Outro africano se encarregava da coleta das quantias para fazer
entrega ao chefe, quando o devedor no ia levar, espontaneamente, ao
prestamista a quantia ajustada.
De ordinrio, reuniam-se aos domingos para o recebimento e
contagem das quantias arrecadadas, comumente em cobre, e tratarem
de assuntos relativos aos emprstimos realizados.
Se o associado precisava de qualquer importncia, assistia-lhe o
direito de retir-la, descontando-se-lhe, todavia, os juros
correspondentes ao tempo. Se a retirada do capital era integral, neste
caso, o gerente era logo reembolsado de certa percentagem que lhe era
devida, pela guarda dos dinheiros depositados. Como era natural, a
falta de escriturao proporcionava enganos prejudiciais s partes.
s vezes, o muturio retirava o dinheiro preciso para sua alforria, e
diante dos clculos do gerente o tomador pagava pelo dobro da
quantia emprestada. No fim de cada ano, como acontece nas
sociedades annimas ou de capital limitado, era certa a distribuio de
dividendos. Discusses acaloradas surgiam nessas ocasies, sem que
todavia os associados chegassem s vias de fato, tornando-se
desnecessria e imprpria a interveno policial.
Assim auxiliavam-se mutuamente, no interesse principal de obterem
suas cartas de alforria, e dela usarem como se encontrassem ainda
nos sertes africanos. Resgatavam-se pelo auxlio mtuo de esforo
paciente, esses heris de trabalho. [pg. 38]
A populao escrava, desta forma, se dividia entre escravos
alforriados, muitos que ainda se mantinham sob obrigaes com
os senhores, e os libertos. Essa subclasse de indivduos libertos,
ou em processo de se libertar, se caracterizava a partir da postura
de cada um frente a sua comunidade de origem, seja de nao ou
de ofcio, uns identificados com seus irmos escravos, envolvidos
tanto com as sublevaes, apesar de j libertos, quanto com as
juntas de alforria; outros se afastando, se individualizando, alguns
procurando se mimetizar com os brancos e ascender. Muitos
negros de ofcio chegam a comprar escravos para escapar das
tarefas braais estigmatizantes associadas escravatura, negros
que carregavam vistosamente os instrumentos de trabalho de seus
novos donos, tambm negros, pela rua baiana.
Entre os mulatos, j por natureza mais aproximados do
mundo dos brancos, alguns eram integrados aos estratos mais
altos da populao. Entretanto, na vida brasileira e no mundo
moderno em geral, a cor da pele no necessariamente define a
prtica e a viso de mundo de cada indivduo. Nos mulatos,
particularmente, se manifesta uma aguda sensibilidade para a
questo da identidade racial, muitas vezes resolvida por uma
aderncia a um dos extremos, sem se perceberem como uma
possibilidade virtual, como uma metfora biolgica de uma
nacionalidade brasileira vinda do encontro das diversas raas de
nossa formao.
Muitos forros trabalham nas foras militares e policiais,
confinados s posies subalternas como no mundo civil, expostos
aos trabalhos mais pesados. Muitas vezes alguns no puderam
aceitar e se desesperaram, com as lembranas que tais tarefas
brutas traziam dos seus dias como escravo, esmagados pela
impresso de que, apesar da carta de alforria, nada tinha mudado,
de que haviam sido enganados. Outros libertos negam-se a aceitar
trabalho ligado ao prprio sistema escravagista, principalmente os
postos de controle e represso, estes cada vez mais difceis de
serem preenchidos, como confirma a incompreenso de Vilhena:
A Bahia que possue uma numerosa populao contudo h
dificuldades de conseguir todos os obreiros livres, geralmente h
queixa nisto: Exmo. Sr., em meu poder mais de 60 pedidos para
lugares de feitores, apontadores, mas ningum para trabalhar, h
repugnncia, eis ahi o exemplo mais evidente em que vivem, preferem
pois a vadiao a hum trabalho honesto, pelo qual conseguem o po
necessrio para o sustento de suas famlias, e habilitam-se desta
maneira para os empregos de feitores, e apontadores, pois quanto a
mim, prefiro um feitor dentre os melhores trabalhadores, de que um
homem que no sabe trabalhar e no pode mandar em consequncia
disto os outros (Luiz Vilhena, Cartas soteropolitanas).
Na recente classe de bacharis e doutores que se afirmavam
progressivamente na sociedade baiana, muitos so filhos de
escravas negras, ou seus descendentes, mulatos claros de
sobrecasaca e cartola identificados com os novos valores europeus
modernizantes, os gentlemen de cor de quem falam na poca os
viajantes europeus, de passagem na capital da provncia. Esses
homens progressivamente identificados com as elites, e por elas
acolhidos, vivem uma vida parte da grande comunidade negra
das ruas, tendo mesmo eventualmente posies contra os seus
irmos de origem, como relata Freyre em [pg. 39]
Ordem e Progresso:
Em 1884 apresentaram-se candidatos Cmara dos Deputados
Gerais por esta provncia (Bahia), cerca de trinta cidados. De todos
eles s havia um homem de cor era o conselheiro Domingos Carlos
da Silva, um ex-professor da faculdade de medicina desta provncia.
Pois bem: o nico que em documento escrito e pblico teve a coragem
de pedir sufrgios em nome da escravido. Foi alm do sr. Pedro Moniz
digno representante dos engenhos de Santo Amaro e que, com os
srs. Lacerda Werneck e Coelho Rodrigues, votou contra a abolio dos
aoites.
Na verdade, a sociedade baiana no perodo surpreende os
europeus, principalmente aqueles que conheciam outras
sociedades onde o negro havia sido introduzido como escravo,
como revela numa carta o ministro francs no Brasil, o conde de
Alexis Saint Priest:
Chegando aqui eu pensava que os mulatos formavam uma classe
parte, rejeitada pelos brancos e dominando os negros, mas sou forado
a convir que mesmo encontrando muitos indivduos mulatos, estou
ainda procura do partido dos homens de cor. Na Martinica e nas
outras ilhas, a orgulhosa aristocracia dos brancos l nascidos tornou
temvel a associao dos mestios; a vaidade ferida fez muitas vezes
derramar o sangue de uns pelos outros, mas no Brasil, nem essa
aristocracia branca nem esta democracia parda existem na realidade.
Os mulatos no formam em absoluto uma classe parte, h muitos
mulatos nos clubes, mas no h clubes de mulatos. Eles esto
misturados, confundidos com todo o mundo, se os encontra na
escravido, nos mais vis dos ofcios, mas tambm na alta sociedade e
no Senado. A guarda permanente composta metade de mulatos que
vivem s mil maravilhas juntos e servem fielmente ao governo atual.
Na diviso dos partidos, tal como ela existe ainda hoje, seria bem
difcil designar um lugar s pessoas de cor, nenhum deles
inacessvel aos homens de cor.
No entanto, afastados dos sales e dos escritrios, da poltica
e dos negcios, nas ruas do Centro e da orla, nos bairros
populares, que surgem os negros. com a proibio do entrudo
em 1853, e o deslocamento das manifestaes processionais
negras para a poca do Carnaval baiano, que este comea a tomar
uma feio moderna com seus blocos e cordes, muitos deles com
intenes crticas, que ressurgem no Carnaval carioca. Aparecem
clubes carnavalescos liderados por africanos, crioulos e mestios,
j para o final do sculo, como a Embaixada Africana, os Pndegos
da frica, a Chegada da frica, e muitos outros. Atravs dos
nomes, claro estava o sent
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