UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
O ETHOS BRASÍLICO: SOCIOLOGIA HISTÓRICA DA FORMAÇÃO NACIONAL, 1500-1654
MÁRCIO DE MATOS CANIELLO
RECIFE, JUNHO DE 2001
ii
MÁRCIO DE MATOS CANIELLO
O ETHOS BRASÍLICO:
SOCIOLOGIA HISTÓRICA DA FORMAÇÃO NACIONAL, 1500-1654
Tese de Doutoramento apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal de Pernambuco, sob
a orientação do Professor Dr. Josimar Jorge
Ventura de Morais.
RECIFE, JUNHO DE 2001
iii
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Josimar Jorge Ventura de Morais (orientador)
Universidade Federal de Pernambuco
Prof. Dr. Roberto Augusto DaMatta University of Notre Dame
Prof. Dr. Marcus Joaquim Maciel de Carvalho Universidade Federal de Pernambuco
Prof. Dr. José Luciano Góis de Oliveira
Universidade Federal de Pernambuco
Profª. Drª. Josefa Salete Barbosa Cavalcanti Universidade Federal de Pernambuco
Prof. Dr. Durval Muniz (suplente)
Universidade Federal da Paraíba
Profª. Drª. Maria do Socorro Ferraz (suplente)
Universidade Federal de Pernambuco
v
“Os livros históricos são luz da verdade, vida da memória, e mestres da vida;
estes igualam os mancebos na prudência aos velhos
porque a que os velhos alcançam com larga vida e muitos discursos,
podem os mancebos alcançar em poucas horas de lição, assentados em suas casas.”
FREI VICENTE DO SALVADOR, 1627
vi
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal da Paraíba, que me concedeu licença remunerada pa-
ra a realização do Curso de Doutorado, e ao CNPq, pela bolsa de estudos a mim outorga-
da.
Aos colegas do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFPB-
Campus II, em particular aos companheiros e companheiras da Área de Antropologia e
do Curso de Mestrado em Sociologia Rural, pelo apoio incondicional que me deram nes-
ta e em outras tantas ocasiões.
Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Sociolo-
gia da Universidade Federal de Pernambuco, sem a dedicação e o auxílio dos quais eu
jamais teria escrito esta tese.
Ao professor Jorge Ventura de Morais, mestre instigante e orientador judicio-
so, que me fez trilhar as sendas da Sociologia Histórica e que ensinou ao antropólogo
neófito as direções a seguir neste formidável campo de trabalho.
Aos colegas de turma João Morais, Paulo Décio, Márcia Thereza, Fatinha,
Sérgio, Márcia e Roberta, companheiros inestimáveis e interlocutores preciosos.
À minha mãe, à vovó Maria e aos meus irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas
Bruno & Grace, Lídia & Ronaldo, Roberto & Alcinda e Marisa & Nívio pelo afeto, pela
confiança e pelo estímulo. Ao casal Caniello de Araújo, de cuja generosidade tenho tanto
me valido, muito obrigado por tudo.
vii
Ao meu saudoso sogro, Dr. Francisco das Chagas Cantalice, que não sobre-
viveu para ler este trabalho, pela sua inteligência prolífica, pelo seu entusiasmo pródigo e
pela sua amizade alentadora.
A Rodrigo & Simone e Fernando & Regina, amigos-irmãos, pelo estímulo
encorajador, pela camaradagem sincera e pelos tantos bons momentos que temos vivido
juntos.
A Gabriela, Nina, Mateus e Bruno, frutos do meu lavrar e razão do meu la-
bor, pelas alegrias que me dão e pelo orgulho que me suscitam.
A Luciana, alma-gêmea e companheira de todos os momentos, qualquer poe-
sia será insuficiente para expressar os meus agradecimentos. Esta tese é tão dela quanto
minha. Lu, muito obrigado por você.
viii
RESUMO
O objetivo desta tese é propor um balizamento sociológico e histórico da forma-
ção nacional brasileira, presumindo-se que este é um processo de “longa duração” que se
constituiu, em sua gênese e essência, entre o último quartel do século XVI e a primeira
metade do século XVII. Neste sentido, este estudo procura demonstrar que os componen-
tes definidores de uma nação, tal como a conceituam Marcel Mauss (1920), Max Weber
(1921), Benedict Anderson (1989) e Anthony Smith (1993), estavam estabilizados no
Brasil ao final do período analisado (1500-1654): primeiro, o território estava configura-
do; segundo, este território era habitado por um “grupo étnico” com características pró-
prias definidas pela miscigenação; terceiro, este grupo portava uma cultura peculiar, re-
sultante do encontro interétnico que o produziu; quarto, havia uma “comunidade política”
com um perfil bem particular implantada no território; e, quinto, consolidava-se entre a
população estabelecida no trópico uma ideologia propugnadora de identidade social,
forjada no âmbito da vitória contra a intrusão estrangeira no território, a qual certificou a
eficiência da guerra brasílica, o primeiro produto cultural genuinamente brasileiro e
símbolo proeminente do sentimento nacional porque sintetizou as suas emoções básicas –
o amor à terra, a comunhão de um destino político, a confiança na tradição e, sobretudo,
o orgulho da raça do “povo novo” da nação.
ix
ABSTRACT
The main aim of this thesis is to suggest a sociological and historical framework
of the Brazilian national formation, by arguing that it is a ‘long duration’ process estab-
lished, in its genesis and essence, between the last quarter of the 16th century and the first
half of the 17th century. In this sense, this study aims to demonstrate that the defining
components of a nation, as Marcel Mauss (1920), Max Weber (1921), Benedict Ander-
son (1989) and Anthony Smith (1993) take this concept, were present in the Brazil of the
end of the period investigated in this thesis (1500-1654): first, the territory was config-
ured; second, a characteristic mestizo “ethnic group” inhabited this territory; third, this
group had a peculiar culture as a result of the interethnic encounter which produced it;
fourth, there was a “political community” with a particular aspect established in the terri-
tory; and, fifth, among the population settled in the tropics there was consolidating a so-
cial identity vindicating ideology, forged in the scope of the victory against the stranger
intrusion into the territory, which certified the efficiency of the guerra brasílica, the first
Brazilian genuine cultural product and a prominent symbol of the national sentiment be-
cause it synthesized its basic emotions: the land attachment, the communion of a political
destiny, the trust in tradition and, above all, the ethnic honour of the “new people” of the
nation.
x
ÍNDICE DE MAPAS
MAPA 1 – A Dispersão Tupi .................................................................................................. entre pp. 52/53
MAPA 2 – Ocupação Indígena da Costa na Segunda Metade do Século XVI .................. entre pp. 52/53
MAPA 3 – Província de Santa a Cruz a que vulgarmente chamam Brasil ........................ entre pp. 71/72
MAPA 4 – Capitanias Hereditárias ....................................................................................... entre pp. 93/94
MAPA 5 – Rio de Janeiro no Século XVI ......................................................................... entre pp. 129/130
MAPA 6 – A Conquista do Norte ...................................................................................... entre pp. 185/186
MAPA 7 – Expansão Territorial no Século XVII ............................................................ entre pp. 207/208
MAPA 8 – Brasil no Final do Século XVI ......................................................................... entre pp. 234/235
MAPA 9 – Marcha de Povoamento e a Urbanização do Século XVI ............................. entre pp. 254/255
MAPA 10 – Marcha de Povoamento e a Urbanização do Século XVII .......................... entre pp. 254/255
MAPA 11 – Principais Acontecimentos da Ocupação Holandesa (1630-1638) ............. entre pp. 339/340
xi
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ................................................................................................................................ vi
RESUMO ................................................................................................................................................... viii
ABSTRACT.................................................................................................................................................. ix
ÍNDICE DE MAPAS .................................................................................................................................... x
SUMÁRIO .................................................................................................................................................... xi
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................. 1
A temática ............................................................................................................................................... 2 A heurística ............................................................................................................................................. 6 A teoria ................................................................................................................................................. 12 A metodologia ....................................................................................................................................... 25
PARTE I: A GÊNESE DO POVO ............................................................................................................ 28
CAPÍTULO 1: OS POVOS FUNDADORES .................................................................................................... 29 Os habitantes ancestrais ....................................................................................................................... 29 A guerra, um “fato social total” ........................................................................................................... 30 A ênfase na pessoa: base do ethos tupi ................................................................................................. 38 Uma guerra ........................................................................................................................................... 40 A atmosfera européia em Quinhentos ................................................................................................... 48 A afirmação nacional portuguesa ......................................................................................................... 49 O fundamento pessoalizante do ethos lusitano ..................................................................................... 51 Os vetores primevos do ethos brasílico ................................................................................................ 52
CAPÍTULO 2: PRIMEIROS TEMPOS .......................................................................................................... 53 O Descobrimento .................................................................................................................................. 53 “Período Vazio” ................................................................................................................................... 57 Tempos de reciprocidade e miscigenação ............................................................................................ 59 Caramuru: uma legenda emblemática .................................................................................................. 61 A entropia do sistema ........................................................................................................................... 66
CAPÍTULO 3:CAPITANIAS HEREDITÁRIAS .............................................................................................. 72 A implantação do sistema ..................................................................................................................... 72 “Do escambo à escravidão” ................................................................................................................. 73 “Vícios e misérias na infância de nossas capitanias” .......................................................................... 80 “Os dois núcleos essenciais de formação da nacionalidade” .............................................................. 83
CAPÍTULO 4: GOVERNO-GERAL .............................................................................................................. 94 Antecedentes ......................................................................................................................................... 94 O governador Tomé de Sousa ............................................................................................................... 96 A política em relação aos índios ........................................................................................................... 97 A fundação da cidade do Salvador ....................................................................................................... 99 “Nasce verdadeiramente um Estado do Brasil” ................................................................................. 101 Um país delineado .............................................................................................................................. 104 O “povo novo” da nação .................................................................................................................... 107
PARTE II: A FORMAÇÃO DO PAÍS .................................................................................................... 110
CAPÍTULO 5: A SALVAGUARDA DO RIO DE JANEIRO ............................................................................ 111 A guerra do pau-brasil ....................................................................................................................... 111 A instalação de uma colônia francesa no Brasil ................................................................................ 112 O governador Mem de Sá e a restauração do Rio de Janeiro ............................................................ 114 A fundação da cidade de São Sebastião ............................................................................................. 117 A defesa do Rio de Janeiro ................................................................................................................. 119 Araribóia e a coalizão temiminó ......................................................................................................... 121 “A primeira lição de patriotismo às novas gentes” ............................................................................ 124
xii
CAPÍTULO 6: A CONQUISTA DA COSTA LESTE-OESTE ......................................................................... 130 A questão indígena e a divisão do Brasil em dois governos ............................................................... 130 Paraíba e Rio Grande do Norte .......................................................................................................... 133 A pacificação dos potiguaras .............................................................................................................. 135 Ceará .................................................................................................................................................. 141
CAPÍTULO 7: A CAMPANHA DO MARANHÃO ........................................................................................ 147 A França Equinocial ........................................................................................................................... 147 “Jornada milagrosa” ......................................................................................................................... 156 O capitão mameluco, seu tino e sua autoridade ................................................................................. 163 A batalha de Guaxenduba e o “jeitinho brasileiro de guerrear” ....................................................... 171 Jerônimo de Albuquerque Maranhão, um homem cordial ................................................................. 179
CAPÍTULO 8: A DEFINIÇÃO DO PERFIL TERRITORIAL ......................................................................... 186 O país original .................................................................................................................................... 186 A ocupação do vale amazônico ........................................................................................................... 187 O bandeirismo paulista e a fronteira oeste ......................................................................................... 188 O país realizado .................................................................................................................................. 199
PARTE III: O NASCIMENTO DA NAÇÃO ......................................................................................... 208
CAPÍTULO 9: A ELABORAÇÃO DA TERRITORIALIDADE ....................................................................... 209 “Abençoado por Deus e bonito por natureza” ................................................................................... 209 Dois profetas da nacionalidade .......................................................................................................... 215 “Seria este um grande reino” ............................................................................................................. 221 “Papagaio real para Portugal” ......................................................................................................... 227 Uma nação delineada ......................................................................................................................... 233
CAPÍTULO 10: A URBANIDADE DO BRASIL SEISCENTISTA ................................................................... 235 Dois fatos fundamentais da formação nacional .................................................................................. 235 O boom açucareiro ............................................................................................................................. 236 “Este Brasil é já outro Portugal” ....................................................................................................... 239 “Neste Brasil se há criado um novo Guiné” ...................................................................................... 247
CAPÍTULO 11: A FORJA DA CIDADANIA ................................................................................................ 255 A desigualdade civil: eiva da “cidadania à brasileira” ..................................................................... 255 A letra da lei ....................................................................................................................................... 258 As arenas da Justiça ........................................................................................................................... 265
CAPÍTULO 12: GUERRAS CONTRA OS HOLANDESES ............................................................................. 275 O progresso do Brasil e a rapinagem estrangeira .............................................................................. 275 “Brigam Espanha e Holanda pelos direitos do mar”......................................................................... 278 A perda e a recuperação da Bahia ..................................................................................................... 281 A invasão de Pernambuco e a resistência brasílica ........................................................................... 286 A era nassoviana ................................................................................................................................. 304 A Restauração pernambucana ............................................................................................................ 320
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................... 340
Súmula teórica .................................................................................................................................... 341 A etnia brasílica .................................................................................................................................. 344 A ética brasílica .................................................................................................................................. 348 O sentimento brasílico ........................................................................................................................ 356
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 368
1
INTRODUÇÃO
“A questão central é como os destinos de uma nação ao longo dos séculos
vêm a ficar sedimentados no habitus de seus membros individuais.”
NORBERT ELIAS
2
A temática
O tema deste trabalho é a longevidade do Brasil-nação. Concebido, projetado
e realizado no clima das comemorações dos 500 anos do Descobrimento (Cf. Caniello,
1996, 1998 e 2001), o seu principal objetivo é balizar sociológica e historicamente a for-
mação da nacionalidade brasileira, presumindo-se que tal processo irrompeu entre o úl-
timo quartel do século XVI e a primeira metade do século XVII.
Neste sentido, pretendemos contestar uma noção que domina a mentalidade
brasileira, do entendimento vulgar à norma culta: a idéia de que o Brasil é uma “nação
jovem”. Essa concepção, que julgamos equívoca, alimenta um dilema bem brasileiro, que
a verve de Nélson Rodrigues soube, como de costume, expressar com maestria: “O Brasil
vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética” (Rodrigues, 1958:
51)1. Realmente, de acordo com as circunstâncias, a pretensa jovialidade do Brasil nação
evoca ou um incômodo sentimento de incompletude histórica, ou uma crença ingênua
num destino de realizações: ora nos auto-flagelamos em face de um passado que não e-
xiste, ora nos ufanamos em virtude de um futuro que nunca chega.
No âmbito do nosso mundo acadêmico, que muito se orgulha do seu próprio
criticismo, essa espécie de esquizofrenia coletiva encontra-se mitigada, mas o que sobre-
vém do expurgo analítico é a prevalência da “recorrente visão negativa de nós mesmos”,
portada pela “tradição de estudos notoriamente negativos sobre a identidade nacional
brasileira” (DaMatta, 1999: 2). Uma operação comum nesses estudos é a depreciação do
passado colonial do Brasil, tido como um rebotalho da nossa história e referenciado, via
de regra, pelos “males” que a sua estrutura socioeconômica nos transmitiu, notadamente
aqueles advindos do sistema escravocrata. O que fundamenta essa operação é o axioma
de que a influência política da metrópole contaminava a colônia a tal ponto que a sua
1 Como regra geral neste trabalho, as obras e documentos são referenciados pelo ano de publicação ou
3
vida social tão somente refletiria os laços de dependência que a sustentavam. Assim, se-
gundo Fernando Novais, “o Brasil-Colônia se enquadra com exatidão dentro do quadro
de determinações do antigo sistema colonial, e diríamos mesmo que o exemplifica de
forma típica” (Novais, 1968: 63).
Essa concepção é tributária de uma abordagem clássica do pensamento social
brasileiro que propunha, em síntese, que “o ‘sentido’ da evolução brasileira (...) ainda se
afirma por aquele caráter inicial da colonização” (Prado Jr., 1942: 32), ou seja, que a es-
trutura socioeconômica implantada “nos quadros do antigo sistema colonial” (Novais,
1968: 47) se reflete na realidade sociológica brasileira contemporânea. Entretanto, se essa
abordagem tem facilidade em identificar nexos de continuidade histórica em relação às
macro-estruturas materiais da vida social brasileira, ela mostra grande dificuldade em
admitir que também as suas estruturas subjetivas possam ter uma “longa duração” (Cf.
Braudel, 1958: 7-70). Foi essa limitação, pensamos, que levou uma historiadora contem-
porânea a concluir, na qualidade de organizadora de um volume sobre a vida privada no
Brasil colonial, que foi somente no século XIX “que, talvez, o Brasil começou a se fazer
Brasil” (Souza, 1997: 440, ênfase nossa). Daí porque os diretores da festejada coleção
em que esse livro está inserido evitam, com um pudor tocante, chamar de “brasileira” a
vida dos nossos antepassados dos séculos XVI, XVII, XVIII e, quiçá, até do XIX.
Nossa perspectiva analítica vai de encontro a esse tipo de abordagem porque
nos apoiamos em outra vertente do pensamento social brasileiro, a qual, sem aceder às
facilidades do ufanismo e registrando os seus principais paradoxos, procura interpretar a
formação nacional sob um prisma de positividade, pois assume, verdadeiramente, “a tare-
fa de analisar a significação cultural do fato histórico” (Weber, 1904a: 128). Falamos da
tradição sociológica inaugurada por Gilberto Freyre (Cf. Freyre, 1933) e que tem em Ro-
berto DaMatta o seu grande realizador na nossa Ciência Social contemporânea. Por sinal,
é este antropólogo que a historiadora da vida cotidiana parafraseia (Cf. DaMatta, 1978:
divulgação original. Na Bibliografia, o leitor tem acesso às referências completas da versão consultada.
4
14), aliás, sem citar a fonte, pervertendo o sentido da sentença e desrespeitando a sua
fundamentação:
“É que será preciso estabelecer uma distinção radical entre um ‘brasil’ escrito com letra minúscula (...) e o Brasil que designa um povo, uma nação, um conjunto de valores, escolhas e ideais de vida. (...) estamos interessados em responder (...) esta pergunta que embarga e que emo-ciona: afinal de contas, o que faz o brasil, Brasil? (...) O mistério dessa escolha é imenso, mas a relação é importante. Porque ela define um es-tilo, um modo de ser, um ‘jeito’ de existir que, não obstante estar fun-dado em coisas universais, é exclusivamente brasileiro. Assim, o ponto de partida (...) é o seguinte: tanto os homens como as sociedades se de-finem por seus estilos, seus modos de fazer as coisas. (...) Trata-se, sempre, da questão da identidade. De saber quem somos e como somos, de saber por que somos. (...) Mas o mistério, como se pode adivinhar, não fica na questão do saber quem somos. Pois será necessário desco-brir como construímos nossas identidades.” (DaMatta, 1986: 11-20)
Ora, diante desses dois pontos de vista, nos perguntamos: devemos auscultar
a emergência nacionalidade brasileira guiando-nos por critérios formalistas vinculados à
história de uma emancipação política que, a rigor, pouco transformou a vida do cidadão
comum ou seria mais pertinente se buscássemos os liames entre os nossos antepassados
“coloniais” e nós, contemporâneos “nacionais”, no estilo que caracteriza diacriticamente
a nossa tradição civilizacional2? Obviamente, buscaremos reconstituir a formação da i-
dentidade nacional, que consideramos ser um processo de “longa duração” caracterizado
pela tomada de consciência por parte da “comunidade política” (Cf. Weber, 1921a: 901,
passim) do “sentimento de solidariedade” (Durkheim, 1893: 71, passim) que a sustenta,
no jeito de ser ou no estilo próprio do povo, que é a estrutura mais duradoura deste pro-
cesso. Assim, procuramos trilhar a senda aberta por Alexis de Tocqueville quando ele se
dispôs a pensar a Revolução Francesa, ruptura que é tida como o ponto de inflexão da era
do nacionalismo porque “pela primeira vez na história uma nação constituiu a consciên-
2 Usamos o termo civilização de acordo com a concepção de Elias: “este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional.” (Elias, 1936a: 23).
5
cia de si mesma (...) manifestando-se face ao poder do Estado” (Mauss, 1920: 9)3:
“Tenciono (...) seguir através das vicissitudes desta longa revolução es-tes mesmos franceses com os quais acabo de conviver tão intimamente sob o antigo regime e que este antigo regime formou; vê-los modifi-cando-se e transformando-se segundo os acontecimentos, sem entretan-to mudar de natureza, e ressurgindo sem cessar à nossa frente com uma fisionomia um pouco diferente, mas sempre reconhecível.” (Tocquevil-le, 1856: 45)
Ainda mais porque em 22 de abril de 1500, duas grandes correntes de expan-
são cultural irão se tangenciar sob o testemunho da exuberante paisagem do trópico: des-
temidos navegadores oceânicos e obstinados canoeiros fluminenses irão protagonizar o
primeiro ato da epopéia nacional brasileira. Cada povo a seu modo guardava, na mentali-
dade coletiva, memórias de guerras seculares, convicções de solidariedade implacáveis e
tradições civilizacionais próprias que sustentavam o seu orgulho de vitoriosos, mas, do
encontro entre tupis e lusos, eivado de ambigüidades e contradições, surgirá a matriz
primeva da nação. Portanto, se quisermos entender a emergência da nacionalidade no
Brasil havemos de considerar, sobretudo, a dinâmica que engendrou o “povo novo” (Ri-
beiro, 1972: 70 e 1995: 19-20) da nação e a forma e o sentido de sua participação no pro-
cesso de construção nacional, pois, como sentencia Sérgio Buarque de Holanda, outro
realizador da vertente analítica que abraçamos,
“Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos (...) [mas], antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa, caberia averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e idéias de que so-mos herdeiros.” (Holanda, 1936: 3)
3 Em regra, neste trabalho as citações de textos escritos em outras línguas foram traduzidas por nós.
6
A heurística
Antes de iniciarmos o nosso estudo é necessário que nos coloquemos diante
de alguns debates de natureza geral correntes na Sociologia, já que o “dissenso amplo”
(Alexander, 1987: 8) acerca de questões epistemológicas é uma das características pri-
mordiais do nosso “campo intelectual”. Com efeito, a discussão sobre os meios do enten-
dimento sociológico é uma precondição indispensável para a pesquisa social pois, ao
contrário das Ciências Naturais, os fenômenos a que se dedica são demasiadamente abs-
tratos (Cf. Durkheim, 1895: 91), estão posicionados em teias de causalidade difíceis de
serem identificadas pela observação direta (Cf. Weber, 1904a: 118), não podem ser re-
produzidos em condições experimentais (Cf. DaMatta, 1981: 21) e, sobretudo, cientista e
objeto comungam de uma mesma realidade existencial (Cf. Lévi-Strauss, 1964: 298).
Desde os primórdios da história da Sociologia esses fatores próprios da pes-
quisa social impuseram a seus praticantes uma discussão acerba sobre a identidade epis-
temológica da disciplina, enfeixada na oposição Ciências Naturais vs. Ciências Huma-
nas, a qual se rebateu na formação das três grandes tradições clássicas portadas por Karl
Marx, Émile Durkheim e Max Weber. Posteriormente, esse debate deslindou oposições
teórico-metodológicas subsidiárias – nomologia vs. idiografia, abordagens coletivistas
vs. abordagens individualistas; perspectivas macroteóricas vs. perspectivas microteóri-
cas; foco na estrutura vs. foco na agência – que condicionaram a formação da grande
diversidade de escolas e tradições que ainda hoje disputam a preeminência do “fazer so-
ciológico”. O objetivo desta seção é nos situarmos frente a esse ambiente polêmico, esta-
belecermos a nossa posição diante das principais tradições do pensamento sociológico e
informarmos a heurística que conduzirá o nosso procedimento analítico, a perspectiva
sociológica histórica interpretativa.
Como se sabe, a Sociologia nasceu num contexto em que o cientificismo co-
mo atitude cognitiva tornava-se praticamente hegemônico no Ocidente intelectualizado.
Naquele momento, o século XIX via as Ciências Naturais atingirem a sua maturidade
7
epistemológica pois a Biologia, revolucionada pelo darwinismo, finalmente podia reque-
rer o mesmo status que a Física e a Química. As consciências esclarecidas estavam inelu-
tavelmente unificadas pela sedução do nómos: o mundo natural tinha suas leis, a ciência
tinha seus métodos e os cientistas, munidos destes, tinham a função de descobrir aquelas.
Esse foi não apenas o contexto intelectual, mas o próprio catalisador para o nascimento
da Sociologia pois, já então a chamada Filosofia da História – protonauta da aventura
sociológica – via-se premida pela “crença oficial” na “fé na utilidade universal e na supe-
rioridade epistemológica do método das ciências naturais” (Sombart, 1955: 5).
Mas, a questão de fundo que movia o pensamento social naquele momento
era a própria redefinição do seu objeto: a sociedade ocidental vinha passando por trans-
formações estruturais sensíveis que, desde o século XVI, prefiguravam a consolidação do
capitalismo como um “sistema mundial” e as revoluções institucionais, marca do século
XVIII, juntamente com o industrialismo, produto mais expressivo do século XIX, pareci-
am finalmente completar o processo. Neste sentido, a questão central naquele momento
passava a se dirigir para a explicação dos dilemas da Modernidade, do mundo social ori-
undo desse processo de crises e mudanças (Cf. Abrams, 1982: 4; Smith, 1991: 2).
Assim, a disciplina nascia assumindo duas tarefas essenciais: teoricamente,
dar conta das mudanças sociais produzidas pelo processo histórico e, metodologicamen-
te, estabelecer “parâmetros científicos” para considerá-las objetivamente. Apareceram,
então, nessa primeira hora, os evolucionismos de toda ordem, que procuravam, através de
procedimentos metodológicos homólogos aos do darwinismo, realizar essa dupla tarefa,
articulando o problema da mudança histórica à exigência nomológica das Ciências Natu-
rais. Dentre eles, surge o primeiro grande projeto epistemológico para as Ciências Sociais
em meados do século XIX, o Materialismo Histórico. Muito mais “teórico” do que “me-
todológico”, o projeto naturalizava a exigência nomológica, introjetando o espírito da
época: Marx estava muito mais preocupado em explicar o capitalismo como uma realida-
de emergente de “leis históricas”, do que em formular um procedimento específico para a
8
análise dos fatos sociais, o que fez com que o objetivo final do processo de pesquisa fos-
se a derivação de uma “teoria de tendência” (Cf. Abrams, 1981: 21). O projeto marxista
assim procedia porque o seu formulador considerava que o objeto das Ciências Naturais e
Humanas era o mesmo, “a essência natural do homem” e porque apontava para a forma-
ção de “uma única ciência” (Marx, 1844: 14, ênfase no original).
Contudo, no ocaso do século XIX os esquemas evolucionistas começaram a
cambalear quando os avanços da etnografia passaram a demonstrar objetivamente a fragi-
lidade dessas teorias e as suas insustentáveis conjecturas na determinação de “leis gerais”
para a história humana. A percepção dessa crítica empírica aos esquemas teóricos ten-
denciais foi fundamental na trajetória de Durkheim (Cf. Giddens, 1981: 15) e decisiva na
formação do grupo de L´Année Sociologique, pois vinha a corroborar um pressuposto
básico formulado por seu mentor quando, tomando para si a tarefa de delimitar o método,
identificou o objeto próprio da Sociologia, o “fato social”, como “um grupo determinado
de fenômenos que se distinguem por características distintas dos estudados pelas outras
ciências da natureza” (Durkheim, 1895: 87, ênfase nossa).
Configurava-se o segundo grande projeto epistemológico para as Ciências
Sociais: “o estabelecimento da sociologia numa base empírica” (Giddens, 1981: 3). Co-
mo o projeto marxista, ele tomava a mudança histórica como contexto para a formulação
de questões teóricas (Cf. Tilly, 1981: 101), mas propunha um procedimento de pesquisa
radicalmente a-histórico para sua solução – a análise funcional, que produzia, ao final da
pesquisa, uma teoria fundamentada em “contraste de tipos” (Abrams, 1981: 21). Contu-
do, a perspectiva durkheimiana comungava da mesma pretensão epistemológica do Mate-
rialismo Histórico: estabelecer as bases de uma Ciência Social, tal como as Ciências Na-
turais, nomotética (Cf. Durkheim, 1893: 43; 1912: xiv). Ou seja, o projeto funcionalista
rejeitava a análise histórica como meio, mas preservava o objetivo de estabelecer “leis”
como fim da análise sociológica. Neste sentido, a abordagem durkheimiana parece ter
estabelecido uma contradição: o objeto da Sociologia é sui geneiris, mas o seu método
9
deve se submeter ao rigor próprio das Ciências Naturais, se ela quiser ter o status de “ci-
ência positiva”. Desde então, essa contradição passou a corroer os espíritos ilustrados.
Aliás, essa foi a dúvida que instrumentalizou uma das maiores polêmicas no
campo da epistemologia em Ciências Sociais e que ficou conhecida, no contexto intelec-
tual alemão pós-hegeliano, como Methodenstreit ou “crise do método” (Cf. Segady,
1987: 40). Um de seus resultados mais relevantes foi a distinção, estabelecida por Win-
delband, entre ciências idiográficas – “que se referem à descrição do específico, do parti-
cular ou individual” – e ciências nomotéticas – “que se referem ao objetivo das ciências
naturais, descobrir ‘leis’ que ‘permanecem invariavelmente constantes’” (Segady, 1987:
46). Como se sabe, não só Windelband como Rickert e Dilthey, que participaram ativa-
mente dessa discussão, influenciariam Max Weber, para quem a distinção serviu como
parâmetro no desenvolvimento do terceiro grande projeto epistemológico para as Ciên-
cias Sociais, que consideramos como uma “síntese prospectiva” das abordagens anterio-
res e que, por isso, adotamos como paradigma orientador do nosso estudo.
Como as outras duas tradições clássicas, o projeto weberiano partia de um
questionamento do contexto histórico – “os dilemas da Modernidade” – e, tal como o
projeto marxista, tomava a análise histórica como procedimento de pesquisa, mas se ali-
nhava ao projeto durkheimiano ao advogar a especificidade do objeto da Sociologia e ao
promover a produção de teorias fundamentas em “contraste de tipos”. Todavia, ao con-
trário de Marx e Durkheim, Weber renegava a exigência nomotética e reivindicava uma
heurística própria, fundada no “entendimento” (Verstehen), pois considerava que o objeto
das Ciências Sociais é o fato histórico particular, o evento (Cf. Weber, 1904a: 130).
Mas, ainda que Weber concordasse com Dilthey, Windelband e Rickert acer-
ca do caráter interpretativo específico das “ciências do espírito”, divergia deles em rela-
ção à concepção de que essas ciências seriam puramente idiográficas. Assim, a Sociolo-
gia não seria equivalente à História, mas cooperativa com ela, porque seu fim último se-
ria a “atribuição causal aos fenômenos culturalmente significantes da história” (Weber
10
apud Roth, 1979: 121). Neste sentido, Weber preconizava que a “objetividade” da expli-
cação nas Ciências Sociais deveria estar condicionada pelo dimensionamento da “regula-
ridade dos fenômenos” (Cf. Weber, 1904a: 130) que emerge da recuperação empírica dos
fatos da história através da formulação de conceitos e teorias que expressem uma redução
estrutural da aparente “individualidade” desses fatos.
Foi em função dessa premissa que o projeto weberiano se desenvolveu, pois
procurou resolver essa espécie de curto-circuito entre a necessidade de estabelecer reper-
cussões teoricamente expressivas em cursos de eventos essencialmente particulares, ao
operar a investigação considerando o conceito de cultura. Com essa postura, Weber rejei-
ta a “exigência nomológica” dos cientistas naturais como modelo para as Ciências Soci-
ais e relativiza a “natureza ontológica” da história preconizada por todos os evolucionis-
mos, estabelecendo uma heurística própria em que a singularidade dos eventos pode ser
entendida a partir da identificação de traços estruturais persistentes que os informam, isto
é, colocando o seu fundamento cultural numa chave histórica.
Assim, entendemos que o projeto weberiano é o mais produtivo para o nosso
estudo porque ele deu origem a uma das mais importantes tendências contemporâneas do
pensamento sociológico, a qual defende, por um lado, a preeminência interpretativa da
análise, por considerar que a cultura é a principal condicionante da ação social (Cf. Ge-
ertz, 1973: 15; Alexander, 1987: 24), e, por outro, o privilegiamento da metodologia dia-
crônica da pesquisa social, por julgar que a cultura é um produto da história (Cf. Kane,
1991; Swidler, 1986; Zaret, 1980). Esse tipo de postura ganhou grande destaque no am-
biente das Ciências Sociais contemporâneas, sobretudo por consolidar o poder do uso da
história como base para a explicação sociológica, o que objetivou a configuração de um
importante movimento acadêmico surgido em meados dos anos 60, a “Sociologia Histó-
rica”. Essa nova sub-disciplina vingou a partir do momento em que a idéia de investigar
“os mecanismos pelos quais as sociedades mudam ou se reproduzem” (Smith, 1991: 1)
passou a ter uso intenso no meio acadêmico, especialmente nos Estados Unidos (Cf. A-
11
brams, 1982; Smith, 1991; Mulhall & Morais, 1998).
Grosso modo, o pressuposto fundamental para a constituição da Sociologia
Histórica é simples: o fato social terá sempre sido histórico porque ele é, simultaneamen-
te, um produto de suas circunstâncias espaço-temporais e o produtor do próprio processo
cumulativo da experiência socialmente vivida. Isto é, os fatos sociais são históricos na
sua origem e no seu resultado, e, assim, são eventos que devem ser compreendidos e ex-
plicados a partir do processo que os ambienta e que por eles é produzido (Cf. Abrams
1982: xv). Em face dessa compreensão, surgiram debates acalorados sobre a legitimidade
epistemológica da Sociologia Histórica, fundamentados exatamente nas relações e oposi-
ções entre a Sociologia e a História, disciplinas institucionalmente consolidadas no cam-
po das Ciências Humanas.
Por um lado, há posições reducionistas, tanto favoráveis, como as que vêem
“as duas disciplinas tentando fazer a mesma coisa e empregando a mesma lógica de ex-
plicação” (Abrams, 1982: ix) ou as que as consideram como “uma mesma aventura inte-
lectual” (Braudel apud Smith, 1991: 3), quanto desfavoráveis, como as que não vislum-
bram sequer a possibilidade de uma Sociologia como ciência, já que ela se reduziria à
própria História, pois “a sociologia é a história que [os historiadores] negligenciaram
escrever” (Veyne, 1971: 143). Por outro lado, há posições mais matizadas que parecem
perceber a verdadeira validade heurística da sub-disciplina: a história é um meio concreto
especialíssimo para a pesquisa, já que a “duração” (Cf. Braudel, 1976) que evidencia
fornece parâmetros objetivos para o empreendimento da pesquisa social, pois,
“(...) a história, de acordo com os comparativistas, é, em certo sentido, um tipo de laboratório em que eventos ‘similares’ se repetem muitas vezes. Em lugar de estabelecer um experimento e repeti-lo, os sociólo-gos podem comparar eventos similares que se repetiram várias vezes.” (Mulhall & Morais, 1999: 35).
Neste sentido, Charles Tilly define o empreendimento da Sociologia Históri-
ca pela “integração de tempo e espaço na argumentação” (Tilly, 1981: 7) pois “quando as
12
coisas acontecem dentro de uma seqüência afeta como elas acontecem” (Tilly, 1984: 14).
Assim, Tilly defende que as estruturas narrativas da história coadunam-se com os “diver-
sos níveis de abstração e elaboração” que caracterizam a pesquisa social, “descrição, pro-
cura de recorrências, busca de princípios de variação e determinação de causas” (Tilly,
1997: 23-4). Arthur Stinchcombe, por seu turno, procura demonstrar que “um bom traba-
lho de interpretação histórica” valida a construção de teorias sociais, sejam elas de qual
linhagem forem, porque a história evidencia sobretudo “analogias causalmente signifi-
cantes entre casos” (Stinchcombe, 1978: 7). Em suma, como aponta David Zaret, a So-
ciologia Histórica é um “procedimento de geração de conceitos historicamente funda-
mentado” (Zaret, 1980: 1180) e o núcleo dessa heurística, como demonstramos alhures
(Caniello, 1997), é o entendimento de que as situações sociais devem ser compreendidas
fundamentalmente a partir do processo que as produziu, considerando-o não como um
conjunto de fatos em si, mas como um arranjo relacional evidenciado por realidades em-
píricas estruturalmente associadas (Cf. Stinchcombe, 1978 e Tilly, 1981: 8).
Ora, a perspectiva da Sociologia História assim definida é perfeitamente ade-
quada à nossa temática, a longevidade do Brasil-nação, pois somente uma heurística fun-
damentada na interpretação sociológica da história nas bases propostas por Weber poderá
nos conduzir à elucidação do nosso problema de pesquisa: avaliar as repercussões do
processo de formação nacional na construção de conteúdos simbólicos emergentes dessa
experiência histórica que, uma vez introjetados como uma “ética” e como um “sentimen-
to” pelos sujeitos que a realizaram e por aqueles que dela participam como herdeiros do
seu legado, passam a condicionar decisivamente as ações e condutas dos indivíduos que
se incluem no âmbito da tradição civilizacional que esse sentimento expressa.
A teoria
Uma vez estabelecida a nossa posição no âmbito geral das tradições clássicas
da Sociologia e no campo da Sociologia Histórica contemporânea, devemos agora escla-
13
recer a postura teórica que pretendemos adotar. Faremos isso nos reportando, em primei-
ro lugar, à proposta de Mulhall & Morais (1999), no particular sentido de considerar que
as interpolações entre agência e estrutura definem tipos de abordagem teórica diferenci-
ais na pesquisa sociológica histórica. Em seguida, apreciaremos outra oposição importan-
te no conjunto de dicotomias que cingem o pensamento sociológico histórico, aquela
entre permanência e mudança, a qual tem repercussões importantes na verificação da
longevidade dos processos de formação nacional no sentido que tomamos. Finalmente,
pretendemos esclarecer esta acepção, considerando o conceito idealista de nação.
Como ensina Weber, “a Sociologia é uma ciência que se dedica à compreen-
são interpretativa da ação social” (Weber, 1921a: 4). Essa afirmativa aparentemente ba-
nal prefigura, contudo, repercussões teóricas cruciais, pois, como ressalta Parsons na tri-
lha de Weber, “num sentido, toda a ação é a ação de indivíduos. No entanto, o organismo
e o sistema cultural incluem elementos essenciais que não podem ser pesquisados no ní-
vel individual.” (Parsons, 1969: 17). Essa constatação da duplicidade essencial do objeto
da Sociologia – indivíduo/sociedade – aliás já formulada por Durkheim, redundou numa
espécie de divisor de águas no campo da disciplina e estabeleceu duas grandes tendên-
cias: as abordagens microteóricas, que supõem que “a sociedade seja um produto de uma
negociação resultante de decisões, sentimentos e desejos individuais” (Alexander, 1990:
14) e as abordagens macroteóricas, que enfatizam “o papel de estruturas coercitivas na
determinação do comportamento individual e coletivo” (Alexander, 1987: 5).
Apesar da áspera discussão que os defensores das perspectivas micro e macro
se comprazem em desenvolver, “ressuscitando um velho dilema em uma nova forma (...),
o conflito perene entre teorias individualistas e coletivistas” (Alexander, 1990: 301), esse
debate serve primordialmente como um meio para o estabelecimento de “identidades” ou
“estilos” teóricos que disputam a hegemonia no “campo” da Sociologia. Portanto, se não
quisermos transformar o debate numa querela filistina, devemos deslocar o seu foco das
regras de exclusão entre as categorias epistemológicas de cada time para estabelecer re-
14
gras de transitividade entre elas, numa atitude sintética que considere as abordagens em
apreço sob um ponto de vista cooperativo e não exclusivista, pois devemos admitir que a
oposição entre agência e estrutura é, na verdade, um contínuo. Aliás, segundo Kalberg,
“para Weber, uma clara análise da ligação entre ação individual e estrutura social consti-
tui uma tarefa central de uma sociologia informada historicamente (Kalberg, 1994: 9).
De fato, o debate acerca da oposição entre agência e estrutura tem demons-
trado que as perspectivas de síntese são muito mais produtivas teoricamente do que a
redução artificial do extenso leque das ações vividas em poucas e invariantes estruturas
inferidas pelo analista, bem como a subsunção dessas estruturas ao nível atomístico dos
sujeitos (Cf. Elias, 1939, passim; Alexander, 1990: 301-28). De mais a mais, como des-
taca Philip Abrams, a sociedade é “ambivalente”, pois “no tempo, as ações se transfor-
mam em instituições e estas, por sua vez, são transformadas por aquelas” (Abrams, 1982:
2) e, portanto, a Sociologia Histórica deve necessariamente admitir a síntese teórica por-
que os “processos”, que são seu objeto, constituem-se, verdadeiramente, no “liame entre
ação e estrutura” (Cf. Abrams, 1982: 3).
Concordando com essa argumentação, definimos a nossa perspectiva teórica
por duas operações de síntese. Em primeiro lugar, partimos do princípio que a ação dos
indivíduos é determinada no âmbito de estruturas subjetivas que são, simultaneamente,
um produto da estrutura social e um atributo da agência do indivíduo. Neste sentido, três
são os componentes subjetivos da ação: (a) parâmetros racionais que equilibram, pelo
cálculo, desejos, crenças em oportunidades e avaliação de resultados (Cf. Elster, 1989:
29-59); (b) códigos de conduta, fundamentados no que em outra ocasião conceituamos
como “padrão ético”, ou seja, “a gramática do comportamento e o desiderato moral” de
uma determinada sociedade (Caniello, 1993: 9; cf. Elster, 1989: 137-48); e (c) princípios
de pertença, que consolidam sentimentos de inclusão na “comunidade” e que proporcio-
nam ao indivíduo uma identidade social e um credo gregário, ao torná-lo “parte” da tota-
lidade que o define como “pessoa”. Para além do cálculo racional – evidentemente o fa-
15
tor primário da ação humana em geral – os códigos de conduta e os princípios de perten-
ça informam a especificidade do comportamento das pessoas em seu contexto cultural.
Mas, se os códigos de conduta são impingidos ao indivíduo através de prescrições arbi-
trárias, seja pela força do costume, seja pelo poder da organização social e de seus apare-
lhos – isto é, são como uma “imposição” da estrutura social –, os princípios de pertença
se objetivam em sentimentos de honra, orgulho, solidariedade etc. – isto é, são como “e-
manações” do agente.
Assim, orientamos nossas reflexões pelo pressuposto de que o indivíduo age
a partir de uma dialética, nem sempre conscientemente operada, entre parâmetros racio-
nais, códigos de conduta e princípios de pertença, e consideramos esses três fatores da
ação como vetores de um contínuo entre o “eu” e o “nós”, cuja força de determinação
variará de acordo com o contexto no qual a ação esteja ambientada. Contudo, privilegia-
remos na análise exatamente os “componentes culturais” da ação, o que inclusive justifi-
ca nossa abordagem interpretativa, pois entendemos que são esses componentes que in-
formam um estilo peculiar imperativo para a ação em cada sociedade, raiz da identidade
entre os indivíduos e fonte da solidariedade social que a sustenta.
Em segundo lugar, entendemos que esses dois fatores da ação compartilham
de um mesmo substrato, a experiência social temporalmente acumulada, pois eles se afi-
guram a partir de conjunturas históricas: os códigos de conduta se fundamentam no que
Weber chama de “imperativos éticos” (Weber, 1904a: 112), as normas para a ação defi-
nidas a partir da “relevância” que historicamente a sociedade imputa a determinados va-
lores, virtualmente universais (Cf. Segady, 1987: 71, passim), e os princípios de pertença,
por seu turno, são oriundos da própria tomada de consciência de sua tradição constitutiva,
o passado histórico concebido como processo formador da coletividade. Dado o caráter
“ambivalente” da sociedade (Cf. Abrams, 1982: 2), a duração histórica dos códigos de
conduta e dos princípios de pertença consolida a posição deles numa estrutura estável
que tende a se reproduzir através do tempo como uma marca: é a cultura, evidenciada
16
pelo jeito de ser de um povo que informa a tradição civilizacional dos seus portadores.
Destarte, a interpretação dessa tradição, entendida como um signo expressivo
da gênese da nacionalidade, requer uma síntese analítica entre a estrutura e a conjuntura
– o que vale dizer, entre a tendência pela permanência e a pressão pela mudança – pois,
se queremos verificar a longevidade de uma nação, haveremos de, por um lado, evidenci-
ar a sua emergência e, por outro, considerar a sua duração. Neste sentido, estamos imbuí-
dos de uma orientação teórica que cunhamos em nossa dissertação de Mestrado e que
novamente surpreendemos seguindo os passos de Tocqueville em sua viagem pela Revo-
lução Francesa: o estilo de um povo mantém a sua essência definidora “modulando-se”
historicamente, isto é, embora ele seja necessariamente modificado pelas injunções con-
junturais, ele mantém a sua integridade através do tempo (Cf. Caniello, 1993: 314).
Pretendemos dar conta dessas duas operações de síntese articulando-as na de-
finição do conceito de ethos, palavra antiga, usada por Homero, que “depois de Hesíodo
assume o sentido de ‘maneira de ser habitual, de costume ou caráter’” (Vergnières, 1999:
15) e que Aristóteles sistematiza o significado, definindo ethos como algo que deriva do
habitus (Cf. Vergnières, 1999: 82-8). Nas Ciências Sociais, foi Alfred Kroeber quem
primeiro se dedicou a elucidar o sentido do termo e estabeleceu, precisamente, a sua am-
bivalência no equilíbrio entre estrutura e agência ao dizer que “ethos denota, antes de
qualquer coisa, disposição”, pois o conceito se refere ao “sistema de idéias e valores que
domina a cultura e, que, portanto, tende a controlar o tipo de comportamento de seus
membros”, algo que age como um “aroma” que impregna a cultura como um todo (Cf.
Kroeber, 1923: 101-2). Mais recentemente, Clifford Geertz, seguindo na trilha de Kroe-
ber, definirá: “O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo
moral e estético e sua disposição, é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu
mundo que a vida reflete” (Geertz, 1973: 143).
No sentido que lhe dão Kroeber e Geertz, o conceito de ethos tem uma estrei-
ta identidade com a noção de Volksgeist (espírito de um povo), elemento central da Filo-
17
sofia da História de Hegel (Cf. Hegel, 1837, passim; Hyppolite, 1983: 19-20; Inwood,
1997: 117-20) que invoca as operações de síntese e a abordagem idealista que pretende-
mos empreender na nossa interpretação sobre longevidade do Brasil-nação. Em primeiro
lugar, Hegel diz que o “espírito de um povo” é uma disposição essencial porquanto com-
porta, simultaneamente, o âmago da expressão particular do seu “caráter universal”
(Hyppolite, 1983: 22) – o que vale dizer, da sua “cultura”, do seu “gênio” ou da sua “pe-
culiaridade nacional” (Cf. Inwood, 1997: 252) – e a própria “força ativa, criadora mas
inconsciente, que molda a [sua] história e o [seu] destino (Schicksal)” (Inwood, 1997:
252). Ou seja, o “espírito de um povo” suporta a marca da estrutura que conforma a tra-
dição civilizacional e a própria disposição do agente que, efetivamente, a constrói nos
eventos significativos da história deste povo. Esta é a forma da nossa primeira operação
de síntese.
Em segundo lugar, Hegel “viu o idealismo como envolvendo essencialmente
o realismo: o mundo externo e o mundo do espírito são os dois lados da mesma moeda”
(Inwood, 1997: 165), o que nos leva à nossa operação de síntese entre a estrutura e a
conjuntura. Ora, segundo Inwood, quando Hegel fala do Geist der Zeit (“espírito da épo-
ca, do tempo”) ele quer dizer que “a mentalidade, vida social e produtos culturais de uma
dada época, especialmente no seio de um determinado povo, compartilham de um espíri-
to comum” e, sendo assim, “um indivíduo está imbuído desse espírito e não pode ‘ir a-
lém’ de seu tempo” (Inwood, 1997: 119). Ou seja, o “espírito do povo” estará sempre
traspassado pelo “espírito do tempo”, que lhe impõe limitações e constrangimentos, mas
que a longo prazo poderá revelar dinamismos e mudanças, permanências e recorrências.
Entendemos que essa é a dialética que melhor representa o curso dos processos de for-
mação nacional porque nela estão refletidas tanto as tendências de conservação e repro-
dução próprias da cultura, quanto as pressões conjunturais características do meio e do
tempo em que a ação social se desenvolve.
Assim, definimos o nosso principal conceito operacional – ethos – como o
18
jeito de ser de um povo colocado em ação numa determinada conjuntura. Daí, o título
deste trabalho: quando nos remetemos ao ethos brasílico para intentar uma sociologia
histórica da formação nacional, pretendemos que ele seja uma prefiguração do ethos
nacional brasileiro, na medida em que a ação social ambientada no seu seio revela, ao
dar origem, a estrutura definidora deste, mas não lhe é, todavia, coextensivo, porquanto
se encontra estreitamente vinculado à conjuntura dos séculos XVI e XVII. Isto é, quere-
mos nos referir a uma realidade simultaneamente estrutural e conjuntural, que é marcada
pelo “espírito do tempo”, mas que sobrevive a ele através da integridade modulada do
“espírito do povo”, pois o ethos não é uma estrutura imanente, ele é um produto da histó-
ria, algo que resulta da experiência coletiva e que a conforma. Numa palavra, ele é a ma-
triz e a moeda dos processos sociais, pois é a resultante de uma dupla dialética entre a
estrutura e a agência e entre a permanência e a mudança.
Esta perspectiva operacional é adequada aos nossos propósitos porque procu-
ra coalescer a eventualidade característica dos fatos históricos, sua apregoada irredutibi-
lidade (Cf. Veyne, 1971: 38), aos “diversos níveis de abstração e elaboração” que carac-
terizam a pesquisa social (Cf. Tilly, 1997: 23-4), principal objetivo da Sociologia Histó-
rica (Cf. Stinchcombe, 1978: 7; Zaret, 1980: 1180; Tilly, 1981: 7 e 1984: 14; Abrams,
1982: ix, passim). Desta maneira, quando nos dedicamos a reconstituir o ethos na acep-
ção que definimos – cumpre insistir, como um conceito histórico – estamos buscando
duas coisas: por um lado, desvendar a dinâmica da ação social nos termos do seu contex-
to conjuntural, e, por outro, identificar a pressão das “regras e recursos envolvidos na
reprodução dos sistemas sociais” (Giddens, 1989: 18), isto é, das “propriedades estrutu-
rais dos sistemas sociais [que] são, ao mesmo tempo, meio e fim das práticas que elas
recursivamente organizam” (Giddens, 1989: 20), no caso, os padrões da cultura.
Ora, nas sociedades emergentes da queda do Medievo, a formação das “estru-
turas subjetivas” dos indivíduos e, conseqüentemente, do ethos característico de um po-
vo, depende do principal elemento que passou a cristalizar, simbólica e praticamente a
19
organização social, “uma vez que as nações se transformaram na única forma de organi-
zação das comunidades políticas no plano global” (Neiburg, 1999: 46). Assim, a nacio-
nalidade é a forma moderna de expressão do ethos na medida em que possui uma “legi-
timidade emocional profunda” (Anderson, 1989: 12) estritamente relacionada com a mo-
dalidade de coesão social própria da época, pois, como assevera Norbert Elias,
“Nos complexos Estados nacionais (...), a despeito de toda a diferencia-ção, a moldagem social comum do comportamento individual, dos esti-los de discurso e pensamento, do controle afetivo e, acima de tudo, da formação da consciência moral e dos ideais por intermédio de uma tra-dição nacional não questionada (...) é suficientemente forte para tornar claramente visível a estrutura básica da personalidade comum a cada membro da sociedade, por mais que eles difiram entre si” (Elias, 1940-50: 124; cf. Elias, 1939: 87, passim).
Mas, afinal, o que é uma “nação”? Muita tinta já se verteu em torno desta
questão abrasadora para as Ciências Sociais e nos escusamos por não fazer aqui uma e-
xegese do conceito – o que, aliás, fizemos em nosso projeto de tese (Cf. Caniello, 1998:
12-33) – mas apenas explicitar a nossa apropriação do termo. Sendo assim, podemos di-
zer, grosso modo, que a nação é uma “comunidade política” (Weber, 1921a: 901, passim)
assentada sobre um território soberano, cujos membros pertencem a um mesmo agrupa-
mento étnico e cultural e se submetem a uma mesma ordenação institucional, isto é, cujos
componentes participam de uma mesma tradição civilizacional. Neste sentido, conside-
ramos que a característica mais proeminente da “nação” é que, sob a sua égide, os códi-
gos de conduta e os princípios de pertença são articulados num sistema simbólico atribu-
idor de identidade social.
