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    O Caminho Para As Borboletas

    Adriane Galisteu

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    Para voc, Beco, onde quer que voc esteja

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    Agradecimentos Com o perigo de estar esquecendo alguns nomes muito

    queridos, mas com a desculpa prvia do meu momento, quero carinhosamente citar minha profunda gratido por:

    Luiza Konder de Almeida Braga, doutor Antnio Carlos de Almeida Braga, Joana e Maria Braga; Birgit e Christian Schues; Betise Assumpo, Galvo Bueno, Reginaldo Leme; Maria Jos Magalhes Pinto, doutor Marcos Magalhes Pinto, Bebel, Marquinhos, Maria Rita, Maria Cristina, Joo e Francisco Magalhes Pinto; Angie e Fernando Belo, Dbora e Michael Mello, Cristina e Joo Reino, embaixador Jos Aparecido de Oliveira e embaixatriz Leonor Aparecido de Oliveira, Karin Villenbaun e Roberto Irineu Marinho, Sylvia e Paulo Maluf, Walter Moreira Salles Jr., Ricardo Salgado Jr., Cndida, Felipa, Sofia, Candidinha, Carol e Salvador Correia de S, Fernanda Pires da Silva, Rubens e Rubinho Barrichello, Geraldo Rodrigues Jnior, Jaime e Adriana Britto; Romeu Ferreira Leite, Ina Sglinari, Maria Cristina Formaggio, Cristina (Guru) e todas as pessoas da Elite; Rosa e Rui Hiroshiro, Miriam Dutra; Koarig e Harutium Hakimian, Paulo, Luciana, Arthur e Pedro Hakimian; os amigos de Sintra, Maria e Fernando Leite (o incrvel Fernando 24 Horas, como o chamava o Bco), Adelaide Ferraz, Maria de Jesus Souza, Oscar e Ruth; os amigos de Angra, Maria Augusta, Mateus e Xana; o pessoal da fazenda Guariroba, Sebastiana, Alosio, Rosalina, Neide, Padula e senhor Frota; Cammy e Ruy Carvalho, Bebel e Fausto Costa, Marcelo Guedes Namour, Nadia (Mammiss) e Oscar Guerra (Pappiss), Ingrid Oldenburg, Sandro (Limelight), Mariza e Luciano Figliola, Kalu, doutor Xande Nunes, Cynthia de Almeida, Nizan Guanaes, Mai Mariutti, famlia Fittipaldi, Filly e Marcos Gava, Adriana, Ozano, Marquinhos e Daniel Gava, ngela Malta, Yolanda, Rita e Pedro Queiroz Pereira, Csar, Bel Oliveira; e, sem exceo, todas as pessoas que me escreveram; tia Irene, tio Antnio, vov, Beto, Fn e um agradecimento muito especial, de todo o corao, para Nirlando Beiro.

    Mezinha, obrigado.

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    PREFCIO Este livro resultado de trinta horas de depoimentos,

    gravados em Sintra, Portugal. E de um mergulho num ba repleto de cartas, bilhetes, papis rascunhados, agendas profusamente anotadas - sim, Adriane Galisteu ainda conserva aquela doce mania de transformar suas agendas em dirios teen, engordados com recortes e fotografias e recheados de divagaes.

    Como editor, tentei ser absolutamente fiel a sua narrativa. As mesmas palavras. O mesmo tom de voz - dolorido e emocionado, como vocs iro ver. Conservar o olhar diante do mundo que se abriu para aquela menina que saiu de uma tarde de trabalho num autdromo - a propsito, ela no gostava de automobilismo - para uma vida de princesa ao lado do prncipe das pistas.

    Duas ou trs coisas me emocionam particularmente neste livro. Primeiro, a candura juvenil de quem, nos melhores e nos piores momentos desta love story, sempre se perguntava, perplexa: por que eu? Creio que at hoje Adriane Galisteu no sabe responder a essa pergunta.

    H, depois, um detalhezinho que pode parecer superficial, mas que me deu a verdadeira dimenso do que ela viveu nesses ltimos meses vertiginosos de sua vida. Repassando as fitas das entrevistas, percebi que muitas vezes Adriane Galisteu se refere a seu namorado no presente. Ayrton , Ayrton faz, Ayrton quer. Inconscientemente, ela continua a se debater contra a realidade injusta, cruel e dramtica da morte do amado.

    Essa resistncia se manifestou de outra forma, mais explcita. Adriane Galisteu foi deixando o final para o final - quero dizer, a morte, o desfecho inesperado, a tragdia, o funeral, a perda definitiva, a incerteza sobre o futuro. Quando, enfim, se decidiu a falar, pediu para gravar sozinha, sem a presena do entrevistador. Com certeza, por pudor - o pudor de ter um espectador para as suas lgrimas.

    Conhecia Adriane Galisteu tanto quanto vocs a conhecem antes de ingressar nestas pginas. De fotos, das imagens de seu sentido luto no velrio e no enterro do heri de todos ns. Agora, posso dizer que a conheo. Por isso, eu a respeito. Por isso, admiro seu carter e sua fora e respeito sua dor.

    NIRLANDO BEIRO

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    CAMINHO DAS BORBOLETAS - Ai, que bom! Ele vai voltar mais cedo para casa. Foi um

    relmpago na minha cabea - um pensamento egosta, com certeza estpido, talvez inconseqente. Mas, por um segundo, tive este flash de esperana: ele arrancaria luvas e capacete, sairia do carro carregando aquela cara de garoto ofendido to familiar por ocasio das derrotas, se recomporia, fugiria s carreiras do autdromo e das entrevistas, j encontraria o comandante Mahonney esperando por ele no aeroporto, com a turbina ligada, e em questo de horas estaria se jogando nos meus braos, em outro pas, em nossa casa, no Algarve, em Portugal.

    O impacto do carro no muro ganhava bis e mais bis na tev. Curva Tamburello, o nome do lugar, repisavam os comentaristas. Era uma tomada a distncia - e a distncia o que dava para ver era a lateral direita do Williams azul razoavelmente amassada, uma roda perdida, nada que sugerisse alguma coisa mais grave do que batidas parecidas com aquelas das quais ele j tinha se livrado, so e salvo. Outra imagem da tev mostrava com clareza o momento em que o Williams se desgarrou da pista, em alta velocidade, e sumiu do campo de viso da cmera acoplada ao carro que o seguia, o do alemo Schumacher.

    Dei um salto do sof, ainda segurando o prato do almoo na mo - franguinho diet, legumes, para manter a forma. Minha nica companhia, naquele casaro enorme, era Juraci, a caseira. Expectativa: mas por que demorava tanto o socorro? Bandeiras amarelas agitavam-se nas proximidades, mas ningum acudia o piloto acidentado. As cmeras da televiso italiana, mal localizadas, tambm pareciam manter um distante desinteresse pelo que tinha acontecido.

    Minutos de espera - na verdade, me pareceram horas. Minha taxa de adrenalina foi subindo, mas confesso que no me desesperei de cara. Tinha certeza de v-lo, de repente, desatando o cinto de segurana e saltando, lpido, para fora daquela carcaa meio estropiada, capacete verde-amarelo debaixo do brao, enfezado, a caminho dos boxes.

    Nada. O primeiro carro de socorro enfim se aproxima. Nada. A narrativa do locutor da televiso inglesa comea a dar sinais de ansiedade. Nada. Eu s gritava: - Mas o que eles esto esperando?

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    Perdi a fome. Colei os olhos no telo, enquanto o helicptero com um cinegrafista a bordo tentava, enfim, buscar uma imagem mais prxima. A coisa tinha sido pior do que eu imaginara. Mas eu nunca teria imaginado o pior - e ainda me recusava a imaginar.

    - Deve ter quebrado os braos, ou uma perna - comentei, no sei mais se para mim mesma ou em voz alta. Buscava a nica explicao possvel, um consolo, para a cena inesperada. O Bco que eu conhecia tinha pavor de se machucar. Era cair de um jet-ski, em Angra, ou escorregar na quadra de tnis, em Sintra, para ele parar tudo, checar msculos e articulaes, pedir uma massagem rapidinha - meticuloso em seu preparo invejvel, ele no tinha a menor vontade ou vocao para entrar em contato fsico com a dor.

    - Sai do carro, sai - tinha mpetos de gritar, e gritava. Ele no saa. Pensei: desmaiou. Mas o ligeiro movimento de cabea, meio para a esquerda, que a cmera captou, deu fora a minha teoria: ele pedia ajuda, implorava para que o retirassem dali. O amontoado de gente sobre ele, as frestas de imagem mostradas em meio ao atendimento, a aflitiva movimentao dos paramdicos, os comentrios nervosos dos locutores foram desenhando na minha alma, lenta, lentssima, muito lentamente, o painel do pnico. Eu continuava de p, na sala de tev, imvel, em silncio, quando comeou a me subir do estmago, ou de um lugar qualquer situado entre o estmago e o esfago, uma coisa esquisita, entre um grito e um soluo. Vi os ps dele. Sem movimento. Era a revelao fatal. Sou expert na linguagem dos ps. Eles me dizem tudo. O que os ps dele me diziam, naquela hora, era a mais terrvel de todas as coisas. Soltei meu desespero, pranto, berro, medo, inconformidade - mas ainda um qu de esperana, por que no? A, pela reao em torno, que percebi que j no estava sozinha naquela sala, que a Juraci berrava, que os vizinhos tinham acorrido, que ces latiam assustados, que o telefone tocava. Uma sinfonia fnebre se instalava na casa em que eu, na minha santa ingenuidade, pensava v-lo chegar aquela noite, mais cedo, com aquele sorriso lindo, pronto para um reencontro que j demorava quase um ms.

    Jamais passou pela minha cabea a idia de que o palco onde ele foi trs vezes rei poderia ser mesmo de sua morte. Nunca se pensou que Ayrton Sena morreria numa pista de corrida. Nem eu nem ningum. Ele vivia do risco da velocidade extrema, mas o seu talento incomparvel parecia ter eliminado,

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    da cabea de todos os seus adeptos do mundo inteiro, essa sinistra possibilidade. Ele at que talvez pudesse pensar. Mas essa era a natureza de seu trabalho - que ele conhecia melhor do que ningum.

    Depositaram o corpo dele, inerte, sobre a pista de mola - e eu continuava ignorando a hiptese do pior. Uma mancha vermelha no cho, da cor do sangue, me apavorou. Mas uma alma piedosa me enganou:

    - No nada, no. uma espuma nova que esto usando, contra incndio.

    Acreditei. Mas um telefonema me chamava razo. De Sintra, da quinta onde mora com seu marido, o banqueiro Antnio Carlos de Almeida Braga, e com Joana e Maria, suas duas filhas adolescentes, minha amiga Luiza exibia uma voz preocupada:

    - Braga ligou de mola. grave. gravssimo. Voc tem de ir pra l imediatamente.

    - Luiza, vem comigo, por favor. No me deixe sozinha. Ela, ento, alugaria um jatinho em Lisboa. At o Faro, meia hora. De l, direto para Bolonha. Pedi para a Clara, uma amiga de l e decoradora da casa, que me fizesse uma maleta de mo, imaginando dois, trs dias de estada ao lado dele, num hospital qualquer. Esqueci a televiso, as imagens repetidas, apaguei da memria o rosto assustado daquela improvisada platia que apareceu na casa da Quinta do Lago e tentei me fixar na idia do encontro prximo, ainda que doloroso. Machucado que estivesse, eu queria peg-lo. Tocar seu peito. Acariciar seus ps. Sonhava com o contato fsico, pele na pele. Queria sussurrar-lhe ao ouvido coisas bonitas e encorajadoras.

    Notcias entram e saem, desencontradas, assim como os visitantes. Lus, amigo da casa, vem dizer que, no rdio, informam que Senna recobrou a conscincia. No to desesperador assim. Agora, minha me ao telefone, do Brasil:

    - Filha, que coisa que aconteceu!? - Ela est chorando. Tento consolar:

    - No, me. Acabou de dar uma notcia de que ele voltou... - Dri, cai na real - disse minha me. - S um milagre. Senti

    algum me dar um copo de gua e colocar uma plula na minha boca. Com certeza um calmante. Esparramada sobre o sof, chorando muito, os intestinos em ebulio, tive a idia de ligar para a me dele, que estava na fazenda de Tatu:

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    - Zaza, Zaza... - Eu no tinha muito o que dizer. - Fala, menina.

