Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
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O CONCEITO DE RECEPÇÃO NA OBRA DE ELISEO VERÓN: 1968 - 20131
THE CONCEPT OF RECEPTION IN ELISEO VERÓN’S WORK: 1968 - 2013
Antonio Fausto Neto 2
Resumo: O conceito de recepção atravessa a obra de Eliseo Veron- 1968/2013.
Estudos iniciais enfatizam a dimensão temporal para a produção de sentidos.
Destacam processos que envolvem momentos em que se diz e se recebe uma
mensagem, para definição da significação. Tal aspecto tem merecido pouca
atenção, mas é algo que exigirá muito no futuro (Verón, 1971). O papel dos atores é
destacado, pois reconstruir “(...) gramáticas de reconhecimento supõe trabalhar
com a palavra individual (...)”3. Descreve-se a pertinência da noção de
“gramáticas” – suas incompletudes e diferentes lógicas – para a formulação da
teoria do reconhecimento, a partir da articulação produção/recepção. E reflete-se
sobre interrogações, de cujas respostas dependem o avanço da pesquisa sobre a
recepção: “como captar esta grande fragmentação de palavras(...)?” (Verón,
2013:430).
Palavras-Chave: Produção/Recepção. Reconhecimento. Interpenetração.
Abstract: The concept of reception runs through the work of Eliseo Verón -
1968/2013. Initial studies emphasize the time dimension for the meanings
production. They highlight processes that involve moments in which it is said and
received a message, for the definition of signification. This aspect has been drawing
little attention, but is an issue that will demand a lot in the future (Verón, 1971). The
actors’ role is pointed out, since rebuilding “(...) recognitions grammars assumes
working with the word individual (...)”4. It is described the pertinence of the
“grammars” idea - its deficiencies and logical differences - for the recognition
theory formulation, given the liaison production/reception. And it is reflected about
questionings, whose answers depend on the research progress about reception:
“how to caption this immense word fragmentation?” (Verón, 2013:430).
Keywords: Production/Reception. Recognition. Interpenetration.
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Recepção: Processos de Interpretação, Uso e Consumo Midiáticos
do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UNISINOS. Doutor em Sciences de La
Comunication Et de L'information pelo Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, França. E-mail:
[email protected] 3 Comunicación y Neurosis: Eliseo Verón e Carlos Sluzki. Instituto Torcuato di Tella. Buenos Aires, 1970.
4 Comunicación y Neurosis: Eliseo Verón e Carlos Sluzki. Instituto Torcuato di Tella. Buenos Aires, 1970.
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1. Nota introdutória
O conceito de recepção elabora-se na obra semiológica de Eliseo Verón ao longo de,
pelo menos, cinco décadas. Não se trata aqui de descrever em termos cronológicos, o modo
como ele situou a recepção, pelo menos por dois motivos: em primeiro lugar, porque esta
problemática é constitutiva dos modelos sobre os quais apoiou seus estudos sobre a produção
dos sentidos. E, em segundo lugar, ele emerge em torno de complexos movimentos na sua
trajetória cientifica. Esta não se faz através de um movimento retilíneo, vai se se esboçando
através de ciclos, e, particularmente, momentos nos quais são firmadas hipóteses, como uma
espécie de balanço para lhe autorizar a dar novos passos. Ou, então, são relançadas questões a
serem problematizadas em consequência de revisão de olhares sobre trajetos que, por assim
dizer, são reabertos para ensejar a revisão, mas sobretudo a abertura de outros caminhos e de
rotas a serem feitas.
Porém, este movimento de “zigue zague” se faz em torno de um eixo no seio do qual
se organiza uma hipótese sobre a comunicação e que se constituiu no seu ponto de partida,
mas também, no de novas chegadas. Se observarmos suas primeiras obras entre 1968/1979 e
seus últimos escritos, principalmente a Semisois Social 2, lançado um ano antes do seu
falecimento, em 2014, vemos uma afirmação que é retomada entre elaborações e seus
trabalhos empírico-conceitualizantes. Propõe que a comunicação, qualquer que seja o seu
nível, realiza-se em torno de um desequilíbrio.
Diferentemente das concepções da teoria da informação que propõem o entendimento
da comunicação como a realização exitosa do deslocamento de um signo transferido de A na
direção de B, as hipóteses veronianas apontam que toda e qualquer comunicação, seja aquela
na esfera inter-pessoal ou aquela de natureza mediática, realiza-se em torno de um desajuste,
entre produção e recepção (conceito que é designado em toda a sua produção como
reconhecimento). Tal desajuste é provocado pelo fato de que as intenções de A e de B não se
realizam de modo continuo, e que as premissas de A não se efetuam em B, de modo
automático. Tal desajuste resulta do fato de que os conjuntos A e B (produção e recepção)
não são “jamais idênticos: as condições de produção de um conjunto significante não são
jamais as mesmas das condições de reconhecimento” (Verón, 1979).
Se a noção de recepção não aparece aí com a mesma nomenclatura designada pelos
estudos de comunicação, nas suas mais diferentes escolas, ela se faz presente na obra do autor
argentino segundo um diálogo outro que, certamente não se realiza no universo formal de
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“escolas consagradas”. Reconhece o conceito e sua problemática, segundo um trajeto de
formulações que, praticamente, estão disponibilizadas em sua obra, inclusive na forma de
interrogações. Vale salientar que nem toda as respostas a que chegou a respeito da recepção
as formulou de modo conclusivo. Em vários momentos trouxe à baila a importância do
conceito, mas em torno de interrogações ou hipóteses que o levavam a novos movimentos, ou
o que chamava partir para uma nova viagem.
2. Primeiras elaborações
A hipótese que norteia seu trajeto investigativo, envolve a transformação de signos em
sentidos, e chama atenção para o fato de que todo processo de comunicação está atravessado
por uma assimetria constitutiva, pois as atividades da produção e da recepção se engendram
segundo diferenças sobre as quais resultariam sentidos mais de indeterminações do que de
convergências. As condições em torno da quais se movimentariam os polos chamados de
emissor e receptor não permitiriam que a atividade circulatória, transformando signo em
sentidos, se fizesse seguindo uma dinâmica consciencial, equidistante das injunções e das
especificidades da natureza destas duas instâncias. Conforme já acentuava na década 80, o
intervalo entre produção-recepção seria um marco de um processo interacional no qual se
tornaria
visível uma propriedade fundamental da circulação de sentido: está atravessada pela
indeterminação. (...) Se a defasagem existe já no seio de qualquer interação de
palavras, existe também no interior de todos os processos tecnológicos de
comunicação {pois} (...) Quanto mais complexo seja o suporte de discurso (ao fazer
intervir materiais significantes heterogêneos e simultâneas) tanto mais se acrescenta
a distância entre produção e reconhecimento” (Verón, 1985: 65-66).
