O DIVÓRCIO E A NULIDADE DE CASAMENTO:ESTUDO DE CASO NAS TENSÕES NA VIDA CONJUGAL
DIAMANTINENSE DE 1863 A 19331
Dayse Lúcide Silva Santos2
O presente artigo utiliza como copus documental básico processos de divórcio e
de nulidade de casamento ocorridos na Arquidiocese de Diamantina no período de 1863
a 1933. O objetivo principal deste estudo é compreender tensões na vida conjugal
diamantinense sob o olhar vigilante da Igreja Católica e da sociedade em questão, bem
como entender as estratégias utilizadas pelas mulheres. Não se pode esquecer que esses
processos espelhavam uma linguagem jurídica construída segundo as leis canônicas que
previam a possibilidade de concessão do divórcio desde que determinados
condicionantes estivessem presentes no relacionamento. Assim, a ação de homens e
mulheres era norteada pela prática cotidiana e refletiam seu desajuste em relação às
normas que o Estado e a Igreja Católica pretendiam instituir como pilares do casamento.
O marco temporal (1863 a 1933) foi escolhido de acordo com o que as fontes
apontaram, notadamente os processos de divórcio e de nulidade de casamento. A
diocese de Diamantina desmembra-se do Bispado de Mariana em 1854 e somente em
1863 é que o Bispo D. João Antônio dos Santos assume tal bispado, procurando
implementar o seu projeto moralizador. Também, o clero local tornou-se mais presente
no dia-a-dia da população, procurando controlar com mais eficácia a moralidade pública
e as relações familiares, especialmente aquelas que envolviam homens e mulheres. O
desejo de mudança, no que se refere ao casamento monogâmico e indissolúvel foi
constantemente questionado durante todo esse período até o ano de 1933. Nessa data
tem-se registrado o primeiro processo de desquite (âmbito civil) na Comarca Judiciária
de Diamantina a pedido de uma mulher. Na verdade, as pessoas recorriam
exclusivamente à Igreja para resolver os impasses que tornavam a vida conjugal
intolerável.
1 Trabalho adaptado da Dissertação de Mestrado defendida na UFMG, Outubro/2003, sob orientação daProf. Dra Júnia Ferreira Furtado. Título original: “Entre a norma e o desejo: estudo das tensões na vidaconjugal diamantinense de 1863 a 1933”.2 Mestre em História – FAFICH/UFMG, Professora de História do Brasil (Minas I) na Faculdade deFilosofia e Letras de Diamantina – FAFIDIA/FEVALE.
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É mais fácil, para o historiador, conhecer as relações conjugais em situações de
conflito, pois as dificuldades da convivência conjugal tendem a ficar mais evidentes e
públicas nessas situações, deixando vários registros históricos. O cansaço, o abandono
do lar, a traição, a depauperação dos bens da família, os maus tratos, a intolerância e a
coação constituem aspectos de tensão na vida conjugal dos mineiros detectados na
documentação sobre a separação matrimonial, permitindo vislumbrar dimensões da vida
conjugal.
Neste sentido, este artigo busca estudar mais profundamente o comportamento
dos casais em situações de conflito objetivando entender a complexidade da
convivência conjugal. A este respeito, Maria Beatriz Nizza da Silva ao analisar a
sociedade colonial brasileira, afirmou quenão há dúvidas de que é mais fácil conhecer as relações conjugais em situações de conflito doque em períodos normais da vida do casal. Estes simplesmente não repercutem nadocumentação. O historiador encontra-se assim perante um dilema: ou se debruça sobre obrasnormativas, em geral produzidas pela Igreja (catecismos, directórios de confessores,prontuários morais), que regulamentavam cuidadosamente a vida conjugal em todos os seusaspectos; ou tentar delinear o comportamento normal a partir das situações anormais deconflito. A primeira é mais fácil. A essa imagem ideal do casal preferimos contudo contrapor aimagem real, ainda que fragmentária, contida na documentação acerca das desavençasconjugais.3
Soma-se a isto, a questão do distanciamento entre o âmbito legislativo e a prática
cotidiana, a qual muitas vezes evidenciou o papel cumprido pelas mulheres como
desencadeadoras desses processos que podiam culminar em separações. As atitudes
mais autônomas das mulheres apontaram para a possibilidade de alteração da realidade
vivida, caminhando em direção ao processo de desorganização do padrão familiar,
contrário ao projeto moralizador levado a cabo pelo Bispado de Diamantina. No século
XIX, como afirmou Eni de Mesquita Samara ao analisar a sociedade paulistana, os
elementos do sexo feminino moveram mais ações de divórcio e anulação de casamento
do que o sexo oposto. Na primeira metade do século XIX, foram registrados 401
processos de separação em São Paulo, sendo que no período posterior, este número caiu
para quase metade (182 processos). De forma geral, foram registrados 583 processos
durante aquele século em São Paulo.4
As justificativas analisados por Samara baseiaram-se em três questões básicas.
Inicialmente, ela observou que a mulher, ao pedir às autoridades competentes o
3 SILVA, M. B. Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil. Op. cit. p. 117-8.4 SAMARA, Eni de Mesquita. A mulheres, o poder e a família. São Paulo, século XIX. Op. cit. p. 116-118
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divórcio, estava rebelando-se à insubmissão de seu papel social, revelando com isso a
opressão feminina no ambiente conjugal. Também, foi detectado que outros problemas
infligiam a vivência conjugal em São Paulo no século XIX, permitindo à mulher atuar
de maneira mais livre. Por fim, a idéia de que a mulher devia excessiva obediência ao
marido vinha sendo questionada e, aos poucos, cedendo lugar à igualdade de direitos.5
Na Arquidiocese de Diamantina,6 o quadro sobre as separações tomou feição
semelhante ao esboçado para São Paulo,7 porém, em número muito menor. Os
processos de separação conjugal registrados em Diamantina referem-se ao período em
que a cidade era Diocese (1854 a 1916) e posteriormente, Arquidiocese (a partir de
1917). Assim, durante a segunda metade do século XIX, as separações conjugais podem
ser classificadas da seguinte maneira:
5 Ibidem. p. 123-24.6 A Diocese de Diamantina desmembrou-se do bispado de Mariana em 1854. Em 1917, foi criada aArquidiocese de Diamantina, tendo como primeiro Arcebispo D. Joaquim Silvério. A área que a diocesepassou a controlar era muito grande, correspondendo a praticamente a quase todo o norte de Minas. Aarquidiocese de Diamantina cuidava das seguintes comarcas/regiões segundo divisão eclesiástica: I –Comarca do Bom Pastor; II – Comarca do Sagrado Coração (Curvelo); III - Comarca da Boa Esperança(Serro); IV – Comarca das Cinco Chagas; V – Comarca das Sete dores; VI – Comarca dos Santos Anjos.7 Conferir em anexo a listagem completa dos processos de divórcio e nulidade de casamento registradosna Mitra Arquidiocesana de Diamantina.