Este entendimento é tributário da formulação “idealista” do termo por Marcel
Mauss (1920) e Max Weber (1921a: 385-98 e 901-40; 1921c: 187-210), que estavam
preocupados em dar conta de estruturas políticas nascidas com base em formas comple-
xas de integração social partindo da idéia paradigmática de que os sistemas sociais se
mantêm com base no “sentimento de solidariedade” (Durkheim, 1893: 71). Tomando
20
como ponto de partida a célebre oposição de Tönnies entre Gemeinschaft e Gesellschaft
(Cf. Smith, 1993: 153), perguntavam-se: se nas chamadas sociedades segmentadas a coe-
são social era garantida por laços de solidariedade estruturados por uma ordem religiosa
englobadora que definia a própria estrutura social e as suas relações de poder com base
em unidades de parentesco (o clã, a fratria etc.), o que, nas sociedades complexas onde a
religião perdera esse poder e as relações sociais passaram a se caracterizar por uma or-
dem normativa individualista, impessoal e, portanto, virtualmente desagregadora, garan-
tiria a coesão das unidades sociais? Mauss responde que seria “uma vontade consciente
de mantê-la e transmiti-la” (Mauss, 1920: 27) fundamentada, precisamente, na tradição
civilizacional de um povo:
“Uma nação digna deste nome tem sua civilização estética, moral e ma-terial, e quase sempre a sua língua. Ela tem sua mentalidade, sua sensi-bilidade, sua moralidade, sua vontade, sua forma de progresso, e todos os cidadãos que a compõem participam, em suma, da Idéia que a go-verna.” (Mauss, 1920: 27-8, ênfase no original).
Esse é o ponto crítico do conceito: fundamentalmente, a nação é definida a
partir da estruturação dos elementos da tradição civilizacional do grupo social – e, por-
tanto, de sua história – em uma ideologia propugnadora de identidade e instrumentaliza-
dora de uma ação política que lhe garanta uma base institucional para a sua perpetuação.
Ou seja, o conceito de nação tem um fundo valorativo:
“Se o conceito de ‘nação’ pode, de alguma forma, ser definido sem ambigüidades, ele certamente não pode ser apresentado em termos de qualidades empíricas comuns àqueles membros que a compõem. Num certo sentido, o conceito indubitavelmente significa, acima de tudo, que é apropriado esperar de certos grupos um sentimento específico de so-lidariedade frente a outros grupos. Assim, o conceito pertence à esfera dos valores” (Weber, 1921a: 922, ênfase no original)
Esta é, pensamos, a apropriação “idealista” do conceito para as Ciências So-
ciais, a qual abraçamos neste trabalho: no sentido empregado por Weber, Mauss, e tam-
bém por Elias (Cf. Elias, 1939a: 23-5), a nação é definida menos como uma estrutura
21
política, econômica, administrativa, jurídica e militar substancializada em um território
autônomo – estrutura essa cada vez mais referenciada como “Estado” – e passa a ser en-
tendida como uma realidade subjetivamente montada em função da diferentia specifica
que atribui identidade a essa estrutura: a sua tradição civilizacional. É exatamente neste
sentido que podemos estabelecer a relação entre nação e ethos. A nação, entendida como
uma entidade ideacional construída para garantir a coesão do grupo social em torno de
uma identidade própria, reporta-se aos códigos de conduta e princípios de pertença ca-
racterísticos de um povo, os quais lhe conferem um estilo peculiar imperativo para a a-
ção, que se tornará “política” quando se dirigir para a afirmação do grupo perante o mun-
do social que lhe é externo.
Nas Ciências Sociais contemporâneas, essa abordagem encontra grande pene-
tração. Ernest Gellner, por exemplo, advoga que o nacionalismo é um princípio político
que advoga a coincidência entre “unidade nacional” e “unidade política” (Gellner, 1993:
11), cujo princípio é “a fusão da cultura e do Estado” (Gellner, 1993: 29). A partir daí,
Gellner propõe uma nova discussão: como os indivíduos são “convencidos” da abrangên-
cia da nação? Ou, o que faz com que a nacionalidade seja concebida como realidade
constitutiva do grupo social? A resposta é dada pelo que chama de “invasão” da socieda-
de por uma cultura erudita (Gellner, 1993: 35) que produz a “unificação das idéias em
sistemas contínuos e uniformes” (Gellner, 1993: 41). Ou seja, se a nacionalidade é defi-
nida por uma eleição de tópicos culturais em direção a um sentimento de identidade, sua
dimensão política requer uma intelligentsia que o sistematize como “alta cultura” e um
sistema educacional centralizado que capacite sua transmissão.
Mas, uma questão também resulta dessa abordagem sem dúvida “racional”:
por quê, para além da simples “imposição” ou “sugestão”, a identidade nacional produz
um sentimento de inclusão tão profundo na consciência dos indivíduos que os faz com-
portarem-se “ardentemente”? Pode-se dizer que essa é a questão básica de um outro autor
contemporâneo importante, que se pergunta: “por que, hoje em dia, inspiram [a naciona-
22
lidade e o nacionalismo] uma legitimidade emocional tão profunda?” (Anderson, 1989:
12). Ora, Mauss já definia a nação como o conjunto de cidadãos “animados por um con-
sensus” (Mauss, 1920: 30), noção que encontra eco na própria idéia de Elias de que o
Mundo moderno só se torna suportável ao indivíduo atomizado quando ele passa a ter um
sentimento de coletividade que imprime sentido à sua inevitável fragmentação (Elias,
1936b: 146), tornando-o um sujeito moral (Elias, 1939: 124). Neste ponto, um paradoxo
se estabelece: a nação como fenômeno moderno, produzido historicamente por uma con-
junção de fatores objetivos e não por qualquer tipo de destino, aproxima-se radicalmente
da Gemeinschaft – a razão que faz com que os homens organizem-se socialmente sob a
idéia de nação é que isso os faz sentirem-se incluídos numa comunidade.
É exatamente imbuído dessa idéia que Benedict Anderson vai construir sua
análise sobre o fenômeno, uma das mais criativas produzidas contemporaneamente. Seu
ponto de partida é considerar a nação como um “artefato cultural de um tipo peculiar”
(Anderson, 1989: 12), produzido a partir do “crepúsculo das modalidades religiosas de
pensamento” (Anderson, 1989: 19). Essa passagem do sobrenatural ao nacional resultou
numa concepção de nação como uma “comunidade imaginada”, cuja lógica é que “a na-
ção é sempre concebida como um companheirismo profundo e horizontal” (Anderson,
1989: 14-16). Uma conseqüência fundamental dessa definição, além de sua produtivida-
de analítica, é o resgate, no seu melhor, da perspectiva de Weber, Mauss e Elias:
“O que proponho é que o nacionalismo deve ser compreendido pondo-o lado a lado, não com ideologias políticas abraçadas conscientemente, mas com os sistemas culturais amplos que o precederam, a partir dos quais – bem como contra os quais – passaram a existir” (Anderson, 1989: 20).
Essa perspectiva encontra apoio em outro autor contemporâneo importante
que detalha melhor essa abordagem bastante geral e especifica uma postura teórico-
metodológica definitiva em relação ao uso do conceito de nação, a qual adotamos como
um guia para o nosso trabalho. Sua proposta vem no sentido da definição de uma aborda-
23
gem “subjetivista” para o tratamento da questão:
“Enquanto fatores ‘objetivos’ como tamanho da população, recursos econômicos, sistemas de comunicação e centralização burocrática obvi-amente desempenham um papel importante na criação de um ambiente para as nações (ou, mais precisamente, para os estados, os quais, então, ajudam a moldar nações), eles nos dizem pouco sobre as qualidades e caráter distintivos que emergem da comunidade nacional. Por isso, nós devemos nos voltar para fatores mais ‘subjetivos’: não às dimensões mais efêmeras das vontades, atitudes e, mesmo, dos sentimentos coleti-vos, mas aos atributos culturais mais permanentes de memória, valor, mito e simbolismo. Somente uma abordagem mais ‘simbólica’ baseada na comparação histórica de elementos constitutivos duráveis das comu-nidades étnicas e nações nos auxiliará na construção de um panorama das relações históricas e sociológicas entre essas comunidades e na-ções.” (Smith, 1993: 3-4).
Essa definição estabelece uma distinção muito importante: a suposição de
que os fatores subjetivos se dividem em dois tipos básicos. Assim, temos a “vontade co-
letiva” que informa certamente comportamentos políticos práticos e que se aproxima da
definição marxista de ideologia (Cf. Marx & Engels, 1888: 36-7) e os “atributos culturais
permanentes” provindos das estruturas inconscientes que conformam o ethos do povo,
definindo sua peculiaridade como grupo social, conceito que se aproxima da perspectiva
estruturalista (Cf. Lévi-Strauss, 1952: 357). A principal característica desses atributos é
exatamente sua permanência, produzida fundamentalmente por sua qualidade formal:
eles definem um estilo que perdura para além da contingência histórica na medida em
que “molda” a conduta social por um repertório de expressão coletiva específico (Cf.
Smith, 1993: 14; Cf. Caniello, 1993 e 1998). Conseqüentemente, eles atribuem identida-
de ao grupo pois esse estilo passa a ser cristalizado num conjunto de “significados co-
muns” – mitos, tradição, idealização do passado etc. – que são transmitidos de geração a
geração. O mais importante disso tudo é que a nação é construída – ou “imaginada” – por
intermédio de uma elaboração ideológica da história (Cf. Mauss, 1920: 40; Gellner,
1993: 89).
Partindo deste conjunto teórico-conceitual, nossa perspectiva teórica mais ge-
24
ral neste trabalho pode ser assim definida: com a consolidação do capitalismo no “siste-
ma mundial” operou-se a hegemonização do individualismo como padrão de sociabilida-
de em nível global. Paralelamente, gerou-se uma tendência fragmentadora profunda que
combaliu as estruturas de solidariedade tradicionais que se sustentavam basicamente por
uma cosmologia totalizadora de fundo religioso e que perdurou até o chamado “reino
dinástico” como sistema político dominante. Como qualquer sistema social só perdura se
possuir um mínimo de coesão interna, outro conjunto conceptual de sustentação da soli-
dariedade foi definido: a nação. Desde então, a referência do indivíduo passa a ser a
“comunidade definida pela cultura” que se estabelece essencialmente por uma tradição
civilizacional própria.
Definida desta maneira, a nação pode ser entendida como uma “comunidade
imaginada” pois se fundamenta por um sistema “mito-simbólico”. Assim se constituindo,
ela é um modelo para a solidariedade que definirá o grupo social como unidade cultural
com uma identidade específica. Ou seja, a nação evoca o ethos, produzindo um sentimen-
to de inclusão que faz com que os indivíduos apercebam-se de seu estilo próprio e sin-
tam-se parte de uma coletividade que historicamente o produziu. Quer dizer, a nação co-
mo produto da mentalidade coletiva torna-se objeto para o sociólogo na medida em que
explicita, muitas vezes ardentemente, o grupo social como uma unidade concebida que,
em atribuindo-lhe identidade, evidencia-lhe os traços de sua história e de sua cultura. A
relação entre ethos e nação portanto é dupla: se, por um lado, a identidade cultural do
grupo social é uma estrutura essencialmente permanente, na medida em que se imprime
na consciência dos sujeitos através de uma socialização cuja base é a tradição, lhes ser-
vindo de molde para a ação como um substrato moral ética e sentimentalmente justifica-
do, por outro, é processual, pois a maneira como o ethos opera objetivamente como crité-
rio de coesão e solidariedade sociais vai depender das condições históricas nas quais o
grupo social está imerso.
25
A metodologia
O problema metodológico mais importante que esta proposta aduz é como
abstrair o ethos, um fenômeno que é parte da “subjetividade”, para a análise objetiva.
Ora, se ele é um produto da história, devemos inferi-lo a partir do resgate da experiência
social acumulada que produziu a nação, o que nos leva às “narrativas verídicas” (Veyne,
1971: 11) dos historiadores, pois são eles os portadores da tradição civilizacional no seio
da qual o ethos atua como “matriz e moeda”.
Neste sentido, a primeira questão de método que tivemos que enfrentar foi a
da “representatividade”, um dos três conceitos-chave da pesquisa segundo Patrick Mc-
Neill, cujo manual tomamos como referência (Cf. McNeill, 1990). Como a nossa temáti-
ca é a formação nacional, optamos por privilegiar as obras gerais clássicas da historiogra-
fia brasileira que tratam do período colonial, notoriamente representativas. Sendo assim,
o primeiro passo da pesquisa foi a leitura integral e o fichamento, em meio eletrônico,
das seguintes obras e nesta seqüência: de Sérgio Buarque de Holanda, os dois primeiros
volumes da História Geral da Civilização Brasileira (Holanda, 1989 e 1993), de frei
Vicente do Salvador, a História do Brasil, 1500-1627 (Salvador, 1627), de Sebastião da
Rocha Pitta, a História da América Portuguesa (Rocha Pitta, 1730), do visconde de Por-
to Seguro, os cinco volumes da História Geral do Brasil (Varnhagen, 1854-7a, b, c, d, e)
e de Capistrano de Abreu, os Capítulos de História Colonial (1500-1800) (Abreu, 1907).
O principal objetivo deste procedimento foi reconstituir o processo de forma-
ção nacional brasileira tal como um etnógrafo debruçado no passado e, sendo assim, con-
sideramos os historiadores como “informantes qualificados” e as suas narrativas como
“depoimentos fidedignos”. Do confronto entre as várias versões analisadas, montamos
um “discurso básico” sobre a história da formação nacional entre 1500 e 1654, estrutura-
do a partir da decomposição das narrativas historiográficas em “grandes unidades consti-
tutivas” (Lévi-Strauss, 1955: 243) – os eventos representativos, que são os “significantes”
da formação nacional – e o seu reagrupamento numa seqüência cronológica indexada
26
tematicamente em “feixes de relações” (Lévi-Strauss, 1955: 243-4) – o ambiente do “sig-
nificado”, pois relacionam os eventos à teoria trabalhada pelo analista.
Fizemos isto preocupados com a “confiabilidade” do método de tratamento
dos dados, outro conceito-chave de McNeill (1990: 14). Ora, consideramos que o discur-
so sobre a formação nacional tem uma natureza que o torna semelhante às narrativas mi-
tológicas, entendendo que os mitos não são fábulas, nem são lendas, mas que “a mitolo-
gia será tida por um reflexo da estrutura social e das relações sociais” (Lévi-Strauss,
1955: 239) e, de mais a mais, “nas nossas sociedades, a História substitui a Mitologia e
desempenha a mesma função” (Lévi-Strauss, 1981: 63). Assim, a abordagem empírica
seguiu a técnica da “análise estrutural dos mitos” (Cf. Lévi-Strauss, 1955: 243) e, embora
não tenhamos realizado as operações combinatórias que propõe a teoria levistrausseana,
utilizamos um método que, certamente, “qualquer pessoa que o utilize, ou a mesma pes-
soa em um outro momento, chegaria a um mesmo resultado” (McNeill, 1990: 14).
Mas, além da “confiabilidade” e da “representatividade”, resta saber se as e-
vidências que manuseamos têm “validade”, isto é, “se os dados coletados são um retrato
fiel do que está sendo estudado” (McNeill, 1990: 15). Enfrentamos esta questão de duas
maneiras. Em primeiro lugar, fizemos uma pesquisa exaustiva, embora limitada pela falta
de recursos, em fontes coevas aos fatos analisados – crônicas, cartas, documentos etc. –
de maneira a verificar a fidedignidade das narrativas historiográficas que nos serviram de
base. Em segundo lugar, nos valemos da produção sociológica e histórica contemporânea
para avaliar as narrativas e os juízos interpretativos de nossos historiadores clássicos e
dos próprios observadores da cena colonial. O que concluímos deste cotejamento – e o
leitor poderá fazer o seu próprio julgamento em breve – é que podemos dar fé à prolífica
documentação primária e secundária sobre o Brasil colonial que dispomos em nossas
bibliotecas públicas, onde realizamos o nosso levantamento de dados. Aliás, isso não nos
surpreendeu, pois, afinal, os historiadores têm um compromisso de ofício com a verdade
dos fatos.
27
Quanto à composição do nosso texto, procuramos seguir a ordem cronológica
dos fatos fundamentais da formação brasileira no período colonial, pautando o fluxo
temporal pelos cinco grandes “feixes de relação” que, segundo entendemos, definem a
emergência da nação: a gênese do povo (Parte I), a formação do território (Parte II), a
constituição da tradição civilizacional (disseminada por todo o texto), a consolidação da
“comunidade política” (Parte III, Capítulos 10 e 11) e a afirmação da nacionalidade atra-
vés da intelligentsia (Parte III, Capítulo 9) e da guerra brasílica (Parte II, Capítulo 7 e
Parte III, Capítulo 12).
Em suma, o nosso empreendimento está voltado para a reconstituição do mito
de origem da nacionalidade, pois consideramos que ele é uma alta expressão de nossa
tradição civilizacional, na medida em que cristaliza a experiência social acumulada que
produziu o nosso ethos e que, simultaneamente, foi condicionada por seus influxos. Por
outro lado, como um produto da cultura, o mito alimenta as emoções dos sujeitos que são
herdeiros dessa tradição, ao mesmo tempo em que informa suas consciências dos dilemas
e contradições que marcaram – e ainda marcam – a trajetória da nação. Portanto, ao in-
terpretá-lo podemos identificar os elementos simbólicos emergentes da tomada de cons-
ciência da história que informam o sentimento nacional, a emanação dos princípios de
pertença e dos códigos de conduta que, sob o nosso ponto de vista, condicionam decisi-
vamente as ações dos indivíduos que deste sentimento participam. Sendo assim, o que
oferecemos ao leitor é a nossa “versão” deste mito, considerando, como o mestre, que
“não existe versão ‘verdadeira’, da qual todas as outras são cópias ou ecos deformados.
Todas as versões pertencem ao mito” (Lévi-Strauss, 1955: 252, ênfase nossa).
Diante de tais esclarecimentos, que já vão longe estes prolegômenos, só nos
resta agora oferecer ao leitor o nosso discurso, advertindo-lhe, finalmente, que o texto
que ele tem em mãos pretende ser, tão somente, uma “narrativa verídica” sobre a qual
exercemos, sem pudor, a nossa “imaginação sociológica”.
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Capítulo 1
OS POVOS FUNDADORES
Os habitantes ancestrais
Na época do Descobrimento do Brasil havia uma grande diversidade cultural
entre os habitantes da terra, cujos grupos se distribuíam pelos quatro troncos lingüísticos
principais – Jê, Tupi, Arawak e Karib – e por uma infinidade de pequenas famílias lin-
güísticas e “línguas isoladas” (Cf. Urban, 1998). Mas serão os tupis da costa, portadores
de grande homogeneidade cultural e lingüística (Cf. Fernandes, 1948: 17; Fausto, 1998:
381-2; Urban, 1998: 92), os principais consortes dos lusos nos primeiros tempos da histó-
ria brasileira. Os outros grupos, principalmente os do tronco Jê, que habitavam a hinter-
lândia e que resistiram em alguns pontos do litoral, eram denominados “tapuias” (Cf.
Salvador, 1627: 85), os povos de “línguas travadas” (Abreu, 1965: 52) que pouco se rela-
cionaram com os portugueses nos primeiros tempos (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 28-9).
Por volta de 1500, os tupis completavam um largo movimento de dispersão
pelo extenso território tropical: provenientes de “um nicho ecológico originário amazôni-
co” (Fausto, 1998: 382), muito provavelmente na área delimitada pelos rios Amazonas,
Tapajós e Madeira (Cf. Urban, 1998: 92), acabavam de ocupar toda a costa brasileira4, do
extremo sul à foz do Amazonas, bem como as terras da bacia Paraná-Paraguai (Cf. Mapa
1)5. Deslocavam-se premidos pela exaustão dos ambientes que exploravam (Cf. Fernan-
des, 1948: 88) e eram conduzidos por sua “vocação de navegadores” (Prous, 1992: 374),
aliás, “os mais hábeis da América do Sul” (Fernandes, 1948: 90), mas eram especialmen-
te impulsionados pela busca da “terra sem males”, característica proeminente do seu pro-
4 “A ocupação total do litoral teria ocorrido entre 700-900 d.C. e 1000-1200 d.C.” (Fausto, 1998:382). 5 Esses povos são divididos em dois segmentos culturais: uma fácies Tupi, que inclui, entre outros, os grupos Tupiniquim, Tupinambá, Tamoio, Caeté e Potiguara, assentados no litoral brasileiro e uma fácies
30
fetismo religioso (Cf. Fernandes, 1948: 91; Fausto, 1998: 386).
A habilidade nas artes da guerra, contudo, foi o critério crítico da expansão
territorial tupi, uma vez que esta foi conseguida a expensas da submissão, expulsão ou
erradicação das populações que habitavam, não raro por milênios, as áreas por eles pre-
tendidas. O desaparecimento dos povos que ocupavam hegemonicamente a costa brasilei-
ra desde 3000 a.C. é apenas um dos muitos exemplos do resultado do assédio desses ca-
noeiros belicosos – deles restaram tão somente os sambaquis, com os registros de sua
cultura peculiar (Cf. Prous, 1992: 199; Duarte, 1968).
A guerra, um “fato social total”
Não sabemos se a destreza bélica dos tupis foi uma causa ou um efeito do ex-
traordinário processo de dispersão desses povos pelo território, mas o certo é que a guerra
desempenhava um papel central na vida social desses índios. Era, para usar uma expres-
são consagrada entre os antropólogos, um “fato social total” (Mauss, 1923-4: 41): um
fenômeno que sintetiza o ethos grupal pois é por meio dele que as instituições sociais
principalmente se expressam, ao veicularem práticas cotidianas contumazes, ao estabele-
cerem critérios de atribuição de status e papéis sociais e ao prescreverem condutas rituais
que mobilizam a sociedade como um todo e que enlevam a mentalidade e arrebatam as
atitudes de seus componentes.
Com efeito, a guerra – associada à antropofagia – é a marca emblemática das
populações que primeiro e mais intensamente interagiram com os portugueses em solo
americano. Não há cronista, historiador ou intérprete que a não ressalte, mas a singela
avaliação de frei Vicente pode ser tomada como um depoimento modelar: “É este gentio
naturalmente tão belicoso que todo o seu cuidado é como farão a guerra a seus contrá-
rios” (Salvador, 1627: 93). Para as inteligências mais desconfiadas, talvez reticentes em
Guarani, que agrega os grupos da bacia do Prata (Cf. Prous, 1992: 371, passim; Fausto, 1998: 381-2) (Cf. Mapa 2).
31
admitir juízo tão peremptório de autor tão remoto, vale o depoimento de um cientista
insuspeito, o antropólogo mais racionalista da modernidade:
“O quadro da vida internacional do Brasil, assim reconstituído, oferece a imagem de uma grande quantidade de grupos, essencialmente ocupa-dos em combates sangrentos, levados a efeito às vezes entre tribos vizi-nhas, falando a mesma língua e cuja separação datava apenas de poucos anos. Sem dúvida, esta imagem corresponde amplamente à realidade.” (Lévi-Strauss, 1942: 326)
Efetivamente, dois elementos estruturais daquelas comunidades, intimamente
relacionados entre si, estão ligados à posição central da guerra no habitus tupi: uma soli-
dariedade interpessoal fortemente baseada na localidade, foco de sua organização social,
e uma tendência aberta à segmentação dos grupos (Cf. Clastres, 1982: 192; Urban, 1998:
92). Florestan Fernandes, que coligiu e sintetizou as informações quinhentistas sobre a
sociedade tupinambá, resume o primeiro ponto:
“O grupo local, descrito pelos antigos cronistas sob o nome de ‘aldei-as’, constitui uma unidade social de grande importância analítica (...). É o grupo social que se coloca entre a menor unidade territorial – a ‘ma-loca’ – e a unidade territorial inclusiva, a tribo. Os liames primários que unem reciprocamente os indivíduos nesse grupo são vicinais, envol-vendo proximidade no espaço e coexistência no tempo (...) [e] constitui o elemento integrativo fundamental de que se compõe a tribo Tupi-nambá. Para designá-lo poderia também usar o termo tupi-guarani Taba (...).” (Fernandes, 1948: 55). “(...) o grupo local constituía, eventualmente, uma unidade social ofen-siva e defensiva. O ataque sempre provável ao grupo local, por parte dos inimigos, ou a organização de expedições punitivas contra estes, desenvolviam laços de solidariedade, que não devem ser menospreza-dos.” (Fernandes, 1948: 69-70)
Pierre Clastres, por seu turno, teoriza sobre o segundo ponto:
“A guerra primitiva é o trabalho de uma lógica do centrífugo, de uma lógica da separação, que se exprime de vez em quando no conflito ar-mado. (...) Esta lógica diz respeito não somente às relações intercomu-nitárias, mas também ao funcionamento da comunidade em si mesma. Na América do Sul, quando o perfil demográfico de um grupo ultrapas-sa o nível estimado ótimo pela sociedade, uma parte das pessoas vai
32
fundar uma aldeia mais longe.” (Clastres, 1982: 201, ênfase no origi-nal)
A localidade era tão importante para o modo de vida tupi, que a própria no-
ção de tribo não tinha praticamente nenhuma operacionalidade política para estes povos,
sendo mais uma categoria dos colonizadores, definida a partir da identidade lingüística e
cultural entre os grupos, do que dos naturais (Cf. Fernandes, 1948: 72). É óbvio, contudo,
que havia ligações entre os grupos locais de uma mesma área cultural, estabelecidos por
intercâmbios matrimoniais ou mercantis que firmavam laços de amizade e possibilitavam
a formação de alianças entre eles em circunstâncias especiais como as guerras ou as fes-
tas. Porém, a solidariedade à aldeia era o sentimento mais entranhado no íntimo daqueles
índios nômades, pois eles fundamentavam sua coesão social nos laços de parentesco e
amizade. O que se depreende disso é que uma ética fortemente baseada na intimidade,
era o fundamento do ethos tupi, como percebeu Gandavo:
“As povoações destes índios são aldeias: cada uma delas tem sete, oito casas (...). Em cada casa destas vivem todos muito conformes, sem ha-ver entre eles nenhumas diferenças: antes, são tão amigos uns dos ou-tros, que o que é de um é de todos (...).” (Gandavo, 1570-6: 126, ênfase nossa)
A estruturação do sistema político tupi (Cf. Fernandes, 1948: 261-294) reflete
exatamente essa lógica societária baseada na localidade. Estudos modernos (Cf. Clastres,
1978: 132, passim) e relatos de época demonstram que a autoridade política era notoria-
mente difusa nessas sociedades, o que levou alguns cronistas, valendo-se de argumentos
lingüísticos, a usarem a espicaçada expressão “esses índios não têm fé, lei nem rei”
(Gandavo, 1570-6: 52 e 124; Brandão, 1618: 216), numa operação metodológica muito
semelhante à “hermenêutica” dos pós-modernos, que freqüentemente formulam interpre-
tações abusivas a partir de correspondências semânticas escorregadias . Mas, tirante o
exagero interpretativo, o fato é que entre os tupis a autoridade política era exercida de
maneira especialmente adstrita: os “morubixabas” – chefes ou “principais”, pela defini-
33
ção ocidental – tinham o seu poder delimitado ao grupo local e cada “maloca”, a casa
tupi que congregava as diversas famílias da aldeia, tinha o seu próprio principal, que pos-
suía as mesmas prerrogativas que todos os outros (Cf. Fernandes, 1948: 274 e 278).
Ademais, é bastante ressaltada, desde os observadores menos cuidadosos até
os expertos, a extrema relatividade do poder e da autoridade dos chefes na sociedade tupi
que, mínima no cotidiano, era contudo decisiva na guerra: sua posição mais lhes cumula-
va de obrigações do que lhes distinguia com privilégios (Cf. Fernandes, 1948: 268 e 275-
9). Diz, por exemplo, o sensível autor dos Diálogos das grandezas:
“Primeiramente este gentio não tem rei a que obedeça, somente elegem alguns principais, aos quais reconhecem alguma superioridade, princi-palmente nas cousas da guerra, porque nas outras fazem o que lhes pa-rece melhor.” (Brandão, 1618: 215).
Contudo, é claro que havia os mais respeitados entre os respeitáveis. Tanto ao
nível local quanto na área cultural inclusiva, surgiam lideranças mais abrangentes, que
aprofundavam o carisma que possuíam exatamente através do seu desempenho no campo
de batalha, como é o caso do legendário Cunhambebe (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 282).
Mas, como se depreende facilmente, sua autoridade restringia-se exatamente às campa-
nhas bélicas, não redundando em qualquer possibilidade de exercer uma dominação polí-
tica mais pronunciada e dilatada.
Outra característica marcante da sociedade tupi, relacionada com a posição
central da guerra nessa cultura, é a tendência à segmentação dos grupos, também perce-
bida pela generalidade dos intérpretes e observadores e sintetizada por Capistrano, em
seu estilo direto:
“De rixas minúsculas surgiam separações definitivas; grassava uma fis-siparidade constante. Tradição muito vulgarizada, explicava migrações por disputas a propósito de um simples papagaio.” (Abreu, 1907: 52)
Essa tendência extremada à segmentação refletia-se, não raro, no estabeleci-
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mento de relações de animosidade intramuros ou entre aldeias muito próximas, às vezes
consideradas “amigas”, mas que se separavam em função de qualquer episódio banal, já
que, como observa André Thevet, “esses selvagens se ofendem com extrema facilidade”
(Thevet, 1557: 94). De fato, ao abordar o sistema de solução de demandas interpessoais
na aldeia, fundamentado na vendetta, Florestan Fernandes aponta para esse fato:
“Quando os parentes do ofensor se recusavam a satisfazer as obriga-ções estipuladas pela tradição, rompiam-se os laços de solidariedade dos grupo local. Os dois grupos de parentes, com as parentelas amigas e aliadas, passavam a se hostilizar e a se guerrear mutuamente, tornan-do-se inimigos irreconciliáveis.” (Fernandes, 1948: 264)
O resultado desse tipo de operação é o estabelecimento de um quadro de rela-
ções sociais fortemente marcado pelo faccionalismo: os grupos solidários definem-se
enquanto tais pela extrema fidelidade entre os amigos e pela acerba rivalidade com os
inimigos6. Na verdade, essas oscilações entre rivalidade e fidelidade cruzam-se exata-
mente com a variável proximidade-distância, recolocando a localidade como critério
crítico para a ação dos sujeitos, e a intimidade como sua base ética fundamental. É uma
operação estrutural análoga à que Evans-Pritchard identificou entre os Nuer, hoje uma
interpretação considerada clássica no âmbito da teoria política dos povos primitivos:
“Os Nuer atribuem valores à sua distribuição geográfica e estas valora-ções fornecem-nos unidades sócio-espaciais e relacionam estas unida-des num sistema. Em todas estas unidades é evidente a tendência para a fragmentação em segmentos opostos, e também a tendência para a fu-são desses segmentos com relação a outras unidades. Quanto menor for o segmento, maior será a coesão, e é por esta razão que existe um sis-tema fragmentário.” (Evans-Pritchard, 1978: 199)
São esses mesmos critérios pessoalizantes que explicam o objetivo manifesto
das guerras – restaurar pelo sangue a honra ultrajada pelo assassinato dos parceiros –
6 Como já demonstramos alhures, é por intermédio da “rivalidade de base faccional” (Landé, 1977: xxxii) que o exercício do conflito se torna viável em sociedades “holistas” (Cf. Dumont, 1985: 23 e 1992: 56, passim) ou “relacionais” (Cf. DaMatta, 1987: 26-7), aquelas em que os laços pessoais definem os padrões
35
embora sua grande motivação fosse o aprisionamento dos desafetos para a realização da
festa suprema, o ritual antropofágico (Cf. Fernandes, 1948: 103). Há também, neste as-
pecto, uma unanimidade entre os intérpretes e testemunhas. Vejamos, por exemplo, o que
diz Léry:
“Os selvagens guerreiam não para conquistar países e terras uns aos ou-tros, porquanto sobejam terras para todos; não pretendem tampouco en-riquecer-se com os despojos dos vencidos ou o resgate do prisioneiros. Nada disso os move. Confessam eles próprios serem impelidos por ou-tro motivo: o de vingar pais e amigos presos e comidos, no passado (...).” (Léry, 1578: 183)
A solidariedade entre parentes e amigos era tão arraigada, que o sentimento
de honra não admitia lenitivos nem conhecia temores: eram os tupis povos de convicções
irredutíveis quando se tratava de afirmar sua fidelidade ao grupo, seja quando vingavam
os parentes ultrajados, seja quando eram imolados em nome deles. “Penso – opina André
Thevet, com sua erudição clássica – que se Teseu por aqui aparecesse, ele que foi o pri-
meiro a combinar uma trégua entre os gregos, ficaria totalmente embaraçado pela inefi-
cácia de seus argumentos” (Thevet, 1557: 123). A altivez estóica dos cativos às vésperas
de sua execução para o festim antropofágico dos seus algozes é de uma eloqüência troan-
te no que se refere a esse aspecto:
“Tive diversas oportunidades de conversar com prisioneiros na véspera de sua morte. Quando perguntava a esses bravos e fortes guerreiros se não se importavam absolutamente com o fato de estarem prestes a ser executados, viravam-se para mim entre risos e zombarias: ‘Meus ami-gos virão vingar-se’, diziam, seguros de si e cheios de coragem. E se alguém por acaso dissesse que iria tentar libertá-los das mãos dos ini-migos, novamente faziam troça de suas palavras.” (Thevet, 1557: 132)
Esse sentimento de pertença tão entranhado se inculcava nas consciências dos
índios, como já afirmamos, através de práticas cotidianas, pela atribuição de status e de
atitudes rituais que ressaltavam, primordialmente, o contraste entre amigos e inimigos e o
de sociabilidade, pois a “pessoa” e não o “indivíduo” são o seu átomo (Cf. Caniello, 1990, 1993 e 1995).
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papel da vingança como atitude honrosa. É o que veremos a seguir.
Comecemos por abordar aqueles fatos do cotidiano, aparentemente pouco
importantes, mas que de maneira subliminar vão incutindo no indivíduo os valores de sua
cultura – são os chamados “imponderáveis da vida real”, elementos de grande relevância
etnográfica para a compreensão da vida social como um todo (Cf. Malinowski, 1984:
29). Thevet, particularmente sensível à observação desses fenômenos, nos legou alguns
fatos curiosos:
“Logo depois do nascimento, o pai colocará nas mãos da criança um arco e uma flecha, simbolizando sua declaração de guerra e perpétua vingança contra seus inimigos.” (Thevet, 1557: 138) “(...) são especialmente as mulheres que criam um [certo] tipo de papa-gaio (...). Tornam-se elas tão afeiçoadas a estes animais que conversam com eles chamando-os de ‘meus amigos’. De fato, os americanos ensi-nam estas aves a falar (...). No mais das vezes (...) preferem ensiná-las a dizer frases concitando os selvagens a fazer guerra aos inimigos, a prendê-los e devorá-los (...).” (Thevet, 1557: 158)
Um aspecto ainda mais interessante dessa classe de fenômenos refere-se não
à guerra e à vingança de uma forma geral, mas a uma particularidade da maneira de com-
bater dos tupis, fonte de sua habilidade nessa arte – a “ligeireza” (Gandavo, 1570-6: 132).
A agilidade era um valor primordial para eles e se expressava, por exemplo, no trato cor-
poral e na ideologia alimentar:
“(...) os americanos andam nus em pelo (...). Dizem eles (...) que assim despidos ficam mais desimpedidos e dispostos para quaisquer exercí-cios, o que não ocorreria se estivessem vestidos. Confirmando tal idéia, quando acontece de trazerem consigo alguma camisa leve (...) e depa-ram com seus inimigos, tiram-na imediatamente, acreditando que a roupa lhes estorvaria a destreza e a agilidade nos combates (...). Não obstante, anseiam por ganhar roupas (...), considerando-as objetos caros e preciosos.” (Thevet, 1557: 101) “(...) evitam comer carnes de animais vagarosos, sejam terrestres ou aquáticos. Já as de animais que voam ou correm com ligeireza, tais co-mo veados ou corças por exemplo, comem-nas todas. Isto é devido à crença de que aquele alimento os tornaria muito pesados, estorvando-lhes os movimentos quando se vissem atacados pelos inimigos.” (The-vet, 1557: 105)
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Quanto aos critérios de atribuição de status, primeiro lembremos que a lide-
rança política, ainda que mitigada, era delegada aos guerreiros mais arrojados – “(...) são
tratados como reis ou grão-senhores, especialmente os que fizeram maior número de ví-
timas” (Thevet, 1557: 124). Pela mesma razão, os grandes guerreiros conseguiam obter
mais esposas (Cf. Thevet, 1557: 137), cujo número era o mais expressivo símbolo de
status nessa sociedade, poligâmica e patrilinear (Cf. Fernandes, 1948: 129 passim e 266).
Em suma, “o líder guerreiro se tornava, via de regra – como Cunhambebe e Japiaçu –
chefe do grupo local” (Fernandes, 1948: 272) e “o chefe do grupo local era, ao mesmo
tempo, o chefe das expedições guerreiras. Mas a relação determinante seria a segunda, e
não a primeira.” (Fernandes, 1948: 274). Mas, os valores associados à guerra eram crité-
rios bem mais abrangentes e embebiam a estrutura social como um todo, como explica
Florestan Fernandes:
“A maior fonte de prestígio e elevação de status (...) ligava-se à vin-gança dos antepassados e dos parentes ou amigos em combate pelos i-nimigos. Por isso, os valores guerreiros e as qualidades subordinadas a eles, na cultura Tupinambá, assumiam importância peculiar na vida de um homem. Sem realizar a proeza considerada mínima (aprisionamento e sacrifício de um inimigo, pelo menos) jamais um indivíduo consegui-ria casar e ser admitido no círculo dos adultos.” (Fernandes, 1948: 267)
Ademais, além de promover a investidura dos meninos no mundo dos adul-
tos, eram os valores guerreiros que distinguiam os velhos, os venerados portadores da
tradição, que eram respeitadíssimos por todos (Cf. Thevet, 1557: 106). Especialmente
considerados eram aqueles que haviam sido grandes guerreiros (Cf. Fernandes, 1948:
276), pois, como observa Florestan Fernandes, “os velhos, em geral, conseguiam reunir
em suas mãos todos os meios de dominação” (Fernandes, 1948: 271).
Já se apontou, contudo, que o chefe do grupo local tinha, na verdade, pouco
poder de mando na vida social tupi. Assim, era o “conselho de chefes” (Cf. Thevet, 1557:
123; Fernandes, 1948: 69 e 261, passim) o verdadeiro “órgão deliberativo e executivo”
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(Cf. Fernandes, 1948: 283). O conselho era integrado por todos os homens adultos da
aldeia, mas a divisão entre os Aua – aqueles que tinham entre 20 e 40 anos – e os Thuyu-
ae – os mais velhos – estabelecia a verdade dos poderes na deliberação das matérias: “os
indivíduos classificados como Aua (...) não podiam assumir o comando das expedições
guerreiras. Este cabia, com exclusividade, aos Thuyuae” (Fernandes, 1948: 275). Ora, os
temas mais graves discutidos nesses conselhos eram, naturalmente, aqueles relacionados
com a guerra, a instituição suprema dos tupis: “os velhos que se tinham revelado, em seu
tempo, grandes guerreiros, eram especialmente consultados sobre os empreendimentos
guerreiros” (Fernandes, 1948: 276). Ou seja, também no fórum das decisões maiores da
“gerontocracia tupinambá” (Cf. Fernandes, 1948: 261), os guerreiros mais bravos seriam
as personalidades mais respeitadas.
No campo do ritual, a importância da guerra e da vingança é também eviden-
te. Na prática religiosa, por exemplo, essas noções são recorrentemente aludidas: os “ca-
raíbas”, seus xamãs, invocavam os espíritos principalmente para indagá-los acerca dos
virtuais embates – “Perguntam-lhe sempre quem alcançará a vitória” (Thevet, 1557: 118)
e “cabia-lhes dar, como intérpretes da vontade dos espíritos dos antepassados, a palavra
final sobre a conveniência ou não de determinadas realizações, como uma expedição
guerreira” (Fernandes, 1948: 286). A cosmologia do profetismo religioso tupi, por seu
turno, é fundada nessas mesmas idéias:
“Acreditam não só na imortalidade da alma, mas ainda que, depois da morte, as que viveram dentro das normas consideradas certas, que são as de matarem e comerem muitos inimigos, vão para além das altas montanhas dançar em lindos jardins com as almas de seus avós. Ao contrário as almas dos covardes vão ter com Ainhan, nome do diabo, que as atormenta sem cessar.” (Léry, 1578: 207)
A ênfase na pessoa: base do ethos tupi
Diante do exposto até agora, pudemos formar uma idéia da importância da
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guerra na vida social tupi, embora não devamos imaginar que esses índios vivessem em
função dela, acossados pelo leviatã, em permanente “estado de guerra”. Seu cotidiano
envolvia os trabalhos na roça, as caçadas e a pesca, as fumagens noturnas no centro da
aldeia, as festas que reuniam os amigos da região nas quais bebiam cauim e farreavam
por até um dia inteiro (Cf. Thevet, 1557: 105), e muito mais. Afinal, como diz Gandavo,
“a vida que buscam (...) é muito mais descansada que a nossa: porque não possuem ne-
nhuma fazenda, nem procuram adquiri-la como os outros homens, e assim vivem livres
de toda a cobiça e desejo desordenado de riquezas” (Gandavo, 1570-6: 128).
Pretendêramos apenas abordar, valendo-nos da heurística sociológica, a “ba-
se” do ethos tupi, cuja expressão mais enfática se realiza na guerra. Ou seja, queremos
demonstrar que o ethos tupi era conformado por um valor fundamental – os vínculos da
pessoa, demarcados por sua inserção num “grupo local” fortemente solidário – que se
rebatia numa ética agudamente definida pela intimidade, a qual imprimia na consciência
dos agentes um profundo sentimento de honra. Esse valor se localizava de maneira rele-
vante numa identidade fundada na oposição entre “amigos” e “inimigos”, cujas tensões
eram elaboradas através de uma ideologia propugnadora da vingança, realizada pelo e-
xercício da guerra e pela prática da antropofagia, seus rituais supremos.
Por outro lado, a decantada hospitalidade e generosidade dos índios para com
seus amigos (Cf. Thevet, 1557: 144; Léry, 1578: 237, passim; Cardim, 1584-90: 91; Ab-
beville, 1614: 227-8) é a expressão homóloga e invertida do mesmo princípio: os víncu-
los entre as pessoas têm um valor supremo para os indivíduos, que relevam muito mais as
“relações” em que estão embebidos do que a sua própria “individualidade”, noção ideo-
logicamente inoperante para eles. O choro de boas-vindas é o mais expressivo emblema
desse princípio, quando acionado pelo sentimento de amizade:
“Qualquer de seus semelhantes ou amigos estrangeiros é logo ao chegar presenteado com uma rede de algodão; chegam depois as mulheres com as mãos sobre os olhos e, segurando uma das pernas do visitante, prin-cipiam logo a chorar com gritos e exclamações maravilhosas. É isso um dos mais evidentes sinais de cortesia que costumam testemunhar a seus
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amigos.” (Abbeville, 1614: 227)
Entendemos que esse tipo de configuração ética fundamentada fortemente na
fidelidade aos laços pessoais, a qual se articula ritualmente à rivalidade faccional, seja a
base do ethos tupi e que a polarização entre os tratamentos dispensados a amigos e inimi-
gos revela o nível de comprometimento emocional que o valor da intimidade impõe à
consciência desses índios. Os tupis choram, matam e morrem em honra de seus amigos;
seus inimigos, simplesmente devoram.
Uma guerra
Nossa abordagem sobre o “espírito” dos habitantes ancestrais ainda não está
completa porque não tratamos da própria dinâmica da guerra e, por isso, não pudemos
perceber a ação dos sujeitos imbuídos dessa ética que os dota de sentimentos tão radicais.
Ou seja, não vimos como, no calor da luta e no ardor da vitória, os valores tupis se reali-
zavam em eventos. Para concluir este Capítulo, faremos uma reconstituição “modelar” da
guerra – mais impressionista do que interpretativa – através da qual pretendemos trans-
mitir não só um quadro de sua estrutura básica, mas, sobretudo, o panorama da mobiliza-
ção que ela promove7.
O primeiro passo para o empreendimento de uma campanha contra os inimi-
gos era decidir sobre sua melhor oportunidade já que, como demonstramos, na memória
daqueles índios havia sempre a viva presença de uma injúria a ser vingada. Além do
mais, como o festim antropofágico era o ritual mais valorizado entre eles, sua realização
era esperada ansiosamente e tida como um fato de suma importância.
O fórum para esse debate, como já apontamos, era o “conselho de chefes”,
que se reunia toda a noite no pátio central da aldeia para tratar de muitos assuntos atinen-
7 Esta reconstituição se baseia em Thevet, 1557; Gandavo, 1570-6; Léry, 1578; Cardim, 1584-90; Abbevil-le, 1614; Brandão, 1618 e Fernandes, 1948.
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tes à vida do grupo. Lá, compartilhando o cachimbo de petum e bebendo cauim, os mo-
rubixabas exercitavam um de seus maiores atributos, a oratória. Os mais hábeis nessa
arte, os “senhores da fala” (Fernandes, 1948: 267), tinham grande ascendência sobre os
demais. Era comum procederem “com urbanidade e discrição” (Thevet, 1557: 123), mas
os ânimos podiam se alterar em função da gravidade do assunto e do entusiasmo na caui-
nagem. Quando o tema era a guerra, as prédicas que se sucediam tinham um teor exorta-
tivo:
“Nossos predecessores (...) não só combateram valentemente mas ainda subjugaram, mataram e comeram muitos inimigos, deixando-nos assim honrosos exemplos; como pois podemos permanecer em nossas casas como fracos e covardes? Será preciso, para vergonha e confusão nossa, que os nossos inimigos venham buscar-nos em nosso lar, quando outro-ra a nossa nação era tão temida e respeitada das outras que a ela nin-guém resistia? (...) Não, não gente de minha nação, poderosos e rijos mancebos não é assim que devemos proceder; devemos ir procurar o i-nimigo ainda que morramos todos e sejamos devorados, mas vingue-mos nossos pais!” (Léry, 1578: 184)
Resolvida a polêmica, que podia durar até “mais de seis horas” (Léry, 1578:
185), era hora de consultar o caraíba – também um membro importante do conselho, já
que era considerado “intérprete da vontade dos espíritos dos antepassados” (Fernandes,
1948: 286). Se o pajé houvera recebido alguma revelação através de seus sonhos e esti-
vesse convencido de que a expedição era oportuna, podia decidir de imediato, mas se os
presságios não fossem bons, certamente teria que consultar o oráculo, o que se processa-
va da seguinte maneira:
“(...) em primeiro lugar, mandam que se construa uma choça nova, não permitindo que ninguém nela habite antes de findar a cerimônia. No in-terior, armam uma rede branca e limpa. A seguir, levam para lá grande quantidade de víveres, incluindo sua bebida tradicional, o cauim, que deve ter sido preparado por uma virgem de dez ou doze anos, e também a farinha de raízes, que usam em lugar do pão. Tudo assim arrumado, reúne-se o povo e conduz seu profeta à cabana. Ali ele ficará sozinho, depois que uma jovem lhe trouxe água para suas abluções. Note-se, po-rém, que ele, antes de proceder à cerimônia, deverá abster-se de conta-tos com sua mulher pelo espaço de nove dias. Lá dentro, depois que to-do o povo se retirou, estende-se o pajé na rede e começa a invocar o es-
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pírito maligno, o que demora cerca de uma hora, sendo esta cerimônia desconhecida dos demais. Ao final dessas invocações, chega o espírito, dando-se a revelar pelo som de pios ou assovios (...). Quando a cerimô-nia secreta chega ao seu final, sai da cabana o pajé, sendo incontinenti rodeado pelo povo, ao qual faz uma arenga, narrando tudo o que lá den-tro ele ouviu.” (Thevet, 1557: 118-9)
Tomada a decisão, o morubixaba – consultados os velhos em conselho – esti-
pulava a data da saída da expedição, tomando como referência a maturação de alguma
fruta, por exemplo. Então, iniciavam-se os preparativos: as aldeias amigas eram contac-
tadas, os acessos à taba eram limpos e alargados, as mulheres iniciavam a preparação da
matalotagem, composta pela “farinha de guerra”8, e os homens do arsenal, constituído de
arcos e flechas, tacapes “afiados como um machado” (Léry, 1578: 185) e escudos de cou-
ro de anta. Também se providenciavam penas em grande quantidade para os adornos de
corpo e para enfeitar as armas, “para com isso se fazerem mais temidos” (Brandão, 1618:
226).
Ao alvorecer do grande dia, o morubixaba saía pela aldeia e, “senhor da fala”
que necessariamente era, exortava os companheiros à luta, exaltando a valentia de todos,
lembrando a bravura dos antepassados, ridicularizando os inimigos e vaticinando a vitó-
ria. O caraíba assoprava fumaça de petum nos guerreiros, que vinham pintados para a
guerra. Suas esposas os acompanhariam, incumbidas de carregar os petrechos e de prepa-
rar a comida, já que “os homens não trazem nas mãos senão seus arcos e flechas” (The-
vet, 1557: 124). As velhas e as crianças faziam alarido, acompanhando os músicos que
tocavam “pífanos e flautas feitos de ossos dos braços e pernas dos inimigos” (Léry, 1578:
187). Os muito velhos, que já não podiam acompanhar a expedição, lembrariam das
campanhas passadas, macambúzios em suas redes. Mas o estado de espírito era de eufo-
ria geral:
8 “A farinha que devia servir para jornadas, a qual chamavam de guerra, era cozida de forma que ficava compacta, em pequenos pães embrulhados em folhas, de tal modo que não lhe fazia dano a água da chuva, ou de um rio em que caísse. Juntavam-lhe uma pouca de carimã, e a coziam mais que a outra.” (Varnhagen,
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“Quando vão à guerra sempre lhes parece que têm certa a vitória e que nenhum de sua companhia há de morrer, e assim em partindo dizem, vamos matar, sem mais outro discurso, nem consideração, e não cui-dam que também podem ser vencidos.” (Gandavo, 1570-6: 130)
A companhia, que “chegava a reunir doze mil homens, com suas mulheres,
(...) andaria de 10 a 30 léguas” (Fernandes, 1948: 89), dependendo do caso. Iriam confi-
antes, tangidos pelo som de suas trombetas e flautas, a não ser que ouvissem o pio agou-
rento da peitica, porque, neste caso, “desamparam a jornada e se tornam a recolher”
(Brandão, 1618: 227). Do contrário, nada lhes demovia do seu objetivo, que trilhavam de
maneira peculiar:
“Não observavam ordem de marcha nem categoria; os mais valentes, porém vão na frente e marcham todos juntos, parecendo incrível que tanta gente se possa acomodar espontaneamente e se erguer ao primeiro sinal para uma nova marcha.” (Léry, 1578: 187)
Quando se aproximavam do alvo, levantavam bivaque em local protegido, a
um ou dois dias de caminhada da aldeia que procuravam, permanecendo nele as mulheres
e alguns homens jovens para protegê-las. Partiam, então, embrenhando-se silenciosamen-
te pelos matos, e ficavam numa campana paciente, que podia durar até um dia inteiro,
aguardando o melhor momento para a abordagem. Atacavam de surpresa, normalmente à
noite, ornados de penas, os corpos pintados. Saíam de seus esconderijos aos brados e
atirando flechas, troando as inúbias e silvando os membis. Brandiam, impávidos, de seus
inimigos pretéritos, tíbias e fêmures, cúbitos e rádios, colares de dentes. Logo estariam
ateando fogo às malocas e se lançando, tacapes em punho, a um corpo-a-corpo sangrento
e inclemente:
“Eles se agarram e se mordem em todas as partes do corpo dos inimi-gos que lhes passem ao alcance das garras e dos dentes, mesmo que se-ja pelos beiços perfurados.” (Thevet, 1557: 124)
1854-7a: 39).
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“Se alguém era ferido (...), depois de arrancá-las corajosamente do cor-po quebrava as setas, e como cão raivoso mordia-lhes os pedaços; nem por isso deixava entretanto de voltar ao combate. Esses americanos são tão ferozes e encarniçados em suas guerras que, enquanto podem mover braços e pernas, combatem sem recuar nem voltar as costas. Finalmen-te, quando chegaram ao alcance das mãos alçaram as clavas descarre-gando-as com tal violência que quando acertavam na cabeça do inimigo o derrubavam morto como entre nós os magarefes abatem os bois.” (Léry, 1578: 189)
A violenta cena, tinta de mortos, era aterradora mas revelava uma coreografia
de bravos, testemunhada por um extasiado Jean de Léry:
“(...) nunca um espetáculo de combate me deu tanto prazer aos olhos. Mas além da diversão de vê-los saltar, assobiar e manobrar com destre-za para todos os lados, causava encanto o espetáculo de tantas flechas emplumadas de vermelho, azul, verde e outras cores, brilhando aos rai-os do sol; e não era menos agradável ver os adornos feitos dessas penas naturais com que se vestiam os selvagens.” (Léry, 1578: 190).
