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Terceira parte
TEMAS BRASILEIROS
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Captulo 9
BRASIL : ESTADO E SOCIEDADE EM PERSPECTIVA 1
I
Procuramos, em captulo anterior, indicar como se poderia reorientar a discusso do
tema do desenvolvimento poltico de maneira a compatibilizar preocupaes analticas e
normativas.2 Nosso objetivo agora o de aplicar a perspectiva ali elaborada ao exame de
certos aspectos da evoluo sociopoltica brasileira. Como se ver, esse exame nos leva
crtica de algumas tentativas de diagnosticar o processo brasileiro, as quais se caracterizam pelo recurso a categorias que salientam traos a serem tomados como relativamente
idiossincrsicos e envolvem, de certa forma, a renncia a recorrer a um marco terico mais
amplo que procurasse apreender a lgica do processo de desenvolvimento e pudesse
pretender esclarecer as peculiaridades da evoluo brasileira como a conseqncia de uma
conjuno particular de variveis ou fatores bsicos que estariam geralmente em jogo
naquele processo. Ressalte-se que, no que se refere especificamente discusso do caso
brasileiro, o que segue est longe de ser sobretudo um esforo de apresentar dados novos.
Com algumas excees, estaremos lidando com fatos e proposies bastante conhecidos,prendendo-se o interesse que possa ter nossa discusso antes interpretao proposta e a
suas possveis conseqncias para o melhor entendimento da realidade poltica brasileira.
A caracterizao feita no captulo 5 do estdio pr-ideolgico (ou tradicional)
de desenvolvimento poltico se situa no quadro definido pela emergncia do estado-nao
moderno como forma de organizao poltica. Do ponto de vista de sua relevncia direta
para os problemas polticos contemporneos, existem boas razes para assim limitar o
campo da discusso. No obstante, bastante claro que isso redunda em deixar de lado a
maior parte da histria humana, e poderemos talvez aprimorar a compreenso do que
caberia designar como a fase pr-ideolgica da evoluo poltica brasileira sem falar, de
maneira geral, do desenvolvimento do estado-nao na poca moderna se nos
1 Trabalho originalmente publicado em Cadernos DCP, no. 2, dezembro de 1974. Aparece aqui compequenos cortes e adaptaes.2 Solidariedade, Interesses e Desenvolvimento Poltico, captulo 5 do presente volume.
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dispusermos a ampliar por um momento os horizontes e a observar a poltica tradicional
de uma perspectiva mais abrangente, a partir da qual este rtulo surge como gigantesca
categoria residual.
Tomemos os dois aspectos bsicos da expanso da solidariedade territorial e do
mercado poltico, isto , os que tm a ver com a institucionalizao do poder, em suas
dimenses ecolgica e de presena governamental, e os que se referem eliminao de
focos particulares e adscritcios (no-voluntrios) de aglutinao e diferenciao dos
indivduos. Se observamos as maneiras pelas quais esses dois aspectos se relacionam no
desenvolvimento das formas de organizao de coletividades territoriais at os nossos dias
apesar dos riscos inerentes a essa espcie de exerccio , alguns indcios disponveis
sugerem um padro que seramos tentados a designar como circular: a partir de uma
condio em que se realizam em certa medida, na ausncia de impulso significativo centralizao governamental, os requisitos do mercado poltico que tm a ver com a
igualdade e com a irrelevncia de princpios adscritcios, pareceria ocorrer uma evoluo
na qual, num primeiro momento, as foras que levam centralizao e integrao
territorial criariam obstculos igualdade e intensificariam o vigor de princpios
adscritcios de diferenciao e estratificao, produzindo, contudo, em momento posterior
de sua atualizao, um renovado impulso igualitrio e antiadscritcio, como condio
para o prprio florescimento de formas de organizao poltica de maior escala.
Sem dvida, esse enunciado fatalmente evocar concepes tais como a visomarxista de um comunismo primitivo a ser recuperado em forma superior atravs do
movimento dialtico da histria humana. Contudo, para aqueles a quem possam repugnar
generalizaes grandiosas desse tipo, observemos que os indcios em que nos estribamos
para sugerir o padro esboado, algumas implicaes dos quais podem ser teis
compreenso de certos aspectos da evoluo poltica brasileira, correspondem a
verificaes de estudos feitos na melhor tradio de empirismo e rigor acadmico.
bastante conhecida a tese, proposta por Barrington Moore, de que o processo de
modernizao resulta da combinao, a partir do sculo XV, de dois subprocessos que no
se acham universalmente vinculados: a criao de governos centrais fortes e a extenso das
relaes de mercado.3 Apesar de que no se possa dizer, com observa o prprio Moore, que
as relaes de mercado estejam completamente ausentes das formaes sociais anteriores
3 Barrington Moore, Jr., Social Origins of Dictatorship and Democracy: Lord and Peasant in the Making ofthe Modern World, Boston, Beacon Press, 1966.
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deflagrao do processo de modernizao, sua intensa penetrao de todos os setores da
estrutura social claramente um trao mais distintivo desse processo do que a existncia de
governos centrais fortes, proposio esta que se sustenta pela simples referncia ao caso das
chamadas burocracias agrrias.4 A extensa vigncia do princpio do mercado e das
relaes de mercado, com suas implicaes para os prprios fundamentos da vida social,
certamente um ponto consensual na caracterizao do processo de modernizao, e a
citao abaixo, que pode ser estendida a processos paralelos na esfera no-econmica,
representa um lugar comum da literatura pertinente:
Uma das proposies geralmente aceitas como vlidas pelos economistas,pelo menos desde Adam Smith, a de que o desenvolvimento econmico (...) estassociado a um grau crescente de diviso do trabalho. Isso significa que o progresso
econmico tende a levar gradualmente ao predomnio da especificidade das tarefas produtivas realizadas. Simultaneamente com o incremento do nmero e davariedade de funes altamente especficas se d certa democratizao ouuniversalizao dos processos econmicos, j que o fato de uma atividadeprodutiva requerer habilidades intelectuais ou manuais especializadas acarreta queela s possa ser executada adequadamente por algum que possua tais habilidades.A competio por tais posies se torna, em conseqncia, aberta a todos os quedetenham certas qualificaes objetivamente definveis, em vez de se limitarqueles que ocupem determinadas posies ou status na sociedade. Mas essa formade preenchimento dos cargos produtivos, em vez de seu preenchimento em funodas posies sociais tradicionais ou dos laos familiares dos membros da sociedade,pode ser considerada como um aspecto significativo do processo que resulta em
regular as relaes econmicas com base no desempenho antes que emcaractersticas adscritcias, o que, sob o rtulo de individualismo, se afirma seruma caracterstica tpica das economias industriais modernas.5
Tendo isso em mente, o ponto que procuramos estabelecer com respeito ao padro
anteriormente mencionado se torna claro quando nos voltamos para certas constataes de
um estudo de Stanley H. Udy.6 O estudo trata das formas de organizao do trabalho entre
povos no-industriais, e seus dados, tomados dos Human Relations Area Files, de New
Haven, referem-se a 150 sociedades no-industriais. Se bem que seja impossvel reproduzir
4 A principal referncia bibliogrfica a respeito, que retoma a discusso do conceito a partir de suaformulao, em Marx, em termos do modo asitico de produo, Karl A. Wittfogel, OrientalDespotism: A Comparative Study of Total Power,New Haven, Yale University Press, 1957. Veja-setambm S. N. Eisenstadt, The Political Systems of Empires, Nova York, The Free Press, 1962.5 Bert F. Hoselitz, Sociological Aspects of Economic Growth, Glencoe, Illinois, The Free Press, 1960, p. 35.6 Stanley H. Udy, Jr., Organization of Work, New Haven, Human Relations Area Files Press, 1959.
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aqui a complexidade das verificaes e dos argumentos de Udy, a contribuio principal do
estudo pode ser resumida em dois conjuntos de observaes.
1. Os traos organizacionais geralmente considerados como caractersticos das
sociedades industriais e modernas, sinteticamente formulados na passagem de Hoselitz
acima citada, no constituem, de acordo com os resultados obtidos por Udy, uma
peculiaridade de tais sociedades. Ao contrrio, so tambm caractersticos, de maneira
consistente com as necessidades do sistema produtivo, de um dos tipos de sociedade no-
industrial distinguidos por Udy. Diferentemente do que se poderia esperar sob certa luz,
porm, tal tipo corresponde s sociedades tribais cujos sistemas produtivos so mais
primitivos, no contando com agricultura sedentria, e cujas formas de organizao
poltica poderiam ser consideradas mais atrasadas de certo ponto de vista, poisdesconhecem o governo centralizado. Segundo Udy, as formas de organizao do trabalho
que prevalecem nessas sociedades tendem a caracterizar-se por traos tais como
especificidade quanto diviso do trabalho, nfase no desempenho em vez de em
qualidades adscritcias e predomnio de critrios territoriais para o recrutamento (com a
admisso s unidades produtivas sendo garantida a quem quer que esteja
convenientemente presente e fisicamente qualificado, independentemente de vnculos
sociais),7 o qual assume formas especificamente contratuais e voluntrias.
