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As palavras apontam, mas no so

O Caminho do Meio no Hatha YogaPedro Kupfer06-04-2013

Quando pensamos em certos tipo de prtica de Haha Yoga que esto em voga hoje em dia, vm nossa mente a coisas como esforo excessivo, copiosa transpirao, respirao pesada ou difcil e, em alguns casos extremos, tenso e leses. Vemos, com alguma frequncia, pessoas se esforando muito alm da conta, praticando como se no houvesse amanh, com atitudes de fanatismo e irresponsabilidade. Quem pratica fazendo um esforo exagerado, que pode se traduzir em leses ou perda da integridade fsica, no est pensando no futuro, nem construindo uma relao de longo prazo com o prpriosdhana.

Essa uma atitude arriscada e at mesmo irresponsvel, pois a pessoa reduz seriamente a chance de ser bem sucedida no Yoga. Assim, se quisermos levar a nossa prtica pessoal a bom porto, precisamos ponderar sobre o que sbio esperar dela e o que possam ser apenas expectativas infundadas. Para que praticamossanas,prymase meditao? Como praticar sem colocar em risco a nossa integridade fsica? Tentaremos responder estas questes ao longo do texto.

Porque praticar?

A resposta a esta questo parece fcil: se o objetivo do Yoga moka, a liberdade, ento o propsito da prtica deve ser esse mesmo. A conta aparentemente fcil: praticando conscienciosamente, com cuidado, disciplina e assiduidade, um dia, por arte de mgica, a iluminao ir acontecer. Certo? Infelizmente, essa leitura da maneira em que o Yoga opera est equivocada. Ningum, nunca, se iluminou apenas por ficar fazendo posturas, por "avanadas" que possam parecer, assim como ningum nunca se iluminou por fazerpraymasou mantras. Mesmo se forem repetidos durante dcadas, estes exerccios so apenas aes, e aes no iluminam ningum.

Se assim fosse, seria muito fcil: qualquer pessoa suficientemente flexvel, forte o concentrada poderia, num prazo razovel, alcanar o estado de liberdade. Prticas de concentrao e meditao, se devidamente aperfeioadas, so capazes de levar oyogiou ayogina um estado transitrio conhecido comosamdhi, que abrange vrios tipos de experincia exttica. Ora, esses estados de xtase ounstase, ao dizer de Mircea Eliade, no so o objetivo final do Yoga mas ferramentas auxiliares que ajudam o praticante a lembrar da sua prpria natureza.O processo do Yoga, conforme explicado naBhadrayaka Upaniad, consta de tres etapas:ravaam,mananamenididhysanam.ravaam ouvir o ensinamento.Mananam, question-lo e esclarecer as dvidas.Nididhysaname meditar sobre o que se sabe sobre si mesmo. O objetivo imediato das prticas menos sutis do Haha Yoga, como purificaes,sanasepraymas o de manter a sade do corpo, a longevidade e o bem-estar. Num plano mais sutil, ossanas, bem sabemos, nos ajudam a eliminar couraas de tenso e mobilizam de maneira intensa o fluxo da energia vital. No melhor dos casos, a prtica desana,praymaou mantra poderia se considerar um exerccio denididhysanam, desde que feita com a atitude adequada. Porm, o amigo leitor h de reconhecer, nenhum desses objetivos moka.

Praticamos, no para nos iluminar, seno para termos sade, longevidade e condies adequadas e conduzentes para que a iluminao tenha lugar.Mokano depende de flexibilidade, fora, condicionamento fsico. Tampouco depende da capacidade de reter o ar por longos perodos ou de controlar o processo respiratrio. A rigor, nem sequer depende da sade do corpo fsico embora, como ensina o sbio Patajali noYoga Stra, a doena seja um obstculo para o Yoga.

Mokano uma experincia, nem o resultado de alguma ao.Moka o reconhecimento de si mesmo como algum que j intrinsecamente livre de limitaes. Para termoka, preciso conhecer a mim mesmo. Para isso, preciso receber instruo de um professor qualificado, eliminar minhas dvidas e refletir constantemente sobre minha natureza real. Nada mais. A esse respeito, diz aMuaka Upaniad, (I:2.12):parkya lokn karmachitn brahmaonirvedam ynnstyakta ktena | tadvijnrtha sa gurumevbhigacchetsamitpi rotriya brahmaniham ||

"Examinando as experincias obtidas pelas aes, que a pessoa de discernimento possa encontrar o desapego.Moka, que no criado, no pode ser obtido atravs de aes. Portanto, para ter o conhecimento de Brahman, ele deve ir, com os gravetos sacrificais nas mos, at um professor bem versado nas escrituras, que tenha um claro conhecimento sobre Brahman".Como praticar sem colocar em risco a integridade fsica?

