O encontro entre a história de vida de Mestre Alcides, a memória e a cultura oral na luta por
uma educação partilhada
ROBERTA NAVAS BATTISTELLA*1
“Nós, como somos de culturais tradicionais, a gente sempre abre uma roda de
conversa cantando alguma coisa, falando alguma coisa. Eu vou cantar um Ponto do
Congo – Catupé Cacundê, lá de Minas, que eu dancei desde criança e ainda faço
parte deste grupo até hoje. Não temos as caixas aqui, mas vai sem caixa…
Quando eu fui para cumbara grande, (quando fui para cidade grande)
eu passei no injó de jambê, (passei na igreja)
o n’nganga tava no altar, (n’nganga é um título de poder, pode ser uma imagem do
santo daquela igreja)
eu com meu tipunga na mão, (eu fiquei com meu chapéu na mão)
ô marunga ajoelha no chão (ajoelha no chão),
côro: ô marunga ajoelha no chão
quando eu pisei nesse chão
eu senti a terra tremer
eu pensei que fosse o meu peso e não era
era o peso de vocês
côro: ô marunga ajoelha no chão...”
(Trecho do ponto de Congado Catupé Cacundê – Mestre Alcides)
Conheci Mestre Alcides, Alcides de Lima Tserewaptu, no interior das vivências de um
curso de extensão ministrado por mestres da cultura oral e acadêmicos em dezembro de 2012,
intitulado Pedagogia Griô e Produção Partilhada do Conhecimento, sediado na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Por meio desta
iniciativa, pude vivenciar, experimentar e refletir sobre propostas e novas abordagens
conceituais do universo das culturais orais do Brasil e das possibilidades de uma maior
socialização destes saberes no âmbito do ensino em geral, motivo que me encantou para
pensar um projeto de mestrado e partilhar boas inquietações, também, ao longo deste texto.
As discussões apresentadas durante a semana de atividades do curso dialogaram com a
experiência da minha monografia2, na qual já havia defendido o processo de produção de
* Universidade de São Paulo; mestranda no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras
Legitimidades, do Núcleo Diversitas – FFLCH; bolsista CAPES. 2 Breve descrição da monografia pelas duas autoras, Luana Zorzette e Roberta Navas Battistella, disponível em:
< https://www.youtube.com/watch?v=SuL39DzzzLY> Acesso em: 24 fev.2016.
2
informação e conhecimento por comunidades da periferia do município de São Paulo que,
muitas vezes, apresentavam gêneros da história oral a partir de uma outra perspectiva, como,
por exemplo, por meio do rádio e da internet para a transmissão de histórias de vidas e do
cotidiano em que vivem. Além da elaboração da monografia, que me aproximou das histórias
de vidas de algumas pessoas e da maneira como compartilhavam seu cotidiano na
comunicação comunitária, atuei ao longo de quatro anos em ONGs que desenvolviam
trabalhos no contexto da cultura e da educação, promovendo espaços de produção cultural e
participação social em encontros, campeonatos, festivais e debates a fim de estimular a
formação de parcerias entre a comunidade e organizações locais e a aproximação com o poder
público, tanto para o desenvolvimento das atividades, quanto para que houvesse uma
corresponsabilização pela manutenção destes espaços comuns.
Passei, aos poucos, a construir uma proximidade com as temáticas desenvolvidas no
Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos - um dos
responsáveis pelo desenvolvimento do curso de extensão mencionado -, participando de
cursos, palestras e disciplinas do programa de pós-graduação. Assim, questões como
memória, diversidade, cultura oral, os fundamentos dos estudos com base em história oral,
passaram a ter uma importância primordial para a futura e atual pesquisa de mestrado que
venho desenvolvendo. O ponto de partida e, talvez, o de chegada sempre teve como intenção
a reflexão sobre um processo contínuo de desenvolvimento de saberes plurais que
acontecerão/aconteceram de acordo com uma abertura dialógica no âmbito acadêmico. Assim,
os preceitos da história oral também estão afinados com os fundamentos fenomenológicos da
proposta da produção partilhada do conhecimento, que tem como um dos principais valores a
lógica e ação de uma educação que que se faz partilhada na prática cotidiana.
