O ARQUIVO
Victor Giudice
No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma
redução de quinze por cento em seus vencimentos.
joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego.
Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um
dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não
tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a
agradecer ao chefe.
No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais
distante do centro da cidade. Com o salário reduzido,
podia pagar um aluguel menor.
Passou a tomar duas conduções para chegar ao
trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava
mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.
Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.
O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo
corte salarial.
Desta vez, a empresa atravessava um período
excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete
por cento.
Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova
mudança.
Agora joão acordava às cinco da manhã.
Esperava três conduções. Em compensação, comia
menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se
menos rosada. O contentamento aumentou.
Prosseguiu a luta.
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de
extraordinário aconteceu.
joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado
em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os.
Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas
não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas
diárias.
Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi
chamado ao escritório principal.
Respirou descompassado.
— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida
com o senhor.
joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.
— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso
desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso
reconhecimento.
O coração parava.
— Além de uma redução de dezesseis por cento
em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem,
rebaixá-lo de posto.
A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.
— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar
de contabilidade, com menos cinco dias de férias.
Contente?
Radiante, joão gaguejou alguma coisa
ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao
trabalho.
Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu
pacífico, no silêncio do subúrbio.
Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de
jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche.
Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia
necessidade de muita roupa. Eliminara certas
despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava em casa às onze da noite, levantava-se
às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e
dois ônibus para garantir meia hora de antecedência.
A vida foi passando, com novos prêmios.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois
por cento do inicial. O organismo acomodara-se à
fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das
estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha
mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos
campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com
os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo era um monte de rugas sorridentes.
Todos os dias, um caminhão anônimo
transportava-o ao trabalho. Quando completou
quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:
— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário
eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a
partir de amanhã, será a de limpador de nossos
sanitários.
O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado,
escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada
disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os
objetivos. Tentou sorrir:
— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício.
Mas desejo requerer minha aposentadoria.
O chefe não compreendeu:
— Mas seu joão, logo agora que o senhor está
desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses
terá de pagar a taxa inicial para permanecer em
nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos
de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A
pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A
cabeça se fundiu ao corpo. As formas
desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados,
havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
joão transformou-se num arquivo de metal.
PORQUE LULU BERGANTIM NÃO ATRAVESSOU
O RUBICON
José Cândido de Carvalho
Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos,
explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa
que ninguém entendeu, expediu dois socos na
Tomada da Bastilha, o que também ninguém
entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos
votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois
dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos
atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora
Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho
sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou
as mangas e disse:
— Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta
e licor de jenipapo. Agora é trabalhar!
E sem mais aquela, atravessou a sala da posse,
ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que
infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta,
não lembrava em cem anos de ter acontecido um
prefeito desse porte. Cajuca Viana, presidente da
Câmara de Vereadores, para não ficar por baixo,
pegou também no instrumento e foi concorrer com
Lulu Bergantim nos trabalhos de limpeza. Com
pouco mais, toda a cidade de Curralzinho estava no
pau da enxada. Era um enxadar de possessos! Até a
professora Andrelina Tupinambá, de óculos, entrou
no serviço de faxina. E assim, de limpeza em
limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em
folha, saltando na ponta das pedras. E uma tarde, de
brocha na mão, Lulu caiu em trabalho de caiação.
Era assobiando "O teu-cabelo-não-nega, mulata,
porque-és-mulata-na-cor" que o ilustre sujeito público
comandava as brochas de sua jurisdição.
Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos,
branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em
melhoria, a cidade foi andando na frente dos
safanões de Lulu Bergantim. Às vezes, na sacada do
casarão da prefeitura, Lulu ameaçava:
— Ou vai ou racha!
E uma noite, trepado no coreto da Praça das
Acácias, gritou:
— Agora a gente vai fazer serviço de tatu!
O povo todo, uma picareta só, começou a
esburacar ruas e becos de modo a deixar passar
encanamento de água. Em um quarto de ano
Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e
crases o Sentinela Municipal do "salutar benefício do
chamado precioso líquido". Por força de uma
proposta de Cazuza Militão, dentista prático e grão-
mestre da Loja Maçônica José Bonifácio, fizeram
correr o pires da subscrição de modo a montar Lulu
Bergantim em forma de estátua, na Praça das
Acácias. E andava o bronze no meio do trabalho de
fundição quando Lulu Bergantim, de repente,
resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo
mundo com pedidos e apelações. O promotor público
Belinho Santos fez discurso. E discurso fez, com a
faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o
Major Penelão de Aguiar. E Lulu firme:
— Não abro mão! Vou embora para Ponte Nova.
