O CONTINUUM DO PROCESSO DE CONSCIENTIZAÇÃO FONOLÓGICA
ENTRE DOIS E QUATRO ANOS DE IDADE
Clarice Lehnen Wolff1
RESUMO: Na literatura científica é notável o interesse e a evolução nos e dos estudos em consciência
fonológica. Esses enfatizam sua importância para a criança no processo da construção da escritura em
culturas que utilizam o sistema de representação alfabético. A consciência fonológica pode ser tomada
como “a habilidade de refletir sobre os sons da fala e sua organização na formação das palavras”
(MENEZES, 1999). Observa-se que essa consciência não se forma de um momento para outro; parece
haver um continuum, um processo que se inicia com a mera percepção dos sons, passa pela
sensibilidade e culmina na consciência plena. O presente trabalho relata um estudo sobre
comportamentos de sensibilidade fonológica em crianças de dois a quatro anos de idade, dentro do
enfoque de um continuum de conscientização fonológica. Para isto, foi desenvolvido um instrumento
em forma de livro, onde a criança é convidada a interagir com a narrativa do personagem. É feita uma
estimulação à atividade linguística na própria história apresentada, incentivando que a criança “siga a
brincadeira” dentro do mesmo parâmetro cognitivo, conforme sua percepção da mesma. São propostas
tarefas baseadas nos níveis menos complexos do instrumento CONFIAS (MOOJEN et al, 2003), de
consciência da sílaba (síntese, segmentação, identificação de sílaba inicial, identificação de rima,
produção de palavra com a sílaba fornecida). Foi aplicado um teste piloto a cinco crianças dentro dessa
faixa etária, sendo gravado e após transcrito para análise quantitativa e qualitativa dos dados. As
famílias também responderam a um questionário sobre o comportamento da linguagem familiar e a um
levantamento da linguagem expressiva da criança, através da Lista de Avaliação do Vocabulário
Expressivo (Capovilla & Capovilla, 1997). Os dados apontaram tendências quanto ao que a criança
nessa faixa etária pode identificar e produzir em tarefas simples de consciência fonológica, com
destaque à síntese silábica e reconhecimento de sílaba inicial de palavra, aspectos que devem ser
incentivados pelas escolas de Educação Infantil como base para as futuras aprendizagens de leitura e
escrita. A interatividade das crianças com a narrativa também indica a possibilidade de tê-la como um
instrumento de incentivo à reflexão de linguagem para os pequenos.
PALAVRAS-CHAVE: consciência fonológica. Processo de aquisição. Crianças pequenas.
INTRODUÇÃO
Este trabalho se propõe a contribuir com os estudos sobre o desenvolvimento precoce
da consciência fonológica, apontando para o continuum deste processo de conscientização,
marcado pela sensibilidade fonológica, dos dois aos quatro anos de idade. Trata-se de um
estudo piloto, ainda com uma pequena amostra de dados, mas do qual já é possível produzir
reflexões pertinentes para que se leve em conta este momento do desenvolvimento linguístico
infantil, principalmente ao mostrar capacidades que a criança já manifesta muito cedo e que
precisam ser estimuladas desde então, tanto pela família como pela escola.
1 Fonoaudióloga do Curso de Fonoaudiologia da UFRGS; doutoranda do PPGL-PUCRS. Email:
O estudo é realizado a partir de parâmetros psicolinguísticos sobre o desenvolvimento
da consciência fonológica e apresenta um instrumento criado pela autora, ainda em estudo, em
formato de livro, que propõe a interação da criança com tarefas de reflexão fonológica de
nível silábico e intrassilábico, consideradas como as mais simples no desenvolvimento
infantil.
O CONTINUUM DA CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA
A consciência fonológica, tratada neste artigo, constitui um dos níveis da consciência
linguística, mais ampla, que também abrange os níveis semântico, sintático, morfológico e
pragmático. Ela pode ser tomada como “a habilidade de refletir sobre os sons da fala e sua
organização na formação das palavras” (MENEZES, 1999), e se integra com os demais
níveis de consciência linguística.