Porém era a contenda, sobretudo, a impressionante expressão de um estilo
próprio de lutar que respondia a convicções implacáveis:
“Todos em seus combates são determinados, e pelejam mui animosa-mente sem nenhumas defensivas; e assim parece cousa estranha ver dous, três mil homens nus de parte a parte frechar uns aos outros com grandes sovios e gritas, maneando-se todos com grande ligeireza de uma parte pera outra, pera que não possam os imigos apontar nem fazer tiro em pessoa certa. Porém pelejam desordenadamente e desmandam-se muito uns e outros em semelhantes brigas, porque não têm Capitão que os governe, nem outros oficiais de guerra a quem hajam de obede-cer nos tais tempos; mas ainda que desta ordenança careçam, todavia por outra parte dão-se a grande manha em seus cometimentos e são mui cautos no escolher do tempo em que hão de fazer seus assaltos às aldei-as dos imigos (...). São mui atrevidos, como digo, e tão confiados em sua valentia, que não há forças de contrário tão poderosas que os as-sombrem, nem que os façam desviar de suas bárbaras e vingativas ten-ções.” (Gandavo, 1570-6: 132)
Os que sobrevivessem ao assédio dos vitoriosos em tão aguerrida peleja seri-
am os únicos troféus da refrega – o manjar do repasto antropofágico a ser degustado na
comuna que aguardava os guerreiros. Eram, então, os sobreviventes maniatados e incor-
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porados ao grupo vencedor e o campo de batalha era abandonado imediatamente. No
bivaque, descansariam e fariam a cerimônia de nominação, em meio à animação das es-
posas que os esperavam: de cada inimigo que matasse o guerreiro, herdava este o nome,
somando-o aos que já possuía. Seu corpo também ficaria marcado pela lembrança do
morto: faziam escarificações, às quais deitavam jenipapo para as tornarem indeléveis.
No retorno para casa, o séquito dos vitoriosos era saudado com grandes festas
pelas aldeias amigas, que exaltavam a valentia dos pares e anteviam a festa que seria
proporcionada pelos cativos que traziam. Estes viriam sóbrios, sem medo e sem alegria.
Haviam cumprido o seu papel dignamente e lhes restava agora a certeza de que seriam
oportunamente vingados. O moto era contínuo. Afinal, eles próprios eram bravos guerrei-
ros, haviam matado e devorado muitos homens, inclusive parentes dos que agora os man-
tinham atados.
A chegada à aldeia dava-se tal como se dera a partida. Com grande alarido
eram recebidos os expedicionários e até os velhos agora exultariam – não haviam partici-
pado da campanha, mas vingariam seus mortos amigos comendo a carne dos inimigos
apresados. Os prisioneiros, tratavam bem e a cada um era dada uma esposa, “não hesi-
tando os vencedores em oferecer a própria filha ou irmã em casamento” (Léry, 1578:
193), que cuidaria do seu bem-estar até que chegasse o dia do sacrifício, controlado atra-
vés dos colares de contas que colocavam em seu pescoço e que iam sendo dia-a-dia debu-
lhados. Quando as miçangas se esbagoassem todas, era chegada a hora.
Ao se aproximar o dia, iam sendo ultimados os preparativos para a grande
festa. As aldeias amigas eram convidadas, preparava-se cauim em grande quantidade, se
aparelhava muita cerâmica nova, o executor era escolhido e o tacape ritualmente prepa-
rado. Na véspera, estando já o prisioneiro apartado de sua mulher, era este atado à sua
rede, onde permaneceria até o amanhecer do dia seguinte. Mais uma vez, pareciam os
condenados não temerem pelo seu destino, pois ao invés de se lamuriarem, cantavam:
“Que venham logo todos devorar-me, pois comerão assim seus pais e
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avós que serviram de alimento a meu corpo; ignoram que nestes mús-culos, nesta carne e nestas veias, a substância de seus antepassados ain-da se encontra; saboreiem-na pois que nisso tudo ainda acharão o sabor de sua própria carne.” (Montaigne apud Milliet; Léry, 1578: 194, nota)
Na manhã fatídica, a aldeia repleta de parentes e amigos acordaria excitada.
Todos estariam estimulados pela festa e desbragados pelo cauim, que por dias havia sido
consumido a potes. Então, reuniam-se todos no terreiro central e o cativo era levado ao
rio, em cortejo festivo, para seu derradeiro banho. Os circunstantes estariam com os cor-
pos pintados e trajados com suas mais caras vestimentas e adornos, postos de acordo com
a solenidade do dia. Não estaria de outra maneira o condenado, depois do seu banho:
“longe de mostrar-se pesaroso enfeita-se todo de penas e salta e bebe como um dos mais
alegres convivas” (Léry, 1578: 193).
Ao chegarem do rio, o cativo era amarrado à cintura por uma embira longa,
com dois terminais que seriam manietados pelos índios, de maneira que o condenado
tivesse seus braços livres, mas seus movimentos controlados. Assim, era levado a andar
pela aldeia, até que a excitação atingisse o seu auge e todos se reunissem no pátio central,
cantando e exultando pela vingança dos amigos mortos. O prisioneiro, se fosse grande
guerreiro, jamais se abatia e vituperava, cada vez mais veementemente:
“Também eu, valente que sou, já amarrei e matei vossos maiores. (...) Comi teu pai, matei e moqueei a teus irmãos; comi tantos homens e mulheres, filhos de vós outros tupinambás, a que capturei na guerra, que nem posso dizer-lhes os nomes; e ficai certos de que para vingar a minha morte os maracajás da nação a que pertenço hão de comer ainda tantos de vós quantos possam agarrar.” (Léry, 1578: 194).
No anticlímax da cerimônia, os terminais da embira eram esticados, de forma
a deixar o cativo em posição fixa, e lhe eram dados pedras e pedaços de cerâmica, para
que os lançasse na assistência, a última oportunidade para se vingar de seus algozes. As-
sim o fazia, até que a munição acabasse. Então, o executor, que observara estrito retiro
das festividades, saía de sua choça enfeitadíssimo, empunhando o tacape, também espe-
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cialmente ornado. Estava pronto para ser abençoado pelo caraíba e consumar o ato prin-
cipal da festa primordial. Antes do golpe de misericórdia, contudo, realizava-se um ritual
oratório no estilo já descrito, com imprecações de parte a parte, entremeado por investi-
das e refugos do executor, que excitavam ainda mais o público. O cativo tentava tomar a
clava de seu verdugo durante suas arremetidas zombeteiras, e podia, às vezes, realizar o
seu intento, mas o jogo ritual tinha um desfecho implacável:
“O selvagem encarregado da execução levanta então o tacape com am-bas as mãos e desfecha tal pancada na cabeça do pobre prisioneiro que ele cai redondamente morto sem sequer mover braço ou perna. (...) Em verdade muitas vezes as vítimas estrebucham no chão, mas isso por causa do sangue e dos nervos que se contraem. O executor costuma ba-ter com tal destreza na testa ou na nuca que não se faz necessário repe-tir o golpe e nem a vítima perde muito sangue.” (Léry, 1578: 198)
Incontinênti, as velhas acorriam apressadas e aparavam o sangue e os miolos
do crânio destroçado, enquanto a esposa chorava a morte do marido imolado9. Os guer-
reiros tomavam do sangue e lambuzavam os filhos pequenos para os integrar à festa,
“com o fito de torná-los mais corajosos (...) e de mostrar-lhes como deverão proceder
com os inimigos quando chegarem à idade adulta” (Thevet, 1557: 132). Depois, o corpo
era escaldado, espostejado, e suas partes – incluídas as vísceras já lavadas – eram coloca-
das no moquém, para assar. Atingido o ponto considerado ideal, a carne era divida entre
os convivas – “nenhum dali sai sem o seu pedaço” (Léry, 1578: 200), a não ser o execu-
tor, que teria já voltado à sua choça, tomado o nome do sacrificado e sarjado o corpo,
permanecendo em jejum por mais três dias. Ficaria ele ainda alguns meses seguindo pre-
ceitos rituais, antes de se reintegrar à vida da comunidade.
Quando o número de comensais era muito grande, “do caldo [faziam] gran-
des alguidares de migas e papas de farinha de carimã, para suprir na falta de carne, e po-
9 Léry diz que eram lágrimas de crocodilo (Cf. Léry, 1578: 198), mas o Pe. Cardim atalha que “muitas vezes se afeiçoam a eles, de maneira que não só dão azo para fugirem, mas também se vão com eles” (Car-dim, 1584-90]: 96; cf. Gandavo, 1570-6: 139). O caso de Diogo Álvares apóia a visão do jesuíta.
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der chegar a todos” (Salvador, 1627: 96). Quando sobejava o acepipe, pois muitas vezes
sacrificavam mais de um inimigo na festa, guardavam pedaços moqueados, “para depois
renovarem o seu ódio e fazerem outras festas” (Salvador, 1627: 96)10.
Havia sido consumada a vingança e agora a vida na aldeia podia voltar à
normalidade. Até, é claro, que os parentes do morto viessem retaliar tal ignomínia perpe-
trada contra seu ente querido ou então que estes aldeões, entediados de sua vida tranqüi-
la, lembrassem de outra injúria a desagravar.
A atmosfera européia em Quinhentos
“Não abominemos demasiado – advertia Jean de Léry – a crueldade dos sel-
vagens antropófagos. (...) Não é preciso ir à América, nem mesmo sair de nosso país,
para ver coisas tão monstruosas” (Léry, 1578: 204). O militante huguenote refletia sobre
sua Europa “civilizada”, cindida entre católicos e protestantes que não economizavam
atrocidades para impor as suas paixões prosélitas, e relativizava a barbaridade do caniba-
lismo tupi. Era uma operação comparativa que exprimia um fato fundamental – tanto
europeus quanto ameríndios cultivavam a guerra como instrumento de expressão máxima
de suas convicções:
“Parece que o contraste entre o nível primitivo da vida dos indígenas do Brasil (...) e o desenvolvimento de suas técnicas bélicas, a importância e a freqüência das operações militares entre os diferentes grupos, forne-ceram aos antigos cronistas uma espécie de ponto de referência, graças ao qual eles reencontraram, num país distante e entre povos, aliás, bas-tante estranhos, a atmosfera carregada da Europa do século XVI.” (Lé-vi-Strauss, 1942: 325)
Aliás, era a mesma Europa que saíra do feudalismo dividida em reinos beli-
10 Se a mulher do morto estivesse grávida, os filhos seriam, depois, sacrificados, “porque, afinal de contas, são filhos de um inimigo” (Thevet, 1557: 131) – fato lógico numa sociedade patrilinear que considera a mãe como um mero receptáculo do descendente do marido. Contudo, há vários relatos sobre mães que se afeiçoavam aos filhos de tal maneira que faziam tudo para livrá-los do ritual antropofágico e muitas delas fugiam para a aldeia do marido morto para salvá-los (Cf. Gandavo, 1570-6: 139).
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cosos, engajados em “lutas de eliminação”, que construía uma Modernidade “civilizado-
ra” a custa de monopólios, absolutismos e guerras, muitas guerras (Cf. Elias, 1936b: 93
passim). Nesse contexto formaram-se politicamente os portugueses e, sob a marca do seu
tempo, empreenderiam eles a colonização da terra descoberta.
A afirmação nacional portuguesa
De fato, em 1500, os lusos consolidavam um projeto de afirmação nacional
de proverbial precocidade, iniciado no final do século XI com a instituição do condado
portucalense, na região aquém-Minho demarcada pela expulsão dos mouros (Cf. Martins,
1879: 62). Eram tempos belicosos aqueles, durante os quais a Ibéria via nascer novas
identidades cívicas entre os contingentes mobilizados contra os infiéis sarracenos. Des-
tarte, no calor da guerra santa, belicismo e cristandade se caldearão na gestação da nacio-
nalidade lusitana, marcando definitivamente a trajetória histórica portuguesa. O mito de
origem da nacionalidade, que legitima simbolicamente a fundação da primeira dinastia
nacional, expressa essa fusão de maneira emblemática:
“É bem autêntica entre os naturais, e recebida entre os estrangeiros (posto que impugnada por alguns castelhanos) aquela misteriosa apari-ção de Cristo Nosso Senhor ao primeiro rei lusitano D. Afonso Henri-ques, o qual na noite precedente ao dia em que havia de dar no Campo de Ourique batalha a Ismael e a outros quatro reis mouros, triste e pen-sativo por ver a gente portuguesa temerosa da multidão bárbara, (...) pediu a Deus favor, por ser aquela guerra por seu amor empreendida e contra os blasfemos do seu santo nome (...). Ficando em oração o pie-doso príncipe, e ouvindo o sinal na segunda vela da noite, saiu fora da tenda e viu para a parte do oriente um raio, que resplandecendo pouco a pouco foi formando uma cruz mais que o sol brilhante, e nela se lhe mostrou o Senhor crucificado, a cuja divina presença prostrado o prín-cipe (...) lhe rogou pelos seus vassalos (...), e [que] se lembrasse não só dos seus sucessores, mas de toda a gente de Portugal. A esta depreca-ção (...) respondeu o Senhor, que da sua descendência e de Portugal se não apartaria a sua misericórdia, e que vinha animá-lo naquele conflito, por estabelecer o seu reino sobre firme pedra; que aceitasse o título de rei que antes de entrar na batalha lhe ofereceriam os seus vassalos, e que na sua descendência (...) poria os olhos, porque nela e no seu reino havia de estabelecer um império que levasse o Seu nome às partes mais distantes.” (Rocha Pitta, 1730: 212-3)
50
A vitória sobre os mouros, alcançada em julho de 1139 na batalha do Ourique
(Cf. Martins, 1879: 574), estendeu o domínio lusitano até o Tejo e habilitou D. Afonso
Henriques a autoproclamar-se rei, já que “era evidente que um novo Estado se formava”
(Martins, 1879: 77-8). Nascia, assim, a nação portuguesa, entalhada, pois, pela guerra e
pela fé.
Depois de um longo período de lutas contra sarracenos, leoneses e castelha-
nos, os lusos conseguiram delimitar o seu território definitivamente e consolidar a sua
identidade política em 1385, com a ascensão ao trono do Mestre de Avis, o “defensor do
reino” (Martins, 1879: 576) que derrotara finalmente os espanhóis na batalha de Aljubar-
rota. Instalava-se a primeira monarquia nacional independente da Europa e o século de-
corrido a partir de então foi um período fértil para a nacionalidade, pois do Estado for-
mado por camponeses pobres emergiu a potência ultramarina que lançaria as bases do
que hoje denominamos “globalização”.
Realmente, desde a tomada de Ceuta, em 1415, até a expedição de Vasco da
Gama, em 1497, a efetivação de uma geopolítica agressiva e a evolução da arte marítima
expandiriam a órbita do pequeno reino, colocando sob o domínio do cetro lusitano e da
voracidade da nobreza nacional as riquezas de África e Índias. O expansionismo maríti-
mo português, fonte da opulência do pequeno reino e ícone da vitalidade nacional, reve-
laria que a prática da expropriação capitalista mais primitiva, denunciada pelo tráfico de
escravos, pela rapinagem do ouro africano e pela astuciosa ação dos comerciantes de
especiarias orientais (Cf. Holanda, 1989: 26-31), tornara-se um novo elemento do habitus
lusitano, na aurora da modernidade. Com efeito, “entusiasmara-se o povo, acicatado pela
febre do lucro...” (Prado, 1935: 19).
Por outro lado, o modelo absolutista que se desenvolvia paralelamente à con-
solidação nacional tinha os seus fundamentos nas idéias de um dos mais famosos legistas
lusitanos, que colaborara intimamente com o Mestre de Avis na revolução de 1385. João
51
das Regras elaborou um formulário político que propunha basicamente que o poder abso-
luto do soberano emanava de Deus e que, portanto, as reformas e leis propostas pelo rei
com o objetivo de realizar o bem-estar coletivo tinham um aval divino (Cf. Campos,
1989: 15-6). Aliás, como destaca Silvia Hunold Lara, “os interesses público e doméstico
interligavam-se, sendo considerados componentes harmônicos do bem comum” (Lara,
1999: 20, ênfase no original).
Essa base teórica – que culminou sua influência na promulgação das Orde-
nações Afonsinas, o primeiro código de leis nacional, em 1446 – legitimou a consolida-
ção do catolicismo como referência ética fundamental, fazendo com que seus preceitos –
religiosos e políticos – se fixassem na mentalidade lusitana e influíssem decisivamente
sobre o comportamento individual e coletivo dos portugueses: “em suma, o mesmo que
hoje os interesses econômicos ou fiscais, pesavam então inspirações religiosas e conside-
rações eclesiásticas” (Abreu, 1907: 56).
O fundamento pessoalizante do ethos lusitano
Mas, se podemos dizer que a guerra, a mercancia e a cristandade formatavam
o ethos lusitano na virada do século XV, um outro elemento fundamental completava a
base do caráter coletivo do povo que descobriria a Terra de Santa Cruz – “uma caracterís-
tica bem peculiar à gente da Península Ibérica (...), [a] cultura da personalidade” (Holan-
da, 1936: 4). Esse traço, evidenciado em vários aspectos da história social portuguesa,
aponta para as “contínuas relações de intimidade” que se rebatem numa “incoercível ten-
dência para o nivelamento das classes” (Holanda, 1936: 7 e 8).
Diríamos que este é o segundo ponto de contato entre o ethos lusitano e o e-
thos tupi, pois ambos se fundamentam numa ética centrada na pessoa, ou seja no indiví-
duo carregado de atributos de status e papel social. No caso português, essa ética está
relacionada com o caráter holista do catolicismo, que Weber contrastava à “patética de-
sumanidade” do protestantismo ascético (Weber, 1904b: 72), e será um dos elementos
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preponderantes do projeto civilizador lusitano que acompanha sua aventura colonial.
Os vetores primevos do ethos brasílico
Portanto, dois vetores serão os principais condicionantes da formação brasi-
leira em seus primeiros tempos, pois ambos constituíam-se em traços estruturais da men-
talidade de seus protagonistas – do Volksgeist de lusos e tupis. Uma ética baseada no
valor da intimidade, ou seja, centrada na proximidade entre as pessoas que estabelece
laços solidários fundamentais e persistentes e um habitus fortemente marcado pela guer-
ra, considerada como prática legítima para reduzir as diferenças entre desafetos. Quer
dizer, o quadro mental que regularia a formação do “povo novo” (Ribeiro, 1972: 70 e
1995: 19-20), condicionando a estruturação dos parâmetros éticos para a ação dos indiví-
duos na nova situação social que surgia, estava configurado por uma oposição básica:
“amigos” vs. “inimigos”. Por outro lado, processos conjunturais, próprios do “espírito do
tempo” (Zeitgeist) que lançara os colonizadores à sua empresa mais importante, exerce-
rão forte ascendência no quadro do encontro interétnico que inaugurou a história nacional
brasileira: a missão de expandir a fé católica como tarefa civilizadora, a busca do lucro
como objetivo inarredável e a disseminação de novas tecnologias como resultado básico
do progresso da cultura moderna.
Vejamos, a seguir, como esses processos conjunturais e aqueles elementos
estruturais se entrelaçam em múltiplas determinações na formação do ethos brasílico,
acarretando a construção de uma sociedade centrada no valor da pessoalidade, com todas
as suas ambigüidades e contradições.
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Capítulo 2
PRIMEIROS TEMPOS
O Descobrimento
Uma cena ressalta do primeiro ato da epopéia nacional brasileira: a cordiali-
dade entre índios e portugueses reunidos sob o sol de abril 1500, na praia chã da Coroa
Vermelha. Muita tinta já se verteu na interpretação desse fato, mas a verdade é que a ce-
na é um ícone da nacionalidade, abonado pelo testemunho sensível do nosso escriba pri-
mordial, que advertia el-rei Venturoso em sua mitológica carta: “para alindar nem afear,
não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu” (Caminha, 1500 in Cortesão,
1943: 199). Ademais, a cena se fixou na consciência histórica brasileira antes mesmo de
a carta de Pero Vaz de Caminha ser descoberta e publicada, em 1817, pelo padre Aires
do Casal (Cf. Casal, 1817: 21-7) e continuou sendo uma referência relevante ainda depois
da historiografia consolidar seus métodos científicos e desenvolver abordagens mais crí-
ticas, em pleno século XX. Frei Vicente do Salvador e Sérgio Buarque de Holanda, por
exemplo, têm visões semelhantes sobre o evento:
“(...) desembarcou o dito capitão com os seus soldados armados pera pelejarem, porque mandou primeiro um batel com alguns a descobrir campo, e deram novas de muitos gentios que viram; porém não foram necessárias armas, porque (...) se chegaram pacificamente aos nossos. (Salvador, 1627: 56) “Esse primeiro encontro das duas raças é o mais cordial que se poderia esperar. O europeu apresenta-se certamente cauteloso, fugindo a fazer o menor gesto que possa interpretar-se como provocação. O índio, de sua parte, mostra-se acolhedor, embora com algumas reticências e reservas (...).” (Holanda, 1989: 49)
Não queremos com isso dizer que, desde então, as relações entre índios e eu-
ropeus foram essencialmente caracterizadas pela cordialidade – isto seria, mais do que
um equívoco, uma prova de desconhecimento histórico e insensibilidade sociológica,
54
para não dizer de pura má-fé. Mas queremos ressaltar que a relação amistosa do primeiro
contato, condizente com o “espírito” pessoalizante de colonizadores e índios, é uma refe-
rência importante para a mentalidade brasileira no que se refere ao comportamento inte-
rétnico, tendo se constituído, inclusive, em uma alternativa assaz recorrente nas relações
entre índios e europeus na formação da sociedade nacional. Contudo essa atitude, nos
pesa lembrar, seria intercalada com relações conflituosas, não raro cruentas, da mesma
maneira condizentes com o habitus bélico imperante em ambas as sociedades, como já
dissemos. Neste sentido, ao sociólogo histórico interessa saber como essa interpolação
entre conflito e cordialidade se rebateu na formação brasileira, configurando, especial-
mente, a gênese do povo.
Ora, a carta de Caminha é o registro mais importante das primícias da forma-
ção nacional (Cf. Holanda, 1989: 49) e seduz não apenas pelo estilo gracioso, pela ima-
gética sugestiva e pela informação circunstanciada, mas sobretudo pela sensibilidade algo
premonitória do autor, cuja epístola, como bem aponta Jaime Cortesão, “reflete o passado
e anuncia o futuro” (Cortesão, 1943: 196). Ela é, afinal, um símbolo pátrio, uma espécie
de “certidão de nascimento” da brasilidade, que sintetiza de maneira quase alegórica o
clima de nossa história nacional primeira, cuja atmosfera amistosa encerrava, contudo,
núncias dos dias mais carregados que em breve chegariam. Comecemos pelo fato mais
proeminente: o estabelecimento paulatino de um relacionamento de intimidade, cordial,
entre o europeu e o indígena, cujos movimentos podem ser resumidos, como bem obser-
va Capistrano, por uma “esquivança instintiva seguida logo de confiança indiscreta” (A-
breu, 1908: 200).
Na primeira abordagem, no dia posterior ao achamento da terra, “dezoito ou
vinte homens”11 munidos de arcos e flechas aproximaram-se do batel de Nicolau Coelho
que dera à praia e, aquiescendo em baixar as armas, trocaram dádivas com o capitão por-
11 Nesta seção, as citações sem referências são extraídas da carta de Caminha em linguagem atual publica-da por Jaime Cortesão (Cf. Caminha in Cortesão, 1943: 199-241).
55
tuguês. No dia seguinte, “sessenta ou setenta homens” postavam-se na praia, à espera dos
estranhos, e permitiram que Afonso Lopes conduzisse dois jovens índios à nau capitânia.
Os índios foram “recebidos com muito prazer e festa”, mas não acederam em ingerir
qualquer coisa que lhes foi oferecida. Desconfiados, trocaram presentes com Cabral e
dormiram a bordo. Já no outro dia, quando os batéis novamente deram à praia trazendo
os jovens índios, havia “obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas na
mão”, que observaram a chegada dos parentes e os viram debandar contentes, com os
presentes que traziam. Todos se retiraram e logo voltaram estes e muitos mais, descontra-
ídos e solícitos, depositando grande confiança nos forasteiros. Acorreram, inclusive, al-
gumas mulheres, as quais inebriaram o escriba da frota:
“E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintu-ra; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela.” (Caminha, 1500 in Cortesão, 1943: 211-2)
A partir de então, o que se observa é um aprofundamento progressivo da in-
timidade entre os estranhos que há tão pouco tempo tinham se conhecido. A cada encon-
tro, acudiam mais índios, que vinham cada vez menos armados – de arcos, flechas e cau-
telas. Os lusos, por seu turno, abandonavam suas precauções e se integravam na algazarra
cortês daqueles alegres gentios. Contudo, uma desconfiança velada parecia pressagiar os
tempos mais duros que viriam:
“Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando (...). Passou-se então além do rio Diogo Dias, (...) que é homem gracioso e de pra-zer; e levou consigo um gaiteiro nosso com a sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e anda-vam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais mon-teses, e foram-se para cima.” (Caminha, 1500 in Cortesão, 1943: 221) “Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito
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mais nossos amigos que nós seus.” (Caminha, 1500 in Cortesão, 1943: 234)
Com efeito, na medida em que a intimidade crescia, a troca de dádivas que a
sustentava tornava-se crescentemente iníqua. Era o apelo do lucro intrujando-se na rela-
ção dos amigos, antecipando a perversa expropriação que corromperia para sempre a
fraternidade primigênia. O “espírito do tempo” enlaçava, híspido, o “espírito do povo”:
“À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar á-gua. Ali vieram então muitos (...). Já muito poucos traziam arcos. Esti-veram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco mistu-raram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. (...) Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapuchinha velha ou por qual-quer coisa. Em tal maneira isto se passou que bem vinte ou trinta pes-soas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves (...).” (Caminha, 1500 in Cortesão, 1943: 224)
Essa lógica insana que os índios, ignorantes do engodo da mercancia, não
compreendiam bem naquele momento, os açularia em breve, quando eles percebessem
que dela dependeriam para participar do mundo de “facilidades” que os europeus lhes
revelavam e que, legitimamente, eles viriam a almejar. Agora, esses homens que porta-
vam uma tecnologia paleolítica se viam seduzidos pelos engenhos fascinantes que logo
lhes seriam oferecidos em trocas cada vez mais escorchantes, conduzindo-os a um ambi-
ente eivado de interesse e astúcia:
“Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz (...). Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas (...).” (Caminha, 1500 in Cortesão, 1943: 227-8)
Mas não seriam apenas os índios que descobririam encantos nos estranhos
amigos novos e vislumbrariam lógicas inusitadas. Pero Vaz via homens e mulheres de
“corpos tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser” e concluía, algo
57
contrito, que “esta gente é boa e de boa simplicidade”. Exortava el-rei, por isso, a lhes
dispensar tratamento pacífico e zeloso, aconselhando “não cuidassem aqui tomar nin-
guém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar”.
Entretanto, era Caminha um homem do seu tempo e, ainda que sua boa-fé se
nos revele incontestável, era ela carregada de um preceito equívoco, certamente intangí-
vel aos pios homens do quinhentismo português, mas que para os índios seria quase tão
lesivo quanto os alvores da mercancia. Seu ingênuo e caridoso rogo exprime a contradi-
ção entre intenção e gesto própria do cristianismo civilizador que professava e que traria
sujeição e sofrimento àqueles pelos quais intercedia sinceramente:
“Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos. (...) não duvido que eles, segundo a santa in-tenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga (...). E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar de sua salva-ção.” (Caminha, 1500 in Cortesão, 1943: 233)
Portanto, no ato do Descobrimento já se descortinava a ambigüidade funda-
mental que condicionaria a formação do “povo novo” que viria a construir a nação: uma
tendência aberta à integração das gentes, própria do “espírito” das sociedades fundadoras,
articulada a um perverso processo de exclusão social, baseado na lógica da troca mercan-
til, a qual jazia nas mentes dos colonizadores obnubilada pela ética do cristianismo civili-
zador, e a qual se imporia aos íncolas, travestida pelas novidades da tecnologia. O roteiro
sangrento que se sucedeu à partida da esquadra de Cabral para as Índias revela, exata-
mente, os desvãos dessa ambigüidade.
“Período Vazio”
Os trinta e cinco anos decorridos a partir do Descobrimento são normalmente
considerados como um “período vazio” da história do Brasil – “pau-brasil, papagaios,
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escravos, mestiços condensam a obra das primeiras décadas”, dirá, por exemplo, o conci-
so Capistrano (Abreu, 1907: 70). De fato, “a terra de Vera Cruz seria pouco mais do que
uma pousada no caminho da Índia” (Holanda, 1989: 51), mas alguns fatos têm que ser
lembrados, pois eles acarretaram conseqüências importantes no que toca à definição do
território e produziram eventos, no mínimo, emblemáticos no processo de formação do
povo brasileiro.
A notícia da descoberta da nova terra não demorou muito a ser conhecida na
Europa (Cf. Abreu, 1907: 67; Ribeiro & Moreira Neto, 1993: 102) apesar da prudente
discrição de D. Manuel, que só a divulgou oficialmente em carta dirigida aos reis católi-
cos de Espanha em 29 de julho de 1501 (Cf. Ribeiro & Moreira Neto, 1993: 94-7), quan-
do já havia partido a primeira expedição de reconhecimento da terra achada.
Essa pequena armada tinha como piloto Américo Vespucci e chegou ao cabo
de São Roque, na atual costa norte-riograndense, em 16 agosto de 1501 (Cf. Varnhagen,
1854-7a: 82-3). A data é importante porque nela operou-se “a primeira ruptura e agres-
são, entre os da terra e os futuros colonizadores” (Varnhagen, 1854-7a: 83). O capitão
mandara descer à terra dois grumetes, que foram mortos e devorados pelos índios, de
nações bem mais belicosas do que os tupiniquins encontrados por Cabral e Caminha.
Depois do incidente, a frota foi costeando a nova terra e batizando seus logradouros de
acordo com o calendário católico e chegou até o estuário do Prata. De volta a Portugal,
contudo, não traziam os expedicionários notícias muito auspiciosas, como resumem Var-
nhagen e Capistrano: “não havia metais alguns, nem mercadoria de aproveitar-se, mais
que canafístula e o lenho de tintura” (Varnhagen, 1854-7a: 84) e, além do mais, “os natu-
rais apareceram à nova luz, selvagens, rancorosos, sangüinários e antropófagos, material
mais próprio para escravatura do que para a conversão” (Abreu, 1907: 67).
Foi o bastante para D. Manuel relegar a segundo plano a exploração das no-
vas terras, pois era muito mais interessante concentrar as forças no empreendimento asiá-
tico, em pleno andamento e, com toda certeza, mais rendoso. Assim, a Coroa portuguesa
59
arrendou as terras do Brasil para um consórcio de cristãos novos, liderado por Fernão de
Loronha – ou Fernando de Noronha –, que exploraria a extração do pau-brasil, em troca
de tributos sobre a produção, de investimentos na defesa da possessão e de avanços na
ocupação territorial (Cf. Marchant, 1943: 37).
Contudo, em 1504, quando o empreendimento de Loronha dava seus primei-
ros passos, o navio francês Espoir, que se dirigia à Ásia, arribou no Brasil, permanecendo
a tripulação na terra por sete meses, tempo necessário para reparar o navio e suficiente
para reconhecer a terra. Quando retornou à Europa, o seu capitão, Binot Palmier de Gon-
neville, registrou num cartório de Rouen uma Relação Autêntica (In Ribeiro & Moreira
Neto, 1993: 78-82), cujo teor acenderia nos franceses o interesse pela “terra fértil, copio-
sa de animais, aves, peixes, árvores e outras coisas singulares” (Gonneville, 1505 in Ri-
beiro & Moreira Neto, 1993: 79). A partir de então, os franceses arrogaram a si direitos
de posse sobre a terra e a Coroa francesa, contestando o tratado de Tordesilhas nos foros
internacionais, lançou os seus corsários sobre o território brasileiro.
Tempos de reciprocidade e miscigenação
Durante trinta anos, tanto a ação portuguesa quanto a intrusão francesa se
processaram de maneira semelhante. Os especuladores do pau-brasil estabeleciam víncu-
los com os índios por meio do escambo, cuidando em aliar-se a grupos rivais daqueles
ligados aos concorrentes europeus e, periodicamente, faziam seus “resgates” no território
dominado pelos nativos aliados, que se ocupavam da derrubada das árvores e do seu
transporte. Não havia, como se sabe, qualquer ação sistemática de ocupação do território.
As poucas feitorias portuguesas, “não chegando talvez a meia dúzia (...), caracterizavam-
se pelo seu caráter principalmente militar (...), apresentavam extrema precariedade, ti-
nham insignificante função econômica (...) e não se enraizavam no lugar que eram fun-
dadas” (Azevedo, 1956: 11). Os franceses, sequer feitores fixavam na terra, limitando-se
sua estratégia comercial a trocas episódicas, contratadas ad hoc com os índios amigos
60
(Cf. Marchant, 1943: 53).
Em contrapartida, não houve, durante esse período, grandes enfrentamentos
entre índios e brancos, limitando-se as escaramuças a alguns episódios infelizes para náu-
fragos e aventureiros desavisados. Pelo contrário, o que se observa é um progressivo es-
treitamento das relações entre os nativos e os europeus, promovido pelo interesse materi-
al das duas partes e facilitado por necessidades tecnológicas, de um lado, e por carências
lúbricas, de outro. Essa permuta é a base mais remota do “largo e profundo mestiçamen-
to” (Freyre, 1933: 93), marca distintiva da formação do povo brasileiro:
“Logo que o visitante chega à aldeia, fazem-lhe esta pergunta: ‘Ei! O que me darias para que eu te ceda minha filha? Ela é bonita e trabalha bem. Fará a tua farinha e cuidará de tudo o que precisares’.” (Thevet, 1557: 137) “As moças e mulheres adulam o visitante mais ainda que os homens, e sempre com o objetivo de ganhar algum presente. (...) também elas a-proximam-se do visitante com toda a amabilidade, trazendo-lhe algu-mas frutas ou pequenos objetos – seus presentes habituais – e dizendo em tom de bajulação: Agaturã (isto é, ‘como és bondoso!’). Eori aça piá (‘mostra-me o que trouxeste’). Elas gostam de ganhar tudo quanto é novidade, especialmente espelhinhos, contas de vidros, etc.” (Thevet, 1557: 145)12
Não iremos aqui nos alongar sobre o tema da miscigenação que, ao nosso
ver, já foi esgotado sociológica e historicamente pelo mestre de Apipucos, mas queremos
apenas destacar que desde esse período mais remoto a intimidade entre portugueses e
índios – ou, mais precisamente, índias – em que pese o seu contexto “comercial”, tornou-
se um fato histórico que seria agregado à consciência coletiva como um caractere da na-
cionalidade, que revela, inclusive, o “unionismo” (João Ribeiro apud Freyre, 1933: 28 e
72) que regeu a construção da nação e a formação das primeiras famílias brasílicas. Ali-
ás, como já pontuava Varnhagen:
12 Ao que atalha o arguto Capistrano: “(...) pouca resistência deviam encontrar os milionários que possuí-am preciosidades fabulosas como anzóis, pentes, facas, tesouras, espelhos.” (Abreu, 1907: 70).
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“Um dos elementos que mais aqui concorreu para a fusão das naciona-lidades tupi e portuguesa foi a mulher. Os primeiros colonos que vie-ram ao Brasil, e que se familiarizaram e aliaram com a cabilda vizinha do porto em que ficaram, juntavam-se logo, mesmo sem ser em lei da graça, com alguma índia, segundo vimos, os próprios escritores não deixaram de achar bonitas. (...) Às vezes deslizavam mesmo os colonos pelos abusos da poligamia, como fez João Ramalho em Piratininga; e os resultados, apesar de serem irreligiosos os meios, não podiam deixar de ser em favor da fusão das duas nacionalidades.” (Varnhagen, 1854-7a: 214-5)
A perpetuação das legendas dos heróis fundadores – João Ramalho, Diogo
Álvares e, já no período das donatarias, Jerônimo de Albuquerque – é uma prova incon-
testável de que o valor da “união entre as raças” seria um dos critérios críticos da gênese
do povo brasileiro e, por isso, um dos pilares da formação da identidade nacional. De
mais a mais, várias dessas uniões entre portugueses e índias redundariam em laços bem
mais permanentes do que a simples “troca” de favores sexuais por mercadorias e, certa-
mente, muitas famílias brasileiras foram constituídas a partir das uniões circunstanciais,
pois, como dirá mais tarde um cronista de Seiscentos, “[vieram] a este Estado muitos
homens nobilíssimos e fidalgos, os quais casaram nele e se liaram em parentesco com os
da terra, em forma que se há feito entre todos uma mistura de sangue assaz nobre” (Bran-
dão, 1618: 107).
Caramuru: uma legenda emblemática
A história de Diogo Álvares, neste sentido, é emblemática, estando atestada
por vários testemunhos quinhentistas, sendo o primeiro o dos irmãos Martim Afonso e
Pero Lopes de Sousa, que encontraram o Caramuru em 1531, durante sua importante
missão em terras brasileiras (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 125). Já frei Vicente descreve a
saga do náufrago, cuja esposa, a índia Paraguaçu – batizada Catarina em Saint Malo a 30
de julho de 1528 (Cf. Calmon, 1950: 43) – diz ter alcançado, “viúva mui honrada (...)
[que] morreu muito velha e viu em sua vida todas suas filhas e algumas netas casadas
com os principais portugueses da terra” (Salvador, 1627: 161).
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O idílio de Diogo Álvares com a índia Paraguaçu teria começado em 1510
(Cf. Varnhagen, 1854-7a: 244), quando o navio em que vinha o vianês soçobrou em á-
guas próximas à baía de Todos os Santos e “veio a ser despojo dos mares e dos gentios,
os quais recolheram muitos gêneros e alguns náufragos, que escaparam de ser pasto de
peixes para regalo de homens” (Rocha Pitta, 1730: 44). Mas Diogo Álvares mostrou-se
um expedito auxiliar dos índios na recolha dos destroços da nave, caindo nas graças dos
antropófagos, que o pouparam do sacrifício ritual. Tal valimento lhe facultou a possibili-
dade de manejar um bacamarte, cuja pirotecnia e eficácia na caça assombrou e deslum-
brou os índios, aumentando o prestígio do náufrago. Mas foi uma situação de guerra que
consolidou a privança de Diogo Álvares com os índios e possibilitou sua união com a
filha do morubixaba que senhoreava as praias e terras do rio Vermelho:
“(...) tendo-se rebelado, havia alguns tempos, ao principal de toda pro-víncia os súbditos do distrito de Passé, determinou ir contra eles, levan-do consigo a Diogo Álvares com as suas armas. Afrontaram-se os exér-citos inimigos, e estando o general dos rebeldes em práticas diante dos seus soldados, lhe fez Diogo Álvares um tiro, com que o matou, com igual assombro dos levantados, os quais fugindo sem atinar no que fa-ziam, só se conformaram em obedecer e se sujeitarem ao seu antigo se-nhor (...). Este acidente aumentou os respeitos a Diogo Álvares, de sor-te que todos os gentios de maior suposição lhe deram as filhas por con-cubinas, e o senhor principal a sua por esposa, conferindo-lhe o nome de Caramuru-açu, que no seu idioma é o mesmo que Dragão que saiu do mar13.” (Rocha Pitta, 1730: 44-5)
Então, Caramuru casou-se com a filha do morubixaba e permaneceu entre os
índios até que um navio francês, passando ao largo da baía de Todos os Santos, deu gua-
rida ao náufrago. Esse episódio teria ocorrido por volta de 1526 (Cf. Calmon, 1950: 45) e
representa o clímax do romance entre a índia e o náufrago, cena protagonizada por Para-
guaçu:
13 O designativo tupi, afirmam os estudiosos, refere-se à moréia (Cf. Abreu, 1918: 108; Calmon, 1950: 45) ou a uma “certa enguia elétrica” (Varnhagen, 1854-7a: 244), ou, mais precisamente, “a diversas espécies de peixes de mar (...) a que pertencem as moréias em geral” (Garcia, Rodolfo in Varnhagen, 1854-7a: 244, nota).
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“(...) vendo a consorte que se lhe ausentava, levando-lhe aquela porção da alma, sem a qual lhe parecia já impossível viver, trocou pelas pri-sões do amor, pelas contingências da fortuna e pelos perigos da vida, a liberdade, os pais e o domínio, e lutando com as ondas e com os cuida-dos, o seguiu ao batel, que os recolheu a ambos, e os conduziu ao navi-o; era francês, e os transportou àquele reino.” (Rocha Pitta, 1730: 45) Durante a estada do casal na Europa, a índia foi batizada e a união sacramen-
tada pelo ritual cristão (Cf. Salvador, 1627: 160-1; Rocha Pitta, 1730: 46; Calmon, 1950:
43 e 45). Mas, talvez saudosos dos filhos, que certamente os tinha Caramuru em quanti-
dade depois de tão longa união carnal em seu lar polígamo, o casal tornaria à terra, em
1530 (Cf. Calmon, 1950: 45). Entretanto, como seriam eles readmitidos no seio da aldeia
que haviam abandonado, traindo a confiança de seus parentes? Frei Vicente soluciona o
enigma:
“(...) os tornaram a trazer os franceses em o mesmo navio, prometendo-lhes ele de lho fazer carregar por seus cunhados. Porém chegando à Bahia e ancorando no rio Paraguaçu, junto à ilha dos Franceses, lhes mandou uma noite cortar a amarra, com que deram à costa e, despoja-dos de quanto traziam, foram todos mortos e comidos do gentio, dizen-do-lhes Luíza (sic) Álvares, sua parenta, que aqueles eram inimigos e só seu marido era amigo, e como tal tornava a buscá-los e queria viver entre eles, como de feito viveu até a vinda de Tomé de Sousa e depois muitos anos.” (Salvador, 1627: 161)
De fato, Diogo e Catarina Álvares – “uma notável matrona deste país” (Ro-
cha Pitta, 1730: 43) – desempenhariam um papel bastante importante na mediação entre
índios e lusos na conturbada colonização da Bahia. Sua participação na implantação da
malograda capitania de Francisco Pereira Coutinho, por exemplo, lhes valeu uma sesma-
ria de “quatrocentas varas de terra de largo e quinhentas de comprido”, conforme a carta
de doação de 20 de dezembro de 1536 (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 201). Mais tarde, quan-
do D. João III decidira pela centralização do governo e Tomé de Sousa se preparava para
vir para o Brasil, uma carta régia foi enviada a Diogo Álvares:
“Diogo Álvares. Eu el-rei vos envio muito saudar. Eu ora mando Tomé de Sousa, fidalgo de minha casa, a essa Bahia de Todos os Santos, por
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capitão governador dela, para na dita capitania, e mais outras desse Es-tado do Brasil, prover de justiça dela e do mais que ao meu serviço cumprir; e mando que na dita Bahia faça uma povoação e assento gran-de e outras cousas do meu serviço: e porque sou informado, pela muita prática e experiência que tendes dessas terras e da gente e costumes delas, o sabereis bem ajudar e conciliar, vos mando que tanto o dito Tomé de Sousa lá chegar, vos vades para ele, e o ajudeis no que lhe de-veis cumprir e ele vos encarregar; porque fareis nisso muito serviço.” (D. João III, 19-11-1548 in Varnhagen, 1854-7a: 237, ênfase nossa)
Caramuru colaborou efetiva e diligentemente com Tomé de Sousa e os índios
no primeiro ato coletivo de construção da nação, a edificação de Salvador, e permanece-
ria ocupando posição de destaque entre os “homens bons” da nova comuna, sede do Go-
verno-geral, até sua morte:
“‘Aos cinco dias do mês de outubro de 1557 faleceu Diogo Álvares Correia, Caramuru, da povoação de Pereira; foi enterrado no mosteiro de Jesus. Fiara por seu testamenteiro João de Figueiredo seu genro’ – isto escreveu o cura João Lourenço, a folhas 70, de um caderno antigo de óbitos da Sé da Bahia, como assegura Jaboatão (...).” (Abreu, 1906: 288)
Suscitamos a legenda de Caramuru para apresentá-la como um emblema dos
primeiros anos da colônia, pois a partir da trajetória do indivíduo investido na história
como um herói fundador – ou mais, como um herói mediador – podemos inferir o “espí-
rito do tempo” em que a nacionalidade começava a ser gerada pelo fecundo encontro
interétnico. Estavam índios e europeus enlaçados por uma situação inusitada para ambos,
uns precisando dos outros para realizarem intentos surgidos exatamente dessa nova situa-
ção, que revelou para os brancos bens rentáveis e mulheres, como observou o escriba
primordial, “formosas como não há mais”, portadoras de uma moral liberta das peias de
qualquer puritanismo, e que trouxe para os íncolas ferramentas e bens que suavizavam
uma existência impiedosamente ditada pelo meio. Essa era a opinião dos próprios índios,
como assevera frei Vicente:
“(...) fazem aos portugueses que vão às suas aldeias, principalmente se lhes entendem a língua, maldizendo no choro a pouca ventura de seus
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avós e os mais antepassados tiveram que não alcançaram gente tão va-lerosa como são os portugueses, que são senhores de todas as coisas boas que trazem à terra (...), como são machados, foices, anzóis, facas, tesouras, espelhos, pentes e roupas, porque antigamente roçavam os matos com cunhas de pedra e gastavam muitos dias em cortar uma ár-vore (...), e que desta maneira viviam mui trabalhados, porém agora fa-zem suas lavouras e todas as mais coisas com muito descanso, pelo que os devem de ter em muita estima. E este recebimento é tão usado entre eles que nunca ou de maravilha o deixam de fazer, senão quando rei-nam alguma malícia ou traição contra aqueles que vão às suas aldeias a visitá-los ou resgatar com eles.” (Salvador, 1627: 86-7; cf. Gandavo, 1570-6: 126; Thevet, 1557: 144; Léry, 1578: 243)
Entretanto, o intercâmbio era feito por homens e mulheres de carne e osso,
com desejos e vontades, simpatias e preferências. Pessoas que nunca houveram visto
semelhantes tão dessemelhantes e que podiam encontrar neles atributos que, simplesmen-
te, os atraíam e, clamor de toda humanidade, ficassem tão enlevados por eles que deles
não pudessem prescindir. A conseqüência disso que conhecemos por paixão, mostram os
filhos que dela resultam: o apego à família e à descendência, tornado fácil mesmo para
aventureiros, num mundo acostumado à poligamia, pouco infenso aos embaraços da pu-
dica moral quinhentista e ainda preservado do policiamento jesuítico.
É certo, esses “garanhões desbragados” (Freyre, 1933: 21) poderiam sair pe-
los matos caçando parceiras, mas é pouco provável que não mantivessem qualquer víncu-
lo mais permanente com as mulheres que lhes serviam a mesa, num contexto social em
que os laços de parentesco são o liame mais forte entre as pessoas. Ora, esses homens
dependiam em muito dos parentes de suas esposas – aliás, homens outros bem ciosos de
sua parentela – e teriam que desempenhar seu papel perante a aldeia para que sua vida
não se transformasse num inferno de carências e ameaças.
Por outro lado, nosso mito de origem pontua que os contingentes de colonos
europeus mandados para o Brasil eram o rebotalho da sociedade portuguesa: uma súcia
de “náufragos, degredados e desertores” (Prado, 1935: 73 passim). Entretanto, como bem
destaca Gilberto Freyre, “não há fundamentos nem motivos para duvidar de que alguns
fossem gente sã, degredada pelas ridicularias por que então se exilavam súditos, dos me-
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lhores, do reino para ermos” (Freyre, 1933: 19-20). Neste sentido, também não há razão
para duvidarmos que entre a malta degredada haveria indivíduos interessados em “re-
construir a vida” no Brasil, onde encontravam belas mulheres nuas, dispostas para o tra-
balho, extremamente fiéis aos maridos e muito carinhosas para com os seus.
Portanto, é justo supor, diante desses argumentos e fatos, que muito mais do
que relações carnais episódicas, os primeiros tempos produziram também uniões estáveis
como a de Diogo e Catarina Álvares, que redundaram em vínculos mais estreitos – ou
seja, familiares – entre os lusos, os índios e a descendência mestiça. Aliás, como bem
pontua Capistrano, “Martim Afonso e Pero Lopes já acharam pequenos núcleos portu-
gueses no meio da indiada” (Abreu, 1918: 101). Quer dizer, brancos e índios coabitavam
os mesmos espaços de sociabilidade, num contexto regido por uma ética, como já de-
monstramos, embebida em pessoalidade. Além disso, a mácula da escravidão ainda não
grassava na colônia nascente, fato que facilitava ainda mais o estabelecimento de víncu-
los baseados na reciprocidade, criando um contexto de cooperação entre índios e portu-
gueses:
“São escassas as provas definitivas, relativamente ao período de 1500 a 1533. Mas as que existem indicam que os portugueses usaram o es-cambo sempre que quiseram obter o braço indígena, víveres, pau-brasil ou outros artigos e serviços por parte dos nativos. Essas provas não in-dicam que eles tenham escravizado os índios para alcançar esse objeti-vo, e ainda mais, não existem referências à escravização dos índios para trabalharem no Brasil senão depois, em data ulterior.” (Marchant, 1943: 62)
A entropia do sistema
Mas havia, como já dissemos, um elemento entrópico no sistema de inter-
câmbio cooperativo dos primeiros tempos: os entrelopos franceses. Não cabe aqui dis-
cussão sobre a legitimidade da demanda dos franceses, mas a verdade é que a terra fora
descoberta pelos portugueses e estava delimitada por um tratado que tinha o respaldo do
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Papa, ainda a autoridade máxima internacionalmente aceita pelas nações ocidentais. A-
demais, é preciso lembrar que os países europeus tinham um grande problema a ser enca-
rado coletivamente – enfrentar o poderio muçulmano, que arrostava a cristandade. Ora,
Portugal deslocara o centro da contenda entre turcos e cristãos do Mediterrâneo para a
Ásia, desde quando Vasco da Gama contornou a África e chegou às Índias e, como bem
frisa o Visconde de Porto Seguro,
“Enquanto Portugal se via a braços com grande número de inimigos no litoral e mares da Ásia, onde, em 1521, a sua armada constava nada menos que de uns oitenta e tantos vasos (...), muitos armadores da Bre-tanha e Normandia (...) passavam não só a alguns excessos de pirataria com os galeões que vinham da Índia, como a traficar nas terras do Bra-sil (...).” (Varnhagen, 1854-7a: 107)
De mais a mais, o orgulho nacional lusitano, restaurado pela expansão ultra-
marina, não admitiria que intrusos usurpassem as terras do soberano absoluto, alcançadas
pelo gênio e audácia dos navegadores portugueses. Desta maneira, ao passo que se am-
pliava a presença de normandos e bretães, o que ocorria paulatina mas sensivelmente, a
Coroa lusa combatia, sem muito sucesso, os argumentos franceses no front diplomático e
aprofundava as medidas de combate aos corsários e piratas, enviando expedições guarda-
costas ao Brasil.
Em 1526, armou-se a mais famosa dessas expedições, sob a capitânia de
Cristóvão Jaques, que já estivera no Brasil dez anos antes dessa data, quando fundou a
sua feitoria na ilha de Itamaracá. Segundo consta, depois de desembarcar em Pernambu-
co, a armada dirigiu-se até a foz do Prata e, no caminho, “travou peleja com três navios
de mercadores bretães (...), saindo vencedor” (Varnhagen, 1854-7a: 112). De volta ao
reino, em 1529, Cristóvão Jaques levava consigo 300 prisioneiros franceses (Cf. Abreu,
1907: 74) e uma certeza: era necessário, o quanto antes, empreender a ocupação da colô-
nia, cuja costa já se encontrava infestada de traficantes estrangeiros.
Imediatamente, aprestou-se outra armada, esta sob o comando de Martim A-
fonso de Sousa, “fidalgo de alta linhagem”, então com 30 anos, um valido de D. João III,
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de quem privara da intimidade desde a mais tenra infância (Cf. Abreu, 1906: 122). Era
um “meio termo entre armada de guarda-costas e expedição povoadora” (Abreu, 1907:
74), que vinha com “o plano vago da fundação de uma povoação forte no aquém-mar (...)
sobre as margens do rio da Prata” (Varnhagen, 1854-7a: 114) e “com poderes extensís-
simos, se comparados com os das expedições anteriotres” (Holanda, 1989: 93). Zarpa-
ram, em dezembro de 1530, cinco naus com “quatrocentas pessoas”, incluindo “famílias
inteiras (...) que porventura sonhavam que dentro de pouco volveriam com grossos cabe-
dais – com rios de prata” (Varnhagen, 1854-7a: 114).
