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Atul Gawande

O EFEITO CHECKLIST

The Checklist Manifesto

Traduzido do inglês por

Ana Carneiro

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INTRODUÇÃO 9

CAPÍTULO 1 > O PROBLEMA DA COMPLEXIDADE EXTREMA 21

CAPÍTULO 2 > A CHECKLIST 37

CAPÍTULO 3 > O FIM DO MESTRE-DE-OBRAS 51

CAPÍTULO 4 > A IDEIA 73

CAPÍTULO 5 > A PRIMEIRA TENTATIVA 87

CAPÍTULO 6 > A FÁBRICA DAS CHECKLISTS 113

CAPÍTULO 7 > O TESTE 133

CAPÍTULO 8 > O HERÓI NA ERA DAS CHECKLISTS 153

CAPÍTULO 9 > A SALVAÇÃO 179

NOTAS 185

AGRADECIMENTOS 193

ÍNDICE

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INTRODUÇÃO

Estava a conversar com um amigo da Faculdade de Medicina que é agora cirurgião-geral em São Francisco. Trocávamos histórias de guerra, coisa que os cirurgiões têm tendência para fazer. Uma das histórias de John era acerca de um tipo que fora admitido na urgên-cia numa noite de Halloween, vítima de esfaqueamento. O paciente tinha ido a um baile de máscaras. Envolvera-se numa desordem. E agora estava ali.

Mantinha-se estável, a respirar normalmente, sem dores, apenas bêbado e a dizer coisas sem nexo à equipa de traumatologia. A equipa cortou-lhe a roupa com tesouras e observou-o da cabeça aos pés, pela frente e por trás. O paciente tinha um peso moderado, cerca de noventa quilos, cujo excesso estava concentrado em grande parte à volta da cin-tura. Foi aí que a equipa encontrou a ferida perfurante: uma incisão no ventre, vermelha, perfeita, com cerca de cinco centímetros, que se abria como a boca de um peixe. Uma língua de gordura omental cor de mostarda saltou para fora – a gordura do interior do abdómen e não a gordura superficial, de um amarelo pálido, que fica sob a pele. Era preciso levá-lo para o bloco operatório, fazer um exame para se ter a certeza de que os intestinos não tinham sido atingidos e coser a pequena abertura.

– Nada de extraordinário – disse John.Se fosse um ferimento grave teriam de correr para a sala de operações

– com a maca a voar, as enfermeiras a correr para preparar os instru-mentos cirúrgicos, os anestesistas a passarem à frente a análise por-menorizada das fichas médicas. Mas não se tratava de um ferimento grave. Decidiram que tinham tempo. O paciente esperava deitado na maca, na sala de traumatismos de paredes estucadas, enquanto o BO estava a ser preparado.

Então uma enfermeira reparou que ele tinha deixado de tartamu-dear. O ritmo cardíaco disparara. Revirava os olhos para dentro. Não

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respondeu quando ela o abanou. A enfermeira pediu ajuda e os mem-bros da equipa de traumatologia precipitaram-se para dentro da sala. A tensão arterial do paciente mal se conseguia detectar. Inseriram um tubo pela via respiratória e ventilaram-no, injectaram-lhe fluidos e fizeram-lhe uma transfusão de sangue de emergência. Mesmo assim não conseguiam que a tensão subisse.

Portanto agora estavam a correr para a sala de operações – com a maca a voar, as enfermeiras a correr para preparar os instrumentos cirúrgicos, os anestesistas a passarem à frente a análise detalhada das fichas médicas, um interno a entornar um frasco de Betadine sobre o ventre do paciente, John a agarrar um bisturi grosso no 10 e a cor-tar através da pele até ao abdómen num gesto certeiro e determinado entre a caixa torácica e o púbis.

– Cautério.Introduziu a ponta metálica electrificada do cautério pela gordura

sob a pele, separando-a alinhada de cima abaixo e depois através da bainha branca fibrosa da fascia, entre os músculos abdominais. Pene-trou até à cavidade abdominal e de repente um mar de sangue jor-rou do paciente.

– Bolas.Havia sangue por todo o lado. A faca do atacante tinha penetrado

mais de trinta centímetros, através da pele do homem, da gordura, do músculo, tinha ido para lá do intestino, acompanhado o lado esquerdo da coluna vertebral e atingido directamente a aorta, a prin-cipal artéria do coração.

“O que era de enlouquecer”, disse John. Juntou-se-lhes um outro cirurgião para ajudar, que enfiou um punho na aorta, acima do ponto de perfuração. Aquilo parara a pior parte da hemorragia e a equipa começou a controlar a situação. O colega de John disse que não via uma ferida assim desde o Vietname.

A descrição acabou por se revelar bastante acertada. John veio a saber que o outro tipo do baile de máscaras estava mascarado de soldado – com uma baioneta.

Durante alguns dias o paciente esteve entre a vida e a morte. Mas recompôs-se. John ainda abana a cabeça com pesar quando fala do caso.

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Quando nos aparece um paciente com uma ferida perfurante, há centenas de formas de as coisas correrem mal. Mas todas as pes-soas envolvidas agiram correctamente em quase todas as etapas – o exame dos pés à cabeça, o acompanhamento cuidadoso da tensão arterial, da pulsação e do ritmo respiratório do paciente, a monitori-zação do seu estado de consciência, os fluidos introduzidos por via IV, a chamada para o banco de sangue para terem sangue disponí-vel de imediato, a colocação de um cateter urinário para assegurar que a urina não tinha vestígios de sangue, tudo. Só que ninguém se lembrou de perguntar ao paciente ou aos paramédicos com que tipo de arma fora atacado.

“A nossa mente não pensa numa baioneta em São Francisco”, era tudo o que John conseguia dizer.

> > >

Falou-me de outro paciente que estava a ser submetido a uma opera-ção para retirar um cancro no estômago quando o coração de repente parou.* John lembra-se de ter olhado para o monitor cardíaco e de dizer ao anestesista: “Olá, aquilo é uma assístole?” Uma assístole é a cessa-ção total da função cardíaca. No monitor surge como uma linha recta, como se o monitor nem sequer estivesse ligado ao paciente.