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TABELA 01: RELAÇÃO DOS PROCESSOS DE DIVÓRCIO8 APRESENTADOS NO
TRIBUNAL ECLESIÁSTICO DE DIAMANTINA / SÉCULO XIX
Ano Envolvidos Autor (a) Localidade Natureza doProcesso
1866 Francelina Pereira GuimarãesTorquato Pereira de Oliveira
A mulher São Gonçalo do Rio Preto Divórcio
1866 Rita Celestina Lessa NetoPedro Alexandre Neto Leme
A mulher Serro Divórcio
1869 Luiza Clemência de AraújoManoel Frederico da Costa Pinto
A mulher Diamantina Divórcio
1872 João Henrique PereiraFrancisca Maria da Encarnação
O Homem Cafundós Grande – RioVermelho
Divórcio
1872 Francisca de Souza PereiraLeocádio Gonçalves Chaves
A Mulher Serro Divórcio
1876 Antônia Marcelina do Esp. SantoPatrício Gonçalves da Costa
A Mulher Penha de França -Itamarandiba
Divórcio
1876 Rosália Farnezi de AraújoAlferes Joaquim Ferreira Araújo
A Mulher Serro Divórcio
1876 Firmino Ferreira TorresFrancelina Maria de Jesus
O Homem Diamantina Divórcio
1881 João Antônio de CamposMaria Augusta de A Coutinho
O Homem Arassuahy Divórcio
1882 Francisco Urbano DiasAmérica Augusta de Oliveira Dias
A Mulher Diamantina Divórcio
1882 Luíza Mendonça SilvaJosé Maria Silva
A Mulher Diamantina Divórcio
Fonte: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina, Processos de Divórcio, caixa n.º 199 e 200.
Como é possível perceber a partir da observação dos dados acima, durante o
século XIX, as mulheres deram entrada em processos de separação conjugal numa razão
maior que os homens.
Estes números revelam que, mesmo diante da implementação de um projeto
moralizador, o qual circunscrevia a mulher ao ambiente doméstico e a considerava
submissa ao homem, as mulheres não se resignaram com passividade à situação
considerada por elas intoleráveis no seio das relações conjugais. Tanto as Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia (vigente no Brasil sem alterações substantivas até
1917), quanto o Código de Direito Canônico (vigorou a partir de 1917) preocuparam-se
em regulamentar as condições aceitáveis para que os cônjuges pudessem impetrar uma
ação de divórcio perpétuo ou temporário junto ao poder eclesiástico. Apesar disso, foi
possível perceber que por detrás dos argumentos estabelecidos e admitidos pela
8 A palavra divórcio era utilizada no direito canônico como sinônimo de separação de corpos, bens ehabitação dos cônjuges, sem permitir novas núpcias e produzir a anulação do casamento. Assim, odivortium a mensa et thorum era a separação dos bens e coabitação dos casais. As causas para aefetivação de um processo de divórcio perpétuo, segundo a legislação, era: ocorrência do crime deadultério; abandono do lar; o não cumprimento das obrigações maritais e união carnal entre adulterinos. Oprocesso de divórcio foi realizado pela Igreja durante todo o período colonial e imperial brasileiro, atéperder força com o advento da República.
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codificação canônica, outras razões se revelaram como práticas sociais estabelecidas e
que estimulavam as separações.
Já no XX (até 1933), a feição dos processos mudou bastante. O homem passou a
mover a maioria das ações de separação contrariando a tendência do século anterior.
Uma mudança significativa no cenário dos conflitos familiares foi a mudança da
natureza dos mesmos: enquanto os processos de divórcio foram majoritários no século
XIX, no período posterior os pedidos visavam a nulidade do casamento. A tabela 02
demonstra bem esta situação.TABELA 02: RELAÇÃO DOS PROCESSOS DE NULIDADE DE CASAMENTO9
APRESENTADOS NO TRIBUNAL ECLESÁSTICO DE DIAMANTINA / SÉCULO XX
Nome Envolvidos Autor (a) Localidade Natureza doprocesso
1902 Augusto Farnezi de MacedoHenriqueta Velosina dos Santos
O Homem Diamantina Nulidade
1913 Augusto José da SilvaCeluta do Nascimento
O Homem Ponte Nova Nulidade
1920 Ataliba Alves PereiraGabriela Antônia Magdalena
O Homem Itambé do Mato dentro/Serro
Nulidade
1923 Ataliba Alves Pereira (Apelação emMontes Claros)Gabriela Antônia Magdalena
O Homem Itambé do Mato Dentro/Serro
Nulidade
1922 Antônio Ribeiro CaldasMaria Nicolina Duarte
O Homem Itambé do Mato Dentro/Serro
Nulidade
1925 Antônio Ribeiro CaldasMaria Nicolina Duarte
O Homem Itambé do Mato Dentro/Serro
Nulidade
1932 João Lemos de GouvêaSebastiana Chaves de Freitas
A Mulher Nsa Sra da Graça deCapelinha
Nulidade
1933 João Lemos de Gouvêa (Apelação emMontes Claros)Sebastiana Chaves de Freitas
A Mulher Nsa Sra da Graça deCapelinha
Nulidade
1933 Vinicius Marcus Nogueira PenidoAmália de Oliveira
O Homem Belo Horizonte(Arquidiocese)
Nulidade
Fonte: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina (AEAD), Processos de Divórcio, caixa n.º 199 e 200.
Somando o número de processos de divórcio e de nulidade de casamento,
arrolados durante o século XIX e XX, foram registrados 25 processos, sendo que o
homem deu entrada em 11 desses pedidos, e a mulher em 13. Observar esses dados de
forma muito geral é perigoso, pois corre-se o risco de se perderem informações sobre as
características das tensões no seio da família, uma vez que a percepção das mudanças
9 Por nulidade de casamento entende-se a separação de dois indivíduos que tentaram realizar umcasamento que possuía impedimentos que o caracterizava com nulo, inválido. Esses impedimentospodiam ser dirimentes ou impedientes e eram estabelecidos pela codificação eclesiástica. Osimpedimentos dirimentes (Igreja tem o poder de dirimir um equívoco sobre o casamento) eram aquelesque se assentavam nas seguintes situações: grau de parentesco até o segundo grau; união de menores(Homem:16; Mulher:14); coação física; impotência sexual ou ausência de órgãos sexuais; engano gravesobre o cônjuge; Homicídio; rapto; união entre adotante e adotado e pública honestidade. Já osimpedimentos Impedientes para o casamento eram aqueles em que se baseavam no casamento com
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ocorridas (especialmente na tendência dos autores do processo de separação) ficaria
dificultada. Ou seja, os processos não devem ser tratados pelo viés quantitativo em si,
mas sim, interrogados constantemente a respeito dos contextos nos quais eles se
inserem, procurando compreender a complexidade das tensões no relacionamento
conjugal.
Assim, pergunta-se porque no século XIX a preponderância feminina como
autora nos pedidos foi aos poucos perdendo preeminência para o homem, o que revela
que o relacionamento entre marido e mulher passou por uma série de mudanças. Tais
mudanças, a partir da segunda metade do século XIX, devem ser explicadas por razões
de cunho econômico, social e jurídico.
Prosseguindo o exame desses quadros, algumas inquietações surgiram, as quais
puderam ser sistematizadas da seguinte forma. Em primeiro lugar, porque durante a
segunda metade do século XIX, a maioria dos processos de separação (Divórcio) têm a
mulher como desencadeadora do pedido de separação conjugal junto ao poder
eclesiástico? Em segundo lugar, porque as mulheres, no início do século XX não
entraram com pedido de nulidade de casamento sendo que isto ocorreu somente depois
de 1940? Em terceiro lugar, como se explica a mudança da natureza dos processos na
virada do século?
1) À espreita da violação do lar: o avesso da norma?
É importante compreender o motivo que as mulheres utilizaram para iniciar um
processo de separação conjugal. Inicialmente é bom lembrar das posturas mais
autônomas que as mulheres tiveram no decorrer do século XVIII mineiro.10 Mas,
mesmo nos séculos seguintes, autonomia e desejo permearam os relacionamentos
conjugais, os quais questionam o padrão de mulher submissa usualmente aceito como
corrente.