As etapas que levam à consciência fonológica se desenvolvem através de um
continuum. Não são etapas estanques que se sucedem. Os comportamentos se modificam na
interação entre os novos conhecimentos adquiridos no meio e os pré-existentes, conforme as
possibilidades que o amadurecimento cognitivo oferece. É um processo de crescente
complexidade. Da consciência nula ou inconsciente até a consciência plena existem etapas
intermediárias, que correspondem a uma vasta gama de conscientização (POERSCH, 1998b).
A Psicolinguística denomina essas manifestações de sensibilidade fonológica.
Assim, há comportamentos que se sobrepõem no desenvolvimento, e as modificações
que esses sofrem sugerem que há níveis diferentes de sensibilidade e de consciência
fonológica. Dessa forma, por exemplo, podemos verificar que uma criança já tem consciência
sobre o número de sílabas de uma palavra, enquanto mantém a sensibilidade quanto às
diferenças entre os tamanhos das palavras ou à falta de uma sílaba em uma palavra
pronunciada, sem necessariamente conseguir nomear qual é a sílaba ausente; esses
comportamentos estão relacionados em diferentes graus de complexidade.
Gombert (1992, 2013) distingue, seguindo autores como Content (1985), entre a
habilidade de analisar a fala explicitamente em seus componentes fonológicos daqueles
processos inconscientes e automáticos de análise pelos quais a fala é habitualmente percebida
e compreendida. É diferente tomar uma palavra como objeto e perceber que ela é constituída
por segmentos isoláveis, como sílabas e fonemas, por exemplo, do que perceber as palavras
como unidades de diferentes tamanhos. Porém, esse mesmo autor ressalta a importância
dessas habilidades precoces de distinguir sons linguísticos, que constituem um pré-requisito
não apenas para as habilidades de consciência fonológica, mas para a compreensão da
linguagem. Cielo (2001, p.32) também destaca esse aspecto da sensibilidade fonológica,
postulando, em consonância com Flores (1998) e Poersch (1998b), que tais manifestações
infantis conduzem à metalinguagem, consciente e verbalizável. Acrescenta que a
sensibilidade se refere a todas aquelas manifestações de consciência infantis que ainda não
estão desprendidas do contexto, mas que, ao mesmo tempo, deixam evidente preocupação
com as formas linguísticas.
Esse pensamento é compartilhado por Sim-Sim e col. (2008), que enfatizam a
importância do domínio da linguagem oral no desenvolvimento infantil para que as crianças
possam, aos poucos, se distanciar com relação à língua e tomá-la como objeto de reflexão. De
acordo com essas autoras (idem, p.48), esses processos de reflexão, ainda que intuitivos,
“podem incidir sobre os segmentos sonoros das palavras (consciência fonológica), sobre a
identificação de palavras nas frases (consciência da palavra) ou sobre a adequação gramatical
das frases (consciência sintática)”.
Gombert (2003, p.19) salienta que o fato de as capacidades de reflexão e de
autocontrole intencional estarem ainda pouco desenvolvidas nas crianças pequenas não
significa que os tratamentos linguísticos por ela operados não sejam controlados de alguma
forma. Este autor sugere o termo epilinguísticos a esses comportamentos que diferem
qualitativamente de uma reflexão intencional e controlada pelo sujeito, como é o caso da
atividade metalinguística propriamente dita.
Cielo (2001) verifica que, de modo geral, as pesquisas indicam a seguinte sequência
com relação à emergência das habilidades em consciência fonológica, em ordem crescente:
identificação e produção de rimas; habilidade em consciência silábica; habilidade em
consciência fonêmica; consciência de traços fonéticos. Essas habilidades correspondem aos
níveis de consciência fonológica descritos na literatura, e cada um destes níveis engloba
diferentes habilidades que variam em complexidade.
A necessidade de identificar os variados graus de dificuldade na execução de tarefas
de consciência fonológica motivou inúmeras pesquisas nessa área. Usualmente, são
preconizados nos diversos estudos os níveis de consciência fonológica identificados por
Goswami e Bryant (1990): nível das sílabas; nível das unidades intrassilábicas; nível dos
fonemas.
O primeiro nível refere-se à capacidade da criança em dividir as palavras em sílabas.