A HISTÓRIA DE VIDA DO GRIÔ ALCIDES - BREVE RELATO
Alcides de Lima nasceu em Estrela do Sul, Minas Gerais. Seus pais vêm de uma
família de congados, que abrigam a tradição do Catupé Cacundê, O grupo existe até hoje e é
comandado por seu tio Chico Mané, considerado como o grande guardião deste saber e uma
referência para as aproximações iniciais da capoeira. Já em São Paulo, Mestre Alcides inicia
outra etapa de sua trajetória a partir de 1969, tendo conhecido a capoeira por meio do
Mestre Eli Pimenta, então aluno da Faculdade de Filosofia Letras Ciências Humanas da
3
USP (Ciências Sociais), formado em capoeira no final da década de 1960 pela Associação de
Capoeira Cordão de Ouro, do Mestre Suassuna.
As aulas de capoeira aconteciam no vestiário do aquário, piscina carinhosamente
assim denominada pelos moradores do CRUSP, Conjunto Residencial dos Moradores da
Universidade de São Paulo, na época ISSU, Instituto de Saúde e Serviço Social. Naquele
período, devido ao regime militar e à invasão do Conjunto Residencial da USP (CRUSP),
este foi o local encontrado para que as atividades do grupo não acabassem.
O curso de capoeira era ministrado por Mestre Eli Pimenta e Mestre Freguesia,
baiano de Itabuna, ambos formados pelo Grupo Cordão de Ouro e contava com frequente
presença de alunos, professores e funcionários da USP. Após 1970, o curso passou pelos
Centros Acadêmicos das Faculdades de Ciências Sociais e Arquitetura e Urbanismo para, a
partir daí, ser oferecido em um galpão situado entre a Escola Politécnica e a Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade até 1990, quando o local foi demolido. Então
aconteceu a transferência das atividades do grupo para o CRUSP novamente, a convite da
AMORCRUSP, Associação dos Moradores do CRUSP.
Mestre de Capoeira desde 1980, Alcides foi professor de educação física e técnico de
apoio ao ensino e pesquisa no Instituto Oceanográfico da USP. Em 1985 formou-se em
pedagogia e em 1988, juntamente ao Mestre Dorival dos Santos, elaboraram o Estatuto
Social do CEACA por meio de um projeto denominado ”Expresse-se com Consciência – Faça
Capoeira”, com o objetivo de trabalhar a capoeira principalmente em seus aspectos
culturais, desenvolvendo no indivíduo suas aptidões para as artes em geral e também a
educação. Nesse mesmo ano foi fundado o CEACA3 (Centro de Estudos e Aplicação da
Capoeira), sendo que Mestre Alcides atualmente preside o Centro, liderando as atividades
criadas e partilhando os saberes da cultural afro-brasileira presentes na capoeira, no
congado e em outras manifestações culturais de matriz africana.
Em 2006, coordenou, em parceria com o Ministério da Cultura, a Ação Griô
Nacional, que envolveu em torno de 600 instituições de educação e cultura e mais de 700
griôs e mestres de tradição oral no Brasil. Sua atuação na coordenação e mobilização
resultou na articulação política nacional do Projeto de Lei Griô, que se concentrou em
3 Portal do Ceaca (Centro de Estudos e Aplicação da Capoeira) disponível em:
<https://capoeiraceaca.wordpress.com/ > Acesso em: 03 mar. 2016.
4
audiências públicas nos estados e nas conferências de cultura em 2010. Esse processo foi
imprescindível para que o Projeto de Lei conquistasse o posto de uma das 32 prioridades da
política cultural do Brasil na II Conferência Nacional de Cultura. Atualmente, Alcides é
membro da Comissão Nacional dos Griôs e Mestres de Tradição Oral do Brasil.
O breve relato necessitou ser resumido devido ao espaço e proposta de discussão deste
momento, mas na composição do projeto de mestrado, nos baseamos em diversas definições
da história oral para que se pudessem extrair possibilidades de análise e reflexão sobre a
relação que constitui com Mestre Alcides, como também das entrevistas realizadas, as
vivências e este modo de partilhar conhecimento.
O historiador José Carlos Sebe Bom Meihy e a historiadora Fabíola Holanda,
apresentam a história oral como “um recurso moderno usado para a elaboração de registros,
documentos, arquivamento e estudos referentes à experiência social de pessoas e de grupos”
(2014:17). Outro aspecto inerente à essa maneira de construir conhecimento é que também
representa “uma história do tempo presente”, “reconhecida como história viva”. Conta,
portanto, com a entrevista como sempre sendo um processo mediado pelo diálogo (2014:19).