    - Acabou de dar aqui uma notcia de que ele recobrou os sentidos, ele vai ficar bom.

    - Estou pegando um avio s 14h30 para Bolonha - ela me avisou.

    - Ento a gente se encontra l. No aeroporto do Algarve, a tarde comeava a cair. Teramos

    trs horas at Bolonha, anunciou o piloto, to logo desembarcou. Luiza estava muito nervosa, mas argumentava:

    - Ele forte, Adriane, ele um touro. - Mais notcias do Braga? - eu quis saber. - Nada - disse ela.

    - Mas muito grave. Aquele ombro maternal, ou fraterno, sei l, ajudava a tornar

    as coisas menos difceis. O comandante levou o jatinho at a cabeceira da pista e pediu autorizao para decolagem. Demorou um, dois minutos. Estranho. Desacelerou e comeou a refazer o caminho de volta:

    - No tenho autorizao da torre. H um chamado para dona Luiza, ou para dona Adriane.

    Quando a porta do jatinho se abriu e Luiza e eu descemos, senti que toda e qualquer palavra tinha perdido a razo de ser. Os funcionrios do aeroporto, os carregadores de bagagem, os turistas, os amigos que tinham me dado carona, os visitantes de cara fechada - eu diria at as pedras, os bichos vadios, as primeiras estrelas do cu, o claro da lua nascente, as fachadas das casas, os estalos da noite, tudo, rigorosamente tudo, e todos, rigorosamente todos, me davam, em seu silncio aterrador, a notcia definitiva. Eu tremia dos ps cabea.

    Luiza voltou plida. Sentou do meu lado. Pegou na minha mo:

    - Adriane... - quis se controlar. - Luiza, s no me fala que ele morreu. - Ele morreu. Abraou-me soluando. De outra sala do aeroporto, veio a

    musiquinha: ttt... Aquela da Globo, que a SIC, em Portugal, tinha adotado. O fundo musical de tantas vitrias dele. Seria uma alucinao ou eu ouvi mesmo? Eu estava surda, muda, cega, prostrada. Na sala de comando do aeroporto, fiquei paralisada como uma esttua. Chorava sem parar - chorvamos sem parar, a Lu e eu. Algum me contou depois que vivemos ali uns quarenta minutos de absoluto desespero.

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    - Vamos pra casa - me abraou, enfim, a Luiza. - No h mais nada a fazer.

    -Vou preparar o jantar para ele. O combinado busc-lo s 20h30 no aeroporto, no foi isso, Lus?

    Lus, amigo da casa e do Bco, no respondia. Juraci, a caseira do Algarve, entrou em delrio. Lgrimas grossas rolavam do seu rosto, palavras confusas enrolavam-se na lngua spera de quem tinha tomado algum medicamento forte, mas seu desespero no batia com o que ela falava, meio desconjuntado:

    - Sei que o Bco vem pro jantar, no vem? Tnhamos combinado aquela galinha grelhada, com legumes no vapor... Voc fez a sobremesa de nata, no fez, Dri? O meu menino, o meu menino...

    Eu, logo eu, fraquinha como estava, me irritei com aquilo: - Ele no vem, no, Juraci. O Bco est morto. - Lus, fala a verdade pra mim - ela o sacudia. - Ele no

    morreu, morreu? Sei l o que o Lus fez para convencer a Juraci. Como todas

    as pessoas que trabalhavam para o Ayrton, a caseira do Algarve tambm o tratava como um filho. Aquilo que ela exprimia era uma autntica aflio de me. De minha parte, entreguei os pontos: estiquei-me na cama e fiquei horas ali, entorpecida, sem nenhuma reao. Luiza achava melhor desistir de Bolonha, irmos juntas para a casa dela em Sintra. Entre um telefonema e outro para o Braga, que velava o heri morto, ela me deu um tempinho para me refazer. Pedi ajuda a Clara, uma amiga da famlia, a decoradora daquela bela casa do Algarve que eu no veria mais - e o que eu pedia a Clara, naquele momento, j tinha o som de um adeus.

    - Junta o que eu trouxe do Brasil. A malona, tudo. Os trs volumes que eu tinha acabado de desfazer menos de

    24 horas antes, com toda uma equipagem para passar cinco meses de temporada europia ao lado dele. A temporada acabou antes de comear.

    Mais um favorzinho, pedi: atrs da porta do banheiro nosso, tem l um short e uma sweat shirt dele, que eu tinha usado naquela manh, enquanto corria. Naqueles dias em So Paulo, percebi que seria capaz de acompanhar o Bco na sua corrida matinal em torno do condomnio do Algarve. Um progresso e tanto. Calo Sweater ainda estavam suarentos. Queria lev-los comigo. A Clara sentiu que a hora era de despedida: - Mais nada de lembrana? - perguntou.

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    Tinha, sim: uma visita solitria ao gramado, piscina, Lua, ao silncio da rua, ao escritrio onde o fax emudecera, s fotos dele, aos trofus de uma carreira brusca e incompreensivelmente interrompida. Vi o som, tremendo aparelho que ele trouxe da Sua. Por curiosidade, quis saber qual teria sido o ltimo CD que ele ouviu na vida. Phil Collins - tudo a ver. Isso, eu tinha direito de partilhar com ele. Guardei o CD. Caminhei, com minhas lgrimas, em torno da casa.

    Uma escurido baixou sobre mim. Senti que minhas pernas no reagiam ao comando do meu crebro. Meus braos, meu corpo - estava tudo amortecido. Fui despejada, por assim dizer, dentro de um automvel e da noite que se seguiu, eu s me lembro de que a Luiza guiava, e chorava, que o carro trepidava por uma estrada que tanto podia dar no infinito quanto na Lua, que os rudos calaram, que o mundo parou, que meus pensamentos chegaram prximo daquilo que os budistas devem chamar de grau zero de percepo. Era como se estivesse dopada. No sei quanto durou a viagem do Algarve a Sintra. Passava da meia-noite. Despertei vista daquela que todos chamavam de "Casa do Ayrton". Bati de cara na realidade:

    - No posso acreditar, Luiza. Ele no me deixou. Ele no fez isso comigo. Ele sabe que no pode fazer. Sabe que no tem por que me deixar aqui sozinha. Sabe que muito especial para mim.

    - Eu sei, eu sei - ela chorava e me consolava. - Ento, no me pe naquele quarto.

    O nosso quarto, eu queria dizer. Luiza, solcita: - No, Adriane, voc vai dormir na casa grande, aqui em

    cima, bem ao meu lado. Mas nem assim: tudo me fazia lembr-lo. Ainda outro dia, tnhamos jantado naquela sala. Tnhamos rido, conversado, feito planos com nossos adorveis anfitries. Minha cabea rodava. Agora que eu topava de frente com a tragdia, fazia questo de encar-la. Ayrton me disse, uma vez: "Dri, o fraco no vai a lugar nenhum". A propsito de no sei o qu, qualquer bobagem. Mas o pensamento me voltou exatamente quela hora e eu me sentia era fraca, completamente fraca. Tomei uma deciso:

    - Luiza, quero assistir a tudo sobre o acidente, tudo. - Tem certeza?

    - Absoluta. Me d o telefone da SIC, da televiso. Vou ligar e pedir para que eles me mandem os vdeos da corrida.

    - Fao isso por voc.

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    O telefone no parava, quela hora da madrugada. Luiza ia dispensando, um por um:

    - Respeitem a menina. Por favor. A tev repetia e repetia a carnificina que tinha sido mola. Vi

    e revi o acidente do Ayrton. Tentava compreender o incompreensvel, explicar o inexplicvel. Passei a noite em claro, feito assombrao. A Luiza velou minha dor. Tentou me acomodar para um ligeiro descanso, umas horinhas de sono. Foi intil. Como eu estava absolutamente fora de controle, passo a narrar o que escreveu uma gentil reprter de um jornal brasileiro, por conta prpria, claro:

    - Ela (no caso, eu) vagava de camisola pela casa sombria, como um zumbi, e gritava, amparando a cabea com as mos: "Ayrton, Ayrton".

    Camisola? Casa sombria? Berros na madrugada? Nem foras para isso eu tinha.

    Pela tela de uma tev, eu experimentei a irrealidade da perda brusca de meu prncipe encantado, de meu amor, da razo de minha vida. Dos abismos de minha precria conscincia, eu tentava me apegar a qualquer coisa que fosse, para escapar impresso de estar vivendo um pesadelo. Insisti: queria ir a Bolonha. Aquilo mesmo que eu buscava em vida, queria agora na morte: o toque nos plos do peito, os ps, o rosto, a mscara fria da morte. S vendo, para acreditar. Essa idia de pluft, tchau, no me conformava.

    - Estou indo, Braga - eu implorava quele que tinha sido o paizo do Ayrton e, agora, tinha de manter a frieza para zelar da triste realidade da burocracia, da papelada, da autpsia, do embarque do corpo.

    - No vem. Ningum entra na morgue - ele desconversava. - Tem cinco mil pessoas se acotovelando l fora. Soube depois que Joseph, o fiel massagista do Ayrton, entrou. Que Gerhard Berger, o parceiro definitivo, tambm. Celso, diretor do escritrio em So Paulo, assinou o reconhecimento. Leonardo, no - algum lhe sugeriu que o rosto do irmo estava deformado demais pela batida. De fato, num telefonema posterior, o Syd Walkins, mdico de planto da Frmula 1, contou que Senna no tinha como sobreviver quando ele lhe retirou o capacete, ainda na pista de mola. O sangue esguichou. Perdeu quatro litros de sangue na pista. A traqueotomia feita ainda no asfalto era uma desesperada tentativa de faz-lo respirar, engasgado em sua prpria massa enceflica. Massagem cardaca, tudo isso era jogo

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    de cena. S um idiota poderia acreditar na chance de ele estar vivo. Senna morreu na pista. Mas o circo no podia parar.

    Pode parecer mrbido, mas fiquei sabendo que um fotgrafo da revista italiana AutoSprint estava na curva do acidente e fizera a foto do campeo em seu frio repouso. Liguei de Portugal para a revista. Apresentei-me: era a namorada do Ayrton, queria uma cpia da foto. Na minha aflio extrema, exigia o nico atestado concreto de sua morte. O resto era a fumaa de um pesadelo que me perseguia.

    Estava s portas da loucura. No acreditava em nada, no via nada, no sentia nada. Devo a Luiza o meu precrio mas salvador vnculo com a lucidez, naquele acolhimento amoroso e solidrio de Sintra.

    Hoje, dispenso o testemunho medonho da foto. Tenho ao meu redor, ainda em Sintra, o rosto puro, inteiro e singelo do meu heri, reproduzido em dezenas de fotos e psteres. Tenho meus sonhos cotidianos, em que a viso do meu amado ntida e, talvez confirmando o meu fetiche, os ps quase sempre aparecem. Sonhei com ele todos os dias seguintes - em Portugal, na fazenda de Campinas, em So Paulo, no Rio. Nunca eram sonhos apavorantes, mas nem sempre eu conseguia roubar daquele personagem fugidio, como da natureza dos personagens dos sonhos, um beijo e um abrao.

    Tenho hoje a companhia impiedosa dos meus fantasmas, dos meus medos, da minha solido, das minhas lgrimas - mas recompensa-me, de manh, a chegada do carteiro, com todas aquelas cartas, remetidas dos mais remotos cantos do mundo, que vm, s vezes muito cerimoniosas, pedir licena a mim, a namorada, la fiance, la nobia, o direito de compartilhar a enorme saudade dele. Teve dias em que chegaram duzentas cartas, at mais. Ora, que o amor de vocs seja um blsamo para a minha alma ferida.

    Uma noite dessas, eu me detive numa frase, escrita por uma dessas amigas que nem conheo: "A eternidade no cabe em nossas frgeis concepes de espao e tempo".