Gombert (1992) propõe que a sílaba é a unidade natural de segmentação da fala, sendo mais
fácil para a criança do que as unidades intrassilábicas e fonêmicas. Desde cedo, as crianças
apresentam a habilidade de dividir uma palavra em suas sílabas oralmente, sendo um
excelente indicativo de que possuem um nível de consciência fonológica, destaca Freitas
(2004).
O nível das unidades intrassilábicas se refere à divisão em unidades maiores do que
um fonema individual, mas menores do que uma sílaba. É a capacidade de o sujeito
reconhecer que palavras podem iniciar ou terminar com os mesmos sons, constituindo as
aliterações e rimas, respectivamente. As rimas, em especial, parecem fazer parte ao natural do
desenvolvimento linguístico, aparecendo na vida das crianças desde cedo, em músicas,
histórias infantis e brincadeiras (GOSWAMI & BRYANT, 1990, RUEDA, 1995, FREITAS,
2004). Talvez seja uma tarefa que ofereça certa facilidade por não exigir propriamente uma
competência analítica, mas uma sensibilidade a similaridades fonológicas (MAGNUSSON,
1990).
O terceiro nível refere-se à capacidade de dividir as palavras em fonemas, ou seja, nas
menores unidades de som que podem modificar o significado de uma palavra. Também é
chamado de consciência fonêmica. Como já referido, é a habilidade que exige maior nível de
consciência fonológica, e costuma estar relacionada ao contato com a escrita.
No Brasil, protocolos de avaliação têm sido propostos para verificar os diferentes
níveis de consciência fonológica, com objetivos de pesquisa, aplicação clínica ou prevenção a
dificuldades de aprendizagem. Inicialmente eram adaptados de instrumentos utilizados em
outros países. O CONFIAS (Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial,
2003), por exemplo, foi desenvolvido por Moojen e colaboradores. Diferencia-se por levar em
conta as características fonológicas do português e por ter uma preocupação tanto com os
dados quantitativos como qualitativos. É um teste abrangente e sequencial, graduando a
dificuldade em tarefas que vão do simples ao complexo. Possibilita a investigação das
capacidades fonológicas relacionadas às hipóteses de escritura elaboradas por Ferreiro e
Teberosky (1991). Dessa forma, ele tem seu uso indicado para o trabalho com crianças não
alfabetizadas e em processo de alfabetização, bem como para o tratamento de dificuldades de
aprendizagem, tendo aplicação recomendada para crianças a partir de quatro anos. O
instrumento é dividido em duas partes. A primeira corresponde à consciência da sílaba e é
composta por tarefas de: síntese, segmentação, identificação de sílaba inicial, identificação de
rima, produção de palavra com a sílaba fornecida, identificação de sílaba medial, produção de
rima, exclusão de sílaba, transposição silábica. A segunda parte corresponde à consciência
fonêmica, e é composta por tarefas de: produção de palavra que inicia com o som fornecido,
identificação de fonema inicial, identificação de fonema final, exclusão, síntese, segmentação,
transposição. A fim de reduzir a interferência da memória operacional (de curto prazo) e da
fadiga, incluiu gravuras coloridas, que são apresentadas em “janelinhas” para a criança, uma
de cada vez.
Para a elaboração do CONFIAS, foram utilizados determinados critérios, que serviram
também como referência à construção do presente instrumento:
- seleção de palavras que fazem parte do vocabulário da criança;
- utilização de figuras correspondentes às palavras-modelo para auxiliar a memória das
crianças e obter um instrumento lúdico;
- atenção ao número de sílabas e uso prevalente de estruturas simples, do tipo
consoante-vogal.
O presente trabalho apresenta a análise de um estudo piloto quanto aos
comportamentos de sensibilidade fonológica observados em crianças de dois a quatro anos de
idade, dentro do enfoque de um continuum de conscientização fonológica, e as observações
sobre o instrumento de avaliação utilizado.