Havendo ficado claro que o objetivo do Yoga no se encontra nos aspectos fsicos, vitais ou energticos da prtica, resta-nos, pensar numa maneira eficiente e saudvel de praticar os diversos exerccios do Haha. Estabelecidos num patamar de calma em relao ao que podemos esperar e ao que no devemos buscar nas experincias corpreas, sejam estas densas ou sutis, verificamos que, numa relao de longa data com o Yoga, existe a possibilidade de praticarmos pelo resto das nossas vidas, seja l o que isso significa.

No meu caso pessoal, estou praticando Yoga consistentemente h 29 anos. No imagino que possa parar um dia. Mas, ao longo destas quase trs dcadas, tive que fazer muitos ajustes, tanto na intensidade como na durao das prticas cotidianas. Se, antigamente, tinha tempo e disposio para praticar at oito horas dirias desana, hoje em dia no tenho essa disponibilidade de tempo e energia.

Assim, junto com a idade, vieram algumas limitaes naturais, advindas dos vrios acidentes de percurso que tive en escaladas, pedaladas, sesses de surf e at mesmo incidentes dentro da sala de Yoga. A cada momento, preciso avaliar como o est o corpo para ajustar o que for preciso ajustar. Posso fazer prticas intensas, mas sempre tomando o cuidado que as minhas articulaes merecem e pedem.

Por outro lado, percebo que consegui tambm reduzir o tempo de prtica enquanto aumentei a eficincia daquilo que pratico. O corpo se movimenta com prazer, buscando aquilo que lhe faz bem, que energiza, expande, relaxa e tonifica. O ego, naturalmente, pode se entusiasmar.Buddhi, a inteligncia, est presente, atenta, para evitar que o excesso de entusiasmo do ego, baseado no bem-estar que a prtica proporciona, leve o corpo para situaes nas quais ele no deveria estar.

Tenho o objetivo de seguir o exemplo de muitos praticantes cujo entusiasmo e amor pela prtica nunca esmoreceu. Alguns deles, como BKS Iyengar ou o professor Hermgenes, continuam inspirando geraes de praticantes at hoje. Tenciono continuar esse processo baseado na aplicao de trs princpios que tm se revelado essenciais para levar a prtica adiante:ahis,tapaseasteya. A combinao desses trs valores resultou, no meu caso, absolutamente essencial para levar a prtica pelo bom caminho. Agora, estudaremos eles, um a um.Ahis.

Evidentemente,ahis, a no-violncia deve ser parte integrante das atitudes com as quais pratico.Ahis ser pacfico e tranquilo, evitanto toda e qualquer forma de agresso. Onde nasce a no-violncia? Como ela opera? Swmi Daynanda esclareceu esses importantes pontos num retiro que fizemos este ano na cidade sagrada de Rishikesh, na ndia:"Odharmabsico a constatao de que, se eu no quero ser ferido, no devo ferir os demais. Para evitar nos colocar em situaes indesejveis, devemos os ater aos valores universais, como o da no-violncia,ahis, j que naturalmente, nenhum ser vivo quer ser ferido. O mesmo que queremos para ns, devemos querer para outrem.

"Se eu tenho claro que no quero ser ferido ou morto, devo estender esse mesmo sentimento a todos os demais, sejam humanos ou no. Estar em concordncia com esses valores universais se colocar em harmonia com vara. Todos osyamaseniyamaspartem da mesma base. Qualquer um desses valores tm a mesma inteno: me ajudar a usar o meu livre arbtrio da melhor maneira".

Estendendo o princpio da no-violncia ao meu prprio corpo, preciso elaborar uma estratgia durante a prtica para evitar qualquer tipo de violncia em relao a ele, bem como evitar qualquer tipo de leso ou agresso. Para isso, devo ir com cuidado e ateno, observando uma atitude tranquila e compassiva em relao ao corpomente.

Muitas vezes acontecem leses por esforo repetitivo, que tambm precisam ser evitadas. So aquelas leses que surgem quando fazemos muitas vezes o mesmo movimento ou repetimos muitas vezes o mesmosana. Se isso no for feito com o devido cuidado, pode haver uma "fadiga de material", o que pode dar lugar a leses de tendes, ligamentos ou discos intervertebrais.Tapas.