O divórcio não era uma prática divulgada nem incentivada pela Igreja. Outras
razões, para além daquelas que compõem o rol das situações previstas pela legislação
pessoas heréticas; no voto de castidade, no grau de consangüinidade em 1º grau e o casamento compastores da Igreja.10 A este respeito confira os seguintes trabalhos: DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do corpo: Condiçãofeminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1995;DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2ed. São Paulo:Brasiliense, 1995; FIGUEREDO, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas Famílias. São Paulo: Hucitec,1997; FURTADO, Júnia Furtado. Pérolas Negras: mulheres livres de cor no Distrito Diamantino. In:FURTADO, J. F. (org) Diálogos Oceânicos. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001, p. 81-121 eFURTADO, J. F. Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Ciadas Letras, 2003.
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eclesiástica, ditas nas entrelinhas dos pedidos de separação de corpos perpétua ou
temporária – o divórcio –, evidenciaram diversos conflitos no relacionamento conjugal.
O medo de que um dos cônjuges “desbaratasse” os bens materiais do casal, numa época
em que o dote ainda era comum, juntamente com a acusação de adultério e maus tratos,
estimularam muitas das mulheres a moverem um processo de divórcio e a passarem,
teoricamente, a “viver em continência sexual”, uma vez que o casamento continuou a
ser mantido (até 1977) como uma união indissolúvel.
Alguns aspectos gerais dos processos de divórcio são relevantes antes mesmo de
adentrar a uma análise mais complexa de seus conteúdos. Desse modo, primeiramente
deve-se destacar que não foi possível definir um tempo médio de permanência do
casamento, ou seja o intervalo de tempo entre a data do casamento e a data do pedido de
divórcio, dada a ausência de informação nos processos. Apesar disso, foi possível
perceber que alguns desses casais viveram entre 4 e 30 anos o casamento.11 Também foi
utilizada a expressão “viveram juntos por muitos anos”, sem, no entanto, defini-los.
Durante esse tempo de vida conjugal (4, 5, 10, 13, 30 anos) alternaram-se momentos de
brigas e de harmonia, até que a convivência ficasse insuportável, fazendo com que os
casais se separasse.
Em segundo lugar, alguns detalhes dos processos deixaram entrever algumas
informações valorativas a respeito das testemunhas arroladas. Essas testemunhas eram,
em sua grande maioria, homens (46) e, minoritariamente, mulheres (7). As pessoas que
testemunhavam nesses processos eram geralmente casadas (34), havendo poucos
solteiros (14) e viúvos (5). É bem possível de se compreender que a sociedade entendia
que os indivíduos casados ofereciam informações mais seguras e ponderadas a cerca da
vida conjugal, principalmente os homens. Tal situação pode ser confirmada mediante a
idade por eles declarada, a qual concentrava-se entre os 40 e 60 anos de idade.
Obviamente que isto não excluiu testemunhos na faixa de idade de 70 e de 20 a 30 anos.
O convívio cotidiano com os principais envolvidos no processo era um fator importante
para o poder eclesiástico, pois apontava para um maior conhecimento dos pormenores
do casal em questão, o que conferia segurança aos rumos que o processo tomaria. Os
11 O tempo de vida marital que alguns casais tiveram de convivência ou até pedir o divórcio variou de 4 a30 anos: Antônia Marcelina e Patrício Gonçalves do Espírito Santo: “muitos anos de convivência”; JoãoAntônio de Campos e Maria Augusta Azevedo Coutinho: 4 anos; Firmino R. Torres e Francelina Mª deJesus: “muitos anos de convivência”; Luíza Mendonça e José Maria Silva: 5 anos; Francisca de S. Pereirae Leocádio G. Chaves: 30 anos; Francisca Maria Encarnação e João Henrique Pereira: “casada há mais de30 anos; Rosália F. de Araújo e Alferes Joaquim F. de Araújo:17 anos”.
8
envolvidos nesses documentos eram indivíduos de camadas médias, como os
fazendeiros, negociantes, agentes de negócios e oficiais de justiça; mas também
apareceram pessoas pouco ou nada abastadas, como por exemplo: costureira, lavrador,
agricultor, serviços domésticos, alfaiate, fiandeira, caixeiro, sapateiro, carpinteiro,
mineiro, agente de negócios, padres, oficiais de justiça, entre outros. Em nosso estudo,
as fontes (divórcio, processos criminais e nulidade de casamento) raramente faziam
observações sobre a cor dos envolvidos, o que nos impossibilitou de relacionar cor e
condição social dos envolvidos no mesmo.
Estudo de Caso (1)
Em 1882, Luíza Mendonça Silva, 20 anos de idade, dona de casa, moradora em
Diamantina, tendo dois filhos,12 moveu um pedido formal de divórcio contra o seu
marido José Maria da Silva, comerciante, natural da cidade. Segundo Luíza, o adultério,
o abandono do lar conjugal e o fato de ter se casado sem nenhuma afeição por José
Maria (uma vez que não o conhecia) foram as causas que a levaram ao desejo de se
separar do seu esposo.
O dote que Luíza levou para o recente lar correspondia à herança de seu pai, o
qual segundo os autos, era de valor significativo, embora no processo não haja nenhum
esclarecimento do montante ou a descrição do mesmo. Segundo ela, no curto tempo de
quatro anos, seu marido pôs toda a herança à baila esbanjando-a com mulheres e
embriagando-se pelas ruas de Diamantina. Tal situação gerou a insatisfação da esposa.
Períodos difíceis vieram e o casal precisou recorrer ao irmão de Luíza para ajudar no
sustento do lar, pois seus bens haviam se dissipado. Além de tudo, José Maria
abandonou o leito conjugal, pois, como afirmou Luíza, ele mantinha outras mulheres
fora do lar. Importante observar que diante do argumento apresentado por ela,
notadamente o abandono do lar e as outras mulheres sustentadas por seu marido
garantiriam a adequação do pedido de Luíza diante da legislação.
Mas, não foi bem essa interpretação oferecida por José Maria. Segundo sua
argumentação, a situação era inversa e apresentou, por fim, Luíza como a adúltera. Do
papel de quem acusa, a autora passou a ser a acusada. O marido proibiu, segundo a
autora e testemunhas do processo, que muitos comerciantes de Diamantina fornecessem
gêneros a ela, pois ele não pagaria nenhuma compra que a mesma realizasse por causa
12 AEAD, Processo de Divórcio, Luíza Mendonça Silva e José Maria Silva, caixa n.º 199, ano: 1882 –1883.
9
do seu adultério. Assim confirmou o testemunho de Modesto Coelho, natural de Milho
Verde, 31 anos e caixeiro na Corte.