Já no desembarque, no cabo de Santo Agostinho, a armada deu combate e a-
preendeu três naus francesas. Na Bahia, o capitão se entendeu com Diogo Álvares, “dei-
xando [com ele] dois homens e muitas sementes, para saber-se por experiência o que a
terra poderia melhor produzir” (Varnhagen, 1854-7a: 125). No Rio de Janeiro, onde che-
garam em abril, um fortim foi edificado e uma expedição foi enviada para o sertão, pene-
trando centenas de léguas para além da serra do Mar. Na aprazível baía permaneceram os
expedicionários por três meses interagindo com os índios, o que deu ensejo a Pero Lopes
anotar em seu famoso Diário: “A gente deste rio é como da baía de Todos os Santos;
senão quanto é mais gentil gente” (Lopes, 1533 apud Varnhagen, 1854-7a: 126). Em
Cananéia, o capitão encontrou-se com o bacharel que lá estava, segundo Varnhagen, des-
de 1502, enviou malograda expedição pesquisadora de metais ao sertão e levantou pa-
drões de posse. Ao chegar à foz do Prata, objetivo da viagem, Pero Lopes e Pero de Góis
se incumbiram de erguer os padrões, enquanto Martim Afonso fazia os levantamentos
astronômicos que lhe revelariam estar o rio da Prata a oeste do meridiano de Tordesilhas,
além da linha demarcatória (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 128-9).
O capitão decidiu, então, deixar aquele litoral de “terras sáfias e areentas”
(Varnhagen, 1854-7a: 129) e procurar lugar melhor para fixar a colônia, dentro dos limi-
tes acordados em Tordesilhas, e tornou até São Vicente, onde decidiu se instalar, “pois
não viu aldeias nesta costa” (Cf. Madre de Deus, 1797: 53). Apesar das aparências, aque-
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le território era domínio dos índios que viviam no planalto e que usavam as praias para
mariscar e pescar. Segundo frei Gaspar, alguns deles avistaram as grandes naus e deman-
daram a suas aldeias, inquietando seus pares com a novidade. Logo que soube da notícia,
o cacique Tibiriçá, “senhor dos campos de Piratininga (...) e o melhor guerreiro do seu
continente” (Madre de Deus, 1797: 54), decidiu-se a arremeter contra os invasores, mas
uma circunstância feliz para os colonos haveria de garantir a paz na implantação do as-
sentamento pioneiro:
“Perto de Tibiriçá morava João Ramalho, aquele português que aqui chegara muitos anos antes: ele fazia vida marital com uma filha do ré-gulo, e este lhe participou sem demora a notícia que acabava de rece-ber. Ouviu-a Ramalho com alvoroço grande porque logo assentou que a esquadra era de portugueses (...). Depois de persuadir o sogro que os forasteiros eram seus nacionais e lhes sucedera o mesmo que havia a-contecido a ele, Ramalho, propôs-lhe grandes conveniências, que pode-riam resultar de receber aos hóspedes desconhecidos (...) e suplicou-lhe a permissão de os ir defender, com parte do seu exército. Ouviu-o com atenção o régulo, e, capacitado de suas razões, anuiu à súplica. (...) A-presentou-se Ramalho ao capitão-mor, narrou-lhe os sucessos passados da sua vida e assegurou-lhe que, a instâncias suas, vinha o senhor da terra a defendê-lo com os índios que ali via. Depois de agradecer Mar-tim Afonso este serviço a João Ramalho, (...) recebeu a Tibiriçá com os obséquios devidos a um príncipe e benfeitor, de quem tanto dependia o êxito da sua viagem. Logo ajustou com ele perpétua aliança e os índios festejaram as pazes com rústicas, porém sinceras demonstrações de a-legria.” (Madre de Deus, 1797: 54-6)
Martim Afonso decidiu, então, localizar o primeiro assentamento colonial
português no Brasil na ilha de Morpião, provida de porto natural e, segundo Sérgio Buar-
que, “onde já encontrara um pequeno povoado de europeus e índios da terra” (Holanda,
1981c: 94). Em 22 de janeiro de 1532 era fundada a vila de São Vicente. Dias depois,
seguindo as instâncias de João Ramalho, o capitão fundaria outra vila no sertão, às mar-
gens do Piratininga, na “aldeia que principalmente vivera João Ramalho, com a sua famí-
lia, já numerosa, como se pode imaginar, sabendo que vinte anos passara livremente en-
tre aquela gente” (Varnhagen, 1854-7a: 131). Ao colono primitivo foi delegado o gover-
no da povoação interiorana, através do título de “guarda-mor do campo”.
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Estavam atingidos os principais objetivos da expedição. Por isso, o capitão-
mor despachou Pero Lopes para o reino em maio de 1532, incumbindo seu irmão de
informar el-rei dos sucessos alcançados. De passagem por Pernambuco, entretanto, a
armada deparou-se com uma fortaleza guarnecida de 30 homens, erguida pelos corsários
da nau marselhesa La Pélerine, que já voltara para a Europa carregada de pau-brasil e
mais mercadorias. A feitoria francesa foi expugnada pelo jovem capitão, ao tempo em
que era a nau apreendida no estreito de Gibraltar por uma esquadra guarda-costas portu-
guesa. Então, a armada fez vela para o reino.
Tornaria Pero Lopes a casa com otimismo na alma (Cf. Holanda, 1981c: 94-
5). Vira uma terra abundante habitada por “gentil gente” que interagia com seus patrícios
pacificamente. Comungara do esforço do irmão na demarcação e posse do território e na
implantação de uma base civil nas terras incultas. Vira surgir, nas vilas fundadas, uma
“vida segura e conversável”, pois havia o capitão-mor tudo posto “em boa ordem de jus-
tiça” (Lopes, 1533 apud Abreu, 1907: 76). Participara dos rebates vitoriosos contra os
invasores estrangeiros e voltava ao lar trazendo duas naus apresadas e mais de trinta
franceses prisioneiros.
D. João III recebeu os expedicionários em 20 de janeiro de 1533, na corte de
Évora, quando foi apresentado aos índios amigos que acompanharam Pero Lopes ao rei-
no – “quatro principais da terra, que o soberano chegou a distinguir dando-lhes o nome
de reis [e que] foram por ordem régia vestidos de seda” (Varnhagen, 1854-7a: 137). El-
rei ficaria aliviado com as novas de Pero Lopes, pois desde a apreensão da nau La Péle-
rine soubera da fortificação francesa em Pernambuco, o que ameaçava o seu plano de
colonização, decisão já tomada e comunicada a Martim Afonso na célebre carta régia de
28 de setembro de 1532:
“Martim Afonso, amigo: Eu el-rei vos envio muito saudar. (...) Depois de vossa partida se praticou que seria meu serviço povoar-se toda essa costa do Brasil, e algumas pessoas me requeriam capitanias em terra dela. Eu quisera, antes de nisso fazer cousa alguma, esperar por vossa vinda (...). E porém porque depois fui informado que de algumas partes
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faziam fundamento de povoar a terra do Brasil, considerando eu com quanto trabalho se lançaria fora a gente que a povoasse, depois de estar assentada na terra, e ter nela feitas algumas forças (...), determinei de mandar demarcar de Pernambuco até o Rio da Prata cinqüenta léguas de costa a cada capitania, e antes de se dar a nenhuma pessoa, mandei apartar para vós cem léguas, e para Pero Lopes, vosso irmão, cinqüenta, nos melhores limites dessa costa (...); mandei dar a algumas pessoas que requeriam, capitanias de cinqüenta léguas cada uma; (...) e todos fazem obrigações de levarem gente e navios à sua custa, em tempo cer-to (...).” (D. João III, 28-09-1532, in Varnhagen, 1854-7a: 139-40)
Em julho de 1533 chegavam ao reino Martim Afonso e Duarte Coelho, o “ve-
terano do Oriente, ilustrado no oceano e na Cochinchina” (Prado, 1989: 104) que retor-
nava de uma missão na costa de Malagueta, em África. Seriam eles os dois interlocutores
del-rei na difícil demarcação das glebas, na trabalhosa escolha de donatários e na compli-
cada redação dos forais e cartas de doação (Cf. Abreu, 1907: 79). Em 10 de março de
1534, D. João III emitia a primeira carta de doação, favorecendo Duarte Coelho com as
sessenta e cinco léguas de costa entre o rio Igaraçu e a foz do São Francisco e toda a ex-
tensão de terras compreendida entre as linhas divisórias, do litoral ao sertão, até o meri-
diano de Tordesilhas.
Estava implantado o sistema de capitanias hereditárias e fenecia o tempo em
que “ficou indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos portugueses ou aos franceses”
(Abreu, 1907: 74). Não se tratava mais de tomar posse da terra antes que algum aventu-
reiro dela lançasse mão. As possessões doadas “de juro e herdade” deveriam ser os basti-
ões da Lusitânia na defesa das terras de Sua Majestade Fidelíssima.
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Capítulo 3
CAPITANIAS HEREDITÁRIAS
A implantação do sistema
O plano de colonização de D. João III encontraria sérios obstáculos em seu
caminho de execução. Por um lado, mostrou-se impossível sensibilizar a nobreza encas-
telada a inverter os seus capitais num empreendimento que nem ao certo se sabia o que
era (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 145). Por outro lado, mesmo os agraciados, arrebanhados
entre os servidores d’el rei e a pequena fidalguia composta por comerciantes e militares
que fizeram fortuna nas Índias, estariam reticentes em partir para a colônia. Os altos fun-
cionários reais rabujavam em abandonar as regalias de que se locupletavam na corte para
meterem-se a se esfalfar em trabalhos na terra inculta e os fidalgos recalcitravam em des-
pender seus cabedais extraídos do Oriente – conseguidos, às vezes, à custa de valentia e,
outras vezes, pelo emprego da astúcia – numa empresa de resultado imprevisível. Alguns
outros não viam razão em abandonar seus sólidos empreendimentos em curso na Ásia, a
busca seja de riquezas, seja de glórias militares, para arriscarem-se numa aventura na
América. Em suma, pouca disposição havia em se assumir a tarefa delegada pelo rei, fato
que comprometeu, de início, os planos de colonização projetados por D. João III.
Martim Afonso, por exemplo, a quem não se pode imputar a pecha de man-
drião, sequer visitou novamente o Brasil, deixando suas possessões abandonadas em
mãos de loco-tenentes (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 165), tendo escrito ao conde da Casta-
nheira, que requerera uma sesmaria em sua capitania, “mande-a tomar toda ou a que qui-
ser, que essa será para mim a maior mercê e a maior honra do mundo” (Martim Afonso
de Sousa, 14-12-1535 apud Abreu, 1918: 106). O mesmo se pode dizer de Pero Lopes,
“ao qual, segundo parece, não deveram muita solicitude suas três partições” (Varnhagen,
1854-7a: 169). Além dos irmãos Sousa, também de Antonio Cardoso de Barros, “a quem
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coubera parte (...) do Ceará, nenhuma notícia ficou do que chegaria a empreender, para
colonizar (...) a capitania que requerera” (Varnhagen, 1854-7a: 197). Todavia, se as terras
de Cardoso de Barros e as capitanias de Sant’Ana e do Rio de Janeiro permaneceram
praticamente abandonadas, São Vicente, abonada pela implantação pioneira e favorecida
pela presença de João Ramalho e sua família mameluca, experimentaria um desenvolvi-
mento sensível que se estenderia às terras contíguas de Santo Amaro, ao passo que Itama-
racá, valendo-se do precoce núcleo estabelecido por Cristóvão Jaques e da vizinhança
com a capitania de Duarte Coelho, “ia se povoando com muita facilidade” (Salvador,
1627: 141).
Além destes, haveria aqueles donatários que assumiriam o mandado del-rei,
mas que sequer implantariam suas colônias, a despeito dos esforços empregados e dos
cabedais investidos. Foi o caso do consórcio trino que se organizou para explorar as capi-
tanias da costa leste-oeste e do Maranhão-Pará, do qual há que se lamentar a má-sorte. Já
contornando a costa do Brasil, Aires da Cunha, experiente veterano da Índia que assumi-
ra a tarefa de implantar o empreendimento da sociedade, pereceu no naufrágio da armada
de dez naus e novecentos homens aprestada para o empreendimento (Cf. Varnhagen,
1854-7a: 192). Um de seus sócios que ficara no reino, João de Barros, o erudito feitor da
Casa da Índia, historiador de Décadas e cujos filhos salvaram-se do desastre no Brasil,
avaliou a experiência: “o princípio da milícia desta terra ainda que seja o último de nos-
sos trabalhos, na memória eu o tenho mui vivo por quão morto me deixou o grande custo
desta armada sem fruto algum” (apud Varnhagen, 1854-7a: 196). O outro sócio, o tesou-
reiro-mor do reino Fernão Álvares de Andrade, arruinado financeiramente, permaneceu
exercendo as funções do seu posto no conselho d’el-rei, do qual aliás não se apartara.
“Do escambo à escravidão”
Mesmo para aqueles que de fato se investiram da capa e do bastão de capitães
donatários, o empreendimento se afiguraria penoso e eles encontrariam mais percalços do
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que proventos na faina colonizadora. Na imensa maioria dos casos, os bons augúrios na
fundação da capitania com o tempo se desvaneciam, sinalizando um empreendimento
desastroso, marcado por motins e traições, guerras e prejuízos, mortes e insolvências.
Num primeiro momento, os lusos tinham que construir uma base de sobrevi-
vência e uma estrutura produtiva, valendo-se da cooperação do indígena para ocupar a
terra e obter dela o retorno de seus altos investimentos, cumprindo o mandado del-rei ao
contestar os argumentos daqueles que invocavam o abandono da possessão para se arro-
gar o direito de usurpá-la. Os índios, por seu turno, continuariam a se valer das tremendas
necessidades dos europeus no ambiente tropical para obterem os bens preciosos de que
carecia sua tecnologia primitiva, trocando-os pelo alimento de suas roças, pelo trabalho
de seus braços e pela sensualidade de suas mulheres.
É claro que escaramuças havia entre índios e portugueses, sobretudo na deli-
cada ocasião dos primeiros contatos e nas áreas onde os franceses já mantinham inter-
câmbio com os íncolas, mas o enfrentamento sistemático era uma atitude pouco racional
tanto para índios quanto para portugueses naquele momento. Uns tinham os bens de que
os outros necessitavam e a vantagem populacional, de um lado, e a tecnológica, de outro,
impediam que ambos tentassem se valer da força para impor sua primazia. Desta forma,
o escambo, padrão costumeiro do intercâmbio entre índios e brancos no Brasil desde o
Descobrimento, permaneceria condicionando suas relações nos primeiros tempos das
capitanias (Cf. Marchant, 1943: 86-7).
De fato, as impressões de Gabriel Soares de Sousa, o “enciclopedista” do
quinhentismo brasileiro, aduzem ao leitor um panorama geral de atrito inicial entre índios
e lusos, seguido de pacificação, cooperação e escambo nos primeiros tempos das capita-
nias, como nos exemplos que se seguem. Francisco Romero, lugar-tenente do donatário
da capitania dos Ilhéus, “nos primeiros anos teve muitos trabalhos de guerra com o genti-
o, mas como eram os Tupiniquins (...) fez pazes com eles e fez-lhe tal companhia que
com seu favor foi a capitania em grande crescimento” (Soares de Sousa, 1587: 40). Em
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Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho “teve nos primeiros anos muito trabalho com a
guerra, que lhe fez o gentio Tupiniquim (...) mas como assentaram pazes ficou o gentio
quieto, e daí por diante ajudou os moradores fazer suas roças, e fazendas, a troco do res-
gate, que por isso lhe davam” (Soares de Sousa, 1587: 47).
Entretanto, a partir do momento em que as donatarias se consolidavam como
“empresas”, as coisas começavam a mudar de aspecto. Por um lado, o pau-brasil escasse-
ava nas áreas costeiras, exigindo um ritmo de trabalho mais intenso, pouco condizente
com o estilo de vida dos índios e, por outro, estes redefiniam suas demandas, seduzidos
crescentemente pelo mundo de facilidades que a tecnologia dos brancos promovia e já se
imbuindo da lógica da mercancia:
“(...) não basta, Senhor, dar-lhes as ferramentas, como está em costume, mas, por induzirem os índios a fazer brasil, dão-lhes contas da Bahia e carapuças de pena e roupas de cores que homem aqui não pode alcançar para seu vestir, e, o que é pior, espadas e espingardas (...). (...) quando estavam os índios famintos e desejosos de ferramentas, pelo que lhes dávamos nos vinham a fazer as levadas e todas as outras obras grossas e nos vinham a vender mantimentos de que temos assaz necessidade, e, como estão fartos de ferramentas, fazem-se piores do que são e alvoro-çam-se e ensoberbecem-se e revoltam-se.” (Duarte Coelho a D. João II-I, 20-12-1546 in Mello & Albuquerque, 1997: 100)
Quer dizer, de ambos os lados agudizava-se o padrão de escassez que faz o
inferno dos indivíduos inseridos nas economias de mercado, inviabilizando a reciproci-
dade inicial e as relações amistosas dela advindas. Mas esse processo se completaria com
a mudança na própria estrutura produtiva colonial, em face da crise do pau-brasil e da
carência de metais preciosos. Com a implantação da agricultura, o ritmo de trabalho tor-
nava-se ainda mais intenso – e ainda menos condizente com o estilo de vida dos índios –
e a “carência de braços” tornar-se-ia o grande problema dos colonos. Configurava-se,
então, uma nova ordem na colônia:
“(...) a recusa dos índios em trabalhar senão em troca de outros e mais valiosos objetos determinou uma alta no custo de vida para os portu-gueses. Com essa alta de custo de vida sobreveio uma diminuição de
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prestígio, desconcertante para os portugueses. Antes os índios, para e-les, mostravam-se muito mais dispostos a trabalhar em troca de bugi-gangas que eles permutavam. Agora os tempos eram outros. (...) Redu-zidos a enfrentar um sistema de permuta que já ia falindo, os portugue-ses, mais do que nunca necessitados de braços, encontram uma alterna-tiva na escravização.” (Marchant, 1943: 96-7)
A partir dessa mudança, sobrevieram os cruentos anos que modificariam a
face da colônia. Os colonizadores acometeriam os índios em busca de braços para a la-
voura, os habitantes antigos resistiriam fazendo aquilo que seus ancestrais lhes ensinaram
– a guerra – e os colonizadores, por seu turno, rebateriam com a mesma moeda corrente
em sua cultura pós-medieval:
“Tomadas em conjunto, as guerras que acompanhavam a colonização no Brasil assumem um aspecto de dupla relação com a necessidade de braços por parte colono. Primeiro, algumas se afiguram guerras de re-presália, iniciadas pelos indígenas contra os colonos que, em face da necessidade de trabalho nas lavouras e com a queda do sistema de es-cambo, recorreram à escravização. Segundo, outras guerras entre os in-dígenas, inter-tribais, com maior ou menor participação dos portugue-ses e franceses, produzindo cativos para a escravidão. Em todos os ca-sos, porém, as guerras indicam mais agressão contra os índios para o fim de obter trabalho do que se pode demonstrar por meio de outras provas.” (Marchant, 1943: 107-8).
No desenrolar desse sangrento roteiro, os índios dariam vazão a sentimentos,
como vimos, inflexíveis, não admitindo tréguas na vingança dos parentes e amigos mor-
tos e escravizados, ao passo que os portugueses rebateriam com a notória barbaridade
que caracteriza a ação dos colonizadores quando arrostados por aqueles que exploram.
Apesar das muitas baixas de lado a lado, certamente bem mais significativas entre os
íncolas, a ação dos índios seria preponderante, determinando a derrocada da maioria das
capitanias.
O malogro da capitania da Bahia, caso especialmente dramático, é um bom
exemplo de que, na época das donatarias, o tênue equilíbrio entre as demandas de índios
e lusos, quando abalado pelo aprofundamento da empresa colonizadora, redundava em
situações de extrema violência que, ao fim e ao cabo, inviabilizavam a ação povoadora
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européia nos moldes projetados por D. João III. Sem embargo, o caso demonstra também
quão importante era para os índios a manutenção do padrão tradicional do escambo, que
lhes permitia absorver as novidades da tecnologia portada pelos europeus sem alterar
significativamente o seu estilo de vida.
O episódio é famoso porque a capitania tinha tudo para se consolidar. Suas
condições naturais eram extremamente favoráveis – “baía vasta como um mediterrâneo,
esteiros numerosos franqueando entrada a cada passo, correntes numerosas para move-
rem engenhos, matas virgens ao lado de terrenos mal vestidos, onde o gado podia medrar
à lei da natureza” (Abreu, 1907: 86) – e o morgado de Francisco Pereira Coutinho, com
uma “situação vantajosa no centro das outras capitanias” (Abreu, 1907: 86), era falto de
pau-brasil, o que o livrava da presença dos franceses e de sua concorrência na amizade
com os índios. Além disso, o donatário podia contar com a preciosa ajuda de Diogo Ál-
vares, “feito patriarca local graças à numerosa família ‘mameluca’ a sua roda” (Prado,
1989: 102), na delicada situação dos primeiros contatos com os nativos.
Por outro lado, o donatário da capitania da Bahia era um respeitado veterano
das campanhas na Índia, onde servira ao lado de Vasco da Gama, do Vice-Rei D. Fran-
cisco de Almeida e de Afonso de Albuquerque (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 143). Com efei-
to, sobre o Rusticão escreveu Gabriel Soares: “Quem quiser saber quem foi Francisco
Pereira Coutinho, leia os livros da Índia, e sabê-lo-á; e verão seu grande valor e heróicos
feitos” (Soares de Sousa, 1587: 36). Além de sua longa experiência nos negócios da
guerra e em assuntos de governo, a esse “fidalgo mui honrado” (Salvador, 1627: 126) –
aliás, abonado com uma capitania, segundo a própria carta de doação, em razão dos
“muitos serviços” prestados a el-rei no reino e no Oriente (apud Varnhagen, 1854-7a:
142) – não faltariam capitais para a empreitada. De fato, “veio em pessoa com uma gran-
de armada à sua custa” (Salvador, 1627: 126), trazendo “muitos moradores casados e
outros solteiros” (Soares de Sousa, 1587: 36).
Em dezembro de 1536, Francisco Pereira Coutinho desembarcou na Bahia e,
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depois de rechaçar uma arremetida dos tupinambás, “num feito que julgaram milagroso”
(Varnhagen, 1854-7a: 200), estabeleceu um povoado e um forte à beira-mar, “onde este-
ve em paz com o gentio os primeiros anos, no qual tempo os moradores fizeram suas
roças e lavouras (...)” (Cf. Soares de Sousa, 1587: 36). Depois, como “fizeram uns ho-
mens poderosos, que com ele foram, dois engenhos de açúcar” (Soares de Sousa, 1587:
36), chegava a capitania ao ponto de inflexão do seu desenvolvimento econômico, que
trazia consigo o problema da “carência de braços” para o trabalho agrícola e a sua solu-
ção através da escravização dos índios. Então, os humores mudaram e, segundo escrito
de um cronista contemporâneo, “Francisco Pereira mandou matar a um filho de um prin-
cipal grande e por isso lhe deram os índios guerra” (apud Abreu, 1918: 104). O circuns-
taciado relato de Gabriel Soares sobre essa guerra é aterrador:
“Pôs este alevantamento a Francisco Pereira em grande aperto; porque lhe cercaram a vila e fortaleza, tomando-lhe a água e mais mantimen-tos, os quais neste tempo lhe vinham por mar da capitania dos Ilhéus, os quais iam buscar da vila as embarcações, com grande risco dos cer-cados, que estiveram nestes trabalhos, ora cercados, ora com tréguas se-te ou oito anos, nos quais passaram grandes fomes, doenças e mil infor-túnios, a quem este gentio tupinambá matava gente cada dia com o que se ia apouquentando muito; onde mataram um seu filho bastardo e al-guns parentes e outros homens de nome, com o que a gente, que estava com Francisco Pereira, desesperada de poder resistir tantos anos a ta-manha e tão apertada guerra se determinou com ele apertando-o que ordenasse de os por em salvo, antes que se acabasse de consumir em poder de inimigos tão cruéis, que ainda não acabavam de matar um homem, quando o espedaçavam e comiam. E vendo este capitão sua gente, que já era muito pouca, tão determinada, ordenou de a por em salvo e passou-se por mar com ela em uns caravelões que tinha, para a capitania dos Ilhéus.” (Soares de Sousa, 1587: 36-7)
No entanto os índios, vendo a capitania abandonada, resolvem propor o ar-
mistício e, como bem sugere Alexander Marchant, o caso “ilustra bem a atitude dos indí-
genas, assim como a dos portugueses, em relação ao escambo” (Marchant, 1943: 93),
exatamente o padrão que vigorava predominantemente antes do início das desavenças e,
que, certamente, ainda estaria operante mesmo em face da escravização:
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“(...) se espantou o gentio muito, e arrependido da ruim vizinhança que lhe tinha feito, movido também de seu interesse, vendo, que como se foram os portugueses lhe ia faltando os resgates, que eles lhes davam a troco de mantimentos, ordenaram de mandar chamar Francisco Pereira mandando-lhes prometer toda a paz e boa amizade, o qual recado foi dele festejado, e embarcou-se logo com alguma gente (...) e partiu-se para Bahia.” (Soares de Sousa, 1587: 37)
Mas seria um retorno de triste sucesso. Já na entrada da barra, o caravelão
que trazia os colonos enfrentou uma tormenta, arribando aos baixios da ilha de Itaparica,
onde “o mesmo gentio os matou e comeu a todos” (Salvador, 1627: 127), com exceção
de Diogo Álvares, que acompanhava a comitiva. Desfecho inopinado de um armistício
proposto com o objetivo de restabelecer o escambo de que se ressentiam os índios, talvez
não fosse a proposta, como pensa Marchant, um simples ardil (Cf. Marchant, 1943: 93).
No nosso ponto de vista, os índios realmente poderiam ter avaliado a conjuntura em que
viviam com a carência dos bens de que haviam se acostumado a se servir e feito a pro-
posta de armistício premidos por ela. Entretanto, a casualidade do naufrágio, que coloca-
va seus consortes no escambo e inimigos na guerra em clara situação de vulnerabilidade
e os próprios bens que desejavam à sua inteira disposição, pode ter reacendido nos índios
o desejo de concluir a vingança inacabada. Como se sabe, a ocasião faz o oportunista e,
que nos perdoem o trocadilho de mau gosto, estariam os índios matando dois coelhos
com uma só porretada: obtinham o que sua racionalidade econômica requeria sem cum-
prir a sua parte no contrato e, ainda por cima, realizavam o que a sua ética impunha, de-
sagravando os parentes e amigos mortos pelos lusos e repimpando-se com as suas carnes
no festim antropofágico. De qualquer maneira, o destino do Rusticão, o ínclito veterano
da Índia, teve sua solução de continuidade sob a crua ordem do “gentio” americano, por
volta de 1546:
“Nas lutas com os índios mandara matar um dos cabecilhas: prisioneiro agora, foi ritualmente sacrificado por um irmão do finado, de cinco a-nos, tão pequeno que foi preciso segurarem-lhe a maça do sacrifício, segundo tradição conservada num escrito jesuítico.” (Abreu, 1907: 87)
80
“Vícios e misérias na infância de nossas capitanias”
Mas não seria a escravidão o único vetor do malogro quase completo da ex-
periência colonizadora de D. João III. Outros “vícios e misérias na infância de nossas
capitanias”, segundo a feliz expressão do Visconde de Porto Seguro (Cf. Varnhagen,
1854-7a: 225-6), acometeriam o empreendimento: a reação dos índios à ocupação da
terra, incitada pelos franceses, movidos estes por sua pretensão de se instalarem em al-
gum ponto do território; o livre trânsito dos entrelopos em algumas capitanias, “que se
haviam convertido em valhacouto de contrabandistas” (Varnhagen, 1854-7a: 226); a “in-
subordinação e irreligiosidade que iam lavrando em umas e outras, em conseqüência dos
degredados que choviam da mãe-pátria” (Varnhagen, 1854-7a: 226); e, finalmente mas
não menos importante, a inépcia da maioria dos donatários ou de seus prepostos em ad-
ministrar colônias implantadas num ambiente de sociologia tão complexa e a sua própria
incapacidade de sustentar financeiramente um empreendimento que mostrou necessitar
de muito mais recursos do que os vultosos capitais que nele tinham sido invertidos.
Sem embargo, seria sempre a reação dos índios o fator decisivo, porque todos
esses “vícios e misérias” redundavam na ruína das capitanias na medida em que, ou invi-
abilizavam as relações amistosas com os íncolas, ou abriam brechas no sistema de defesa
das colônias, habilitando os nativos a arremeterem contra elas. Neste sentido, um exem-
plo modelar é o da capitania do Espírito Santo, cujo malogro deveu-se exatamente ao
conjunto desses “vícios e misérias” e suas repercussões no comportamento dos habitantes
ancestrais.
Vasco Fernandes Coutinho, fidalgo da casa real, “acutiladiço veterano da Ín-
dia” (Prado, 1989: 103), uma legenda da história militar portuguesa, celebrizado pela
proeza que João de Barros eternizou em Décadas14, requereu, de vontade própria, seu
14 Citada pelo padre Fernão Cardim em sua Narrativa epistolar e repetida pelo Visconde de Porto Seguro na sua História Geral (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 178): “Vasco Fernandes Coutinho fez as maravilhas em Malaca detendo o elefante que trazia a espada na tromba” (Cardim, 1980 [1847]: 167) .
81
morgado a D. João III (Cf. Soares de Sousa, 1587: 54) e, como sugere Varnhagen, “ao
darmos crédito aos que ao depois se declararam seus inimigos, levava consigo o pensa-
mento de vir a fazer-se algum potentado independente.” (Varnhagen, 1854-7a: 176).
Mesmo que assim não fosse, o donatário parecia decidido a estabelecer-se definitivamen-
te no Brasil e foi um dos primeiros a colocar em prática os seus planos: “(...) apenas a-
graciado, vendeu sua quinta de Alenquer à real fazenda, contraiu alguns empréstimos,
cedeu ao Estado a tença que desfrutava, a troco de um navio e vários gêneros [e] angari-
ou muitos colonos, entrando nesse número vários nobres” (Varnhagen, 1854-7a: 176).
Chegando ao Brasil em 1535, fundou a “cabeça da colônia” – a atual cidade de Vila Ve-
lha – e, depois de repelir alguns ataques dos índios, que “apaziguaram-se e começaram a
concorrer para os trabalhos da colônia” (Varnhagen, 1854-7a: 177), fortificou o povoado
e “de redor desta vila se fizeram logo quatro engenhos de açúcar muito bem providos e
acabados, os quais começaram a lavrar açúcar” (Cf. Soares de Sousa, 1587: 55).
Com as coisas indo tão bem para o donatário, Vasco Fernandes partiu para o
reino com o intuito de angariar novos capitais para o empreendimento que medrava, dei-
xando como seu lugar-tenente D. Jorge de Menezes, nobre degredado que o acompanhara
desde a implantação da colônia. Nessa ocasião, aproveitando-se os índios da ausência do
capitão e reagindo à escravidão que nela já grassava (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 281) ar-
remeteram contra a colônia que, segundo o Pe. Nóbrega, era então a capitania “onde
mais reinava a iniqüidade dos cristãos” (Nóbrega, 1549-60: 199). O episódio foi descrito
por Gabriel Soares:
“(...) os Tupiniquins de uma banda e os Guaitacazes, da outra, fizeram tão crua guerra que lhe queimaram os engenhos e muitas fazendas, o desbarataram e mataram às flechadas [D. Jorge de Menezes]; o que também fizeram depois a D. Simão de Castelo Branco, que lhe sucedeu na capitania, e a outra muita gente; e puseram a vila em cerco e em tal aperto que, não podendo os moradores dela resistir ao poder do gentio, a despovoaram de todo” (Soares de Sousa, 1587: 55).
De volta ao Brasil, o donatário não se abateu com a ruína do seu empreendi-
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mento e dedicou-se à sua reconstrução. Entretanto os índios, açulados pela sua própria
proeza, não dariam trégua ao velho capitão que, enfraquecido pelas perdas econômicas,
sentiria, além do mais, o travo da traição dos colonos, na sua maioria degredados remeti-
dos do reino e delinqüentes e criminosos de outras capitanias que o donatário homiziava
(Cf. Varnhagen, 1854-7a: 178): “não tardou a ser expulso pelos subordinados, como in-
variavelmente na época sucedia” (Prado, 1989: 103-4; cf.Garcia, 1925: 188; Varnhagen,
1854-7a: 181-9).
Não obstante, o herói de Malaca permaneceria tentando reerguer sua capita-
nia, pois esteve em Pernambuco em 1548 para solicitar a ajuda de Duarte Coelho, como
se aduz de carta deste donatário a D. João III (in Mello & Albuquerque, 1997: 107), e
recorreu a D. Duarte da Costa, o segundo governador-geral que, escrevendo da Bahia,
em 20 de maio de 1555, descreveu o estado de ânimo do donatário:
“Vasco Fernandes Coutinho chegou aqui velho e pobre e cansado, bem injuriado do Bispo (Sardinha) porque em Pernambuco lhe tolheu cadei-ra d’espaldas na igreja e apregoar por excomungado, de mistura com homens baixos, por beber fumo, segundo mo ele disse; e eu o agasalhei em minha casa e com minha fazenda lhe socorri a sua pobreza, pera se poder ir pera o Espírito Santo (...).” (D. Duarte da Costa, 20-05-1555 in Varnhagen, 1854-7a: 187).
De fato, mais uma vez o donatário se recomporia e mais uma vez intentaria o
reerguimento da capitania, mas o seu destino estava selado. Em 1560, o governador Mem
de Sá, em viagem de inspeção às capitanias, esteve no Espírito Santo e, segundo o Pe.
Nóbrega, que o acompanhava,
“achou uma pouca de gente em grande perigo de serem comidos dos índios e tomados dos franceses, os quais todos pediram que, ou tomasse a terra por El-Rei ou os levasse dali, por não poderem já mais sustentar, e o mesmo requeria Vasco Fernandes Coutinho por suas cartas ao Go-vernador.” (Nóbrega, 1549-60: 223)
O governador chegou a mandar uma armada de socorro ao donatário, desig-
nando seu próprio filho como capitão dela (Cf. Salvador, 1627: 173), mas foi uma cam-
83
panha de malogrado sucesso. Fernão de Sá pereceu sob as flechas dos goitacases, a capi-
tania do Espírito Santo teve o seu golpe de misericórdia e o donatário caiu finalmente em
desgraça. O calvário de Vasco Fernandes Coutinho, uma legenda da lusitanidade nos
campos asiáticos e um entusiasta da empresa colonial americana, teve um final melancó-
lico, como conta Gabriel Soares:
“No povoar desta capitania gastou Vasco Fernandes Coutinho muitos mil cruzados que adquiriu na Índia, e todo o patrimônio que tinha em Portugal, que todo para isso vendeu, o qual acabou nela tão pobremen-te, que chegou a darem-lhe de comer por amor de Deus, e não sei se te-ve um lençol seu, em que o amortalhassem.” (Soares de Sousa, 1587: 56)
“Os dois núcleos essenciais de formação da nacionalidade”
Mas a experiência das donatarias não foi um fracasso completo e é correto
admitir-se que a instituição do Governo-geral, em 1549, antes de refletir uma resposta à
dissolução premente das capitanias, destinava-se a “coordenar a colonização, dando a-
poio aos donatários, mas não extinguindo o sistema” (Wehling & Wehling, 1999: 69).
Com efeito, havia duas capitanias que, apesar das dificuldades pelas quais também pas-
savam, terminariam a primeira metade do século XVI plenamente instituídas e experi-
mentando um desenvolvimento econômico e social notável, que já transbordava por suas
cincunvizinhanças – as regiões polarizadas por São Vicente e Olinda, “verdadeiros ‘nó-
dulos’ de população no imenso ‘deserto humano’ do Brasil de então” (Azevedo, 1956:
19).
Em vista disso, concordamos que Pernambuco e São Vicente foram os “dois
núcleos essenciais de formação da nacionalidade brasileira” (Bomfim, 1929: 87). À volta
dos assentamentos pioneiros desenvolver-se-ia uma sociedade mesclada culturalmente,
construída por um povo miscigenado e com um forte tônus de ambigüidade e contradição
nas relações sociais, balizadas pela cordialidade e pela violência, incontestáveis marcas
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de nossa tradição civilizacional. Neste sentido, acreditamos que o grande diferencial en-
tre essas duas capitanias e as outras foi exatamente a capacidade que tiveram os seus co-
lonos em bem administrar sua relação com os índios:
“A espada, sempre vencedora, de Martim Afonso de Sousa foi um raio que nunca causou estragos onde não encontrou resistência. O respeito de João Ramalho, e bons ofícios de Antônio Rodrigues lhe conciliaram a amizade dos Guaianases, a qual ele firmou com a pontual observância das condições estipuladas. Cativou a vontade da terra, defendendo a sua liberalidade, e perpetuou, com atenções, a fidelidade dos bárbaros, que não havia de assegurar com injustiças.” (Madre de Deus, 1797: 52) “Duarte Coelho na faina de arredar todos os obstáculos ao feliz êxito da sua empresa, e tendo para mais diante dos olhos o espetáculo desolador de outras capitanias mergulhadas na anarquia, intentou prudentemente, desde sua chegada, viver em paz com o gentio, e conseguiu que os ta-bajaras, em parte dominados pelo medo e grandemente seduzidos pelas dádivas de ferramentas e bugigangas, auxiliassem os seus colonos na edificação das duas vilas e nos pesados trabalhos rurais.” (Oliveira Li-ma, 1895: 13-14)
O progresso da capitania de São Vicente tem um sentido emblemático para a
formação da nacionalidade porque nele imperou o pioneirismo. A fundação da vila que
daria o nome à capitania é anterior à própria implantação do sistema e se constitui no
primeiro ato do estabelecimento de uma nova sociedade nos trópicos e “pode ser conside-
rada a primeira capital que teve o Brasil” (Azevedo, 1956: 12). De fato, quando Martim
Afonso fundou a vila de São Vicente, em 1532, proveu o povoado de uma infra-estrutura
básica para a fixação permanente dos colonos e para a instalação, como definiria Pero
Lopes em expressão já clássica, de “uma vida segura e conversável” (Lopes, 1533 apud
Abreu, 1907: 76): além de “demarcar-lhe terreno, arruá-lo, loteá-lo, distribuindo os lotes
aos sesmeiros, fez levantar um forte, a casa da Câmara, a cadeia, a igreja, a alfândega”
(Azevedo, 1956: 12).
Embora Martim Afonso tenha deixado a colônia em 1533 para não mais tor-
nar a ela, como já ficou dito, a sua capitania experimentaria sensível desenvolvimento
depois da instituição do sistema por D. João III. Uma vez recuperada a vila de São Vi-
85
cente da invasão e saque cometidos pelos colonos castelhanos de Iguape, em 1534 (Cf.
Varnhagen, 1854-7a: 182-3), a capitania protagonizaria os primeiros passos da empresa
colonial americana: foi em suas terras que se introduziu o cultivo da cana na colônia (Cf.
Soares de Sousa, 1587: 75) e empreendedores genoveses e flamengos nela erigiram os
primeiros engenhos de açúcar hidráulicos do Brasil (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 168).
A chegada de Brás Cubas à capitania, em 1540 (Cf. Abreu, 1907: 85), im-
primiria ainda maior urbanidade ao assentamento primitivo. Cubas era um jovem “ativo e
empeendedor” (Varnhagen, 1854-7a: 167), que servira no Oriente com Martim Afonso,
em cuja casa criara-se, e vinha tomar conta da sesmaria doada ao seu pai (Cf. Abreu,
1918: 109). O valido do donatário logo se tornaria um homem importante na capitania,
desempenhando altas funções administrativas (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 167 e Abreu,
1918: 109) e, depois, por volta de 1560, empreendendo pioneiramente uma “entrada” de
pesquisa mineradora nos sertões brasileiros (Cf. Ellis, 1989: 290 e Holanda, 1993: 245).
Em 1543, Brás Cubas funda, no porto de Santos, a primeira Santa Casa de Misericórdia15
do Brasil, “com os privilégios da de Lisboa por alvará régio” (Varnhagen, 1854-7a: 167),
em ato pioneiro de importância fundamental, uma vez que essas “beneméritas institui-
ções arcaram através dos séculos com a parte maior da assistência aos enfermos desvali-
dos” (Santos Filho, 1993: 153). Depois, assim que assume o posto de capitão-mor, em 8
de junho de 1545 (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 182), transfere a sede da capitania para o
porto de Santos, fundando a vila do mesmo nome, uma decisão administrativa provocada
por aquele que podemos considerar como o primeiro desastre ecológico devido à ação do
homem registrado no Brasil: o entulhamento do porto de São Vicente16.
Assim, ia a capitania consolidando-se, já com duas vilas estabelecidas. Ade-
15 “(...) instituição pia introduzida em Portugal no século anterior, a fim não só de recolher os peregrinos, como as antigas albergarias, mas de curar os enfermos, de enterrar os mortos, de educar e adotar as desva-lidas órfãs, e de praticar as obras de misericórdia.” (Varnhagen, 1854-7b: 21). 16 “(...) as roçadas ou derrubadas dos matos, que antes vestiam o solo e o asseguravam, permitiram que as enxurradas levassem consigo muita terra até chegar a entulhar o ancoradouro vizinho, fenômeno este que se passou em muitos outros dos nossos rios e baías, e barras deles e delas, à medida que as vertentes contí-
86
mais, como sabemos, no planalto já vicejava também a primeira investida de ocupação
do sertão – processo notoriamente tardio no Brasil – e “as cabanas de João Ramalho e
dos mamelucos seus filhos e parentes (...) apregoavam a vitória alcançada sobre a mata
virgem do litoral” (Abreu, 1907: 85). Em breve o “guarda-mor do campo” veria seu esta-
belecimento ser elevado à categoria de vila, o que consolidaria ainda mais fortemente a
chamada “região vicentina” (Azevedo, 1956: 19), cujo panorama em meados do século
XVI, às vésperas da instituição do Governo-geral, distoava do deprimente aspecto da
quase totalidade das donatarias, mergulhadas em aguda crise:
“A capitania de São Vicente contava, aos dezesseis anos de fundada, seis engenhos, mais de seiscentos colonos, e muita escravaria (...); e a vila de Piratininga, dentro de dez anos mais, transferida para melhor lo-cal, conseguia do donatário um foral próprio com a data de 5 de Abril de 1558. Os moradores se dilatavam, não só pelas duas vilas menciona-das, como para as praias meridionais, pelas aldeias de Itanhaém e Peru-íbe, onde também se lhes concedia sesmarias. Para as bandas de Guara-tiba, foi dada uma sesmaria de oito léguas de terra (...).” (Varnhagen, 1854-7a: 168)
Em que pese o extraordinário desenvolvimento da capitania de São Vicente,
seria Pernambuco a mais alta expressão da empresa colonizadora luso-brasileira no sécu-
lo XVI. Mesmo antes da fundação da capitania, a posição geográfica de Paranambuco
mostrou-se estratégica, pois o porto do Recife, o mais próximo da Europa depois do de
Baía da Traição, incrustado nas terras dos potiguaras amigos de franceses, “era quase um
ponto obrigado de paragem e aguada para os navios que iam explorar as regiões recém-
descobertas, ou que (...) tentavam chegar à India pelo Ocidente” (Oliveira Lima, 1895:
4). Além disso, as terras de Pernambuco eram ricas em pau-brasil, foram alvo dos trafi-
cantes desde as primeiras expedições empreendidas à nova terra (Cf. Abreu, 1907: 69) e
a feitoria de Cristóvão Jaques na ilha de Itamaracá, fundada cerca de 1516, foi o primeiro
assentamento português relativamente estável na colônia americana.
Ou seja, as terras compreendidas entre o rio Igaraçu e a foz do São Francisco
guas se cultivavam.” (Varnhagen, 1854-7a: 167).
87
eram prenhes do pau de tinta e tiveram intensa presença européia nos primeiros anos e,
talvez por essas razões, D. João III tenha escolhido Duarte Coelho Pereira como donatá-
rio desta que era a mais extensa e seria a mais importante de todas as capitanias hereditá-
rias. Apesar de “não ser Duarte Coelho um fidalgo de nascimento” (Silva, 1997: 3), o
donatário era uma personalidade importante na corte de D. João III, pois permanecera por
20 anos na Índia (Cf. Silva, 1997: 3), onde “se distinguira pela sua inteligência, prudên-
cia e valentia” (Oliveira Lima, 1895: 7). Teve papel de destaque na tomada de Malaca,
foi embaixador na Tailândia – “ocasião em que se estabeleceu o comércio pacífico dos
portugueses” (Silva, 1997: 3) – e o capitão da descoberta do Vietnã do Sul e da Cochin-
china, pontos estratégicos para garantir o monopólio do comércio asiático em mãos por-
tuguesas. De volta ao reino, em 1529, Duarte Coelho era um homem abastado e o seu
prestígio lhe valeu uma nomeação de embaixador na França e, depois, de comandante da
esquadra real, quando desempenhou importantes serviços no patrulhamento da costa afri-
cana e do Portugal insular. Ademais, era um alto conselheiro d’el-rei pois, como já ficou
dito, foi seu auxiliar direto – juntamente com Martim Afonso – na implementação do
sistema das donatarias, a mais importante medida tomada por D. João III no tocante às
terras do ultramar.
Foi Duarte Coelho, como sabemos, o primeiro a receber a carta de doação de
sua capitania e, logo que obteve o foral, o diligente capitão aprestou uma armada e em-
barcou para o Brasil “com a sua casa e muitos parentes” (Rocha Pitta, 1730: 84), acom-
panhado de sua esposa, D. Brites de Albuquerque e tendo como braço-direito seu cunha-
do, Jerônimo de Albuquerque (Cf. Salvador, 1627: 128-9). Desembarcaram a 9 de março
de 1535 no limite setentrional da capitania e, depois de fundarem a vila de Igaraçu em
1536 (Cf. Azevedo, 1956: 12), estabeleceram-se provisoriamente às margens do Beberi-
be, valendo-se “dos tujupares de uma aldeota primitiva” (Varnhagen, 1854-7a: 173) para,
em 1537, fundar, “em um alto livre de padrastos, (...) onde fez uma torre de pedra e cal”
(Soares de Sousa, 1587: 20), a vila de Olinda, “cabeça da colônia”.
88
Nos primeiros tempos, a abundância e a qualidade do pau-brasil pernambu-
cano determinaram o destino econômico e o padrão de relações sociais na capitania: atra-
vés do escambo, o donatário conseguia dos índios o trabalho necessário para extrair e
transportar o lenho que depois venderia na Europa. Contudo, em 1542, o donatário escre-
via a D. João III: “dei ordem a se fazerem engenhos de açúcares (...). Temos grande soma
de canas plantadas, todo o povo (...) e cedo acabaremos um engenho muito grande e per-
feito, e ando ordenando a começar outros” (Duarte Coelho, 27-04-1542 in Mello & Al-
buquerque, 1997: 97). Iniciava-se o empreendimento que promoveria o desenvolvimento
da capitania e, em 1546, começava Pernambuco a exportar açúcar (Cf. Calmon, 1958:
24). Em breve tempo a capitania tornar-se-ia a maior provedora da Fazenda Real e o cen-
tro econômico da colônia americana: em 1587, dos 126 engenhos instalados no Brasil, 66
moíam em Pernambuco (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 13, passim).
Em vista do sucesso de sua capitania, Duarte Coelho notabilizou-se como um
empreendedor bem-sucedido, um colono incansável e um chefe enérgico, mas havemos
de concordar com Capistrano de Abreu que Jerônimo de Albuquerque “foi a grande figu-
ra da capitania” (Abreu, 1918: 108). Com efeito, temos demonstrado que a questão da
relação com os índios foi o critério crítico para o sucesso ou o fracasso das capitanias
hereditárias e o cunhado do donatário de Pernambuco soube como poucos fomentá-la.
Ora, ao lado de João Ramalho e Diogo Álvares, Jerônimo de Albuquerque passou para a
História como um dos patriarcas da gente brasileira: no mito de origem da nacionalidade,
é um dos heróis fundadores da raça miscigenada que caracteriza o nosso povo. Entretan-
to, ao contrário de Ramalho e Caramuru, bem definidos como “squawmen”, homens
brancos que adotam os costumes e vivem entre os índios (Cf. Marchant, 1943: 67), Jerô-
nimo de Albuquerque era um cavaleiro português, cunhado e braço-direito do donatário,
que se relacionava com os índios e as índias mantendo sua posição no status quo domi-
nante. Em função disso, a trajetória de Jerônimo de Albuquerque é exemplar: a absorção
das índias “amancebadas” e a constituição de famílias miscigenadas no ambiente das
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colônias refletia a formação de uma base social diferenciada dos padrões europeus e in-
dígenas, gerando o que um autor contemporâneo define como “uma cultura portadora de
uma profunda originalidade” (Couto, 2000: 67). Não queremos nos deter nos aspectos
aculturativos advindos de tal situação, magistralmente abordados por Gilberto Freyre (Cf.
Freyre, 1933), mas tão somente afirmar que uma nova identidade começava a ser forjada,
dando ensejo à gênese do ethos brasílico. Aliás, no caso da capitania de Pernambuco,
como observou o Pe. Nóbrega em carta a D. João III, esse peculiar processo de formação
familiar estava em franco desenvolvimento em meados do século XVI e, certamente, seu
paradigma era o exemplo do cunhado de Duarte Coelho:
“Para as outras capitanias mande Vossa Alteza mulheres órfãs, porque todas casarão. Nesta não são necessários por agora, por haverem muitas filhas de homens brancos e de índias da terra, as quais todas agora casa-rão com a ajuda do Senhor, e se não se casavam dantes, era porque consentiam viver os homens em seus pecados livremente, e por isso não se curavam tanto de casar, e alguns diziam que não pecavam, por-que o Arcebispo do Funchal lhes dava licença.” (Nóbrega, 1549-60: 126)
Jerônimo de Albuquerque era um homem solteiro quando chegou ao Brasil e
não precisamos de muita imaginação para sabermos que logo se integrou ao costume da
terra – “um grande pecado, que é terem os homens quase todos suas negras17 por mance-
bas” (Nóbrega, 1549-60: 79). O “branco cisne venerando” da Prosopopéia de Bento Tei-
xeira (Cf. Teixeira, 1601), teve vinte e quatro filhos (Cf. Abreu, 1918: 108)18, a maioria
deles mamelucos, e de sua união com a filha do cacique tabajara Uirâ-uby – ou Arco
Verde (Varnhagen, 1854-7a: 174) – que, segundo a tradição, “lhe deu liberdade e fez
companhia quando ia ser morto e comido” (Abreu, 1918: 108), lhe vieram oito, entre os
quais o capitão da conquista do Maranhão, primeiro herói da nacionalidade, que em bre-
ve conheceremos.
17 Em muitos textos quinhentistas os índios são referenciados como “negros”. 18 “(...) trinta e dois, inclusive os duvidosos, apurou Borges da Fonseca” (Vianna, 1948: 60; cf. Fonseca,
90
O perfil do Adão pernambucano, pintado por Oliveira Lima, revela que a re-
lação do cunhado de Duarte Coelho com as índias não era puramente instrumental mas,
como dissemos acima, importava em comprometimentos sentimentais que ligavam o pai
português, a mãe índia e os filhos mamelucos. Em que pese a largueza dos costumes lú-
bricos na colônia, a descendência havida com as nativas seria um elemento fundamental
no congraçamento entre os lusos e os índios, redundando na formação do “povo novo”
que construiria a nação:
“Com as mulheres desta tribo casaram-se alguns moradores e amance-baram-se outros, vivendo muitos anos em doce concubinato com a filha do cacique Arco Verde o próprio cunhado do donatário, Jerônimo de Albuquerque. Este bravo português, tipo do colonizador peninsular, manejava com facilidade a espada e até perdeu um olho em pugna con-tra os bárbaros, mas apesar deste defeito, galanteava com êxito, e quan-do por ordem da rainha regente D. Catarina d’Áustria, cuja beatice se escandalizara de tanta libertinagem, casou-se com D. Filipa de Mello, escoltavam-no onze filhos naturais, nem todos da filha do chefe índio, os quais ele perfilhou e sempre lhes quis com ternura.” (Oliveira Lima, 1895: 14)
Todavia, o que sentia por sua consorte tabajara e por seus descendentes ma-
melucos não impedia que Jerônimo de Albuquerque tratasse os índios com a violência
característica de seu tempo e de sua própria condição, quando isso fosse considerado
necessário para garantir a paz interna da capitania. Em 1554, quando Duarte Coelho via-
jou para o reino a tratar de negócios, deixando sua esposa e o irmão dela à frente da capi-
tania, os índios “começaram a fazer das suas, matando e comendo a quantos brancos e
negros seus escravos encontravam pelo caminho” (Salvador, 1627: 135). O fato foi solu-
cionado da maneira tipicamente exemplar dos colonizadores pelo capitão-em-chefe:
“(...) Jerônimo de Albuquerque os prendeu e, depois de averiguar quais foram os homicidas dos brancos, uns mandou por em bocas de bom-bardas e dispará-las à vista dos mais, para que os vissem voar feito pe-daços, e outros entregou aos acusadores que os mataram em terreiro e os comeram em confirmação de sua inimizade, e assim a tiveram daí
1748: 9, passim).