O anestesista disse: “Um dos fios deve ter-se soltado”, porque pare-cia impossível acreditar que o coração do paciente tivesse parado. O homem tinha quase cinquenta anos e até aí tinha sido perfeita-mente saudável. O tumor fora encontrado quase por acaso. Tinha ido consultar o médico sobre outra coisa qualquer, tosse talvez, e men-cionara que também sentia alguma azia. Bem, não era exactamente azia. Às vezes sentia que a comida ficava presa no esófago e não des-cia e isso provocava-lhe azia. O médico pedira uma imagiologia que exigia que o paciente tomasse uma bebida baritada leitosa diante de uma máquina de raios X. E ali estava ele nas imagens: uma massa

* A pedido de John foram alterados os pormenores da identificação.

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carnuda do tamanho de um ratinho, próxima da parte superior do estômago, que fazia uma pressão intermitente contra a entrada, como uma válvula de fecho. Tinha sido detectado cedo. Não havia sinais de metástases. A única cura conhecida era a cirurgia, neste caso uma gastrectomia radical, o que significava a remoção do estômago na sua totalidade, uma grande intervenção de quatro horas.

Os membros da equipa estavam a meio da operação. O cancro tinha sido retirado. Não tinham surgido nenhuns problemas. Estavam a pre-parar-se para reconstruir o tracto digestivo do paciente quando a linha recta apareceu no monitor. Levaram cerca de cinco segundos para des-cobrir que nenhum fio se tinha soltado. O anestesista não conseguia sentir o pulso na carótida. O coração do doente tinha parado.

> > >

John arrancou os campos cirúrgicos esterilizados e começou a fazer massagem cardíaca com os intestinos do paciente a saltarem para den-tro e para fora do abdómen aberto a cada impulso. Uma enfermeira anunciou o código azul.

Aqui John fez uma pausa na narrativa e pediu-me para imaginar que estava na situação dele.

– Então e agora o que farias?Tentei analisar o assunto. A assístole acontecera no meio de uma

grande cirurgia. Consequentemente, no início da minha lista estava uma grande perda de sangue.

– Abriria todos os fluidos e procurava uma hemorragia – disse eu.O anestesista também dissera isso. Mas John tinha o abdómen do

paciente completamente aberto. Não havia hemorragia e disse-o ao anestesista.

– Ele não queria acreditar – disse John. – Continuava a dizer: “Tem de haver uma grande perda de sangue! Tem de haver uma grande perda de sangue!” Mas não havia.

A falta de oxigénio também era uma possibilidade. Eu disse que poria o oxigénio a 100 por cento e verificaria a via aérea. Também

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tiraria uma amostra de sangue e pediria análises imediatamente para excluir anormalidades invulgares.

John disse que também pensaram nisso. A via aérea estava óptima. E quanto às análises levariam pelo menos vinte minutos a obter resul-tados e nessa altura já seria demasiado tarde.

Poderia ser uma falha num pulmão – um pneumotórax? Não havia sinais dele. Auscultaram com um estetoscópio e ouviram bons movi-mentos de ar em ambos os lados do peito.

Consequentemente, a causa tinha de ser uma embolia pulmonar, disse eu:

– Um coágulo de sangue deve ter migrado para o coração do paciente e obstruiu-lhe a circulação. É raro, mas os doentes com cancro que são submetidos a uma grande cirurgia correm esse risco e, caso ocorra, não há muito a fazer. Poderíamos administrar-lhe um bólus de epine-frina – adrenalina – para tentar reanimar o coração, mas o mais pro-vável é que a droga não desse grandes resultados.

John disse que a sua equipa tinha chegado à mesma conclusão. Depois de quinze minutos de compressões torácicas, com a linha no monitor ainda tão imóvel como a morte, a situação parecia desespe-rada. Entretanto, entre os que chegaram para ajudar encontrava-se um anestesista sénior que tinha estado na sala quando o paciente fora anestesiado. Quando saíra nada parecia estar a correr mal. Con-tinuava a pensar com os seus botões que alguém cometera um erro. Perguntou ao anestesista presente na sala se tinha feito alguma coisa diferente nos quinze minutos que antecederam a paragem cardíaca.

– Não. Espera. Sim. As análises de rotina que foram enviadas durante a primeira parte

do caso indicavam que o paciente tinha um nível de potássio baixo. Fora disso, tudo parecia bem e o anestesista tinha-lhe administrado uma dose de potássio para corrigir a carência.

Fiquei mortificado por não me ter lembrado desta possibilidade. Um nível anormal de potássio é uma causa clássica de assístole. É refe-rido em todos os manuais. Não queria acreditar que não tinha pen-sado naquilo. Níveis de potássio extremamente baixos podem provocar uma paragem cardíaca e nesse caso a solução é administrar uma dose

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de potássio correctiva. E o potássio em excesso também pode provo-car uma paragem cardíaca – é assim que se executam os prisioneiros.

O anestesista sénior pediu para ver o saco de potássio que fora uti-lizado. Alguém o pescou do lixo e foi aí que perceberam o que acon-tecera. O anestesista tinha usado a concentração de potássio errada, uma concentração cem vezes mais elevada do que tinha pretendido. Por outras palavras, tinha dado ao paciente uma sobredosagem letal de potássio.

Passado tanto tempo, não se sabia ao certo se o doente poderia ser reanimado. Podia muito bem ser tarde de mais. Mas, a partir daí, fizeram tudo o que deviam fazer. Administraram injecções de insu-lina e glucose para baixar o nível tóxico de potássio. Sabendo que os medicamentos iriam levar uns bons quinze minutos a fazer efeito – demasiado tempo – também administraram cálcio por via intrave-nosa e enormes quantidades de uma droga chamada albuterol por via respiratória, que actua mais depressa. Os níveis de potássio baixaram rapidamente, e o paciente retomou o ritmo cardíaco.