2. De maneira diversa, as sociedades de tipo campons, que se caracterizam pelaexistncia tanto de governo centralizado quanto de agricultura sedentria, so as que
exibem formas de organizao do trabalho tipicamente no-modernas, as quais se
distinguem por traos tais como ausncia de especificidade na diviso do trabalho, nfase
em qualidades adscritas e predomnio de critrios sociais para o recrutamento, que pode
ser familial, quando a obrigao de participar se baseia em status de parentesco, ou
custodial, quando se baseia em relaes de poder, com o pessoal sendo retirado de grupos
definidos em termos predominantemente polticos. Segundo Udy, isso se deve ao fato de
que a existncia de governo centralizado tende a estar associada com maior grau de
concentrao dos recursos disponveis e formas mais rgidas de estratificao social geral.
O declnio da eficincia que presumivelmente resulta da tendncia ao predomnio de tais
formas sobre os anteriores pode ser assimilado devido a que ele se faz acompanhar, com a
7 Ibid., p. 46.
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prtica da agricultura sedentria, por condies que reduzem a importncia marginal de
atividades econmicas de xito aleatrio, que so aquelas em relao s quais o problema
da utilizao tima dos recursos materiais e humanos se coloca com agudeza.8
A elaborao que faz o prprio Udy de seus resultados ressalta o paradoxo que eles
situam relativamente ao desenvolvimento industrial dos atuais pases subdesenvolvidos,
que so predominantemente da variedade camponesa: os requisitos do industrialismo que
correspondem esfera poltica, os quais incluiriam governo centralizado e concentrao de
recursos para tornar possvel a capitalizao, seriam de molde a levar a formas de
organizao econmica que no apresentam afinidade com o industrialismo; em outros
termos, a fim de que se desenvolva a organizao contratual do tipo prprio da indstria,
deveriam estar presentes condies que por si mesmas tendem, diversamente, a produzirformas custodiais.9Seja qual for a significao dessa proposio, ou sua relevncia para os
problemas do desenvolvimento econmico e industrial, do ponto de vista do
desenvolvimento poltico, concebido como a expanso do mercado poltico, as verificaes
de Udy lanam luz nova sobre as relaes entre as diferentes dimenses envolvidas nessa
concepo, especialmente as que se do entre a idia da emergncia de um foco de
integrao e de solidariedade territorial de larga escala contida na noo de
institucionalizao do poder e os ingredientes igualitrios da noo de institucionalizao
da autoridade. Mais particularmente, elas corroboram a proposio de que o alargamentodo mbito ou alcance da solidariedade poltica em outros termos, o avano na direo do
estabelecimento do mercado poltico sobre unidades territoriais amplas passa
necessariamente atravs de um estdio no qual prevalecem foras antimercado ou, na
expresso de Udy, custodiais.
Os dados de Udy so de natureza etnolgica, sendo revelador observar que sua
definio de governo centralizado, um dos ingredientes bsicos da condio paradoxal
descrita, refere-se existncia de um grupo capaz de monopolizar o uso legtimo da fora
em qualquer coletividade que contenha mais de 1500 pessoas. 10 As sociedades que surgem
como provveis objetos de ateno se se discute a poltica tradicional em perspectiva
diversa da do etnlogo so claramente muito mais complexas, e cabe indagar sobre o
8 Ibid., captulo 4, especialmente pp. 56-7 e 70.9 Ibid., p. 70.10 Ibid., p. 64.
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interesse de se recorrer proposio acima se se trata de aprender as caractersticas e os
processos prprios de tais sociedades. Como seria possvel, por exemplo, acomodar a
nfase em ingredientes custodiais com a distino de Max Weber entre o patrimonialismo e
o feudalismo como as duas variantes principais da dominao tradicional?
No que diz respeito ao patrimonialismo, a concepo do governo patrimonial como
uma extenso da famlia do soberano, na qual a relao entre este ltimo e seus
funcionrios permanece sobre a base de autoridade paterna e dependncia filial,11
apresenta suficiente afinidade com a condio custodial de que fala Udy para dispensar-
nos de maiores elucubraes. Mas o elemento contratual que est presente no feudalismo,
propiciando mesmo o critrio para distingui-lo do patrimonialismo, pareceria opor-se
concepo, que as constataes de Udy tenderiam a corroborar, da poltica tradicional
como um estdio antimercado no processo de expanso do mercado poltico. Contudo,alm do fato de que as estruturas polticas que correspondem aos dois termos, como
observa Reinhard Bendix,12 tendem a mesclar-se imperceptivelmente, tornando-se com
freqncia problemtico diferenci-las quando se deixa o nvel abstrato em que se
estabelece a distino entre elas, dificilmente seria necessrio salientar o carter custodial
da estrutura feudal to logo o foco de observao se desloque das relaes entre o prncipe
e os bares, na expresso de Maquiavel, para os diversos elementos de rigidez que
permeiam a rede de relaes feudais.
Nessa perspectiva, cabe fazer duas observaes com respeito concepo deBarrington Moore acima exposta, segundo a qual o processo de modernizao surge como
a combinao da criao de governos centrais fortes e da expanso das relaes de
mercado. A primeira tem a ver com o elemento contratual prprio do feudalismo e com a
objeo que esse elemento pareceria justificar proposio central aqui formulada: a nfase
de Moore na expanso das relaes de mercado, na medida em que se aplica ao processo
europeu de modernizao que se desencadeia a partir de um passado feudal e Moore
parece claramente ter em mente sobretudo o caso clssico de modernizao tal como ocorre
no ocidente europeu , dirige-se precisamente eliminao dos ingredientes custodiais
inerentes estrutura feudal.
Mas o ponto principal que pretendemos assinalar o de que a idia da combinao
dos dois processos deve ser apreciada contra o pano de fundo da atuao secular, nos casos
11 Cf. Reinhard Bendix, Max Weber: An Intellectual Portrait, Nova York, Doubleday, 1962, p. 360.12 Ibid., p. 360.
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a que a concepo de Moore parece aplicar-se mais diretamente, de foras que, se
representavam restries operao do princpio do mercado, ao mesmo tempo tornaram
possvel a emergncia de comunidades lingsticas e culturais de larga escala e de pelo
menos uma forma precria de integrao poltica, freqentemente em bases dinsticas. Em
outros termos, o fato de que devamos ter a combinao dos dois processos como requisito
da modernizao no significa que tais processos devam dar-se de maneira simultnea. Se
observamos a experincia de construo do moderno estado-nao que tem lugar na Europa
ocidental, a efetiva simultaneidade do fortalecimento de governos centrais contra as foras
centrfugas do feudalismo, por um lado, e da expanso das relaes de mercado, por outro,
mostra-se baseada em desenvolvimentos anteriores nos quais os ingredientes custodiais
prprios do feudalismo exerciam claro predomnio, desenvolvimentos este que respondem
por certo grau de integrao previamente ao desencadeamento do processo demodernizao. Noutros casos em que uma tradio de centralizao burocrtica pode haver
assegurado precoce integrao territorial, como ocorre nas burocracias agrrias, a criao
de um estado-nao moderno provavelmente envolver sobretudo o problema de estender
as relaes de mercado antes que o de criar um governo central forte.13 Finalmente, em
ainda outros casos, tais como os que correspondem fundao de novas sociedades como
conseqncia da expanso colonial das potncias europias, o processo de construo
nacional e de edificao do estado pode requerer formas ainda distintas de se combinarem e
ordenarem os ingredientes de poder e de mercado que estaro necessariamente presentesnele. aqui que este argumento se torna diretamente relevante para a discusso da poltica
tradicional no Brasil.
II
Um debate recorrente entre historiadores e cientistas sociais brasileiros gira em
torno do diagnstico adequado da estrutura social e poltica que se estabelece no Brasil nos
13 Em outros termos, se se decompe a expresso de Moore relativa necessidade de um governo centralforte, o problema neste caso, alm da expanso das relaes de mercado, seria antes fortalecer quecentralizar. O problema aqui sugerido tem claramente a ver com a distino proposta por diversos autoresentre volume de poder e distribuio de poder. Veja-se, por exemplo, Samuel P. Huntington, PoliticalOrder in Changing Societies, New Haven: Yale University Press, 1968, pp. 143 e seguintes.
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primrdios da colonizao, bem como das conseqncias de sua evoluo posterior para a
conformao da realidade poltica brasileira de nossos dias. A forma mais geral que
costuma assumir esse debate, o qual foi reaberto por Simon Schwartzman anos atrs,14 a
do primado do estado sobre a sociedade, ou vice-versa, na evoluo histrica do pas.