Já o autor Paul Thompson nos indica que a “história oral é uma história construída em
torno de pessoas” (1992:44), admitindo e reconhecendo que “heróis” podem vir não somente
das instâncias institucionais de liderança, “mas dentre a maioria desconhecida do povo”. Um
novo fator interessante que toca diretamente ao encontro geracional entre mim, pesquisadora
de vinte e oito anos, e Alcides de Lima, mestre de capoeira de sessenta e nove anos, é como a
história oral pode propiciar o “contato – e a compreensão – entre classes sociais e entre
gerações. Em suma, contribui para formar seres humanos mais completos” (1992:44).
Estamos partilhando formas de ser, valores e respeito frente à diversidade, ou seja,
conhecendo, aprendendo e produzindo com e sobre o outro.
Verena Alberti define a história oral como um “método de pesquisa que privilegia a
realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam,
acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de
estudo” (2013:24). No projeto que propusemos realizar, não falamos em objeto, mas sim de
sujeito, relação mais horizontalizada, na qual este é o sujeito conceitual configurando-se, ao
mesmo tempo, como objeto e sujeito da pesquisa-diálogo. É um processo de desconstrução do
sujeito pesquisador e da dilatação de seu papel de interlocução e mediação junto à sua
5
proposta temática e, neste caso, junto ao Mestre Alcides e toda a riqueza de sua trajetória de
vida.
Consideramos que as narrativas sobre as histórias de vida, baseadas nesta transmissão
pela palavra falada, têm seu legado não somente na veracidade, mas na certeza do sujeito e de
sua história. “Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar-se
na história de sua vida” (BOSI, 2003:37).
MEMÓRIA E CULTURA ORAL
Para pensarmos a caminhada de um griô e o sentido da memória na transmissão de
saberes por meio da tradição oral, precisamos dissertar brevemente sobre os caminhos de
alguns griots da África e buscar as possíveis relações com a narrativa apresentada pelo Mestre
Alcides; como também a adoção deste conceito aqui no Brasil. Vamos perpassar pela tradição
oral, pela memória e pelas manifestações culturais como congado e capoeira, constantemente
em diálogo com narrativa da vida de Alcides para refletirmos de que maneira foram
constituindo este Griô.
Em um processo de reconstrução da lembrança no âmbito da história oral é necessário
reconhecer que Mestre Alcides, por sua capacidade de contar e recontar minuciosamente os
fatos, vivências, com aspectos místicos, caracteriza sua memória por meio destes traços e pela
(re)invenção da própria vida. Ele compreende profundamente a importância da palavra, que
aqui se encontra ao conceito de tradição oral, e busca disseminá-la em todos os espaços em
que atua. Além dele, como mesmo disse, “ter uma ancestralidade aguçada”, que vê, sente e
tem vontade de compartilhar quase que a todo tempo.
E o que podemos considerar por tradição oral? Identificá-la em seu valor pleno, é
afirmar sua íntima conexão à grande escala da vida, recuperando dela seus aspectos e
buscando suas múltiplas relações e pensamentos (KI-ZERBO, 2010:169). Literalmente, a
tradição oral aparece como “repositório e o vetor do capital de criações socioculturais
acumuladas pelos povos ditos sem escrita: um verdadeiro museu vivo” (KI-ZERBO, 2010:
XXXVIII).
Mestre Alcides estabeleceu com o universo da tradição oral, desde sua infância,
relações de aprendizado, não somente atreladas à ancestralidade de sua família, como também
6
pelos encontros com pessoas, lugares, situações, nas quais aprendia por meio de diálogos,
vivências e da cultura oral, assim constituindo a diversidade da sua identidade.
Os modos de pelos quais aprende, coleta e transmite este conhecimento vivido,
perpassaram e perpassam necessariamente pela oralidade; compreendê-la como a principal
forma de partilha de valores e conhecimento no contexto brasileiro é perceber e reconhecer
que é pelo discurso da tradição oral que estabelecemos um dos vínculos mais arraigados entre
a palavra e o homem (KI-ZERBO, 2010:168).