A equipa de cirurgia estava tão abalada que não tinha a certeza de conseguir terminar a operação. Não só quase tinham matado o homem, como também não tinham conseguido perceber como. Mesmo assim acabaram a intervenção. John saiu e foi contar à família o que acon-tecera. Ele e o paciente tiveram sorte. O homem recuperou – quase como se nada se tivesse passado.

> > >

As histórias que os cirurgiões contam uns aos outros são muitas vezes acerca do choque do inesperado – a baioneta em São Francisco, a para-gem cardíaca quando tudo parecia correr bem – e às vezes sobre a tristeza provocada por oportunidades perdidas. Falamos sobre as nos-sas grandes curas, mas também sobre os nossos grandes fracassos, e todos os temos. Fazem parte daquilo que fazemos. Gostamos de pen-sar que controlamos tudo. Mas as histórias de John puseram-me a pensar sobre o que está realmente sob o nosso controlo e o que não está.

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Nos anos de 1970, os filósofos Samuel Gorovitz e Alasdair MacIntyre1 publicaram um curto ensaio sobre a natureza da falibilidade humana que eu li durante a minha formação em cirurgia e acerca do qual não paro de reflectir desde então. A pergunta a que eles tentavam responder era a razão por que falhamos nas coisas que decidimos fazer na vida. Uma das razões, observavam eles, é a “falibilidade necessária” – algumas das coisas que queremos fazer estão sim-plesmente além das nossas capacidades. Não somos omniscientes nem todo-poderosos. Mesmo melhorados pela tecnologia, os nossos poderes físicos e mentais são limitados. Grande parte do mundo e do universo está – e continuará a estar – para além da nossa com-preensão e controlo.

Existem no entanto esferas de acção importantes onde o controlo está ao nosso alcance. Conseguimos construir arranha-céus, prever tempestades de neve, salvar vítimas de ataques cardíacos e de esfa-queamento. Nesses domínios, salientam Gorovitz e MacIntyre, exis-tem apenas duas razões para que possamos mesmo assim fracassar.

A primeira é a ignorância – podemos errar porque a ciência nos deu apenas uma compreensão parcial do mundo e da maneira como ele funciona. Há arranha-céus que ainda não sabemos como construir, tempestades de neve que não conseguimos prever, ataques cardíacos que ainda não sabemos como evitar. Ao segundo tipo de fracasso os filósofos chamam inaptidão – porque nestas situações o conhecimento existe, mas, no entanto, não o conseguimos aplicar correctamente. Aqui o arranha-céus é mal construído e desmorona-se, o meteorolo-gista falha redondamente no reconhecimento dos sinais da tempes-tade de neve e os médicos esquecem-se de perguntar qual foi a arma que esfaqueou o doente.

Ao pensar nos casos de John como uma pequena amostra das dificuldades que enfrentamos na medicina do princípio do século XXI, fiquei impressionado com o grau de alteração do equilíbrio entre a ignorância e a inaptidão. Durante quase toda a história, as vidas das pessoas foram orientadas em primeiro lugar pela ignorância. Não há outra área da vida mais clara em relação a isto do que a das doen-ças que nos atingiam. Pouco sabíamos sobre as suas causas ou o que

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poderíamos fazer para as curar. Mas algures durante as últimas déca-das – e apenas durante as últimas décadas – a ciência injectou conhe-cimento suficiente para fazer com que a luta contra a inaptidão seja tão importante como a luta contra a ignorância.

Pensemos nos ataques cardíacos. Mesmo em anos recentes, como os anos de 1950, pouco sabíamos quanto às maneiras de os evitar ou de os tratar. Por exemplo, não conhecíamos o perigo da tensão arte-rial alta e, se o conhecêssemos, não saberíamos o que fazer. O pri-meiro medicamento seguro2 para o tratamento da hipertensão só foi desenvolvido e definitivamente comprovado no combate à doença na década de 1960. Também não conhecíamos o papel do colesterol, ou da genética, ou do tabagismo, ou da diabetes.

Para além disso, se alguém tivesse um ataque cardíaco, pouco sa- bíamos quanto ao seu tratamento. Administrávamos alguma morfina para a dor, talvez um pouco de oxigénio, e púnhamos o doente em repouso absoluto durante semanas – os pacientes não tinham auto-rização sequer para se levantarem e irem à casa de banho, por receio de esforçar os seus corações enfraquecidos. Depois punham- -se todos a rezar e a fazer figas na esperança de que o paciente conse-guisse sair do hospital para passar o resto da vida em casa como um inválido cardiopático.

Em comparação, hoje em dia temos pelo menos uma dúzia de maneiras eficazes de reduzir a probabilidade de sofrermos um ataque cardíaco – controlar a tensão arterial, por exemplo, recei-tar uma estatina para baixar o colesterol e a inflamação, limitar os níveis de açúcar no sangue, encorajar o exercício regular, ajudar a abandonar o tabaco e, caso haja sinais precoces de doença car-díaca, consultar um cardiologista para receber ainda mais conse-lhos. Se tivermos um ataque cardíaco existe toda uma parafernália de terapias eficazes que podem não só salvar-nos a vida, mas tam-bém limitar as lesões cardíacas: temos medicamentos que dão cabo dos coágulos e que conseguem reabrir as nossas artérias coroná-rias obstruídas; temos técnicas de cirurgia de coração aberto que permitem que desviemos os vasos obstruídos e aprendemos que, em alguns casos, tudo o que temos realmente de fazer é enviar o

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paciente para a cama com algum oxigénio, uma aspirina, uma esta-tina e medicamentos para a tensão arterial – em poucos dias, em geral, o doente está pronto para voltar para casa e regressar gradual- mente à sua vida normal.