ASPECTOS METODOLÓGICOS DO ESTUDO
Este estudo se baseia na aplicação piloto de um instrumento de avaliação de
sensibilidade fonológica voltado a crianças de 2 a 4 anos de idade, com 5 crianças de famílias
de classe média, do círculo de amizades da presente autora, sendo que 4 delas frequentavam
escola de educação infantil privada.
O instrumento elaborado tem o formato de livro, composto por uma narrativa simples,
intitulada “Juca e seus amigos”. Este possui texto escrito, ilustrações grandes e coloridas
feitas pela presente autora. As atividades de reflexão linguística estão inseridas na narrativa,
baseadas nos níveis mais simples de consciência fonológica, relacionados à sílaba e
intrassílaba (síntese silábica; recepção de rima; análise silábica; recepção da sílaba inicial;
uma tarefa de reconhecimento da palavra, onde se altera algum elemento linguístico na
produção da palavra para verificar se a criança identifica o que está estranho), convidando a
criança à interação com o personagem “Juca”.
O instrumento é a seguir exemplificado com trechos de cada uma das tarefas
fonológicas encontradas:
1 - síntese silábica:
“Vamos ajudar o Juca a encontrar seus brinquedos? Ele vai dizer bem devagar o nome de seus
brinquedos preferidos! Vamos descobrir quais são!”
BA-LÃO – figuras de balão e de barco (a criança aponta qual ela conclui ser o brinquedo dito)
2 – recepção de rima:
“Agora, você vai conhecer os amigos do Juca. E do que será que eles gostam? Vamos ver!
(fornece dois exemplos de rimas) - Agora vamos descobrir do que os outros amigos gostam!”
ESSE É O JOÃO.
ELE GOSTA DE... – figuras de maçã e de avião (a criança aponta a figura que considera o
brinquedo escolhido pelo amigo do Juca)
3 – análise silábica:
“O Juca brincou tanto que ficou com sono. Quando ele está com sono, fala assim: BO-LA;
MA-ÇÃ... Vamos falar que nem ele?”
FIGURAS de 2 a 3 sílabas (chave; pato; picolé; macaco)
4 – Recepção de sílaba inicial:
“Vamos ajudar o Juca a encontrar o que procura?”
MA – figuras de casa e de maçã (a criança ouve a sílaba dita pelo leitor e aponta o que Juca
procura)
5 – tarefa de palavra:
“Ih! O Juca está falando diferente! É assim que se fala?”
BO-BOLA – a criança reage à forma como a palavra é dita e esta é registrada.
As mães participavam do momento de leitura feito pela pesquisadora, sendo instruídas
a não responderem pela criança. Foi feito registro de gravação em áudio que, logo após as
entrevistas, era transcrito, a fim de não perderem-se elementos importantes da interação –
estes eram registrados como anotação pela pesquisadora no protocolo de avaliação, que era
preenchido para objetivar as respostas. As famílias também responderam a um questionário
sobre o comportamento da linguagem familiar e a um levantamento da linguagem expressiva
da criança, através da Lista de Avaliação do Vocabulário Expressivo - LAVE (Capovilla &
Capovilla, 1997).
As visitas foram previamente agendadas com as mães das crianças, em suas casas, e
não houve dificuldades em realizar-se a leitura e a gravação com nenhuma das selecionadas
para este momento da pesquisa.
Para a comparação entre os comportamentos observados na evolução do continuum, o
grupo de crianças estudadas está sendo dividido em quatro faixas de idade, designado por
critério aleatório, com intervalos de seis meses entre cada uma. Dessa forma, temos 4 grupos
de crianças: grupo 1 (G1), de 2:0 a 2:5;29 (de 2 anos até 2 anos, 5 meses e 29 dias); grupo 2
(G2), de 2:6 a 2:11;29 (de 2 anos e 6 meses até 2 anos, 11 meses e 29 dias); grupo 3 (G3), de
3:0 a 3:5;29 (de 3 anos a 3 anos, 5 meses e 29 dias); grupo 4 (G4), de 3:6 a 4:0 (de 3 anos e 6
meses a 4 anos).
Nesta aplicação piloto, temos 5 sujeitos, distribuídos da seguinte forma:
G1 - 1 menino com 2:5;
G2 – 1 menina com 2:10;
G3 – 1 menino com 3:00; outro menino com 3:3;
G4 – 1 menino com 3:8.