O conceito de tradição oral dialoga com Jan Vansina (2010), que nos apresenta sua
definição como sendo “de fato, um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para
outra”4 . As figuras que representavam esta transmissão, em África, eram os mestres da
tradição oral e griots5, que podem ser divididos em griots músicos, griots embaixadores e
genealogistas.
“Segundo o antropólogo guineano Sory Camara (1992, p7), só no final do século
XVII, com as relações estabelecidas nas viagens colonizadoras, a França e o
Ocidente tomaram conhecimento da figura que hoje chamamos de griot. Os homens
foram então chamados de guiriot ou griot e as mulheres de guiriotte ou griotte. No
entanto, os gritos já eram conhecidos pelos viajantes árabes a partir do século XV.
Para os europeus, eles eram apenas músicos, já para os árabes, poetas. Ainda hoje é
muito comum se considerar griot unicamente um artista ou contador de histórias. No
entanto seus atributos, sua função e sua missão são bem mais amplos e profundos”.
(BERNAT, 2013:49)
No caso específico do Brasil, ao investigarmos como se deu o uso adaptado da
terminologia griot no português, descobrimos que a responsável por esse abrasileiramento é
Líllian Pacheco6, datando em 1998. Líllian esteve presente no curso de extensão Pedagogia
Griô e Produção Partilhada do Conhecimento. Neste mesmo momento, estava seu
4 VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, J.(coord.) Metodologia e Pré História da
África, História Geral da África. Brasília: UNESCO, 2010. p.139,140. 5 Hampâté Bâ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia e Pré-História da África,
História Geral da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1. p.193. 6 Líllian Pacheco, educadora biocêntrica, facilitadora de biodança, escritora e poeta; criadora da Pedagogia Griô;
idealizadora e coordenadora pedagógica do projeto institucional Grãos de Luz e Griô, Lençóis BA e dos projetos
Ação Griô Nacional, Trilhas Griôs Chapada Diamantina e Universidade Griô; Primeiro lugar nacional no prêmio
Itaú Unicef; primeiro lugar nacional no prêmio Democratização Cultural, Destaque Nacional no Prêmio Cultura
Viva; assessor da Comissão Nacional dos Griôs e Mestres e da Rede Ação Griô na sistematização da Lei Griô
Nacional; Escritora, organizadora e produtora dos livros Pedagogia Griô: a reinvenção da roda da vida; O Mito
do Diamante; Nação Griô: o parto mítico da identidade do povo brasileiro e O Amor e a Amora: as lutas de uma
mulher com deus; e de roteiros de aula espetáculo e vídeos apresentados em festivais locais, regionais, nacionais
e internacionais; co-coordenadora do Projeto de Curso de Extensão e Pós Graduação na Pedagogia Griô e
Produção Partilhada do Conhecimento - Diversitas – USP.
7
companheiro e griô iniciado nas tradições orais do Mali, em África, Márcio Caires. No artigo
publicado no Dossiê Pedagogia Griô 7 , organizado pelo Núcleo Diversitas, com o qual
colaboramos com a organização, Pacheco diz que:
[…] O contato com a palavra veio do universo da Antropologia e da História da
África. Porém utilizá-la, não foi uma decisão científica, foi uma orientação espiritual
que vivenciamos, eu e Márcio Caires, com o universo de segredos e mistérios das
culturas de tradição oral de Lençóis, Bahia. O que posso dizer é que a palavra foi
abrasileirada durante nossa caminhada como educadores e idealizadores do Grãos de
Luz e Griô, nas comunidades de Lençóis, Chapada Diamantina em busca de criar
um projeto politico pedagógico e uma pedagogia nas comunidades tradicionais da
região onde nascemos…Compreendemos que não podíamos nos relacionar com os
mestres griôs como pesquisadores acadêmicos com instrumentos e linguagens de
tradição escrita, compreendemos que tínhamos que assumir o lugar de aprendizes da
tradição oral com a sua própria linguagem de vínculo, elaboração e transmissão…”
(PACHECO, 2014:56)
Griô simboliza uma forte expressão, tanto da valorização dos saberes orais oriundos dos
recônditos rurais e das cidades brasileiras, como da valorização do encontro entre a
brasilidade e o mundo diverso que a compôs. Logo, o saber do griô está calcado na tradição
oral, aqui definida por um saber que é transmitido de geração em geração, e que reinaugura a
cada novo nascimento a reprodução de si própria, e do contato com o outro. É possível pensar
que tal tradição seja compreendida como um saber que habita o corpo e que se expressa na
contação de histórias, pelo ritmo e encantamento sonoros e por objetos que carregam uma
longa historicidade, ou até mesmo em celebrações e manifestações culturais do congado e da
capoeira.