Mas agora o problema que enfrentamos é a inaptidão, ou talvez seja “aptidão” – ter a certeza de que aplicamos o conhecimento de maneira coerente e correcta. A simples escolha do tratamento certo para uma vítima de ataque cardíaco entre as várias opções já pode ser difícil, mesmo para médicos experientes. Para além disso, seja qual for o tratamento escolhido, cada um deles envolve grandes complexi-dades e armadilhas. Estudos cuidadosos demonstraram, por exem-plo, que as vítimas de ataque cardíaco submetidas a uma terapia de balão intra-aórtico deveriam recebê-lo no espaço de noventa minutos depois de chegarem ao hospital. Após esse período a taxa de sobre-vivência diminui drasticamente3. Em termos práticos, isto significa que, no espaço de noventa minutos, as equipas médicas devem con-cluir todas as análises a cada paciente que aparece numa urgência com dores no peito, fazer o diagnóstico correcto e planear, discutir a deci-são com o paciente, obter o seu consentimento para continuar com o tratamento, confirmar que não tem alergias ou problemas de saúde que não foram considerados, preparar um laboratório e uma equipa de cateterização, transportar o doente e começar a intervenção.

Quais são as probabilidades de isto acontecer, na prática, no espaço de noventa minutos num hospital médio? Em 20064 eram inferio-res a 50 por cento.

Este exemplo não é invulgar. Estes tipos de insucesso são rotina em medicina. Alguns estudos concluíram5 que pelo menos 30 por cento dos pacientes vítimas de um acidente vascular recebem cuida-dos incompletos ou inadequados dos seus médicos, assim como 45 por cento dos pacientes com asma e 60 por cento de pacientes com pneumonia. Acertar os procedimentos está a revelar-se brutalmente difícil, mesmo quando os conhecemos.

Há algum tempo que ando a tentar compreender a origem das nos-sas maiores dificuldades e tensões na área da medicina. Não se trata de dinheiro, nem do governo, nem das ameaças de processos por má

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prática médica ou das burocracias das companhias de seguros – embora cada uma destas situações tenha o seu papel, é a complexidade que a ciência deixou cair sobre nós e as enormes tensões que enfrentamos para cumprir as suas promessas que está na origem dessas dificuldades. O problema não é exclusivamente americano. Já o vi por toda a parte – na Europa, na Ásia, em países ricos e pobres. Além disso descobri, para minha surpresa, que o desafio não se limita à medicina.

O know-how e a sofisticação aumentaram de maneira notável em quase todas as nossas esferas de acção e, consequentemente, a batalha para os pôr em prática. Vemos isto nos erros frequentes que as auto-ridades cometem quando somos atingidos por furacões, tornados ou outros desastres. Vemos isto no aumento de 36 por cento6, entre 2004 e 2007, dos processos contra advogados devido a erros legais – os mais comuns são simples erros administrativos, como falhar um prazo, e deslizes cometidos pelos funcionários, assim como erros na aplicação da lei. Vemos isto na concepção de software cheio de problemas, nos desaires dos serviços secretos internacionais, na nossa banca pericli-tante – de facto, em quase todos os campos que exijam o domínio da complexidade e de grandes quantidades de conhecimento.

Estes insucessos têm uma valência emocional que parece obscure-cer a maneira como pensamos neles. Conseguimos perdoar os insu-cessos devidos à ignorância. Se o conhecimento para fazer a melhor coisa numa determinada situação não existe, contentamo-nos com o facto de as pessoas fazerem o melhor que podem e sabem. Mas se o conhecimento existe e não é aplicado correctamente é difícil não ficarmos exasperados. O que é que quer dizer que metade das vítimas de ataque cardíaco não recebem tratamento a tempo? O que é que quer dizer que dois terços dos casos de pena de morte são anulados devido a erros? Não é por acaso que os filósofos apodam estes insucessos com um vocábulo tão implacável – inaptidão. Os que são assim designados usam outras palavras como negligência ou mesmo crueldade.

No entanto, aqueles que trabalham – os que se preocupam com os pacientes, praticam a lei, respondem quando a necessidade chama – sentem que este julgamento não tem em conta a extrema dificuldade das suas tarefas. Todos os dias há cada vez mais coisas para gerir e

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emendar e aprender. E a derrota em condições de complexidade ocorre muito mais vezes devido aos grandes esforços do que por falta deles. É por isso que a solução tradicional na maior parte das profissões tem sido não punir o fracasso, mas antes encorajar uma maior experiên-cia e formação.

Não se pode duvidar da importância da experiência. A um cirurgião não basta ter um conhecimento empírico sobre a maneira como tratar as vítimas de trauma – compreender a ciência das feridas perfuran-tes, os danos que provocam, as diferentes abordagens ao diagnóstico e tratamento, a importância de agir com rapidez. Também precisa de compreender a realidade clínica, com as suas cambiantes de tempo e sequência. As pessoas precisam de praticar para atingir a mestria, de ter um conjunto de experiências antes de atingir o verdadeiro sucesso. E se aquilo que nos falta quando fracassamos é a habilidade indivi-dual, então o que é necessário é simplesmente mais formação e prática.

Mas o que é mais impressionante nos casos de John é que ele é um dos cirurgiões mais bem preparados que eu conheço, com mais de uma década na linha da frente. E este é o padrão comum. Não é a capaci-dade dos indivíduos que se está a revelar a nossa principal dificuldade, seja na medicina ou noutra área de conhecimento. Longe disso. Na maior parte das áreas, a formação é mais longa e mais intensa do que nunca. As pessoas passam anos a trabalhar sessenta, setenta ou oitenta horas por semana para solidificar a sua base de conhecimento e expe-riência antes de irem trabalhar por conta própria – quer sejam médi-cos, professores, advogados ou engenheiros. Procuram aperfeiçoar-se. Como podemos aumentar substancialmente as competências que já temos não é claro. No entanto, os nossos insucessos continuam a ser frequentes. Persistem, apesar das notáveis capacidades individuais.

> > >

Aqui está a nossa situação no início do século XXI: acumulámos um know-how estupendo. Pusemo-lo nas mãos de algumas das pessoas mais bem formadas, competentes e trabalhadoras da nossa sociedade.