O fogo cruzado entre marido e mulher ganhou relevo a partir do momento em
que as testemunhas foram ouvidas. Este foi o caso do depoimento de Antônio Pereira,
25 anos, solteiro e agente de negócios. O seu testemunho confirmou o adultério
cometido por Luíza e assumido pela autora meses depois. Assim, tal testemunha
afirmou que José Maria ficou fora de casa por um ano e, neste período, sua esposa não
se comportara com decência, sendo quealguns rapazes andavam por sua casa durante a sua ausência, tanto que um amigo dele haviaadulterado com a autora, tanto que havia mandado um presente para ela. A testemunha diz queaconselhou o amigo a se afastar da casa da autora, e contou ao réu o acontecido, mesmo assim,ele não a maltratou.13
Neste mesmo sentido, o depoimento de João, natural do Rio Vermelho, 39 anos,
casado, ofício de sapateiro e morador em Diamantina, vizinho da autora, foi de quesabe que ela e seu marido viviam bem, mas que ultimamente o réu havia deixado de ir a sua casa(da autora). E que em uma ocasião, a autora conversando com ele (testemunha) contou o motivodeste afastamento; era por ele ter sabido que ela andava com um certo moço, cujo nome nãodisse, acrescentando que nessa ocasião, por seu marido ter duvidado, dizia que era verdade o queele havia percebido e que ela continuava a vida de mulher solteira. A testemunha entendeu que aautora estava disposta a ter relações com quem ela tivesse vontade. Sabe também, por sua vez,que a escrava Joana está em poder da autora que ela não veio de sua casa. E que no tempo emque o réu residia em casa da autora, assim como posteriormente, ele não ficava na orgia e nembebendo. Acrescenta a testemunha, que sabe por sua vez que o réu toma seu golo mas nunca oviu embriagado.14 (grifo nosso)
Alguns elementos presentes neste depoimento merecem destaque. Embora a
citação acima correspondesse a uma transcrição e releitura oferecida pelo escrivão no
momento da confecção do processo pode-se afirmar que a testemunha se baseava em
provas circunstanciais para chegar às conclusões que apresentou. Exemplo disso foi a
presença da escrava Joana na casa da esposa, a qual não pertencia ao casal, o que
sugeria tratar-se de um presente dado por um possível amante. Também, a aberta defesa
do réu, contrariando a argumentação de Luiza, demonstrou a preponderância do
argumento masculino em inverter a situação a seu favor. A única mulher que apareceu
testemunhando no processo foi a costureira Claudina Maria, residente em Diamantina,
solteira de 28 anos, que afirmou ser amiga do réu e da autora, a qual ouviu Luiza
confessar-lhe o adultério cometido.
O advogado de Luíza (padre que defendia a causa da autora) justificou as razões
do pedido de divórcio de acordo com os motivos permitidos pela legislação eclesiástica
13 Ibidem. Testemunho do réu.14 Ibidem. Grifo meu.
10
(abandono do lar conjugal e adultério). No entanto, elaborou também outras razões que
vão além das causas aceitas pela legislação, mas que evidenciavam as tensões no seio
daquela família. Exemplo disso foram as dificuldades de convívio do casal, de
manutenção do vínculo em face da ausência do marido. Segundo o depoimento da
autora do processo, percebe-se que duas outras razões estavam presentes e que também
contribuíram para a separação: o fato do casamento ter ocorrido sem que houvesse
qualquer tipo de “afeição”, por parte de Luíza (tinha 15 anos de idade), pelo futuro
marido José Maria, como também, a disposição do mesmo em esbanjar seu dote. É
interessante observar a presença do casamento sem “amor”, sem “afeição”, ganhando
espaço na sociedade, especialmente nos segmentos mais populares, mas também nas
camadas médias.
Os indivíduos procuravam se adequar à codificação eclesiástica para cumprir as
exigências legais, especialmente no caso dos processos de separação, de forma a
alcançar o almejado (o divórcio), esperando que tais processos os livrassem do difícil
fardo de manter a vida conjugal. O universo de “problemas” que pululavam da
convivência matrimonial não encontrava espaço formal na legislação canônica. Por este
motivo, os indivíduos aproximavam a sua situação àquela permitida pela codificação,
mas ainda precisavam sensibilizar o juiz (o Bispo ou o Vigário Geral) a respeito da
gama de problemas que cercavam a vida conjugal. Tais problemas podiam ser
resolvidos por vias informais, como o abandono do lar e a constituição de outros laços
de família pela via do costumeiro. Entretanto, Luíza Mendonça recorreu ao poder
eclesiástico em função de identificar nesse aparato religioso uma maneira de se ver livre
de um casamento indesejável, mas apropriando-se do argumento considerado válido
pela Igreja, de que com tal ato viria sua honra restabelecida. Acusava o marido de
transgredir a norma colocando-se no papel de mãe digna de um lar, onde não lhe
cabiam certas atitudes, pois uma mulher deveria inspirar respeito e confiança.
Muito embora Luíza afirmasse inicialmente não ter “violado o lar” por meio do
adultério, posteriormente declarou ser verdadeira sua infidelidade ao marido quando
esse se achava ausente. Pretendia assim ajustar a norma estabelecida à situação por ela
vivida. Sua estratégia era clara, uma vez que deveria ser o cônjuge considerado
ofendido e honesto quem deveria abrir o processo de divórcio, e, isto não ocorria neste
caso. Luíza, ela sim a adúltera, acusou o marido de infidelidade conjugal para que
pudesse dar início ao processo segundo as normas canônicas. Ao perceber tal postura, o
11
Vigário Geral, Augusto Júlio de Almeida, estabeleceu o prazo de quinze dias para que o
casal voltasse a viver maritalmente.:
Salta aos olhos a desorganização desta unidade familiar a partir da análise da
documentação em questão. Na realidade, a riqueza desses e de outros processos está
exatamente no que eles sugerem a partir das entrelinhas. Ou seja, a repetição de
conflitos no seio da família, as quais tornaram insuportável a vida conjugal, gerando
situações diversas que influenciaram sobremaneira a convivência dos casais. Não eram
tão somente as causas das separações previstas na legislação eclesiástica as que estavam
presentes nos conflitos que levavam ao rompimento do núcleo familiar. As causas que
conduziram os cônjuges aos processos de separação conjugal evidenciaram um universo
muito maior de problemas, enfatizando que nem todas as mulheres adequavam-se
facilmente ao padrão familiar instituído. As mulheres podiam assumir atitudes mais
autônomas condizentes com o seu desejo, que transpareciam nos processos de divórcio.
A separação de Luíza apontou outras situações da convivência social e do
processo de divórcio: (1º) demonstrou o caráter masculinizado do processo como um
todo, pois todos os envolvidos no processo eram homens, exceto a autora e uma única
testemunha do réu. (2º) Do papel de quem acusa a ocorrência da prática do adultério, a
mulher passou a ser a acusada. Esta argumentação rendeu ao marido o ganho de causa,
e, por conseqüência, a esposa teve seu pedido negado, passando a ser considerada uma
adúltera sem causa para tais reclamações. (3º) a Igreja procurava evitar a separação dos
indivíduos podendo negar-lhes o divórcio, com o objetivo de desestimular futuras ações
de processos de separação, especialmente no caso dos cônjuges serem muito novos.
Certamente, o melhor seria que os casais resolvessem as tensões que não se ajustassem
aos estreitos limites impostos pela legislação no âmbito conjugal. Desse modo, a
decisão do juiz demonstrou a insistência na permanência do vínculo matrimonial, muito
embora ficassem evidentes os rumos que os conflitos entre os casais estavam tomando:
as pessoas separavam-se sem permissão da Igreja. (4º) Os casais deveriam ter
condições de recompor sua vida conjugal após a decisão do vigário geral e voltarem a
viver juntos. O fato do casal ser muito jovem fazia o poder eclesiástico temer por sua
separação, além das evidências de adultério de ambas as partes, pois a manutenção da
abstinência sexual seria difícil de ser mantida por ambos. Segundo a visão da época, a
melhor saída seria manter o casamento e fazer vista grossa aos relacionamentos que os
cônjuges teriam fora do mesmo.