Como sugerido por Schwartzman, Nestor Duarte e Raimundo Faoro propiciam
talvez as melhores ilustraes das posies com respeito questo.15 Duarte, filiando-se a
uma tradio de pensamento que inclui numerosos autores, salienta o poder da aristocracia
rural e a autonomia dos ncleos privados para sustentar que se atentamos melhor, porm,
veremos que o fenmeno a salientar aqui no o dessa descentralizao, mas o da
modificao da ndole do prprio poder, que deixa de ser o da funo poltica para ser o da
funo privada.16Faoro, por sua vez, nega a significao dos aspectos da estrutura social
brasileira destacados por Duarte e outros. Como sintetiza Schwartzman, retira ele dahistria de Portugal as origens de um estado centralizado e patrimonial, transportado para o
Brasil sob a proteo britnica aps a ocupao de Lisboa por Junot em 1808, e que j se
encontrava presente na administrao colonial.17 Como conseqncia de tais origens
patrimoniais, Faoro v no aparato estatal brasileiro a fortaleza de um estamento
burocrtico permanente, apontando sua independncia com respeito estrutura social
subjacente.
O prprio Schwartzman toma posio ao lado de Faoro. Reformulando o problema
em termos de representao (em que o aparato do estado se mostra como expresso deforas sociais autnomas) versus cooptao (em que o estado prevalece sobre as foras
sociais), procura ele interpretar toda a evoluo brasileira at os dias atuais em termos do
predomnio continuado de tendncias cooptativas, predomnio este que se traduziria no
que Schwartzman v como a permanente excluso do estado de So Paulo, a cujo
dinamismo econmico se associaria o fato de ser o foco principal de tendncias
representativas na esfera poltica, do controle do poder central no pas.
14 Simon Schwartzman, Representao e Cooptao Poltica no Brasil, Dados, no. 7, 1970. Veja-setambm, do mesmo autor, Regional Cleavages and Political Patrimonialism in Brasil, tese de doutorado,Universidade da Califrnia, Berkeley, 1973, publicado em portugus como So Paulo e o Estado Nacional,So Paulo, DIFEL, 1975.15 Nestor Duarte, A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional, So Paulo, Cia. Editora Nacional,1939; Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, Porto Alegre, Editora Globo, 1958.16 Duarte,A Ordem Privada, p. 169, citado em Schwartzman, Representao e Cooptao, p. 17.17 Schwartzman, Representao e Cooptao, p. 17.
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Como aspecto algo mais especfico da questo de estado versus sociedade,
outra faceta do debate sobre a estrutura social brasileira original refere-se ao grau em que
seria possvel falar de feudalismo relativamente histria brasileira. Naturalmente, os
autores que sustentam a primazia da ordem privada afirmam tambm a existncia e a
relevncia de uma experincia feudal brasileira,18 enquanto aqueles que vem o predomnio
da aparelhagem do estado tendem a sustentar, nas palavras de Faoro, que nosso
feudalismo era apenas uma figura de retrica19 e que os traos em que alguns pretendem
ver indcios de feudalismo deveriam ser vistos antes como manifestaes, eventualmente
deformadas ou adaptadas, do esprito capitalista que presidiu colonizao do pas e a seu
desenvolvimento posterior.
O debate sobre feudalismo ou capitalismo aparece j com respeito aos primeiros
esforos de colonizao do pas atravs das capitanias hereditrias, estendendo-se para adiscusso da natureza das formas de explorao agrria que nele prevaleceram at
recentemente, ou mesmo, no que se refere pelo menos s reas rurais mais atrasadas, at os
dias atuais. O iniciador do debate foi o historiador Roberto Simonsen, que, opondo-se s
proposies de toda uma srie de autores de nomeada (Joo Ribeiro e Pandi Calgeras,
entre outros), que afirmavam o carter feudal das capitanias, apontou os traos capitalistas
da atividade econmica nelas desenvolvida.20 Procurando conciliar concepes como a de
Simonsen com a plausibilidade aparente das teses feudais no que se refere a traos tais
como a tendncia autrquica das unidades rurais de produo, Incio Rangel interveio nodebate para propor a idia de uma dualidade bsica da economia brasileira, de acordo
com a qual esta ltima seria governada, em todos os nveis, por dois tipos de leis que
operariam respectivamente nos planos interno e externo das relaes mantidas pelas
unidades de produo.21 Com respeito especificamente forma tpica de explorao
econmica agrria, baseada na escravido at o final do sculo XIX, Rangel sustenta que
18 Alm da obra de Nestor Duarte acima citada, vejam-se, por exemplo, Oliveira Vianna, InstituiesPolticas Brasileiras, Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1955, e, do mesmo autor, Evoluo do Povo Brasileiro,Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1956. Uma discusso que passa em revista as posies com respeito ao
problema pode ser encontrada em Antnio Octvio Cintra, A Funo Poltica no Brasil Colonial, RevistaBrasileira de Estudos Polticos, no. 18, janeiro de 1965.19 Faoro, Os Donos do Poder, p. 65.20 Roberto Simonsen, Histria Econmica do Brasil, 1500-1820, So Paulo, Cia. Editora Nacional, 1944;Joo Ribeiro, Histria do Brasil, Rio de Janeiro, Livraria So Jos, 1957; Pandi Calgeras, Formao Histrica do Brasil, So Paulo, Cia. Editora Nacional, 1957. Veja-se tambm Vicente Tapajs, HistriaAdministrativa do Brasil, Rio de Janeiro, DASP, 1956, vol. II.21 Incio Rangel, Dualidade Bsica da Economia Brasileira, Rio de Janeiro, Instituto Superior de EstudosBrasileiros, 1957, especialmente p. 32.
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ela estava sujeita a duas ordens de leis: as do escravismo e as do capitalismo, as quais
governavam, respectivamente, suas relaes internas e externas. Essa forma de dualidade
estendida por Rangel a todas as fases de evoluo da economia brasileira, ressaltando o
autor, com respeito ao latifndio, que no basta dizer que o latifndio uma economia
mista, feudal-capitalista, mas necessrio compreender que internamente feudal e
externamente capitalista.22 No obstante, Celso Furtado j havia convincentemente
argumentado, anteriormente publicao das teses de Rangel, contra as interpretaes
feudais das relaes econmicas que se desenvolvem mesmo internamente ao latifndio
escravocrata. A posio de Furtado se baseia na viso do feudalismo como um fenmeno
de regresso que traduz o atrofiamento de uma estrutura econmica:
Esse atrofiamento resulta do isolamento a que condenada uma economia,isolamento que se traduz em grande diminuio da produtividade pelaimpossibilidade em que se encontra a economia de tirar partido da especializao eda diviso do trabalho. Ora, a unidade colonial (...) pode ser apresentada como umcaso extremado de especializao econmica. Ao contrrio da unidade feudal, elavive totalmente voltada para o mercado externo. A suposta similitude est naexistncia de pagamentos in natura em uma e outra. Mas ainda aqui existe um totalequvoco, pois na unidade colonial os pagamentos a fatores so todos de naturezamonetria, devendo-se ter em conta que o pagamento ao escravo aquele que se fazno ato de compra deste. O pagamento corrente ao escravo seria um simples gasto demanuteno que pode ficar implcito na contabilidade (real ou virtual), sem que porisso perca sua natureza monetria.23
Particularmente entre os autores que retomaram mais recentemente as questes
envolvidas no debate, em uma ou outra verso do mesmo, a discusso se processa tendo em
vista as implicaes das respostas dadas para o panorama brasileiro contemporneo. Assim,
a avaliao do significado real do regime estabelecido no pas em 1964 tende naturalmente
a ser condicionada pela maneira pela qual se concebem os traos dominantes na evoluo
brasileira e suas conseqncias em produzir uma tradio poltica de certo tipo. bastante
claro, por exemplo, que o carter autoritrio do regime brasileiro atual parece ajustar-se
naturalmente interpretao da evoluo sociopoltica do pas que salienta o predomnio de
tendncias cooptativas ou patrimoniais, e alguns dos autores que tm procurado
diagnostic-lo inclinam-se a no ver nele seno uma nova manifestao de duradouras22 Ibid., ambas as citaes da p. 30; sublinhado por Rangel.23 Celso Furtado, A Economia Brasileira, Rio de Janeiro, Editora A Noite, 1954, pp. 76-7. O debate sobrecapitalismo versus feudalismo foi revisado de maneira detida por Moacir Palmeira em Latifundium etCapitalisme au Brsil: Lecture Critique dun Dbat, tese no publicada, Paris, 1971.