91
avante tão grande como se fora de muitos anos, e se dividiram em dois bandos, ficando os acusadores com os seus sequazes.” (Salvador, 1627: 136)
Portanto, a trajetória de Jerônimo de Albuquerque irá veicular a ambigüidade
essencial do ethos brasílico, cuja gênese procuramos nos primeiros movimentos de nossa
formação nacional e encontramos na bem-sucedida capitania de Pernambuco: relações
interpessoais regidas por uma ética baseada na intimidade e na cordialidade, a qual se
sobrepõe às clivagens de classe, estamento ou raça, determinando comportamentos pre-
dominantemente “unionistas” (Cf. Freyre, 1933: 28), articuladas a relações institucionais
fortemente marcadas pela hierarquia e pela violência, que reafirmam essas clivagens de
modo peremptório, especialmente quando os interesses de dominantes e dominados en-
tram em rota de colisão, informando comportamentos claramente autoritários.
Entendemos que essa ambigüidade encontrada nas relações interétnicas em
Pernambuco aponta para um fato fundamental: a oposição entre índios e brancos não era
unívoca no Brasil colonial porque muito mais importante do que o contraste entre “colo-
nizadores” e “colonizados” – lugar-comum nos julgamentos “politicamente corretos” da
crítica moderna, mas inteiramente ausente nas narrativas contemporâneas aos fatos – a
identidade entre os grupos racialmente diferenciados se fundamentava na oposição entre
“amigos” e “inimigos”19 própria, como vimos, do “espírito” pessoalizante de tupis e lu-
sos, e condizente com o clima bélico imperante: “Havia (...), índios aldeados e aliados
dos portugueses, e índios inimigos espalhados pelos ‘sertões’. À diferença irredutível
entre ‘índios amigos’ e ‘gentio bravo’ corresponde um corte na legislação e política indi-
genistas” (Perrone-Moisés, 1998a: 117). Por seu turno, a oposição entre “perós” e “mair”
(Cf. Almeida, 1878), ou seja entre portugueses e franceses, fornecia aos índios o mesmo
critério diacrítico para encontrar entre os europeus, também divididos em grupos belige-
19 Esta constatação excita nossa imaginação sociológica pois ela nos remete à própria lógica “relacional” da nossa sociedade, apontada com maestria por Roberto DaMatta e sua “sociologia do dilema brasileiro”
92
rantes, aliados e oponentes.
A lógica desse arranjo se reflete na correlação entre os padrões do “espírito
do povo” e os elementos conjunturais que ambientavam as relações entre índios e euro-
peus no Brasil quinhentista – a relação entre Volksgeist e Zeitgeist. A divisão do mundo
entre “amigos” e “inimigos”, fortemente marcada por critérios de honra, fidelidade, riva-
lidade e vingança, codificava a ação de indivíduos e grupos no plano da satisfação dos
interesses advindos da nova situação histórica provocada pelo Descobrimento, situação
esta regida pela lógica do capitalismo nascente. Os portugueses buscavam o lucro latente
na colônia inculta e os índios desejavam a nova tecnologia portada pelos europeus. A
cooperação entre índios e portugueses era, portanto, uma necessidade prática, pois o cli-
ma bélico que imperava no carregado ambiente do quinhentismo brasileiro impunha que
os grupos estabelecessem laços de lealdade estratégicos para atingirem os seus propósitos
e garantirem a sua sobrevivência.
Quer dizer, a partir do momento em que relações de reciprocidade, confiança
e “amizade” eram estabelecidas para dar resposta às demandas de índios e lusos, uma
forte tendência à íntima integração dos grupos se processava, seja operando através de
laços carnais, seja através de trocas mercantis, seja através de alianças militares. Por ou-
tro lado, quando o conflito de interesses marcava a relação entre os íncolas e os europeus,
a violência – moeda corrente no habitus de ambos os povos – passava a reger a relação
entre os grupos, redundando nos cruentos episódios que marcaram nossa história coloni-
al. Neste aspecto, atuavam, por um lado, a proverbial “inconstância” dos índios (Cf. Var-
nhagen, 1854-7a: 51), cujos humores podiam mudar sob o menor pretexto e, por outro, a
conhecida truculência dos colonizadores portugueses, para quem a punição exemplar era
considerada como uma espécie de pedagogia da submissão para os recalcitrantes. Foi o
período das donatarias, pois, um tempo ambíguo, de guerra e cooperação, cativeiro e
(Cf. DaMatta, 1978 [1978] e 1987): no Brasil, a ação do indivíduo estará sempre ambientada num universo ideológico em que a clivagem entre “amigos” e “inimigos” baliza o seu julgamento.
93
miscigenação, que se constituiu numa espécie de prelúdio para a centralização do gover-
no, tornando-se a ambigüidade o diapasão para as relações sociais entre índios e lusos
desde então.
94
Capítulo 4
GOVERNO-GERAL
Antecedentes
Quando D. João III soube, em 1547, que o donatário da Bahia fora imolado
pelos tupinambás da ilha de Itaparica, el-rei começou a perceber que o modelo de coloni-
zação que projetara para o seu senhorio na América não poderia subsistir sem uma ação
mais positiva do seu governo (Cf. Salvador, 1627: 160; Varnhagen, 1854-7a: 229; Abreu,
1907: 89). A morte do Rusticão estava a confirmar as insistentes advertências que Duarte
Coelho dirigira a el-rei, “há três anos e por três ou quatro vias”, sem obter respostas nem
provimentos: para solucionar a aguda crise em que estavam mergulhadas as capitanias
situadas ao sul da Nova Lusitânia – abaladas pela inépcia dos donatários, pelas desordens
dos colonos e pelas arremetidas dos índios – seria “necessário a mercê e ajuda de Deus e
de Vossa Alteza” (Duarte Coelho a D. João III, 22-03-1548 in Mello & Albuquerque,
1997: 107-8). Talvez a ruína dos donatários não sensibilizasse D. João III (Cf. carta de
Duarte Coelho a D. João III, 15-04-1549 in Mello & Albuquerque, 1997: 109-15), que
continuava a desfrutar dos monopólios que mantinha no Brasil e a recolher os tributos
que começavam a avultar com a implantação dos primeiros engenhos em Pernambuco e
São Vicente, mas a retração da atividade comercial portuguesa na Índia e no norte da
África e a descoberta das minas do Peru imporiam ao monarca uma reflexão mais cuida-
dosa sobre o seu domínio no Novo Mundo (Cf. Holanda, 1989: 108).
Uma presença mais efetiva da Coroa portuguesa em sua possessão americana
urgia não apenas em virtude das potencialidades econômicas que ela encerrava, nem so-
mente em função da anarquia, da desmoralização e da insolvência que imperavam nas
capitanias nela implantadas. Ela se impunha, sobretudo, porque paralelamente a esses
dois fatores, subsistia uma situação que preocupava a Coroa portuguesa desde a arribada
95
de Goneville ao Brasil: a ação dos traficantes estrangeiros, ao contrário de retrair-se dian-
te da ocupação privada, sustentava-se em muitos pontos da extensa costa brasileira e isso
mantinha em xeque a soberania portuguesa sobre as terras demarcadas pela linha de Tor-
desilhas. Realmente, apesar das fortalezas espalhas pelo litoral e das bem sucedidas ações
de Duarte Coelho na limpeza do território pernambucano e adjacências, os entrelopos
franceses iam se concentrando em regiões mais remotas onde abundava o pau-brasil, es-
pecialmente nas terras da capitania do Rio de Janeiro e seu entorno, nos arredores da foz
do rio Real e na extensa região ao norte da capitania de Itamaracá.
Aliás, como salientam alguns autores (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 229 e We-
hling & Wehling, 1999: 69), a célebre carta dirigida a el-rei por Luís de Góis pode ter
sido a gota d’água para que D. João III se decidisse, finalmente, a determinar uma atua-
ção mais direta da Coroa portuguesa no Brasil. O irmão de Pero de Góis, donatário da
capitania de São Tomé, estava profundamente preocupado com a atuação dos franceses
na região e sua carta dirigida a el-rei, em 12 de maio de 1548, tem um tom eloqüente e
persuasivo:
“(...) e digo mui alto e mui poderoso senhor que se com tempo e brevi-dade Vossa Alteza não socorre a estas capitanias e costa do Brasil que ainda que nós percamos as vidas e fazendas Vossa Alteza perderá a ter-ra e que nisto perca pouco aventura a perder muito, porque não está em mais de serem os franceses senhores dela, que em se acabarem de per-der estas capitanias que ficam e de ter eles um pé no Brasil hei medo aonde quererão e podem ter o outro.” (Luís de Góis a D. João III, 12-05-1548 in Ribeiro & Moreira Neto, 1993: 372-3)
Seja por essa razão ou pelo conjunto de fatores que aludimos, o fato é que D.
João III terminaria o ano de 1548 decidindo-se pela criação de um governo central para o
seu domínio na América, o que daria ensejo, pela primeira vez desde o Descobrimento,
ao estabelecimento de um sentido coordenado nos negócios da colônia americana. O
“primeiro corpo administrativo do Brasil” (Wehling & Wehling, 1999: 70) promoveria a
articulação dos núcleos populacionais dispersos pelo território, fomentaria a integração
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dos reinóis, mazombos, índios e curibocas que trabalhavam pelo “aumento da terra” d’el-
rei e regeria o assesto contra os intrusos do território do soberano. Neste sentido, como
bem observa Sérgio Buarque de Holanda, a implantação do Governo-geral foi um fator
determinante na precoce formação de um sentido de unidade na América portuguesa, o
que consolidou ainda mais o “unionismo” (João Ribeiro apud Freyre, 1933: 28 e 72) co-
mo uma disposição impositiva na mentalidade proto-nacional:
“(...) este esforço no sentido do centralismo parece distintivo da ocupa-ção portuguesa do Brasil, comparada às próprias conquistas dos caste-lhanos no Novo Mundo, onde sempre se deixou margem de ação apre-ciável a energias particulares, com o que se fizeram estas, tantas vezes, tumultuosas, turbulentas ou insubmissas.” (Holanda, 1989: 132)
O governador Tomé de Sousa
O homem escolhido para executar o plano centralizador na colônia america-
na, “fidalgo honrado, ainda que bastardo” (Soares de Sousa, 1587: 90), era primo natural
de Martim Afonso de Sousa e de D. Antônio de Ataíde, homem forte do governo de D.
João III e principal conselheiro d’el-rei. Fora este alto funcionário real, o 1º conde da
Castanheira, que conceberia o Regimento a ser dado a Tomé de Sousa e que, quatorze
anos antes, escrevendo a Martim Afonso, dizia do parente comum que “cada vez lhe ia
achando mais qualidades boas, tendo sobre todas a de ser sisudo” (Apud Varnhagen,
1854-7a: 233).
Aliás, há uma certa unanimidade entre os historiadores sobre os bons atribu-
tos pessoais do primeiro governador-geral. Para Varnhagen, por exemplo, Tomé de Sou-
sa era “distinto por seus grandes dotes governativos, e pelo valor e prudência” (Varnha-
gen, 1854-7a: 232), enquanto Sérgio Buarque o qualifica de “fidalgo sisudo, de bom tino
e entendimento, com experiência nos negócios ultramarinos” (Holanda, 1989: 108). Es-
sas avaliações, sustentadas pelo desempenho do primeiro governador no cumprimento de
suas funções, ecoam a própria opinião d’el-rei, expressa no Regimento que lhe foi dado,
97
em 17 de dezembro de 1548:
“Eu el-rei faço saber a vós Tomé de Sousa fidalgo de minha casa que vendo eu quanto serviço de Deus e meu é conservar e nobrecer as capi-tanias e povoações das terras do Brasil e dar ordem e maneira com que melhor e mais seguramente se possam ir povoando para exaltamento de nossa fé e proveito de meus reinos e senhorios e dos naturais deles or-denei ora de mandar nas ditas terras fazer uma fortaleza e povoação grande e forte (...). E pela muita confiança que tenho em vós que em caso de tal qualidade e de tanta importância me sabereis servir com a-quela fieldade e diligência que se para isso requer hei por bem de vos enviar por governador às ditas terras do Brasil (...).” (Regimento de Tomé de Sousa in Ribeiro & Moreira Neto, 1993: 142)
A política em relação aos índios
Um mês antes de Tomé de Sousa receber o Regimento, el-rei enviara, pela
caravela despachada para o Brasil por Fernand’Álvares de Andrade com o objetivo de
preparar mantimentos, uma carta régia a Diogo Álvares, exortando o velho morador da
Bahia a colaborar com o governador. O tom da carta indica que uma prática de concilia-
ção deveria principalmente ser implementada em relação aos brasis:
“Diogo Álvares. Eu el-rei vos envio muito saldar. Eu ora mando Tomé de Sousa, fidalgo de minha casa, a essa Bahia de Todos os Santos, por capitão e governador dela, para na dita capitania, e mais outras desse Estado do Brasil, prover de justiça dela e do mais ao meu serviço cum-prir; (...) e porque sou informado, pela muita prática e experiência que tendes dessas terras e da gente e costumes delas, o sabereis bem ajudar e conciliar, vos mando que tanto o dito Tomé de Sousa lá chegar, vos vades para ele, e o ajudeis no que lhe deveis cumprir e vos ele encarre-gar.” (Carta de D. João III a Diogo Álvares, de 19 de novembro de 1548 in Varnhagen, 1854-7a: 237, ênfase nossa)
Ora, uma das diretrizes mais importantes do Regimento dado a Tomé de
Sousa se referia à política a ser adotada relativamente aos índios pois, como temos obser-
vado, a reação deles à presença dos europeus era o ponto crítico do empreendimento
colonizador no Brasil e uma prática de confronto aberto mostrara-se desastrosa. Ademais,
a atuação lusa na América no que toca a seus naturais vinha transgredindo abertamente a
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bula Veritas Ipsa, publicada pelo papa Paulo III em 2 de junho de 1537 (Cf. Perrone-
Moisés, 1998b: 529), que rezava textualmente: “determinamos e declaramos que os ditos
índios, ainda que estejam fora da Fé de Cristo não estão privados nem devem sê-lo de sua
liberdade, nem do domínio dos seus bens e não devem ser reduzidos à servidão” (Bula
Veritas Ipsa in Varnhagen, 1854-7a: 58). Neste sentido, a própria determinação de enviar
religiosos da Companhia de Jesus na armada do primeiro governador destinava-se a dar
provimento às prescrições do papa, especialmente no que tocava à forma de tratar as gen-
tes arredadas do Cristianismo, que haviam de “ser atraídas e convidadas à dita Fé de
Cristo com a pregação da palavra divina e com o exemplo da boa vida.” (Bula Veritas
Ipsa in Varnhagen, 1854-7a: 58).
Entretanto, no próprio Regimento, a determinação de estratégias conciliató-
rias e cooperativas entre índios e lusos, condizente aos preceitos do cristianismo civiliza-
dor e à própria racionalidade política, vinha de permeio com a prescrição de práticas pu-
nitivas draconianas para com os recalcitrantes: “poreis em ordem destruindo-lhe suas
aldeias e povoações e matando e cativando aquela parte deles que vos parecer que basta
para o seu castigo e exemplo de todos” (Regimento de Tomé de Sousa in Ribeiro & Mo-
reira Neto, 1993: 143). É a institucionalização da ambigüidade que vimos demonstrando
ser o padrão das relações interétnicas no Brasil colonial, um dos processos que caracteri-
zam a “formação sui generis da sociedade brasileira” (Freyre, 1933: 8), na medida em
que se funda no “equilíbrio de antagonismos” (Freyre, 1933: 53) que a regeu. Essa ambi-
güidade está claramente refletida nas disposições finais do instrumento dado a Tomé de
Sousa:
“Posto que em alguns capítulos deste regimento vos mande que façais guerra aos gentios (...) e que trabalheis por castigardes os que forem culpados nas coisas passadas - havendo respeito ao pouco entendimento que essa gente até agora tem a qual causa diminui muito em suas culpas e que pode ser que muitos estarão arrependidos do que fizeram haverei por meu serviço que conhecendo eles suas culpas e pedindo perdão de-las se lhe conceda e ainda haverei por bem que vós pela melhor manei-ra que puderdes os tragas a isso porque como a principal tentativa mi-
99
nha é que se convertam à nossa santa fé, logo é razão que se tenha com eles todos os modos que puderem ser para que o façais assim. E o prin-cipal há de ser escusardes fazer-lhes guerra porque com ela se não pode ter a comunicação que convém que se com eles tenha para o serem.” (Regimento de Tomé de Sousa in Ribeiro & Moreira Neto, 1993:147)
Em suma, a política indigenista que seria implementada por Tomé de Sousa e
pelos governadores que lhe sucederam oscilaria entre as estratégias de conciliação e coo-
peração e o que Varnhagen definiu, com muita propriedade, de “sistema de terror”, cujo
“primeiro ensaio” executaria Pero de Góis, a mando do governador-geral e sob a chance-
la do padre Nóbrega, supliciando índios acusados de terem devorado colonos à boca de
canhões (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 243).
Não nos deteremos em desfiar o sangrento roteiro dessa sistemática, pois sua
odiosa monotonia fundamenta apenas o que o senso comum já entende: “O Brasil sempre
foi, e ainda é, um espantoso moinho de gastar gente” (Ribeiro, 1993: 15). Assim, apesar
de considerarmos que o morticínio dos índios causado pela chegada dos europeus à Amé-
rica tenha sido uma importante marca dos duros tempos coloniais, optamos, em favor de
preceitos do método, a analisar primordialmente a sua contrapartida, o processo de arti-
culação entre as etnias originais, símbolo maior da nossa formação nacional.
Portanto, não pretendemos neglicenciar essa triste trajetória do contato entre
brancos e índios no Brasil, de resto já fixada em nossa memória histórica, mas demons-
trar que a rota alternativa a ela também medrou, refletindo-se expressivamente na cons-
trução da nação, na formação da cultura brasileira e na própria genética das gerações con-
temporâneas. Veremos, a seguir, que desde as primeiras providências tomadas por Tomé
de Sousa no Brasil essa rota se trilhou, como no caso da edificação da primeira cidade
brasileira.
A fundação da cidade do Salvador
Em 1º de fevereiro de 1549, a “armada regeneradora do Brasil” (Varnhagen,
100
1854-7a: 237) partia de Lisboa trazendo, além do governador-geral, o padre Manoel da
Nóbrega e outros religiosos da Companhia de Jesus, “muitos casais que vinham estabele-
cer-se, seiscentos homens de armas e quatrocentos degredados” (Varnhagen, 1854-7a:
238), e os auxiliares de Tomé de Sousa no governo da colônia. O “primeiro escalão” da
administração colonial centralizada era composto pelo ouvidor-geral, que respondia pelos
negócios da Justiça20, pelo provedor-mor, representante da Fazenda Real21, e pelo capitão-
mor da costa, responsável pela defesa da colônia. Vinham investidos nestes cargos, res-
pectivamente, o desembargador Pero Borges – “que servira de corregedor no Algarve, e
que tinha reputação de homem justo, se bem que no Brasil veio a adquirir a de excessi-
vamente severo e pouco caridoso” (Varnhagen, 1854-7a: 233-4) –, Antônio Cardoso de
Barros, o donatário malogrado de uma das capitanias da costa leste-oeste, e Pero de Góis,
ex-donatário da também mangrada capitania de São Tomé. O padre Nóbrega descreve o
desembarque no Brasil em carta ao seu superior:
“Chegamos a esta Bahia a 29 dias do mês de Março de 1549. Andamos na viagem oito semanas. Achamos a terra de paz e quarenta ou cin-qüenta moradores na povoação que antes era; receberam-nos com gran-de alegria e achamos uma maneira de igreja, junto da qual logo nos a-posentamos os Padres e Irmãos em umas casas a par dela (...).” (Nóbre-ga, 1549-60: 71)
A providência imediata do primeiro governador no Brasil, tomada a 1º de
maio (Cf. Garcia, 1927a: 241), foi iniciar os trabalhos para a fundação da capital do go-
verno, primeira diretiva d’el-rei no Regimento que lhe fora dado (Cf. Ribeiro & Moreira
Neto, 1993: 142). Concorreram para a tarefa os muitos e diversos operários especializa-
dos que vieram do reino (Cf. Holanda, 1989: 114), os “mais de quarenta” (Varnhagen,
20 “A expressão ‘justiça’, no período colonial, assumia uma conotação bem mais ampla do que a atual. Àquela época, além de se referir à organização do aparelho judicial, também era utilizada como sinônimo de lei, legislação, direito.” (Salgado, 1985: 73). 21 “(...) o principal objetivo da administração fazendária atinha-se ao controle das atividades mercantis e à conseqüente transferência das rendas para os grupos dominantes do Estado. (...) De forma resumida, rele-vava na administração fazendária colonial o seu aspecto fiscalista, pois além da arrecadação de impostos, garantia as atividades e possibilidades econômicas reservadas sob contratos e monopólios, chamados na
101
1854-7a: 239) colonos que sobreviveram ao massacre do desafortunado donatário e “os
índios comarcãos [que] se acardumavam em torno da civilização, para desfrutar dela os
benefícios com o suor do seu rosto” (Varnhagen, 1854-7a: 242; cf. Nóbrega, 1549-60:
89). Em agosto, apenas três meses depois de iniciados os trabalhos, escrevia o Pe. Nó-
brega: “pode-se já contar umas cem casas e se começa a plantar canas de açúcar e muitas
outras cousas para o mister da vida” (Nóbrega, 1549-60: 89) .
A construção da cidade do Salvador, primeiro ato coletivo orquestrado pelo
governador-geral do Brasil envolvendo reinóis, índios e a sua descendência mestiça, tor-
nar-se-ia um símbolo da potencialidade da terra trabalhada por sua gente e ficaria impres-
sa na memória popular quinhentista como um resultado do bom emprego dos dotes de
caráter de Tomé de Sousa e de sua inegável aptidão de líder pioneiro:
“E assim edificou, povoou e fortificou a cidade, que chamou do Salva-dor (...). Onde ouvi dizer a homens do seu tempo (que ainda alcancei alguns) que ele era o primeiro que lançava mão do pilão pera os taipais e ajudava a levar a seus ombros os caibros e madeiras pera as casas, mostrando-se a todos companheiro e afável (parte mui necessária nos que governam novas povoações).” (Salvador, 1627: 161)
“Nasce verdadeiramente um Estado do Brasil”
Uma vez edificada a capital do governo da colônia, Tomé de Sousa daria
provimento às outras diretivas lhe delegadas por el-rei e cuidaria da consolidação institu-
cional do seu governo e dos negócios mais comezinhos sob sua administração. Em fins
de 1549, o governador despachou missão de cúpula às “capitanias de baixo”, com o obje-
tivo de obter informações sobre o país sob sua jurisdição. Foram, sob o comando do capi-
tão-mor da costa, o padre Nóbrega, que se deteve em Porto Seguro, o provedor-mor para
avaliar em que pé andavam os negócios da Fazenda e o ouvidor-geral para dar razão das
época de ‘estancos’. (Salgado, 1985: 83-4).
102
questões da Justiça22.
Entrando o ano de 1550, enquanto os seus principais assessores inspeciona-
vam as capitanias, o governador trabalhava na organização administrativa, supervisiona-
va as condições de segurança da povoação, redistribuía terras entre os sesmeiros e se em-
penhava na difícil tarefa de pôr em harmonia a sortida chusma que governava e que, a
partir daquele ano, passava a incluir os primeiros escravos trazidos de África (Cf. Gou-
lart, 1993: 185).
Em fevereiro de 1551, a edição da bula papal instituindo o bispado de São
Salvador e nomeando D. Pero Fernandes Sardinha – o amigo de Calvino jovem e profes-
sor de Santo Inácio de Loyola (Cf. Lacombe, 1993: 58) – como o primeiro bispo do Bra-
sil (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 254), satisfaria uma das principais reivindicações de Tomé
de Sousa no sentido de ordenar a vida social da colônia pois, como instava o padre Nó-
brega com seus superiores, “é muito necessário cá um Bispo (...) ou ao menos um Vigá-
rio Geral para castigar e emendar grandes males, que assim no eclesiástico como no secu-
lar se cometem nesta costa” (Nóbrega, 1549-60: 83). No mesmo ano, uma outra provi-
dência requerida pelo padre Nóbrega era efetivada: chegavam as primeiras mulheres
brancas ao Brasil, três órfãs fidalgas despachadas do reino (Cf. Holanda, 1989: 120) para
servirem de esposas a alguns dos licenciosos súditos d’el-rei assentados na América por-
tuguesa.
Com as coisas indo em relativa estabilidade na sede do governo e decorridos
já quase quatro anos do seu mandato, em fins de 1552 Tomé de Sousa decide ir em pes-
soa inspecionar as “capitanias de baixo”, acompanhado do padre Nóbrega (Cf. Franco,
1719: 38). Chegando a São Vicente, funda as vilas de Santos e de Santo André da Borda
do Campo e bloqueia o peabiru, antiga trilha usada pelos índios guaranis, que ligava o
22 O desembargador Pero Borges produziu um circunstanciado relatório dessa viagem em carta dirigida a D. João III em 7 de fevereiro de 1550 (In Varnhagen, 1854-7a: 189), o qual revela as precárias condições institucionais da colônia antes da implantação do Governo-geral. Analisaremos este documento mais à frente (Cf. Parte III, p.267).
103
litoral ao Chaco (Cf. Prous, 1992: 376). Essas duas últimas providências destinavam-se a
garantir a soberania portuguesa no território fronteiro às possessões castelhanas, já que o
velho caminho estava a servir como uma rota aberta de contrabando para os comerciantes
espanhóis estabelecidos no Paraguai (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 259). Não conseguira o
governador, contudo, tomar providências na outra capitania do seu primo natural, mas
suas preocupações com a soberania daquele magnífico recanto abandonado por Martim
Afonso expressou em carta a D. João III, sendo mais um dos tantos que advertiram el-rei
sobre a presença estrangeira nas terras senhoreadas pelos tamoios:
“Mando um debuxo dele a V. A. mas tudo é graça o que dele se pode dizer, senão que pinte quem quiser como deseje um rio – isso tem este de Janeiro. Parece-me que V. A. deve mandar fazer ali uma povoação honrada e boa; porque já nesta costa não há rio em que entrem france-ses senão neste.” (Tomé de Sousa a D. João III in Varnhagen, 1854-7a: 257-8)
Ao retornar da viagem, Tomé de Sousa despachou o ouvidor-geral para o rei-
no portando o relatório da inspeção e uma série de propostas para a solução dos proble-
mas administrativos que havia identificado, dentre as quais se destaca a sugestão de “que
se resolvesse que todos os donatários viessem morar em suas capitanias, a não terem mo-
tivo muito justo que os impedisse” (Apud Varnhagen, 1854-7a: 260). Segundo Varnha-
gen, “quase todas estas propostas vieram a aceitar-se” (Varnhagen, 1854-7a: 260). Cer-
tamente teria também o governador enviado uma solicitação para ser rendido no cargo,
pois a missão a ele delegada estava cumprida plenamente e a base institucional unitária
para o desenvolvimento da colônia se consolidara sob o seu bordão. Enfim, havemos de
concordar com Sérgio Buarque que, durante o seu mandato, “nasce verdadeiramente um
Estado do Brasil (...) [que irá] perdurar, nos mesmos traços essenciais, através de todo o
período colonial” (Holanda, 1989: 137).
Todavia, apesar da implantação do Governo-geral ter representado um avan-
ço nas condições institucionais vigentes até então no Brasil, não devemos exagerar na
avaliação sobre as suas repercussões na estrutura política da colônia, cujo “ponto de a-
104
poio” continuava a ser a distribuição de terras (Cf. Faoro, 1957: 123). De fato, permane-
ceria vigorando, sob a coordenação do Governo-geral, o municipalismo que caracterizava
a dinâmica política das capitanias (Cf. Faoro, 1957: 147), com o seu “simulacro de câma-
ras municipais” (Varnhagen, 1854-7a: 165), onde dominavam os proprietários rurais, sem
qualquer concorrência da sociedade civil (Cf. Prado Jr., 1933: 29-30). Neste sentido,
pouca repercussão imediata terá o estatuto político do Governo-geral no que tange à for-
mação da nacionalidade, uma vez que ele era praticamente infenso aos interesses da
grande maioria da população. É o que podemos deduzir, refletindo sobre o panorama
político resultante da instituição da centralização administrativa no Brasil, retratado de
maneira concisa por Caio Prado Jr.:
“Mantinha ela [a Coroa] na colônia apenas uma administração rudi-mentar, o estritamente necessário para não perder com ela todo o conta-to, e atendia a seus pedidos com a relutância e morosidade de quem não se decide a fazer grandes gastos com o que não lhe pagava o custo. Via-se por isso a administração colonial desarmada, a braços com a turbu-lência e arrogância dos colonos. (...) Deixavam-lhes no mais carta-branca para agirem da forma que melhor entendessem. Compreende-se tal atitude passiva da metrópole. Coincidiam perfeitamente seus inte-resses nestes primeiros anos da colonização com os das classes domi-nantes na colônia. (...) O Brasil colonial forma uma unidade somente no nome. Na realidade é um aglomerado de órgãos independentes, ligados entre si apenas pelo domínio comum, porém muito mais teórico do que real, da mesma metrópole” (Prado Jr., 1933: 28-30)
Um país delineado
Em que pese esse divórcio entre as estruturas do Estado e os seus cidadãos,
de resto uma característica perene do processo político brasileiro – “O Estado é, no Bra-
sil, um fator de dissolução”, sentenciará, mais tarde, Alberto Torres (Torres, 1914: 48) –,
a presença de um governante viria a estabelecer um parâmetro de liderança importante
para o “povo novo” que começava a gravitar em torno das vilas e engenhos que surgiam,
dispersos, pelo extenso território colonial. Numa ordem política mundial dominada pelo
absolutismo dos monarcas nacionais, a lassidão da estrutura institucional na colônia seria
105
contrabalançada pela referência personalista do governador-geral, representante d’el-rei
nas terras do ultramar. Realmente, a mentalidade política no Brasil quinhentista foi for-
temente influenciada pela figura dos governadores-gerais, como podemos deduzir da
crônica histórica produzida no período, estruturada sobre os atos dos mandatários execu-
tivos (Cf. Salvador, 1627).
Portanto, no que toca à formação nacional, a centralização do governo não
desempenhou um papel decisivo no progresso das instituições, mas os governadores-
gerais, atuando como fautores da consolidação territorial do país que surgia no trópico,
tornaram-se uma referência de liderança para o povo, que os percebia como o símbolo de
uma unidade que se impunha pela própria mentalidade política vigente na metrópole, o
primeiro Estado nacional europreu (Cf. Iglésias, 1993: 52). Neste sentido, os governado-
res-gerais representaram um elemento de ligação entre o “povo novo” e o território go-
vernado sob o seu bordão, na medida em que atuaram como líderes na formação e estabi-
lidade dos assentamentos coloniais e como capitães-mores nas guerras contra os inimigos
da ordem institucional implantada.
Um bom exemplo do que estamos falando é a legenda que se firmou sobre a
figura de Tomé de Sousa, o governador “companheiro e afável” (Salvador, 1627: 161)
que construiu a cidade do Salvador, capital do governo unificado. Na crônica histórica
daqueles tempos, o primeiro governador-geral desponta como um símbolo da ligação do
povo com a terra, pois se já não brotava no íntimo do governador o apego ao torrão que
governara com tanto afinco, começava a germinar na alma popular o sentimento básico
da nacionalidade, que sua governança dera azo a rebentar. A darmos crédito à saborosa
anedota que nos legou a verve de frei Vicente, o grande portador da tradição oral brasilei-
ra quinhentista, veremos que os cidadãos da comunidade em formação teriam no seu
primeiro governador uma referência expressiva para cultivarem o amor à terra que os
acolhia:
“Era Tomé de Sousa homem muito avisado e prudente e muito experi-
106
mentado (...); mas estava isso cá tão em agro e enfadava-se de labutar com degredados (...), que pediu com muita instância por muitas vezes a el-rei que lhe desse licença pera se tornar ao reino. E contudo é muito notar um dito que (entre outros que tinha mui galantes) disse quando lhe veio a licença. É costume nesta baía ir o meirinho do mar aos navi-os quando entram e trazer a nova ao governador, donde são e do que trazem. Como pois fosse em aquela ocasião e achasse que vinha suces-sor ao governador, tornou-se mui alegre a pedir-lhe alvíssaras, porque já eram cumpridos seus desejos e estava no porto novo governador. Respondeu-lhe ele depois de estar um pouco suspenso: Vedes isso, meirinho? verdade é que eu o desejava muito, e me crescia a água na boca quando cuidava em ir pera Portugal; mas não sei que é que agora se me seca a boca de tal modo que quero cuspir e não posso. Não deu o meirinho resposta a isto, e nem eu a dou, porque os leitores dêem a que lhes parecer.” (Salvador, 1627: 164)
Nossa resposta já demos, cometendo a suposição em epígrafe ao discurso do
frade baiano. Na Parte II, tentaremos fundamentá-la demonstrando que o sentimento fe-
cundado pela notoriedade do primeiro mandatário e do seu labor desabrochar-se-ia no
curso das lutas do “povo novo” da nação contra o invasor estrangeiro. Foi o que ocorreu
durante o longo governo de Mem de Sá (1558-1572), durante o qual processaram-se as
lutas pela salvaguarda do Rio de Janeiro (Cf. Capítulo 5), as quais, na feliz expressão de
Manoel Bomfim, renderiam “a primeira lição de patriotismo às novas gentes” (Bomfim,
1929: 209).
Mas, a ascendência dos governadores-gerais sobre o “povo novo” da nação
não se devia apenas à sua liderança nas campanhas pela salvaguarda do território, as
quais revelavam a sua ligação com o país. Podemos dizer que a própria sensibilidade de
alguns deles acerca das peculiaridades da vida na colônia lhes conferia notoriedade e
respeito, na medida em que suas ações revelavam uma identidade com ethos brasílico.
Esse é o caso do próprio Mem de Sá, “que com razão pode ser espelho de governadores
do Brasil, porque, concorrendo nele letras e esforço, se sinalou muito na guerra e justiça”
(Salvador, 1627: 171). De fato, em carta à regente de 30 de março de 1570, dirá o gover-
nador-geral: “Esta terra não se pode nem deve regular pelas leis e estilos do Reino. Se V.
A. não for muito fácil em perdoar, não terá gente no Brasil; e porque o ganhei de novo,
107
desejo que se ele conserve.” (Apud Varnhagen, 1854-7: 343).
Neste sentido, também é bastante significatio o caso do sétimo governador-
geral do Brasil, D. Francisco de Sousa, que governaria o país por onze anos (1591-1602).
Seu nome ficaria consignado na história pátria em virtude da conquista definitiva do Rio
Grande do Norte, do seu pioneirismo na pesquisa das minas (Cf. Varnhagen, 1981b
[1854-7]: 37) e de sua personalidade controversa, a qual lhe rendeu o epíteto de D. Fran-
cisco das Manhas (Cf. Salvador, 1627: 311 e Abreu, 1918: 236). Não nos deteremos na
abordagem destes dois primeiros aspectos, importantes para a nossa formação nacional,
mas não resistimos a reproduzir duas opiniões sobre a personalidade do governador, cuja
ambigüidade, a nosso ver, representa um traço emblemático de notável persistência na
tradição política brasileira:
“(...) foi o mais benquisto governador que houve no Brasil, junto com o ser mais respeitado e venerado; porque, com ser mui benigno e afável, conservava a sua autoridade e majestade admiravelmente. E sobre tudo o que fez mais famoso foi a sua liberalidade e magnificência, porque, tratando os mais do que hão de levar e guardar, ele só tratava do que havia de dar e gastar, e tão inimigo era do infame vício da avareza que, querendo fugir dele, passava muitas vezes o meio em que a virtude da liberalidade consiste e inclinava pera o extremo da prodigalidade, dava a bons e maus, pobres e ricos, sem lhes custar mais que pedi-lo (...). Não houve igreja que não pintasse, aceitando todas a confrarias que lhe ofereciam, murou a cidade de taipa de pilão que depois caiu com o tempo, e fez três ou quatro fortalezas de pedra e cal (...). E tudo então podia fazer porque tinha provisão de el-rei, pera que, quando não bas-tasse o dinheiro dos dízimos, que é só o que cá se gasta a el-rei, o pu-desse tomar de empréstimo de qualquer outra parte.” (Salvador, 1627: 311)
O “povo novo” da nação
Portanto, a presença dos governadores-gerais representou um importante e-
lemento de coesão para a população da colônia. Mas, quem eram essas gentes senão o
“povo novo” surgido como a resultante das duas rotas que operaram concomitantemente
no relacionamento entre brancos e índios no Brasil colonial, uma marcada pela fusão e
108
outra pela fricção entre as etnias fundamentais23? Se, por um lado, os processos de inte-
gração resultaram na formação de um povo indiscutivelmente miscigenado (Cf. Pena e
outros, 2000), portador de uma cultura efetivamente mesclada (Cf. Freyre, 1933), por
outro, os processos de enfrentamento redundaram em perdas humanas significativas entre
os colonos e influíram sobremaneira na expressiva depopulação experimentada pelos
povos nativos.
De qualquer maneira, tudo indica que a fusão entre as etnias operou hegemo-
nicamente no processo de formação nacional, em que nos pese todo o sangue derramado
no seu decorrer. Ora, a lição que os portugueses tiveram que aprender a partir do malogro
do plano colonizador de D. João III foi que uma política de enfrentamento aberto com os
índios era extremamente contraproducente. Na guerra, os índios eram mais destros e mais
numerosos e, apesar da flagrante inferioridade tecnológica, sua ação no campo de batalha
era infinitamente superior. Como vimos, muitos veteranos graduados da Índia pereceram
inapelavelmente sob as bordunas e táticas dos índios americanos. Por outro lado, ficou
claro que uma boa política de alianças, facilitada pela ênfase pessoalizante do “espírito”
de tupis e lusos, seria o caminho mais produtivo para o empreendimento colonizador. É o
que ficará evidente na implantação do Governo-geral.
Ou seja, dos dois “cursos de ação” alternativos para a colonização da terra, o
mais racional seria aquele que apontava para a cooperação entre os índios e os lusos e
este foi o que efetivamente prevaleceu. Sabemos que as guerras entre portugueses e ín-
dios – ou facções deles – permaneceriam ocorrendo, mas no primeiro ato coletivo decisi-
vo para a construção da nação – a definição das fronteiras territoriais e a garantia de sua
soberania frente ao invasor francês – a aliança militar entre índios e portugueses, prota-
gonizada por expoentes das primeiras gerações mamelucas, foi o fator decisivo. Depois,
23 Partimos da oposição entre os conceitos de “aculturação” (Galvão, 1953: 126, passim) e “fricção interét-nica” (Cardoso de Oliveira, 1964: 15-30 e 1967: 83, passim), base das principais perspectivas teóricas sobre o estudo das relações entre índios e brancos no Brasil, porque entendemos que somente uma síntese entre ambos poderá realmente esclarecer a lógica destas relações no Brasil colonial (Cf. Conclusão).
109
frente aos invasores holandeses, a mesma estratégia, enriquecida pela concorrência do
elemento africano, também assimilado ambiguamente ao “povo novo” da nação, garantiu
novamente a vitória brasileira, tornando-se ela o primeiro símbolo cívico para o povo
miscigenado que a construiu. Ora, diante da guerra brasílica, a primeira expressão do
“estilo brasileiro”, produzido pela fusão dos elementos humanos e culturais que entraram
no cadinho da formação nacional, dobraram-se franceses e holandeses, seus exércitos e
sua arrogância.
Esta será a história que contaremos nos capítulos seguintes, pois foi verdadei-
ramente no seu seio que primeiro se forjou a identidade entre os povos formadores e seus
descendentes, gerando, no calor da luta, os sentimentos germinais da nacionalidade: o
amor à terra e o orgulho da raça.
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Capítulo 5
A SALVAGUARDA DO RIO DE JANEIRO
A guerra do pau-brasil
É fato notório e suficientemente documentado que as investidas dos corsários
e piratas normandos e bretães eram freqüentes nos primeiros tempos da colonização do
Brasil. Com efeito, como bem notou Rocha Pitta, “os franceses, que não sabem perder
passo em adiantarem a glória da sua nação e o interesse do seu comércio, tendo notícia
do descobrimento do Novo Mundo e das suas riquezas, enviaram a ambas as Américas
muitas naus dispersas” (Rocha Pitta, 1730: 120). Temos demonstrado, inclusive, que a
ação dos franceses no Brasil era uma pedra no sapato da Coroa portuguesa e condiciona-
ra muitas de suas decisões político-administrativas em relação à colônia americana por-
que o intenso tráfico do pau de tinta, da pimenta, do algodão e de outros produtos que os
entrelopos franceses realizavam na costa brasílica não só sangrava os haveres del-rei,
como ameaçava a sua jurisdição no ultramar.
Contudo, nos primeiros tempos, a ação francesa era essencialmente dispersa e
transitória, não chegando a constituir risco imediato à soberania do território, pois a des-
peito das bem sucedidas alianças que os franceses cultivavam com os índios, instigando-
os contra os lusos e seus gentios amigos, as providências tomadas pela Coroa portuguesa
surtiam resultados eficazes, ainda que transitórios. Primeiro, as armadas de guarda-costa
e, depois, a própria ação dos donatários afugentavam os traficantes que, no entanto, trans-
feriam-se para outros pontos da extensa costa brasileira onde a presença portuguesa fa-
lhava e onde abundava o pau de tinta.
De fato, a situação das três principais manchas da ibirapitanga no litoral bra-
sileiro (Cf. Abreu, 1907: 69) ao final do governo de Tomé de Sousa reflete os esforços
envidados pela Coroa portuguesa para conter os franceses e a estratégia destes para man-
112
ter o seu comércio ilegal e as suas pretensões usurpadoras. Duarte Coelho havia enxotado
os entrelopos da costa de Pernambuco e eles passaram a realizar o contrabando nas terras
ao norte da ilha de Itamaracá, abandonadas por seus donatários, resgatando com os poti-
guaras, senhores da costa até o Maranhão. Das cercanias do rio Real debandaram os fran-
ceses em face da implantação da sede do Governo-geral em Salvador, assentada a poucas
léguas. Assim, o tráfico grosso se realizava nas terras desertas do setentrião, desde a Pa-
raíba até o Maranhão, e entre o cabo Frio e a baía de Guanabara, na negligenciada capi-
tania de Martim Afonso, como aliás denunciara o governador-geral a el-rei depois de sua
viagem de inspeção. Entretanto, se a ação francesa no norte permanecia caracterizada
pela transitoriedade, no sul ela se transformaria num cometimento com pretensões de
permanência: será exatamente na magnífica baía da Guanabara, durante o governo do
armeiro-mor D. Duarte da Costa (1553-1557), que a ação francesa no Brasil se agudizari-
a, com a empresa colonizadora de Nicolas Durand de Villegaignon, “ousado nauta, espí-
rito empreendedor e amigo da celebridade” (Varnhagen, 1854-7a: 185).
A instalação de uma colônia francesa no Brasil
Numa Europa excitada pelo Mercantilismo, sacudida por rivalidades entre as
dinastias nacionais e dominada pelo cisma entre católicos e protestantes, argumentos
religiosos eram um poderoso pretexto para animar intentos imperialistas. O arguto Ville-
gaignon soube, como poucos, tirar proveito disso. Esse cavaleiro de Malta, que conquis-
tara sua credibilidade a partir de uma brilhante carreira militar, projetava um empreendi-
mento na América, entusiasmado com as notícias e rendimentos que seus conterrâneos
colhiam no Novo Mundo (Cf. Holanda & Pantaleão, 1989: 148). Porém, o vice-almirante
da Bretanha não tinha recursos para a empreitada e houve por bem recorrer ao superior
de sua Arma, o almirante Gaspar de Coligny, objetivando conseguir um fautor para os
seus intentos. Ia Villegaignon com um raciocínio engenhoso. Pretendia fundar uma colô-
nia na América que fosse um asilo para os praticantes da religião reformada e o empre-
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endimento seria do mais alto interesse para a Coroa francesa, por dois motivos: distende-
ria o ambiente interno da nação e, concomitantemente, criaria uma nova frente para ar-
rostar os rivais castelhanos, desviando para a América recursos bélicos da Espanha, a
mais poderosa potência militar do momento (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 285).
O argumento seduziu Coligny e o projeto foi aprovado por Henrique II, que
cedeu dois navios a Villegaignon para a expedição. Assim, a 10 de julho de 1555, o vice-
almirante partia do porto de Havre da Graça para a América (Cf. Barré, 1556: 109), co-
mandando uma tripulação de seiscentos homens (Cf. Calmon, 1950: 121) e, depois de
uma viagem repleta de percalços (Cf. Thevet, 1557: 17-87), chegaram os expedicionários
ao seu destino. O dominicano que vinha ajudar Villegaignon a fundar o asilo para calvi-
nistas, relata como se deu a fundação da colônia:
“(...) a dez de novembro [de 1555], encontramos a barra de um grande rio chamado de Guanabara, pelos nativos (devido à sua semelhança com um lago) e de Rio de Janeiro pelos primeiros descobridores do lo-cal. (...) Fomos imediatamente recebidos pelos habitantes da maneira mais hospitaleira possível. (...) Depois de permanecermos ali pelo espa-ço de dois meses, durante os quais procedemos ao exame de todas as ilhas e sítios da terra firme, batizou-se toda a região circunvizinha, que fora por nós descoberta de França Antártica.” (Thevet, 1557: 93-4)
Escolheu-se uma ilhota, que ainda hoje guarda o nome do vice-almirante, pa-
ra o estabelecimento da praça, a qual foi batizada de forte de Coligny. De imediato, uma
franca amizade foi firmada entre os franceses e os tupinambás vizinhos, os tamoios do
Rio de Janeiro (Cf. Thevet, 1557: 94). Mas a colônia teria uma vida atribulada: a rigorosa
proibição da prática da mancebia com as índias – exigência do puritanismo que servira de
pretexto para a instalação do assentamento – e as diferenças entre católicos e protestantes
motivaram conspirações e motins, que culminaram num cisma na comunidade, depois da
chegada, em março de 1557, da expedição chefiada por Bois le Comte, sobrinho do co-
mandante, que trazia um reforço de 290 calvinistas, entre os quais Jean de Léry (Cf.
Calmon, 1950: 121).
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Villegaignon, que procurava manter uma eqüidistância pragmática entre os
prosélitos, foi vítima do seu próprio estratagema e teve que deixar a colônia em 1558
para se defender na corte das acusações que lhe assacavam tanto católicos quanto hugue-
notes. Naquele momento, já se preparavam os lusos para arremeter contra os invasores
que, divididos e sem o acutilado líder militar, deixavam vulneráveis os aliados tamoios
aos ataques dos maracajás seus rivais e franqueavam sua bastilha à ação dos restaurado-
res. Reféns de suas próprias contradições e enfraquecidos pela cizânia que cultivavam, os
franceses veriam, em breve, sua experiência colonizadora no Brasil ser pulverizada pelos
ferros do governador-geral e pelas flechas dos seus índios confederados.
O governador Mem de Sá e a restauração do Rio de Janeiro
Entretanto, não seria o protagonista da campanha o autocrático D. Duarte da
Costa, mais interessado em suas picuinhas com o prelado e em deixar a colônia no mais
breve tempo (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 288) do que com a investida francesa sobre o ter-
ritório sob sua responsabilidade. “O desembargador Mem de Sá, fidalgo da Casa e do
Conselho do Rei, irmão do conhecido poeta Francisco de Sá de Miranda” (Varnhagen,
1854-7a: 299), é que viria desempenhar o papel principal na expugnação da França An-
tártica.
O terceiro governador-geral do Brasil tomou posse na Bahia a 3 de janeiro de
1558 e, malgrado a urgência de empreender a campanha contra os franceses – um dos
principais pontos do seu programa administrativo (Cf. Holanda & Pantaleão, 1989: 158)
–, teria antes que resolver as inúmeras pendências que seu antecessor lhe legara, como
dar conta de uma batelada de demandas judiciais (Cf. Nóbrega, 1549-60: 203) e intervir
nas diversas situações de conflito entre índios e colonos que grassavam desde a Bahia até
o Espírito Santo (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 300, passim). Além do mais, deveria imple-
mentar imediatamente a nova política de tratamento aos índios definida pela regente D.
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Catarina24, a conversão do gentio pela catequese dos padres da Companhia (Cf. Varnha-
gen, 1854-7a: 303).
Somente com a chegada à Bahia da armada de Bartolomeu de Vasconcelos
da Cunha, em 30 de novembro de 1559 (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 314), é que Mem de Sá
começaria a dar execução ao plano de ataque aos franceses. O reforço mandado pela re-
gente, contudo, não seria a peça militar decisiva na campanha, pois como afirmou o go-
vernador em seu Instrumento, “fui com muita pequena armada e pouca gente ao menos
do Reino que não trazia mais que gente do mar” (apud Varnhagen, 1854-7a: 315). Assim,
o exército comandado por Mem de Sá incluía “alguma gente voluntária que o quis se-
guir” (Rocha Pitta, 1730: 122), mas o grosso do efetivo era composto de índios: com a
ajuda do novo bispo e dos jesuítas, o governador-geral reuniu os “gentios aliados” da
Bahia e determinou que, em São Vicente, se preparassem os colonos dispostos e os cano-
eiros amigos para a batalha (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 285).
A expedição restauradora partiu do porto de Salvador a 16 de janeiro de 1560
e, fundeada a armada na baía de Guanabara a 21 do mês seguinte, o governador enviou
intimação a Bois le Comte para que se rendesse (Cf. Salvador, 1627: 176). Como lhe
“responderam soberbamente” (Varnhagen, 1854-7a: 305), aguardou o Mem de Sá que se
lhe reunissem os reforços vindos de São Vicente para arremeter contra os franceses a-
quartelados onde, segundo um escritor contemporâneo anônimo, “tudo o que é ilha era
fortaleza, e tudo o que era fortaleza ilha, e toda exceto um pequeno porto na praia era
cercada de penedia brava” (Instrumento de Mem de Sá apud Varnhagen, 1854-7a: 305).
O recontro, ferido a 15 de março, “jurou Sebastião Álvares, testemunha ocu-
lar, durou a sexta-feira depois do meio dia em diante e toda a noite seguinte, e ao sábado
todo o dia” (Instrumento de Mem de Sá apud Varnhagen, 1854-7a: 305). Segundo frei
Vicente, a ação decisiva deu-se na noite do sábado, quando “Manuel Coutinho, homem
24 D. João III morreu a 11 de junho de 1557 (Cf. Varnhagen, 1854-7e: 241) e, como D. Sebastião contava apenas 14 anos de idade (Cf. Rocha Pitta, 1730: 133), assumiu a regência sua mãe, D. Catarina.
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pardo, Afonso Dias Diabo e outros valentes soldados portugueses, subindo por uma parte
que parecia inacessível, entraram o castelo e ocuparam repentinamente a pólvora do ini-
migo” (Salvador, 1627: 176, ênfase nossa; cf. Abreu, 1906: 317-8). Sitiados pela tropa
restauradora, vendo sua munição seqüestrada e já sem água, que na ilha não havia nas-
centes, os franceses bateram em retirada, navegando em canoas para as terras dos tamoi-
os seus amigos. Mem de Sá relatou a expugnação à regente, no Instrumento que lhe en-
viou:
“(...) no meio do dia combati contra vontade dos da armada do Reino e do seu capitão-mor e dos mais capitães a fortaleza por todas as partes (...). E posto que defendeu a entrada com muitos tiros d’artilharia gros-sa que tinha, saí em terra e combatemos as duas fortalezas que na ilhota estavam feitas, estando com mais de 120 franceses e 1.500 índios, os quais duas vezes saíram a nós e pelejaram esforçadamente e por morre-rem muitos franceses e lhe termos tomado uma fortaleza e não cessa-mos de combater a outra, se saíram de noite em canoas e nos deixaram uma das mais fortes fortalezas da Cristandade, com muita e fermosa ar-tilharia de metal e outra muita de ferro coado, com muita pólvora e ou-tras munições, e navios de remos que faziam para correr a costa.” (Ins-trumento de Mem de Sá apud Varnhagen, 1854-7a: 315-6)
De acordo com o padre Manoel da Nóbrega, “o grande animador desse com-
bate” (Holanda & Pantaleão, 1989: 159), limpa a baía dos franceses, que “fugiram todos”
(Nóbrega, 1549-60: 225), Mem de Sá destruiu a fortaleza “e o que dela podia derrubar,
por não ter o governador gente para logo povoar e fortificar como convinha” (Nóbrega,
1549-60: 225). Depois, “deu em uma aldeia de índios e matou a muitos” (Nóbrega, 1549-
60: 225), retirando-se, em seguida, para São Vicente, onde determinou, acolhendo ins-
tâncias do padre Nóbrega, a mudança da vila de Santo André da Borda do Campo para
junto do colégio jesuíta, dando o governador termo à vila de São Paulo de Piratininga
(Cf. Madre de Deus, 1797: 125).