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E, com ele, essas pessoas conseguiram na verdade realizar coisas extra-ordinárias. Mesmo assim, esse know-how é muitas vezes ingoverná-vel. Fracassos que se poderiam evitar são comuns e persistentes, para não dizer que são desmoralizadores e frustrantes, em muitos campos – da medicina à economia, dos negócios ao governo. E a razão é cada vez mais evidente: o volume e a complexidade daquilo que sabemos ultrapassaram a nossa capacidade individual para pôr em prática os seus benefícios de maneira correcta, com segurança ou com confiança. O conhecimento salvou-nos e sobrecarregou-nos ao mesmo tempo.

Isto significa que precisamos de uma estratégia diferente para ven-cer o fracasso, uma estratégia que se apoie na experiência e tire partido do conhecimento que as pessoas têm, mas que de alguma forma tam-bém compense as inevitáveis imperfeições humanas. E essa estratégia existe – embora possa parecer quase ridícula na sua simplicidade, tal-vez até irracional para aqueles de nós que passaram anos a desenvolver cuidadosamente capacidades e tecnologias cada vez mais avançadas.

É uma checklist*.

* Apesar de a Direcção-Geral de Saúde em Portugal ter traduzido o termo “checklist” por “Lista de Verificação [Cirúrgica]”, optou-se pelo termo “checklist” uma vez que é o utilizado na aeronáutica e também, por exemplo, nas actividades de logística. (N. da T.)

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CAPÍTULO 1

O PROBLEMA DA COMPLEXIDADE

EXTREMA

Há algum tempo li o relatório1 de um caso nos Annals of Thoracic Sur-gery. Era, na prosa seca de um artigo de uma revista de medicina, a história de um pesadelo. Numa pequena cidade austríaca dos Alpes, uma mãe e um pai foram dar um passeio pela floresta com a filha de três anos. Os pais perderam-na de vista por um momento e foi o suficiente. A menina caiu num lago. Frenéticos, os progenitores sal-taram atrás dela. Mas a criança ficou perdida debaixo de água durante trinta minutos antes de eles a encontrarem, finalmente, no fundo do lago. Puxaram-na para a superfície e levaram-na para a margem. Seguindo as instruções de uma equipa de urgência que tinham con-tactado por telemóvel, começaram a ressuscitação cardiopulmonar.

O pessoal de salvamento chegou oito minutos mais tarde e fez os primeiros registos do estado da criança. Ela não reagia a nada. Não tinha tensão arterial, pulsação, ou sinais de respirar. A temperatura era de apenas 19 graus. As pupilas estavam dilatadas e não reagiam à luz, indicando a paragem das funções cerebrais. Tinha morrido.

Mas os técnicos da emergência, mesmo assim, continuaram a RCP. Um helicóptero transportou-a para o hospital mais próximo, onde foi levada directamente para a sala de operações, acompanhada por um elemento da equipa de urgência que, debruçado sobre ela na maca, fazia compressões torácicas. Uma equipa de cirurgia ligou-a a uma máquina de bypass coração-pulmões o mais depressa que pode. O cirurgião teve de fazer um corte na virilha direita da criança e coser um dos tubos de borracha de silicone, provenientes da máquina insta-lada numa mesa, na artéria femural para lhe retirar o sangue e depois outro na veia femural para fazer reentrar o sangue. Um perfusionista ligou a bomba e, quando regulava o oxigénio, a temperatura e o fluxo através do sistema, a tubagem transparente ficou avermelhada com o sangue da criança. Só então pararam de fazer compressões torácicas.

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Entre o tempo de transporte e o tempo que levou a ligá-la à máquina, a paciente esteve sem sinais vitais durante uma hora e meia. Contudo, duas horas depois, a temperatura dela tinha subido cerca de dez graus e o coração começou a bater. Foi o primeiro órgão a reagir.

Seis horas depois, a temperatura corporal central tinha atingido os 37 graus, uma temperatura normal. A equipa tentou mudá-la da máquina de bypass para um ventilador mecânico, mas a água e os detritos do lago tinham lesionado demasiado os pulmões da criança para que o oxigénio bombeado através do tubo respiratório conseguisse chegar ao sangue. Assim, em vez disso, mudaram-na para um sistema de pulmões artificial conhecido por oxigenação extracorpórea por mem-brana – ECMO na sigla inglesa. Para o fazerem, os cirurgiões tiveram de lhe abrir o peito ao meio com uma serra mecânica e coser directa-mente as linhas do ECMO portátil na aorta e no coração palpitante.

Agora, a máquina de ECMO assumia o comando. Os cirurgiões retiraram os tubos da máquina de bypass coração-pulmões. Repara-ram os vasos sanguíneos e fecharam a incisão na virilha. A equipa de cirurgia levou a criança para os cuidados intensivos, com o peito ainda aberto coberto por uma película de material plástico esterilizado. Todo o dia e toda a noite a equipa da unidade de cuidados intensivos aspi-rava a água e os detritos dos pulmões da criança com um broncoscó-pio de fibra óptica. No dia seguinte, os pulmões tinham recuperado o suficiente para a equipa a mudar do ECMO para um ventilador mecâ-nico, o que exigiu levá-la de novo para a sala de operações para retirar os tubos, reparar os orifícios e fechar-lhe o peito.

Ao longo dos dois dias que se seguiram, todos os órgãos da criança recuperaram – o fígado, os rins, os intestinos, tudo excepto o cérebro. Uma TAC revelou uma tumefacção generalizada no cérebro, o que é sinal de lesões disseminadas, mas não de zonas mortas. Por isso a equipa deu mais um passo nos cuidados que prestava. Fizeram um orifício no crânio da criança, introduziram uma sonda no cérebro para monitorizar a pressão e mantiveram um controlo apertado dessa pres-são através de regulações constantes dos fluidos e dos medicamentos administrados. Durante mais de uma semana a menina esteve em coma. Depois, lentamente, começou a regressar à vida.