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tendncias desse tipo.24 Por seu turno, a questo capitalismo-feudalismo se mostra, em seu
reaparecimento de algum tempo atrs, ainda mais claramente carregada de implicaes para
o diagnstico do cenrio brasileiro de nossos dias e mesmo para a ao poltica, tendo sido
objeto recentemente de viva disputa entre intelectuais e polticos de esquerda. O cerne de
tal disputa, que teve lugar na dcada de 60 e girou em torno da questo agrria no Brasil,
foi a crtica dirigida estratgia de amplas alianas contra as sobrevivncias feudais,
adotada pelo Partido Comunista Brasileiro, por parte daqueles que viam o feudalismo
brasileiro como um mito e se inclinavam posio radical de guerra total ao capitalismo,
visto como o nico responsvel pelos males da vida brasileira mesmo em suas formas
agrrias.25
O que desejamos estabelecer com respeito a tais debates tem a ver com a adequada
avaliao das questes neles envolvidas. O arcabouo terico esboado no captuloanterior, associado perspectiva alcanada na discusso das proposies de Moore e Udy,
parece-nos fornecer os meios para a apropriada colocao dos problemas. A discusso
sobre a primitiva estrutura sociopoltica do Brasil tal como se tem conduzido e as tentativas
de derivar dela a chave para o diagnstico do cenrio brasileiro contemporneo surgem a
como impondo duas reservas relacionadas. Em primeiro lugar, observa-se falta de
sensibilidade, de parte da maioria dos autores envolvidos nessa discusso, para a
peculiaridade dos problemas que se apresentam como tal em diferentes estdios do
processo de desenvolvimento poltico. Em segundo lugar, a forma antinmica em que soformuladas as questes (estado ou sociedade, feudalismo ou capitalismo e, com respeito ao
Brasil contemporneo em algumas das ramificaes do debate, autoritarismo ou
democracia) representa uma via equivocada de acesso aos problemas.
24 Para algumas interpretaes recentes do processo poltico brasileiro que recorrem, em maior ou menormedida, a essa tradio de pensamento, vejam-se, alm dos trabalhos de Simon Schwartzman anteriormentecitados: Philippe C. Schmitter, Interest Conflict and Political Change in Brazil, Stanford, StanfordUniversity Press, 1971; do mesmo autor, The Portugalization of Brazil?, em Alfred Stepan (ed.), Authoritarian Brazil, New Haven, Yale University Press, 1973,; e Riordan Roett, Brazil: Politics in aPatrimonial Society, Boston: Allwyn and Bacon, 1972, onde, pgina 28, tabela 7, rigorosamente todas asdatas importantes da histria brasileira so colocada sob o ttulo fases histricas do regime patrimonial.25 Cf. Palmeira, Latifundium et Capitalisme au Brsil. Particularmente importante nessa verso da questofeudalismo-capitalismo foi o livro de Caio Prado Jnior, A Revoluo Brasileira, So Paulo, EditoraBrasiliense, 1966, que, sustentando a inexistncia de sobrevivncias feudais no Brasil (vejam-seespecialmente pp. 50 e seguintes), suscitou numerosas reaes. Anteriormente publicao desse livro,diversos artigos do prprio Caio Prado Jnior e de outros autores, publicados sobretudo na RevistaBrasiliense, so tambm relevantes; veja-se, por exemplo, Andrew Gunder Frank, A AgriculturaBrasileira: Capitalismo e o Mito do Feudalismo, Revista Brasiliense, no. 51, janeiro-fevereiro de 1964. Oargumento contra o feudalismo brasileiro pode tambm ser encontrado em Andrew Gunder Frank,Capitalism and Underdevelopment in Latin America, Nova York, Monthly Review Press, 1967.
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Mais concretamente, o problema envolvido na discusso relacionada com estado ou
sociedade, patriarcalismo ou estamento burocrtico, prioritariamente um problema de
institucionalizao do poder ou destate-building, correspondendo basicamente ao primeiro
tipo de obstculos ao estabelecimento do mercado poltico que acima salientamos e s
condies que associamos ao estdio da poltica tradicional ou pr-ideolgica. O que
aqui est em jogo a questo da efetividade da presena da aparelhagem governamental em
todos os nveis e regies e sua capacidade de se constituir em centro de decises relevantes
para a coletividade como um todo. Pretender, portanto, caracterizar o processo poltico
brasileiro em sua evoluo em termos do predomnio originrio e permanente do estado
sobre a sociedade, ou vice-versa, representa uma dissociao imprpria desses dois
termos e significa perder de vista o fato de que o problema a situado no um mero
problema analtico, mas o foco bsico em torno do qual se desenrola o prprio processopoltico no estdio em questo. Por outro lado, caracterizando-se esse estdio precisamente
pela precria correspondncia entre a aparelhagem governamental que se pretende erigir
em centro efetivo e a coletividade em suas dimenses social e territorial, no de estranhar
a plausibilidade que ganham, conforme o ponto de vista em que nos coloquemos, tanto as
teses dos que apontam a autonomia dos ncleos privados quanto as teses opostas, que
salientam a independncia da aparelhagem do estado.
Por seu turno, o problema de autoritarismo ou democracia coloca-se no momento
em que o desenrolar do processo de desenvolvimento propicia as condies para aemergncia da poltica ideolgica. Como no caso anterior, tambm aqui a indagao sobre
se se trata basicamente ou realmente de autoritarismo ou democracia nas marchas e
contramarchas em que o processo poltico se efetua tende a ocultar o fato de que
autoritarismo ou democracia resulta ser uma frmula em termos da qual se pode descrever
o principal problema que o prprio processo envolve nesse estdio. Em termos das
categorias apresentadas anteriormente, trata-se aqui, em ltima anlise, da questo da
institucionalizao da autoridade, questo esta cuja emergncia traz para o primeiro plano
os problemas da igualdade e da legitimidade uma vez que os processos de consolidao
territorial do aparato estatal e de mobilizao social tenham sido levados a um ponto
suficientemente avanado.
Naturalmente, esta uma forma simplificada e tpica ideal de apresentar nossa
posio, e algumas qualificaes sero provavelmente necessrias para ajustar tais
13
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proposies descrio de qualquer processo real de desenvolvimento poltico. Assim,
dizer, como acima o fizemos, que o problema de estado versus sociedade o foco real em
torno do qual tem lugar o processo poltico no estdio tradicional ou pr-ideolgico de
desenvolvimento no negar que problemas relacionados competio e confrontao de
interesses de natureza variada, que no podem ser sempre reduzidos questo da
integrao poltica, esto tambm presentes naquele processo: no Brasil do sculo XIX, a
agitao relativa abolio da escravatura propicia bvia e dramtica ilustrao. Alm
disso, aos autores que estudam os traos da sociedade brasileira tradicional, na colnia e
posteriormente, em busca da chave dos problemas brasileiros contemporneos, deve-se
evidentemente conceder que os termos em que se coloca e eventualmente se resolve o
problema bsico do estdio tradicional so certamente relevantes para as feies que ir
assumir o processo poltico no estdio subseqente. Como Barrington Moore demonstroubrilhantemente,26 as condies em que se do a emergncia e a consolidao do aparato
estatal ou do centro poltico de uma sociedade vo condicionar suas perspectivas de
evoluo e restringir ou aumentar as probabilidades de que se desenvolva em uma ou outra
direo especfica, seja autoritria, democrtica ou revolucionria.
O aspecto principal de nossa objeo, contudo, dirige-se a certo ingrediente das
abordagens usualmente adotadas no debate sobre estado e sociedade que leva os autores a
procurarem por algo como uma essncia da sociedade e da poltica brasileiras que se teria
estabelecido em suas origens e se teria mostrado capaz de sobreviver de maneira antesmisteriosa. Desde que dificilmente se poderiam negar as profundas transformaes
experimentadas pela sociedade brasileira tanto ao nvel estrutural quanto ao nvel de sua
fachada institucional, tal essncia tem que ser buscada numa fluida e evasiva cultura
poltica brasileira ou numa espcie de carter nacional brasileiro. Pelo menos algumas
das tentativas de interpretar os rumos recentemente tomados pelo processo poltico
brasileiro se formulam efetivamente em tais termos, linha de interpretao esta que conta
com a possibilidade de combinar certa temtica do gosto de tericos recentes do processo
de desenvolvimento poltico com uma tradio brasileira de pensamento de razes
relativamente remotas.27 Mas mesmo aquelas interpretaes que recorrem a um vocabulrio
distinto e falam, como no caso de Schwartzman, de coisas tais como o carter cooptativo26 Veja-se Social Origins of Dictatorschip and Democracy.27 Veja-se, por exemplo, Schmitter, Political Enculturation, cap. 3 de Interest Conflict and PoliticalChange in Brazil, e a abundante referncia que a se encontra a fontes brasileiras, especialmente OliveiraVianna, a propsito da discusso da cultura poltica e do carter nacional brasileiros.
14
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algo peculiar da vida poltica brasileira so redutveis a interpretaes em termos de cultura
poltica, reduo que parece inevitvel se devem conciliar-se com as transformaes
estruturais e institucionais acima mencionadas. No admira que Schwartzman, a fim de dar
conta dosfatos da histria brasileira que ele prprio discute, seja levado a acrescentar a sua
distino bsica entre cooptao e representao uma nova distino ente
mobilizao e restrio, e a admitir, de maneira que redunda claramente em abandonar
a substncia da primeira distino, os casos de cooptao mobilizadora e representao
restritiva. Com tal jogo de palavras, at mesmo o perodo de intensos esforos visando a
mobilizar politicamente as massas brasileiras que precedeu imediatamente o golpe militar
de 1964 pode ser visto como nova manifestao da cooptao ou do patrimonialismo
brasileiros da mesma forma que o prprio golpe, cujo objetivo, que foi alcanado,
correspondeu claramente a detero processo de mobilizao.