Os derrotados, contudo, se enfurnaram pelos matos, asilando-se nas aldeias
dos tupinambás-tamoios. É certo que a sua França Antártica fora desbaratada, mas os
franceses, estes e ainda outros, permaneceriam por muito tempo nas redondezas da baía
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da Guanabara, realizando o comércio ilícito na sua forma tradicional. E os portugueses,
incapazes de estabelecer um assentamento fixo no local, teriam que aturar por ainda al-
guns anos a intromissão estrangeira no seu terreno, o que colocava em risco não apenas
as terras do Rio de Janeiro como a própria capitania de São Vicente.
A fundação da cidade de São Sebastião
Imediatamente depois da expugnação da fortaleza de Villegaignon, os tamoi-
os, aferroados pela lembrança da derrota que sofreram e açulados pelos franceses, come-
çaram a se preparar para vingarem-se de seus contrários da vizinha capitania de São Vi-
cente. Assim que restauraram suas cercas, aqueles tamoios passaram a convocar seus
aliados para afrontar os odiados inimigos e, enquanto os franceses iam se restabelecendo
nas redondezas da baía de Guanabara, construindo suas casas e plantando suas roças, iam
os tamoios “ salteando os índios novos cristãos, prendendo, matando e comendo a quan-
tos podiam alcançar” (Salvador, 1627: 180). Por volta de 1563, as arremetidas dos tupi-
nambás chegaram a tal monta que o padre Nóbrega, então superior do Colégio de São
Paulo, decidiu empreender missão entre as hostes dos agressores. Foi em pessoa, junta-
mente com o irmão José de Anchieta, que já se tornara um exímio língua, tentar apazi-
guar os ânimos dos tamoios (Cf. Franco, 1718: 45). Ao que tudo indica, a missão dos
religiosos fazia parte do plano articulado por Mem de Sá para garantir definitivamente a
soberania lusa sobre as terras pretendidas pelos franceses e afastar o perigo das capitanias
confinantes – a fundação de uma cidade às margens da baía de Guanabara.
Com efeito, Nóbrega e Anchieta dirigiram-se à Iperoig, nas cercanias de Uba-
tuba, onde moravam tupinambás parentes e aliados daqueles que foram derrotados pelo
governador-geral, mas de aldeias que não estiveram envolvidas diretamente na contenda.
O bem-sucedido trabalho de pacificação dos índios teria uma importância estratégica
para os intentos de Mem de Sá: “estes fronteiros nunca tornaram atrás, antes quebrando
as pazes os do Rio de Janeiro e Cabo Frio, que era toda a multidão dos tamoios, estes se
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foram para o sertão, pelos não ajudar contra os portugueses” (Cf. Franco, 1718: 49).
Entrementes, partira do reino uma frota armada com o objetivo de auxiliar o
governador-geral na colonização do Rio de Janeiro (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 311), tendo
como capitão-mor Estácio de Sá, um jovem de 17 anos (Cf. Abreu, 1918: 152), sobrinho
do governador e que o auxiliara na campanha contra Villegaignon (Cf. Varnhagen, 1854-
7a: 311). Depois de passar pela Bahia e agregar os reforços preparados pelo governador-
geral, a armada fez uma escala no Espírito Santo, onde embarcaram Araribóia25 e seus
guerreiros, amigos dos portugueses e antigos moradores da baía de Guanabara, expulsos
daquele recanto pelos tamoios, seus opositores imemoriais. Dali, seguiram todos em di-
reção ao Rio de Janeiro, com o objetivo de desarticular a aliança galo-tamoia e fundar a
colônia.
Contudo, muita dificuldade teve Estácio de Sá para cumprir prontamente o
seu objetivo pois, com a armada fundeada na baía, em fevereiro de 1564, sofreu porfiada
resistência dos tamoios e franceses, que impediram o desembarque. Por isso, o jovem
capitão mandou um pequeno navio a São Vicente para solicitar os préstimos do padre
Nóbrega, já então um experiente conselheiro nas coisas brasílicas. O provincial, nova-
mente acompanhado pelo expedito irmão José de Anchieta, chegou à cena dos aconteci-
mentos em fins de março, onde tomou conhecimento da precária condição das forças
luso-brasílicas. A base portuguesa na ilha de Villegaignon estava destroçada e somente
com mais reforços seria possível empreender o plano do governador-geral. Em vista dis-
so, tornaram a São Vicente com o objetivo de mobilizar mais homens e recursos para a
empreitada e, em janeiro de 1565, partiria a expedição restauradora, com um expressivo
contingente:
“Todas as canoas em estado de se armarem em guerra, quando manti-
25 “Nos cronistas o nome Ararybóia, Ararigbóia, ou melhor, Araigboia, vem como significando cobra feroz; mas decompondo-se o vocábulo tupi, acha-se araib, tempo mau, tempestade, tormenta e bói, cobra: cobra do mau tempo ou da tempestade, que assim chamavam os índios uma serpente aquática, esverdeada e de cabeça escura, cujo grunhir para eles prenunciava mau tempo.” (Garcia, 1925: 196).
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mento se pôde juntar, para dois ou três meses de sustento aos trezentos homens da expedição (Anchieta, carta de 9 de junho de 1565). (...) quanta gente, enfim podia combater, casados e solteiros, anciãos e ado-lescentes, muitos escravos de Guiné, e até os índios em quem deposita-vam maior confiança (...).” (Varnhagen, 1854-7a: 312-3)
Em inícios de março, depois de uma conturbada viagem desde São Vicente
(Cf. Abreu, 1906: 337-8), Estácio de Sá desembarcou logo na entrada da baía de Guana-
bara e, na várzea estrategicamente localizada entre o morro Cara de Cão e os penhascos
do Pão de Açúcar e da Urca (Cf. Abreu, 1906: 324), lançou as fundações da cidade, “de-
nominando-a de São Sebastião, em memória do jovem rei” (Varnhagen, 1854-7a: 325).
Estava realizada a determinação do governador-geral e restava agora se fazer cumprir
seus intentos maiores em relação ao Rio de Janeiro e seu entorno: expulsar os franceses,
pacificar os tamoios e estabelecer uma colônia estável no local.
A defesa do Rio de Janeiro
Desde os primeiros dias, a cerca levantada por Estácio de Sá foi sistematica-
mente arrostada pelas canoas dos tamoios e pelas naus francesas e, durante dois anos, a
defesa do assentamento foi submetida a duras provas, pois os tupinambás da baía de
Guanabara e do cabo Frio, imbuídos do profundo sentimento de honra que caracteriza o
ethos tupi, eram fidelíssimos amigos dos franceses e enérgicos inimigos dos portugueses
e dos maracajás seus aliados (Cf. Thevet, 1557, passim; Léry, 1578, passim). Por isso,
praticamente sitiados na fortificação pelos franceses e tamoios, os colonos pouco podiam
fazer para salvaguardar a cidade do Rio de Janeiro e consolidar a soberania lusitana na
região e terras confinantes, ainda mais porque mostrou-se impossível fixar os índios ami-
gos na região, os quais se retiraram, novamente, para o Espírito Santo.
Disso estava informado o governador-geral, que decidiu intervir pessoalmen-
te no Rio de Janeiro, solicitando o auxílio da Coroa para que o problema se resolvesse de
uma vez por todas. Assim, em fins de 1566 chegava à Bahia uma armada de socorro en-
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viada do reino, à qual se juntaram o contigente e aprestos mobilizados pelo governador-
geral e “cem homens e alguns mantimentos” mandados pelo donatário de Pernambuco
(Cf. Varnhagen, 1854-7a: 327) que, como se sabe, se mantivera como uma espécie de
protetorado no seio da colônia unificada. Mas a situação do Rio de Janeiro estimava mai-
ores cuidados, pois os tamoios que dominavam o terreno eram numerosíssimos e, auxili-
ados pelos franceses, formavam um exército temível. Assim, embora a célebre Confede-
ração dos Tamoios tivesse sido inviabilizada pela ação de Nóbrega e Anchieta em Iperoig
(Cf. Bomfim, 1929: 97), somente uma aliança militar com índios amigos proporcionaria
as condições necessárias para o sucesso a campanha.
Ora, já sabemos que os tradicionais inimigos dos tamoios eram os temiminós
(Cf. Thevet, 1557 e Léry, 1578) – ou maracajás – que ocupavam a grande ilha de Parana-
pecu (hoje, do Governador) até serem expulsos do Rio de Janeiro por seus opositores
imemoriais, fortalecidos pela aliança que mantinham com os franceses (Cf. Abreu, 1906:
328). Seriam estes índios a “gentil gente” que Pero Lopes (Apud Varnhagen, 1854-7a:
126) encontrara em 1531 no Rio de Janeiro, pois Martim Afonso de Sousa fizera seu afi-
lhado o chefe Araribóia, que tomaria o nome cristão do “padrinho e senhor” depois de
batizado (Cf. Salvador, 1627: 194). Servindo-se desse valimento, Mem de Sá, que já
houvera mobilizado Araribóia e seus guerreiros para a campanha contra Villegaignon,
estabeleceu outra aliança com o chefe temiminó, fundamentada, ao que tudo indica, em
garantias para que seu povo novamente se fixasse na baía de Guanabara.
A dura batalha contra os tamoios e os franceses remanescentes da expugna-
ção da França Antártica feriu-se entre 17 e 19 de janeiro de 1567, às vésperas do dia de-
dicado a São Sebastião. Segundo Manuel Bomfim, a “tática de Araribóia” garantiu o su-
cesso da empreitada de lusos e temiminós, que redundou na retirada dos franceses para o
cabo Frio (Cf. Bomfim, 1929: 97; Salvador, 1627: 194-5), mas que custaria a vida de
Estácio de Sá, colhido no rosto por uma flecha ervada (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 328-9;
Rocha Pitta, 1730: 129).
121
Depois de ver o sobrinho agonizar por um mês antes de morrer e de se certi-
ficar de que os franceses estavam realmente rechaçados da baía e os tamoios acantonados
em suas aldeias, o governador-geral decidiu mudar de local o assentamento colonial do
Rio de Janeiro. O recanto escolhido por Estácio de Sá era perfeitamente adequado para
hospedar uma cidadela no terreno ocupado pelo inimigo, mas a consolidação de uma
cidade no território restaurado demandava local mais conveniente. Sendo assim, Mem de
Sá determinou que a colônia fosse transferida mais para dentro da enseada, em local pró-
ximo ao ancoradouro natural, e a instalou sobre o morro do Castelo, em 1º de março de
1567. A cidade, “cercada de trasto de vinte palmos de largo e outros tantos de altura, toda
cercada de muro por cima com muitos baluartes e fortes cheio de artilharia” (Instrumen-
to de Mem de Sá apud Abreu, 1906: 340) comportou a “Sé de três naves”, a casa dos
jesuítas, a cadeia, os armazéns da fazenda real e para depósitos gerais, a casa da câmara e
“outras muitas casas telhadas e sobradadas (Instrumento de Mem de Sá apud Abreu,
1906: 340). Em seguida, o governador doou sesmarias “em nome do rei e sem satisfações
algumas ao donatário” (Varnhagen, 1854-7a: 331), indicando, como bem esclarece Var-
nhagen, que depois de fundada a cidade, a capitania do Rio de Janeiro seria considerada
“como toda a província da Bahia, exclusivamente da Coroa” (Varnhagen, 1854-7a: 331).
Araribóia e a coalizão temiminó
Segundo carta de doação conhecida, em 16 de março de 1569 o governador-
geral doou para Araribóia uma sesmaria “de uma légua de terra sobre a baía, e duas pela
terra dentro, na margem fronteira da cidade” (Varnhagen, 1854-7a: 330). Era a contrapar-
tida no acordo firmado com o chefe temiminó para a campanha, pois como ressalta Var-
nhagen, as terras serviriam para Araribóia “estabelecer-se no Rio de Janeiro, com toda a
sua família, parentela e índios” (Varnhagen, 1854-7a: 330). Os temiminós se reinstalaram
na baía de Guanabara e Araribóia continuaria desempenhando um papel importante na
vida da colônia nascente, pois sua liderança e reputação respeitavam índios e colonos.
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Aliás, D. Sebastião, em reconhecimento pelos “grandes serviços que prestou”, fizera o
chefe maracajá Cavaleiro da Ordem de Cristo, investindo-o do hábito e da patente de
capitão-mor de sua aldeia, com o padrão de 12$000 (Cf. Garcia, 1925: 195).
Para se ter uma idéia do prestígio de que gozava o chefe, ou pelo menos da
legenda que se propagou a partir de sua participação na conquista e salvaguarda do Rio
de Janeiro, vale lembrarmos mais uma anedota que perpetuou frei Vicente26. Conta o fra-
de baiano que quando Antônio de Salema foi assumir o posto de governador da partição
sul da colônia, dividida administrativamente por D. Sebastião em 10 de dezembro de
1572 (Cf. carta régia in Varnhagen, 1854-7a: 358-9), receberam-no o capitão-mor, os
colonos e os “índios principais, sendo o primeiro e principalíssimo Martim Afonso de
Sousa, Araribóia” (Salvador, 1627: 217), a quem foi oferecida uma cadeira. Araribóia se
abancara no assento de pernas cruzadas, “segundo o seu costume” (Salvador, 1627: 217),
e o governador teria se apoquentado com a postura do índio, ordenando a um intérprete
que o advertisse de “que não era aquela boa cortesia quando falava com um governador,
que representava a pessoa de el-rei” (Salvador, 1627: 217). A reação de Araribóia foi
peremptória:
“Respondeu o índio de repente, não sem cólera e arrogância, dizendo-lhe: ‘Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi a el-rei, não estranharas dar-lhe agora este pequeno descanso; mas, já que me achas pouco cortesão, eu me vou pera minha aldeia, on-de nós não curamos desses pontos e não tornarei mais à tua corte’. Po-rém nunca deixou de se achar com os seus em todas as ocasiões que o ocupou.” (Salvador, 1627: 217)
Ora, Araribóia se comportava como o líder de uma força em coalizão que se
encontrava com um líder da facção aliada e não como o chefe de um grupo de subalter-
nos do governador-geral. Era um bravo guerreiro temiminó, um inimigo mortal dos ta-
26 Capistrano sugere que a anedota “deve proceder da tradição oral” (Abreu, 1918: 149), mas o episódio pode ter sido relatado no livro perdido de Antônio de Salema, do qual “dá razão não só Gabriel Soares, e com ele Mariz e Barbosa, mas também frei Vicente do Salvador, que recomendava a Salvador Correia o
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moios e um acutilado veterano do exército de Sua Majestade. Ele sabia que sua ação no
campo de batalha concorrera decisivamente para uma dupla vitória – a de seu povo sobre
os tamoios e a de seus aliados sobre os franceses – e a manutenção do acordo com os
portugueses era um ponto vital para ambas as partes: os portugueses dele não podiam
prescindir para sustentar as posições conquistadas e os temiminós dele dependiam para
garantir o seu território recuperado.
Portanto, o desfecho desse episódio abona, ainda que emblematicamente,
nossa suposição mais geral de que, nos pródromos da formação nacional, a relação entre
índios e brancos era condicionada muito mais pela oposição entre “aliados” e “inimigos”
do que por clivagens étnicas diacríticas, o que teria garantido a estabilidade da coloniza-
ção lusa, favorecido a sobrevivência de algumas populações nativas e fomentado a for-
mação de uma consciência “unionista” entre o povo misto que fundava a nação. Quer
dizer, para além da já corriqueira relação entre índios, índias, lusos e a sua descendência
comum, havia uma correlação de forças que impunha, naturalmente, composições inte-
rétnicas estratégicas para fazer face às clivagens intraétnicas mais fundamentais, pelo
menos conjunturalmente. As divisões que mantinham entre si europeus, por um lado, e
índios, por outro, era o foco dos litígios em relação a seus interesses mais urgentes – a-
queles disputavam a posse do território, estes cultivavam suas rivalidades imemoriais – e
as diferenças globais óbvias entre índios e europeus tinham que ser reduzidas pragmati-
camente para que uma coalizão entre os grupos com o mesmo interesse imediato lhes
garantisse a consecução dos seus objetivos mais prementes.
Por outro lado, para homens que antepunham a honra pessoal a todos os ou-
tros critérios éticos do comportamento, a associação pragmática para a guerra redundaria
em fortes laços de lealdade entre as partes, ademais fomentados por uma convivência
estreita, quando não íntima, indispensável para a manutenção da estabilidade dos assen-
tamentos aliados no contexto belicoso em que estavam instalados. A reação de Araribóia
livro ‘sobre a história do Rio de Janeiro que fez o Salema’.” (Varnhagen, 1854-7a: 373).
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à indelicadeza de Salema revela, portanto, que o chefe temiminó podia manter a sua alti-
vez de bravo frente ao português seu aliado, respondendo às exigências de sua cultura,
mas já não podia afirmá-la através da ruptura da coalizão que agora a sustentava, como
mandava o costume de seus avós, porque isso colocaria em risco a própria integridade do
povo que liderava. Os tempos eram outros e a retórica de Araribóia afrontava um gover-
nador que teria que engolir o jeito de ser do chefe temiminó para garantir a estabilidade
da colônia lusa do Rio de Janeiro, mas o índio não poderia fazer dela uma arma e romper
definitivamente o acordo que fazia com que este jeito de ser, característico do seu povo,
perdurasse sobrevivo no conturbado ambiente americano do século XVI.
“A primeira lição de patriotismo às novas gentes”
Mas, além dessas repercussões objetivas, cruciais para a fundação da nacio-
nalidade – a salvaguarda do Rio de Janeiro, a garantia da integridade dos temiminós e a
articulação de laços de reciprocidade e lealdade entre lusos e tupis – a luta pela preserva-
ção do Rio de Janeiro tornar-se-ia um símbolo importante na gênese de uma consciência
cívica no quinhentismo brasileiro. A expulsão dos franceses da baía de Guanabara tornar-
se-ia a primeira expressão, na colônia americana, da utopia mística que agasalhou a na-
cionalidade portuguesa sob o domínio de Castela e que deu ensejo aos primeiros lumes
da consciência nacional brasileira.
Como se sabe, a morte de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, em
1578, e os problemas sucessórios dela decorrentes, dariam ensejo a que as ambições im-
perialistas de Filipe II de Espanha se efetivassem, através da anexação de Portugal à Co-
roa de Castela (Cf. Wright & Mello, 1989: 177). Entretanto, durante os sessenta anos da
“União Peninsular”, a consciência nacional portuguesa resistiria ao domínio castelhano,
refugiando-se no sonho da volta do Rei Desejado, cuja lógica Rocha Pitta, o mais lusita-
no de todos os historiadores brasileiros, desvendou com mestria:
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“(...) suspiravam os portugueses na antonomásia de Sebastianistas, dis-farçando com a vinda de um rei desaparecido a ânsia de outro rei dese-jado. Com o nome se livraram de parecer inconfidentes ao monarca es-tranho, e com a esperança conservaram a lealdade ao natural.” (Rocha Pitta, 1730: 216)
No Brasil, essa resistência dissimulada ao domínio espanhol, condizente com
o perfil conciliador e ao mesmo tempo pragmático do nosso comportamento político,
seria elaborada de maneira especial, pois a usurpação do trono aqui seria sentida de ma-
neira menos nostálgica e mais premonitória. Ora, a lealdade régia era aqui mais difusa,
fato natural entre súditos tão apartados do seu monarca, e o domínio de um rei estrangei-
ro doeria menos ao povo cuja identidade se construía mais sob os influxos do trópico do
que sob os eflúvios da Ibéria. Ademais, passados já oitenta anos do Descobrimento e
trinta da instalação do Governo-geral, a extensa colônia começava a se consolidar eco-
nômica e institucionalmente e insinuava-se entre as gerações nascidas na América portu-
guesa e entre os reinóis que a adotaram como domicílio, o sentimento de que o Brasil já
era uma entidade territorial com identidade própria e que, inclusive, a possessão no ul-
tramar poderia vir a redimir o pequeno reino usurpado27.
Anterior à própria comoção provocada pela morte do Rei Desejado, a recupe-
ração do Rio de Janeiro – marco da luta pertinaz pela salvaguarda do território ameaçado
pelos franceses – veicularia uma simbologia sebastianista que, já enunciada na toponímia
da nova cidade, se consolidaria como um elemento importante na elaboração do mito de
origem da nacionalidade. Neste sentido, a vitória da coalizão luso-temiminó sobre a ali-
ança galo-tamoia na luta pela salvaguarda do Rio de Janeiro seria incorporada à tradição
histórica brasileira por sua importância intrínseca – a expulsão dos franceses da baía de
Guanabara – mas seria a legenda que se criou sobre ela a principal responsável por sua
perpetuação na memória popular – São Sebastião, em pessoa, teria participado na vitória
27 Como veremos na Parte III, esse sentimento foi elaborado de maneira extremamente positiva pela nossa primeira geração de literatos, surgida no último quartel do século XVI (Cf. p. 209, passim).
126
de portugueses e temiminós contra franceses e tamoios. O que tornou o fato relevante
para a formulação da nacionalidade, portanto, não foi apenas a sua casuística objetiva,
mas a alta “eficácia simbólica”28 do mito que o perpetuou: na defesa do território nacio-
nal por índios e lusos, “a Divina Providência se acostou à parte mais justificada” (Salva-
dor, 1627: 182).
É claro que a expulsão dos franceses foi um evento determinante na consoli-
dação da unidade do território, o que é, como já afirmamos, um dos critérios básicos da
formulação da nacionalidade, mas será a sua reprodução como um mito que fará dele um
dos elementos decisivos na formação do sentimento nacional brasileiro. Neste sentido,
pouco importa que a primeira versão do mito, narrada por frei Vicente, se refira à “bata-
lha das canoas”, ferida antes da chegada de Mem de Sá com os reforços que possibilitari-
am a vitória cabal sobre os franceses e tamoios. Seria a narrativa do frade baiano a versão
de referência do mito, pois a história que ele conta é a expressão primeva da estrutura
simbólica que lhe conferiu a “eficácia” necessária para a sua perpetuação29. Vejamos,
pois, como o frade baiano formulou a sua versão do fato.
Segundo frei Vicente, “cansados já os tamoios de tão prolixa guerra (...), de-
terminaram lançar o resto de seu poder e de sua ventura em uma batalha, industriados
pelos franceses” (Salvador, 1627: 182). Construíram secretamente cento e oitenta canoas,
posicionaram a frota em uma volta de mar, de maneira que ficasse oculta e, em seguida,
um pequeno número delas saiu do esconderijo para atrair as canoas luso-brasílicas que
patrulhavam a baía. Enganadas pelo ardil, as nossas guarnições viram-se irremediavel-
28 Estamos usando o conceito na acepção proposta por Lévi-Strauss: a “eficácia simbólica” é a propriedade do mito que faz dele uma realidade sociológica relevante para a ação dos sujeitos: “o poder traumatizante de uma situação qualquer não pode resultar de seus caracteres intrínsecos, mas da aptidão de certos aconte-cimentos, que surgem num contexto psicológico, histórico e social apropriado, para induzir uma cristaliza-ção afetiva, que se faz no molde de uma estrutura preexistente.” (Lévi-Strauss, 1949: 234). 29 “(...) o valor intrínseco atribuído ao mito provém de que estes acontecimentos, que decorrem suposta-mente em um momento do tempo, formam também uma estrutura permanente. (...) A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que é relatada. (...) Não existe versão ‘verdadeira’, da qual todas as outras seriam cópias ou ecos deformados. Todas as versões pertencem ao mito.” (Lévi-Strauss, 1955: 241-52).
127
mente cercadas pela frota tamoia, mas uma circunstância feliz mudaria o curso da bata-
lha: “acaso acendendo-se a pólvora em uma das nossas canoas, chamuscou a alguns dos
inimigos (...). Com o que (...) se alterou tanto a mulher do general tamoio que, dando
gritos e vozes espantosas, atemorizou a todos” (Salvador, 1627: 183), provocando a dis-
persão da frota agressora e a retirada vitoriosa dos luso-brasílicos. O episódio, que a acu-
idade do frade historiador tão objetivamente reproduziu, adquiriria “eficácia simbólica”
exatamente a partir da discussão que suscitou entre as facções litigantes, fato que também
não escapou ao crivo do nosso primeiro pensador social:
“(...) os nossos, tornando às suas fronteiras, deram graças a Deus por tão grande benefício, e por os haver livres de perigo tão grande pela voz e assombro de uma mulher fraca, ainda que depois declararam os mesmos inimigos que não fora por isto, senão por haverem visto um combatente estranho, de notável postura e beleza que, saltando atrevi-damente nas suas canoas, os enchera de medo. Donde creram os portu-gueses que era o bem-aventurado São Sebastião, a quem haviam toma-do por padroeiro desta guerra.” (Salvador, 1627: 183)
Rocha Pitta é o portador da segunda versão do mito, já construída sobre a vi-
tória de Mem de Sá em 1567. O mito, assim narrado, é ainda mais convincente no que se
refere à formulação da nacionalidade, pois articula a vitória sobre os franceses, a funda-
ção da cidade do Rio de Janeiro – no tempo de Rocha Pitta, uma, senão a mais importan-
te cidade da colônia (Cf. Azevedo, 1956: 49-53) – com a motivação mística fundamental
para a sensibilização da mentalidade da época:
“Fundou logo o governador Mem de Sá a cidade em lugar mais emi-nente (...); deu-lhe o nome de S. Sebastião, a cujo patrocínio atribuíram todos aquela vitória, em que houve indícios certos (...), fora nela capi-tão; sendo por muitas pessoas visto no combate pelejar diante dos por-tugueses um mancebo tão valoroso, quanto desconhecido, que a pieda-de e devoção julgou ser o glorioso Santo, ao qual haviam tomado por protetor.” (Rocha Pitta, 1730: 129).
O Visconde de Porto Seguro, por seu turno, também contribuiu para a perpe-
tuação do mito, edulcorando sua estrutura mística com o aroma racionalista da época em
128
que viveu, mas preservando o seu apelo simbólico:
“Ecoava pelas quebradas das serras o estrondo da artilharia, zuniam nos ares as frechas despedidas e os pelouros disparados; afuzilavam os mosquetes, e toda a cena se fazia mais horrível com os urros bárbaros dos índios. Por fim a vitória se decidiu pelos nossos, e a forte tranqueira foi assaltada. Infelizmente recebeu na refrega uma frechada o bravo Es-tácio de Sá, e da ferida veio a morrer um mês depois. Assim perdeu a vida asseteado, como o padroeiro (cujo dia era o em que foi ferido) da cidade que fundara, e a que dera nome, e da qual os símbolos do martí-rio do mesmo padroeiro vieram a ser as insígnias ou armas.” (Varnha-gen, 1854-7a: 328-9)
Ou seja, o episódio transformou-se em um evento relevante para nossa tradi-
ção histórica porque ele foi interpretado de uma maneira que se adequava ao clima ideo-
lógico da época em que seria difundido, seja em função de seus condicionantes religio-
sos, seja de suas motivações políticas. Quer dizer, a recuperação do Rio de Janeiro foi
agregada ao mito de origem da nacionalidade porque além de ter sido um episódio fun-
damental para a preservação da unidade territorial do país, veiculou símbolos que compo-
riam a trama e a urdidura da consciência nacional sob o domínio d’el rei estrangeiro e
que informariam as atitudes tomadas no sentido da preservação de sua integridade. De
fato, podemos considerar a batalha decisiva contra os franceses como o nosso primeiro
símbolo pátrio, pois sua legenda perpetuou-se não apenas através dos textos historiográ-
ficos, de resto pouco influentes no ambiente iletrado do Brasil colonial, mas figurou co-
mo o elemento central do nosso primeiro ritual nacional, que até meados do século XIX
era realizado nas ruas do Rio de Janeiro, a capital do Império do Brasil independente:
“(...) ainda em memória da vitória das canoas, se faz todos os anos em aquela baía defronte da cidade, no dia do glorioso São Sebastião, uma escaramuça de canoas com grande grita dos índios, que as remam e se combatem, coisa muito para ver”. (Salvador, 1627: 189) “(...) memória que conservou sempre aquela cidade nos cultos de pa-droeiro que lhe dedica.” (Rocha Pitta, 1730: 129) “A cidade festejou por muito tempo esse triunfo, com oito dias de lu-minárias, e ainda hoje conserva um oitavário religioso, dando-se duran-te os três dias 17, 18 e 19 de janeiro uma salva às oito da noite.” (Var-
129
nhagen, 1854-7a: 329)
Portanto, a expugnação da França Antártica deu ensejo à primeira expressão
pública, no Brasil, do sentimento de solidariedade básico que faz com que um homem se
sinta “parte” da coletividade que o inclui. Mitificado e ritualizado, o evento se perpetua-
ria na memória coletiva como um ato heróico na preservação do território nacional, reali-
zado por uma coalizão entre índios e lusos e capitaneado pelo Santo padroeiro em pessoa.
Seria, pois, o mito composto de patriotismo, santidade, índios e portugueses, o portador
dos primeiros lumes da nacionalidade.
130
Capítulo 6
A CONQUISTA DA COSTA LESTE-OESTE
A questão indígena e a divisão do Brasil em dois governos
Apesar de serem os franceses a grande ameaça à soberania da América por-
tuguesa, o maior problema do Governo-geral na segunda metade do século XVI era ad-
ministrar a questão indígena, pois os estrangeiros só colocavam em perigo a estabilidade
da colônia pelo fato de mobilizarem índios em favor das suas pretensões, o que foi, afi-
nal, um bem. A tentativa francesa impôs aos portugueses a necessidade de negociarem
com os nativos de maneira mais equânime e, por essa razão, os grupos indígenas aliados
puderam sobreviver ao torpe processo de depopulação provocado pela presença européia
na América, alguns mantendo a sua identidade cultural e outros dissolvendo-se na popu-
lação mestiça.
Mas os índios eram considerados um obstáculo ao projeto colonizador e tra-
tados com a truculência própria de seus fautores não somente quando se aliavam aos
franceses, mas também quando não desempenhavam um papel estratégico frente ao inva-
sor estrangeiro ou não se sujeitavam ao iníquo sistema de trabalho imposto pelos colo-
nos. Ora, a colonização do Brasil era um projeto estratégico para a Coroa portuguesa,
mas era realizada pela iniciativa privada como uma empresa capitalista de alto risco, que
precisava de “braços” para funcionar. Assim, os colonos, a despeito da legislação vigen-
te, da pregação jesuítica e do papel dos índios na salvaguarda do território, viam os nati-
vos como “peças” subordinadas à realização dos seus ganhos e, quando estes recalcitra-
vam em submeter-se, invocavam eles a ação do Governo-geral, que agia com hipocrisia e
mão de ferro.
Mem de Sá, por exemplo, que tanto se valera dos temiminós para a restaura-
ção do Rio de Janeiro, implementava a catequese como estratégia de conversão “pacífi-
131
ca” dos índios (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 300), mas fomentava a política de guerra aberta
requerida pelos colonos. Durante o seu governo, para citar apenas um caso, foram truci-
dados os “alegres gentios” amigos de Caminha e Cabral, que haviam se rebelado contra o
trabalho servil imposto pelos colonos (Cf. Paraíso, 1998: 413). Como afirma Gabriel So-
ares em 1587, “dos Tupiniquins não há já nesta capitania senão duas aldeias (...) as quais
têm já muito pouca gente” (Soares de Sousa, 1587: 41).
Nas áreas em que a empresa colonizadora mais prosperava, essa contradição
mais se aguçava. Realmente, situação dos índios que habitavam as terras entre a Bahia e
Pernambuco tornara-se pungente na segunda metade do século XVI, pois a colonização,
mais intensa naquelas partes, agudizara os problemas enfrentados por eles depois da che-
gada dos portugueses. Alquebrados pelas inúmeras moléstias trazidas pelos europeus,
espicaçados pelo trabalho servil, enganados pela mercancia e seviciados pelas “guerras
justas”, minguavam à margem da nação que ajudavam decisivamente a construir (Cf.
Soares de Sousa, 1587: 25). Por outro lado, nas áreas menos desenvolvidas, os índios
resistiam à ocupação européia na medida de suas forças. Como os sertões, as extremas da
colônia permaneciam senhoreadas pelos íncolas e, mesmo no Rio de Janeiro, os tamoios,
abrigados no cabo Frio, davam guarida aos entrelopos franceses e freqüentemente arre-
metiam contra os temiminós da vizinhança (Cf. Salvador, 1627: 194-5). No rio Real,
Garcia d’Ávila via, sem poder evitar, seus rebanhos serem tomados pelos índios (Cf.
Varnhagen, 1854-7a: 360). Ilhéus e Porto Seguro eram sistematicamente arrostadas pelos
altivos e bravos aimorés (Cf. Paraíso, 1998: 413), tapuias que haviam se asilado nos ser-
tões, fugindo ao assédio dos belicosos tupis (Cf. Gandavo, 1570-6: 34; Soares de Sousa,
1587: 259), agora também expulsos da marinha por forças superiores às suas30. As 600
léguas de costa entre Itamaracá e o Maranhão eram dominadas pelos potiguaras, “o maior
e mais guerreiro gentio do Brasil” (Anônimo, 159?: 26), que mantinham relações estrei-
30 Os aimorés resistiram por séculos no local e hoje, denominados pataxós, são conhecidos e se reconhecem como os “índios do Descobrimento” (Cf. Grünewald, 1999).
132
tas com os franceses.
Portanto, ao final do governo de Mem de Sá, a “questão indígena” conserva-
va-se no centro da agenda política da Coroa. Por isso, D. Sebastião resolveu, “para o que
convém à conversão do gentio daquelas partes, e se dilatar nelas nossa santa fé, como
para mais brevemente se administrar a justiça e elas poderem melhor se defender” (Carta
régia de 10-12-1572 in Varnhagen, 1854-7a: 358-9), dividir o governo da colônia em
dois, estabelecendo suas sedes em Salvador e no Rio de Janeiro. As principais medidas
tomadas naquela ocasião referiram-se exatamente à questão indígena e a ação governa-
mental foi devastadora. Antônio de Salema, governador da partição sul, impôs a vitória
cabal sobre os tamoios do cabo Frio, quando “matou mais de 2.000 e fez 4.000 prisionei-
ros” (Carta do pe. Luís da Fonseca, de 17-12-1577 in Varnhagen, 1854-7a: 375), desas-
sombrando definitivamente o Rio de Janeiro da ameaça galo-tamoia. De Luís de Brito de
Almeida, governador do norte, “a mais importante empresa (...) foi a do ataque e redução
do gentio das terras do rio Real e o estabelecimento nessas terras da primeira vila (...),
com o que deixou prevenida a formação da capitania, depois chamada de Sergipe” (Var-
nhagen, 1854-7a: 360; cf. Soares de Sousa, 1587: 31; Bezerra, 1950: 203).
Essas áreas, como já apontamos, eram especialmente abundantes em pau-
brasil, constituindo-se em focos de intensa presença de entrelopos estrangeiros e, por
isso, de preocupação permanente por parte da administração portuguesa. Dessa maneira,
a decisão régia estabelecendo a divisão governamental surtiu os efeitos esperados, ainda
que não permanentes, nesses dois pontos estratégicos da colônia. Contudo, a ação do
governador da partição norte foi tão somente débil no sentido de tranqüilizar el-rei sobre
o problema que dominaria a cena geopolítica da sua possessão americana nos próximos
quarenta anos: a conquista da costa leste-oeste – o litoral dos atuais estados da Paraíba,
Rio Grande do Norte e Ceará –, senhoreada pelos potiguaras.
133
Paraíba e Rio Grande do Norte
A associação desse “belicoso, guerreiro e atraiçoado gentio” (Soares de Sou-
sa, 1587: 17) com os franceses teve de ser aturada pelos lusos por quase um século por-
que, primeiramente, a carência de recursos humanos e materiais impunha como priorida-
de ao governo salvaguardar as capitanias efetivamente implantadas, também arrostadas
por franceses e índios, deixando as extensas terras do setentrião abandonadas à própria
sorte (Cf. Abreu, 1907: 101). Depois, as aldeias potiguaras estavam distribuídas pelo
território em duas fácies principais, uma localizada na mata costeira e outra no agreste
montanhoso, e os índios estabelecidos na porção meridional do planalto da Borborema
“entretinham boas relações com os colonos” (Abreu, 1907: 101) desde a fundação das
capitanias de Pernambuco e Itamaracá (Cf. Salvador, 1627: 141-2).
Entretanto, no último quartel do século XVI, a conjuntura na colônia mudava
sensivelmente e a já delicada situação da costa leste-oeste tornar-se-ia uma questão de
Estado para a Coroa portuguesa. Em primeiro lugar, a expugnação da França Antártica
havia demonstrado, por um lado, quão trabalhosa, desgastante e cara houvera sido a
campanha e, por outro, com que facilidade os entrelopos transferiam o seu comércio ilíci-
to para outras partes do litoral em que a presença lusa falhava. Em segundo lugar, o ani-
quilamento dos caetés, inimigos imemoriais dos vizinhos potiguaras (Cf. Soares de Sou-
sa, 1587: 25; Salvador, 1627: 184), franqueara a estes Itamaracá, que era “não só a atalai-
a, o posto avançado da civilização, mas ao mesmo tempo o seu abrigo em caso de algum
desastre” (Varnhagen, 1854-7a: 361). Portanto, a associação entre os potiguaras e os
franceses colocava em risco não somente a soberania portuguesa sobre as terras da costa
leste-oeste – a derradeira faixa do território demarcado em Tordesilhas ainda não ocupa-
da efetivamente pelos lusos – mas ameaçava, sobretudo, a estabilidade da capitania de
Pernambuco, a “Nova Lusitânia” de Duarte Coelho, cujo sensível desenvolvimento eco-
nômico e notável urbanidade, faziam dela, então, a maior provedora da Fazenda Real e a
ponta de lança da civilização portuguesa no trópico.
134
O progresso de Pernambuco era tão pujante que transbordava pelas terras da
pachorrenta capitania de Itamaracá, estendendo a implantação de engenhos até às cerca-
nias do rio Tracunhaém (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 361), a escassas dez léguas do Paraíba,
na zona de transição entre os domínios caeté, tabajara e potiguara, exatamente onde “os
Petiguares da serra entretinham boas relações com os colonos” (Abreu, 1907: 101). Será
nessas paragens, em 1574, que uma guerra “levianamente provocada (...) por causa de
uma cunhã do sertão” (Abreu, 1907: 101; cf. Anônimo, 159?: 29-33; Salvador, 1627:
214-6) irá desencadear os conflitos que definitivamente chamarão à baila a ameaça, até
então potencial, ao principal estabelecimento português na colônia americana e determi-
narão o início da arremetida sobre a costa leste-oeste, a conquista da Paraíba.
Não discorreremos sobre esse episódio fundamental da formação brasileira
porque a sua complexa dinâmica – aliás, pouco estudada – demanda uma análise mais
detida, o que extrapolaria os limites desta tese31. Para os nossos propósitos, basta dizer
que a conquista da Paraíba, efetivamente encetada a partir de 1584 pelo governador Ma-
nuel Teles Barreto, foi uma longa e cruenta campanha (Cf. Anônimo, 159?, passim. Du-
rante treze anos, bateram-se as tropas luso-brasílicas com as forças galo-potiguaras, até
que os índios amigos dos franceses foram obrigados a abandonar as suas terras, localiza-
das numa magnífica faixa de mata atlântica, repleta do melhor pau de tinta da colônia
(Cf. Anônimo, 159?: 28-30). Mas os potiguaras, asilados na árida costa norte-
riograndense, jamais se contentariam em habitar aquela que frei Vicente considerava “a
pior terra do Brasil” e passariam, apoiados pelos franceses, a arrostar sistematicamente o
estabelecimento colonial português encravado no território onde repousavam os seus
ancestrais:
“O ano de 1597 correu sobretudo agitado: houve combates renhidos no Pentecostes (25 de maio) e a 25 de julho; de 15 a 18 de agosto Cabede-lo foi acometido por treze navios franceses que o atacaram por terra e
31 Estamos preparando um trabalho sobre este assunto.
135
por mar; constava a existência de outros vinte navios de guerra no Rio Grande.” (Abreu, 1918: 231)
Desta maneira, a situação da Paraíba, que então já era a terceira capitania
mais rentável para a Coroa (Cf. Holanda, 1989: 195), tornara-se insustentável e urgia
conquistar o Rio Grande do Norte. A campanha, comandada por Manuel Mascarenhas
Homem e Feliciano Coelho de Carvalho, capitães-mores de Pernambuco e Paraíba, res-
pectivamente (Cf. Salvador, 1627: 320; Holanda, 1989: 193), foi de uma fereza atroz (Cf.
carta do pe. Pero Rodrigues in Galvão, 1979: 228-30). Todavia, o desfecho da guerra, a
chamada “pacificação dos potiguaras”, seria um divisor de águas na história do Brasil
colonial.
A pacificação dos potiguaras
Paralelamente à ação devastadora dos capitães-mores no Rio Grande do Nor-
te, processava-se uma tentativa de conciliação com os índios. Primeiramente, pelas mãos
dos padres jesuítas Francisco Lemos e Gaspar Sampères e pelos frades franciscanos Ber-
nardino das Neves e João de São Miguel (Cf. Galvão, 1979: 18; Varnhagen, 1854-7b:
48), os quais empreendiam diuturna pregação entre os índios contrários, exortando-os a
se renderem e prometendo-lhes a paz (Cf. Carta do Pe. Pero Rodrigues in Galvão, 1979:
229). Essa ação foi muito importante porque teria provocado a primeira aproximação
entre a força luso-brasílica e os morubixabas Paraguaçu (Mar Grande) e Potiguaçu (Ca-
marão Grande), este último ascendente de Filipe Camarão, o futuro herói da restauração
pernambucana (Cf. Abreu, 1918: 232)32.
Mas a grande mudança no rumo dos acontecimentos seria promovida pelo
capitão Jerônimo de Albuquerque, que assumiria o comando do forte assentado pelo ca-
32 Há muita controvérsia acerca da aproximação do chefe Potiguaçu (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 49 e Garcia, 1927b: 49) e ainda havemos de concordar com Capistrano de que não há certeza estabelecida “quanto às condições em que Camarão I cimentou com os portugueses a aliança em tantos anos de combate mantida
136
pitão-mor de Pernambuco, “tomando-lhe homenagem como se costuma”, num auspicioso
dia de São João do ano de 1598 (Cf. Salvador, 1627: 325). O filho do Adão pernambuca-
no com a índia Arcoverde – um “pacificador”, nas palavras de Sérgio Buarque (Cf. Ho-
landa, 1989: 197) – era um homem consciente e orgulhoso de sua ascendência e determi-
naria uma nova ordem nos negócios da guerra norte-riograndense, ao fomentar a concili-
ação entre índios e portugueses, seus parentes comuns:
“Nas veias de Jerônimo de Albuquerque circulava sangue petiguar de sua mãe, Maria do Arco Verde, e disto não se envergonhava, antes o vemos em mais de uma conjuntura proclamando a sua extração. Assim devia sorrir-lhe a idéia de conciliar os parentes, reduzidos aos últimos apuros por tantos trabalhos e tão continuada perseguição, e agora forço-samente abandonados pelos franceses.” (Abreu, 1907: 104)
Mas a capacidade de negociação do capitão mameluco não seria suficiente-
mente persuasiva não fora a condição crítica pela qual passava o povo potiguara. Com
efeito, a conjuntura da guerra era amplamente adversa aos índios, mais uma vez abando-
nados à própria sorte pelos franceses. Seus parceiros centenares, que haviam carregado
inúmeros navios com a rapinagem do nosso pau de tinta, algodão e pimenta, preferiram
se retirar em suas naus, enquanto as aldeias que lhes deram esteio e que abrigavam mui-
tos curumins de cabelos louros – “vestígio da ascendência e da persistência dos antigos
rivais dos portugueses” (Abreu, 1907: 103) – ardiam sob os ferros de Manuel Mascare-
nhas e Feliciano Coelho. Por outro lado, embora em vantagem, os luso-brasileiros viviam
um impasse, pois a nova fronteira setentrional do Brasil dificilmente medraria se conti-
nuasse envolvida em guerras com os potiguaras que, aos milhares, ainda habitavam a
marinha e o agreste norte-riograndense, além da Copaoba paraibana (atual serra da Raiz).
Assim, com o seu tino afiado para as coisas brasílicas, Jerônimo de Albu-
querque tomou pé da situação, dando o primeiro passo para o armistício. Libertou Ipã-
guaçu (Ilha Grande), um respeitado pajé potiguara, fazendo-o emissário de um discurso
inquebrantável por seu ilustre filho” (Abreu, 1918: 232).
137
francamente conciliador, elaborado com a ajuda do padre Gaspar de Sampères (Cf. Sal-
vador, 1627: 328). Ipãguaçu visitou as aldeias de Ibiratinin (Pau-Seco) e Zorobabé (Cf.
Varnhagen, 1854-7b: 50), grandes chefes potiguaras do agreste e da costa, pregando com
a sua hábil oratória de líder político e religioso:
“Vós, irmãos, filhos e parentes meus, bem conheceis e sabeis quem eu sou, e a conta que sempre de mim fizestes assim na paz como na guer-ra. E isto é o que agora me obrigou a vir dentre os brancos a dizer-vos que, se quereis ter vida e quietação e estar em vossas casas e terras com vossos filhos e mulheres, é necessário sem mais outro conselho irdes logo comigo ao forte dos brancos a falar com Hyeronimo de Albuquer-que, capitão dele, e com os padres, e fazer com eles as pazes, as quais serão sempre fixas, como foram as que fizeram com o Braço de Peixe e com os mais tobajaras, e o costumam fazer em todo o Brasil, que os que se metem na igreja não os cativam, antes os doutrinam e defendem, o que os franceses nunca nos fizeram e menos o farão agora, que têm o porto impedido com a fortaleza, donde não podem entrar sem que os matem e lhes metam com a artilharia no fundo os navios.” (Salvador, 1627: 328)
Como nos relata frei Vicente, a pregação de Ipãguaçu surtiu grande efeito en-
tre seus parentes, especialmente as mulheres, que “enfadadas de andar com o fato conti-
nuamente às costas, fugindo pelos matos sem se poderem gozar de suas casas nem dos
legumes que plantavam” (Salvador, 1627: 328-9), pressionaram os maridos a aceder aos
bons argumentos do xamã. Assim, “se vieram os principais logo ao forte a tratar das pa-
zes (...) donde daí por diante começaram a entrar com seus resgates seguramente” (Sal-
vador, 1627: 329).
No início de 1599, chegava ao forte o padre Francisco Pinto, exímio língua e
piedoso missionário que completaria o trabalho iniciado por Ipãguaçu e Jerônimo de Al-
buquerque, então envolvido com a construção da cidade, na margem direita do rio Gran-
de. O “Pai Pinto, apóstolo dos potiguares” (Cascudo, 1946: 29), cercou-se de Paraguaçu e
Ibiratinin e, em abril de 1599, partiu para o sertão da Copaoba, onde peregrinou por se-
tenta aldeias, exortando os índios à paz (Cf. Carta do Pe. Francisco Pinto de 19-05-1599
in Galvão, 1979: 232). Nessa bem sucedida missão que consolidaria o acordo entre luso-
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brasileiros e potiguaras, foi-lhe inestimável a ajuda de Ibiratinin, “porque, como é muito
afamado em guerras e temido de todos, é juntamente mui capaz e de bom juízo natural
[e], por onde quer que íamos, todos lhes tinham respeito” (Cf. Carta do Pe. Francisco
Pinto de 19-05-1599 in Galvão, 1979: 233).
Ajustado o armistício, logo foi informado o governador D. Francisco de Sou-
sa que, exultante, “mandou que as ditas pazes se fizessem com a solenidade de direito”
(Salvador, 1627: 329). Assim, como nos contam frei Vicente e o padre Francisco Pinto,
testemunha ocular da celebração pública, no dia 11 de junho de 1599 reuniram-se na ci-
dade de Filipéia (atual João Pessoa) os representantes maiores das forças outrora belige-
rantes, que então juravam aliança perpétua e fidelidade mútua. De um lado, estavam o
capitão-mor de Pernambuco Manuel Mascarenhas Homem, representando o governador-
geral, o capitão-mor da Paraíba Feliciano Coelho de Carvalho com os seus oficiais da
Câmara, o ouvidor geral Brás de Almeida, Alexandre de Moura e os chefes tabajaras
Piragibe, que se acompanhava de seu filho e sucessor, Braço Preto, e Metaraobi. Do lado
dos potiguaras, alinhavam-se Ibiratinin com “mais quarenta ou cinqüenta que conosco
vieram, dos quais eram principais quinze ou vinte, assim do Copaoba como do Rio Gran-
de” (Cf. Carta do Pe. Francisco Pinto de 19-05-1599 in Galvão, 1979: 234). Atuou como
intérprete o frei Bernardino das Neves, filho do capitão João Tavares que, nesta e em
outras ocasiões importantes, desempenharia um papel precioso como mediador nos en-
tendimentos entre índios e brancos. Firmaram esses personagens “o nosso primeiro trata-
do político entre duas raças, duas civilizações, duas mentalidades” (Cascudo, 1946: 29), a
chamada “pacificação dos potiguaras”, evento que influiria decisivamente na garantia da
soberania nacional frente a franceses e holandeses e na própria sobrevivência histórica do
povo potiguara.
Esse evento é especialmente relevante porque demonstra que, no âmbito do
processo de formação nacional, além dos “índios amigos” que garantiram a perpetuação
de sua descendência juntando-se à vaga civilizacional lusitana e dissolvendo-se na popu-
139
lação nova que a intensa miscigenação produzia, sobreviveriam ainda alguns povos que,
na conjuntura quinhentista, fizeram-se “inimigos” dos portugueses ao aliarem-se aos
franceses. A correlação entre a capacidade de resistência desses índios, sua inserção num
palco de disputas territoriais em que os lusos levavam ampla vantagem sobre os franceses
e o surgimento de uma nova visão sobre a dicotomia “amigos vs. inimigos”, advinda exa-
tamente da tomada de consciência de alguns indivíduos aqui nascidos sobre a formação
mestiça do povo da nação, instrumentalizaria um quadro de oportunidades estruturais que
indicava cursos de ação social em que o acordo se mostrava como a melhor alternativa
conjuntural tanto para os índios quanto para os luso-brasileiros. Ou seja, no final do sécu-
lo XVI, as primeiras gerações de brasileiros inseridas na vanguarda da luta pela soberania
do território nacional – modelarmente representadas pelo capitão Jerônimo de Albuquer-
que – começavam a formular uma ideologia em que a origem comum indicava que os
índios poderiam – e deveriam – ser sobretudo considerados aliados, uma vez que repre-
sentavam uma das matrizes do povo da nação.
Não queremos com isso dizer que o ambíguo quadro das relações interétnicas
no Brasil colonial, francamente desfavorável às populações nativas, tenha sofrido uma
solução de continuidade a partir da pacificação dos potiguaras, mas que ela representou
um curso de ação alternativo que redundou, efetivamente, no sucesso da luta pela salva-
guarda do território nacional, na sobrevivência do povo potiguara e na própria formula-
ção da idéia de “povo brasileiro”. Todavia, se havemos de considerá-la como um evento
histórico crucial para a formação nacional, havemos também de admitir que foi uma al-
ternativa poucas vezes adotada e que, se fora seguida sistematicamente, teria resultado
num quadro mais positivo para as populações ancestrais e para a própria nacionalidade.
Seja como for, em virtude da pertinaz resistência dos índios, da estratégia a-
dotada pelo Governo-geral para enfrentá-la e, principalmente, das negociações entabula-
das por Jerônimo de Albuquerque com sua prática francamente conciliadora, foi assenta-
da a aliança militar que consolidaria a conquista do setentrião brasileiro, realizada pela
140
expulsão dos franceses do Maranhão, e que comporia a força nacional na primeira ex-
pressão coletiva de afirmação do povo da nação, a restauração pernambucana. Por outro
lado, sobreviveriam os potiguaras até os nossos dias, conservando o “espírito do seu po-
vo”, mas incluindo-se sob a identidade nacional que ajudaram decisivamente a forjar –
são hoje “índios brasileiros”, tutelados pelo Estado por força constitucional (Cf. Brasil,
1988: 150-1) – pois souberam resistir com a determinação que herdaram de seus ances-
trais e aprenderam a transigir, ao avaliarem com pragmatismo a conjuntura adversa em
que viviam no final do século XVI, acatando o discurso conciliador e “unionista” de Je-
rônimo de Albuquerque. Agindo dessa maneira, garantiram a notável continuidade histó-
rica que fundamentaria a sua maior conquista, a demarcação da Terra Indígena Potiguara,
quase quatrocentos anos depois de sua “pacificação”. Com efeito, o minucioso e incon-
testável relatório da historiadora Thereza de Barcellos Baumann demonstrando que “os
índios Potiguara estão, indubitavelmente, ocupando a área ininterruptamente, pelo me-
nos, desde 1500” (Baumann, 1981: 13), levou o Procurador Geral da FUNAI a emitir o
parecer que definiria a demarcação das terras onde hoje habita o povo indígena mais nu-
meroso do Nordeste, com uma população de dez mil pessoas, segundo seus líderes33. Sua
decisão se fundou exatamente na “continuidade histórica” conseguida a expensas, pen-
samos, do acordo firmado naquele venturoso 11 de junho de 1599:
“Discutir-se a origem dos Potiguara, pôr-se em dúvida a sua identidade indígena, enfim, a sua condição de índios, parece-me de todo inaceitá-vel. A identidade dos índios Potiguara, a sua continuidade histórica que emergem cristalinas dos próprios documentos que instruem este pro-cesso, não exigem grandes conhecimentos de antropologia, para ter-se a certeza e a convicção de que estamos diante de índios, a pugnarem pe-los seus direitos, a lutarem pela terra que, ao longo do tempo, lhes vêm sendo usurpadas....Não podemos aceitar, em nenhuma hipótese, a afir-mativa segundo a qual inexistem, assim, na Paraíba, seja onde for, ter-ras indígenas.... As terras ocupadas ou habitadas pelos índios Potiguara, no Estado da Paraíba, são terras indígenas”. (Apud Moonen & Maia, 1992: 18)
33 Dados fornecidos pelo Dr. José Augusto Sampaio, diretor secretário da ANAI – Associação Nacional de Ação Indigenista – em comunicação pessoal.