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Primeiro, as pupilas começaram a reagir à luz. Depois começou a respirar sem ajudas. E um dia, simplesmente acordou. Duas semanas após o acidente, foi para casa. A perna direita e o braço esquerdo esta-vam parcialmente paralisados. A fala era entaramelada. Mas recebeu uma intensa terapia em regime ambulatório. Aos cinco anos tinha recuperado todas as suas faculdades. Os exames físicos e neurológi-cos eram normais. Era, outra vez, uma criança como outra qualquer.

O que faz com que esta recuperação seja espantosa não é apenas a ideia de que alguém possa recuperar depois de duas horas num estado que em tempos seria considerado de morte. É também a ideia de que um grupo de pessoas num hospital qualquer tenha conseguido pôr em prática algo tão complicado. O salvamento de vítimas de afoga-mento não tem nada a ver com o que se vê nos programas de televi-são, onde algumas compressões torácicas e respiração boca a boca parecem sempre ressuscitar alguém que tem os pulmões cheios de água e o coração parado, a tossir e a cuspir. Para salvar esta criança em particular, inúmeras pessoas tiveram de levar a cabo centenas de acções de maneira correcta: colocar-lhe os tubos da bomba cora-ção-pulmões sem deixar entrar ar, manter as linhas intravenosas, o peito aberto e o fluido exposto no cérebro esterilizados, manter um grupo de máquinas imprevisíveis ligadas e a funcionar. O grau de dificuldade de qualquer uma destas acções já é capital. Depois é pre-ciso acrescentar as dificuldades de as organizar com a sequência certa, sem que nada falhe, deixando espaço para alguma improvisa-ção, mas não muito.

Por cada criança afogada e sem pulsação salva, existem muitas mais que não recuperam – e não só porque os seus corpos já estão muito para lá de qualquer recuperação possível. As máquinas avariam. Uma equipa não consegue trabalhar com o ritmo suficiente. Alguém se esquece de lavar as mãos e as infecções instalam-se. Estes casos não são objecto de artigos nos Annals of Thoracic Surgery, mas são a norma, embora as pessoas não se apercebam disso.

Penso que fomos enganados quanto ao que podemos esperar da medicina – enganados, poder-se-ia dizer, pela penicilina. A desco-berta de Alexander Fleming em 1928 encerrava uma visão sedutora

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dos cuidados de saúde e do modo como se iriam tratar as doenças ou os ferimentos no futuro: um simples comprimido ou injecção seriam capazes de curar não só uma doença, mas talvez muitas. Ao fim e ao cabo, a penicilina parecia ser eficaz contra uma variedade espantosa de doenças infecciosas anteriormente sem tratamento. Portanto, por-que não uma cura total semelhante para os diferentes tipos de cancro? E porque não algo igualmente simples para fazer desaparecer quei-maduras na pele e reverter as doenças cardiovasculares e os enfartes?

Todavia, não foi este o caminho da medicina. Depois de um século de descobertas incríveis, a maior parte das doenças demonstraram ser muito mais específicas e difíceis de tratar. Isto é verdade até para as infecções que os médicos costumavam tratar com penicilina: nem todas as estirpes bacterianas eram sensíveis e as que eram depressa desenvolveram resistências. Hoje em dia, as infecções exigem um tra-tamento muito individual, às vezes com múltiplas terapias, com base no padrão de sensibilidade de uma determinada estirpe aos antibió- ticos, no estado do paciente e nos sistemas de órgãos que são afecta- dos. O modelo da medicina na idade moderna parece-se cada vez menos com o da penicilina e cada vez mais com o que foi necessário para a menina que quase morreu afogada. A medicina transformou- -se na arte de gerir a complexidade extrema – e um teste para se saber se essa complexidade pode, de facto, ser dominada humanamente.

A nona edição da classificação internacional das doenças da Orga-nização Mundial de Saúde foi aumentada e distingue agora mais de treze mil doenças, síndromes e tipos de lesões diferentes – por outras palavras, mais de treze mil maneiras de possíveis disfunções do corpo. E, em grande parte, a ciência deu-nos instrumentos para ajudar. Se não conseguimos curar a doença, normalmente podemos reduzir o mal e a infelicidade que ela provoca. Mas, para cada estado de saúde, as medidas a tomar são diferentes e quase nunca são simples. Os clí-nicos têm agora à sua disposição cerca de seis mil medicamentos e quatro mil procedimentos médicos e cirúrgicos, cada um com requi-sitos, riscos e factores diferentes. É muita coisa para acertar.

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Na Kenmore Square, em Boston, há um hospital local associado ao meu. A expressão “hospital local” faz com que o lugar pareça minús-culo, mas não é nada disso. Fundado em 1969, e agora designado Harvard Vanguard, tinha como objectivo prestar às pessoas todos os serviços médicos de ambulatório de que pudessem precisar ao longo das suas vidas. Desde essa altura que tenta cumprir aquele objectivo, mas na prática não tem sido fácil. Para se manter a par do crescimento explosivo das capacidades médicas, o hospital teve de construir mais de vinte instalações e empregar cerca de seiscentos médicos e um milhar de outros profissionais de saúde que cobrem cinquenta e nove especialidades, muitas das quais não existiam quando foi inaugurado. Quando dou os cinquenta passos entre o elevador do quinto piso e o departamento de cirurgia geral, passo por consultórios de medicina interna geral, endocrinologia, genética, cirurgia da mão, laboratórios de análises, nefrologia, oftalmologia, ortopedia, marcação de radiolo-gias e urologia – e isto apenas num corredor.

Para darmos conta da complexidade, dividimos as tarefas entre várias especialidades. Mas mesmo dividido, o trabalho pode ser avassalador. Por exemplo, ao longo de um dia de serviço na cirurgia geral do hos-pital, o piso da maternidade pediu-me para ver uma mulher de vinte e cinco anos de idade com uma dor abdominal crescente na parte inferior direita do abdómen, febre e náuseas, que suscitou preocupa-ções sobre uma apendicite, mas como ela estava grávida fazer uma TAC para excluir aquela possibilidade colocava o feto em risco. Um ginecologista oncológico enviou-me uma mensagem para a sala de operações sobre uma mulher com uma massa nos ovários que depois de ser retirada parecia ser uma metástase de um cancro no pâncreas. O meu colega queria que eu examinasse o pâncreas da paciente e que decidisse se se fazia ou não uma biopsia. Um médico de um hospital próximo telefonou-me para transferir uma doente dos cui-dados intensivos com um cancro de grandes dimensões, que tinha crescido de tal maneira que lhe obstruía os rins e os intestinos e pro-duzia uma hemorragia que estavam com dificuldade de controlar.