28
Talvez seja desnecessrio acrescentar, quanto objeo s interpretaes que
recorrem idia de cultura poltica, que tal objeo no pretende negar a relevncia de
fatores subjetivos ou da psicologia social como tal. O que sustentamos antes que, quando
utilizada para a explicao da evoluo poltica de longo prazo ou mesmo secular de um
pas, como se d em algumas de suas aplicaes ao caso brasileiro, aquela noo exige que
se atribua aos componentes da cultura poltica um grau inaceitvel de permanncia e
autonomia relativamente ao substrato estrutural que lhes corresponde. Em vez de levar ao
recurso a tais suposies dbias, admitir, como o fizemos, a relevncia da soluo dadaaos problemas do estdio tradicional com respeito ao diagnstico das caractersticas
exibidas pela poltica ideolgica visa antes a ressaltar o fato de que tanto a configurao
particular de foras sociais que permite ao processo de consolidao do estado e de
integrao territorial encaminhar-se em determinado rumo quanto a que resulta do jogo de
interesses durante aquele processo no podem seno influenciar as condies em que vir a
28 Veja-se Schwartzman, Regional Cleavages and Political Patrimonialism in Brazil, cap. 6, especialmentep. 205, figura 3, onde os partidos e movimentos polticos brasileiros so distribudos num diagramaconstitudo pela combinao das dimenses cooptao-representao e mobilizao-restrio; p. 202, ondea mobilizao empreendida sob Goulart e mesmo a liderana conspiratria de Leonel Brizola so tratadasem termos de cooptao e patrimonialismo, apesar de que se sugira que estejam a combinados comrepresentao; e p. 218, onde o novo arranjo depois de 1964 descrito como uma alternativa decooptao restritiva adotada pelo sistema poltico brasileiro dada a falta de certas condies necessrias
para cooptao poltica atravs da mobilizao, como se no houvesse conflito nem foras sociaisdistintas pressionando em direes diferentes. Ocorre indagar, naturalmente, quais as razes para um golpemilitar, suspenso de direitos polticos, censura imprensa, interveno em sindicatos e universidades etc.numa sociedade cujos componentes so to incapazes de se expressarem autonomamente na esfera
poltica.
15
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dar-se a incorporao de novas foras sociais atravs da atualizao plena do processo de
mobilizao social. Assim, tais configuraes, qualquer que seja a mescla particular de
tenso e compromisso nelas envolvida, inevitavelmente definiro os parmetros iniciais a
partir dos quais se desenvolver a poltica ideolgica. Este, parece-nos, o cerne do
argumento de Barrington Moore em sua anlise dos trs caminhos que se oferecem ao
processo de modernizao poltica, onde a nfase se dirige claramente, observemos de
passagem, para variveis estruturais.
III
Se voltamos s caractersticas da sociedade brasileira tradicional que so objeto dos
debates referidos, a perspectiva aqui adotada leva a algumas observaes que permitemcolocar de maneira aceitvel as questes neles tratadas. Em primeiro lugar, a expanso
capitalista europia prov, sem dvida, um parmetro inescapvel para o processo
brasileiro de desenvolvimento, donde a conseqncia de que, em alguns de seus aspectos
fundamentais, a estrutura que gradualmente se erige a partir do perodo colonial ir
necessariamente exibir importantes caractersticas que resultam da insero do pas num
mercado mundial capitalista. Seria ocioso, portanto, negar a natureza capitalista das
atividades econmicas desenvolvidas nas diversas fases da evoluo econmica do pas.
Apesar do volume que possa ter alcanado em certos momentos a parcela da produoeconmica das unidades agrrias que se mantinha fora do mercado, parece justificado
considerar tal parcela como o resultado de uma atividade residual em confronto com a
atividade econmica voltada para o mercado e concordar com a nfase de Furtado tanto na
especializao da unidade agrria quanto na natureza monetria de seus fluxos internos de
renda.
No obstante, do ponto de vista sociopoltico e especialmente no que se refere ao
processo de edificao do estado e de institucionalizao do poder, o que temos a
emergncia de ncleos locais de poder isto , a privatizao e a disperso deste
concomitantemente com os esforos de construo de um aparato burocrtico central, bem
como formas mais ou menos precrias ou tensas, em diferentes momentos, de articulao
dos dois nveis. Em outras palavras, a feudalizao foi inquestionavelmente a forma
assumida pelos ingredientes custodiais necessrios atualizao do processo de
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institucionalizao do poder pelo menos se nos dispomos a tomar aquela expresso num
sentido que, inspirando-se nas experincias histricas clssicas de feudalismo sem
pretender incorporar toda a complexidade de traos e condicionamentos associados a tais
experincias, ressalta a conexo entre elos de comunicao e relaes de poder e assinala a
formao de gnglios relativamente isolados de interao em termos de poder e de
comunicao social geral.29Nas condies ecolgicas de amplitude territorial e escassos
recursos de comunicao que caracterizaram o pas at tempos recentes,30 e dados os
efeitos estruturais do feitio aristocrtico das polticas metropolitanas de colonizao,
particularmente em sua associao com a escravatura como fonte principal de fora de
trabalho, a feudalizao nesses termos e a disperso do poder se mostram inevitveis.31
Assim, o processo de criao de um governo central forte que Barrington Moore
destaca como um dos requisitos da modernizao passa, nas condies em que sedesdobram no Brasil os processos de edificao do estado e da nao, atravs da criao de
ncleos locais de poder. Se nos damos conta de que, em suas origens, o processo brasileiro
de desenvolvimento poltico coloca no somente um problema de state-building e de
nation-building (com a nfase que tais noes envolvem na idia de integrao, seja ao
nvel administrativo ou sociopsicolgico), mas tambm, por assim dizer, um problema de
society-building, podemos aperceber-nos de que a estrutura semifeudal resultante
representa no apenas um caso de disperso do poder quando considerada do ponto de
vista da distribuio deste , mas tambm, de outro ponto de vista, uma forma de produzirou criarpoder.
29 Para a elaborao da noo de sistemas feudais nesses termos veja-se Johan Galtung, SistemasFeudales, Violencia Estructural y Teora Estructural de las Revoluciones, Revista Latinoamericana deCiencia Poltica, vol. I, no. 1, abril de 1970, especialmente pp. 42-44.30 Um estudo da evoluo poltica brasileira que d nfase ao papel de tais fatores, talvez mesmo comalgum exagero, Oliveira Vianna, Evoluo do Povo Brasileiro,parte III, Evoluo das InstituiesPolticas.31 Talvez valha a pena notar que as tendncias autrquicas que autores como Oliveira Vianna e SrgioBuarque de Holanda salientam na unidade agrria brasileira no so necessariamente contraditrias comrespeito concepo de Celso Furtado do feudalismo como um fenmeno de adaptao regressiva devidoao isolamento. Mesmo se Furtado tem razo em ressaltar a orientao para o mercado de suas principaisatividades econmicas, parece plausvel a idia de que o que possa ter ocorrido de tendncia autrquica e,nesse sentido, feudal na unidade agrria brasileira suscetvel de ser interpretado em termos do prpriofator de isolamento que Furtado considera. Ainda que se admita que a atuao desse fator no caso dafazenda brasileira possa ter sido reduzida em comparao com o feudalismo clssico, parece bastante claroque as precrias condies de comunicao lhe impossibilitavam beneficiar-se plenamente daespecializao e da diviso do trabalho. Cf. Oliveira Vianna, Instituies Polticas Brasileiras,especialmente p. 142; e Srgio Buarque de Holanda, Razes do Brasil, Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1936,especialmente p. 102.