Nos primeiros momentos de elaboração deste modelo, aparecem noções como as de
intervalo/distancia; desajuste/defasagem; desequilíbrio /assimetria e que pertenceriam a um
mesmo “estoque conceitual”, através do qual desenhava o processo da comunicação.
Contestava o paradigma da teoria da informação que reduzia a questão do sentido a efeitos
automáticos resultantes da transferência da atividade de P>R. Acentuava, na contra mão deste
ponto de vista, a ideia segundo a qual a defasagem entre estes polos (P> R) é constitutiva de
um modelo de circulação no qual os signos são transformados em sentidos ao passar por um
trabalho de dois circuitos produtivos que operam, segundo lógicas e condições distintas, nas
órbitas da produção e do reconhecimento, e cujos efeitos não seriam definidos e/ou
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conhecidos previamente, e nem se efetivariam, unilateralmente. Nestas condições, lançava a
hipótese segundo a qual “(...) a indeterminação é um princípio válido em todos os níveis da
comunicação” (Verón, 1985: 67). Diferentemente dos pressupostos dos paradigmas
funcionalistas, que preconizavam princípios de causalidade no trabalho entre P e R, apresenta
ponto de vista contrário, lembrando que “a questão da defasagem entre P e R é a que contem
a problemática da comunicação {enquanto} (...) condição necessária, {pois} o sentido se
produz no nível da interdiscursividade” (Verón, 1986: 66 e 67). Ou seja, é na atividade do
interdiscurso, que se engendra em produção e recepção, que signos se transformam em
sentidos e que a comunicação se estabelece não como intercambialidade simétrica, mas
associada à noção de desajuste. Retorna aos conceitos para refletir sobre um ponto de
partida, antes de fazer a passagem para um novo estágio de sua elaboração:
Me referi a esta diferença (entre p/r) no passado em termos de defasagem. Me
limitarei a recordar agora que é razoável postular que esta defasagem entre p/r é
uma propriedade constitutiva, estrutural de toda a comunicação em todos os níveis
(mais ou menos microcsópico ou macroscóspico) de seu funcionamento, o que faz
com que o esquema de comunicação seja assimétrico e irreversível” (Verón,
2002:130).
A hipótese sobre a defasagem estrutural entre P/R propõe haver uma relação entre
estes dois polos, cuja atividade não se faz em termos de simetrias, mas segundo
complexidades que vão sendo apontadas, e no seio das quais aparecerão construções sobre a
especificidade da recepção. Particularmente, a questão do “desajuste estrutural” que envolve
a interação, não diz respeito apenas as manifestações da comunicação mediática. Se esta é
mediada pela intervenção de suportes e técnicas, a comunicação face a face é atravessada por
outras tecnologias que envolvem materialidades sensoriais através das quais os sentidos são
exteriorizados. Ou seja, numa situação ou noutra, os vínculos entre P e R se fazem via a
mediação de linguagens e de suportes técnicos:
a comunicação humana é necessariamente ‘mediada’ em todos os seus níveis desde
o micro até o macro, simplesmente porque o sentido só pode circular materializado;
desde ponto de vista, a comunicação face a face - entre os indivíduos é tão
‘mediada’ como a circulação planetária de uma partida de futebol. A diferencia
crucial é que na transmissão da partida de futebol, a semiosis humana está
mediatizada e a conversação não está. Nenhuma comunicação humana é ‘direta’
(por oposição a mediada) mas a midiatização produz, como veremos, importantes
alterações de escala (Verón, 2013:148).
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Significa que o sentido somente pode ser exteriorizado segundo operações mecânicas,
das mais antigas às mais complexas, como as que ocorrem nos processos de midiatização em
curso. E tal exteriorização se dá no âmbito de uma atividade circulatória em cujas situações
de espaço-temporalidades se constituem na relação produção e recepção. Nestas condições a
questão da não-linearidade diz respeito a própria comunicação humana, cuja
intercambialidade entre P e R não se trata de uma simples permuta {mecânica} de signo.
Envolve o trabalho significante de dois circuitos distintos, via o funcionamento de
“gramáticas” cujos efeitos, enquanto materialização de sentidos, não podem ser reconhecidos
a priori.
As “gramáticas” viriam a ser um conjunto de regras que servem de orientação para a
produção dos discursos. Ou dizendo de outra forma:
uma gramática de produção ou gramática de recepção tem a forma de conjuntos
complexos de regras que descrevem, operações (...) que permitem definir ora as
condições de produção, ora os resultados de uma determinada leitura. Uma
gramática, seja em produção ou em recepção, nunca é exaustiva. Todo o texto sendo
um objeto heterogêneo, sendo um lugar de encontro de uma multiplicidade de
sistemas, pode construir tantas gramaticas enquanto diversas maneiras de abordá-lo
(Verón, 2006:51).
Mas, as “gramáticas” são incompletas, no sentido de que são constituídas por vários
discursos. Submetidas a articulações múltiplas, que operam, segundo várias lógicas distintas,
as gramáticas não podem assegurar efeito de sentidos apenas do lugar de sua performance. As
gramáticas são também, por assim dizer, fontes de complexidades e, por esta razão, não
podem ser concebidas como “pacotes” que asseguram, unilateralmente, o êxito da
performance discursiva, em termos de efeitos de sentidos. Se as gramáticas estão em relação,
não significa que estejam situadas em posição de convergência, ou ainda de ajuste, entre si.
Já no momento seminal do seu trabalho de analise de discurso Verón já pontuava a
problemática do “desajuste” entre gramáticas de produção e reconhecimento, sinalizando a
não coincidência das mesmas, argumentando que a não simetria entre elas, permitia afirmar
que
não se pode inferir de uma maneira direta e linear, {efeitos} das regras de
reconhecimento (de um discurso), a partir da gramática de produção. Esta última
define conjuntos de efeitos possíveis, mas a questão de saber qual concretamente a
gramática de reconhecimento que foi aplicada a um texto em um momento dado,
permanece inexplicável apenas pelas regras da produção (Verón, 1979:11).