São considerados graus diferentes no processo de sensibilidade, adaptados dos níveis
de consciência linguística propostos por Raymundo (2005, p.63). Essa autora considerou, a
partir do critério de consciência de erro linguístico, 5 níveis diferentes – inconsciente, pré-
consciente 1, pré-consciente 2, consciente, plenamente consciente. Em nossa pesquisa o
critério estabelecido é de sensibilidade fonológica, que será avaliada de acordo com a resposta
verbal e não-verbal dada pela criança: inconsciência / sensibilidade 1 / sensibilidade 2. Na
inconsciência a criança mostra-se indiferente ao estímulo verbal; na sensibilidade 1, a criança
mostra que percebe algo na estrutura fonológica, mas não identifica a resposta correta; na
sensibilidade 2, a criança percebe algo na estrutura fonológica e identifica a resposta correta.
A partir dos dados obtidos na aplicação do instrumento de sensibilidade fonológica,
busca-se uma gradação de níveis, de acordo com o comportamento que os sujeitos mostram
na execução da tarefa. A fim de objetivar esses dados para uma análise quantitativa, é
necessário estipular uma pontuação de execução, que traduza o mais fielmente possível o grau
de “dar-se conta” dos aspectos fonológicos. A proposta inicial foi pontuar-se 0, 1, 2, de
acordo com os níveis inconsciência, sensibilidade 1, sensibilidade 2, respectivamente.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após a análise dos protocolos de pesquisa preenchidos, salientam-se alguns dos
resultados encontrados nessa aplicação piloto. São analisadas as respostas e o instrumento em
si, quanto à sua estrutura.
- Quanto aos questionários familiares e LAVE - Lista de Avaliação do Vocabulário
Expressivo (Capovilla & Capovilla, 1997):
Esses foram úteis para confirmar um perfil familiar de convívio entre pais e filhos, que
brincam, leem histórias, e conversam com seus filhos; no mínimo um dos pais possui ensino
superior ou Pós-Graduação. No perfil de expressão de linguagem, o vocabulário mostrou-se
variado e adequado às suas faixas etárias. Na pergunta sobre se as crianças corrigem sua
própria linguagem e/ou a dos outros, foi interessante observar as diferentes respostas, já que
este comportamento fornece certo indicativo de atenção à forma da linguagem, relacionado ao
processo de conscientização da linguagem. Neste ponto tivemos como respostas dos pais: G1
– corrige a própria fala; G2 – corrige a fala dos outros; G3 – não referem correção da própria
fala nem dos outros; G4 – corrige a própria fala e a dos outros.
- Quanto à aplicação do instrumento em si, o livro “Juca e seus amigos”:
Num quadro de pontuação objetiva quanto ao desempenho das crianças nas tarefas
propostas, considerando 4 atividades em cada tarefa:
TAREFA G1 G2 G3 A G3 B G4 TOTAL
Síntese
Silábica
8 8 8 8 8 40
Recepção
de rima
8 0 6 6 4 24
Análise
Silábica
0 0 8 5 0 13
Recepção
de sílaba
inicial
8 8 8 6 8 38
Tarefa de
Palavra
2 8 0 8 8 26
TOTAL 26 24 30 35 28 141
Pontuação: inconsciência- 0; sensibilidade1- 1; sensibilidade2 – 2.
Número máximo de pontos por tarefa: 40.