141
Ceará
A conquista do Rio Grande do Norte foi um episódio crucial para a salva-
guarda do território ameaçado pelos franceses, mas ela também recolocou na ordem do
dia uma outra questão estratégica para a consolidação das fronteiras definidas pelo meri-
diano de Tordesilhas, a colonização do norte do Brasil. De fato, cem anos depois do Des-
cobrimento, a costa que corre de leste a oeste, do Rio Grande do Norte até o rio Amazo-
nas, ainda repousava no mais completo abandono, isolada por sertões indevassáveis e
pelo dificultoso regime de suas correntes marítimas e monções. Portanto, a principal tare-
fa que se impunha naquele momento era dobrar o cabo de São Roque e, finalmente, inte-
grar o extenso setentrião ao território do Brasil, realizando o velho e acalentado projeto,
então favorecido pela união das duas Coroas ibéricas, de formar um “grande império” do
Amazonas ao Prata.
Contudo, o trono de Castela tinha outras prioridades. Acicatado pela prata do
Peru, Filipe III34 não via razão para empreender a conquista daquelas rudes terras em do-
mínio luso, preferindo patrocinar a investida sobre os sertões do sul, onde os paulistas já
iniciavam a sua incansável busca por metais preciosos, seguindo a trilha aberta por Brás
Cubas e Luís Martins, nos idos de 1560 (Cf. Holanda, 1993a: 245). Ademais, os france-
ses tinham sido derrotados inapelavelmente, seus aliados centenares haviam sido atraídos
para o lado luso-brasileiro e assim, pelo menos naquele momento, a coalizão galo-
potiguara não mais colocava em perigo a soberania da possessão colonial ibérica na A-
mérica.
Assim, será durante o governo de Diogo Botelho, que assumiria o cargo em
Pernambuco a 1º de abril de 1602 (Cf. Varnhagen, 1854-7e: 244), que se iniciará a de-
34 Filipe III assumiu o trono em 1596, por ocasião da morte de Filipe II (Cf. Rocha Pitta, 1730: 155).
142
manda do Maranhão, ação estratégica para a consolidação das fronteiras nacionais. Essa
era uma das diversas questões de Estado que o oitavo governador-geral herdara do con-
trovertido governo de D. Francisco de Sousa (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 55), pois enquan-
to se priorizava a pesquisa das minas nos sertões do sul, perpetuavam-se os já clássicos
problemas de defesa na costa – a resistência dos índios e a petulância de piratas e corsá-
rios estrangeiros – aos quais se somava um novo, proveniente da importação de escravos
africanos para a dinamizada cultura da cana de açúcar – a aparição dos primeiros qui-
lombos, como o formado nos palmares do Itapicuru, a quatro léguas do rio Real (Cf. Sal-
vador, 1627: 346). Aliás, tudo indica que as questões militares eram prioritárias naquele
momento, pois acompanhava o novo mandatário um oficial de peso, o “conspícuo e ati-
vo” Diogo de Campos Moreno (Varnhagen, 1854-7b: 55), natural de Tânger e acutilado
veterano das guerras de Flandres (Cf. Garcia 1927b: 55), que vinha desempenhar as fun-
ções de sargento-mor do Estado, uma espécie de auditor militar com amplos poderes (Cf.
Vianna, 1955: 40)35.
No início de 1603, deliberou-se o governador a dar continuidade à exploração
da costa leste-oeste, concedendo a Pero Coelho de Sousa, “morador antigo da Paraíba e
cunhado de Frutuoso Barbosa” (Holanda, 1989: 198), a patente de capitão-mor e a licen-
ça para que empreendesse, por conta própria, a expedição conquistadora (Cf. Salvador,
1627: 339; Varnhagen, 1854-7b: 567). Diogo de Campos Moreno deu grande apoio ao
projeto e mandou seu sobrinho Martim Soares Moreno, um mancebo de 18 anos, como
um dos cabos da tropa, “para que servindo naquela entrada aprendesse a língua dos ín-
dios, seus costumes, dando-se com eles, e fazendo-se seu mui familiar, e parente, ou
compadre como eles dizem”, nas palavras do próprio sargento-mor (Moreno Apud Garci-
a, 1927b: 57, ênfase no original). Entretanto, a investida de Pero Coelho não vingaria,
35 Diogo de Campos serviria como alto funcionário da Coroa em três Governos-gerais, teria uma ativa participação na conquista do Maranhão, sendo um de seus cronistas, e nos legaria o Livro que dá razão do Estado do Brasil (Moreno, 1612), retrato estatístico fiel do Brasil no início do século XVII (Cf. Varnha-gen, 1854-7b: 116; Sodré, 1988: 66).
143
pois a sua expedição teria um destino infausto (Cf. Salvador, 1627: 356-8).
O governador Diogo Botelho não se abateu com o drama de Pero Coelho e
reuniu-se com o padre Fernão Cardim para acertar uma missão religiosa à serra da Ibia-
paba, “a fim de ser preparado ou corroborado o descobrimento pela conquista espiritual
dos tapuias do lugar” (Holanda, 1989: 200). O provincial dos jesuítas designou para a
missão os padres Francisco Pinto – o exímio língua e amigo dos índios (Cf. Garcia,
1927b: 100) que já conhecemos da conquista do Rio Grande do Norte – e Luís Figueira
(Cf. Abreu, 1907: 105), um irmão “adornado de letras” (Salvador, 1627: 359), futuro
autor da Arte gramática da língua brasílica, dada à luz em Lisboa no ano de 1621 (Cf.
Garcia, 1927b: 101). Os padres, secundados por alguns poucos índios cristãos, partiram
de Pernambuco em janeiro de 1607 (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 68) e chegaram à serra da
Ibiapaba um ano depois, mas a missão teve um fim trágico. Os cararijus (Cf. Holanda
1989e: 200), índios tapuias, cercaram o acampamento dos religiosos e martirizaram o
padre Francisco Pinto a golpes de tacape, enquanto um catecúmeno alertava do perigo o
padre Figueira, que se encontrava afastado e por isso se salvou (Cf. Salvador, 1627: 360).
O padre Figueira ainda permaneceria por algum tempo na Ibiapaba, onde deu sepultura
ao padre Pinto, mas em setembro de 1608 já se encontrava no forte dos Reis, “consumido
de trabalhos e fomes” (Holanda, 1989: 201) e desiludido das possibilidades missionárias
no Ceará.
Por esse tempo, findara o mandato de Diogo Botelho e já desembarcara no
porto do Recife o novo governador-geral, D. Diogo de Meneses e Sequeira, que tomou
posse do cargo em Olinda a 7 de janeiro de 1608 e chegou a Salvador em dezembro do
mesmo ano (Cf. Varnhagen, 1854-7e: 245). Mais do que o seu antecessor, vinha D. Dio-
go de Meneses convicto da necessidade da conquista do litoral norte, especialmente por-
que el-rei Filipe III, acatando os requerimentos e anuindo aos conchavos de D. Francisco
de Sousa em Madri (Cf. Garcia, 1927b: 124), excluíra da jurisdição do governador-geral
as capitanias de São Vicente, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Além do mais, como es-
144
creverá o governador-geral a el-rei de 1º de março de 1612, “por ser a derradeira pedra de
evitar os corsários desta costa” (Brasil, 1608-12: 76), o Maranhão deveria ser ocupado
sem mais demora.
Antes, porém, de empreender qualquer movimento nesse sentido, o governa-
dor-geral mandou Diogo de Campos Moreno, “seu braço direito” (Varnhagen, 1854-7b:
116), inspecionar as capitanias sob sua jurisdição para coletar os dados que comporiam o
“Livro do Estado” que el-rei encomendara ao sargento-mor (Cf. Regimento de 31 de
agosto de 1612 apud Vianna, 1955: 7-8) e para este avaliar como se poderia levar avante
a colonização das terras para além do cabo de São Roque (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 115).
Dessa viagem resultaram as diretrizes para a ocupação da costa leste-oeste, refletida ain-
da hoje na divisão política daquela região:
“o sargento-mor (...) indicou a criação de três novas capitanias: a pri-meira no Jaguaribe ou Ceará; a segunda no porto de Camocim; e a ter-ceira no Maranhão. Desta indicação, enviada em primeiro de Março de 1612 resultaram sem dúvida as ordens de 9 de Outubro e 8 de Novem-bro desse mesmo ano para se povoar o Maranhão, cuja execução coube ao seu sucessor.” (Varnhagen, 1854-7b: 116)
Embora a principal contribuição de D. Diogo de Meneses para a incorporação
do litoral norte ao território nacional tenha sido a avaliação criteriosa de suas possibilida-
des e o planejamento para a sua execução, ações que fundamentariam o convencimento
político sobre a sua viabilidade, durante o seu governo foram lançados os primeiros fun-
damentos da capitania do Ceará, por obra de Martim Soares Moreno. O sobrinho do sar-
gento-mor do Estado cumprira brilhantemente os desígnios do tio quando acompanhou
Pero Coelho em sua primeira expedição ao Ceará e assim conquistara a confiança e a
amizade dos índios (Cf. Holanda, 1989: 202), ao ponto que Jacaúna – grande chefe poti-
guara, irmão de Potiguaçu e, portanto, tio de Filipe Camarão (Cf. Varnhagen, 1854-7b:
116) – “o distinguiu da turba malfeitora e votou-lhe amor de pai” (Abreu, 1907: 106).
No tempo do governo de D. Diogo de Meneses, Martim Soares servia como tenente no
forte dos Reis e, certamente, sua simpatia pelos índios fora grandemente estimulada por
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Jerônimo de Albuquerque, capitão-mor do Rio Grande do Norte entre 1603 e 1610 (Cf.
Varnhagen, 1854-7e: 264), pois o tenente freqüentemente visitava o amigo e seus paren-
tes, cultivando positivamente a sua amizade com os índios (Cf. Abreu, 1907: 106; Abreu,
1918: 247).
Foi durante uma dessas visitas que ocorreu o fato que renderia a Martim Soa-
res Moreno a insígnia de “fundador do Ceará” (Cf. Peixoto, 1940). Estando o jovem te-
nente hospedado entre o povo de Jacaúna, nas margens do rio Ceará, teve notícia que se
achava fundeado no porto do Mucuripe, próximo da aldeia, um navio francês e deliberou-
se a tomá-lo. Exortou os índios a guerrear e, com grande tino, dirigiu a operação ele
mesmo, lutando como um morubixaba prático na guerra brasílica : “me despia nu e me
raspava a barba, tingido de negro com um arco e flechas, ajudando-me dos índios, falan-
do-lhes de contínuo a língua e pregando-lhes o que já sabia bem fazer” (Martim Soares
Moreno apud Cabral de Mello, 1998: 353). O ataque foi um sucesso e os franceses perde-
ram o navio e duas lanchas, ficando todos prisioneiros (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 116).
Vencida a batalha, Martim Soares, seguindo as instâncias de Jacaúna, anuiu que um filho
do chefe fosse à Bahia para levar ao governador as boas novas do Ceará, o que surtiu
grande efeito sobre D. Diogo de Meneses, pois o governador-geral tinha uma tese própria
sobre a estratégia a ser adotada nos movimentos de conquista e o desempenho de Martim
Soares vinha exatamente a corroborá-la – “a conquista, escrevia [o governador] em 1 de
março de 1612 (...), não se devia fazer pelas armas, mas por invenção e manha; o gentio
se defendia fugindo de nós, fazendo que a falta das coisas nos desbaratasse; fosse mode-
rada a força para não espantá-lo” (Abreu, 1918: 247; Cf. Brasil, 1612: 308).
Acreditamos que o governador-geral, criterioso observador e arguto analista
que era, tenha formulado a sua opinião considerando os sucessos da política de Jerônimo
de Albuquerque na conquista do Rio Grande do Norte, os quais renderam ao mameluco
pernambucano a nomeação como o primeiro capitão-mor dela (Cf. Varnhagen, 1854-7e:
262). Ora, indicado em 1603 para governar a turbulenta fronteira da costa leste-oeste, o
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bom desempenho em suas atribuições, sempre conseguido a expensas de sua amizade
com os irascíveis potiguaras, fez com que o capitão fosse mantido no cargo até 1610, o
que, aliás, não era nenhuma vantagem, pois o forte dos Reis era a “mais miserável viven-
da que se pode achar no mundo, por não estar acabada, pelo que os soldados fogem dela
como da morte” (Moreno, 1612: 213).
Seja como for, a façanha de Martim Soares e Jacaúna mais uma vez compro-
vava, contrastando-se à já aludida “política de terror”, a eficiência de uma estratégia de
coalizão de forças nas empresas voltadas para a ocupação, colonização e salvaguarda do
território, fundamentada no cultivo da amizade com os índios. Aliás, como bem lembra
Capistrano, em virtude da hábil ação no porto do Mucuripe, “aquele ponto, até ali conhe-
cido como excelente aguada dos franceses, passou desde então a ser evitado” (Abreu,
1907: 106). Isso, por si só, já justificaria as avaliações do governador-geral que, enlevado
pelos sucessos do Ceará e convicto de suas teses sobre a conquista, tomou a decisão que
daria origem à atual cidade de Fortaleza e sustentaria a marcha para o Maranhão, fomen-
tando as práticas do tenente Martim Soares Moreno:
“À sombra desta fortaleza e destas aldeias fez-se a paz com os do Ja-guaribe, e passou a povoar o capitão Martim Soares Moreno com so-mente cinco soldados e um capelão, fiado na vizinhança e na amizade que tem com todos os principais índios de uma e outra parte, e assim, sem outro cabedal que o dos bons tratos e reputação da fortaleza, estão já nossos conquistadores feito assento no Camocim36, quarenta léguas do Maranhão (...).” (Moreno, 1612: 211)
36 Onde foi construído o forte de Santiago (Cf. Vianna, 1955: 211)
147
Capítulo 7
A CAMPANHA DO MARANHÃO
A França Equinocial
Enquanto o Governo-geral do Brasil consolidava lenta e trabalhosamente a
sua presença na costa leste-oeste, firmada definitivamente com a instalação da capitania
do Ceará em 1612 (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 139), os franceses empreendiam outros mo-
vimentos no sentido de realizarem as suas ambições colonialistas na América portuguesa.
Derrotados no Rio de Janeiro, repelidos de Sergipe e Pernambuco, expulsos da Paraíba e
do Rio Grande do Norte, os franceses mostraram-se pouco dispostos a enfrentar as agru-
ras do inóspito litoral montado por Martim Soares Moreno e voltavam agora as suas naus
corsárias para os lumes da equinocial, onde esperavam tornar efetivas as suas quimeras
de conquista.
O interesse dos franceses pelo Maranhão fora despertado já no século anteri-
or, antes mesmo da deflagração da guerra do Rio Grande do Norte. No ano de 1594 um
certo capitão Riffault, corsário habituado da nossa costa (Cf. Salvador, 1627: 318), co-
mandou uma flotilha de três navios ao Brasil “com a intenção de possíveis conquistas”
(Abbeville, 1614: 22), fiando-se nas boas relações que mantinha com Ibiratinin (Cf. Ab-
beville, 1614: 22; Abreu, 1918: 232; Holanda, 1989: 204) nos corsos que habitualmente
empreendia no Rio Grande do Norte (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 139). Entretanto, surti-
ram-lhe mal os projetos: embora fosse um prático em nossas águas, o comandante pirata
veio a sentir os maus humores dos nossos alísios e acabou arribando à costa do Mara-
nhão, onde foi a pique a nau capitânia. Vendo a frota reduzida a um vaso, pois já houvera
perdido outra nau pequena para alguns marujos amotinados, Riffault resolveu tornar à
Europa deixando boa parte dos seus homens em terras maranhenses e nunca mais voltou
à cena de nossa história (Cf. Abbeville, 1614: 22; Lisboa, 1852: 87).
148
Não obstante, a desventura de Riffault faria irromper as pretensões francesas
sobre o norte do Brasil pois, já em 1597, “o capitão Jean de Guerard, de Dieppe, (...) alu-
dirá a um projeto de colonização onde expressamente se menciona a ilha do Maranhão”
(Holanda, 1989: 204). Mas será Charles des Vaux, um dos náufragos que ficaram em
terra, quem primeiro fomentará o interesse francês acerca do Maranhão. O pirata, homem
esclarecido nas coisas brasílicas, logo se fez amigo dos índios do lugar, acomodando-se
aos usos e à língua deles, e se tornou um guerreiro tão combativo nas suas lutas, inclusive
nas guerras da Ibiapaba (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 139), que os índios lhe apelidaram
Itagiba, “braço de ferro” na língua geral (Cf. Holanda, 1989: 205).
A intimidade que durante largos anos Itagiba privou dos índios lhe deu a o-
portunidade de conhecer em detalhes os prodígios das terras do Maranhão, os quais exci-
taram os seus anelos de corsário e o estimularam a retornar à Europa, onde “se fez fervo-
roso propagandista das riquezas da região que devassara e das vantagens de sua coloniza-
ção por franceses” (Garcia, 1945: 9). Teria Charles des Vaux confiado os seus planos a
Henrique IV que, convencido dos bons augúrios que estes lhe infundiram, determinou-se
a estudar as perspectivas para a sua execução (Cf. Holanda, 1989: 205).
É claro que as alvíssaras de um pirata não seriam suficientes para mover as
resoluções d’el rei de França, mas certamente o bom parecer de um gentil-homem trari-
am confiança à deliberação que já verrumava as vontades imperialistas do fundador da
dinastia dos Bourbons. Por isso, Henrique IV, que cultivava uma hostilidade aberta com
o trono espanhol, convocou às falas Daniel de la Touche, Senhor de la Ravardière, que
em 1604 explorara as costas da Guiana e obtivera, no ano seguinte, a nomeação de loco-
tenente d’el rei na colonização de Caiena (Cf. Garcia, 1945: 9-10), determinando que ele
acompanhasse Charles des Vaux em viagem exploratória ao Maranhão, com o objetivo
de avaliar se a Coroa francesa deveria empreender a conquista (Cf. Abbeville, 1614: 23).
La Ravardière maravilhou-se com aquelas terras, abandonadas à sua própria
pujança inculta, e voltou à Europa convencido dos grandes proveitos que a colonização
149
delas poderia auferir aos súditos do Bom Rei, a quem comunicou sua disposição de abrir
mão de Caiena em favor dos encantos do Maranhão. Mas o assassinato de Henrique IV,
em maio de 1610, protelaria o empreendimento e mudaria o seu estatuto. Só em outubro
do mesmo ano a regente Maria de Médicis, segunda esposa d’el rei morto, decidiria sobre
os planos arquitetados por des Vaux e assumidos por la Ravardière, dando a este uma
concessão para colonizar, por conta própria, o Maranhão (Cf. Lisboa, 1852: 88). Sem o
concurso dos dinheiros régios, la Ravardière passou a procurar patrocinadores para a sua
empresa e convenceu o célebre almirante François de Rasilly, “uma das mais puras gló-
rias marítimas da França” (Garcia, 1945: 10) e o argentário Nicolas de Harlay de Sancy,
“sujeitos tão qualificados pela nobreza como pelos cabedais” (Lisboa, 1852: 88), a juntos
montarem uma companhia colonizadora (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 140) cuja protestação,
passada em Cancale a 1º de março de 1612, contou com a assinatura de muitos gentis-
homens, entre os quais o Senhor de Pisieux, “muito digno e virtuoso fidalgo do Delfina-
do” (Abbeville, 1614: 55) e Du Plessis, irmão do cardeal Richelieu (Cf. Abbeville, 1614:
27; Garcia, 1927: 166).
A propaganda das grandezas do Maranhão, ingentemente difundida por des
Vaux e la Ravardière entre os seus concidadãos, sensibilizou não apenas a nobreza, mas
também o clero e o terceiro estado. Muitos homens se apresentaram como voluntários
para a expedição e quando a carta da regente pedindo quatro missionários para a empresa
foi lida no capítulo provincial dos capuchinhos em Paris, ela teve uma acolhida entusiás-
tica por parte de todos os padres, entre os quais foram escolhidos os irmãos Ambroise de
Amiens, Arsène de Paris, Yves d’Evreux e Claude d’Abbeville, estes dois últimos cronis-
tas da aventura francesa no Maranhão (Cf. Abbeville, 1614: 25; Garcia, 1927: 166ss).
Assegurada a proteção espiritual, angariados os recursos materiais e mobili-
zados os homens de guerra e ofícios, aprestou-se uma frota de três navios e quinhentos
tripulantes para a expedição conquistadora, a qual partiu do porto de Cancale às seis ho-
ras da manhã do dia 19 de março de 1612 e foi arribar a Plymouth a 27 do mesmo mês,
150
em razão das fortes tormentas que enfrentou (Cf. Abbeville, 1614: 28-9). Depois de per-
manecerem quase um mês no porto inglês, os expedicionários tomaram o caminho da
América em 23 de abril, abordaram a ilha de Fernando de Noronha a 18 de junho e fun-
dearam na baía de São José a 26 do mês subseqüente, junto à pequena ilha que batizaram
de Santa Ana (Cf. Abbeville, 1614: 30-51; Lisboa, 1852: 89). No dia seguinte, Charles
des Vaux dirigiu-se à ilha grande, chamada Tebiré pelos índios (Cf. Garcia, 1945: 54),
para entabular entendimentos com os seus amigos tupinambás e preparar a vinda do almi-
rante de Rasilly que, como chefe maior da expedição, desejava ser recebido pelos princi-
pais da ilha. Conseguida a permissão dos índios, no dia 28 o almirante passou a Tebiré
com parte dos expedicionários e iniciou o trabalho para convencer os naturais da conve-
niência de se aliarem aos franceses nos seus propósitos:
“Por todas as aldeias por onde passava, comunicava-lhes, por intermé-dio do sr. des Vaux, ter vindo da parte do nosso mui grande e poderoso Rei de França para viver e morrer com eles, seus bons amigos e aliados, e também para defendê-los e protegê-los contra os inimigos. Dizia ain-da que lhes trouxera quatro Paí para ensinar-lhes o verdadeiro Deus e batizá-los, logo que o conhecessem, tornando-os assim seus filhos.” (Abbeville, 1614: 54)
Essa doutrinação que articulava identidade nacional e autoridade religiosa
com amizade e proteção foi bem recebida pelos tupinambás e, a 6 de agosto, o restante da
tripulação desembarcava na esplêndida paragem que os franceses desejavam ver anexada
aos domínios do seu rei, com um aparato cênico digno da tradição francesa, mais um
elemento para a animar a efusiva recepção dos índios:
“Ao descermos da canoa e pormos o pé em terra, ajoelhou-se o sr. de Rasilly e ajoelharam-se os outros franceses; e depois de nos termos saudado e abraçado, comecei a entoar o Te deum laudamus, caminhan-do processionalmente com essa bela companhia francesa que marchava em formação seguida por grande multidão de índios; derramavam todos lágrimas de alegria pelo fato de sermos os primeiros a gozar dessa feli-cidade de entrar com confiança na terra dos infiéis e a tomar posse des-se novo reino, em nome do Rei dos Reis, do Redentor do mundo, Nos-so Senhor Jesus Cristo. E louvamos a grandeza de Deus entoando em altas vozes cânticos de louvores entre esses povos, até então rebeldes à
151
Majestade Divina e que caminhavam em procissão, cheios de júbilo (...).” (Abbeville, 1614: 55-6)
A primeira providência tomada depois dos festejos foi a escolha do local para
a construção do forte, onde os índios “começaram imediatamente a trabalhar com muita
alegria e boa-vontade” (Abbeville, 1614: 58), limpando o terreno e erguendo as cabanas
para os franceses. Mais ou menos a uns mil metros dali, num “lugar delicioso” ao lado
de uma fonte, os mesmos índios construíram a capela e a grande choupana dos padres, “e
deu-se a esse conjunto de construções o nome de Convento de São Francisco” (Cf. Ab-
beville, 1614: 58).
Edificado o assentamento francês, a cruz foi chantada a 8 de setembro, com a
cerimônia devida, e os padres, acompanhados de Charles des Vaux e Davi Migan, intér-
prete dieppense, deram início a uma visita pelas aldeias. Vinham os capuchinhos comple-
tar a doutrinação do almirante, fechando o círculo da argumentação que oferecia proteção
aos seus “bons amigos e aliados” em troca de sua conversão à fé católica e à fidelidade
ao monarca nacional. De Rasilly convencera os índios de que sem aceitar Cristo eles não
poderiam aninhar-se à proteção d’el rei de França e agora os padres diziam que sem a
obediência às leis do soberano estrangeiro de pouco valeria eles serem cristãos:
“Depois que os índios plantaram a Cruz como símbolo da aliança eter-na com o nosso Deus e o desejo que testemunhavam de pertencerem ao cristianismo, demo-lhes a entender que isso não bastava, que era preci-so (a fim de que os franceses não os abandonassem jamais) colocar pe-los mesmos meios as armas de França junto da cruz. Pois assim como esta era o sinal de que havíamos tomado posse da terra em nome de Je-sus Cristo, esses estandartes seriam uma prova da soberania do Rei de França e um testemunho de obediência perpétua a Sua Majestade Cris-tianíssima. Avisamo-los de que deviam pensar seriamente no que iam fazer e para isso lhes dávamos um mês, porquanto, quando chantassem os estandartes, se tornariam súditos de Sua Majestade e se sujeitariam a suas leis.” (Abbeville, 1614: 122)
Essa engenhosa dialética, de uma astúcia comovedora, não conseguiu con-
vencer Momboréaçu (Flauta Grande), um macróbio da aldeia de Eussauap (Cf. Abbevil-
152
le, 1614: 114ss). O índio velho tinha experiência nos tratos com os europeus e já ouvira
muitos discursos como esse que o Itagiba fazia naquela noite na casa dos homens, pois o
seu povo conhecia muito bem os caraíba e havia chegado há poucos anos37 àquelas ter-
ras, fugindo da guerra que lhes faziam os portugueses por serem eles amigos dos france-
ses (Cf. Fernandes, 1948: 43). Certamente, Momboréaçu teria ido deitar à sua rede, finda
a reunião no conselho dos anciãos, remoendo aqueles argumentos e esmiuçando a sua
sabedoria de velho à procura do real sentido daquelas palavras. Com dificuldade teria
pego no sono, recordando-se de todos os enganos que engolira na sua longa vida, dos
inúmeros parentes mortos nas guerras dos brancos que ele não pudera desagravar, das
fugas humilhantes, das perdas e dos danos. Estaria envergonhado perante os seus ances-
trais.
Na manhã seguinte, Momboréaçu teria acordado mal, sentindo um misto de
tristeza e revolta que se aguçava na medida em que ele via os homens da tribo fincando a
cruz dos paí no pátio da aldeia, em meio ao alvoroço dos curumins, excitados pelas bugi-
gangas que tiravam dos brancos. Depois, ouviria com desdém a prédica do paí, que joga-
va a sua água mágica sobre a cruz e a capela que agora faziam parte da aldeia. Todavia, a
sua sensibilidade de músico faria com que ele pacientemente escutasse os cânticos, talvez
a única coisa boa que lhe traziam os estrangeiros. Mas Momboréaçu não admitiria que
lhe aviltassem mais o seu tirocínio e a sua clara memória, o seu orgulho de bravo e a sua
temperança de velho. Depois das rezas ao pé da cruz, estavam novamente os franceses na
casa dos homens a deliberar com os principais da aldeia, confiantes na doutrina que apli-
cavam aos índios. Momboréaçu pediu a palavra e se valeu de sua oratória refinada e dire-
ta, digna da milenar tradição discursiva dos tupis e própria dos seus maiores homens,
para expressar tudo o que sentia naquele momento. O tribuno tupinambá praticou diante
de franceses boquiabertos, dirigindo ao Itagiba um discurso penetrante:
37 “Métraux acredita, fundado em poderosos motivos, que essa migração se teria produzido entre os anos de 1560 e 1580” (Holanda, 1936: 71-2).
153
“Vi a chegada dos peró em Pernambuco e Potiú38; e começaram eles como vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró não faziam senão traficar sem pretenderem fixar residência. Nessa época, dormiam li-vremente com as raparigas, o que os nossos companheiros de Pernam-buco reputavam grandemente honroso. Mais tarde, disseram que nos devíamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e edificar cidades para morarem conosco. E assim pare-cia que desejavam que constituíssemos uma só nação. Depois, começa-ram a dizer que não podiam tomar as raparigas sem mais aquela, que Deus somente lhes permitia possuí-las por meio do casamento e que e-les não podiam casar sem que elas fossem batizadas. E para isso eram necessários paí. Mandaram vir os paí; e estes ergueram cruzes e princi-piaram a instruir os nossos e a batizá-los. Mais tarde afirmaram que nem eles nem os paí podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem. E, assim, se viram constrangidos os nossos a forne-cer-lhos. Mas não satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nação; e com tal tirania e crueldade a trataram, que os que ficaram li-vres foram, como nós, forçados a deixar a região. Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós o fizestes somente para traficar. Como os peró, não recusáveis to-mar nossas filhas e nós nos julgávamos felizes quando elas tinham fi-lhos. Nessa época, não faláveis em aqui vos fixar; apenas vos contentá-veis com visitar-nos uma vez por ano, permanecendo entre nós somente durante quatro ou cinco luas. Regressáveis então a vosso país, levando os nossos gêneros para trocá-los com aquilo de que carecíamos. Agora já nos falais de vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortale-zas para defender-nos contra os nossos inimigos. Para isso, trouxestes um morubixaba e vários paí. Em verdade, estamos satisfeitos, mas os peró fizeram o mesmo. Depois da chegada dos paí, plantastes cruzes como os peró. Começais agora a instruir e batizar tal qual eles fizeram; dizeis que não podeis tomar nossas filhas senão por esposas e após terem sido batizadas. O mesmo diziam os peró. Como estes, vós não queríeis escravos, a prin-cípio; agora os pedis e os quereis como eles no fim. Não creio, entre-tanto, que tenhais o mesmo fito que os peró; aliás, isso não me atemori-za, pois velho como estou nada mais temo. Digo apenas simplesmente o que vi com meus olhos.” (Apud Abbeville, 1614: 115-6)
Ao sociólogo moderno será escusado comentar discurso tão pungente, em si
mesmo significativo, persuasivo em razão de sua autenticidade e lucidez. Havemos de
acusar, tão somente, a percepção de Momboréaçu sobre a similaridade do procedimento
de franceses e portugueses em relação aos índios: a solércia de uma amizade de interes-
154
ses. Esse é o âmago do que temos definido como “ambigüidade” das relações interétnicas
no Brasil colonial, pois somente a pressão da necessidade econômica e da conjuntura
bélica impôs aos europeus a negociação com os índios. Não obstante sua iniqüidade e
conforme cada situação concreta, essa negociação proporcionou a chance de alguns gru-
pos sobreviverem ao processo que lhes era abertamente adverso e a outros a circunstância
de se integrarem na formação da sociedade brasileira como um elemento fundador, dis-
solvendo-se no “povo novo” que se formava, deixando a sua marca na civilização que
emergia.
Por outro lado, a própria inserção dos índios no contexto do capitalismo im-
poria mudanças em sua cultura milenar, as quais refletiam sobretudo a lógica velhaca das
trocas mercantis. Um bom exemplo disso é o tratamento tradicional que os tupis davam a
seus prisioneiros de guerra. Como notaram os primeiros cronistas da vida brasílica (Cf.
Staden, 1557; Thevet, 1557; Léry, 1578), a honra tupi não admitia outro destino àqueles
que ultrajaram a memória de seus ancestrais e tiraram a vida de seus parentes senão a
imolação, seguida do banquete ritual (Cf. Capítulo I). Com o tempo, essa prática foi mu-
dando, pressionada tanto pela proibição da antropofagia quanto pela valorização econô-
mica dos cativos, crescentemente favorecida pelo desenvolvimento comercial promovido
pela colonização européia. Assim, na segunda metade do século XVI e inícios do XVII,
quando a importação de africanos para os engenhos era ainda incipiente, o prisioneiro de
guerra tornou-se uma mercadoria valiosa, o desagravo da honra passou a ter compensa-
ções financeiras e o tráfico de almas, não raro de parentes apartados há muito pouco tem-
po, tornou-se uma prática contumaz entre os indígenas brasileiros (Cf. Nóbrega, 1549-60:
197-8).
Também o Maranhão tinha porta-vozes dessa nova consciência marcada pe-
los apelos da mercancia, gerada a partir da sedução tecnológica e condicionada pelo jogo
das circunstâncias do mercado e das novas conjunturas político-militares. Mais pragmáti-
38 Rio Grande do Norte
155
co frente à doutrinação francesa do que o velho Momboréaçu mostrou-se Japiaçu, “gran-
de morubixaba da ilha do Maranhão” (Abbeville, 1614: 59). O principal da aldeia de Ju-
niparã chamou o Senhor de Rasilly à sua casa, convidou-o a armar a sua rede na maloca e
lhe disse:
“Estou muito contente, valente guerreiro, com o fato de teres vindo a esta terra para fazeres a nossa felicidade e nos defenderes contra os nossos inimigos. Já começávamos a nos aborrecer por não vermos che-gar os guerreiros franceses sob o comando de um grande morubixaba; já tínhamos resolvido deixar esta costa e abandonar esta região com re-ceio dos peró, nossos inimigos mortais, e havíamos deliberado embre-nhar-nos por esta terra a dentro até onde jamais cristão nos visse, e es-távamos decididos a passar o resto de nossos dias longe dos franceses, nossos bons amigos, sem mais pensarmos em foices, machados, facas e outras mercadorias, e conformados em voltar à antiga e miserável vida de nossos antepassados que cultivavam a terra e derrubavam as árvores com pedras duras. Deus, porém, teve pena de nós e te mandou para cá (...) como um gran-de guerreiro trazendo consigo muitos outros bravos soldados para de-fenderem-nos e paí e profetas para nos instruir na lei de Deus. Alcança-rás grande fama (...) e [encontrarás] um povo valente que te obedecerá e te ajudará na conquista de todas as nações vizinhas. (...) No que diz respeito às casas, fortalezas e outras obras manuais, ne-las trabalharemos todos a fim de que sejas forte e poderoso contra todo o mundo; e contigo morreremos. Nossos filhos aprenderão a lei de Deus, vossas artes e ciências, e com o tempo se tornarão vossos iguais; haverá então alianças de parte a parte, de modo que já ninguém pensará que não somos franceses.” (Abbeville, 1614: 59-60)
Escusado também nos será comentar o parecer de Japiaçu, cuja previdência
nos fazem considerá-lo, mesmo ao arrepio dos “politicamente corretos”, da mesma ma-
neira autêntico, significativo e lúcido que o juízo crítico de Momboréaçu. Mesmo que
assim não fosse, o fato é que a posição do índio velho foi voto vencido na plenária tupi-
nambá e prevaleceu a pragmática do morubixaba. Os índios do Maranhão amanharam-se
aos franceses e, no dia 1º de novembro de 1612, os Senhores de la Ravardière e de Rasil-
ly fincavam a bandeira de França ao lado da cruz chantada na esplanada do forte, que foi
batizado de São Luís, em homenagem ao rei menino. Era fundada, com toda pompa e
circunstância, a França Equinocial:
156
“(...) armados e com garbo nos seus mais belos uniformes, marcharam os soldados ao som das cornetas e tambores e seguidos pelos índios, até a residência dos senhores loco-tenentes-generais de Sua Majestade, a fim de buscar o estandarte de França, que foi carregado pelos seis prin-cipais, na seguinte ordem: tambores e cornetas iam à frente seguidos pela companhia francesa bem fardada e em boa ordem; vinham depois os seis principais índios, vestidos com seus casacos azuis com cruzes brancas na frente e nas costas e carregando ao ombro o estandarte. Os srs. de Rasilly e de la Ravardière, loco-tenentes-generais, vinham atrás segurando as extremidades do estandarte e os acompanhavam todos os fidalgos franceses de nossa equipagem. Uma grande multidão de índios acorridos de todas as aldeias circunvizinhas fechava o cortejo. Foram assim em triunfo, desde a residência dos loco-tenentes, até o pé da Cruz, onde se colocou o estandarte após a exortação do reverendo Pa-dre Ivo. O sr. de la Ravardière dirigiu-se então aos franceses nestas pa-lavras: ‘Senhores, vede como os próprios índios fincam esse estandarte de França em sua terra, colocando-a na posse do Rei; e juram todos vi-ver e morrer conosco, como verdadeiros súditos e fiéis servidores de Sua Majestade.” (Abbeville, 1614: 122-3)
“Jornada milagrosa”
A ocupação do Maranhão, empreendida sem qualquer segredo pelos france-
ses, logo se fez conhecida em Madri e o governo da metrópole expediu, em outubro e
novembro de 1612, “ordens terminantes” (Varnhagen, 1854-7b: 141) para que o novo
governador-geral, Gaspar de Sousa – que “recebeu o governo novamente unido por pro-
visão de 9 de abril de 1612” (Varnhagen, 1854-7e: 245) – procedesse no sentido de con-
quistar aquelas terras. O governador desembarcou no porto do Recife em 18 de dezembro
de 1612, tomou posse do cargo em Pernambuco e fixou residência em Olinda, de onde
melhor poderia coordenar os movimentos da campanha sobre o Maranhão, principal in-
cumbência que lhe foi dada pelo regimento passado por el-rei (Cf. Brasil, 1615a: 312).
Todavia, a primeira medida oficial neste sentido só seria tomada a 25 de maio de 1613,
data em que o governador-geral nomeou Jerônimo de Albuquerque como “capitão da
conquista e descobrimento do Maranhão” (Abreu, 1918: 376; Cf. Holanda, 1989: 225).
Dando seguimento à estratégia delineada por D. Diogo de Meneses e pelo sargento-mor
Diogo de Campos Moreno, o governador-geral ordenou que Jerônimo de Albuquerque
157
fundasse uma nova capitania no porto do Camocim, lá formasse povoação e erigisse um
forte, assumindo o comando daquele que deveria ser o posto avançado da campanha (Cf.
Varnhagen, 1854-7b: 141-2).
Em 1º de junho, o capitão deixava o porto do Recife com destino ao Mara-
nhão, comandando uma flotilha de quatro barcos e cem homens, em missão de reconhe-
cimento (Cf. Salvador, 1627: 401). De passagem pelo Ceará, Jerônimo de Albuquerque
encontrou-se com Martim Soares Moreno e determinou que seu antigo companheiro e
subalterno seguisse em direção ao Maranhão para reconhecer a costa e avaliar o poderio
da força francesa (Cf. Provisão de13 de julho de 1613 in Brasil, 1613: 155), enquanto ele
daria início à construção do forte e à atração dos índios das redondezas. Mas, contrarian-
do as ordens do governador e a avaliação de Diogo de Campos, Jerônimo de Albuquer-
que resolveu construir o forte não no porto do Camocim, de más terras e falto de água,
mas na enseada de Jericoacoara (Buraco das Tartarugas), ponto estratégico na rota do
Maranhão, onde obrigatoriamente as naus francesas faziam escala (Cf. Varnhagen, 1854-
7b: 142; Holanda, 1989: 225). Também Martim Soares não cumpriria à risca as determi-
nações que lhe foram passadas, pois ao chegar à baía de São José não se conteve em ape-
nas avaliar as condições da praça a ser expugnada: abrasou o armazém e as choupanas
dos franceses na ilha de Santa Ana e lá deixou uma cruz na qual se lia “Aqui chegou o
Capitão Martim Soares Moreno em nome del-rei de Espanha” (Cf. Brasil, 1613: 172;
Holanda, 1989: 225).
Embora ousada e bem sucedida, a proeza do jovem capitão seria a causa do
malogro do primeiro cometimento sobre o Maranhão. Ainda que tenha escapado de ma-
neira espetacular da perseguição que lhe fizeram uma nau e um patacho franceses (Cf.
Abreu, 1907: 107), Martim Soares foi arribar às costas da Venezuela, donde dirigiu-se
até a ilha de São Domingos (Cf. Brasil, 1613: 149), deixando sem notícias o capitão Je-
rônimo de Albuquerque, que o aguardava em Jericoacoara (Cf. Varnhagen, 1854-7b:
142). Sem saber o que ocorrera com o seu estouvado suboficial, o capitão resolveu retor-
158
nar a Pernambuco em meados de agosto, deixando quarenta homens guarnecendo o for-
tim de taipa e levando consigo um filho de Jurupari-açu (Diabo Grande), prova de que já
houvera conseguido a adesão do maior morubixaba da região (Cf. Abreu, 1918: 377).
Como se vê, tudo se fez com precariedade e improvisação nessa primeira jor-
nada pois, efetivamente, pouco empenho tinha a Coroa de Espanha nesse negócio do Ma-
ranhão, especialmente no que tocava ao seu financiamento. O próprio sargento-mor, que
nessa ocasião estava de licença na Europa a requerer os seus serviços em Madri, sentiria
a “falácia dos projetos” de Filipe III em relação ao Brasil (Cf. Lisboa, 1852: 93). Instado
a voltar à América para empreender a conquista, com a promessa de que teria à sua dis-
posição “uma armada de quatrocentos homens, com cabos de grande experiência, e muita
artilharia e munições” (Lisboa, 1852: 93), Diogo de Campos teve o dissabor de encontrar
em Lisboa apenas trinta soldados prontos a segui-lo e partiu para o Brasil em uma velha
urca, guarnecida tão somente de cinqüenta homens e parcos recursos bélicos (Cf. Lisboa,
1852: 94).
Assim, também a segunda expedição se aprestaria sem o apoio da bolsa de
Filipe III, que parecia muito pouco incomodado com a afronta que lhe lançavam os seus
rivais europeus no Maranhão (Cf. Brasil, 1615: 312). Sendo assim, tudo se faria sob o
patrocínio do governador Gaspar de Sousa, “que procedeu a todos os gastos, chegando
até a tomar arbitrária, mas patrioticamente, uns cinco a seis mil cruzados, que estavam
em depósito, da donataria de Itamaracá então em pleito” (Varnhagen, 1854-7b: 141),
quantia que el-rei determinou, depois, ser restituída ao conde de Monsanto, ordenando
também “que não se bulisse mais no dinheiro do mesmo depósito” (Cf. carta de Filipe III
a D. Luís de Sousa, de 25-01-1617, apud Garcia, 1927b: 141).
Certamente, a dilação da campanha resultava dessa precariedade orçamentá-
ria, pois havia já quase um ano que Jerônimo de Albuquerque deixara o fortim do Rosá-
rio, em Jericoacoara, a fim de buscar auxílios em Pernambuco e nada se fizera, efetiva-
mente, para socorrer os quarenta homens que lá ficaram defendendo-se dos freqüentes
159
ataques dos índios e sofrendo grandes privações e fomes (Varnhagen, 1854-7b: 142).
Assim, sem ter ainda recebido qualquer notícia de Martim Soares ou uma só provisão
d’el-rei, o governador decidiu despachar os socorros, minguados, contudo, em razão dos
parcos recursos que ele podia mobilizar. O caravelão de Manuel de Sousa d’Eça [ou de
Sá], que partiu do Recife em 27 de maio de 1614 (Cf. Eça, 1615a: 281), levava apenas
trezentos alqueires de farinha, menos de um quilo de pólvora (Cf. Lisboa, 1852: 94) e, ao
ancorar na enseada de Jericoacoara, em 9 de junho, a tripulação estava reduzida a apenas
vinte e cinco homens (Cf. Lisboa, 1852: 94).
Mas a modesta equipagem de Manuel de Sousa d’Eça – mazombo de Ilhéus,
filho de uma das três órfãs fidalgas mandadas ao Brasil no tempo de D. João III (Cf. Gar-
cia, 1927b: 170), “a figura mais simpática dos primeiros anos da nova conquista” (Abreu,
1918: 397) – foi de grande valia uma vez que, dez dias após a sua chegada, entrava no
porto de Jericoacoara a nau Régente, sob o comando do capitão de Pratz, que trazia con-
sideráveis reforços de gente e bastimentos para os franceses do forte de São Luís (Cf.
Brasil, 1614: 264, 269, 271, 274; Garcia, 1981b: 170; Holanda, 1989: 225). De Pratz fez
desembarcar “mais de cem homens” (Brasil, 1614: 265) para arremeter contra o fortim,
mas Manuel de Sousa e seus vinte arcabuzeiros os repeliram, mantendo aquela posição
sumamente estratégica em mãos nacionais (Cf. Eça, 1615a: 282).
Frei Vicente, com a sua acuidade costumeira39, achou na vitória do Buraco
das Tartarugas “um presságio da que havia de conseguir no Maranhão” (Salvador, 1627:
405), pois, como de fato veremos em breve, a limitação de recursos da expedição restau-
radora seria equilibrada pela maior versatilidade da tropa brasílica e da sua “manha” na
39 “Por largo tempo, para a história da conquista de Jerônimo de Albuquerque, a fonte única foi o livro do seu colateral [A Jornada do Maranhão].(...) Com a publicação da História do Brasil de Fr. Vicente do Salvador (...), teve-se uma visão independente dos acontecimentos e pôde-se ver o outro lado da questão. (...) a versão de Fr. Vicente do Salvador apura melhor a verdade dos sucessos e deixa claro quanto Diogo de Campos foi malévolo, mesmo injusto, para com o chefe pernambucano.” (Garcia, 1927b: 174). A rela-ção de Diogo de Campos foi publicado por Cândido Mendes no seu Memórias para a história do extinto estado do Maranhão (Almeida, 1860-1874), obra rara à qual não pudemos ter acesso. Para trabalharmos a versão do sargento-mor nos valemos do texto de João Francisco Lisboa, que se baseou largamente nesta
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condução da guerra no trópico, características que confeririam maior eficácia e melhor
sucesso a suas manobras no teatro de batalha. A vitória de Jericoacoara fora pintada com
essas cores, conforme podemos verificar na informação do frade historiador, aduzida das
justificativas de de Pratz sobre o recontro:
“E deu por causa o Monsiur a quem lhe perguntou por que se retirara, que viram muita gente na trincheira donde os nossos saíram e temera que vindo de socorro lhes não poderiam escapar, não tendo por possível que tão poucos homens houvessem cometido a tantos senão com as costas quentes (como diziam), e confiados nos muitos que trás eles saí-ram. E os muitos eram vinte soldados que haviam ficado por não terem pólvora e munição, e se assumavam por cima da trincheira a ver de pa-lanque a briga, que da praia se fazia (...).” (Salvador, 1627: 404-5)
Todavia, a despeito do empenho do governador-geral e da façanha de Manuel
de Sousa d’Eça, as coisas seguiam “tíbias e mal compostas” (Lisboa, 1852: 96) na prepa-
ração da expedição restauradora do Maranhão. Para começar, surgiram problemas em
relação ao comando da jornada, pois a 26 de maio, véspera da partida do caravelão de
Manuel de Sousa, aportara no Recife a urca do sargento-mor. Ora, Diogo de Campos
trazia ordem régia no sentido de ser incumbido da empresa do Maranhão (Cf. Instrução
de 08-11-1613 in Brasil, 1613: 156-7), mas o governador Gaspar de Sousa, por sua conta
e risco e em razão das delongas de Filipe III, já houvera deliberado sobre a matéria e de-
cidido reconduzir Jerônimo de Albuquerque na função. O impasse, provocado pelas duas
resoluções divergentes, viria a procrastinar, outra vez, a jornada ao Maranhão, mas o juí-
zo do governador-geral acabou prevalecendo. Jerônimo de Albuquerque foi nomeado
chefe da expedição em 17 de junho e a 30 do mesmo mês, depois de recebidas as tão es-
peradas notícias de Martim Soares, Diogo de Campos seria investido na função de “ad-
junto e colateral” do capitão pernambucano (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 142-3; Abreu,
1918: 377). Mas a decisão conciliatória do governador feriria os brios do sargento-mor40
fonte e reproduziu muitas passagens dela (Cf. Lisboa, 1852: 88). 40 “Da participação de campanhas tão famosas [em Flandres], do conhecimento do castelhano e do francês, [Diogo de Campos] tirava um ar de filáucia, de superioridade impaciente.” (Abreu, 1918: 375).
161
e viria a ocasionar divergências sérias sobre a condução da campanha. João Francisco
Lisboa, cuja prevenção contra o capitão pernambucano é manifesta, aponta as diferenças
de caráter e de “qualidade militar” entre os dois cabos:
“Diogo de Campos, tático consumado, e veterano de Flandres, prudente e contemporizador, nada queria fiar do acaso, dissipava-se em cálculos e aprestos, e em cada ponto que aportava, o seu primeiro cuidado era traçar e erguer fortalezas, e ordenar as companhia e esquadras dos sol-dados, segundo as regras mais apuradas da ciência e disciplina militar. Jerônimo d’Albuquerque, pelo contrário, soldado encanecido nas guer-ras irregulares do Brasil, decidido, arrojado, vaidoso e crédulo, fazia só fundamento nos seus índios (...).” (Lisboa, 1852: 96)
Pensamos, divergindo do insigne jornalista maranhense e concordando com
Manoel Bomfim (Cf. Bomfim, 1929: 223-4), que foi exatamente a condução da campa-
nha nos moldes preconizados por Jerônimo de Albuquerque a causa do bom sucesso con-
seguido na guerra do Maranhão. A propósito, é importante salientar que além dos parcos
recursos financeiros e do impasse sobre o comando, as dificuldades para o recrutamento
da tropa eram o maior problema a ser enfrentado na preparação da jornada, segundo a
própria avaliação do governador-geral, citada pelo publicista do Jornal de Timon (Cf.
Lisboa, 1852: 94). Como conta frei Vicente, o alistamento de soldados brancos foi irrisó-
rio, uma vez que “exceto alguns que por sua vontade se ofereceram a ir, os mais nem
com prisões podiam ser trazidos”, o que levou o governador-geral a decretar que os “ho-
mens ricos e afazendados que tinham mais de um filho, que dessem outro” (Salvador,
1627: 403). Com essa providência, teria sobejado gente à disposição do governador (Cf.
Salvador, 1627: 403), mas a partida para o Maranhão não se daria antes que o capitão
pernambucano arregimentasse os “seus índios”, indispensáveis para a composição do
exército restaurador, pois como dirá mais tarde Gaspar de Sousa a Alexandre de Moura,
“sem índios não se pode fazer guerra e sem Jerônimo de Albuquerque não temos índios”
(Apud Galvão, 1979: 28-9).
Agindo nesse sentido, Jerônimo de Albuquerque deixaria o Recife a 22 de
162
junho com destino à Paraíba e ao Rio Grande do Norte, onde deveria buscar os seus ín-
dios e esperar pelo sargento-mor para, juntos, demandarem o Maranhão (Cf. Eça, 1615a:
281; Lisboa, 1852: 97; Varnhagen, 1854-7b: 143). Ao que tudo indica, Jerônimo de Al-
buquerque teve dificuldades para desincumbir-se de sua tarefa (Cf. Lisboa, 1852: 97),
mas o capitão mameluco usaria a sua manha de tempero brasílico e, valendo-se da sua
mui cara ascendência, conseguiria mobilizar o contigente índio, tal como nos conta frei
Vicente do Salvador, então o custódio da Paraíba:
“Eleito Hyeronimo de Albuquerque por capitão-mor da conquista do Maranhão, como temos dito, se foi logo às aldeias do nosso gentio pa-cífico e, por lhes saber falar bem a língua e o modo como se levam, a-juntou quantos quis. Um contarei só do que houve em uma aldeia, pera que se veja a facilidade com que se leva este gentio de quem os entende e conhece, e foi que pôs a uma parte um feixe de arcos e frechas, a ou-tra outro de rocas e fusos, e mostrando-lhos lhes disse: ‘Sobrinhos, eu vou à guerra, estas são as armas dos homens esforçados e valentes, que me hão de seguir; estas as das mulheres fracas e que hão de ficar em casa fiando; agora quero eu ver quem é homem ou mulher’. As palavras não eram ditas, quando se começaram todos a desempulhar e pegar dos arcos e frechas, dizendo que eram homens e que partissem logo pera a guerra.” (Salvador, 1627: 403)
De fato, em 29 de julho, o capitão-mor mandou avisar o governador que já
estava a postos no Rio Grande do Norte, “com 300 índios frecheiros e muita gente bran-
ca” (Abreu, 1918: 377), mas novos embaraços financeiros (Cf. Abreu, 1918: 377-8)
protelariam mais uma vez a partida do sargento-mor e ocasionariam a mudança dos pla-
nos da jornada, que agora deveria seguir até Tutóia ou, no máximo, até o rio Preá [ou
Periá], donde os nossos deveriam tão somente “inquietar os franceses e captar as simpati-
as dos índios”, segundo a determinação do governador-geral (Abreu, 1918: 377). Com
essa deliberação em mãos, a 23 de agosto Diogo de Campos deixou o porto pernambuca-
no com destino ao Rio Grande do Norte, conduzindo uma frota de “oito embarcações
pequenas” (Eça, 1615a: 281) com menos de cem homens de mar e guerra na tripulação, a
qual incluía “muitos presos, de que, segundo Diogo de Campos, se achavam cheios os
fortes e a cadeia” (Lisboa, 1852: 97) e dois capuchinhos que “deviam pelejar contra os
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missionários franceses na conquista das almas.” (Lisboa, 1852: 97; cf. Salvador, 1627:
403-4).