    Poderia ser um salmo da Bblia, a palavra anotada pela mo divina no livro sagrado que, assim como ele fazia, s vsperas de corrida, leio hoje todas as noites, em busca de uma compreenso que ultrapasse o meu desespero. Estou fraca. Mas sinto que no estou sozinha.

    A viva vai se dirigir imprensa. Entendam como quiserem entender essa frase, com direito ao sarcasmo que ela

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    possa ter. Pois imprensa e sarcasmo costumam - que me desculpem alguns jornalistas de respeito e compaixo - andar de mos dadas. Eu ia dar uma coletiva, na casa dos Braga, sobre aquilo em que eu me recusava a acreditar. No tinha jeito. Era segunda-feira, eu no dormira um minuto, mas a Quinta da Penalva corria o risco de ser invadida por um enxame de reprteres, fotgrafos e cinegrafistas de todo o mundo. No domingo, Ayrton tinha sido a vtima. Agora, era minha vez.

    Pedi a Luiza: - No tenho nem condies de escolher uma roupa para

    vestir. Ela foi ao armrio dela e me emprestou uma. A coletiva saiu

    meio aos solavancos, eu ligada no automtico, mas como no me lembrar da senhora que me aoitava com uma nica e insistente pergunta:

    - Voc tem bilhete de volta para o Brasil? Quem vai lhe pagar a passagem?

    No estava em condies de captar o sentido do dramalho mexicano que ela queria promover, minha custa. Na verdade, no sei de onde tirei tanta fora e tanta serenidade. No me esqueci, ao final, de fazer um pedido a Miriam Dutra, correspondente da TV Globo:

    - Me mande todas as fitas, todos os vdeos que voc tiver sobre o acidente.

    Mandou na tera-feira, depois de mais uma noite em que s tive insnia, pnico e recordaes. Eu me debrucei no sof e vi, revi, parei quadro a quadro, fiz slow motion, usei todos os recursos do telo em busca de uma nica expresso do rosto do Ayrton, naquela frao de segundo da escapada e do choque. Fita por fita, detalhe por detalhe. Quinhentas vezes, e nada para explicar.

    Ele teve tempo de pensar? De incio, minha impresso era de que ele tinha virado

    contra a curva - como se fosse bater de propsito. No podia ser. Luiza e Joana, a filha dela, eventualmente me acompanhavam na minha investigao obcecada. No via sinal de breque, nem de derrapagem (a resposta estava na caixa preta do Williams, analisada depois: ele tirou completamente o p do acelerador, a direo estava virada no sentido contrrio, de quem tentava desesperadamente desviar do muro, e ele pisou no freio no ponto mximo, 4G, como dizem os experts). Queria saber, naqueles quatro dias posteriores que pareceram quatro anos: foi falha do

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    carro ou o piloto forou a barra? Queria me conscientizar, embora no houvesse nada a fazer.

    Flashback de uma conversa nossa, antiga e eu diria mesmo rara, a respeito do perigo numa corrida:

    - Dri, quando eu vou bater o carro, eu sei que vou bater - Bco me disse uma vez. - No fico cego. Tem piloto que diz que apaga tudo, mas eu sinto o que vai acontecer.

    Ele deve ter assistido, portanto, com aquela sua clareza de mente, cena final. Pensei: queria ser um neurnio dele para compartilhar esse fio de conscincia, sentir o que se passou, na cabea dele naquele minsculo momento. Queria estar com ele no apenas naquela hora, queria estar com ele - s isso. Pensei em morrer. Queria que me matassem. Perdi completamente o medo da morte. Aproximava-me daquelas ameias que separam o gramado da quinta do Braga das pedras do abismo, l embaixo, e pensava em me atirar. No me conformava: no, ele no. Ele tinha 34 anos, era inteligente, vitorioso, um corao desse tamanho, um ser humano daquele jeito... Por que no eu? Passaram-se quatro meses, daquele dia a este aqui, em que registro minhas memrias, e no me sinto bem em lugar algum. Disfaro, tento reagir. Mas tudo foi por gua abaixo. No quero tirar de ningum, da famlia, dos amigos, dos fs, o direito dor. Mas o que perdi era o que eu tinha de mais importante na minha vida. No pouco.

    Eu tive 405 dias de Ayrton Senna para mim. Os pais dele o tiveram por 34 anos. Se eu estava daquele jeito, imagina eles. No era uma questo de aritmtica, mas de justia e de piedade. Todos aqueles dias tentei desesperadamente estar junto da Zaza, me, do seu Milton, o pai, dos irmos, Viviane e Lo. Ligava para a famlia. A empregada da fazenda atendia:

    - Dona Neide, como est? - perguntava eu, com certa formalidade.

    - Ela foi medicada, est deitada - resumia a Ednia. - E o senhor Milton? - Tambm medicado e dormindo. Liguei vrias vezes, sempre era a mesma coisa. Queria estar

    prxima, fosse como fosse. Impossvel. At que um dia perguntei: - E quem mais est a? - O Cristiano e o Jacir. Dois amigos do Ayrton (Jacir era o Gordinho, como o

    chamavam; Cristiano tinha o apelido de Criminoso, por causa de

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    um acidente em Angra, brincadeira deles). Dois amigos nossos, pensei.

    - Deixa eu falar com eles - pedi. - Eles no esto aqui agora. - Pede ento para eles me ligarem, no Braga, em Portugal -

    falei, com naturalidade. Nada, nenhum telefonema, silncio total. Comecei a

    estranhar: talvez eu seja uma lembrana muito viva do Ayrton, uma imagem fortemente ligada dele, eles queiram evitar.

    Luiza me desencorajava: - Pra de ligar pra l, Adriane. No dia seguinte, ainda tentei o Lalli (Flvio Lalli, marido da

    Viviane). Deixei recado. Ele me ligou. - Como est todo mundo, Lalli? - perguntei, inocentemente. - P, Adriane, como est todo mundo?! Todo mundo est

    um horror! Ele estava nervoso, agitado, mas eu insisti: - Fala qualquer coisa. Da Zaza, do senhor Milton, da

    Viviane... Qualquer coisa... Ele me contou que a situao estava difcil, mesmo para ele,

    impossvel estabelecer qualquer conversa com os pais. Totalmente por impulso, eu me decidi: - J sei. Vou para a j, ficar com eles. Lalli foi reticente: - A gente no sabe ainda o que fazer. Talvez leve a Zaza e o

    senhor Milton de volta para a fazenda, talvez no... No dia seguinte, quarta-feira, passei a ligar para a fazenda

    de Tatu. Estavam todos l. E a mesma histria: medicados, sedados, ningum podia atender. Braga, sim, l de Bolonha, dava notcias de cinco em cinco minutos. O corpo s seria liberado aps a autpsia. Norma italiana. Parece que a Viviane, em nome da famlia, tinha tentado evitar, com o argumento "J mataram uma vez, querem matar duas". Pacincia. Percebendo que eu estava ansiosa e meio xarope, Luiza soube que a Juraci estava voltando para o Brasil, aquela noite, e me perguntou se eu no queria acompanh-la:

    - De jeito nenhum, eu vim com ele, vou com ele. E com vocs.

    Minha sorte foi que o Braga apareceu, finalmente. Sorte minha, azar dele - que, modo, exausto, arrebentado em mil caquinhos fsica e emocionalmente, ainda teve de se submeter ao meu detalhado interrogatrio:

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    - Qual era o estado de nimo do Bco antes da prova? - Excelente, timo humor. Fomos juntos para a pista.

    Conversou muito com o Nick Lauda. At com o Prost ele brincou. E me falou de voc.

    - Mas, os outros, como estava todo mundo? - O clima da Frmula 1 naquele dia estava pesado admitiu

    o Braga, do alto de seus anos e anos de janela. - Mas voc sabe como : o piloto est l, o que ele tem de fazer correr.

    Comentei com o Braga a longa conversa que o Bco e eu tnhamos tido, na madrugada de sbado, depois da morte do austraco Roland Ratzenbergen De seu desnimo, de seu choro convulsivo:

    - Sei de tudo, garotinha. E de muito mais. Senna tinha no Braga um amigo do peito.

    Os dois estiveram juntos, poucos dias antes, 20 de abril, em Paris, noite em que a Seleo Brasileira disputou uma partida com o Paris Saint-Germain, o time do Ra. Senna foi convidado a dar o chute inicial. Em pleno Parc des Princes. Os franceses aplaudiram em delrio. Tanto que ele, com o Braga, esticou depois do jogo - coisa rara na vida dele - at o La Coupole, feliz de ter sido festejado por um pblico que em princpio ele julgava pertencer, de corpo e alma, ao seu rival Alain Prost.

    Braga conhecia o Bco e sabia o que se passava no fundo de seu corao. O dolo um alvo fcil para a intriga, o veneno, a inveja, o medo dos que gravitam em torno dele, a insegurana de quem tenta inutilmente control-lo. Braga sabia que Ayrton estava sob presso - e que a Benetton e Michael Schumacher no eram as nicas coisas do mundo a atormentarem seu sono. Mas sabia da integridade do amigo, da fora de sua determinao e da sinceridade de seus sentimentos.

    Posto o que, encerrado o interrogatrio, ele me botou sob sua generosa asa:

    - Vamos nos arrumar para viajar amanh para o Brasil, e voc vai desembarcar conosco, garotinha.

    Voc pode aprender muitas coisas, de uma hora para outra - para o bem ou para o mal. At nunca mais ver, inocncia! Naquele momento, eu gostaria de j ter em mos a frase que uma amiga desconhecida, porm amiga, me mandou depois, numa carta afetuosa: "Sossega, meu corao: j enfrentaste coisa pior do que isso".

    Citao de um poeta grego, no me lembro mais quem. Se esta frase atravessou tantos sculos, porque ela traz a essncia

  • 17

    de uma sabedoria. Isso mesmo: o pior, para mim, tinha sido a perda definitiva do meu amado. Os tormentos posteriores, o enterro, a despedida, at mesmo as incompreenses, eu cheguei disposta a enfrentar sem o menor medo.

    Morte. A ironia cruel que ele estava, mais do que nunca, comprometido com a vida. A lenta cena da preparao de Ayrton Senna, em mola, repisada pela televiso ao som de uma msica suave, como se ele prenunciasse o desastre, no nada disso. Eu vi, revi, aposto com vocs. A cena representava reflexo, sim; temor, talvez; responsabilidade, com certeza. Mas est a o Nuno Cobra para me lembrar aquele ltimo momento em que estivemos os trs juntos, maro de 1994, na pista da Universidade de So Paulo.

    - A vida est passando a sua frente - disse-lhe Nuno, filosfico. - Pega ela, pega ela.

    Nuno tinha sido testemunha de um momento em que Senna esteve por um fio: a espetacular seqncia de capotagens no GP do Mxico, na perigosssima curva da Peraltada, em que o McLaren acabou emborcado na proteo de brita, Ayrton tambm de cabea para baixo. Levantou-se, tirou a poeira do macaco e fingiu que nada tinha acontecido. O intelectual disfarado em preparador fsico, que em dez anos fez de um Ayrton Senna menino raqutico um homem de msculo e postura rijos, ouviu Nigel Mansell, que vinha na cola de Ayrton naquele dia, comentar:

    - O cara deu cinco piruetas no ar, mais cinco na terra. S um milagre explica.

    Lembre-se de que Mansell no era dos espritos mais esclarecidos da terra. Mas, por tudo e por todas, se havia algum por perto que conhecia as fronteiras do perigo, esse algum era o prprio Ayrton. O assunto, alis, tirava seu humor. Certa noite, no restaurante Rodeio, contrariando o seu hbito de no comer carne vermelha e de dormir cedo, ele, eu e um grande amigo, o Marquinhos Magalhes Pinto, camos na armadilha de sentar perto de uma daquelas mesas s de homens j devidamente alterados pela bebida. O ritual do reconhecimento era ameno: olhares tmidos, sussurros, de vez em quando a ousadia de um aceno de cabea e s depois o autgrafo. Mas, nessa noite, um deles exagerou:

    - P, cara, trezentos quilmetros por hora! Voc no sabe que pode morrer?

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    Sorriso amarelo o dele. Mas o sujeito estava naquele meio-termo entre o alma-de-ouro e o chato-meloso:

    - Pra com isso, Ayrton! A gente o adora. Voc um cara maravilhoso, um triatleta. Pra de se expor, pra.... Frmula 1 uma mquina mortfera.