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O carter patrimonial e centralizador do estado portugus que se transpe para o
Brasil no parece propiciar um argumento vlido contra as tendncias feudalizantes aqui
destacadas na primitiva estrutura social brasileira.32 Sem dvida, a penetrao e a eficcia
de operao da aparelhagem administrativa colonial podem ter sido significativas em
determinados aspectos ou momentos, o que certamente se d, por exemplo, com respeito
aos interesses fiscais da metrpole por ocasio do florescimento das atividades de
minerao no sculo XVIII. Alm disso, o intuito portugus de administrar de maneira
uniforme e centralizada a totalidade de seu imprio se evidencia na grande mobilidade dos
administradores coloniais, freqentemente deslocados no somente de uma regio brasileira
a outra, mas tambm do Brasil a outras colnias e vice-versa.33
Mas, para comear por este ponto, a capacidade da administrao colonial para
contrabalanar e neutralizar de maneira efetiva o poder privado dos senhores rurais altamente duvidosa. Algumas das conhecidas anlises de Oliveira Vianna descrevem
vividamente o que parece ter sido a forma tpica assumida pelas relaes de poder no Brasil
colonial:
... os prprios caudilhos locais, insulados nos seus latifndios, nas solides do altossertes, eximem-se, pela sua mesma inacessibilidade, presso disciplinar daautoridade pblica; e se fazem centros de autoridade efetiva, monopolizando aautoridade poltica, a autoridade judiciria e a autoridade militar dos poderes
constitudos. So eles que governam, so eles que legislam, so eles que justificam,so eles que guerreiam contra as tribos brbaras do interior, em defesa daspopulaes que habitam as convizinhanas das suas casas fazendeiras, que so comoque os seus castelos feudais e as cortes dos seus senhorios.34
Com respeito s dificuldades com que depara o aparato poltico-administrativo da colnia
para alcanar os senhores rurais, uma carta dirigida ao monarca portugus por Rodrigo
32 Veja-se Cintra, A Funo Poltica no Brasil Colonial, para uma rpida reviso das teses que sustentamo carter prematuro da centralizao e da burocratizao alcanadas pelo estado portugus ou mesmonegam que Portugal tenha jamais conhecido o feudalismo. Alm de Faoro, Os Donos do Poder, refernciaimportante Joo Lcio de Azevedo, pocas de Portugal Econmico, Lisboa, A. M. Teixeira, 1929. Umaanlise na qual o Brasil e a Amrica Latina aparecem como herdeiros de uma tradio feudal apesar dainibio do feudalismo na pennsula ibrica pode ser encontrada em Louis Hartz, The Founding of NewSocieties, Nova York, Harcourt, Brace & World, 1964, primeira parte, especialmente pp. 26-33.33 Em grau notvel, os mesmos funcionrios se deslocavam de maneira desinibida de um continente aoutro, contribuindo assim para a unidade, uniformidade e universidade do imprio. So muitos os exemplosdisso. A carreira de Antnio de Albuquerque Coelho de Carvalho no excepcional: foi governador doMaranho de 1690 a 1701; governador do Rio de Janeiro, So Paulo e Minas Gerais de 1709 a 1713; egovernador de Angola de 1722 a 1725. Cf. E. Bradford Burns, A History of Brazil, Nova York, ColumbiaUniversity Press, 1970, pp. 75-6.34Evoluo do Povo Brasileiro, p. 217.
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Csar de Menezes, governador de So Paulo, citada por Oliveira Vianna, particularmente
reveladora: segundo o governador, era impossvel pensar-se em castig-los,
principalmente porque, dispondo de grande poder, e achando-se a grandes distncias,
nenhum mal se lhes poderia fazer.35
Mas talvez mais significativo que a autonomia e inacessibilidade da aristocracia
rural, freqentemente destacadas, o fato de que o aparato burocrtico colonial, a despeito
dos desgnios monolticos da administrao colonial portuguesa, levado, em seu esforo
para superpor-se s foras desagregadoras em atuao na colnia, a um grau de
fragmentao que compromete seriamente a possibilidade de ao unitria e disciplinada,
tornando-se o prprio aparato burocrtico uma nova fonte de focos locais de poder. Alm
do estabelecimento de sedes regionais de governo em substituio anterior administrao
unitria de todo o territrio brasileiro e da criao, dentro das regies administrativas assimestabelecidas, de um nmero crescente de capitanias subordinadas a capites-generais,
cadeias de comando cada vez mais complexas se erigem entre o governador geral e o
capito-general, por um lado, e as sedes locais de poder administrativo, por outro. A
conseqncia, tambm nas palavras de Oliveira Vianna, que
Estes centros de autoridade local, subordinados, em tese, ao governo geral dacapitania, acabam, porm, tornando-se praticamente autnomos, perfeitamenteindependentes do poder central, encarnado na alta autoridade do capito-general.
Este, embora nominalmente exera a sua autoridade sobre toda a extenso dacapitania, v realmente a sua ao muito reduzida, somente eficaz dentro de umarea muito menor do que a rea do seu capitanato: para alm, a sua fora poltica seenfraquece progressivamente, medida que se distancia do centro do governo (...). assim que os capites-mores das vilas e aldeias so praticamente autoridadessoberanas dentro dos limites dos seus distritos...36
Citando um observador colonial, Oliveira Vianna nota que o governo do pas ficou
reduzido a tantas governanas patriarcais quantos eram esses distritos. Dentro de cada
capitania, a unidade poltica (...) apenas uma fico vistosa, sem quase nenhuma
objetividade prtica.37
35 Ibid., p. 218.36 Ibid., pp. 215-16. Uma viso igualmente ctica da capacidade de penetrao e coordenao daadministrao colonial como conseqncia das distncias e da precariedade de comunicaes pode serencontrada em Burns,A History of Brasil, 74-89.37Evoluo do Povo Brasileiro, ambas as citaes da p. 216.
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Durante o perodo imperial, em contrapartida, o desgnio integrador do emergente
estado brasileiro, defrontado ameaa de efetiva desintegrao poltica como conseqncia
da eliminao do aparato colonial portugus, refora-se marcadamente. O elemento de
continuidade representado pelo fato de que o novo governo se conserva nas mos da
dinastia portuguesa reinante foi sem dvida um instrumento importante, como
freqentemente destacado pelos analistas da histria brasileira, para assegurar a unidade
poltica do pas e lanar as bases do fortalecimento do estado. Diversas medidas
administrativas e polticas se adotam a fim de equipar o poder central, personificado na
figura do monarca, da aparelhagem necessria para manter o pas sob controle. Todos os
rgos polticos e administrativos, em todos os nveis, so subordinados diretamente ao
Imperador. No nvel provincial, ele no apenas nomeia o governador, mas designa tambm
o chefe de polcia que concentra em suas mos funes judicirias e se torna, assim,grandemente importante para a vida provincial e interfere no funcionamento das
assemblias provinciais. O mesmo se aplica s instituies correspondentes no nvel local
ou distrital. Investido do poder moderador pela constituio de 1824, o Imperador
personifica a nao como um todo, estando habilitado a interferir igualmente, ao nvel
nacional, nos ramos executivo, legislativo e judicirio de governo: ele pode convocar,
suspender ou dissolver a cmara legislativa; escolher os senadores de sua preferncia dentre
uma lista de nomes eleitos; e, sobretudo, os possveis efeitos desagregadores da disputa
partidria so neutralizados atravs de sua livre escolha dos gabinetes ministeriais, aresultar no rodzio deliberado e semi-institucionalizado entre liberais e conservadores
durante praticamente todo o perodo imperial.38
Alm disso, o impulso centralizador e burocrtico se revela atravs de outros
indicadores. Dados analisados por Jos Murilo de Carvalho em excelente estudo do Brasil
imperial, alguns dos quais so apresentados nas tabelas 1 e 2, corroboram, em diversos
aspectos, a concepo da existncia de um aparato burocrtico coeso cujos membros se
encontravam provavelmente comprometidos antes com o desenvolvimento do estado do
que com dar expresso a ncleos de poder privado tais como o que corresponde
38 Cf. Oliveira Vianna, Evoluo do Povo Brasileiro, pp. 243-279; Joo Camilo de Oliveira Torres. A Democracia Coroada: Teoria Poltica do Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1957,especialmente pp. 137 e seguintes; Francisco Iglsias, Poltica Econmica do Governo Provincial Mineiro(1835-1889), Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1958, pp. 19-55; Hlio Jaguaribe,Desenvolvimento Econmico e Desenvolvimento Poltico, Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura, 1962,Livro Segundo, captulo 3, especialmente pp. 143-152.
20
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aristocracia rural.39 Eles revelam, por exemplo: a) que os titulares do poder governamental
compartilhavam alto nvel educacional (o qual, desnecessrio assinalar, era
excepcionalmente alto em confronto com a populao em geral, mesmo em seus estratos
privilegiados) e incluam ampla e crescente proporo de indivduos com treinamento
especificamente em direito, cujos estudos se realizaram, ademais, particularmente nas fases
iniciais, em algumas poucas instituies, especialmente a Universidade de Coimbra; b) que,
tanto na esfera executiva do governo quanto na legislativa, os mecanismos institucionais
levavam ao predomnio, nas primeiras e cruciais fases do processo de state-building, de
ocupaes burocrticas e governamentais (magistrados, militares, funcionrios pblicos,
diplomatas) sobre as demais; e c) que, embora tal predomnio seja gradualmente solapado
pela crescente representao das profisses liberais, a representao de proprietrios
agrcolas se mantm reduzida e relativamente constante durante todo o perodo.