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As gramáticas possibilitam as condições de contato entre produção e recepção de
discursos, mas se contatam segundo articulações que se fazem via complexidades provocadas
pelas distintas lógicas sobre as quais repousam suas singularidades. Elas se acoplam segundo
dinâmicas que acentuam suas diferenças.
3. Diagramas, rumos à “epistemologia” da terceiridade
Verón recorria a utilização de diagramas para descrever as formalizações de seus
achados e como recurso de sistematização de suas hipóteses. Valemo-nos, neste contexto,
apenas de algumas observações destes construtos para mostrar como visualiza a hipótese
segundo a qual a produção de sentido – em qualquer instância da realidade humana – se faz
em torno de duas tríades, portanto dois universos sobre os quais ela se funda distante da
linearidade. Segundo nosso ponto de vista, são dois modelos “fundantes” para explicar a
noção de comunicação enquanto movimentos de duas tríades sobre as quais se estrutura a
atividade da produção de sentidos, em termos não determinísticos e não lineares.
Algumas reminiscências sobre o uso dos diagramas ajudam a dar contornos
conceituais a tal discussão. Há 47 anos (1969), apresentava uma leitura sobre fenômenos dos
sentidos, e que apontava para a formulação do que chamava de elementos de uma
“epistemologia da terceireidade”, algo com que se distanciaria das semióticas imanentistas e
determinísticas (Verón, 1991). Recorre às leituras das obras de Bateson e de Peirce para
elaborar um esquema no qual visualiza a transformação do signo em sentido. Ali já se
interrogava sobre pressupostos acerca do seu esquema de análise fundado no desajuste entre
P/R: “como é necessário abordar um discurso em relação a sua produção e a sua recepção,
pois a análise em produção e em recepção não coincide jamais” (Verón, 1991: 18). Em torno
deste ângulo, fazia uma crítica a hipótese determinística da produção dos sentidos ( E>R),
argumentando que “um discurso não determina apenas um efeito, mas um campo de efeitos”
(Verón, 1991:180), aspecto que o levou a indicar o papel das “gramáticas” e as distinguir
entre as “análises das regras sobre a produção de um discurso (gramática de produção) e
aquelas (gramática de reconhecimento) que visam determinar as condições sobre as quais um
discurso é susceptível de produzir efeitos” (Verón, 1991:180). Estas especificações “trazem a
noção de defasagem entre as instancias de produção e o reconhecimento” (Verón, 1991:180),
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conforme diagrama 1 abaixo, onde elabora o trabalho da produção do sentido a partir de uma
dimensão triádica (FIG1 e FIG2):
FIGURA 1 – Modelo de duplas tríades (primeira formalização)
FONTE – Verón, 1991, p. 181.
O diagrama 1 aponta para a existência de dois nos quais a produção de sentidos se
estrutura, mas sem que as suas especificidades tenham sido distinguidas, no caso as duas
dimensões triádicas com suas respectivas singularidades. Mas é no diagrama 2, que o autor
institui além das duas formulações triádicas, os contornos de suas fronteiras e dinâmicas de
suas operações. Chama atenção para suas singularidades e o papel destas na construção de
um modo de relação entre as mesmas, bem como as condições em torno das quais a
circulação promove transformações de signos em sentidos.
FIGURA 2 – Modelo de duplas tríades (segunda formalização)
FONTE – Verón, 1996, p.132.
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O diagrama 2 recebe o seguinte comentário: “Fixando-nos sobre um ponto da rede
discursiva, a partir de um discurso de referencia (Di), representado no esquema abaixo, sendo
P(Di) as condições discursivas de produção de (Di), R(Di) as condições discursivas de
reconhecimento de D(i) e O (Oi) sendo o objeto do discurso (Di). Temos duas relações
triádicas, que tem dois pontos comuns, D(i) e O(i). Para definir o conhecimento, uma
epistemologia “binária” somente reteria a única relação de D(i) ao seu objeto: esta
epistemologia se constitui pelo desconhecimento da rede interdiscursiva e se alimenta da
ilusão do sujeito como fonte do sentido. O modelo de unidade mínima da rede contém duas
vezes o gráfico triádico peirceano. Considerado em relação as suas condições discursivas de
produção, (Di) é interpretação destas condições, e dentro de certa medida ele constitui (Oi)
como seu objeto. Considerado em relação as suas condições produtivas de reconhecimento,
em contra partida, D(i) é signo de seu objeto, e R(di) torna-se o interpretante no interior da
rede triádica. Longe de ser o que responde isolado do discurso que o faz falar, o objeto
somente existe enquanto tal, dentro e através desta rede interdiscursiva. Considerada na sua
ligação com D(i) , O(i) pode ser designado como objeto imediato de D(i), e inserido na
relação triádica, (O) é objeto dinâmico (Verón, 1991:182). Repousa sobre as duas dimensões
triádicas o funcionamento das duas instâncias (P/R) da rede de produção do sentido.
Tanto o discurso como objeto funciona de modo distinto para cada uma delas, aspecto
que aponta para o fato segundo o qual os sentidos se engendram no interdiscurso, as duas
tríades, a partir das gramáticas e condições de produção e de reconhecimentos específicas.
Estas oferecem “enquadres” distintos (via marcas dos seus processos produtivos) para que os
discursos se contatem, segundo dinâmicas da circulação, mas sem que esta promova o
engendramento dos sentidos segundo noção de calculabilidade. Esta formulação é atualizada
muitos anos depois, através de anotações manuscritas feitas pelo autor à margem de um
diagrama inserido em um artigo, publicado em livro, e que não trazia explicitadas marcas que
lhe pareceriam necessárias para uma leitura atualizada do diagrama impresso. O manuscrito
reproduz na figura 3, a concepção do diagrama e tal versão trata de nomear de modo mais
explicito as categorias sobre as quais repousariam a organização e o funcionamento das
tríades.
FIGURA 3 – Manuscrito com a leitura da figura 2 sobre produção de sentido, segundo duplas
tríades
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FONTE – Verón, 2006, p. 115.