    O maitre previu o desfecho, mas foi tarde. Bco, de p, se indignava:

    - Mas isso assunto para falar aqui? Me respeite, por favor. Estou jantando...

    A morte era um assunto que ele guardava no segredo de seu cofre ntimo. A morte era a fatalidade, o erro, o acidente, o gratuito - estou hoje convencida de que, na cabea dele, no tinha nada a ver, por exemplo, com o desempenho e a velocidade. Passamos por poucas e boas, em Angra, naquele helicptero que ele guiava meio amalucado. Uma vez, foi a porta do meu lado, co-piloto, que abriu, bem na hora em que passvamos entre os dois cocorutos dos morros que formam a cidade. Ventou, o helicptero deu de banda, ele gritava "fecha, fecha", eu puxava, mas a porta resistia ao vento. Ele me ajudou e pousamos em Portogallo empapados de suor. Pior ainda foi aquele sbado em que ele absolutamente tinha de voltar a So Paulo e as nuvens negras desceram sobre o litoral como naquelas tardes de outras tragdias ilustres.

    Soube depois que ele consultou seu piloto em So Paulo: - No vem que no d - aconselhou nosso bom Nelson. - Mas tenho de ir. E foi. Pior: comigo. No se enxergavam cinco metros frente

    da perigosa serra do Mar, entre Parati, Ubatuba e Caraguatatuba. Nuvens espessas e negras. Ele por assim dizer engatou uma primeira - jogou tudo. Se passasse, timo: se no passasse, a ver. O helicptero ganhou altitude, ganhou altitude, foi subindo at que clac, um estranho barulho e um mergulho para baixo. Ele ficou lvido. Agarrou-se no controle e trouxe o aparelho at muito perto do mar, enquanto eu, sem tempo sequer de invocar minha santa padroeira, s lembrava, em silncio, daquele acidente recente:

    - Ulysses, no. Ulysses, no. Ele disfarou bem. Voando baixo, explorou as brechas

    desenhadas entre as nuvens e acabou atravessando, sem sobressalto, em direo a So Paulo, porto seguro. Desligou as hlices e teve a reao mais natural de quem tinha passado por um aperto daqueles:

  • 19

    - Me espera aqui que vou fazer pipi. Na verdade, o campeo quase tinha feito nas calas. Eu

    tambm. Ol me chamo Adriane Galisteu, tenho 21 anos e sou

    modelo - sou? Era? Ainda vou ser? S o futuro dir. Nasci e cresci na Lapa, um bairro de classe mdia para baixa de So Paulo, estudei em escola pblica, tenho me, irmo casado, um adorvel av materno de 80 anos, um Fiat Uno 1993 e uma histria que gostaria de contar. H de parecer, a alguns, um conto de fadas - e a mim mesma me ocorre muitas vezes, depois que tudo aconteceu, a pergunta persistente se este mundo em que ns vivemos no s um sonho, se o que chamamos de realidade no uma sombra projetada numa parede. Disseram-me que algum muito importante j pensou assim, mas acho que faltei aula, naquele dia. No sou mstica, no vejo duendes, mas posso passar horas de noites de insnia - insnia uma das novidades que os vertiginosos ltimos meses de minha vida me introduziram - lendo a Bblia. J disputei concursos de beleza, mas nunca li O Pequeno Prncipe. Gosto de Paulo Coelho e, no momento em que remexo nos arquivos de minha memria, aqui e agora, enevoada pela bruma da serra de Sintra, em Portugal, planejo refazer o caminho de Santiago de Compostela - aquele do Dirio do Mago.

    Perdi aos 15 anos meu pai, um espanhol da Castela, mal entrado nos 50, numa noite em que eu disse que ia com uma amiga para o Guaruj e fui com um namorado para Aruj. Freud explica, talvez - mas no consola o meu arrependimento boboca e infantil. Fiquei sabendo que meu pai, que j tivera um problema cardaco, chegou andando ao hospital e saiu no dia seguinte num caixo lacrado, com toda a famlia desesperadamente minha procura. Imaginem meu trauma. Desde ento, minha me sabe rigorosamente tudo o que se passa em minha vida. No sei mentir. Meu relato pode ser emoldurado de dureza, tristeza, decepo, alegria, iluso, arrependimento, franqueza, imprecises, rancor, exagero, mas a verdade, fiquem certos, ser preservada como um tesouro to precioso como aquele de que vai falar esta histria: o amor.

    Mes contam coisas exageradas dos filhos, mas desta eu me recordo: aos 9 anos, me descobri bonita. Ganhei um biquni novo dela e to apetitosa me senti - ser apetitosa palavra do vocabulrio de uma menina de 9 anos? - que vesti a pea de

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    baixo, fiquei me apreciando no espelho, horas a fio. De repente, simulei um mergulho. Queria apreciar a perfeio do meu corpo em todos os ngulos. O espelho se espatifou em mil pedaos e as escoriaes generalizadas tiveram de adiar meu show aqutico por alguns dias.

    Encanei: - Me, quero aparecer na televiso. (Imaginem, aps a morte do Ayrton, tive de dizer no a

    pessoas gentis e influentes que me convidaram para ser atriz numa das novelas da Globo. Mas agradeo seu gesto de amizade, Roberto Irineu.)

    Minha me argumentou que no seria fcil, mas, como sempre, foi luta. Por intermdio de uma vizinha que tinha uma filha adolescente no teatro, juntou endereos de agncias e me produziu um book. Ainda me lembro do nome da fotgrafa: Teresa Pinheiro. Fotos sem muita produo nem maquiagem, em preto-e-branco. Dali, procuramos uma agncia especializada em crianas, a Pritty, que ainda existe, em So Caetano. Meu pai tinha sido dono de uma grfica que chegou a ter duzentos empregados. Passara sua parte e se aposentara. Tnhamos uma vida normal, sem carncias e sem luxos. No era tanto o dinheiro que me movia. Era o sonho de ficar famosa.

    Casting para o primeiro comercial. Aprovada. Vocs vo perceber uma predestinao a. Sabem quem era o anunciante? O McDonald's. Que abria sua loja da Avenida Rebouas com Henrique Schaumann. Eu tinha de dizer aquilo:

    - Dois hambrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola, picles e po com gergelim.

    A frmula do Big Mac. A campanha era essa: quem cantasse rapidinho, sem errar, no balco da nova loja, levava de graa. O sanduche era timo, mas a vida de artista uma dureza, eu percebi. Filmamos e refilmamos um milho de vezes. Praticamente passamos, mame e eu, dois dias e duas noites no McDonald's.

    Minha me, sempre ao lado - mas sem aquela atitude chata de me de miss. Entregava o cach para ela, ela o administrava. A eu deslanchei: outros filmes, passarela, desfiles - com a ajuda de um coregrafo amigo, Joacir Dallas, eu praticamente reaprendi a andar. Teatro, nem pensar - supus que no tinha talento. Mas teria, por vrios anos, uma outra inesperada experincia de palco. Via msica. Ateno, Chacrinha, Gugu, Trapalhes, Silvio Santos, Xou da Xuxa, Srgio Mallandro, Bolinha - aqui vou eu.

  • 21

    Um sucesso, a novela Chispita, na TVS. S que era mexicana. Marco Antnio Glvo, um produtor que trabalhava l, percebeu a chance de um LP do tipo trilha, em portugus. Fez o casting, a msica estava pronta - era s dublar. Tinha de ter cara e ginga, voz era o de menos. Acabou a novela, acabou o conjunto. Estava com 11 anos. Aos 12, dei um estiro - virei uma mulher. Meu primeiro suti foi da Monizac, uma campanha que foi um estouro e bem sugestiva do que se passava comigo. "Menina ou mulher?", dizia o anncio. Continuava o trabalho de modelo, logo iria para a Jet-Set, enfim uma agncia de porte. Mas a msica me chamou de volta: um conjunto de quatro garotas - Dbora, Kalu, Cinthia e eu -, com melodias aucaradas que lembravam os anos 60. O nome, escolhido pela empresria Amlia Romo, no poderia ser mais adequado: Meia Soquete. Tem muita gente da minha idade que ainda se lembra do nosso estilo Lolita.

    Dos 13 anos em diante, vivi um turbilho de muito trabalho, muita viagem, muita experincia inesperada - como cantar ao ar livre para milhares e milhares de pessoas em Tucuru, no Par. A msica no era meu barato, assim como as drogas, o lcool e a badalao nunca foram. Mas tnhamos gravadora de prestgio - primeiro a RGE, depois a Som Livre. Chegamos a ganhar mais de um disco de ouro e isso d orgulho a qualquer um. Era dona de uma voz afinadinha, mas no palco vivi situaes de desastre, como o show em que desabei como uma abbora, quando a gente se dava as mos numa roda. As viagens constantes disputavam com as aulas, nas quais eu dormia de cansao, e com o ano letivo. No terceiro colegial, finalmente, a escola perdeu. Alis, eu perdi - o ano. Antes, j havia perdido meu pai e minha vontade de cantar.

    Uma sndrome de pnico, ou pelo menos um srio sintoma disso, quase me enlouqueceu, pouco tempo antes de conhecer o Ayrton. Estava num lugar qualquer e, de repente, o corao disparava, as mos comeavam a suar, perdia o equilbrio, chegava a desmaiar. Fiz exames, tomei tudo o que me indicaram, de antidepressivos a simpatias, conversei com outras pessoas - nada. Um dia, a caminho de casa, dirigindo o carro, meus joelhos tremiam como chocalhos. Vi uma igreja e entrei. No meu pnico, rezei por mais de meia hora - em voz alta, quase aos gritos:

    - Meu Deus, me d foras. Eu no freqentava igreja, no era mstica, menos ainda

    esotrica, mas mantinha em mim uma reserva de f. Ela me ajudaria naquilo - e depois. Nesta idade de 21 anos em que

  • 22

    muitos mal comeam a vida, j passei por quase tudo. Tive o sucesso mas provei da parte dura da realidade. Aprendi muito - inclusive no curto tempo em que tive de ensinar. Sim, isso mesmo: tambm dei aula, para o 1 Grau, naquele ano em que fui reprovada. Queria o diploma e passei para o curso de magistrio - o normal. Entrava na sala e havia um menino sempre dormindo. Tentava mant-lo acordado e nada. Um dia, chamei-o para conversar.

    - Sabe o que , tia? - explicou. - Lavo carro quando saio da escola e noite entrego pizza.

    Era um garoto de 10 anos e levava para casa o po de cada dia. Que ele dormisse o quanto quisesse. Depois, foi uma menina cujos cabelos tinham sido tomados por piolhos. Quis ajud-la:

    - Vou avisar a sua me. - Que me? - respondeu, candidamente. Para a missa de trinta dias da morte do Ayrton, que assisti

    no Rio, no aconchego da famlia Magalhes Pinto, ganhei de dona Maria Jos uma consoladora Bblia. Pouco antes, recebera um livro e uma dedicatria encorajante, presentes das irms Marilda, Marecilda e Marilene, de Curitiba. O ttulo me deixou curiosa - Quando Coisas Ruins Acontecem s Pessoas Boas. Obra de um judeu americano chamado Harold S. Kushner, com prefcio do rabino Henry Sobel. Traz toda uma reflexo filosfica profunda, a partir da perplexidade de Kushner, na poca um jovem estudante de teologia, com a mensagem do Livro de J e a essncia do sofrimento humano.

    Evidente que tinha tudo ver com o momento que eu vivia e o resultado foi que mergulhei no livro. Eu tinha me perguntado muitas vezes: por que Deus tirou o Bco de mim? Por que ele haveria de morrer fazendo aquilo que mais sabia fazer? Por que naquele momento to especial para ns dois? Por que Deus permite que uma criana contraia um cncer? Por que Deus deixa imperar o mal? O livro prope a idia de que Deus um mistrio que a mente humana no pode alcanar. A divindade, como Ela for chamada: Jeov, Buda, Maom, Oxal, qualquer que seja o nome de seu Deus. Portanto, Deus no dos males do mundo, assim como no tem a ver com a nossa felicidade. O que acontece sobre a Terra resultado das leis da natureza: nascer, crescer, morrer.