40
39 Jos Murilo de Carvalho, Elite and State-Building in Imperial Brazil, tese de doutorado, Universidade deStanford, 1974. Agradecemos ao autor a gentileza de nos facilitar o acesso aos dados quando se encontravaainda em preparao a verso final da tese.40A apreciao do alcance de tais verificaes depara um problema bvio nos vnculos que podemnaturalmente ter existido entre os proprietrios rurais, de um lado, e, de outro, ministros, senadores oudeputados que fossem, por exemplo, magistrados ou advogados de profisso, os quais poderiam atuar comofiducirios dos primeiros. No estudo citado de Carvalho, que d nfase ao tipo de treinamento ousocializao experimentado pelos membros da elite imperial, so classificados como proprietrios de terraapenas aqueles com respeito aos quais no h informao de que tenham tido qualquer outra profisso ouhabilitao. Carvalho examina, porm, os vnculos existentes entre a elite governamental e a aristocraciarural, revelando que tais vnculos (expressos, por exemplo, em relaes de parentesco ou no fato de serdono de terra o prprio titular de uma posio no governo) podem ser constatados, em regra, em menos de50% dos casos tanto entre ministros quanto entre senadores: as mdias encontradas para todo o perodoimperial so respectivamente 41,10% e 38,94% (Elite and State-Building in Imperial Brazil, pp. 133-4 e145). De nosso ponto de vista, duas observaes podem ser feitas a respeito. Em primeiro lugar, a posiode Carvalho, que v a aparelhagem do estado como instrumento de uma elite burocrtica orientada pordesgnios prprios e que adotamos no texto, parece bem apoiada na combinao dos dados em questo comos relativos uniformidade do treinamento e da socializao da elite imperial, bem como em diversos casosem que esta socializao parece predominar sobre os vnculos acima mencionados no condicionamento das
posies adotadas quanto a questes importantes. Em segundo lugar, porm, quaisquer reservas que osdados relativos a tais vnculos pudessem justificar quanto interpretao burocrtica no viriam senofortalecer a linha principal de argumentao que se apresenta no texto com respeito ao problema geral dasrelaes entre estado e sociedade no Brasil.
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TABELA 1
Lugar de educao superior dos ministros
imperiais brasileiros, 1822-1889 (%)
PERODOLUGAR 1822-31 1831-40 1840-53 1853-71 1871-89 TOTAL
Coimbra 71,80 66,66 45,00 - - 28,50Outros emPortugal 28,20 16,66 -
- - 8,00
Total emPortugal 100,00 83,32 45,00 - - 36,50So Paulo - 3,33 30,00 35,41 49,20 27,50
Olinda,Recife - - 15,00 37,58 34,92 22,00Outros noBrasil - 6,66 10,00 20,83 14,28 11,50Total noBrasil - 9,99 55,00 95,82 98,40 61,00
FONTE: Jos Murilo de Carvalho, Elite and State-Building in Imperial Brazil
(Universidade de Stanford, tese de doutorado, 1974), p. 90.
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TABELA 2
Ocupaes de ministros, senadores e deputados durante o Imprio brasileiro,
1822-1889 (%)
TIPO DEOCUPAO
PERODO
A .
Ministros
1822-31 1831-40 1840-53 1853-71 1871-89 Total
Governo1 93,33 82,86 69,57 58,00 22,74 59,83Profisses
2
6,67 14,29 26,08 40,00 65,09 35,14
Proprietriosde terra
__ __ 4,35 __ 9,09 3,20
Comrcio,indstria
__ __ __ 2,00 3,03 1,37
Padres __ 2,85 __ __ __ 0,46
B.Senadores 1833-31 1831-40 1840-53 1853-71 1871-89 Total
Governo1 69,99 66,65 62,16 45,82 29,62 54,05Profisses2 8,34 11,12 16,21 31,25 51,86 24,69Proprietriosde terra
10,00 2,78 16,21 14,58 9,25 10,63
Comrcio,indstria
1,67 2,78 2,71 6,26 7,41 4,25
Padres 10,00 16,67 2,71 2,09 1,86 6,38
C.Deputado
s
182
6
183
4
183
8
184
5
185
0
185
7
186
7
186
9
187
8
188
6
Total
Governo1 39,0
0
37,5
0
47,5
3
46,6
1
47,7
5
37,6
1
17,2
4
28,6
9
11,4
8
8,00 32,1
4Profisses
2
6,00 13,4
6
11,8
8
15,5
2
15,3
1
25,6
4
40,5
2
23,7
7
52,4
6
35,2
0
23,9
8Proprietriosde terra
10,0
0
5,77 4,95 4,85 6,31 8,55 6,90 8,20 8,20 4,80 6,85
Outros 31,0 26,9 21,7 25,2 26,1 25,6 33,6 36,8 27,8 52,0 30,7
23
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24/31
0 3 8 5 3 4 2 8 6 0 1Sem
informao
14,0
0
16,3
4
13,8
6
7,77 4,50 2,56 1,72 2,46 __ __ 6,32
1. Magistrados, militares, funcionrios pblicos, etc.2. Advogados, mdicos, engenheiros, etc.
FONTE: A mesma da tabela 1, pp. 127-8, 141-2, 149.
Quando consideramos, porm, o grau em que o impulso burocrtico e centralizador
resulta no incremento efetivo, durante o Imprio, da capacidade de penetrao do estado
ou de sua capacidade extrativa, na expresso de Almond , particularmente do ponto de
vista de sua possvel oposio aos interesses da aristocracia rural, o quadro deparado se
assemelha ao que acima descrevemos com respeito ao perodo anterior. Com efeito, dadosrelativos capacidade de taxao do governo tal como esta se expressa na estrutura das
rendas do estado no perodo em questo os quais so tambm tomados do estudo de
Carvalho e apresentados nas tabelas 3 e 4 revelam que a ampla maioria de tais rendas
proveniente de tributao imposta ao comrcio exterior (renda externa) e que apenas
10% da renda total do estado entre 1841 e 1895 derivam de impostos sobre a exportao,
isto , de impostos que afetam diretamente os interesses dos produtores agrcolas. No
mesmo perodo, por outro lado, a maior parte da renda interna do estado provm
diretamente de empresas e servios estatais, no ultrapassando 29,41% a proporo mdiada renda interna que provm de todos os demais impostos, dos quais apenas uma
porcentagem insignificante corresponde a impostos que incidem diretamente sobre
produo e recursos agrcolas. Reveladoramente, em nenhum momento se encontra a
tributao da propriedade da terra como tal.41
TABELA 3
Impostos sobre importaes e exportaes (renda externa) como porcentagem darenda total do estado brasileiro, 1841-1895
41 Apesar de que tal tributao tenha sido considerada nos crculos governamentais desde a primeira metadedo sculo XIX. Esta , por exemplo, a opinio de uma comisso nomeada pelo Imperador em 1874 paraestudar os problemas da agricultura no estado da Bahia: O antigo e vicioso sistema de sesmarias e o direitode posse produziram o fenmeno de achar-se ocupado quase todo o solo por uma populao relativamenteinsignificante, que o no cultiva nem consente que seja cultivado. O imposto territorial o remdio que acomisso encontra para evitar esse mal, ou antes abuso, que criou uma classe proletria no meio de tantariqueza desaproveitada. Citado em Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, So Paulo, Cia. Editora Nacional,1938, p. 147.
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ANO IMPORTAES EXPORTAES1841-42 53,50 14,871850-51 63,02 14,501859-60 61,07 12,481870-71 55,12 15,511880-81 51,73 15,57
1888 58,26 9,981890 37,68 7,491892 62,41 0,241895 72,19 0,07
1841-1895 57,30 10,07FONTE: A mesma da Tabela 1; adaptado de dados p. 366.
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TABELA 4
Impostos como percentagem da renda interna do estado brasileiro,1841-1895
ANO IMPOSTOS
1841-42 27,441845-46 22,341850-51 21,861855-56 13,311859-60 13,091865-66 35,791870-71 34,211875-76 40,91
1880-81 35,981885-86 39,75
1888 39,951889 41,191890 47,811891 46,231892 26,951893 7,291895 5,93
1841-1895 29,41FONTE: A mesma da Tabela 1, p. 369.
Outro aspecto que mostra as limitaes da capacidade extrativa do estado brasileiro
durante o Imprio se relaciona com o desenvolvimento das foras militares. Parece bastante
claro que a fora do setor armado da burocracia estatal elemento crucial na determinao
da fora e capacidade de penetrao do prprio estado. Alguns dados relevantes a respeito
foram reunidos por Olavo Brasil de Lima Jr. e Lcia Maria Gomes Klein42 e so
reproduzidos nas tabelas 5 e 6. Tais dados se referem ao perodo compreendido entre 1829
e 1846, o mais agitado perodo da vida imperial, marcado pela proliferao de movimentosrebeldes e separatistas, e revelam as dificuldades deparadas pelo aparato estatal para
mobilizar recursos a fim de fazer frente aos desafios que se lhe apresentavam. Duas
observaes podem ser feitas: em primeiro lugar (tabela 5), apesar de que a renda total do
42 Olavo Brasil de Lima Jr. e Lcia Maria Klein , Atores Polticos do Imprio, Dados, no.7, 1970.
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estado aumente ao longo do perodo, no h qualquer relao clara entre as variaes nos
gastos militares e os
TABELA 5
Receita do estado e despesas militares no Brasil,
1831-1846 (em contos de ris)
ANO RECEITA AUMENTO DESPESAS
MILITARES
AUMENTO
1831/2 12.369:722 5.254:6091832/3 16.132:395 3.762:673 5.658:696 404:0891833/4 12.471:865 - 3.660:539 4.718:859 910:8371834/5 14.819:551 2.347:695 4.706:222 -12:6341835/6 14.135:426 - 684:125 4.776:030 69:808
1836/7 14.904:702 69:276 4.773:019 - 3:0111837/8 13.457:538 - 1.447:164 8.020:858 3.247:8391838/9 17.262:651 3.804:651 8.070:019 49:2611839/40 18.977:205 1.715:016 13.878:492 5.808:4731840/41 18.852:103 1.125:102 11.066:033 - 2.812:4591841/42 18.916:550 64:447 13:430:671 2.364:6381842/43 18.712:315 - 204:235 13.378:508 - 43:1631843/44 21.350:970 2.638:655 10.884:667 - 2.502:8411844/45 24.808:556 3.453:586 10.771:616 - 113:0511845/46 26.199:179 1.394:623 9.886:214 - 885:402
FONTE: Olavo Brasil de Lima Jr. e Lcia Maria Gomes Klein, Atores Polticos do
Imprio,Dados, 7 (1970), 62-88, p. 70.
aumentos ou decrscimos anuais na renda, o que indica, como sugerem Lima e Klein, que o
governo tinha provavelmente que recorrer a transferncias tpicas de recursos entre
ministrios para atender as suas necessidades militares; em segundo lugar (tabela 6), as
foras governamentais no crescem durante o perodo, sendo mesmo apesar de dois
pontos altos em 1841 e 1845 mais reduzidas nos ltimos anos do que em 1829.