Já remeti telegrama avisativo de minha chegada.
Em verdade Lulu Bergantim não foi por conta
própria. Vieram buscar Lulu em viagem especial,
uma vez que era fugido do Hospício Santa Isabel de
Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu
Bergantim pingava tristeza dos olhos e dos telhados
de Curralzinho Novo. E ao dobrar a última rua da
cidade, estendeu o braço e afirmou:
— Por essas e por outras é que não atravessei o
Rubicon!
Lulu foi embora embarcado em nunca-mais. Sua
estátua ficou no melhor pedestal da Praça das
Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada na
mão. Para sempre, Lulu Bergantim.
IDOLATRIA
Sérgio Faraco
Eu olhava para a estrada e tinha a impressão de
que jamais na vida chegaríamos a Nhuporã. Que
pedaço brabo. O camaleão se esfregava no chassi e
o pai praguejava:
— Caminho do diabo!
Nosso Chevrolet era um trinta e oito de carroceria
verde-oliva e cabina da mesma cor, só um nadinha
mais escura. No para-choque havia uma frase sobre
amor de mãe e em cima da cabina uma placa onde o
pai anunciava que fazia carreto na cidade, fora dela
e ele garantia, de boca, que até fora do estado, pois
o Chevrolet não se acanhava nas estradas desse
mundo de Deus.
Mas o caminho era do diabo, ele mesmo tinha
dito. A pouco mais de légua de Nhuporã o caminhão
derrapou, deu um solavanco e tombou de ré na
valeta. O pai acelerou, a cabina estremeceu.
Ouvíamos os estalos da lataria e o gemido das
correntes no barro e na água, mas o caminhão não
saiu do lugar. Ele deu um murro no guidom.
— Puta merda.
Quis abrir a porta, ela trancou no barranco.
— Abre a tua.
A minha também trancava e ele se arreliou:
— Como é, ô Moleza!
Empurrou-a com violência.
— Me traz aquelas pedras. E vê se arranca um
feixe de alecrim, anda.
Agachou-se junto às rodas e começou a fuçar,
jogando grandes porções de barro para os lados. Mal
ele tirava, novas porções vinham abaixo, afogando
as rodas. Com a testa molhada, escavava sem parar,
suspirando, praguejando, merda isso e merda aquilo,
e de vez em quando, com raiva, mostrava o punho
para o caminhão.
O pai era alto, forte, tinha o cabelo preto e o
bigode espesso. Não era raro ele ficar mais de mês
em viagem e nem assim a gente se esquecia da cara
dele, por causa do nariz, chato como o de um
lutador. Bastava lembrar o nariz e o resto se
desenhava no pensamento.
— Vamos com essas pedras!
Por que falava assim comigo, tão danado? As
pedras, eu as sentia dentro do peito, inamovíveis.
— Não posso, estão enterradas.
— Ah, Moleza.
Meteu as mãos na terra e as arrancou uma a
uma. Carreguei-as até o caminhão, enquanto ele se
embrenhava no capinzal para pegar o alecrim.
— Pai, pai, o caminhão tá afundando!
A cabeça dele apareceu entre as ervas.
— Não vê que é a água que tá subindo, ô pedaço
de mula?
E riu. Ficava bonito quando ria, os dentes bem
parelhos e branquinhos.
— Tá com fome?
— Não.
— Vem cá.
Tirou do bolso uma fatia de pão.
— Toma.
— Não quero.
— Toma logo, anda.
— E tu?
— Eu o quê? Come isso.
Trinquei o pão endurecido. Estava bom e minha
boca se encheu de saliva.
— Acho que não vamos conseguir nada por hoje.
De manhãzinha passa a patrola do DAER*, eles
puxam a gente.
Atirou a erva longe e entrou na cabina.
— Ô Moleza, vamos tomar um chimarrão?
Fiz que sim. Ao me aproximar, ele me jogou sua
japona.
— Veste isso, vai esfriar.
A japona me dava nos joelhos e ele riu de novo,
mostrando os dentes.
— Que bela figura.
A cara dele era tão boa e tão amiga que eu tinha
uma vontade enorme de me atirar nos seus braços,
de lhe dar um beijo. Mas receava que dissesse:
como é, Moleza, tá ficando dengoso? Então aguentei
firme ali no barro, com as abas da japona me
batendo nas pernas, até que ele me chamou outra
vez:
— Como é, vens ou não?
Aí eu fui.
*Sigla do departamento responsável pela
conservação das estradas estaduais.
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