12
Com ou sem razão, o que salta aos olhos é a coragem, a astúcia, a autonomia e a
livre iniciativa de mulheres como Luíza, de enfrentar e evidenciar as contradições do
sistema normativo, como também a inadequação da regra básica que sustentava o
casamento: a indissolubilidade. Obviamente, isto assustou tanto a Igreja quanto a
sociedade em geral, arrancando comentários que ordenaram que a mulher voltasse a seu
recôndito de origem: o lar. Soma-se a isto a cobrança de atitudes femininas pautadas na
honestidade. A palavra honestidade, neste caso, aparecia associada à abstinência sexual
e à idéia de que o lar era o lugar por excelência da mulher recatada (fosse ela viúva,
abandonada pelo marido ou, ainda, divorciada).
Será que Luíza voltou a viver com o seu marido e obedeceu à ordem do Bispo de
reconciliar com o mesmo? Resposta impossível de “adivinhar”. Talvez, outra pergunta
possa ajudar a compreender melhor a questão: diante de tal relacionamento conflituoso,
os cônjuges teriam condições de retomar o casamento nos moldes exigidos pela Igreja?
A possibilidade de um afastamento de fato, mas não legal desse casal foi, do nosso
ponto de vista, mais provável, que ocorreu uma vez que por trás dos pedidos de divórcio
e nulidade de casamento eclesiásticos vislumbravam-se situações de vida já resolvidas
pela via costumeira. Um fator possível de corroborar com essa idéia era o tempo de
tramitação dos processos de divórcio no tribunal, uma vez que nesse momento, os
cônjuges já estavam separados. O tempo gasto nos processos variava de dois dias a 3
anos.15 Apesar de Luiza Mendonça ter possuído um dote e o mesmo ter sido gasto por
seu marido, o retorno à situação marital era difícil, pois o dinheiro já havia acabado e
ela agora desejava ver o fim de seu casamento resolvido pelas vias eclesiásticas, para
então imprimir um novo rumo a sua vida. Obviamente que ainda pode-se associar à
questão o desejo, por parte de Luiza, em apenas ter o seu nome livre da desonra, por
meio do processo de divórcio. Maria Odila Leite da Silva Dias ao analisar o mito da
dona ausente em São Paulo do século XIX e compreender que, entre outras questões, a
mulher branca, “sem dote” encontrava outros caminhos para sobreviver diferente
daquele padrão instituído e vivia segundo o uso costumeiro em uniões legítimas, mas
acabava por criar sozinhas seus filhos, ou “encontrando outros homens com os quais
15 A título de exemplo, observe as seguintes durações dos processos no Tribunal: Antônia Marcelina ePatrício Gonçalves do Espírito Santo: 2 dias; João Antônio de Campos e Maria Augusta AzevedoCoutinho: 3 meses e seis dias; Firmino R. Torres e Francelina Mª de Jesus: 1 ano, 4 meses e 24 dias;Luíza Mendonça e José Maria Silva: 2 anos; Francisca de S. Pereira e Leocádio G. Chaves: 7 meses e 10dias; Francisca Maria Encarnação e João Henrique Pereira: 2 anos e 19 dias.
13
tinha filhos ilegítimos”.16 Estas questões nos levaram a crer muito mais na possibilidade
de um não retorno à vida conjugal exigido pela Igreja e não desejado por Luíza.
Os processos de divórcio demonstraram a capacidade de registrar as práticas
cotidianas, o costumeiro, as ações que dia após dia se repetiam e aos poucos imprimiam
na sociedade outras maneiras de viver, conviver e finalizar o matrimônio. Tais práticas
apontaram ainda para o uso da norma com outros fins e não somente para aqueles
aceitos pelo poder eclesiástico por meio dos quais ela pretendia resolver e enquadrar
somente certas situações. Esses processos representavam uma dada realidade cotidiana,
que raramente era entendida pelo poder eclesiástico com a finalidade de desenvolver
ações direcionadas para solucionar os casos de conflitos na família. Esses processos
eram julgados procurando manter distância do “acontecer” cotidiano. A existência de
tais situações indicava um “distanciamento” entre o que a lei pregava e o que acontecia
cotidianamente, sendo que quase sempre as pessoas conseguiam adequar as condições
de sua separação aos quesitos exigidos pela norma (exclui-se aí o primeiro caso, onde o
divórcio não foi atendido). Assim, os conflitos que levavam à desestruturação do
casamento geralmente questionavam os padrões instituídos.
As mulheres que viveram na segunda metade do século XIX enxergaram nos
processos de divórcio uma das possibilidades de resolver as querelas da convivência
conjugal. De modo geral, os documentos analisados no decorrer da pesquisa
evidenciaram a prática de mover um processo de divórcio instigado por outros conflitos
e razões diferentes daquelas aceitas legalmente, mas adequando à legislação em vigor.
Os fatores abaixo relacionados geralmente apareceram em um ou outro processo, a
saber:1) O medo de perder a riqueza acumulada ou herdada durante a vida conjugal;
2)A existência do casamento sem o conhecimento prévio de quem é o marido; 3) A
comprovação de que o marido não era um bom pai; 4) A falta de cumprimento, por
parte do homem, de seus deveres maritais; 5) A assinatura de papéis, como e doação dos
bens da mulher para o marido, antes da realização da partilha dos mesmos; 6) A
ocorrência de crime de atentado ao pudor.
Assim, aos poucos, esses fatores foram somados às questões aceitas pela lei
eclesiástica, compondo de forma caricatural os conflitos e dificuldades enfrentados por
homens e mulheres no final da segunda metade do século XIX, embora a norma não
fosse alterada. É bom lembrar os fatores aceitos pela legislação para dar início ao
16 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Op. cit. p. 110.
14
processo de divórcio: adultério; abandono do lar; maus tratos; impotência; injúria grave
e a infertilidade desconhecida pelo outro cônjuge. O padrão familiar vigente na segunda
metade do século XIX conviveu com atitudes outras que apontaram para a flexibilização
da norma e um fosso entre o normativo e o desejável, permitindo maior autonomia e
margem de manobra às mulheres. O que se passava no interior destes relacionamentos
pode ser compreendido, apenas, na medida em que são acrescidas nos libelos dos
processos outras razões que justificassem o pedido de divórcio e denunciassem as
uniões consensuais existentes. Os processos criminais poderão fornecer mais subsídios e
complementar o quadro que se está esboçando sobre a mulher entre a norma e o desejo,
bem como as tensões na vida conjugal diamantinense.
Os cônjuges que requereram a abertura dos processos de divórcio junto ao
Vigário Geral ou ao Bispo dispunham de uma quantidade relativa de bens, podendo,
geralmente, um ou outro cônjuge manter-se sozinho economicamente. Deve-se
considerar que o pagamento do processo de divórcio era relativamente alto para as
camadas mais empobrecidas, com poucos bens. Os valores dos processos em questão
giraram em torno de 16, 59, 53, 201, 215 mil réis.17 Essa diferenciação no preço final do
processo deve ser rapidamente comentada, pois, ao que tudo indica, os processos mais
caros foram aqueles cujo tempo foi menor, durando cerca de dois dias e até três meses.
Já os mais baratos demoraram mais de dez meses para serem resolvidos. Tal situação
suscitou a seguinte questão: como os indivíduos de baixa renda, no final do século XIX,
faziam suas separações?