A partir da tabela elaborada, a fim de compor-se um quadro objetivo, verificou-se que
a primeira tarefa proposta, síntese silábica, obteve 100% de acertos entre as crianças de todos
os grupos etários. Isso pode indicar uma facilidade muito grande com esta tarefa, que inclui
escuta e integração da palavra, nesse caso, apoiada por ilustrações. A tarefa de
reconhecimento de rima, de forma interessante, teve 100% de acertos pela criança
representante do primeiro grupo etário, mais jovem; os meninos do grupo 3 atingiram 6 dos 8
pontos possíveis, mas um deles teria atingido 100% de acertos caso a última resposta fosse
considerada positivamente, já que a reformulou após repetição do item, mostrando reflexão
sobre a questão. O outro menino do G3, após a primeira resposta equivocada, respondeu
acertadamente as demais, também mostrando evolução na sua reflexão. A criança do grupo 2
não pontuou, talvez por não ter compreendido a tarefa. A criança representante do grupo
etário mais velho obteve uma pontuação média, de 4 pontos; como é um menino atento às
questões de escrita, talvez já esteja se questionando sobre início e final de palavra, tendendo a
dirigir sua atenção para o início da mesma, que no sistema alfabético marca a letra inicial dos
nomes, mais trabalhadas em escolas infantis. A terceira tarefa, análise silábica, não teve
pontuação pelas crianças dos grupos G1, G2, e G4; as do grupo intermediário obtiveram
melhor desempenho, tendo obtido 8 e 5 pontos nessa tarefa. No seu total, foi a tarefa menos
pontuada das cinco propostas, o que será discutido a seguir quanto à formulação do
instrumento utilizado. A tarefa de recepção de sílaba inicial obteve boa pontuação geral,
chegando a 38 de 40 pontos possíveis. Apenas uma criança do G3 não reconheceu uma das
palavras pela sílaba inicial. A tarefa que envolvia palavra, ou foi bem pontuada, como no
caso de G2, G3 B, e G4, ou foi zerada, como no caso de G3A. O representante do G1 mostrou
sensibilidade a duas das palavras propostas, rindo do jeito falado, mas não verbalizou nada a
respeito destas, se enquadrando na categoria sensibilidade 1.
Qualitativamente, observou-se que as crianças tendem a expressar-se verbalmente na
maioria das tarefas, não apenas apontando o desenho, o que mostra seu envolvimento
cognitivo-linguístico com a atividade proposta. No momento em que expressam uma resposta
coerente, mostram que processaram a informação linguística e refletiram sobre ela de alguma
forma. Em tarefas como a da sílaba inicial, principalmente, isto ficou evidente nos grupos 2,
3B, e 4. Na tarefa de palavra isto também apareceu fortemente nos mesmos grupos.
No instrumento existem tarefas de execução, como a de síntese silábica, onde se refere
que o Juca está dizendo lentamente o nome de seus brinquedos preferidos, e a criança é
convidada a identificá-lo conforme a fala do personagem. A de análise silábica tem a mesma
forma de proposição, alertando que o Juca está com sono e falando devagar, e convidando a
falar como ele, fornecendo-se exemplos. Porém, as crianças não foram tão bem sucedidas
nessa execução. Este fato merece ser analisado, se ocorreu em função da dificuldade maior
em segmentar a palavra em sílabas, o que “desfaz” seu sentido, ou se a tarefa pode oferecer
dificuldade na sugestão de “falar como ele” (personagem), elemento de certa dificuldade
cognitiva, em função da característica mais egocêntrica de pensamento nessa faixa etária,
dificultando que a criança se coloque no lugar do outro. A tarefa de recepção de sílaba inicial
também se enquadra como de execução, sem exemplos, mas a partir de uma sugestão direta
de encontrar o que o Juca estava procurando e era dada a pista com a sílaba inicial. A tarefa
de recepção de rima necessitava um grau de inferência maior, pois seguia o raciocínio dado
pelo texto, sobre o que os outros amigos do Juca gostam, trazendo exemplos, sem, porém,
explicitar nenhum tipo de segmentação. Afora as dificuldades naturais que possam ocorrer no
reconhecimento de rimas, há este elemento cognitivo sugerido pela atividade proposta. No
entanto, ao se verificar o desempenho da criança menor, que identificou as quatro rimas,
verifica-se que o tipo de questão proposta não parece impor dificuldade maior, apontando
para a atenção às similaridades entre as palavras na resolução da tarefa. A menina do G2, de
2:10, na tarefa de rimas, zerou sua pontuação, provavelmente, por ter dado prioridade ao
sentido do verbo gostar, e ter escolhido o que ela gosta mais; mas também é possível que
realmente não estivesse atenta ao final das palavras, já que também destacou sílabas iniciais
em outras tarefas. O teste não possibilitou afirmar qual fator teve primazia. O menino do G3B
mostrou atividade reflexiva importante nessa tarefa: a primeira palavra ele não pontuou, mas,
nas demais, ele esteve atento e chegou a reformular sua resposta, sorrindo para a pesquisadora
ao refazê-la da forma que achava correta. Este mesmo menino foi muito bem sucedido na
análise silábica. O menino do G3A também foi bem sucedido na tarefa de rimas, mostrando
reformulação e atividade reflexiva quando se deparou com CACO/PEIXE ou
CACO/MACACO. Na análise silábica este menino também se mostrou reflexivo e atento ao
que era pedido; usou falar baixinho o “macaco”, ao invés de segmentar, mostrando
sensibilidade no nível 1. A tarefa de palavra convidava a criança a refletir sobre o que estava
“estranho” na forma como era falada. As crianças, em sua maioria, responderam que não
estava certo o jeito de falar, e corrigiam a palavra oralmente. Aqui também foi observado o
comportamento de rir e não corrigir, correspondendo ao nível de sensibilidade 1.