    O senhor Kushner est a uma distncia enorme do meu invencvel sentimento de perda, mas me ajudou, sem saber, a dar

  • 23

    um pouco de ordem aos meus desesperados porqus, porqus e porqus. Sem fatalismo, mas tambm sem resignao. Amm.

    Vida de modelo assim - testes, aerbica, testes, musculao, testes, alguns convites que podem ser aceitos, mais testes, propostas que devem ser recusadas, testes... Eis que, l, perdida numa pgina qualquer de minha agenda, escondida no emaranhado de coisas a fazer, contas a pagar, telefonemas a dar, est rabiscada, sem destaque, aquela anotao que iria mudar o rumo de minha vida:

    "15 de maro - Teste na Elite. Quatro da tarde". Pode ser que vocs no acreditem em destino. Mas vo

    perceber que eu tenho de acreditar - ainda que esse destino possa vir a ser, de repente, cruel, muito cruel.

    Na verdade, eu quase no fui ao encontro dele, o destino. Quando Karen, a booker da minha agncia, me ligou, alguns dias antes, eu quis recusar. Ela me explicou: recepcionista no Grande Prmio Brasil, "uma grana bem legal". Mas, sinceramente, aquela palavra - recepcionista - no me soou bem. No que eu j no tivesse feito trabalho desse tipo, no isso. Nada de preconceito. que eu estava vivendo um timo momento profissional - e me sentia em condies de escolher o meu trabalho. De mais a mais, no tinha a menor intimidade com a Frmula 1. Achava que era um mundo fechado, masculino demais. Jamais trocaria o cheiro de meu perfume Roma, da Laura Biaggiot, pelo da gasolina.

    Automobilismo, at aquele dia, era to distante de mim quanto rgbi ou beisebol. Tinha visto uma nica prova, ao vivo - em 1989, no Estoril, em Portugal, mais por farra, com um grupo de amigos, aproveitando a folga numa bateria de fotos de moda. Na televiso, no tinha muita pacincia: via a largada, as primeiras voltas e, dependendo do resultado, as ltimas. Eu estaria mentindo se dissesse que era uma f de Ayrton Senna. Nunca fui f de ningum. As meninas da minha rua lambiam o asfalto pelos Menudos, por exemplo. Eu, no - ao contrrio de minha av hngara, que torcia pelo Ayrton e no perdia jogo do Palmeiras na tev, nunca entrei nessa de ter dolo. Na Frmula 1, confesso que no mximo tinha certa simpatia pelo Nigel Mansell - quer dizer, por ele ser um cara engraado, meio maluco e trapalho. Adorava quando ele se metia em alguma briga com aquele nosso garoto Senna. Alis, Mansell ganhou em Estoril naquele ano e eu vibrei.

  • 24

    Voltando a maro de 1993. Karen insistiu muito para que eu aceitasse o convite da Shell. Seriam s dez modelos, meninas bonitas e conhecidas, para ficarem na sala vip, sem essa de desfilar pelas arquibancadas, sem confraternizao com a galera, coisa sria. Citou o nome de duas ou trs que eu conhecia - a Nara Pinto, a Patrcia Teixeira, a Laura Gutierrez... Tudo bem, vamos ver como . Nem perguntei pelo dinheiro.

    Na hora marcada, mais uma tramia do destino: tinha de vestir mai. Ameacei uma meia-volta: "Estou fora".

    Mas os trs diretores da Shell que estavam l imploraram: "No o que voc est pensando..:" O uniforme da prova era curtinho, s isso. Perguntei sobre o que teria de fazer no Autdromo de Interlagos, eles me perguntaram sobre minha carreira - e, sem mais, um deles me surpreendeu:

    - Voc est aprovada. Mil dlares por quatro dias de trabalho, de quinta a

    domingo, era tudo o que eu esperava ganhar, naquele fim de semana de GP Brasil. Jamais passou pela minha cabea que eu iria ganhar o amor de minha vida.

    Quinta-feira, 18 de maro, coletiva de imprensa com os pilotos da McLaren, que a Shell patrocinava. Eu fora - tinha agendado um trabalho anterior. Mas, s seis da manh de sexta, l estava eu, a bordo de um txi e de muitos bocejos, a caminho da Elite, ponto de encontro para Interlagos. No autdromo, tivemos um mobral rapidinho de Frmula 1. Para que ns, modelos, no ficssemos ali apenas com nossos rostinhos - e corpinhos - bonitos, eles nos introduziram na linguagem do circo: cockpit, pitwalk, pitlane...

    Sbado, de novo. Madrugada, segundo treino oficial. Os motores voltam a roncar. O Dudu, da Shell, vem, de repente, com a bomba: dali a alguns minutos, sabe quem que iria visitar, em pessoa, o hospitality center da Shell? Isso mesmo - ele, Ayrton Senna. Frenesi nas meninas, disparada para o banheiro - cada uma delas, descabeladas, correndo em busca do espelho e de um providencial retoque na maquiagem. Todas, menos eu - tudo bem, no era o caso de esnobar nosso tricampeo do mundo. Simplesmente, eu no o conhecia. At aquele dia, ele no era meu dolo. Passaria a ser - para toda a eternidade.

    Ele chegou. Uma cena que iria rever infinitas vezes: uma multido compacta, ansiosa, e, navegando no meio daquele mar, o solitrio bonezinho do Banco Nacional, anunciando a aproximao do dolo. Empurra-empurra, confuso, quase

  • 25

    histeria - e ele, sem perder a calma, o timing e o comando da situao, saa cumprimentando as pessoas, enquanto saciava seus olhinhos curiosos e vivos com a busca de alguma novidade. Eu no sa do lugar. Observava, apenas - afinal, estava ali a trabalho, no a passeio. Ele subiu num pequeno palanque e comeou a dizer algumas palavras. Senti que ele me olhou. Mas era para mim ou para a Nara, que estava atrs de mim? Ou teria sido um olhar vago, para um ponto indefinido e qualquer que acolhesse a timidez dele?

    Novo alvoroo: caminhada pelos boxes. A cada uma das meninas correspondiam dez convidados. Todas querendo se escalar para a McLaren. Eu, me fazendo de modesta: "Para mim, tanto faz". Knockdown: ganho exatamente a McLaren. A caminhada me provoca um sentimento de compaixo para com aquele moo, cara de menino, que fica zanzando pelo boxe, visivelmente tenso pela responsabilidade de disputar um Grand Prix em casa - e ele, ali, indefeso em meio ao assdio dos fs e dos pedidos de autgrafo, sem desfrutar da mais remota privacidade. Dura a vida de um Ayrton Senna, pensei comigo mesma. Sua expresso carregada confirmava minha apreenso.

    - Olhou pra voc - provocou a Nara. - Foi pra voc - devolvi. Pra mim, pra voc. Era o domingo da corrida e houve esse novo passeio pelos

    boxes, com os convidados, entre o warm up e a largada. Dia comprido para mim. s cinco da manh j estava acordada, s 6h30 desembarcava no autdromo. Trabalho difcil: muita gente, muita correria. Mas houve o tal pitwalk, como de praxe, e, nas vizinhanas do boxe da McLaren, um gordinho simptico, de cara bonitinha, me abordou:

    - Sou o assessor para assuntos particulares do Ayrton Senna - apresentou-se. - Ele me pediu pra pegar o seu telefone.

    Achei que era gaiatice, mas dei. O da minha casa, o do trabalho. Incrdula, vi aproximar-se um senhor, que repetiu:

    - D o fax tambm. Eu, silenciosa. - isso mesmo, garotinha. O cara est parado em voc. (Guardo no ba de minhas melhores lembranas a primeira

    vez em que o ouvi pronunciar a palavra garotinha. Eu amo o Braga, doutor Braga, o Braguinha, o Bragota; eu amo ouvi-lo dizer garotinha, eu amo a Luiza, mulher dele, eu amo a Joana e a Maria, as duas filhas do casal, tenho uma gratido que jamais

  • 26

    poderei exprimir em palavras. O outro, o tal "assessor para assuntos particulares" do Ayrton, era, eu logo ficaria sabendo, o Jacir, ou Jaa, amigo de longa data do Bco, que tinha, e s ele tinha, autoridade para cham-lo, sem represlia, pelo apelido de Baleia.)

    Logo notei que "o assessor" se encarregou eficientemente de colher outros telefones das meninas da Elite e desencanei. Ficou apenas a expectativa de uma nova visita do piloto, anunciada pelos diretores da Shell - e uma nova, aflita, corrida ao banheiro, batom, maquiagem, uma geral nas meninas. Eu apenas esperei. Nara ainda brincou comigo:

    - Est se fazendo de difcil, boneca? - Olha, ele at que me atrai - respondi, moleque. - Voc reparou naquela bundinha? Estvamos nos divertindo. E olha l de novo aquele

    bonezinho azul do Banco Nacional aproximando-se, engolfado no mar de tietes. Dessa vez, ele ficou um pouco mais. Meio encabulado, subiu ao palco e falou sobre o que esperava da corrida. D pra vencer, disse, sem aparentar muita convico. "No posso garantir que vou ganhar, mas o que eu mais quero", despistou. Ns, as dez meninas da Elite, com nossos macacezinhos que deixavam boa parte das pernas de fora, ficamos bem diante do palco, como se formssemos um cordo de segurana entre ele e a platia de convidados. Estacionei na frente dele, olhando para cima, fila do gargarejo. Ele falou pausadamente, remoendo cada palavra que pronunciava. Falava e olhava para baixo. Quer dizer: olhava para mim. Ser? Coincidncia. sada, entre cotoveladas e pedidos de autgrafo, a, sim, uma olhada ntida e um largo e lindo sorriso para mim. Para mim? Olho para trs e eis que vejo, de novo, a Nara - aquele um metro e setenta e muitos centmetros de pura beleza morena. Ento isso: o negcio dele, definitivamente, a Nara.

    - com voc - eu entrego os pontos. - Ele gosta de louras - brinca Nara.

    Mas alguma coisa tinha tocado em mim. Meu desinteresse pela corrida transformou-se, de repente, numa enorme ansiedade. Sinal de largada e eu, como todo mundo, passo a me revezar entre a televiso e a amurada do hospitality center. S tenho olhos para o carro vermelho e branco da McLaren. Descubro-me torcendo freneticamente por ele. Alain Prost na frente. Um milagre: uma nuvem negra, nica em todo o cu de

  • 27

    So Paulo, sobrevoa o autdromo. Caa a chuvarada. Prost roda e sai da corrida. A torcida vem abaixo.

    A chuva pra. Ayrton Senna o vencedor. Tempo de comemorao: os diretores da Shell anunciam

    uma festa-surpresa em homenagem ao campeo. Depois das dez da noite, no Limelight, uma boate da moda em So Paulo. Todas as modelos esto convidadas, alis, convocadas a comparecer. Arrastando-me de cansao, sonho com minha caminha, para retemperar as energias gastas no trabalho e na surpreendente ansiedade que tomou conta de mim durante a prova.

    No gosto de boate, nem tenho sado noite. Mas ligo no automtico: tenho de ir. No iria me arrepender. A noite ainda me traria muitas surpresas - ou, pelo menos, uma. Aquela pela qual, ainda que meio inconscientemente, eu comeava a me interessar.

    Ele deu uma de Cinderela s avessas: ao som das doze badaladas, apareceu. O Limelight regurgitava de gente, msica e dana, espera da estrela da tarde e do convidado da noite - o campeo. O sorriso dos garons abria a passagem que o empurra-empurra dos tietes insistia em bloquear. Medi minha impacincia, senti o drama e consultei o staff da Shell: iria cumprimentar o Ayrton e me retirar estrategicamente. Eu vestia jeans, miniblusa preta - o calor estava diablico -, usava um sapato de plataforma preto, nenhum trao de maquiagem. Era a prpria working girl. Uma bandana vermelha no pescoo foi o mximo de futilidade que me permiti.