A formulação do manuscrito acima é assim comentada:
A relação semiótica mínima entre um emissor e um receptor (...) implica, assim, a
articulação entre duas tríades, de que a priori, o único elemento comum para um
observador é o signo ou representamem (S) na sua manifestação material sensível.
A relação { } entre os interpretantes (I) e os objetos (O) operando entre E e em R, é
, para um observador, problemática. Este aspecto problemático decorre da não
calculabilidade da circulação e está na origem de todas as dificuldade nos estudos
de recepção. (...) A diferenciação entre os dois polos, o da produção e o do
reconhecimento, exprime-se na relação problemática entre (...) (I) e (O) no esquema
da unidade mínima da produção de sentidos (Verón, 2006: 115 e 116).
Tais especificidades mostram que a produção de sentido não resulta da projeção de
uma atividade discursiva de E sobre R, na medida em que cada uma destas instancias elabora
suas relações com os signos, e com formas de dinamiza-lo. Introduz-se a questão da
circulação cujo funcionamento não é concebido de modo automático enquanto apenas um
“espaço de trânsito” entre E e R. Tal assinalamento será perseguido, particularmente, nas
investigações do semiólogo argentino sobre a recepção. Especialmente quando estuda as duas
tríades, seus pontos de contatos e de modo mais específico, as incidências de distintas lógicas
na manifestação discursiva. Também, observa suas repercussões sobre estudos de práticas
discursivas diversas, pois sabe-se que o processo de ativação das gramáticas é fragmentário,
uma vez que a palavra individual (enquanto um processo semiótico individualizado) e
colhida na pesquisa, ultrapassa largamente o discurso midiático específico. Este quadro de
complexidade potencializa desafios, especialmente quando os equipamentos da observação
falham no trabalho de descrever lógicas sociais as quais “não se fazem (ou não se fazem
mais) lá, onde as procuramos” (Verón, 2006: 124).
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Apesar das formulações teóricas sobre o “desajuste” a ênfase da investigação
veroniana contemplou por algum tempo a problemática que envolvia mais diretamente “as
gramáticas em produção”. Talvez, pelo fato de que a tradição semiológica ofereceria insumos
para a análise de mensagens geradas por dispositivos midiáticos. Alguns dos seus estudos
contemplaram questões teóricas propriamente ditas, e a análise de materiais discursivos
enfatizando a problemáticas das manifestações da gramática de produção. Privilegiou uma
diversidade de corpus de trabalhos voltados para a analise dos processos discursivos, por
exemplo, as relações entre discurso político e midiático, como foi o caso da análise da
campanha televisiva sobre a primeira eleição do presidente Lula (Fausto Neto, Verón, Rubim,
2003). O balanço dos seus resultados faz emergir pensamentos a respeito da pertinência da
recepção, conforme ele mesmo lembra: “(...)tive a sensação de que longos anos de trabalho
sobre o discurso das mídias estavam me ‘dizendo’ muitas coisas sobre os atores individuais”
(Verón, 2004: 98). A “guinada” para recepção se faz, em função dos resultados de
investigações anteriores, como a formulação do conceito de “contrato de leitura”, no início da
década 80. Não obstante o “desajuste” entre gramáticas (P e R), se faria necessário examinar
como as estratégias midiáticas de “ofertas de sentidos” apontariam o estabelecimento de
vínculos com a recepção. Daí formulou observações sistemáticas buscando nos “contratos de
leitura” as estratégias discursivas midiáticas que visariam construir relações “que unem no
tempo uma mídia e seus consumidores” (Verón, 2002: 277). São relações que as mídias
propõem ao receptor e que eram elaborados através dos seus “modos de dizer”, no caso pela
especificidade do trabalho enunciativo. Isso o levou a mapear marcas discursivas que
indicavam a presença do receptor. Tal processo observacional sinaliza o deslocamento do
“olhar semiótico” para a atividade da recepção, indo além dos marcos conceituais de algumas
disciplinas que isolavam a recepção como uma “variável dependente”. Ou, então situada,
como um “leitor textual”, enquanto personagem imaginário do discurso. Ao avaliar estes
intentos, lembrava que
a semiótica dos anos 80 integrará em seu marco conceitual uma teoria do
reconhecimento, uma teoria dos efeitos de sentido ou não existirá. Ora, sobre o
reconhecimento não sabemos quase nada, e a teoria que diz respeito a ele
{reconhecimento}, em virtude da defasagem necessária entre produção e
reconhecimento, não pode ser deduzida de uma teoria da produção discursiva. Na
verdade, enquanto o reconhecimento não for conceitualizado, a teoria da produção
permanece incompleta pois toda produção discursiva é um reconhecimento de
outros discursos (Verón, 2004: 83).
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Levando em conta o desafio vindo das pistas dos seus estudos sobre “contratos”, dá
passos para uma “semiologia operacional” que “se apresenta menos como uma disciplina e
mais como uma orientação que tem como objeto a circulação dos discursos no seio da
sociedade” (Verón, Boutaud, 2007). Uma semiótica que se dirija para a recepção onde “se
reencontra diante dos indivíduos, parte de leitorados, das audiências, dos públicos” (Verón,
Boutaud, 2007:168). Colocar a proa do projeto investigativo para tal direção, significava
enfrentar desafios metodológicos e teóricos. Especialmente, o papel atribuído a semiótica
voltada para o foco do vínculo, no sentido de “lidar com a articulação entre a semiose
apresentada pelos discursos midiáticos e aquela dos atores individuais que são os
consumidores, os interpretes” (Verón, Boutaud, 2007, 1968). Trata-se de uma complexa
articulação que acentua a não-coincidência de gramáticas, mas que permite também observar
operações e marcas através das quais produção e recepção se contatam. Particularmente, via
as gramáticas e suas lógicas, mas também as heterogeneidades dos discursos que constituem
suas condições de produção, “com a qual nos enfrentamos em produção e em recepção”
(Verón, 2008: 4). Entende-se, aqui, as discontinuidades não como rupturas entre gramáticas,
mas efeitos das interpenetrações das autopoiesis de sistemas institucionais e de sistemas
individuais. Por reunir operações que emanam de lógicas diferentes a interpenetração enseja
mais diferenças do que convergência, ou dizendo de outra maneira, “longe de produzir
homogeneização (isto é cristalização das estruturas organizacionais da sociedade) {as
gramáticas} são geradores de complexidades (...)” (Verón, 2002: 5). Voltamos ao cerne da
problemática da comunicação como uma atividade não-linear e, consequentemente, o
entendimento de que tal dinâmica aumenta a complexidade da circulação enquanto a
diferença entre produção e reconhecimento (Verón, 2002: 4 e 5).