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O nosso serviço de medicina interna chamou-me para observar um homem de sessenta e um anos com um enfisema tão grave que lhe fora recusada uma operação à anca devido às reservas insuficientes dos pulmões. Agora tinha uma infecção grave no cólon – uma diver-ticulite aguda – que piorara apesar de estar a tomar antibióticos há três dias e a cirurgia parecia ser a única opção. Outro serviço pediu- -me ajuda para um homem de cinquenta e dois anos com diabetes, doença coronária, tensão arterial elevada, insuficiência renal cró-nica, uma obesidade grave, um enfarte e agora uma hérnia estrangu-lada na virilha. E um clínico geral chamou-me para ver uma mulher jovem com um possível abcesso rectal que devia ser lancetado, mas fora disso saudável.

Confrontado com casos tão variados e complicados – num dia tinha tido seis pacientes com seis problemas médicos importantes comple-tamente diferentes e um total de vinte e seis diagnósticos adicionais diversos – é tentador acreditar que ninguém tem um trabalho tão complexo como o meu. Mas a complexidade extrema é a regra para quase toda a gente. Perguntei às pessoas que trabalham no arquivo dos registos médicos do Harvard Vanguard se podiam fazer uma busca no sistema electrónico para ficar a conhecer a quantidade de tipos dife-rentes de problemas com os pacientes que um médico médio atende por ano. A resposta que me deram2 assarapantou-me. Ao longo de um ano de exercício no consultório – o que, por definição, exclui os pacientes vistos no hospital – cada médico analisou, em média, 250 doenças e estados de saúde importantes diferentes. Os seus doentes tinham mais de novecentos outros sintomas de problemas de saúde que precisavam de ser considerados. Cada médico receitou cerca de trezentos medicamentos, pediu mais de cem tipos diferentes de aná-lises e realizou uma média de quarenta tipos de procedimentos dife-rentes no consultório – desde vacinações à estabilização de fracturas.

Mesmo considerando apenas o trabalho no consultório, as estatís-ticas ainda não abrangiam todas as doenças e estados de saúde. Um dos diagnósticos mais comuns, fiquei a saber, era “Outras”. Num dia caótico, quando estamos duas horas atrasados e as pessoas na sala de espera começam a ficar irritadas, podemos não perder tempo a

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registar os códigos de diagnóstico correctos na base de dados. Mas mesmo quando temos tempo, é normal descobrirmos que as doen-ças específicas dos nossos pacientes, na realidade não existem no sis-tema informático.

O software usado na maior parte dos registos electrónicos não con-seguiu incluir todas as doenças que foram descobertas e distingui-das umas das outras em anos recentes. Uma vez atendi um doente com um ganglioneuroblastoma (um tipo raro de tumor na glândula supra-renal) e outro com uma doença genética tenebrosa designada síndrome de Li-Fraumeni que faz com que os descendentes desen-volvam cancros em todos os órgãos do corpo. Nenhuma das doenças tinha ainda chegado à barra de menus. Tudo o que consegui regis-tar, foi, nestas precisas palavras, “Outras”. Os cientistas continuam a relatar novas descobertas genéticas importantes, subtipos de cancro e outros diagnósticos – para não falar de tratamentos – quase semanal-mente. A complexidade está a aumentar com tanta rapidez que nem sequer os computadores a conseguem acompanhar.

Mas não é apenas a amplitude e a quantidade de conhecimento que fazem com que a medicina seja complicada. É também a execução – a matéria prática daquilo que o conhecimento exige que os médicos façam. O hospital é onde vemos como a tarefa pode ser hercúlea. Um dos exemplos principais é o lugar onde a menina que quase se afo-gou passou a maior parte do seu tempo de recuperação – a unidade de cuidados intensivos.

É uma expressão obscura, cuidados intensivos. Os especialistas dessa área preferem chamar ao que fazem cuidados críticos, mas isto ainda não esclarece exactamente as coisas. A expressão leiga, suporte vital, é ligeiramente mais esclarecedora. A lista de lesões a que o corpo humano consegue sobreviver nos dias que correm é tão espantosa como terrível: esmagamentos, queimaduras, bombardeamentos, uma aorta reben-tada, uma ruptura no cólon, um ataque cardíaco devastador, infecções violentas. Em tempos, estas doenças eram normalmente fatais. Agora a sobrevivência é um lugar comum e uma grande parte do reconhe-cimento deve ser atribuído às capacidades que as unidades de cuida-dos intensivos desenvolveram para controlar artificialmente corpos

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em declínio. Normalmente isto exige uma panóplia de tecnologias – um ventilador mecânico e talvez um tubo inserido através de uma tra-queotomia se houve colapso dos pulmões, uma bomba para um balão na aorta se o coração desistiu, uma máquina de diálise se os rins não funcionam. Se estivermos inconscientes e não conseguirmos comer, podem inserir-se tubos de silicone através de uma cirurgia no estô-mago ou nos intestinos para recebermos uma fórmula alimentar. Se os intestinos estiverem demasiado danificados, podem ser adminis-tradas soluções de aminoácidos, ácidos gordos e glucose directamente na corrente sanguínea.