Ao narrar sua vida, Mestre Alcides afirmou que, quando ainda estamos vivos, de uma
forma ou de outra, somos o nosso próprio testemunho. Tal fala dialoga diretamente com o que
o autor Hampâté Bâ (2010) entende por testemunho, definindo-o como “todas as declarações
feitas por uma pessoa sobre uma mesma sequência de acontecimentos passados” 8 . Tais
declarações podem estar baseadas em “narrativas de testemunhos oculares, boatos ou em uma
nova criação baseada em diferentes textos orais”9.
Desta maneira, conforme aponta Beatriz Sarlo, não há “testemunho sem experiência,
mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da
7 Disponível em: <http://diversitas.fflch.usp.br/node/3661> Acesso em 29 mar.2016. 8 Hampâté Bâ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia e Pré-História da África,
História Geral da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1. p.193. 9 Idem.
8
experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no
comunicável, isto é, no comum” (SARLO, 2009,:24).
De acordo com Mestre Alcides, os griôs e mestres da tradição oral “são todos aqueles e
aquelas que detêm um saber que vem sendo transmitido por várias gerações, secular ou
milenar através da oralidade, e se reconhece e é reconhecido por sua comunidade” (LIMA,
2015:4). Ou seja, a construção se faz por meio de vivências e experiências de histórias do seu
povo no interior da rede de histórias das comunidades e torná-las públicas, comuns, faz parte,
naturalmente, do cotidiano de um griô: é o que o mantém vivo.
Para ele, seu Tio Chico, o Capitão Chico Mané, do Congado Catupé Cacundê (Araguari,
MG) é um griô; sua sabedoria é reconhecida como existente graças aos antepassados que a
criaram por meio de um movimento dinâmico de culturas em frequente formação – que
chegaram ao Brasil e têm constituído seus modos de transmissão pela oralidade. Tal sabedoria
também expressa uma entrega ao mundo de sua comunidade, no sentido de uma série de
trocas que envolvem ou precisam envolver “dialética entre informação e interpretação, entre
educadores e suas localidades, entre classes e gerações” (THOMPSON, 1992:44).
É possível dizer que tanto os povos originários como as pessoas que foram
violentamente retiradas de suas terras e levadas a contextos adversos, como no período da
escravidão, tiveram suas vidas e conhecimento subordinados à lógica da exploração, de uma
colonização que não foi apenas cultural.
Qual a motivação, portanto, para a estudar a história de vida de um Mestre de capoeira,
um griô? Estamos falando de um processo contínuo, árduo de reconhecimento e valorização
dos “sujeitos da história”. Afinal, quem escreve sobre o quê? De que maneira os relatos
baseados na oralidade trazem consigo o valor e a voz de quem os realmente constituiu?
“... na África, mais do que em outros lugares, a tradição oral é parte integrante da
base documental do historiador, que desse modo se amplia. A história africana não
pode mais ser feita como no passado, quando a tradição oral – que é uma
manifestação do tempo – era afastada da investigação histórica”. (OBENGA,
2010:72)
Um dos traços mais presentes na relação dos griôs com os seus saberes ancestrais vem
da memória, mas também da sobrevivência das práticas culturais em grupos cujas resistências
permitem encontrar aqueles elementos no cotidiano dos povos inseridos em diferentes
9
espaços territoriais e sociais, não somente pelo potencial intrínseco de reavivar o passado,
como também de integrar os próprios traços da experiência vivida e em curso. A memória é
destacada como elemento fundamental à sua própria noção de registro, passado no âmbito da
tradição oral, alcança o patamar de transmissão de conhecimento e caráter documental.
Posto isto, é possível dizer que a tradição oral é a representação viva de uma memória
que se atualiza por meio da soma das consciências individuais, e é deste encontro que se
compartilha. constituindo, de certa forma, a cultura oral.
Maurice Halbwachs dialoga com a atribuição da memória diretamente a uma entidade
coletiva que ele chama de grupo ou sociedade. Em sua obra A Memória Coletiva (2004), o
autor afirma que “para se lembrar, precisa-se dos outros”. Além disso, “cada memória
individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”, ou seja, o lembrar coletivo
corresponde a uma significação em rede de uma lembrança construída pelo indivíduo, por ele
interpretada e, a partir de um dado momento, conectada.