A partir do que foi levantado nesta primeira amostra, sendo este um teste piloto,
verificou-se que o instrumento poderia sofrer ajustes para ser novamente aplicado.
- Mais algumas observações sobre o teste:
Sobre o formato geral: os exemplos estiveram adequados; o formato de narrativa mostrou-se
atrativo para as crianças, bem como o tipo de ilustração utilizada e a distribuição das mesmas,
duas em cada página, evitando confundir-se o foco de atenção; o tempo de execução da leitura
e brincadeiras mostrou-se bastante adequado nos diferentes grupos etários.
Sobre as tarefas apresentadas: nem todas as tarefas permitiram uma adequada análise do grau
intermediário, que seria o de sensibilidade 1, pois este precisaria ser melhor explicitado em
seus comportamentos, analisando-se mais sujeitos nas suas respostas, e filmando inclusive
reações não-verbais que possam ter fugido à observação da pesquisadora no momento de
interação com a criança. A tarefa que melhor se prestou a essa análise foi a de palavra. Mas,
de qualquer forma, seria aconselhável o levantamento de outros comportamentos linguísticos
diferenciados entre as crianças e, talvez, a solicitação de alguma explicação adicional durante
o evento linguístico - ainda que seja necessário um grande cuidado para não cansar e
desmotivar a criança durante a atividade, onde ela tem a expectativa de uma progressão
narrativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo mostrou, mesmo sendo um piloto com uma amostra pequena, e com um
instrumento sujeito a aperfeiçoamentos, que as crianças, muito precocemente, já possuem
uma sensibilidade fonológica bastante desenvolvida, chegando a processos de reflexão
consciente, muitas vezes, sobre a estrutura da palavra. As tarefas de sílaba inicial e de síntese
silábica, que resultam na formação de uma palavra com sentido e contextualizada, mostraram-
se as mais atrativas e de fácil execução pelas crianças testadas. A tarefa de análise silábica
mostrou-se, apesar de ser cognitivamente simples, de difícil execução por estas, talvez por
realmente deter-se mais na forma, indicando aqui um aspecto do continuum, pois está mais
distanciada do sentido real da palavra, que guia a percepção nesse momento do
desenvolvimento. A tarefa de reconhecimento de rima confirmou uma sensibilidade precoce à
similaridade das palavras em versos, bem como oscilações na sua detecção ao longo do
desenvolvimento, sendo que as crianças que parecem estar mais envolvidas com a sílaba
inicial de alguma forma, como o caso do menino de 3:8, parecem ter mais dificuldade em
considerar esta similaridade no final de palavra.
Para além do aspecto avaliativo, este instrumento elaborado também parece
interessante como uma narrativa instigante de comportamentos de reflexão fonológica,
podendo ser utilizado para estimular o processo de conscientização fonológica, brincando
com as palavras dentro de um contexto narrativo e incentivando a interação da criança na
história contada. Este tipo de atividade se faz necessária na Educação Infantil, período em que o
desenvolvimento linguístico se torna base fundamental para as aprendizagens da leitura e da escrita
posteriores.
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