TABELA 6Efetivos Militares Brasileiros, 1829-1845
ANO N DE HOMENS1829 22.9791830 19.4871831 16.9671839 16.430
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1840 17.1261841 21.9741843 17.0231844 17.0951845 23.563
FONTE: A mesma da Tabela 5, p. 71.
Igualmente revelador, do ponto de vista do jogo de cabo-de-guerra que aqui
ressaltamos entre as tendncias centralizadoras do aparato burocrtico e o poder privado da
aristocracia rural, o fato de que um dos resultados dos esforos do governo imperial no
sentido de equipar-se de foras militares adequadas foi a criao de um instrumento que
mostra claramente a necessidade de compromisso com o poder autnomo dos senhores
rurais, a saber, a Guarda Nacional. Criada em 1831, e formalmente submetida ao poder
central at sua extino em 1918, essa instituio, paralela ao exrcito regular e cujo
recrutamento se fazia entre as pessoas de renda superior a certo nvel, achava-se
efetivamente sob o comando de chefes locais, especialmente proprietrios de terra. 43 Alm
disso, ao permitir que a parcela da populao dotada de maiores recursos escapasse ao
servio militar regular, a Guarda Nacional criou problemas de recrutamento para o exrcito
e veio a representar um obstculo para o desenvolvimento deste.44
Uma ltima palavra para destacar um importante aspecto do substrato estrutural em
que se baseou o processo brasileiro de institucionalizao do poder durante os perodoscolonial e imperial. Referimo-nos escravido, que foi objeto apenas de menes
ocasionais at aqui, mas cujo papel com relao aos problemas que nos ocupam
dificilmente poderia ser exagerado. Uma primeira observao a respeito tem a ver com a
proposio anteriormente apresentada relativamente relevncia, para estdios ulteriores
de desenvolvimento poltico, da configurao particular de foras sociais em termos da
qual se desenrola o processo de edificao do estado, bem como com o paralelismo que
reclamvamos para tal proposio com a anlise das vias alternativas de modernizao
realizada por Barrington Moore. Como j observaram alguns autores que se dedicaram
43 Esta, como se sabe, a origem da expresso coronelismo aplicada ao arranjo em que se estabiliza ocompromisso entre o aparato governamental em fortalecimento e o poder remanescente dos coronis locais.44 Anlises das relaes entre a Guarda Nacional e o desenvolvimento do exrcito regular podem serencontradas em Nelson Werneck Sodr, Histria Militar do Brasil, Rio de Janeiro, Editora CivilizaoBrasileira, 1968, especialmente pp. 116-143, e em Jos Murilo de Carvalho, As Foras Armadas naPrimeira Repblica: O Poder Desestabilizador, Cadernos DCP, no. 1, maro de 1974.
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Nabuco mostrava os efeitos simplificadores e esterilizantes da escravido sobre toda a
estrutura social a maneira pela qual ela contribuiu para impedir o surgimento tanto de
pequenos agricultores independentes quanto de trabalhadores urbanos, bem como para
abortar as atividades industriais e desvirtuar o comrcio e como disso resultava, para
muitos, o emprego pblico como nico caminho.48 No obstante, congruentemente com
nossa nfase no carter multifrio da interao entre o aparato do estado e o poder privado
da aristocracia rural, isso no impediu a crescente hostilidade dos proprietrios rurais ao
governo imperial por suas graduais medidas antiescravistas, assim como no evitou que
este se tornasse, a seu prprio risco, o agente efetivo da completa abolio da escravido no
pas.
IV
Em sntese, portanto, o que temos no o predomnio do estado sobre a
sociedade, ou vice-versa, mas antes um jogo complexo de foras integradoras e
desintegradoras que, durante o perodo colonial, produz como resultante uma condio que
parece poder ser adequadamente descrita como semifeudal no que se refere aos padres de
disperso e aglutinao de poder e s formas assumidas pelas transaes de toda natureza
que se estabelecem tanto no interior de determinadas camadas sociopolticas quanto entre
diferentes camadas. Tais padres fixam o cenrio em que ir desenvolver-se a nova fase doprocesso de construo nacional e de edificao do estado que se abre com a independncia
do pas. Durante o Imprio e a Repblica, presenciamos a afirmao gradativa, atravs de
avanos e recuos, das foras integradoras contra as tendncias de fragmentao e
desintegrao. A crescente institucionalizao do poder que assim tem lugar revela de
maneira duradoura, porm, dadas as bases sobre as quais se erige, os traos da barganha em
48 Das classes que esse sistema (escravido) fez crescer artificialmente a mais numerosa a dosempregados pblicos. (...) o funcionalismo a profisso nobre e a vocao de todos. Tomem-se, ao acaso,vinte ou trinta brasileiros em qualquer lugar onde se rena a nossa sociedade mais culta: todos eles ouforam ou so, ou ho de ser, empregados pblicos; se no eles, seus filhos. (...) Nessas condies oferecem-se ao brasileiro que comea diversos caminhos, os quais conduzem todos ao emprego pblico. As profisseschamadas independentes, mas que dependem em grande escala do favor da escravido, como a advocacia, amedicina, a engenharia, tm pontos de contato importantes com o funcionalismo, como sejam os cargos
polticos, as academias, as obras pblicas. (...) A classe dos que assim vivem com os olhos voltados para amunificncia do Governo extremamente numerosa, e diretamente filha da escravido, porque ela noconsente outra carreira aos brasileiros, havendo abarcado a terra, degradado o trabalho, corrompido osentido de altivez pessoal em desprezo por quem trabalha em posio inferior a outro, ou no faz trabalhar.Cf. Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, pp. 178 a 180; vejam-se especialmente os captulos XIV e XV paraa discusso geral dos efeitos da escravido.
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que as foras centralizadoras tm que se envolver com os focos dispersos de poder privado,
barganha esta a manifestar-se, ainda no perodo republicano, atravs do arranjo
coronelista que tanto tem ocupado os estudiosos brasileiros.
Apreciado o processo em perspectiva, vemos a consolidao e afirmao gradual da
aparelhagem do estado dando-se concomitantemente com as transformaes em que
crescentemente se edifica e afirma a sociedade brasileira, a partir das comunidades ou
gnglios fracionrios originais. Inscrevendo-se, por um lado, entre os agentes desse
processo de construo social, a aparelhagem do estado nele se assenta, por outro,
encontrando nele as condies de sua expanso. A correspondncia que assim se
estabelece, em cada fase, entre os dois termos e que melhor se expressa na viso do
estado como componente da prpria sociedade, rompendo-se a artificial oposio de dois
plos permite apreciar tanto o elemento de continuidade quanto o que h de inovao noseventos que assinalam, ao redor de 1930 e posteriormente, a inaugurao e o
desenvolvimento da poltica ideolgica no pas. Temos a, de um lado, a elaborao e a
colocao em prtica, na expresso de Bolivar Lamounier, da ideologia de estado,49 a
expressar-se no corporativismo como instrumento de assimilao domesticada de novas
foras sociais ao processo poltico. De outro lado, contudo, a vigncia de tais traos vem a
coexistir com a poltica populista, que, sendo com eles congruente por certo aspecto, por
outro engendra a gradual mobilizao poltica e v paulatinamente o ingrediente de
manipulao caracterstico do populismo ceder lugar ativao contestadora dessasmesmas foras. 1964, nessa perspectiva, surge no como a mera reafirmao de uma
tradio poltica secular ou a reiterao de certo padro de relacionamento entre estado e
sociedade, mas antes como vicissitude do gradual desdobramento, no pas, da poltica
ideolgica, envolvendo a reao de determinados focos de interesses aos riscos que, a
despeito de corporativismo e populismo e atravs deles, a continuidade do processo de
mobilizao sociopoltica passa crescentemente a representar.
49 Bolivar Lamounier, Ideology and Authoritarian Regime: Theoretical Perspective and a Study of theBrazilian Case, tese de doutorado, Universidade da Califrnia, Los Angeles, 1974
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