É bem possível que tais pessoas faziam suas uniões e separações à revelia da
Igreja, amancebavam-se resistindo à formalização do casamento.18 Dom Joaquim,
Arcebispo de Diamantina, em Visita Pastoral no ano de 1903, afirmou que “o espírito
do povo não é mau, mas não é pequena a ignorância do povo, muitos são os casos de
mancebia e embriaguez”.19 Geralmente, em suas visitas pastorais, o Arcebispo realizava
uma série de casamentos de pessoas amacebadas, tendo chegado a 76 casamentos em
17 Se compararmos esses valores com os valores dos bens arrolados no processo de Francisca e Leocádio(mesmo período e região), poderemos ter melhor referência sobre o valor final cobrado pela Igreja pararealizar o processo de divórcio: correspondia, para os mais baratos (50 mil), a uma égua, ou um cavalo,ou ainda uma plantação de milho. Para os mais caros (200 mil) poderia corresponder a bens como: doisalambiques, ou a um escravo velho, ou ainda a dois moinhos, e etc.18 A este respeito Maria Beatriz Nizza da Silva, op., cit. Cf também FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãee pobre. In: DEL PRIORE, Mary. (org) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/Unesp,1997, p. 510-53.19 AEAD, Caderneta de anotação de visitas pastorais de D. Joaquim, Bispo Coadjutor. VisitaçãoParoquial, Caixa n.º 49.
15
uma só vez. Exemplo disso foi a visita realizada em Burity Grande, no mês de outubro
de 1903. Reclamações constantes apareciam com relação à livre iniciativa das pessoas
de se unirem sem realizar casamento, além do mais, reclamava o Bispo, que “a
imoralidade era grande”.20
Para se ter uma idéia da quantidade de casamentos de amasiados, D. Silvério de
Souza registrou 788 casamentos em suas visitas pastorais de 1902 a 1908. Esse número
caiu sistematicamente no decorrer dos anos, assim, de 1925 a 1932, foram registrados
apenas 18 casamentos de amasiados.21 Essa prática do Bispo de visitar os mais diversos
lugarejos da Arquidiocese, bem como a atuação dos clérigos nas mesmas, mostrou-se
eficiente. Esses números não significam que as pessoas se amasiavam sem que fosse
feito qualquer contrato. Na realidade a Igreja considerava como “casamento de
amasiado” qualquer união de casais sem a sua formalização perante o clero, incluindo
nessa quantificação o casamento civil.
2) Do divórcio à nulidade do casamento
Qual o motivo que explica a ausência das mulheres como proponentes dos
pedidos de nulidade de casamento até os anos 30 do século XX? Como pode ser
explicada a mudança da natureza dos processos na virada do século (de divórcio à
nulidade de casamento)? Tais questionamentos fizeram surgir outras indagações, as
quais, ao que parece, precisam ser respondidas a partir de um diálogo com as diferentes
fontes utilizadas. Afinal de contas, quem ou o que mudou: a família? A legislação? As
mulheres? Os homens?22
O rigor da legislação influenciou sobremaneira o quadro geral das separações.
Não é possível afirmar que as mulheres tenham perdido a sua condição de autonomia.
Na realidade, postula-se que essa autonomia foi redirecionada para outras instâncias no
início do século XX, devido, principalmente, ao fato dos indivíduos não encontrarem
satisfação nas normas que regiam o casamento e o “descasamento”. Utilizando as vias
do costumeiro, as pessoas se separavam por conta própria, ignorando a normatização a
respeito ou passavam a viver como se não conhecessem o outro cônjuge.
Os conflitos familiares existentes no início do século XX, de certa forma,
ganharam uma outra feição. Tanto a natureza dos processos mudou, como também as
20 Ibidem.21 AEAD, Caderneta de anotação de Visitas Pastorais realizadas por D. Joaquim Silvério de Souza, 1902 a1910; 1911 a 1923 e 1925 a 1932, Caixa nº 49.
16
tensões no núcleo familiar. As causas das separações no âmbito religioso passaram a ser
identificadas no momento do casamento, adequando-se não mais à legislação sobre o
divórcio, mas sim sobre o que previa a possibilidade de anulação do matrimônio. Esses
processos se baseavam nos argumentos previstos pela legislação canônica que
impediriam a realização do matrimônio. Esses poderiam produzir a anulação do
casamento e conduzir tanto o homem quanto a mulher a uma outra união matrimonial,
segundo as normas vigentes. As maneiras de “desmanchar” uma união matrimonial
ficaram a cargo dos desquites produzidos no âmbito civil, se se considerar a legislação
da República, como foi visto anteriormente. Mas o fosso entre casamento civil e
religioso estava estabelecido desde a laicização do casamento em 1890, pois na
Comarca de Diamantina, até 1932, as pessoas não haviam recorrido à separação de
corpos proposta pelo Estado republicano para resolverem seus dramas familiares.
Ao que tudo indica, o desejo dos indivíduos encaminhavam-se para o que o
divórcio a vínculo permitiria, qual seja, um segundo casamento. Apesar disso, vale a
pena considerar algumas questões gerais a respeito dos processos de nulidade de
casamento. Nos processos do século XIX não é possível delimitar, dado a quantidade
pequena de processos, uma variação no tempo que distancia o casamento do pedido de
nulidade do mesmo. Desse modo, pode-se considerar pelo menos a irregularidade que
eles demonstraram, até mesmo para observar a complexidade desses relacionamentos.
Assim, entre 3 a 16 anos após o casamento os casais pediram que seu casamento fosse
anulado.23 É bastante para pedir que uma união matrimonial fosse desfeita e que os
cônjuges pudessem casar com outra pessoa. Percebe-se então, novamente, a
manipulação da legislação para resolver os conflitos causados após o casamento e não
antes deste como previa a lei. Com relação à duração do processo, o tempo é muito
semelhante aos processos de divórcio: variam de 9 meses a 3 anos.
Mas, em geral, houve uma distância significativa entre o período de convivência
e o período de nulidade. A questão está exatamente nisso: pelos mais diversos motivos,
o marido viveu certo tempo com a esposa e logo foi embora: em três processos, os
cônjuges viveram um dia juntos; noutro, apenas um mês e, por fim, em apenas dois
casos, um com 6 meses e outro com 16 anos e logo pediram a anulação do casamento
22 A respeito das mudanças ocorridas no início do século XX, vale a pena ler MALUF, Marina e MOTT,Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando (dir) e SEVCENKO, Nicolau (org).História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, v. 3, 2000, p. 368-421.23 João Lemos e Sebastiana: 9 anos; Augusto e Celuta: 9 anos; Augusto Farnezi e Henriqueta: 16 anos;Ataliba e Gabriela: 3 anos; Antônio Caldas e Maria Necolina: 4 anos.
17
baseando na legislação canônica. Até o ano de 1933, três casamentos foram anulados,
um não possui conclusão e, apenas um não conseguiu a nulidade. O detalhe dessas
situações deve ser esmiuçado para que as intricadas relações conjugais, assim como as
visões desses casais que procuraram o poder eclesiástico para por fim à suas
insatisfações conjugais, sejam melhor esclarecidas.