Dedica-se a semiótica operacional, ao examinar no contexto da investigação empírica
como as descontinuidades se efetivam, em consequência das heterogeneidades que articulam
e produção e recepção. Que tipos de vínculos se estabelecem e através de que lógicas estas
duas instancias ensejam o funcionamento das duas tríades, acima apontadas, e que no caso do
diagrama acima, estamos chamando de dois cenários? Investigações feitas na década de 1980
observam os mecanismos de funcionamento destas articulações. Descrevendo as
especificidades e relações entre dois universos, examina as racionalidades sobre as quais
funcionam as estratégias de apropriação das ofertas de sentidos, a partir de lógicas e
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postulados situados no mundo dos usuários. Examinou comportamentos sobre apropriação do
livro escolar por crianças, no ambiente de bibliotecas; as formas de apropriação de conteúdos
de uma exposição, por parte dos seus visitantes; os modos como os usuários do metrô
parisiense ocupavam seu espaço, transformando suas funções de uso – o de transporte de
passageiros – noutras tantas segundo operações de apropriação do espaço e do contexto; as
apropriações por parte dos telespectadores de conteúdos de tele emissões científicas, a partir
de premissas que eram definidas por dimensões de suas “gramáticas”, envolvendo
competências situacionais, culturais, etc. Tais estudos apontaram pistas e hipóteses sobre as
condições de articulação entre estratégias em produção e o papel de suas gramáticas, bem
como aquelas relacionadas com as situações de recepção, especialmente as operações feitas
pelos usuários no processo de semiotização individual, no seu contato com a oferta5.
Algumas conclusões apontam questões muito instigantes sobre praticas que articulam
dois universos, mas segundo processos de significação que se bifurcam, como efeito do
funcionamento de suas gramáticas e distintas lógicas: “o sentido dos comportamentos dos
usuários de uma biblioteca não pode ser apreendido fora do discurso do próprio usuário, (pois
como veremos) uma biblioteca somente tem uma unidade de um depósito. (...) seu sentido é
inteiramente construído pelo usuário e depende do tipo de documento que veio buscar, e se
define segundo seu programa de leitura” (Verón, 1985: 74). Ou então, outras observações
destacam os processos metodológicos através dos quais se examinam contatos entre
produtores e consumidores de emissões cientifica, situados em gramaticas distintas. Auto
avalia o desenho metodológico da pesquisa, descrevendo operações que deveriam ser feitas
de outra forma, no sentido de permitir um melhor conhecimento as condições de recepção. A
certa altura diz que entre a
elaboração conceitual da 1ª parte deste estudo, fundada sobre a teoria da enunciação
(...) e a segunda parte consagrada a uma primeira exploração das regiões do
reconhecimento, a necessidade de (...) reduzir pouco a pouco a distancia entre estas
duas problemáticas nos parece do ponto de vista metodológico, a tarefa mais
urgente (Verón, 1985: 102).
5 As quatro pesquisas realizadas por Veron, no âmbito da semiótica operacional foram publicadas
respectivamente em 1985; 1986; 1989. E seus títulos são: Ethnographie de l’Exposition – l’espace, le corps et
le sens (1989); Les Spectacles Scientifiques Télévisés – figure de la production et de la réception (1985);
R.A.T.P. – Le métro empire des signes: stratégies pour le cable (1986); Esto no es un libro (1999).
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Nota-se que a sua preocupação em estudar a recepção em articulação com a produção
não se trata apenas de indicação vaga, mas exigência resultante de processos observacionais
revelados pela trajetória de pesquisa. Mais do que isso, conforme sugere autoreflexivamente,
face a seu próprio trabalho investigativo, tal articulação deve ser tensionada, enquanto
problemáticas que é fonte de outras complexidades.
Na figura seguinte, vê-se a exemplificação dos mecanismos de funcionamento dos
processos de articulação entre gramáticas (produção e recepção), e os processos de
apropriação. Aponta-se dinâmicas pelas quais os dois universos discursivos das instâncias
triádicas da exposição, se contatam, segundo marcas que somente podem ser recuperadas
pelo lugar do observador, enquanto instancia de pesquisa. Tomamos como referência, na FIG
4, abaixo diagrama que ilustra o que o autor chamou de “etnografia de uma exposição”.
Vejamos a representação da pesquisa que observa processos de articulação
produção/recepção, onde o diagrama reúne dois subconjuntos: (1) “concebedor” da estratégia
e (2) o visitador da estratégia. Na esfera do primeiro expõem-se e propõem-se o objeto
(exposição), formulado segundo pressupostos da gramática de produção e que emanam das
lógicas dos promotores da exposição.
No âmbito do subconjunto temos expectativas que indicam duas ações a de visitar e
negociar os processos de consumo da exposição, enquanto produto. Entretanto, estes dois
conjuntos que se estruturam em torno de lógicas distintas, convergem para um terceiro ponto,
no qual suas práticas articulam dois movimentos: o de se colocar em exposição no sentido de
“compor-se” com esta algo que apontaria para movimentos de apropriação. Ou seja, a
apropriação seria uma espécie de terceiro objeto, que, embora trazendo marcas das operações
do conjunto 1 e do conjunto 2, trataria de apontar outro discurso. Em síntese, o objeto
imediato enquanto exposição é transformado por estas operações em um objeto dinâmico.
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FIGURA 4 – Processos que articulam gramáticas de produção/recepção e sinalizam estratégias de apropriação
da oferta discursiva
FONTE – Verón e Levasseur, 1989, p.22.
As observações feitas na esfera do trabalho “empírico-conceitualizante” permitiram
explicitar seus interesses pela recepção, mas esta em complexa articulação, pois o verdadeiro
objeto da pesquisa não “é a mensagem em si (...) mas a produção/reconhecimento do sentido,
sentido este cuja mensagem não é senão o ponto de passagem” (Verón, 2007: 179).