Todos os dias3, só nos Estados Unidos da América, cerca de noventa mil pessoas são internadas nos cuidados intensivos. Ao longo de um ano calcula-se que serão internados cinco milhões de americanos e durante uma vida normal quase todos nós iremos conhecer a sala envi-draçada de uma UCI pela parte de dentro. Vastas áreas da medicina dependem agora dos sistemas de suporte vital que as UCI proporcio-nam: cuidados de saúde para crianças prematuras, para vítimas de traumas, de enfartes e de ataques cardíacos, para pacientes que foram operados ao cérebro, ao coração, aos pulmões ou a vasos sanguíneos importantes. Os cuidados críticos transformaram-se na parte cada vez maior daquilo que os hospitais fazem. Há cinquenta anos atrás as UCI quase não existiam. Agora, para falar de um dia recente esco-lhido ao acaso no meu hospital, 155 dos nossos cerca de 700 pacientes estão nos cuidados intensivos. A permanência média4 de um doente na UCI é de quatro dias e a taxa de sobrevivência de 86 por cento. Ir para uma UCI, ser ligado a um ventilador mecânico, ter tubos e fios a entrar e a sair de nós, não é uma sentença de morte. Mas esses dias serão os mais precários da nossa vida.

Há quinze anos atrás5, cientistas israelitas publicaram um estudo em que alguns engenheiros observaram o tratamento de pacientes nas UCI por períodos de vinte e quatro horas. Descobriram que o paciente médio exigia 178 acções individuais por dia, que iam desde a adminis-tração de um medicamento até à aspiração dos pulmões, e todas elas apresentavam riscos. Extraordinariamente, observaram que as enfer-meiras e os médicos só erravam em apenas 1 por cento destas acções

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– mas isso ainda constituía uma média de dois erros por dia com cada doente. Os cuidados intensivos só têm êxito quando mantemos as hipóteses de provocarmos sequelas negativas suficientemente bai-xas para que as hipóteses de fazermos as coisas bem prevaleçam. Isto é difícil. O simples facto de se estar deitado inconsciente numa cama durante alguns dias apresenta perigos6. Os músculos atrofiam-se. Os ossos perdem massa. Formam-se escaras. Começam a formar-se coá-gulos nas veias. É preciso alongar e exercitar os membros flácidos dos pacientes, todos os dias, para evitar contracturas. É preciso adminis-trar injecções subcutâneas de diluentes do sangue pelo menos duas vezes por dia, virar os pacientes na cama com intervalos de poucas horas, dar-lhes banho e mudar-lhes os lençóis sem derrubar um tubo ou deslocar uma linha, escovar-lhes os dentes duas vezes por dia para evitar pneumonias provocadas pelo amontoar de bactérias na boca. Junte-se a isto um ventilador, diálise e o tratamento de feridas aber-tas e as dificuldades só aumentam.

A história de um dos meus pacientes é esclarecedora. Anthony DeFi-lippo era um condutor de limusinas de quarenta e oito anos de Eve-rett, Massachusetts, que começou a ter hemorragias num hospital local durante uma cirurgia a uma hérnia e a pedras na vesícula. Finalmente, o cirurgião conseguiu parar a hemorragia, mas o fígado de DeFilippo foi gravemente lesionado e nos dias que se seguiram ficou demasiado doente para as aptidões do hospital. Aceitei a sua transferência para o estabilizar e descobrir o que fazer. Quando ele chegou à nossa UCI, às 13:30 de um domingo, tinha o cabelo desalinhado colado à testa cheia de suor, o corpo tremia e o coração batia a 114 pulsações por minuto. Estava delirante devido à febre, ao choque e ao baixo nível de oxigénio.

– Preciso de sair daqui! – gritava. – Preciso de sair daqui! – Tentou tirar a bata, a máscara de oxigénio e os pensos que cobriam a ferida no abdómen.

– Está tudo bem, Tony – disse-lhe uma enfermeira. – Vamos ajudá- -lo. Está no hospital.

Ele empurrou-a – era um homem de grande envergadura – e tentou balançar as pernas para fora da cama. Aumentámos o fluxo de oxigé-nio, amarrámos-lhe os pulsos com uns panos e tentámos chamá-lo

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à razão. Finalmente cansou-se e deixou-nos tirar sangue e adminis-trar-lhe antibióticos.

Foram-nos entregues as análises que revelavam insuficiência hepá-tica e uma contagem de glóbulos brancos que subia em flecha, o que indicava infecção. Depressa se tornou evidente pela observação do saco de urina vazio que os rins também não funcionavam. Ao longo das horas que se seguiram a tensão arterial baixou, a respiração pio-rou e o doente passou da agitação quase para a inconsciência. Cada um dos seus sistemas orgânicos, incluindo o cérebro, estava a falhar.

Telefonei para a irmã, a parente mais próxima, e expliquei-lhe a situação.

– Façam tudo o que puderem – disse ela.Assim fizemos. Administrámos-lhe um seringa cheia de anestési-

cos e um interno introduziu um tubo respiratório na garganta. Outra interna “preparou-o”. Inseriu uma agulha com cerca de cinco cen-tímetros de comprimento e um cateter através do pulso esquerdo, virado para cima, na artéria radial, depois coseu-lho à pele com uma sutura de seda. Em seguida colocou-lhe um cateter venoso central – um cateter com cerca de 30 centímetros introduzido na veia jugular no lado esquerdo do pescoço. Depois de ter cosido o cateter, e de um raio-X mostrar a ponta flutuante exactamente onde deveria estar – no interior da veia cava à entrada do coração – colocou-lhe uma ter-ceira linha, ligeiramente mais grossa, destinada à diálise, através da parte superior do peito para dentro da veia subclávia, enterrando-a bem debaixo da clavícula.

Prendemos um tubo respiratório à mangueira de um ventilador e regulámo-lo para aplicar catorze inspirações forçadas de oxigénio a 100 por cento a cada minuto. Regulámos as pressões do ventilador e o fluxo de gás para cima e para baixo, como se fôssemos engenhei-ros perante um painel de controlo, até conseguirmos ter os níveis de oxigénio e de dióxido de carbono no sangue onde queríamos. A linha arterial indicava-nos continuamente os valores da tensão arterial e cor-rigimos-lhe a medicação para obtermos as tensões que pretendíamos. Regulámos os fluidos intravenosos de acordo com os valores da ten-são venosa tomados na linha jugular. Ligámos a linha da subclávia à