Estudo de Caso (2)
Em 1918, Antônio Ribeiro Caldas casou-se “no religioso” 24 com Maria
Necolina Duarte.25 Um ano de convivência foi o período suficiente para que Antônio
Ribeiro abandonasse sua esposa em Itambé do Serro e fosse viver com outra mulher em
Rio Vermelho. Separados por três anos, a reconciliação parecia algo inviável. Caldas
escreveu, em 1921, uma carta ao vigário de Itambé do Serro, narrando sua situação:Não posso ceder o meu nome como marido de uma criatura que diante de um ato religioso melevantou um falso, perante a presença de um sacerdote denunciando me como devedor de suahonra, pois perante Deus isto é um pecado mortal, uma vez que a própria moça, Maria Necolina,disse que assim o fez no interesse de se casar com minha pessoa. Casamento religioso é precisoque as duas partes disponham de toda livre vontade e assim não succedeu de minha vontade, fuiagredido por um grupo que me procurou em minha casa em alta noite me pondo debaixo deordem por uma autoridade que eu fosse em casa de Marçal que alli sabia quem tinha razão (...)estaria (o autor) pronto a casar, se a dita moça entrasse em um exame medico, quando fuiabordado por uma faca e uma garrucha, que o exame medico era casar ou morrer .26
Maria Necolina, 28 anos de idade, afirmou perante as autoridades presentes no
momento do processo que havia sido deflorada em sua casa por Antônio Ribeiro Caldas.
O seu depoimento apresentou as seguintes informações:Afirma que Antônio Ribeiro Caldas vivia tentando lhe tirar a honra, dizia-lhe que deixasse ajanela aberta para que ele pudesse penetrar a noite; e que propôs à Margarida de tal que ela alevasse a seu quarto quando, na casa onde ele Caldas, reside, dar-lhe-ia cinco mil réis. Ele,Caldas, a puxou para a sala ao lado e ainda não era noite e nesse momento, Caldas abraçou,levantou as suas vestes e praticou o ato desonesto no lugar próprio da geração, sentindo, diz elainformante, forte dor no interior, demorando-se neste ato, cerca de uma hora. (...) na hora daviolência teve medo de gritar, mas depois de deflorada, não se importou de incomodar seu pai. 27
Este depoimento de Maria Necolina foi questionado o tempo todo, desde o lugar
em que o ato aconteceu até com quem ela realmente estava mantendo relações sexuais.
Diante de tais acusações, Necolina afirmou que não desejava casar-se novamente caso
seu matrimônio fosse anulado.
Segundo o depoimento do padre que realizou o matrimônio, parecia tudo muito
tranqüilo na convivência do casal, embora Caldas tivesse discordância com o sogro, que
24 “No religioso”: é uma expressão utilizada em todos os processos para definir o casamento realizadocom base nos ensinamentos cristão, obviamente em oposição ao casamento civil.25 AEAD. Nulidade de casamento de Antônio Ribeiro Caldas e Maria Marcolina Duarte, caixa 199, ano:1923.26 Idem. Carta de Caldas ao pároco de Itambé do Serro, local onde ocorreu o casamento.
18
havia forçado o casamento. Fora isso, afirmou também que o autor não tinha vontade de
manter-se casado com Necolina. O argumento apresentado pelo padre defensor do
vínculo matrimonial insistiu na questão de que por quase quatro anos Antônio Caldas
não desejou se separar, somente depois desse tempo a vontade apareceu, fazendo
suscitar a desconfiança relativa a um motivo oculto. Tal motivo era a realização de um
casamento religioso válido, mas com outra mulher, com a qual Caldas já tinha se casado
civilmente, mas não estava em “paz com a sua consciência”. Isto representou uma boa
dosagem de pressão feita por Caldas para conseguir seu intento.
A decisão final do Tribunal Eclesiástico baseou-se em duas condições que
levaram à nulidade do casamento: primeiro, a “coação física” para forçar o casamento
que, aliás, ia contra o livre arbítrio do casal, condição necessária para a realização do
mesmo; em segundo lugar, a existência de um defloramento do qual o autor dizia não
ser o responsável. O Tribunal teria outra saída que não essa, uma vez que Caldas já
havia se casado com outra mulher civilmente? Para o Estado, nesse período, o
casamento válido era apenas o civil, assim, a união religiosa podia ser compreendida,
nessa ótica, como um “amasiamento”. Necolina, mesmo não desejando casar-se
novamente, foi “beneficiada” pela decisão favorável à nulidade do casamento, pois
tinha possibilidade de adquirir núpcias válidas aos olhos da Igreja e do Estado.
O Tribunal Eclesiástico frisou bem a relação que o Bispado estabelecia com a
comunidade. Ele procurou desfazer o que determinadas pessoas - com certo grau de
mando local - tentaram impor. Agindo desta maneira o Bispado procurou se sobrepor à
sociedade e mostrou seu poder de decisão, bem como a importância de sua moral.
Naquele momento, a decisão de anular o casamento era fundamental para a Igreja, pois
existia uma campanha deflagrada nos jornais contra a instituição do divórcio a vínculo
no Brasil, o que denotava a vontade de pelo menos parte das pessoas de extinguir o
vínculo matrimonial pela via do processo eclesiástico. Os conflitos existentes em
determinadas famílias faziam com que os processos fossem julgados com muita cautela.
Este foi um dos motivos que justificou colocar em prática o reestudo da decisão final,
ou seja, instituir a prática de apelação da decisão. Porém, vale a pena ressaltar que em
todos os casos que tiveram apelação da decisão, o Tribunal reafirmou o primeiro
27 Idem. Depoimento de Maria Necolina Duarte.
19
resultado. O outro motivo pode ser explicado a partir da melhor organização do direito
eclesiástico, sistematizando-o no Código de Direito Canônico.28
Esse processo denotou pelo menos três questões importantes no que tange ao
relacionamento entre a Igreja e a comunidade. Primeiro, a dificuldade encontrada pelo
Tribunal Eclesiástico em manter a indissolubilidade do casamento. Segundo, a
identificação dos seus sacerdotes com as comunidades em que atuavam. Em terceiro
lugar, os conflitos conjugais e a vontade dos cônjuges em desfazer o casamento. Após a
convivência de 16 anos foi que um dos cônjuges pediram a anulação do casamento, o
que evidenciou, obviamente, as dificuldades e os problemas desse relacionamento. Esse
ponto, precisamente, fez aguçar o temor clerical do possível “conluio” entre os esposos
para tentar manipular as normas da Igreja e, especialmente, verem-se em condição de
firmar novos compromissos matrimoniais.
A nulidade do casamento pela Igreja podia ser decretada por diversos fatores.
Assim, um desses seria, por exemplo, a pressão exercida pelos pais ou responsáveis pela
moça no momento de sua realização. Em todos os processos em que este argumento
apareceu, a alegação foi a mesma: o defloramento da mulher e a conseqüente exigência
da reparação de sua honra. As mulheres não se mostravam passivas. Algumas que
desejavam se casar, muitas vezes com o pretendente que não era do gosto familiar,
compactuavam com o seu defloramento para posteriormente reclamar a reparação da
honra. Essa situação pode ser compreendida por meio das estratégias desenvolvidas
pelas mulheres como forma de se relacionarem, a seu modo, com as normas instituídas.
Em outros casos, a decisão do Tribunal Eclesiástico baseou-se em duas condições que
levaram à nulidade do casamento: primeiro, a “coação física” para forçar o casamento
que, aliás, ia contra o livre arbítrio do casal, condição necessária para a realização do
mesmo; em segundo lugar, a existência de um defloramento do qual o autor dizia não
ser o responsável. O Tribunal teria outra saída que não essa, uma vez que Caldas já
havia se casado com outra mulher civilmente? Para o Estado, nesse período, o
casamento válido era apenas o civil, assim, a união religiosa podia ser compreendida,
nessa ótica, como um “amasiamento”. Algumas mulheres, mesmo não desejando casar-
28 Segundo o livro IV do Direito Canônico, o processo canônico é uma instituição jurídica. Feita essaobservação, que julga-se importante, não constitui preocupação desta pesquisa trabalhar de formaaprofundada a instituição jurídica do processo de nulidade de casamento ou de divórcio, mascompreender muito mais as informações que os testemunhos históricos nos legaram através dessadocumentação.