Pensando mais especificamente no contexto sociocultural brasileiro, temos em seu
imaginário simbólico e material a presença de negras e negros vindos de diversas regiões da
África, desde suas formas de representar o passado, seu valores, seus rituais, seu conjunto de
tradições orais, ou seja, sua forma de se expressar e constituir o mundo. A noção de que a
memória tem algo a ver não somente com o passado, como também com a formação da
identidade e com uma persistência na crença de futuro, reforça a luta pelo não esquecimento,
pelo não reconhecimento (ROSSI, 2010:24).
A ancestralidade viva das tradições da cultura oral, principalmente as de origem
africana que estão presentes na trajetória de vida de Mestre Alcides (congado e capoeira), vão
compondo este ser griô. Como ele afirma, não há um hiato, há sim um tipo de reencontro
nomeado por ele de feedback: por meio de um estímulo, no caso específico o som berimbau,
ele conseguiu se reconectar com a memória latente dos sons e ritmos do congado (MG) e se
sentir, novamente e aos poucos, em seu (novo) habitat cultural na capoeira (SP).
Neste espaço de troca culturais que se legitimou com o Ceaca, Alcides sempre buscou
trazer dos valores do congado o sentido comunitário, por isso os termos grupo e academia
não condiziam com a proposta do que defendia neste conjunto de pessoas com as quais
partilhou e partilha conhecimento, agora na capoeira.
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Em diálogo com Líllian Pacheco10, que compreende como cultura uma conexão com
nossa ancestralidade e uma forma deixá-la viva neste processo de partilha, entendemos que
toda a noção de comunidade, fortalecida e ampliada no caso específico do Mestre por seu
aprendizado com o congado, criou uma forma de resistir cotidianamente à suposta morte desta
memória e desta ligação tão preponderante com quem ele é hoje.
[…] “não só como tudo aquilo que distingue o homem do seu ancestral selvagem,
mas também compreendemos cultura como descoberta do nosso ancestral selvagem
quando revela e incorpora novas categorias de movimento e gestos ao caminhar,
dançar e lutar; quando amplia e diversifica a expressão do instinto animal, conecta-
se olhos nos olhos e reflete-se no outro, descobrindo a subjetividade, a inter-
subjetividade, as emoções e os sentimentos; quando se agrega e se separa em rituais
e fazeres para enfrentar os grandes desafios e medos da humanidade fazendo
história, sonho e loucura do seu dia a dia; quando resiste e reexiste criando
símbolos, mitos, significados, linguagens, ciência e consciência de si, do outro e de
seu lugar no mundo” (PACHECO, 2014:29)
EDUCAÇÃO PARTILHADA
Mestre Alcides iniciou a sua maneira de produzir e partilhar saberes orais em
instituições de educação desde os anos 1980, quando passou a lecionar aulas de capoeira na
USP. A constituição do CEACA, Centro de Estudos e Aplicação da Capoeira, também pela
nomenclatura já delimitava um espaço e a relação das atividades de cultura oral
desenvolvidos por Mestre Alcides com a educação. Um dos principais objetivos era e ainda é
o de refletir sobre as práticas e ensinamentos não só da capoeira, mas de outras manifestações
culturais que precisam estar inseridas no debate e no contexto institucional das escolas.
Dentre alguns exemplos, há o projeto Minha História, que representou uma iniciativa,
na década de 90, em parceria com alunas e alunos da USP para desenvolver atividades
culturais e lúdicas para crianças da favela São Remo, território vizinho à Universidade. A
10 Líllian Pacheco, educadora biocêntrica, facilitadora de biodança, escritora e poeta; criadora da Pedagogia
Griô; idealizadora e coordenadora pedagógica do projeto institucional Grãos de Luz e Griô, Lençóis BA e dos
projetos Ação Griô Nacional, Trilhas Griôs Chapada Diamantina e Universidade Griô; Primeiro lugar nacional
no prêmio Itaú Unicef; primeiro lugar nacional no prêmio Democratização Cultural, Destaque Nacional no
Prêmio Cultura Viva; assessor da Comissão Nacional dos Griôs e Mestres e da Rede Ação Griô na
sistematização da Lei Griô Nacional; Escritora, organizadora e produtora dos livros Pedagogia Griô: a
reinvenção da roda da vida; O Mito do Diamante; Nação Griô: o parto mítico da identidade do povo brasileiro e
O Amor e a Amora: as lutas de uma mulher com deus; e de roteiros de aula espetáculo e vídeos apresentados em
festivais locais, regionais, nacionais e internacionais; co-coordenadora do Projeto de Curso de Extensão e Pós
Graduação na Pedagogia Griô e Produção Partilhada do Conhecimento - Diversitas – USP.