    No que busquei, de novo, com o olhar, nosso convidado, eis que j o vejo muito bem instalado num camarote, sendo abraado por outro heri nacional - Pel. Mais o tal gordinho da corrida e o irmo dele, Leonardo, que eu conhecia de fotografia e de histrias, muitas contadas pelas modelos da Elite. E todo esse belo quadro emoldurado por pelo menos duas dezenas de mulheres bem bonitas e aparentemente bem disponveis. Suspirei de alvio: diante daquilo, estava dispensada de qualquer figurao.

    Antes de sair, quis apenas cumprir o protocolo. Abri caminho com os cotovelos at o camarote e fui dar meu al. Mas o prprio Ayrton pediu ao segurana para dar passagem. Segurei na mo dele para um rpido parabns. Senti que ele estava eufrico com tudo aquilo - a vitria, a comemorao, o paparico. Ele manteve a minha mo na dele. Eu desconversei:

    - Voc foi o mximo. Estou aqui em nome da Shell...

  • 28

    Nada de soltar minha mo. S para, de repente, pegar uma taa de champanhe e me oferecer:

    - Comemore comigo. - Obrigada, mas no bebo - disse. - Mas um dia especial. Eu ganhei. No bebe nadinha? - Nadinha, desculpa. - Ento, fica aqui com a gente. - Mais uma vez, desculpa. Mas eu no estou gostando desse

    clima de camarote nmero 1. Senti uma certa decepo no rosto dele, mas fiquei firme. S

    me permiti um escorrego mais pessoal, antes de virar as costas: - De qualquer modo, voc tem meu telefone... O gordinho amigo do Ayrton, o tal "assessor", ainda quis me

    segurar pelo brao: - Espera a, a gente vai dar um churrasco em Angra, no fim

    de semana, no quer ir? Escapei com o clssico "a gente se fala". Levei comigo aquela mistura de sentimento que vai desde

    "p, ele me tocou" at o "isso tudo um grande absurdo". Mas absurdo mesmo foi quando, s nove da manh do dia seguinte, a empregada veio me chamar, para o desespero de quem odeia ser despertada cedinho:

    - Telefone. um tal de Ayrton. Aquele gordinho folgado - pensei, imaginando ouvir a voz do

    tal "assessor". Fui malcriada: - E a? A voz serena e doce que ouvi foi uma ducha na minha

    irritao: - A gente vai dar uma churrascada em Angra. Voc no quer

    ir? Vacilei. Disse que tinha muito trabalho pela frente,

    precisava de um tempo para responder. Pela primeira vez tomei contato com o estilo daquele que, no por acaso, era o rei da velocidade.

    - Agora... O que voc vai fazer agora? - Agora? Tenho um teste para um comercial. Teste para um comercial. a desculpa mais manjada no

    mundo das modelos. S que, no caso, era a mais pura verdade. Eu diria at: uma irnica verdade. Teste para um comercial da Arisco - para figurar ao lado de ningum menos do que Nelson Piquet. At eu, at as pedras sabiam que Piquet era o maior inimigo de Ayrton Senna. Preferi guardar esse segredo dele.

  • 29

    Ele no desistiu: - Ento, depois do teste, me liga. E me deu aquele telefone direto que faria o fascnio de tantas

    fs e de tantos jornalistas. Celebrei, l no estdio, as virtudes do molho Tarantella, senti que agradei e no resisti idia do prometido telefonema. No sei bem qual era a minha inteno, mas, por via das dvidas, comprei quinze fichas de telefone e me dirigi para o orelho mais prximo. Nervosa, porque no sabia nem com que nome cham-lo. Ayrton? Ayrton Senna? Quase desliguei quando a secretria sacou do "quem gostaria?

    - Adriane... - respondi, desenxabida, me culpando pela certeza de que ele jamais viria ao telefone.

    Veio, interessado: - E o teste, como foi? - Legal, fui bem, eu acho. - Mas que teste esse? Pensei: me pegou. Ou quase: - Sou modelo da Elite... um comercial de tev... - desviei. Cara minucioso, esse: - Mas que comercial? - Com seu amigo Nelson Piquet - entreguei (se o conhecesse

    naquele momento como vim a conhec-lo depois, nem por brincadeira mencionaria o tal nome).

    Ele engoliu seco, silenciou por um minuto e mudou de assunto:

    - Mas e a churrascada em Angra, voc vem? Senti que no daria para despistar mais. No nervosismo,

    escapei para o horscopo: - Escuta, de que signo voc ? - Do nada - ele brincou. - Sou de ries. - Eu tambm - comemorei. - Sou meio tmido, voc me entende, no ? - Tmida e confusa, eu... - Meio difcil dizer as coisas... Mas queria convid-la... -

    Entendo... Mas, me desculpa: no o conheo. - Como no me conhece?! - ele reagiu, com mpeto ariano. -

    Todo mundo me conhece. - De matria de jornal, de entrevista na tev... Mas, como

    homem, como pessoa, no o conheo. No tenho a menor idia de quem voc .

    Cabea dura de ariano:

  • 30

    - Ento, vai ter hoje uma boa chance de conhecer. Estou dando um jantar s nove da noite no The Place. Voc est convidada.

    Sei l, nem registrei. Chovia em So Paulo, deu aquela preguia, ainda estava cansada das emoes do GP - enfim, no apareci. Na manh seguinte, j estava estacionada no meu lugar habitual na Elite, ali na regio da Avenida Faria Lima, quando olhei para a janela e tive um sobressalto:

    - T alucinando! - pensei comigo mesma. O que eu via, na porta da agncia, era um Honda negro,

    reluzente de to novinho, e dentro dele, pilotando, quem, quem? Ayrton Senna. Como eu jamais bebo, menos ainda quela hora da manh, me assustei: delrio, loucura. Aquele cara estava me fazendo mal.

    Logo, logo, notei que tinha domnio perfeito de minhas faculdades mentais. A acelerao que fez o carro - zzzuuuummmmmmmm - sumir na esquina reforava a idia de que era mesmo ele, em pessoa, e no um fantasma. De mais a mais, era inconfundivelmente de felicidade o sorriso que exibia no rosto a Daniela, uma das meninas da Elite - que eu acabara de ver desembarcando do carro.

    Daniela estava radiante: - Vocs viram quem acabou de me deixar aqui na porta? - No, no. Quem? - a mulherada, curiosa, aglomerou. - O Ayrton Senna. Meu novo namorado. - Hummm... (dvida, cime e jeito de pedir "conta mais!") - Pode acreditar. Ele o mximo. Estou apaixonada. Eu, com os meus botes: ela foi ao jantar que eu no fui. A moa no era das mais discretas. Diante daquela platia

    alvoroada, contou detalhes da noite ntima. Massagens nos ps, nas mos, no pescoo. E por a vai. Mincias das quais eu gravei, sei l por que, um detalhezinho:

    - Gente, ele at botou pasta de dente na minha escova. (No nosso primeiro encontro, quis fazer a mesma coisa comigo. Reagi na base do "essa eu j manjo, cara".)

    Loira de olho azul. Mulherao lindo. Gacha, a Daniela. O carinha tinha bom gosto. E, de repente, estava todo mundo comentando que ia haver uma churrascada em Angra. Relaxei: ento, uma festa. O convite geral. Peguei o telefone e disquei para ele.

    - P, garotinha, voc no apareceu - repreendeu, carinhosamente. - E a Angra, voc vem ou vai furar outra vez?

  • 31

    Tentei desconversar, louca, porm, para dizer sim: - No deu pra ir. Sobre Angra, eu j disse que preciso

    conhec-lo melhor. Contra-ataque arisco, o dele: - Estou querendo ir amanh. Por que, antes disso, voc no

    passa pelo meu apartamento e a gente conversa? Fiquei de posse daquele valioso tesouro. Escrito num

    pedacinho de papel, o endereo - Rua Paraguai, 64, dcimo stimo andar. Prdio de tijolinho, ele me explicou. O nico da rua. Disse como chegar l.

    A aventura me atraa e me repelia. Eu, que durmo como uma teenager, tive sobressaltos aquela noite, remoendo as idias mais estapafrdias e regressando sempre para o mesmo ponto de interrogao:

    - Mas por que eu? (Agora que tudo passou, a mesma pergunta que volta,

    impiedosa.) No sabia aonde aquilo ia chegar. Mas foi alguma coisa alm

    de curiosidade feminina que me empurrou at o apartamento dele, no final da manh seguinte, quinta-feira, 10 de abril - foi alguma coisa que no sei bem o que . Ele me esperava com naturalidade e aquela carinha de menino indefeso. Cala creme social, de preguinhas. Sem camisa - trax rijo. Os ps descalos deslizando pelo carpete alto, daqueles em que fica impossvel encontrar a tarracha de um brinco. Tudo muito respeitoso: ele se sentou numa poltrona a uma distncia razovel - bem razovel, eu me recordo - do sof de couro onde me instalei. Na sua mo, um copo de vitamina C efervescente.

    Meu olhar de mulher passeou rapidamente pelo apartamento, que ele dividia com o irmo, Lo - flat tpico de solteiro, mas com mveis de qualidade e um toque de muito bom gosto na decorao.

    - E a? Ele se sentia to inibido quanto eu. Dava para cortar o ar

    com uma faca. Ele tomou a tmida iniciativa de quebrar o gelo: - Muito prazer. Eu me chamo Ayrton Senna da Silva. Tenho

    33 anos, no tenho namorada... - Como no? Eu conheo sua namorada! A perplexidade dele parecia sincera: - Eu? - Voc, sim. - Mas quem ela?

  • 32

    - A Daniela (dei o nome completo). - Como ela , hein? Por uma frao de segundo, achei que estava diante de um

    cafajeste clssico. Descrevi: loira, olho azul, alta... - Ento esse o nome dela? Ah, os efeitos perversos da

    bebida. Logo eu que no bebo, penitenciava-se ele. Mas de vez em quando acontece, de pura euforia. Ele foi enumerando: ao final do GP do Japo, em 1990, quando se sagrou bicampeo do mundo, um porre dos diabos; agora, naquelas comemoraes do GP do Brasil, dias atrs... Ele podia contar nos dedos as situaes em que perdera o controle.

    Conversamos uma hora e meia. Em nenhum momento, eu enxergava naquele ser humano descalo, que tomava vitamina C, o mitolgico personagem de macaco e capacete que enfeitiava os fs do automobilismo do mundo inteiro. Para mim, era um momento especial e imprevisto. Falamos de tudo. De corrida, um pouquinho. De vida, trabalho e sentimento, muito. Eu queria saber dele, mas ele tambm queria saber de mim - e ouviu, com a maior pacincia. At reparou na minha blusa, "linda" - rosashocking, de manga comprida, embora fizesse um calor africano l fora. Voltou, enfim, ao assunto Angra: iam muitas pessoas, seria uma festa, nada de formalidades.

    - No sou do tipo de arrancar pedao - brincou. Na verdade, eu j estava decidida. Deixara a mala,

    prontinha, prontinha, no meu carro. Guardei o carro na garagem do prdio, entrei no Honda negro que eu tanto tinha invejado a distncia, antes, e segui em frente. Naquele fim de semana prolongado, eu, Adriane Galisteu, modelo, 19 aninhos, iria experimentar o doce prazer ambicionado por milhares e milhares de mulheres de todo o planeta. O Ayrton Senna homem ia se apresentar, por inteiro, a mim. Numa noite de cu estrelado, como recomendaria um conto de fadas.

    Tive quatro namorados em meus 21 anos. Sinto muito decepcionar aqueles que imaginam a vida de modelo como uma fatigante liquidao de cama e mesa. Se h conselho que j posso dar a algum, em minha pouca idade, o de no se deixar levar pelas aparncias. Por exemplo: beleza e glamour podem servir de fachada a uma inconsolvel solido.

    Quando conheci o Ayrton, estava vivendo os ltimos momentos de uma relao em crise. No voc quem determina quando a paixo se vai - a coisa simplesmente acontece. Tive poucos amores, mas de cada um deles guardo um sentimento

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    bom, de calor e respeito - e isso vale especialmente para o Csar, com quem dividi por um ano inteiro casa e o dia-a-dia at que as tais incompatibilidades de gnio se manifestaram. Foi bom enquanto durou. E foi timo que a vida tenha me dado o alento de trocar os espinhos de uma separao pelo buqu de um novo amor amor que, acontea o que vier a acontecer na minha vida, estar gravado como aqueles coraes trespassados por setas que voc v nos troncos das rvores dos parques municipais.