20
se novamente, foram “beneficiadas” pela decisão favorável à nulidade do casamento,
pois tinham possibilidade de adquirir núpcias válidas aos olhos da Igreja e do Estado.
Instaurar um processo de nulidade de casamento era mais significativo do que
um de divórcio. A anulação do casamento permitia que fosse contraído um outro
casamento válido. Obviamente que a população percebeu e se interessou pelo processo
de anular um vínculo matrimonial, especialmente se a convivência marital fornecesse
margem para isto, o que fez com que se configurasse uma estratégia onde as pessoas
tentavam manipular a norma instituída em favor próprio. Os indivíduos concordavam
em casar com a mulher deflorada, culpados ou não, mas, logo fugiam e abandonavam o
lar recentemente construído, pois geralmente eram coagidos pela força. A população
não aceitava tão passivamente as normas católicas e procurava utilizar-se das "brechas
do sistema" para esquivar-se das imposições (sociais e clericais) e das situações
indesejadas. Primeiro, o homem realizava o casamento apenas no religioso, pensando na
possibilidade de uma futura união. O próximo passo seria mover o pedido de anulação
do casamento.
A separação de corpos proposta pelo Estado, o desquite29, não permitia novas
núpcias, assim como o divórcio católico. O desquite só foi utilizado pela população
diamantinense bem depois de sua instituição legal, pois a Igreja fazia a nulidade de
casamento, a qual permitia novas núpcias. Considerando que o casamento católico
estava arraigado nas tradições da região é possível perceber que existiu um
reconhecimento, por parte da população, no poder eclesiástico como sendo aquele
dotado de autoridade para legalizar a separação conjugal. Tal situação explica o fato de,
ao consultar os processos de desquite arrolados no Fórum de Diamantina desde a
promulgação do Código Civil em 1916, apenas um processo de desquite foi registrado,
no caso em 1933, durando até 1934.30 Antes dessa data, porém, as pessoas não
recorreram ao poder judiciário para legalizarem sua separação.
29 O Decreto nº 181de 1890 definia que a partir da República, entre outras coisas, o casamento válido seriao Casamento civil e a forma de realizar a separação conjugal era o divórcio, mas também não permitianovas núpcias. O Código Civil de 1916 alterou o termo divórcio para desquite, mantendo aindissolubilidade matrimonial. As causas que produziam essa separação eram: adultério; sevícia ou injúriagrave; abandono do lar por dois anos contínuos e mútuo consentimento dos cônjuges separados há maisde dois anos.30 ABAT, Catálogo dos processos criminais, vol. 01 e 02. Os processos de desquite arrolados no arquivoda Biblioteca de Diamantina, até o ano de 1980, são um total de 31 processos, sendo que apenas doisdeles referem-se à década de 30. Nove, referem-se aos anos compreendidos entre 1940 a 50. O restante,19, até o final da década de 70.
21
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O constante conflito entre a norma e o desejo do indivíduo apontou, nesse
estudo, menos para a transgressão do que era normativo no que tange ao casamento, à
separação conjugal e aos papéis socialmente definidos para os homens e as mulheres na
sociedade brasileira, e muito mais para o desejo de encontrar brechas na legislação que
fossem mais próximas da vivência conjugal dos indivíduos na região de Diamantina.
Giovanni Levi,31 ao escrever sobre a micro-história, destacou as escolhas das pessoas
comuns, suas estratégias, sua capacidade de explorar as inconsistências dos sistemas
sociais e de estabelecer relacionamentos com a norma de maneira que as decisões dos
indivíduos iam, aos poucos, tornando o sistema fluido.
O clero local reuniu esforços para implementar um projeto moralizador que teve
início efetivamente com Dom João Antonio dos Santos (1863) e teve continuação com o
seu substituto, o Arcebispo Dom Joaquim Silvério de Sousa (1905). Tal projeto não
divergia dos planos do Estado Imperial e esteve presente nas determinações legais do
período republicano no Brasil no que tange ao direito de família (casamento, separação
e cumprimento dos deveres do marido e da esposa).
Muitos casais não conviviam de forma harmoniosa como preconizava o modelo
instituído. As tensões provocadas pelo enraizamento do casamento monogâmico e
indissolúvel foram as mais diversas. Algumas poucas pessoas recorriam ao poder
eclesiástico para resolver a sua situação conjugal, mas em geral, as uniões e separações
matrimoniais quase sempre não passaram pelo crivo da Igreja, mas sim por vias
costumeiras, à revelia da norma instituída. As mulheres procuraram aproveitar das
brechas do sistema judiciário em seu favor, por meio de artimanhas e de estratégias, as
quais demonstraram as ações aparentemente simples e miúdas, mas que concorriam para
a mudança social. Os descaminhos que as mulheres encontraram em sua vida conjugal
vão além da pura e simples resistência à norma, mas revelam-se pelas possibilidades de
estratégias, artimanhas e artifícios que lhes permitiram trilhar outros caminhos que
correspondessem aos seus desejos.
Esse estudo demonstrou ainda que os homens e as mulheres de Diamantina, no
século XX, não identificaram na legislação civil a capacidade de separar um casamento,
por meio do desquite, pois reconheciam na Igreja as condições de separar “o que Deus
uniu”, dado o enraizamento de suas normas nessa sociedade. Mas, também atuavam nas
31 LEVI, Geovanni. Sobre a micro história. In: BURKE, Peter. A escrita da História. São Paulo: Editorada UNESP, 1992.
22
fímbrias do sistema quando não recorriam a nenhuma das instâncias para legalizar a
separação “ilegal” em que viviam. Na realidade, os tentáculos da legislação civil foram
tardiamente assimilados pela população em Diamantina, no caso, somente a partir de
1933. Não se recorria nem ao divórcio, nem ao desquite para resolver os conflitos
conjugais. Já a nulidade de casamento pareceu ser o artifício mais desejado, mas para
esta a Igreja estabelecia regras que dificilmente correspondiam ao caso das pessoas
casadas há mais tempo. O pano de fundo que se desenha é exatamente o desejo de
divórcio de fato, tal qual o conhecemos hoje, e que foi instituído no Brasil somente a
partir de 1977. Delineia-se aí um lento processo de mudança social, no qual a mulher
teve relevante participação, uma vez que tal desejo partiu da família, a qual se
sustentava ideologicamente na mulher.
REFERÊNCIA BIBLIOGRAFIA
A) Fontes:
Arquivo da Mitra Arquidiocesana de Diamantina
1. Processos de Nulidade de Casamento – 1900 a 1933, Caixa nº 199.
2. Processos de Divórcio – 1859 – 1900, caixa nº 200.
3. Livro de Visitação Paroquial – 1900 a 1932, caixa nº 49. (3 livros).
4. Ata e Estatuto do Terceiro Sínodo da Arquidiocese de Diamantina – 1927, caixa
nº 51.
5. Mapas paroquiais – caixas nº. 104, 201, 202, 204 e 220.
6. Estatística Religiosa – caixas nº 336 a 349.
7. MEMORIAL Histórico da Diocese de Diamantina, tomo I e II (s/d).
B) Bibliografia:
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