Os quatro casos acima comentados condensam observações sobre as marcas que
enunciam as formas de contato e de produção de sentido, no âmbito da oferta e apropriação
de discursos e as operações que apontam para as dissenções entre lógicas e postulados da
oferta e as lógicas da recepção, etc. Na análise sobre as estratégias de apropriação das ofertas,
por parte dos usuários sociais, problematiza pelo menos, dois aspectos que dizem respeito aos
processos de funcionamento das práticas sociais no contexto da midiatização: em primeiro
lugar, as relações entre instituições e atores, que ao invés de apontar para a uniformização
social, tratam de chamar atenção para vínculos cujas manifestações seriam fontes de
crescente complexidade da organização social (Verón, 2007: 2000). E, em segundo lugar, as
marcas que aparecem nestes processos de “articulação/desajuste”, conforme os quatro casos,
“são uma prova cabal sobre a não-linearidade da comunicação, que resulta do estudo
empírico da circulação discursiva” (Verón, 2007:169). Estaria valorizando a especificidade
do seu objeto, mas em coerência com um outro postulado ao situar a recepção numa
complexa articulação com produção, tendo a circulação como organizadora e dinamizadora
destas articulações.
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4. Rumo à semiótica aberta
Ao lançar um olhar sobre trajetórias que convertem a recepção em objeto de
disciplinas, sublinha como seu momento seminal, o período posterior a segunda guerra
mundial, com a convergência entre oferta e demanda de meios, especialmente da televisão
emergente. A ênfase das investigações se volta para a questão dos efeitos. O fato da oferta
escassa face a uma disputada larga audiência, provoca as emergentes pesquisas de mercado
do que resulta a “pesquisa administrada” impulsionada pela “research communication”, dai
destacando as investigações sobre “efeitos”. No final da década 70 e ao longo dos anos
seguintes, observa-se uma mudança neste cenário de disputa pelas audiências. Mas em um
outro cenário que envolve a rearticulação da atividade comunicacional em torno da
convergência de três setores – audiovisual, informática e telecomunicações – dar-se a origem
ao que se chamou de convergência – organização e funcionamento dos meios articulados em
torno desta tríade. Esta tendência vai se cristalizando em termos produtivos, provocando em
termos de recepção sensíveis divergências: começa a se desfazer o esquema clássico segundo
o qual a produção é a programadora do consumo midiático, passando estas operações às mãos
do consumidor. “Há diz ele, um momento central que é o deslizamento da programação dos
produtores para os usuários, rompendo cada vez mais a gestão, por parte dos produtores do
tempo cotidiano das pessoas” (Verón, 2007:42). Tal fenômeno vai configurar a importância
das lógicas da recepção sobre a organização do consumo midiático. Uma das manifestações
desta complexidade é, justamente o fato da emergência das operações dos atores em
consequência dos efeitos da convergência tecnológica, especialmente sobre o âmbito dos
meios. Por exemplo, a tevê
transforma-se em uma superficie operatória multi-mediatica controlada pelo
receptor. Haverá sempre, supõe-se, múltiplos produtos áudio visuais (os meios são
antes de tudo, um mercado) mas não haverá mais ‘programação’. Esta superfície
abarcará tudo informação, entretenimento, computação, telefonia, comunicação
interpessoal. Conheceremos, pois, a ‘convergência’, paradoxalmente, com a
‘máxima divergência’ entre oferta e demanda na história dos meios” (Verón, 2007:
12).
Ocorre uma repercussão sobre as características dos “estudos de recepção” que
dominaram o cenário da pesquisa. No contexto anterior à convergência,
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(...) os estudos mostram que o receptor não era passivo, mas ativo do que
imaginavam os “mass media research”. [Mas] a situação na qual ingressamos é
radicalmente diferente e nos obriga a repensar o conceito mesmo de “recepção”,
porque os processos de consumo se tornam mais complexos. O receptor não será
meramente ativo, será o operador – programador do seu próprio consumo
multimediatico (Verón, 2007:16, grifos nossos).
Marcas destes sobrevoos aproximam estes indícios das articulações complexas sobre
as quais repousariam os vínculos entre produtores e receptores. Suas formulações sobre a
midiatização em processo, elaboradas já no início deste século (Verón, 2000, 2007), já
apontavam para tal complexificação:
a mediatização de nossas sociedades, ao longo do século XX, não se traduz em
fenômenos de homogeneização e de uniformização das relações e praticas sociais,
como anunciavam por exemplo, os profetas da Escola de Frankfurt, mostra, pelo
contrário, que a interface ‘produção-reconhecimento’ é precisamente o vinculo de
engendramento de uma ‘crescente complexidade das sociedades entre produtores e
receptores’” (Verón, 2007:17).
Retoma neste contexto, a problemática de suas gramáticas, formulando esta questão
em torno de um mesmo diagrama apresentado, em dois momentos distintos de sua obra -
(2007 e 2013). Dois aspectos são enfatizados: Em primeiro lugar, a problemática do desajuste
estrutural entre produção e recepção, situando sua importância para explicar o funcionamento
da circulação. E, em segundo, aponta sua pertinência para os modos como estudar a recepção,
no contexto complexificante da midiatização em processo, e segundo dinâmicas permeadas
por fenômenos tecno-midiáticos.
FIGURA 5 – Esquema da cadeia de circulação de sentidos produção/recepção
FONTE – Verón e Boutaud, 2007, p.169.
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Nele retoma questões suscitadas pelo diagrama (Fg 1) para enfatizar a importância da
noção de desajuste. Lembra:
O que nos interessa aqui {no que oferece a FIG 5} é sublinhar o fato de que, se a
analise nos permite articular a classe D de discurso á uma gramática de produção
dada, as propriedades de D assim descritas não nos autoriza à inferir os efeitos desta
classe de discursos em recepção: a classe D de discurso está submetida, em
recepção, à uma pluralidade de ‘leituras’, de ‘interpretações” que designaremos
como gramáticas de reconhecimento (GR) de D, que a seu turno reeviam às
condições de reconhecimento (CR) determinadas. Temos ai uma constatação capital
sobre a não-linearidade da comunicação, que resulta do estudo empírico da
circulação discursiva (Verón, 2007: 169).