    Angra, l vou eu. Pela primeira vez, eu saa de casa a passeio, no a trabalho. Na minha confuso momentnea, embaralhava-se a crise conjugal com delrios profissionais - ir para Hong Kong, por exemplo, de onde um amigo meu, tambm modelo, Srgio Finetto, me acenava com perspectivas de um mercado em expanso. Dei at um passo concreto: indicada pela Elite, posei para a Playboy. No Guaruj - uma marina e um barco maravilhosos. O cach pagaria a passagem e os primeiros tempos de adaptao no Oriente. Cheguei a comentar com o Ayrton, a caminho do heliporto. A reviravolta que aquela viagem nem bem iniciada produziria na minha vida impediu que as fotos de Playboy fossem publicadas.

    O helicptero esperava por ns no heliporto do prdio de escritrios dos Senna, no bairro de Santana. Como eu sinceramente queria desanuviar, na viagem, sem nenhuma outra inteno alm disso, foi um alvio perceber que j esperavam por ns Norio Koike, um incansvel japons freqentador do circo da Frmula 1 mas que acabou fotgrafo particular do Ayrton, e duas meninas da Elite, duas outras Danielas, ou congneres - a Daniela Carvalho e a Danielle Aguiar. Alvio para mim, choque para elas, que no esperavam me ver ali, chegando com o dolo.

    Primeira viagem de helicptero, e logo com quem. Ele levava ao p da letra a palavra piloto. Carro, helicptero, avio, lancha, jet-ski - tinha a mania de estar sempre no comando das operaes. Norio, ao lado dele. Ns trs atrs.

    Eu, sem graa, me contorcendo para no roer as unhas de ansiedade e condenada a servir de Cristo dele:

    - No se preocupe, no. Eu tive uma aulinha de direo antes de a gente vir pra c.

    Tentei me distrair dividindo minha ateno com a paisagem e minha curiosidade com o Norio. Como modelo, eu estava acostumada a filmes e a equipamento fotogrfico, mas o japons extrapolava. Pendurava-se de incontveis mquinas e lentes, pequenas, mdias, grandes, zooms, teleobjetivas, grandes-

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    angulares, etc. Carregava uma caixa com quinhentos filmes - isso mesmo, quinhentos. Fiquei sabendo que, com aquela desconfiana que tinha da imprensa, Ayrton s se deixava fotografar pelo Norio.

    Sob o sol magnfico de Angra, um oriental da cor do tomate era visto, clique, clique, perseguindo, empapado de suor, o seu cobiado alvo. Depois, revelava pessoalmente os filmes, colocava cromo por cromo nas cartelas e destinava todo o material ao patro - o qual, minucioso, cauteloso com sua imagem, selecionava dali meia dzia de fotos, nunca mais do que isso. Norio tinha no sangue aquela elegante discrio que caracteriza sua gente. S falava ingls - pouco e, penso eu, propositalmente mal. Tenho certeza de que ele entendia tudo o que ns dizamos em portugus. De vez em quando, eu surpreendia um brilho maroto em seus olhinhos vivos e inteligentes. Ele tratava de despistar.

    Ali no helicptero, entre nervosa e ansiosa, observando o japons Norio, eu comeava a tomar contato com uma parte importante da vida de Ayrton Senna: aquele clubinho fechado, o Clube dos Amigos do Bco. Uma dezena de pessoas, por a, que tinha acesso resguardada senha dessa intimidade: o apelido de famlia. Gente como o Gordinho, que eu tinha conhecido na pista, o Cristiano, o Jnior, companheiros de rua da Zona Norte de So Paulo.

    Aquela coisa: diga com quem andas e eu te direi quem s. Se aqueles dias em Angra foram a chance de conhecer a intimidade do maravilhoso ser humano Ayrton Senna, muito desse conhecimento foi revelado pelo contato travado com os amigos dele. Pois a vitria do GP do Brasil abriu a temporada de festas. Maria e Mateus, os encantadores caseiros, paixo do Bco (que eu acabaria por assumir tambm como minha paixo), estavam eufricos. Mas recepo barulhenta mesmo, com direito a muito rabinho balanado e pulinhos de alegria, quem propiciou ao helicptero foi a Quinda. Alegria logo transformada em agressiva ciumeira, ao notar que seu heri chegava acompanhado de trs mocinhas bonitinhas:

    - Liga no - tranqilizou o piloto, enquanto descia o helicptero sobre o gramado daquele condomnio na praia de Portogallo. - Ela muito possessiva.

    Despudorada, a Quinda se jogou nos braos do Bco. Agarrei minha mala e fui me refugiar dentro de casa, deixando

  • 35

    atrs de mim o som de rosnados ameaadores. Pensei comigo mesma:

    - Concorrer com essa a, no vai ser fcil. Quem no conhece Angra num dia de sol no tem idia o

    que a experincia mais prxima do paraso na Terra. Bco e eu teramos, mais tarde, a oportunidade de uma inesquecvel viagem a Bora-Bora, com clima de lua-de-mel e cenografia pintada pelo Gauguin, mas Angra continuar tendo a precedncia sobre todos os lugares no meu lbum ntimo.

    Em noites atribuladas, reproduzo mentalmente a arquitetura sbria do casaro, o barulho das ondas que vinham morrer aos ps de nossa janela, a exploso das estrelas no cu, as gargalhadas dos convidados, o ronco dos motores dos jet-skis e das lanchas, o vo nervoso do helicptero, os latidos apaixonados da Quinda - e, na contraluz do luar que banhava nosso ninho de amor, aquele rosto esculpido por um artista, as feies delicadas, os olhos midos de carinho, a boca sempre ameaando um sorriso lindamente tmido ou, sei l, timidamente lindo.

    Ele recrutou todos os elementos, e mais alguns, para compor o cenrio de nossa primeira noite de amor - que, na verdade, foi a ltima noite de todas as que passei naquele meu maravilhoso fim de semana em Angra. Sou capaz de jurar que Bco chamou os grilos, encomendou o pio das aves noturnas, solicitou a presena das ondas, convidou a Lua e todas as estrelas do zodaco para servirem de testemunha daquele momento mgico. Orquestra e iluminao, som e luz - a natureza de Angra, em festa, colheu os primeiros sussurros de dois enamorados.

    No estava nos meus planos, mas aconteceu, na pureza de um encontro no programado. Senti, claro, que ele me dedicou, desde nossa chegada, as suas melhores atenes. Eu o observava. Vi que ele tambm me observava. Nem bem tnhamos chegado, mal refeitos de um almoo principesco - a portuguesa Maria uma cozinheira de mo cheia -, ele foi me buscar na praia onde eu tinha esticado minha canga para tomar sol, a uma estratgica distncia da indcil e ainda rancorosa Quinda - uma schnauzer preta fantica por calcanhares e que, soube depois, deixara uma irm, a Mouse, na casa em que nasceu, no Algarve, em Portugal. Ayrton tomou-me pelas mos e me convidou para o mar.

    - Acabei de comer - hesitei.

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    Sempre ouvi histrias ttricas de congesto, essas coisas. Ele me gozou:

    - Est com medo de morrer, ? - Sei l. Sem prestar muita ateno, foi l dentro buscar um enorme

    colcho de ar, to grande que cabiam nele as duas Danielas, ele, eu - e a Quinda. Todos para o mar. Mas, desconfiada de ter como companheira de viagem a melindrada cachorrinha, eu no tirei os olhos dela. De repente, sinto um safano e caio n'gua, tchbum. Meus olhos abrem-se, aps o mergulho sem querer, sobre duas expresses de genuna felicidade: a da Quinda, que abana o rabo, radiante em sua silenciosa vingana, e a do meu anfitrio, que gargalha:

    - Morreu? No morreu. E, de repente, tambm se joga: - Vou morrer com voc! Da praia, Norio disparava seus cliques incansveis. Uma

    multido aportou por l, noite. Gente para ficar, gente s de passagem. O proverbial estilo recatado de Ayrton no economizava gentileza quando se tratava de receber os amigos. O QG da animao era o salo de jogos, que ficava num plano um pouco mais alto em relao ao casaro principal. Sinuca, pebolim, pingue-pongue, um telo magnfico, com videolaser, sofs to aconchegantes como colo de me, mesas para a gente escorar o p - muito conforto numa atmosfera de descontrao praiana. Eu cheguei num vestidinho branco, tnis branco, cabelo molhado do banho, cara limpa. Estava queimada de sol. Estava feliz e me sentia bonita. Fazia tempo que eu no me dava o direito de viver impunemente, de um jeito to leve, to gostoso, esse sentimento.

    - Voc toma o qu? - ele se achegou, gentil. - No bebo nada. Coca-Cola, talvez.

    - Eu a acompanho. No s na bebida. Foi me conduzindo pelo salo,

    apresentando-me um a um de seus amigos. "Meu irmo, Leonardo" - e ele me estendeu a mo. "Esse aqui o Jaa" - e eu, meio sem graa, "j conheo". Galera animadinha, divertida. Jogamos pebolim, eu e ele. Vi que no era meu esporte. Ele se divertia minha custa. Vamos danar, vamos danar. Danamos. Horas a fio. Carinho nos gestos e nas palavras. Beijinho de tchau. At amanh.

  • 37

    Tnhamos um passeio de lancha programado para o Saco do Cu. gua calma, cu azul, montanha verde - s de olhar e de sentir voc j abenoado pelo criador dessas maravilhas. Ayrton, todo speedy. Desamarra a lancha, entra na lancha, acelera a lancha. A, pra. Mergulha. Volta lancha. Desembarca o jet-ski. Monta no jet-ski. Acelera o jetski. Some na linha do horizonte, ou atrs de uma ilha prxima. Regressa a mil por hora. Convida-me para uma volta:

    - Quer pilotar? - No, no sou do ramo. Ele dirige, eu sinto o contato do corpo dele. Piloto, ele .

    Acelera o jet-ski, faz uma curva fechada e levanta na crista do mar uma onda inesperada. Medrosa, eu:

    - Vai devagar, por favor! Intil apelo, quando voc est falando com um Ayrton

    Senna. O tempo ali no significava jamais um desperdcio - era uma

    soma. Sol, mar, carinho. Eu senti que a cada minuto a temperatura entre ns crescia. Entre ns, quer dizer: confesso que tambm comeava a gostar daquilo. Desceu a noite, comemos rapidamente e mais um sarau de dana, vdeo e jogos ia comear. Eu, toda relax, me vi sentada num sof, tomando a invarivel Coca-Cola e vendo e ouvindo o Genesis no telo. O Genesis era uma das bandas favoritas dele; a Coca-Cola era o meu hit do corao. Ele acabaria por me converter, mais tarde, ao credo musical dele; eu no consegui convert-lo a minha bebidinha.

    (Naquela poca, eu era do tipo connaisseur. Degustava Coca-Cola como se fosse um vinho raro e precioso, ao natural, s vezes sem gelo, para no comprometer o paladar. Coca coca, coca clssica - nada de diet, essas coisas. No almoo, um litro; noite, outro; e mais uma latinha aqui, no lanche, outra antes de deitar... Ele conseguiu curar essa minha obsesso. Um dia, me perguntou, meio enciumado: " disso que voc mais gosta na vida, no ?" Eu lhe confessei que tinha outra coisa da qual eu gostava mais. E desde ento passei a cham-lo de Big Coke.)

    Eu ali, com minha Coca-Cola, e ele se achegando. "Gosto muito do Genesis" - como quem puxa conversa. Em tudo da vida, em msica tambm, ele gostava de umas poucas coisas. Mas de todo corao. Genesis, Phil Collins, Roxette, Tina Turner, Fred Mercury. "E voc?" - perguntou. Eu estava embevecida com o telo e com a msica.

  • 38

    Nunca tinha visto um videolaser. "Bonito, bonito", repetia eu, meio idiota. Muitos dos convidados estavam fora da sala - ou passeando, ou na piscina -, o que permitia uma certa intimidade, com aquela msica ao fundo.