11
principal finalidade era mediar esta integração no contexto universitário e com a maneira
como Mestre Alcides pensava e desenvolvia suas atividades, a capoeira e a história de vida de
cada crianças foram os principais meios de desenvolvimento deste projeto. De certa maneira,
era esta partilha de saberes da própria trajetória individual que pautava o andamento das ações
propostas.
Já nos anos 2000, Mestre Alcides foi convidado por uma colega da USP para que ele
realizasse atividades no contraturno da Escola Municipal de Ensino Fundamental Amorim
Lima11, transmitindo os seus saberes da cultura oral sem qualquer conexão direta com o
currículo pedagógico, por este momento ainda representar adaptação e interação inicial com
alunas e alunos no contexto institucional de uma escola.
Aos poucos, Alcides foi trazendo para este outro espaço da educação, que não a
Universidade, suas vivências e saberes da tradição oral. O Ponto de Cultura Amorim Rima,
juntou-se ao seu processo de inserção na Ação Griô Nacional12, representando não somente a
importância de sua função de liderança e articulação em rede de mestres da tradição oral e
lideranças políticas e educacionais, como também o necessário esforço e urgente debate sobre
a implementação das leis 10.639 e 11.645, mas para compartilhar todo o legado.
Acreditamos que a principal discussão, não somente proposta neste texto, mas também
no projeto de mestrado, volta-se ao modo como partilhamos nossos saberes, aprendemos, nos
reconhecemos continuamente como sujeitos diante desta proposta de educação partilhada que
reconhece a oralidade como saber; identificando continuamente quais foram os resultados de
sua trajetória como griô, não somente na atuação na escola, mas como uma reflexão mais
ampla sobre o papel de um mestre da tradição oral no mundo contemporâneo.
Este Mestre, este Griô, que é funcionário aposentado da USP - espaço em que atuou
por mais de 40 anos -, em raros momentos teve o saber oral - que se expressa em todas as
iniciativas que desenvolve não somente no contexto educacional conheceyu-, reconhecido ou
legitimado. Vivenciou a capoeira no ambiente universitário e por meio e com ela recomeçou
sua jornada de (re)encontro com a cultura oral. Influenciou outras pessoas com a sua
perspectiva de ação, com o modo como partilhou sua vida, com sua contínua e incessante
11 A escola tem um blog no qual conta mais sobre sua história, o projeto e as atividades. A escola busca mantê-lo
atualizado com notícias e textos interessantes. Amorim Lima. Disponível em: <http://amorimlima.org.br>
Acesso em: 03 mar. 2016. 12 Mais informações sobre a Ação Griô Nacional disponível em: <http://www.acaogrio.org.br/acao-grio-
nacional/historico-acao-grio-nacional/> Acesso em: 24 fev.2016.
12
resistência e participação em diversos espaços (seja nas rodas de capoeira, ou em reuniões no
Ministério da Cultura). Defende e legitima valores que somente encontram espaço em uma
proposta de educação partilhada; e é neste terreno que vamos continuar a aprender e a ensinar:
a lutar.
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 2013.
Hampâté Bâ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia e Pré-
História da África, História Geral da África. Brasília, Unesco, 2010. v.1.
BARBOSA, Fabíola Holanda. Experiência e memória: a palavra contada e a palavra cantada
de um nordestino na Amazônia. Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de doutor
em História. São Paulo, 2006.
BERNAT, Isaac. Encontros com o griot Sotigui Kouyaté. Rio de Janeiro: Pallas. 2013.
BRASIL, 2003. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-
Brasileira", e dá outras providências. Brasília, DF: Casa Civil, Subchefia dos Assuntos
Jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>.
Acesso em: 23 fev. 2016.
BRASIL, 2008. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
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