Ao retomar, tempos depois, ao mesmo diagrama, além de lembrar sua “episteme” e
suas filiações (à modelos dos sistemas complexos distanciados do equilíbrio), reenfatiza a sua
pertinência para os estudos da recepção, apontando a potencialidade do seu uso, enquanto
problemática metodológica:
Tanto para trás como para frente (para esquerda ou para direita do esquema)
encontramos os modelos que o observador deve formular para dar conta das
problemáticas do DO (Discurso/Objeto). A tarefa do observador é desentranhar
(reconstruir) as operações das quais o DO somente mostra traços. Ainda que
somente lhe interesse uma vinculação, dificilmente uma investigação poderá
abarcar todos os seus aspectos. Na maioria dos casos, reconstruímos apenas
pequenos fragmentos de uma vinculação (Verón, 2013: 205).
Faz três observações, sobre aspectos metodológicos que levam em conta o estudo
destas questões: a) reflete sobre o modelo, à luz do contexto (da midiatização) atual; b) ao
rememorar o modelo, confessa, segundo “olhar retrospectivo”, que contém uma hipótese “o
esquema da defasagem produção/reconhecimento pressupõe que em ambos os polos da
circulação estão operando lógicas qualitativamente diferentes (...) que nunca as discuti de
maneira direta” (Verón, 2013: 294); c) Explicita, na forma interrogativa, algo que aparece
como uma nova questão, que não se fazia visível em suas antigas formulações anteriores:
“que são estas lógicas? de onde provem? porque são diferentes?” (Verón, 2013: 295). Mas, as
mesmas somente poderiam ser problematizadas na sua ida para um contexto teórico-
empírico-conceitualizante da semiótica aberta e, desta feita, fazendo articulações com marcos
interdisciplinares.
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5. O breve diálogo com Luhmann
Verón nunca abandonou o conceito de descontinuidade entre produção e recepção.
Apenas reconhece que a noção específica de defasagem pareceria estar presa à lógica de um
sistema que funda e “determinaria” sua atividade na produção. Ou seja, se há defasagem esta
seria uma consequência da atividade de uma instância causadora da sua manifestação. E, no
seu habitual retorno sobre percursos feitos, avaliava:
É uma maneira, no meu entender, negativa de formular o problema, porque talvez
seja mais correto de pensar que falar de defasagem é falar de ponto de vista do
produtor, porque está buscando um acordo, uma articulação por definição, embora
seja impossível esta articulação. Então falar de defasagem talvez seja ver o processo
do ponto de vista do produtor, pois ele está buscando fasagens, e a sociedade tem
defasagens (Verón, 2008: 148).
Este modo complexo de ver tal relação faz parte das suas observações sobre os efeitos
de processos de midiatização quando salienta a emergência de um mercado discursivo que se
estrutura em máxima convergência em produção, e numa diversa e complexa divergência em
recepção, algo que o leva a interrogar: “como se explica que a difusão cada vez maior das
mesmas mensagens não torna a sociedade mais simples, mas mais complexa?” (Verón, 2008:
149). É tal divergência – que desde a sua perspectiva da comunicação face a face mobiliza
este trajeto intelectual -culminaria em breve diálogo com a obra de Luhmann. Nestas
condições, pensa o “desajuste perpétuo” (Verón, 1979) – como assim definia a defasagem
entre P-R – como um “processo de acoplamento entre produção e reconhecimento, mas entre
lógicas qualitativamente diferentes” (Verón, 2008 :149). Trata-se de uma clara alusão à
contribuição dos estudos sobre sistemas complexos a partir dos quais Luhmann prioriza as
noções de sistema/meio (sistema social e sistema sócio individual) para estudar não os
processos de estruturação da sociedade, mas as relações entre sistema e entorno, enquanto
suas operações. Não se trata de um retorno formal á sociologia, mas de um recurso à
articulação interdisciplinar sobre a qual se apoiaria a semiótica operacional, conforme ele
explica:
A semiótica operatória da qual falamos é por definição uma ciência social: seu
objeto é a circulação dos discursos no seio das sociedades. A cada vez, a resolução
do problema colocado supõe o entrelaçamento de considerações econômicas,
sociológicas, culturais, antropológicas e psicossociais. (...) A démarche semiótica é
uma démarche interinstitucional, que busca reconstruir a produção do sentido ao
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nível das redes institucionais, técnicas e discursivas das nossas sociedades (Verón,
Boutaud, 2007: 18).
Quando apresentava a noção de defasagem Verón sempre acentuava que esta se
tratava de uma característica estrutural dos processos de comunicação, seja na esfera da
comunicação interpessoal ou massiva. Mas, ela foi por ele considerada, tempos depois, como
“um modelo pouco elementar para gramática de produção e de várias gramáticas de
reconhecimento, que tentavam indicar o caráter não linear da comunicação” (Verón, 2008:
149). Ao situar o status da circulação como fonte desta nova complexidade – a comunicação
enquanto um processo afastado do equilíbrio – potencializa a noção de divergência, no lugar
de defasagem, como
alguma outra coisa que não seja simplesmente a negativa de defasagem. Gosto
desse conceito que aparece em Luhmann, entre outros, que é a ideia do
acoplamento, um processo de acoplamento entre produção e o reconhecimento, mas
um acoplamento entre lógicas qualitativamente diferentes (Verón, 2008: 149).
Esta noção propõe uma complexa atividade relacional entre sistema {social} e os
sistema {sócio-individual} segundo dinâmicas de interpenetrações entre eles, conforme a
formulação luhamaniana:
O conceito de interpenetração não trata de uma relação geral entre sistema e meio,
mas sim de uma relação entre sistemas que pertencem reciprocamente um ao meio
do outro.(...) Fala-se em penetração quando um sistema disponibiliza a sua própria
complexidade para que outro se construa. (...) existe interpenetração, quando esta
situação é reciproca, ou seja quando ambos os sistemas mutuamente permitem-se
proporcionar sua própria complexidade pré-construída. Em caso de penetração, o
comportamento do sistema penetrador está codeterminado pelo sistema receptor.
No caso da interpenetração, o sistema receptor exerce também uma influência
retroativa sobre a formação de estruturas do sistema penetrador ,intervindo,
portanto, de duas formas: a partir do interior e do exterior.(..) os sistemas que se
interpenetram permanecem meio um para o outro, significando que a complexidade
que mutuamente disponibilizam é inapreensível, isto é, desordem (Luhmann, 2009:
267,268).