    Ele se sentou a meu lado. Um brilho iluminava seu rosto bronzeado e seu sorriso adolescente. Senti pela primeira vez o calor de uma aproximao - real, espontnea. Ele tinha a bvia dificuldade em dar o primeiro passo. Eu, mesmo querendo muito, nunca dou o primeiro passo. Mas entre ns havia algo mais: uma conversa longa, um olhar, um toque. Ele tentou me beijar. Eu me esquivei - bateu na trave. Fomos salvos, os dois, em nossa timidez, pela chegada da galera ruidosa e alvoroada.

    - E a, Nono, vamos jogar? Era o Criminoso, azucrinando. Escapei para o banheiro, mas ouvi, atravs da porta, uma

    conversa do Gordinho com o Ayrton: - Nada? - Nada - a entonao do Ayrton era chocha. - Mas voc no pode se queixar. Sua agenda est lotada, no

    est? Antes que eu ouvisse a resposta dele, abri a porta e passei

    entre os dois. Um sinal de alerta piscou na minha cabea: tudo contra, nada a favor. Afinal, ele era o Ayrton Senna. E quem era eu?

    Ainda com um sorriso amarelo, ele me seguiu. No esperou que eu me sentasse de novo. De p, ele me beijou. O primeiro beijo. Um beijo de verdade. E mais um, outro, outro mais. Beijos, beijos e beijos. Parece que a noite estacionara em cima de nossas cabeas - tudo parou: a noite, o tempo, os rudos, o mar, o vento. Beijos e carcias. No mais do que isso. "Fique sabendo que isso, para mim, muito srio", interrompi. "Pra mim tambm", disse ele. Os convidados e o sono puseram um ponto final no nosso primeiro momento de paixo explcita.

    Constrangimento absoluto na manh seguinte - constrangimento e dvida. Aquela histria de agenda lotada me incomodava. No estava a fim de ser apenas mais uma aventura de vero. L mesmo, ele tinha outras meninas disponveis, pensei comigo. Tomei uma distncia proposital. Juntei-me moada. Mas no tinha como no observ-lo, de esguelha. E, toda vez que eu olhava, l estavam os olhos dele, mais meigos do que gulosos, cravados em mim.

  • 39

    Desconcertada, eu no sabia nem como me dirigir a ele. Ayrton? Soava estranho, nenhum de seus amigos o chamava assim (minha me, quando me chamava de "Adriane" porque vinha bronca certa). Senna? Institucional demais. Senna era o piloto campeo, no aquele menino lindo que pouco a pouco se revelava para mim. Bco? Era o apelido da famlia, dos amigos de infncia. Eu ainda no me sentia assim to ntima. Ficou meio ridculo, mas o que fiz, aquele dia, e continuei fazendo, nos seguintes, era ir at ele e pux-lo pela camisa, ou pelo brao, assim sem jeito:

    - , olha aqui... O sol e o calor nos brindaram, naquele sbado, com um dia

    apotetico, desses recomendados a coraes de repente enamorados. O que me lembro dele so imagens, gestos, sons que nem sempre se encaixam coerentemente. Vejo-o ainda agora acelerando a lancha Joanna II (comprada, como a casa de Angra, do Braguinha, que a batizou com o nome de uma de suas filhas, hoje minha amiga), com Tina Turner esgoelando furiosamente no toca-fitas, enquanto a Quinda, esbaforida, tenta estabelecer, com seus latidos, uma competio. Cabelos ao vento, sol de rachar, cu sem uma nica nuvem. Um dia de encomenda - aquele que seria o meu ltimo dia ali. Domingo - j tinha avisado a todos - eu teria de embarcar de volta para So Paulo, onde um compromisso profissional me esperava.

    Eu passava por um perodo de grande confuso na minha vida. Aquele dia magnfico em Angra, o sol, o mar, o cenrio, as pessoas, tudo aquilo me fazia esquecer passado, presente, futuro. Vivia o momento - era o que importava. Escorrendo de suor, branquelo que s ele, de short e carregado de mquinas, Norio fotografava sem parar. Ouvi um clique quando, no final da tarde, na lancha, voltando do Saco do Cu, Ayrton me surpreendeu com uma prolongada carcia no cabelo - e, logo, um beijo. possvel que, sensvel que , Norio tenha retratado tambm a felicidade que minha alma buscava inutilmente esconder.

    A temida Quinda nos esperava no per, abanando o rabo. Aproximou-se de mim, quase rebolando, e lambeu minha mo, carinhosa. Foi a primeira a entender.

    Sabe quando ele arriscava tudo, numa daquelas ultrapassagens impossveis? Pois foi assim comigo:

    - Voc est num quarto sozinha, com duas camas - comeou. - Vou ter de mud-la.

    Despistei:

  • 40

    - Tudo bem, durmo na sala. - Probleminha: a sala tambm est ocupada - continuou. -

    Alis, no sei se um problema ou uma soluo. - Onde que eu fico? - me fiz de boba. - Eu lhe mostro. Subiu comigo at meu quarto - eu envergonhadssima

    daquela baguna de praia, roupa jogada aqui e ali - e pegou as malas. Abriu uma porta e apresentou:

    - o meu quarto. Agora tambm o seu. Fique vontade. Tentei prestar ateno em alguma coisa, alm da minha

    prpria estranheza, e me detive no closet, onde brilhavam, branquinhos, uns quarenta, cinqenta pares de tnis. Sapatos. Cintos - centenas. E roupa, muita roupa. Arrumadinha, passadinha, dobradinha. Ele tinha o suficiente para morar naquela casa o ano inteiro.

    - Sou meio manaco - disse ele, sem graa diante do meu espanto.

    Reparei at num duende, pousado numa mesinha. Eu o peguei e observei. Fantico por arrumao, ele me tomou das mos e o colocou no lugar (tempos depois, a me dele me pediu para jogar fora o duende; joguei; sei l, talvez no devesse ter jogado).

    - Tambm tenho minhas manias - disse eu. - Quais? - Cremes e perfumes. - Pois ento venha c ver uma coisa - ele me puxou pela mo

    at o seu banheiro. S em Angra, ele tinha mais creminhos e perfumes que eu

    jamais tinha tido em toda a minha vida. Bom, pelo menos j havia entre ns alguma coisa em comum, alm do Genesis e da Quinda. Dali a poucas horas, estaramos repartindo algo muito mais importante.

    O amor fluiu natural - sem pressa, gostoso e espontneo. Sem falso moralismo: dormir no quarto dele no significava, para mim, obrigatoriamente, uma noite de sexo e intimidade. Havia um clima, uma aproximao, um desejo. Mas eu teria pudor de embarcar numa aventura pela aventura - e, no dia seguinte, literalmente, tchau e at mais. Dormir com um mito, um dolo, uma celebridade internacional. Um homem que produzia manchetes no mundo inteiro. De mais a mais, eu tinha adorado aquele paraso e queria voltar l, namorada ou amiga, o que fosse.

  • 41

    Televiso ligada. Eu, metida num pijamo quase blindado. Cama king-size - chance de rolar para o lado, em fuga estratgica. Beijinhos, carinhos, "at amanh". No tive tempo de contar at cinco - com aquele meu sono juvenil, despenquei. Sei l quanto tempo depois - a vaga recordao de uma claridade me vem aos olhos -, levei um cutuco.

    - No estou entendendo nada - disse ele, acendendo a luz e se apoiando no travesseiro. - O que voc quer? Quer casar comigo? Tem uma igrejinha aqui na praia da Jipia, s juntar as testemunhas e ir l.

    Continuou a falar: a dizer que era tudo muito especial, que existia uma magia entre ns, que isso no era sentimento que ele tivesse assim, assim, em qualquer momento, que ele, por muitas razes, tinha sido uma muralha emocional, mas que eu, em apenas dois dias, tinha feito um furo nessa muralha.

    Falava e acariciava o meu p. - Ah, o p no! - eu pensava. Chegou ao ponto fraco, ao

    calcanhar-de-aquiles. De repente, me beijou os ps, com enorme delicadeza. - Voc a primeira mulher, de trs anos pra c, que me

    provoca esse desejo. De beijar os ps, no s. De beijar o corpo inteiro.

    Queria guardar esse momento s para mim - e para ele. As estrelas piscavam, em quente cumplicidade. Quando acordei, j sol alto, depois que tudo aconteceu, eu estiquei meu brao para o lado, tateando onde ele deveria estar, e no havia ningum. Pnico. Parania do tipo "t vendo? Ele j se encheu". Corri procura dele. Descobri-o no per, sem camisa, descalo, olhando para o infinito, assobiando uns acordezinhos que nem chegavam a compor uma msica. Um tralal, s isso. Ele parecia feliz. Eu estava feliz, imensamente feliz.

    Sa dali, no comeo da tarde, no helicptero dele at o aeroporto de Angra. De l, peguei o avio. Tinha um desfile em So Paulo. No importava o que aconteceria a partir dali. Importava o que tinha acontecido.

    Angra passou a ser minha casa - nossa casa. Compartilhei com ele vrios lares. Moramos juntos no apartamento da Rua Paraguai, em So Paulo. Dividimos, certas noites, quarto e cama na casa dos pais dele, no Pacaembu, onde a Zaza me acolhia como uma filha e dava colo a muitas das minhas ingnuas confidncias de menina de 20 anos. Estivemos juntos no apartamento de Mnaco, antes do GP de 1993. Viajamos pela

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    Europa e pelo Oriente. Freqentamos por longos perodos a fazenda Dois Lagos, em Tatu, no interior de So Paulo, com toda a famlia, senhor Milton, a Zaza - ela j no me perdoaria a formalidade de um "dona Neide" -, o Leozinho, a Viviane, o marido dela, Lalli, os sobrinhos Bia, Paulinha e Bruno, o Fbio Machado, primo como se fosse um irmo, com a mulher, Nice, e os filhos Fbio, Fabiana e Fbia. Em Portugal, vivemos na casa do Algarve assim como passamos momentos inesquecveis nesta quinta de Sintra, neste anexo que passar posteridade como "Casa do Ayrton" - aqui onde hoje cada detalhe me d conta de sua ausncia, no silncio de nosso quarto fechado, isso mesmo, trancado a sete chaves, j que eu, covarde, nunca mais quis olhar o cenrio de to doloridas recordaes.

    Confesso: dia desses, entrei, no por valentia e sim por pura emoo. Na noite da final da Copa, o Brasil vencendo mas nos fazendo sofrer at o ltimo momento naquela agonia dos pnaltis. Uma amiga me trouxe um vdeo em que os craques brasileiros dedicavam a vitria ao Ayrton. Cumpriram com a palavra. Abri a porta e desabei num choro incontrolvel. Era o melhor lugar para comemorar um tetracampeonato que, afinal, era tambm dele.

    Ayrton era um cigano caseiro. Pode parecer uma contradio, mas digo cigano por ofcio, caseiro por opo. Obrigado a ser cigano pela vida profissional, no perdia o hbito de ser metdico, deixando mo, em cada lugar onde pousava, suas roupas arrumadinhas, seus pares de tnis, suas camisas impecveis, seus cintos - centenas de cintos -, suas restritas predilees musicais, seus hbitos alimentares, suas manias.

    Mas se algum pede para eu contar qual era a nossa casa, o nosso lugar, o que me vem automaticamente cabea aquele deck de Angra, a varanda, a piscina, os jet-skis (eram seis, pelas minhas contas), a zoeira dos camaradas, as visitas dos amigos, as confidncias com minha amiga Maria, as caminhadas com a Xana, filha dela, a comida deslumbrante que punha em risco meu regime, a simpatia e o cuidado extremo do Mateus, arteso de mo cheia, as duas lanchas, o sol, o calor, a impenitente Quinda mergulhando na gua atrs de algum desavisado que se aproximasse, o pr-do-sol de aquarela, a Lua, as estrelas, a mais perfeita configurao do paraso.

    Angra, sim - porque era ali que eu tinha um Bco s meu, a milhas e milhas de distncia da instituio mitolgica Ayrton Senna da Silva. Sem egosmo: era ali tambm que ele se tinha s para si mesmo, homem, amigo, moleque, palhao, inquieto,

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    preguioso, esperto, bobo, frgil, mas forte naquilo em que era ver