Tapasoutapapode ser traduzido como "esforo sobre si prprio". Deriva da raztap, que quer dizer "tornar-se ardente", e est vinculado frico ou ao calor interno que gerado atravs de um esforo constante. As prticas de tapas esto presentes na literatura do Yoga, j desde os tempos dog Veda, pois essa atitude ocupa um lugar central no processo do autoconhecimento.

Consiste em fazer um esforo contnuo para se manter no estado de atentividade, essencial para a boa continuidade do processo do autoconhecimento. A mesmaMuaka Upaniadque citamos anteriormente nos esclarece sobre a importancia detapas(III:2.4):

nyamtma balahnena labhyana cha pramdt tapaso vpyaligt | etairupyairyatate yastu vidvntasyaia tm viate brahmadhma ||

"[O conhecimento sobre] tma no obtido por aquele que no tiver fora. Tampouco por quem for omisso, nem por quem busca o conhecimento sem ter renunciado [aos desejos por antman]. No entanto aquele que cultivar o discernimento e se esforar por estes meios, entra na casa de Brahman (Brahmadhma)".

Traduzindo este valor para a maneira de praticar, devemos olhar para nossosdhanacomo um momento onde existe um esforo constante, no apenas no sentido fsico, mas tambm no sentido de evitar nos machucar, atravs das observao atenta e da prtica da compaixo em relao ao prprio corpo. Noutras palavras,esforar-nos sem forar. Esforar-se continuamente sim, mas nunca ultrapassar os limites naturais do corpo.

Tapas, na prtica, se traduz na forma do calor corporal que gerado naturalmente quando um esforo razovel feito. Em dias de calor, natural transpirar. No sul do Brasil, durante o inverno, por vigorosa que a prtica seja, ela no deve produzir excessiva transpirao. Em prticas onde sintamos que o corpo est muito bem disposto, possvel explorar os limites da fora, a permanncia ou o equilbrio em certas posies.

Na medida do possvel, quando o praticante j desenvolveu independncia e aprendeu a construir sozinho sua prtica pessoal, ele deve incluirsanasoupraymasque estejam de acordo com o corpo que ele tem, as necessidades desse corpo e o momento em que a prtica est sendo feita. Esse ltimo item inclui a estao do ano, a altura do dia, a temperatura ambiente e outros fatores similares.Asteya.

Asteyasignifica literalmente "no-roubo". Traduz-se como honestidade. Aqui, deve ser interpretado no sentido de evitar o impulso de arrancar do corpo algo que ele no entrega naturalmente. Muitas vezes nos defrontamos, ao fazersanas,praymasou meditao, com os limites naturais do fsico, da capacidade vital ou da mente.

Nos momentos nos quais este tipo de limitao se revela, pode acontecer de o ego querer forar as coisas e forar o corpo para alm da sua capacidade, resistncia, alongamento, equilbrio ou concentrao. Isso uma espcie de roleta russa que o praticante desatento joga com seu prprio corpomente. Pode ser que a pessoa no se machuque ou frustre, mas a chance grande e est sempre presente. Cedo ou tarde, o indesejvel pode ter lugar.

Cultivando a observao constante, o praticante permanece atento aos sinais do seu corpo: respirao irregular ou ofegante, excesso de transpirao, mente dispersa, falta de estabilidade na postura e sensaes de dor so sinais de que as coisas no esto fluindo da maneira que deveriam. Nesses casos, ao invs de insistir no erro, oyogiconsciente deveria parar, avaliar a situao e ajustar o que fosse preciso ajustar.

Uma regra importante evitar os ngulos nos quais haja dor nas articulaes. Qualquer dor dentro de uma articulao, seja o quadril, os ombros ou a coluna lombar, sinal de falta de alinhamento e/ou falta de espao para que o movimento acontea de maneira saudvel. Nesse caso, desejvel contornar os pontos onde a dor acontece e/ou diminuir o ngulo no qual a ao de estender o fletir estiver acontecendo.

Assim, podemos considerar queasteyaseja o caminho do meio, o ponto de equilbrio entreahisetapas. Aplicando os trs princpios ao mesmo tempo conseguimos o equilbrio adequado e necessrio para que a prtica transcorra da melhor maneira possvel, na intensidade e durao adequadas, ao mesmo tempo em que lidamos objetivamente com as expectativas que o nosso ego possa elaborar em relao ao que significa praticar Haha Yoga, bem como em relao aos resultados que podemos obter dessa prtica.Namaste!

Publicado originalmente nos Cadernos de Yoga: www.cadernosdeyoga.com.br.