Tais noções indicam que estas duas instancias – sistema e meio, são por natureza
sistemas auto organizantes que operam a partir de suas autonomias através de contatos, a
partir de suas singularidades e especificidades, mas que se interpenetram reciprocamente.
Assim, há uma articulação que se faz entre os dois, gerando acoplamentos entre sistema e
meio, mas que se funda em torno de descontinuidades que são justamente ensejadas pela
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complexidade de cada um deles e os efeitos dos contatos que travam, segundo ainda as
lógicas que os diferencia. Verón retém tal formulação para situar em seu cenário, o modelo
triádico de suas gramáticas – produção e reconhecimento – particularmente seu
funcionamento segundo dinâmicas de indeterminação. Ao fazer a articulação entre semiótica
com a teoria dos sistemas complexos não estaria efetuando um regresso à sociologia, mas
qualificando de uma outra forma a perspectiva da incompletude do seu modelo
comunicacional, segundo o aporte luhmeniano, assim por ele reconhecido:
não esqueçamos que, para Luhmann (2000 e 1995), os sistemas sociais não são
nada de outra coisa que a autopoiesis da comunicação. Os materiais discursivos aos
quais o observador acede segundo “pedaços” da semiosis, decompostos na interface
produção/reconhecimento, são tomados dentro de dois processos de auto
organização diferentes: aquele do sistema de meios e aquele dos atores (Verón,
2007: 182).
De tais acoplamentos que funcionam segundo gramáticas, por definições incompletas,
e pelo fato de que os discursos formam parte dos processos de interpenetração, entre sistemas
– e segundo ainda superfícies hibridas e heterógenas que não podem ser reconhecidas –
emergem os atores sociais. Sejam aqueles constituídos enquanto coletivos organizados pelas
estratégias midiáticas segundo complexas operações que tratam de entroniza-los, ou de fazer
sua passagem, para a esfera do setting das mídias. Sejam aqueles ainda que, instalando-se nas
bordas das articulações dos sistemas midiáticos/sistemas socioindividuais, alojam-se em uma
“zona de contato” que requer também outros processos observacionais capazes de descrever
suas operações e dinâmicas.
Segundo a complexificação dos processos de comunicação nem os produtores e nem
os atores sociais estão onde estiveram, mas sabemos que há vestígios de um atividade sócio-
simbólica que trata de indicar que fazem operações cujas matrizes observacionais não
oferecem mais os instrumentos com os quais possamos descrevê-los. Sintomaticamente, o
autor reúne em suas duas últimas obras, comentários específicos sobre a formulação de uma
epistemologia dos observadores no sentido de ajudar a compreender algo que iniciou há
quatro décadas a trajetória de estudos de recepção, ao se dedicar a escuta de enfermos
mentais, visando descrever o funcionamento enunciativo daqueles alcunhados como
neuróticos, fóbicos e obsessivos.
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A análise da comunicação verbal dos pacientes possibilitou, enquanto sistematização,
o primeiro exercício sobre a formação das gramáticas, noção esta que seria capital para o
complexo trajeto de estudos sobre produção de sentidos (Verón, Slukzi, 1970). Em um
balanço sobre seus primeiros estudos, há duas décadas, retomava o tema da “epistemologia
dos observadores” firmando que um dos futuros desafios dos estudos de comunicação
representava o seu papel para “esta complexa articulação produção de sentido em produção e
produção de sentido em recepção” (Verón, 1996:21). Há dois anos, em suas últimas obras,
elege esta questão há muito considerada por ele como uma “entidade enigmática” (Verón,
1995). No primeiro capítulo (Tempos e escrituras) do penúltimo livro Verón, (2011) e o
penúltimo capítulo (Epistemologia dos Observadores) do seu último livro (Verón, 2013),
dirige interrogações. Qual o lugar do pesquisador nestas interfaces tão complexas nas quais
estão envolvidos sentidos em produção e em recepção?
Sugere noções sobre uma epistemologia do observador que estão calcadas em três
níveis de observação – os de primeiro, segundo e terceiro graus. O primeiro, que se refere ao
fato de que todos atores sociais observam sejam outros atores e processos sociais. O de
segundo grau, que diz respeito ás observações feitas por outros atores – como os dos sistemas
midiáticos –, sobre práticas dos atores de modo geral; e o de terceiro grau que aponta
processos observacionais que especialistas como pesquisadores, fazem dos peritos midiáticos,
por exemplo, observando a atividade dos atores sociais de modo geral. Tais níveis se
complexificam, via entrelaçamentos indicando que eles se acoplam em termos de atividades
comunicacionais, que envolvem vários sistemas, que se interpenetram através de operações
que se sustentam em suas gramáticas e lógicas. Tal dinâmica institui uma outra atividade
circulatória e põe por terra pressupostos lineares do funcionalismo segundo os quais a
atividade de produção de sentido estaria calcada apenas em um determinado sistema. Ou seja,
discorda do “pressuposto de que é a partir do ponto de vista do ator e de suas intenções que se
deve ter um discurso sobre a totalidade da circulação do sentido que alimenta aqui mesma as
ilusões” (Verón, 2004: 84). Sobre a atividade destes três processos observacionais repousaria
uma complexidade que apontaria, dentre outros efeitos, a questão da indeterminação dos
sentidos.
A racionalidade destas articulações contempla o processo de comunicação engendrado
em torno das duas tríades; da descontinuidade das gramáticas, dos acoplamentos entre
sistemas, mas em torno de lógicas distintas. Se pensarmos sua pertinência para uma teoria da
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recepção, veremos que o cenário do trabalho em que pesquisadores fazem observações sobre
as relações entre mídia e atores sociais é, por natureza interrogativo. Neste emaranhado de
circuitos, a epistemologia da terceiridade sugere aos pesquisadores que ao observar as
relações entre sistemas sociais (midiáticos) e os atores deveriam observar suas próprias
operações, segundo autorreflexividade que os ajudaria a compreender algo mais do que as
estruturas.Como por exemplo, por que os receptores não estão mais lá onde eles –
pesquisadores – admitem que eles sempre estiveram?
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