A 25 do mesmo mês, tendo todos os expedicionários reunidos sob as ordens
do capitão e de seu “adjunto e colateral”, a armada zarpou da barra do Potengi na deman-
da do Maranhão. Finalmente, começava a jornada que os capuchinhos chamaram “mila-
grosa”, o qual conceito abonaria Capistrano, agregando-se-lhe o seu julgamento sempre
conciso e sagaz: “Milagrosa foi realmente, milagrosa de mocidade, de estouvamento;
milagrosa sobretudo de felicidade” (Abreu, 1918: 375). De fato, o descaso d’el rei de
Espanha, a míngua de recursos, as mudanças de planos, os aprestos improvisados, a frota
capenga, o comando dividido, a tropa mal-ajambrada, tudo contrastava com as condições
da praça a ser expugnada:
“Já agora não se trata, com efeito, de uma simples campanha contra náufragos, aventureiros ou entrelopos que agem sempre por conta de interesses privados, fiando-se em sua familiaridade com os índios. Mais do que a própria Guanabara, onde os invasores, quase desde o começo, se acharam internamente divididos pela rivalidade de crenças e ambi-ções, ou enfraquecidos pelo tipo de recrutamento a que muitos foram sujeitos, o estabelecimento francês no Maranhão, posto que incipiente e ainda mal consolidado, apresenta-se como um corpo relativamente coe-so, fortalecido pela chancela real (...).” (Holanda, 1989: 202)
O capitão mameluco, seu tino e sua autoridade
Deixando de lado as marchas e contramarchas do itinerário percorrido pelos
expedicionários desde o Rio Grande do Norte, do qual há que se relevar a discordância
entre os dois cabos da jornada, o descontentamento que grassava na tropa e as muitas
defecções havidas em razão disso (Cf. Lisboa, 1852: 97-9); Varnhagen, 1854-7b: 143;
Abreu, 1918: 377-8), tomemos nosso lugar no teatro da guerra do Maranhão.
A armada – à qual se agregaram o capitão Manuel do Brito Freire e seus de-
zesseis soldados do forte do Amparo, no rio Ceará (Lisboa, 1852: 98) – fundeou no dia
30 de setembro na enseada de Jericoacoara, onde os aguardava o capitão Manuel de Sou-
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sa d’Eça, comandante do forte do Rosário que, como “Provedor e Contador da fazenda
de Sua Majestade na dita conquista” (Eça, 1615a: 282), aplacou os maus humores da
tropa, pagando os soldos em atraso desde a partida do Recife. Ali, deliberaram os oficiais
em conselho, tendo o sargento-mor o seu voto vencido, que se devia avançar até o ponto
extremo assinalado nas instruções do governador-geral, em razão das precárias condições
dos sítios do Buraco das Tartarugas e do porto do Camocim, carentes de água potável
(Cf. Eça, 1615a: 282; Lisboa, 1852: 99). A 5 de outubro, dia da padroeira do forte de
Jericoacoara, toda a tropa foi reunida para a missa solene e se pôde contabilizar o conti-
gente que já se preparava para dar nos franceses estabelecidos na ilha do Maranhão:
“Na mostra acharam-se 220 soldados efetivos das quatro companhias, e 60 homens de mar de que ordenou outra, montando tudo, com os en-fermos, a 300 portugueses, e não passando os índios de 200, total qui-nhentos homens de guerra, mar e terra.” (Lisboa, 1852: 100; cf. Holan-da, 1989: 227)
Uma semana depois da festa, no dia 12 de outubro, o forte do Rosário foi in-
cendiado para não servir ao inimigo e a armada zarpou no rumo do rio Preá, o qual desá-
gua na borda mais meridional da larga barra do Maranhão, onde os ferros foram lançados
na noite do dia seguinte (Cf. Eça, 1615a: 282). No acantonamento improvisado a poucas
léguas do forte francês, a discordância entre o capitão Jerônimo de Albuquerque e o sar-
gento-mor Diogo de Campos, que já era grande, mais se alargaria41, pois se o mameluco
tudo cometia para acender o rastilho da investida contra o invasor, o eleito de Filipe III
empenhava-se em conservar as determinações do governador-geral, demorando-se em
suas considerações de tático europeu. Um aproveitava-se do entusiasmo que tomou os
soldados depois do pagamento dos soldos e concordava com a infantaria e seus cabos42,
“que teríamos obrigação de bater à porta do inimigo e ir adiante até ver se alguém com
41 “(...) a tanto chegaram as diferenças que o capitão-mor mandou arvorar forças pela praia.” (Holanda, 1989: 227; cf. Lisboa, 1852: 101). 42 Manuel de Sousa d’Eça e Jerônimo Fragoso de Albuquerque, sobrinho do capitão-mor (Cf. Eça, 1615a:
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maior força nos impediria o passo” (Eça, 1615a: 283), enquanto o outro preocupava-se
com a condição precária da tropa43 e insistia em manter os desígnios do governador-geral,
“que não nos mudássemos do sítio onde estávamos e que nele nos fortificássemos e dali
avisássemos Sua Majestade (...) e o governador Gaspar de Sousa, pedindo-lhe mais gente
e mantimentos” (Eça, 1615a: 283). Embora os cuidados do sargento-mor não fosses in-
fundados, o capitão pernambucano faria prevalecer a sua autoridade, cada vez mais forta-
lecida pelo arrebatamento dos expedicionários, e agiria com expediência:
“Diogo de Campos [disse] que não fossem logo buscar direitamente o inimigo aonde ele estava com toda a força, mas que lhe fossem pouco a pouco ganhando terra. Contudo Hyeronimo de Albuquerque disse que isso era infinito, e mandou ao piloto-mor Sebastião Martins (...) sondar o rio e reconhecer a terra (...) e tendo andado vinte léguas pouco mais ou menos, deram na baía do Maranhão da banda do sul em um bom porto, que lhe pareceu capaz para estar a armada surta.” (Salvador, 1627: 406)
Com a chegada dessas notícias, tudo se aprestou para dar provimento às de-
terminações do capitão-mor e, a 21 de outubro, “os navios velhos e ajoujados com a car-
ga” (Lisboa, 1852: 102) iniciaram uma penosa navegação entre os inúmeros parcéis, i-
lhas, mangues e boqueirões da costa que margeia a baía de São José, abicando, depois de
cinco dias de luta contra os vagalhões, ao porto descoberto por Sebastião Martins (Cf.
Eça, 1615a: 283), a apenas dezoito léguas do Preá (Cf. Holanda, 1989: 227). Guaxendu-
ba, na terra firme, ficava defronte à ilha ocupada pelos franceses, em um sítio de praias
vastas, águas abundantes e arvoredo denso44, onde “determinou o capitão-mor fortificar-
se em um vale entre duas montanhas, que lhe serviam de padrastos, dizendo que quem
fosse seu amigo não lhe aconselhasse outra coisa” (Eça, 1615a: 284). De imediato ao
desembarque, começou-se a construção do forte de pau a pique no local escolhido, sendo
283). 43 “(...) vinham todos mal vestidos, mal comidos e mal dormidos. É certo que no presídio das Tartarugas se havia pago à tropa os seus atrasados em fazendas pelos preços do contrato, mas tais eram eles, que mal teve cada um com que cobrir a nudez dos corpos. Para comer e beber não havia mais que farinha seca e água, e nas embarcações vinha tudo apinhado, de feição que a ninguém sobejava espaço para deitar-se.” (Lisboa, 1852: 100-1).
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os trabalhos conduzidos pelo capitão Francisco de Frias Mesquita, “engenheiro do Estado
do Brasil” (Cf. Certidão in Moura, 1616: 220). Diogo de Campos, o soberbo soldado de
Flandres que tão pouco se fiara no valor da tropa mal-amanhada, enterneceu-se com a
atitude daqueles expedicionários estropiados pelos três meses da duríssima jornada, no
assentamento do arraial restaurador do Maranhão:
“Trabalhava-se (...) de noite e de dia, coisa que se não pode crer de gen-te tão cansada, e tão mal provida, e que continuamente andava com as armas nas mãos, e atravessando matos, e rondando as praias, guardando portos, fazendo emboscadas, batendo veredas, reconhecendo pistas, vi-giando lanchas, e trabalhando nas obras e na descarga dos navios, de sorte que não havia sair de um trabalho, sem se deixar de entrar em ou-tro. (...) descalços, despidos, rotos do mato, transidos, pálidos, mas muito animosos, andavam todos os soldados e oficiais com uma con-formidade grande.” (Moreno apud Lisboa, 1852: 106)
Embora o sargento-mor estivesse sensibilizado com essa desvelada dedicação
dos expedicionários, ele ainda dissentia agudamente do capitão que os comandava, prin-
cipalmente no que tocava à solução de um problema que a ambos afligia desde a partida
do Rio Grande do Norte, a insuficiência de soldados para a empresa que haviam assumi-
do como comandantes. Nisso concordavam os dois cabos da jornada pois, a bem da ver-
dade, quinhentos homens era um contingente irrisório para atuar num teatro de operações
cuja dinâmica se definiria pelos embates corpo a corpo, especialmente numa conjuntura
em que o inimigo estava solidamente fortificado entre muitas aldeias aliadas. Entretanto,
se Diogo de Campos acreditava que o problema só seria solucionado com a requisição de
reforços provenientes da tropa regular do governador-geral, Jerônimo de Albuquerque
entendia que tudo se resolveria se conseguissem captar a amizade dos índios, atraindo-os
para as fileiras do exército restaurador.
Durante todo o percurso da expedição essa polêmica agitara os dois oficiais,
pois o capitão pernambucano, ao arrepio do veterano de Flandres, tudo fazia para mobili-
zar mais índios para as hostes luso-brasílicas e não interromper o avanço da tropa restau-
44 Esta área fica no território do atual município de Icatu.
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radora. Todavia, os índios não se mostravam interessados em se integrarem a uma cam-
panha a ser empreendida longe de suas terras, contra um inimigo que não conheciam e
sem terem uma contrapartida imediata, uma vez que a penúria de recursos que o capitão-
mor tinha que administrar não lhe permitia negociar com os índios de maneira mais pro-
dutiva45. De mais a mais, o inequívoco e franco respeito que o filho da Arcoverde culti-
vava em relação a seus aparentados impedia que ele se valesse dos ardis e aleivosias que,
de ordinário, eram empregados para “convencer” os índios de alguma coisa, quando estes
recalcitravam (Cf. Salvador, 1627: 207). Ante a esquivança dos índios, o sargento-mor
remoqueava dos esforços baldados do capitão mameluco:
“Daqui se pode ver o cabedal que é bem fazer-se das palavras dos ín-dios do Brasil, e quanto importa estarem obrigados continuamente mais do temor e força dos brancos, que de palavras de línguas, as quais não guardam senão no que nos não está bem.” (Moreno apud Lisboa, 1852: 98-9)
Acantonados a poucas léguas do inimigo, essa dissensão entre os dois co-
mandantes da campanha só tendia a se aguçar, pois apesar da “baixa rivalidade de Diogo
de Campos” (Bomfim, 1929: 225), de todos os percalços da jornada e das muitas carên-
cias da tropa, o estado de espírito dos expedicionários e o avanço da marcha resultavam,
com efeito, da liderança positiva e dos acertos táticos de Jerônimo de Albuquerque. As-
sim, com a sua autoridade consolidando-se a cada dia, o capitão pernambucano não tinha
por que rever os seus preceitos, especialmente quando já se divisava o recontro com o
inimigo tão ardentemente buscado por ele. Incitado pela arrogância do sargento-mor e
resoluto na confiança que depositava nos índios, seus parentes e parentes de muitos dos
soldados que liderava, o comandante da expedição restauradora do Maranhão tudo fazia
para provar que a melhor estratégia para vencer a guerra contra os franceses era contar
com uma boa aliança com os íncolas ou, pelo menos, tentar provocar sua defecção das
45 “(...) o capitão-mor agasalhava esta gente, fazendo-lhe muitos regalos, imaginando poder trazê-los para
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fileiras inimigas. Mesmo que tenha excedido em sua boa fé, equivocando-se, pelo menos
aparentemente, em algumas ocasiões, como quando deu guarida a alguns tapuias que
depois se revelaram espias dos franceses (Cf. Lisboa, 1852: 104 e Holanda, 1989: 227),
Jerônimo de Albuquerque provaria a agudeza do seu tino e a previdência da sua doutrina
num momento crucial da guerra do Maranhão e, de uma vez por todas, veria a sua autori-
dade firmar-se definitivamente.
Havia duas semanas que a tropa luso-brasílica estava estacionada em Gua-
xenduba e os franceses já se preparavam para arrostar o arraial restaurador, pois a falange
nacional apenas mantinha a sua campana sobre o inimigo, impedida de atacá-lo em razão
do desequilíbrio de forças que já aludimos. Era o dia 10 de novembro e uma de nossas
volantes capturou uma canoa de índios amigos dos franceses, levando-os à presença dos
comandantes da tropa que, mais uma vez, dissentiram sobre o que se devia fazer. Os ter-
mos da discussão refletem, por um lado, a firmeza da mão de comando do capitão mame-
luco e, por outro, a sua convicção doutrinária de que a confiança deveria pautar a relação
dos luso-brasileiros com os índios, irmanados pela ancestralidade comum:
“Os prisioneiros, fazendo da necessidade virtude, e não tendo naquele aperto outro remédio, asseguraram com intrepidez e descaramento que vinham de paz. Saiu alegremente a recebê-los Jerônimo de Albuquer-que, mas Diogo de Campos, a quem doíam estas coisas no coração, não se pôde ter que lhe não dissesse: ‘Senhor, não sejam estes como os ou-tros, mandem-se pôr a recado, e saibamos o que se passa, que tanta gente, nem tão bem consertada, não vem senão a tomar língua por parte dos franceses’. A isto lhe respondeu o capitão-mor publicamente: ‘Se-nhor, isto não é guerra de Frandes. V. Mcê. me deixe com os índios por me fazer mercê, que eu sei como me hei de haver com eles, que sei que vêm buscar de paz’. E dizendo isto, os despediu e deixou ir livremente, enchendo-os de afagos e mimos!” (Lisboa, 1852: 107)
Mas será o desfecho do caso que apontará para o acerto da política de corte-
sia de Jerônimo de Albuquerque para com os índios, pois o que parecia ao sargento-mor
uma ingenuidade do capitão, era tão somente um eflúvio da sua manha nas coisas brasíli-
si; mas nada se aproveitou, e não pôde ajustar nada com eles.” (Eça, 1615a: 284).
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cas. Certamente o mameluco desconfiava que os índios estavam mentindo para salvar a
própria pele, mas ele tinha aprendido com a mãe e com a sua própria experiência de vida
que a altivez dos seus parentes suplantava o apelo da violência nas questões de fidelidade
aos amigos. Ele sabia que de nada lhe valeria o uso da força – que, aliás, não tinha a me-
nor intenção de aplicar – para arrancar alguma coisa daqueles índios e melhor seria fazer-
se de crédulo, evocar o parentesco com eles e dar mostras de sua liderança e generosida-
de, tocando em pontos sensíveis da ética que animava aquelas mentes. Talvez assim pu-
desse conquistar a amizade dos prisioneiros que, sinceramente, considerava como aliados
naturais e, dessa maneira, não só obter deles informações preciosas como atraí-los para as
fileiras da força restauradora, o único esteio dos parentes, pensaria o capitão mameluco,
naquela guerra contra o estrangeiro usurpador. Nem tudo, como veremos a seguir, corre-
ria tão bem no sentido da atração dos índios, mas naquele preciso momento a psicologia
de Jerônimo de Albuquerque deu os frutos que ele almejava:
“De maravilha um dos índios, que tinha a mãe em Pernambuco, deixou-se ficar no acampamento, e revelou ao padre fr. Manuel, que era muito versado nos seus dialetos, que a canoa não tinha ali vindo a outro fim senão a fazer um último reconhecimento, sendo a tenção dos franceses assaltar os navios aquela mesma noite e, depois de os render, queimar, pôr cerco à fortaleza por mar e por terra.” (Lisboa, 1852: 107; cf. Eça, 1615a: 284). “Na madrugada de 11 de novembro, envoltos numa densa escuridão, chegaram os franceses silenciosamente; mas sendo em breve percebi-dos, travou-se a canhonada e fuzilaria de parte a parte. Entretanto a arti-lharia do forte jogava com pouco efeito; e os guardas postos aos navios os abandonaram depois de uma fraca resistência. Três dos navios caí-ram em poder do inimigo, escapando os outros três (...).” (Lisboa, 1852: 108; cf. Eça, 1615a: 284)
Em que pese a apreensão dos três vasos, não fosse a apostasia do índio pro-
vocada pela habilidade de Jerônimo de Albuquerque e, provavelmente, os resultados se-
riam desastrosos para a força luso-brasílica, pois um ataque de surpresa da armada fran-
cesa arruinaria a modesta flotilha nacional, provocando o isolamento do arraial e, conse-
qüentemente, a sua expugnação. Sendo assim, o capitão provou o seu ponto de vista táti-
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co frente a Diogo de Campos, fortaleceu a convicção daqueles que acreditavam em seu
discurso conciliador e confiavam em suas práticas aglutinadoras em relação aos índios,
ergueu o moral da tropa e, com isso, viu o seu prestígio crescer e a sua autoridade se fir-
mar definitivamente. Com efeito, mesmo antes do ataque francês, quando já estava de
posse da informação do índio sobre a manobra do inimigo, Jerônimo de Albuquerque deu
por terminada a sua polêmica com Diogo de Campos, mostrando ao sargento-mor de
quem era a mão de comando naquela campanha e em virtude de qual propósito ele se
valia dela com tanta determinação:
“Como isto [a informação do índio] viesse ao conhecimento de Diogo de Campos, à boca da noite, fez aviso ao capitão-mor para se precaver, e puxou ele com parte da força a guarnecer os navios, entendendo, co-mo Temístocles, que a salvação desta singular Atenas estava toda na-quelas muralhas de madeira, mas saindo-lhe o capitão-mor por diante no ato mesmo do embarque, opôs-se a este desígnio, dizendo que ti-nham vindo ali, não a defender meia dúzia de tábuas podres, senão a terra que pisavam, e haviam ocupado em nome de el-rei. Tornou-lhe Diogo de Campos que contas dariam ao mesmo rei da armada, se a perdessem, sendo ela o único recurso e meio de salvação? E assim con-tinuou a disputa, vencendo afinal a autoridade de Jerônimo de Albu-querque, que mandou abicar e atoar os navios à terra, quando fosse possível, e deixando-lhes alguma gente para sua guarda, dispôs tudo em terra para repelir o ataque.” (Lisboa, 1852: 107)
Entendemos que a grande lição desse episódio que veio a consolidar o mando
do capitão mameluco e prefigurar a vitória final que se feriria em breve, foi a legitimação
prática de uma doutrina baseada axiomaticamente na consangüinidade entre luso-
brasileiros e índios, cujo corolário preconizava um relacionamento cordial e cooperativo
entre eles e a sua união – como um só povo, diríamos – na defesa do território usurpado
pelo estrangeiro. Ás vésperas da batalha decisiva, o capitão mameluco conseguiu firmar
um discurso que fora o seu arrimo na disputa pelo comando da expedição desde a partida
do Rio Grande do Norte, juntando o apelo de uma ancestralidade comum caldeada pela
miscigenação com a defesa da terra que já era o esteio do “povo novo” que nela germi-
nou.
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E que efeito teria provocado tal discurso entre os “os quatrocentos e tantos
mestiços e selvagens”, essa “gente bem aguerrida” à qual o cirurgião francês atribuiria a
derrota de seus confrades (Cf. Cirurgião Francês, 1615?: 323), senão dar àqueles “moços
impacientes e pouco disciplinados, ansiosos de medir-se com os franceses” (Abreu, 1907:
107) o estímulo derradeiro de que precisavam, ao resgatar a sua autoconfiança inibida
pelo poderio descomunal do inimigo? O velho capitão era um deles e a sua liderança se-
gura, consolidada a expensas de suas convicções sobre quem era o povo que a sua tropa
defendia e representava frente ao invasor, acenderia naqueles homens a centelha do entu-
siasmo e da superação que lhes abrasaria a alma e lhes aqueceria a confiança para não se
dobrarem frente ao estrangeiro que conspurcava a terra que os concebera.
A batalha de Guaxenduba e o “jeitinho brasileiro de guerrear”
De imediato, contudo, a apreensão das três naus portuguesas ensoberbeceu os
franceses, cuja poderosa armada, fortalecida mais ainda pelas muitas esquadrilhas de
pirogas dos índios amigos, passou a fazer manobras ostensivas defronte ao arraial, blo-
queando o canal, bombardeando o fortim e arcabuzando a gente que andava na praia (Cf.
Eça, 1615a: 284; Lisboa, 1852: 108; Holanda, 1989: 228). À medida em que decorriam
os sete dias que durou o cerco, a situação no arraial, defendido por uma artilharia miúda,
tornava-se cada vez mais crítica. A alimentação parca que os expedicionários já tinham
se acostumado a tomar, reduzira-se a farinha seca e água, uma vez que os índios não se
atreviam a sair do forte para buscar caça, frutos e raízes nas imediações (Cf. Lisboa,
1852: 108). Os feridos e os doentes convalesciam à míngua, pois como lembraria depois
o sargento-mor, “no quartel, a Deus louvores! não havia cirurgião nem mezinha alguma,
mais que um pobre moço, que ainda que soubesse atar uma ferida, não tinha coisa que
lhe por, mais que azeite comum ou de copaíva, e pano d’água com ensalmo” (Moreno
apud Lisboa, 1852: 114). Tal conjuntura solapava, pouco a pouco, o moral da tropa luso-
brasílica e mais arrogância permitia aos franceses. Na madrugada do dia 19 de novembro
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de 1614, o comando inimigo alinhava as suas forças no mar fronteiro ao arraial, com tudo
aprestado para investir contra a fortificação. A “formidável armada” (Lisboa, 1852: 110)
vinha, segundo o depoimento do tambor francês feito prisioneiro na batalha, com um só
desígnio e um respeitável contingente para concretizá-lo:
“(...) se embarcou toda a gente para a jornada de Guaxenduba para ma-tar os portugueses, em seis companhias, a saber, a do Senhor de la Ravardière, a do Cavaleiro de Rasilly (...), a do Senhor de Pratz (...), a do Senhor de Pisieux, a de [Davi] Migan (...) e a do Senhor de Longe-ville (...); em todas as seis companhias estimava haver trezentos ho-mens; (...) na ilha ficaram cinqüenta homens pouco mais ou menos (...); vinham em seis navios, quatro de alto bordo e duas lanchas com artilha-ria, e com dois mil selvagens de várias partes em cinqüenta embarca-ções de remo chamadas canoas, em que havia algumas de setenta pal-mos de comprimento e oito de largura, em que vinham cem índios, de modo que com todo este aparato de forças, munição e bastimentos vi-nham para extinguir o nome e forte português, e dá-los aos selvagens para seu pasto (...).” (Brasil, 1614: 270-1)
Os franceses andavam tão confiantes que só fizeram desembarcar os índios e
duzentos soldados das companhias dos Senhores de Pisieux, de Pratz e de Longeville,
além da liderada pelo dieppense Davi Migan. La Ravardière e de Rasilly mantiveram os
seus homens e outros tantos índios nas naus, como força de retaguarda (Cf. Brasil, 1614:
270). Mesmo assim, era um exército de dois mil e duzentos soldados bem armados, te-
mível diante dos pouco mais de quatrocentos homens esfaimados e alquebrados que de-
fendiam a cerca de pau a pique do fortim de Santa Maria. Mas, houvera chegado a hora
do capitão mameluco finalmente enfrentar o inimigo que tão ardentemente buscava e o
seu voluntarismo meio individualista e meio patriótico não refugaria diante da adversida-
de. Jerônimo de Albuquerque chamou os padres, convocou os oficiais e investiu-se de
sua autoridade carismática para exortar a tropa maltrapilha para a refrega.
O plano do capitão-mor consistia em evacuar o forte, deixando nele apenas
uma companhia de reserva, “com uns trinta homens, os mais deles enfermos, e marinhei-
ros desembarcados” (Moreno apud Lisboa, 1852: 110-11) e dividir o restante da tropa em
dois regimentos de infantaria para encarar o inimigo. Um deles, “com cerca de oitenta
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homens e um número menor de índios” (Lisboa, 1852: 110), seguiria com o capitão-mor
e Manoel de Sousa d’Eça, capitão da vanguarda, para uma campana nas veredas da coli-
na fronteira ao forte, enquanto o outro, “com um punhado de homens quase igual” (Lis-
boa, 1852: 110), sob o comando de Diogo de Campos e dos capitães Antônio de Albu-
querque e Jerônimo Fragoso, deveria se dirigir para a praia a desviar a atenção do inimi-
go, com arremetidas esparsas (Cf. Eça, 1615a: 285). Manobra tática típica da guerra bra-
sílica, adequada para uma tropa de guerrilha com recursos mínimos mas bem habituada
ao terreno, ela consistia em armar uma cilada – cuja isca era a fonte d’água na colina
vulnerável – com o objetivo de surpreender o inimigo entre dois fogos e “dominá-lo
completamente antes do segundo tiro” (Bomfim, 1929: 227).
E foi exatamente o que aconteceu. Enquanto os franceses e seus índios salta-
vam dos barcos sem serem molestados, as companhias de Diogo de Campos se entrin-
cheiravam silenciosamente pela praia e os homens do capitão-mor procuravam flanquear
a colina sem serem vistos. Deixavam o inimigo, também dividido em dois regimentos,
manobrar livremente e sentir-se senhor do terreno para surpreendê-lo quando fosse a ho-
ra. Os franceses, por seu turno, realizavam a rotina a que estavam acostumados, batendo
o campo, ocupando o terreno e tentando intimidar o inimigo por força de sua artilharia.
Além disso, la Ravardière procurava ganhar tempo, mandando um trombeta à cerca do
forte com um ultimato ameaçador e soberbo, no qual dizia “que dentro de quatro horas
nos resolvêssemos, se queríamos ser seus prisioneiros ou se nos haviam de entregar aos
selvagens que traziam consigo, para que nos comessem” (Eça, 1615a: 285). Era o mo-
mento propício que aguardavam os capitães da falange nacional para dar no inimigo, que
se distraía pelas posições conquistadas sem resistência e relaxava a guarda, fiando-se no
terror que pensava ter infundido naquela tropa chinfrim de mamelucos esfarrapados. Os
franceses já haviam tomado a colina estratégica, cerravam fileiras para avançar sobre o
fortim desguarnecido e apenas aguardavam a volta do trombeta para expugnar inapela-
velmente o arraial luso-brasileiro, espetando o estandarte de França no solo de Guaxen-
174
duba. Mas eles seriam surpreendidos pela reação inusitada dos capitães luso-brasileiros.
Diogo de Campos interceptou o mensageiro francês, leu a carta, mandou prender o trom-
beta e, de imediato, arremeteu da praia contra os franceses, tomando uma trincheira ini-
miga. Seriam dez da manhã (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 145) e chegara o momento tão
aguardado por Jerônimo de Albuquerque que, vendo os franceses manobrarem para a-
gruparem suas forças e revidar as arcabuzadas do sargento-mor, saltou com os seus ho-
mens dos tujucais onde estavam camuflados e deu no inimigo no piso movediço dos
mangues, onde os luso-brasílicos combatiam com a mesma desenvoltura dos seus com-
panheiros e ancestrais índios. Nas palavras de uma testemunha da escaramuça, os aguer-
ridos infantes de Sousa d’Eça e Jerônimo de Albuquerque lutavam com extraordinária
destreza mesmo com a água pela cintura e “saltavam pelo lado como gamos, sendo que
os imigos como traziam meias e sapatos, e calções de pato tosado de vinte côvados de
pano, em se metendo no lodo, nele ficavam pegados e nele lhes quebravam os nossos
índios as cabeças com paus de jucar” (Apud Holanda, 1989: 229 e Donato, 1996: 303-4).
O cirurgião francês dá a sua versão sobre o recontro:
“Monsieur de la Ravardière donna audit sieur de Pessieux [Pisieux] l’ordre qu’il falloit tint avec le sieur du Prat [de Pratz], et le Chevallier de Rasilly, ayant chacun une compagnie de soixante hommes, lesquel-les devoient mettre pied à terre deux heures devant le jour pour se re-trancher auprès d’une fontaine qui estoit à cent pas du fort des Portu-gais, avec l’ayde de quelque quinze cens Sauvages (...). Les Portugais de leur costé firent le sembable que nous avions fait: jouant à quitte ou à doble de leur costé, sortant tous de leur fort, et ayant entendu comme ils estoiant em embuscade proche de nostres souffler une meche, ils ne perdirent point de temps, il vindrent attaquer nos gens par devant e par derrière, prenant le Trompette et le mettant dans une tranchée les veux bandez jusques à ce que le combat fust parachevé. Ils viennent à l’escarmouche a brulle pourpoint, les nostres n’eurent loisir que de tirer chacun un coup.” (Cirurgião Francês, 1615?: 324)
A ação foi rápida e terminante – ou “cirúrgica”, se quisermos adotar a no-
menclatura contemporânea. Na primeira meia hora, foram abatidos mais de sessenta ini-
migos, entre os quais muitos oficiais franceses, “gen de bien et de qualité” (Cirurgião
175
Francês, 1615?: 325). Do comando, logo tombou o senhor de Pisieux, capitão-mor da
tropa atacante (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 145), passado pela espada do filho da Arcoverde
(Cf. Cirurgião Francês, 1615?: 325). Em seguida, caíram Davi Migan e o senhor de Lon-
geville, respectivamente capitão e alferes dos índios (Cf. Brasil, 1614: 272; Cirurgião
Francês, 1615?: 325). Mortos os seus cabeças, a tropa desnorteou-se, estando fustigada
por todos os lados até o cair da noite (Cf. Lisboa, 1852: 113). De Pratz retirou-se para a
capitânia francesa a deliberar com la Ravardière sobre o que devia ser feito, enquanto os
soldados e índios, vendo as suas embarcações varadas pela vazante e abrasadas pelo ini-
migo, se lançavam ao mar aturdidos, lutando contra os vagalhões e fugindo inutilmente
do assesto dos luso-brasileiros, “ces mullastres e sauvages Portugais” (Cf. Cirurgião
Francês, 1615?: 325). La Ravardière e o cavaleiro de Rasilly, filho do almirante que já
houvera se retirado para a França, não puderam desembarcar a companhia de reserva,
também retida no mar em função da maré baixa (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 145). O saldo
da batalha indica que, no calor da luta levada no solo brasileiro, o poderoso exército fran-
cês dobrou-se inapelavelmente frente à tática do capitão pernambucano e à ação da infan-
taria brasílica:
“(...) foi o rompimento de tal maneira, que se desbaratou o campo fran-cês, dos quais morreram a espada e arcabuzadas noventa e tantos que logo ali tombaram, fora os que se afogaram quando fugiam para as em-barcações, que ao todo morreram cento e sessenta franceses dos mais graduados, entre os quais entraram muitos fidalgos e sete, ou oito se-nhores de título, pessoas de muita importância, cativando-se nove que tomamos vivos; queimaram-se-lhes quarenta e seis pirogas; tomamo-lhes ao todo duzentas armas de fogo, mosquetes e arcabuzes; dos sel-vagens se averiguou depois que faltavam quatrocentos, dos quais a maior parte morreram afogados.” (Eça, 1615a: 285; cf. Cirurgião Fran-cês, 1615?: 325 e Bomfim, 1929: 228) “De nossa parte tivemos onze mortos e dezoito feridos, entrando neste número Antônio de Albuquerque, filho do capitão, e o fluminense Bel-chior Rangel.” (Varnhagen, 1854-7b: 143-4; cf. Lisboa, 1852: 114)
Um autor, nosso contemporâneo, escreveu que a batalha de Guaxenduba re-
velou o “jeitinho brasileiro de guerrear” (Donato, 1996: 303), opinião que subscrevemos,
176
pois o nosso pressuposto básico é que a história de uma nação é um conjunto de eventos
significativos que revelam, sobretudo, o “estilo” do povo que a construiu – a matriz e a
moeda da identidade que, por sua vez, forma o âmago do sentimento nacional (Cf. Intro-
dução). Pensamos nas teses consagradas de Gilberto Freyre sobre “a formação sui generis
da sociedade brasileira” (Freyre, 1933: 8), especialmente aquele aspecto fundamental
desse processo que o mestre de Apipucos chamou de “dualismo de cultura e de raça”
(Freyre, 1933: 8), que, pensamos, emerge expressivo do campo de Guaxenduba.
Neste sentido, não será necessário repisar o fato de que na tropa, desde a ofi-
cialidade até os praças, dominava o elemento mestiço e, menos do que este, o contingente
índio – a carta do cirurgião francês ao seu pai é categórica neste aspecto (Cf. Cirurgião
Francês, 1615?). Afinal, quem seriam aqueles infantes, muitos deles convocados nas pri-
sões abarrotadas, senão brasileiros natos que sobreviviam nas franjas do sistema social,
muitos caribocas e alguns poucos mazombos? Ou não eram brasileiros os quatro jovens
capitães – um deles filho e o outro sobrinho de Jerônimo de Albuquerque – que, “juntos
não chegam a oitenta anos” (Eça, 1615a: 287)? E aqueles outros que os documentos não
lembraram, teriam vindo do reino como o engenheiro Francisco de Frias Mesquita e o
sargento-mor Diogo de Campos – aliás, um Moreno do porto marroquino de Gibraltar –
ou seriam como o capitão-mor e o mazombo Sousa d’Eça, lídimos representantes das
primeiras gerações de brasileiros, marcadas a fundo pelo intenso processo de mestiçagem
que Caio Prado definiu como “o signo sob o qual se forma a nação brasileira, e que cons-
titui sem dúvida o seu traço característico mais profundo e notável” (Prado Jr., 1942:
98)?
De mais a mais, não terá sido tão somente a extração dos combatentes que te-
rá emprestado significado aos sucessos de Guaxenduba, mas ela foi um elemento decisi-
vo na construção da nacionalidade porque se vinculou à defesa do território frente ao
estrangeiro, atuando como um produto ideológico de grande eficácia simbólica para os
seus próprios atores. A origem auto-proclamada do capitão Jerônimo de Albuquerque,
177
sua doutrina e sua prática, suas exortações e sua autoridade certamente calaram fundo na
alma daqueles mancebos, de pele trigueira e com avós luso-índios como o seu comandan-
te. Se assim não fosse, por que os expedicionários lutariam com tanto denodo em favor
de um rei absenteísta, usurpador do trono de Lisboa, que não lhes fornecia sequer a mu-
nição de boca e de guerra e mal lhes pagava os soldos? Não estariam, na verdade, sendo
fiéis ao governador do Brasil, morador de Pernambuco e lusitano como el rei morto em
Alcácer-Quibir, projetando os apelos do messianismo patriótico sebastianista46 à defesa
da terra em que tinham nascido? Teriam sido tão voluntariosos como o capitão mameluco
se não vissem nele um reflexo de si próprios, erigido em maestria? Enfim, teriam guerre-
ado maltrapilhos contra um exército tão luzidio, se não os animassem os propósitos de
um capitão-mor que considerava os invasores estrangeiros não como rivais de Espanha,
mas como inimigos dos parentes do seu pai, aliados dos adversários imemoriais do povo
de sua mãe, que vinham invadir a terra de sua família brasileira, cujo príncipe se esperava
como um Messias?
Talvez não possamos responder definitivamente estas questões, mas se nos
aventuramos a propor que o “dualismo de raça” foi um dos principais componentes so-
ciológicos do evento que veio a garantir definitivamente a soberania do território demar-
cado em Tordesilhas, influindo na consolidação do núcleo primário do país, o que dizer
das técnicas de guerra que garantiram a vitória do exército nacional? Aqui, havemos de
ser peremptórios: o evidente sincretismo militar posto em campo na guerra do Maranhão
é uma clara evidência do “dualismo da cultura” influindo na formação da nacionalidade.
Ora, a guerra brasílica é um excelente exemplo do “equilíbrio de antagonis-
mos” que o autor de Casa Grande & Senzala demonstrou ser a característica básica do
nosso processo de formação sócio-cultural. Traço impositivo e distintivo da tradição civi-
lizacional tupi, a guerra foi o mais eficaz instrumento de resistência dos índios à intrusão
46 “Em 1580 o drama da sucessão não tivera praticamente eco na colônia. Mas no correr do século XVII, e enquanto ou onde não começa a brotar o nativismo, ou paralelamente a este, as comunidades brasileiras
178
européia, mas a estreita convivência entre o português e as populações nativas determi-
nou que esse instrumento, em virtude de sua eficácia técnica e tática no meio tropical,
fosse absorvido pelos próprios colonizadores. Por outro lado, as limitações estratégicas
da guerra tupi – especialmente a organização disciplinar difusa e o açodamento dos com-
batentes no arroubo da vendetta – foram mitigadas pelo concurso dos princípios da longa
e bem sucedida tradição bélica lusitana, trazida aos índios pelas mãos dos capitães seus
amigos. Símbolo da fricção entre as etnias originais, a guerra brasílica tornou-se um atri-
buto comungado por elas, ao prover o índio de uma arma mais poderosa frente a seus
inimigos imemoriais, enquanto servia aos portugueses como uma ferramenta inestimável
em favor da salvaguarda do território d’el-rei. Portanto, para o “povo novo” da nação que
surgia no trópico, a guerra brasílica – fusão das tradições militares dos seus ancestrais
americanos e europeus – tronar-se-ia um fator importante de auto-afirmação pois, em
virtude dela, os portugueses, mazombos, índios e mamelucos das falanges brasileiras
garantiram a integridade da sua terra, ameaçada pela rapinagem estrangeira. Conseqüen-
temente, entendemos que a guerra brasílica funcionou como um signo de identidade entre
aqueles indivíduos tão diferenciados racial, social e economicamente, pois firmava-se no
espírito do povo como uma emanação do seu “jeito de ser” comum, engalanado pela tra-
dição vitoriosa das campanhas contra os franceses. Como frisou Pandiá Calógeras em
análise precursora e lapidar,
“Foi esse o primeiro exemplo desse sentimento solidário, que se reve-lou semente fecunda de uma política de longo alcance. Em outros estu-dos, chamamos a essas lutas a primeira guerra nacional nossa, apesar do relativo exagero da denominação: um sentir de união, de inimizade comum contra um terceiro, ainda não constitui, é certo, um ideal nacio-nal. Inda assim, esta guerra do pau-brasil, que durou quase um século (1520-1615), uniu e manteve coesos elementos desconexos e heterogê-neos, cuja colaboração esteve sujeita a forças desintegradoras enérgi-cas, mas às quais pôde resistir de ano para ano mais vitoriosamente. (...) A sensação de serem mais próximos uns dos outros, do que invasores vindos de França, avultou entre os portugueses, gente vermelha e ma-malucos.” (Calógeras, 1930: 16-7)
passam a refletir o momento histórico português.” (Cunha, 1993: 9-10).
179
Neste sentido, pensamos que a guerra brasílica atuou como um catalisador na
formação da nacionalidade brasileira, à medida em que concentrava em si, de uma ma-
neira particularmente expressiva, sentimentos de amor à terra, de orgulho da raça e de
afirmação do estilo do “povo novo da nação”. De mais a mais, a guerra é uma espécie de
“jogo profundo” que “absorve” (Cf. Geertz, 1973: 298-9) os indivíduos porque mobiliza
ardentemente os contendores e seus concidadãos: na crueza da arena de combate, os ho-
mens procuram impor os conceitos da sua comunidade de pares, afirmar a sua ligação
com a terra que os viu nascer e exortar o valor do povo de que fazem parte através da sua
maneira própria de lutar.
Portanto, a guerra do Maranhão condensou a tradição bélica brasileira que se
desenvolvera, paulatinamente, desde a expugnação da França Antártica, ao afirmar estre-
pitosamente o poder do “jeitinho brasileiro de guerrear” numa conjuntura crucial para a
construção nacional brasileira – a consolidação definitiva do território delimitado pelo
meridiano de Tordesilhas, mais de cem anos após o Descobrimento. A vitória da tropa
escoteira sobre o exército francês foi o primeiro lampejo visível de um “estilo” peculiar
que ficaria sedimentado no habitus (Cf. Elias, 1989: 30) do povo brasileiro, ao tornar-se
um símbolo nacional depois das guerras contra os holandeses na Bahia e em Pernambu-
co, como veremos oportunamente.
Jerônimo de Albuquerque Maranhão, um homem cordial
Sugerimos que a guerra do Maranhão explicitou os primeiros lumes da na-
cionalidade não somente porque ela foi empreendida por um “povo novo”, surgido de um
processo particular de relações entre as etnias originais, nem apenas porque esse povo
guerreava com um “estilo” próprio, advindo da fusão das tradições culturais dos povos
formadores. Além destes fatos, por si só expressivos, mais um traço próprio do jeito bra-
sileiro de ser emergiria dos sucessos do Maranhão, uma característica subjetiva notavel-
180
mente persistente do povo brasileiro, aquilo que Sérgio Buarque de Holanda definiu co-
mo “a contribuição brasileira para a civilização”, o “homem cordial” (Cf. Holanda, 1936:
106-7)
Com efeito, o desenrolar dos acontecimentos depois dos combates de Gua-
xenduba revelaria, mais uma vez pelas mãos pragmáticas do capitão mameluco, esse tra-
ço marcante da nossa identidade nacional. Apesar da acachapante vitória na batalha, a
guerra contra os franceses ainda não fora vencida, uma vez que o seu “forte inconquistá-
vel” (Abbeville, 1614: 58) permanecia, como dantes, intocado e a conservação do fortim
de taipa, em que pesasse o seu valoroso significado, não representava nenhuma garantia
cabal em relação ao objetivo da campanha, a restauração do território ocupado pelo es-
trangeiro. Ora, os franceses haviam perdido muitos homens e as suas tropas estavam
desmoralizadas, mas a supremacia de suas forças se mantinha em virtude da cooperação
da indiada das imediações, do grande arsenal que mantinham na ilha (Cf. Brasil, 1614:
275), do apoio da Coroa francesa, que certamente mandaria socorros aos seus colonos, e
do próprio contraste com as condições precaríssimas da caserna luso-brasileira. Aliás,
terá dito la Ravardière, com toda razão, que “Os portugueses não tinham meios de obri-
gar-me a render-me...” (Apud Bomfim, 1929: 232).
Esse estado de coisas iria se refletir na postura assumida por la Ravardière
depois de curtir a ressaca da derrota, pois “o certo é que, de anojado, esteve dois dias
retraído em sua câmara sem falar a ninguém, como depois se soube” (Lisboa, 1852: 114).
O comandante francês manteve a sua armada ancorada onde estava, bloqueando o canal e
assestando a artilharia contra o arraial luso brasileiro, e remeteu uma mensagem ao co-
mandante vencedor, nos mesmos termos desabridos e pavoneados daquela portada pelo
trombeta feito prisioneiro. A carta, redigida no dia 21 de novembro, iniciaria uma corres-
pondência de cinco dias e sete cartas entre la Ravardière e Jerônimo de Albuquerque47, a
47 Esta correspondência está reproduzida, na íntegra, in Lisboa, 1852: 115-120.
181
qual iria imortalizar as qualidades políticas do capitão mameluco. Dizia la Ravardière:
“Senhor de Albuquerque, eu te mando esta para saber a verdade da guerra que fazes, e queres fazer aos meus; porque até aqui não quis pra-ticar-te nada de aquilo, que toca à nossa arte. Porque tu quebras todas as Leis praticadas, em todas as guerras assim Cristãs, como Turquesqu-as (...). Pelo que tu nunca terás honra jamais para com pessoas de mere-cimento, nem farás mais, que abocanhar a carne Cristã; mas a Justiça Divina te castigará como tu mereces, e me dará graça que tu, e os teus proveis a cortesia Francesa, caindo nas minhas mãos, a qual eu te pro-meto em vingança de tuas crueldades, que eu poderei executar sobre ti, e sobre os teus (...). Este teu mortal inimigo (...), Ravardière.” (in Lis-boa, 1852: 115-6)
A resposta de Jerônimo de Albuquerque surpreendeu os franceses, como con-
ta o cirurgião. Eles, que não poderiam esperar mais daquele capitão selvagem do que
“une lettrre pleine de rodomontades”, receberam “une lettre autant courtoise que jamais
François en sçauroit faire” (Cirurgião Francês, 1615?: 326). Com efeito, a sobriedade da
carta exalava uma diplomacia lúcida que temperava a argumentação firme que compete a
um vencedor com o respeito magnânimo que um bom homem de armas deve dispensar
ao adversário submetido:
“Senhor Ravardière, (...) é de crer, que sendo o meu Rei Imperador des-te novo mundo há mais de cento e doze anos, que não dará parte dele a outro Príncipe, e se lha der, que lha não tornará a tirar: pelo que sobre o título de nossa vinda não há que disputar, que se os Reis hão de averi-guar, mal faz quem faz a guerra, e se as armas, escusadas são as pala-vras. (...) Senhor Ravardière, vieram os Franceses em número grande com todas as forças do Estado dos Índios destas Comarcas enganados para nos comerem, e tirarem a vida à fome, e sede, e ao cutelo, e an-dando-nos apercebendo para a nossa defesa, mandaram um Trombeta não sei quem, o qual queria que dentro em quatro horas nos rendêsse-mos; e enquanto falava com meu companheiro Diogo de Campos, a gente Francesa desembarcava, e os Selvagens se chegavam, os france-ses astuciosamente se fortificavam: sendo assim que cada crime destes é intolerável (...). Do sangue, que se derramou de Franceses e Portu-gueses, Deus é testemunha, que não tenho eu a culpa, a quem a tiver ele dará a pena. Portanto se os meus que lá estão enforcardes, mal farei aos vossos, que cá tenho, que são nove com o Trombeta, e um vosso Tam-bor, mas il sera, comme vous plaira. Todos os mortos Franceses fiz en-terrar como pude, não como merecem, se deles algum é necessário, ou os ossos, podem livremente vir por ele, sem nenhum interesse: a muitos salvei a vida, mas os Selvagens, que vêm comigo, confesso, que são
182
mais cruéis, que os vossos, não para comerem carne humana, e assim é fábula, que faltou perna, nem braço a nenhum Francês, e isto sobre a minha honra (...). Dada no forte Santa Maria no Rio Maranhão, a 22 de novembro de 1614. Jerônimo de Albuquerque.” (in Lisboa, 1852: 116-8)
O tom comedido e um tanto resignado da lacônica tréplica de la Ravardière
(Cf. Lisboa, 1852: 118) denuncia que o primoroso discurso de Jerônimo de Albuquerque
surtira os efeitos que o capitão desejava, manter os franceses em retiro. Entretanto, o co-
mandante derrotado insistia em se preocupar com a integridade do trombeta e demais
prisioneiros, o que provocou outro pronunciamento lapidar do capitão mameluco, que
agora evocava, precisamente, o “espírito duplo” do povo da terra do Brasil:
“Senhor Ravardière. Mais obriga aos cavaleiros portugueses um termo cortês do que a força das armas, e assim dou minha palavra que afora a guerra que trazemos, tudo o que for do gosto e serviço do Senhor Ravardière, hei de fazê-lo muito a ponto. (...) “O Trombeta dirá como ficamos, e eu direi que melhor tratamento lhe houvéramos dado, se estivéssemos na nossa pátria; mas como somos homens para quem um punhado de farinha e um pedaço de cobra (quando os há) é sustento sobejo, quem com isto se não acomodar, há de certo fugir à nossa companhia.” (in Lisboa, 1852: 118-9)
Foi o que bastou para quebrantar as últimas veleidades de resistência de la
Ravardière, pois o que poderia fazer o seu exército ante aqueles homens da mesma ma-
neira corteses e selvagens, na mesma medida miseráveis e estóicos, conduzidos na guerra
por um bravo capitão cordial? De mais a mais, já haviam se iniciado na Europa os prepa-
rativos para as núpcias de Luís XIII com Ana de Áustria, filha de Filipe III, as quais sela-
riam a paz entre França e Espanha, deixando o negócio do Maranhão sem o concurso dos
dinheiros régios, principal fator da vantagem francesa. Isso não diminui em nada o papel
do capitão mameluco na negociação das tréguas, pois uma velha prática reza que o dono
de uma terra devoluta é quem nela se sustenta pela força de suas próprias armas e a arma
do capitão mameluco foi o seu “espírito de conciliação” (Rodrigues, 1964: 29), a forma
tipicamente brasileira de acomodação de conflitos que, com todas as nossas contradições
183
e ambigüidades também típicas, tem origem antiga e curso perene no comportamento
político brasileiro de todas as épocas (Cf. Rodrigues, 1964). Neste sentido, havemos de
concordar com Manoel Bomfim que “agora, de sob o estrategista e tático elegante, emer-
ge o político, de uma política bem distinta, porque já é nitidamente brasileira” (Bomfim,
1929: 227).
Seja como for, em 28 de novembro de 1614, la Ravardière viria à terra com o
seu séquito de oficiais e capuchinhos para assinar, no arraial luso-brasileiro, o armistício
que lhe fora imposto pela diplomacia de Jerônimo de Albuquerque, o qual determinava,
entre outras cláusulas menores, que fossem suspensas as hostilidades até o fim de 1615 e
que se trocassem os prisioneiros sem resgate nenhum, mantendo-se as posições anteriores
à batalha de Guaxenduba (Cf. Lisboa, 1852: 121-2). Os franceses foram recebidos com
honras militares e festas, as quais, como anota espirituosamente Diogo de Campos, se
fizeram “com mais música que manjares” (Apud Lisboa, 1852: 121) e, no dia seguinte, a
armada agressora levantava ferros, retornando à ilha do Maranhão. De imediato, a trégua
acertada por Jerônimo de Albuquerque não teve a unanimidade do comando, sendo con-
testada fortemente por Sousa d’Eça (Cf. Eça, 1615a: 286), cujo entusiasmo de soldado
parecia sobrepujar a previdência que se espera de um capitão. A avaliação de Sousa
d’Eça repercutiria no relato que Diogo de Campos faria ao governador-geral e chegaria
até o Conselho de Portugal que, todavia, daria razão aos argumentos do capitão-mor, no
sentido de permitir a permanência na ilha dos “pobres franceses católicos e mecânicos”,
nas palavras de Jerônimo de Albuquerque (Apud Holanda, 1989: 230). O Conselho deu o
seguinte parecer:
“O que Hieronimo de Albuquerque escrevia a Gaspar de Sousa acerca de Ravardière e outros capitães franceses ficarem em serviço de V. Mag.de por moradores de aquelas partes pareceu ao Conselho ponto de muita consideração, e que conseguindo-se com tirar as cabeças princi-pais a gente francesa que ali reside se alcançaria suavemente o mesmo que com as armas se pretende, pelo que seria serviço de V. Mag.de dar sobre isto comissão e poder a Gaspar de Sousa, e enviasse-lhe a tempo que fosse proveito.” (Brasil, 1615b: 292, ênfases nossos)
184
O Conselho de Estado de Espanha, reunido em 2 de abril de 1615, deu pro-
vimento à consulta da câmara portuguesa nos seguintes termos:
“El Consejo dice que considerando que los franceses pueden ser alli de provecho si se ganan, ordeno luego que se escriviese al sosa [Gaspar de Sousa] que entregandole los fuertes que franceses tienen, y dexando las Armas los admita en servicio de V. Mag.d y los señale tierras en que vi-ban adbiertiendo que los divida, y se es posible no quede ninguno en el Marañon.” (Brasil, 1615c: 301)
E assim foi feito, ficando os franceses na ilha até que a armada de socorros
expedida pelo governador-geral e conduzida por Alexandre de Moura chegasse ao Mara-
nhão, em outubro de 1615, quando la Ravardière assinou a rendição incondicional e foi
removido, com os seus homens, para Pernambuco (Cf. Moura, 1616). Este foi o ato final
do drama encenado no Maranhão, pelo qual se jogou a última pá de cal nas pretensões
francesas sobre o Brasil, consolidando a soberania do território a oriente do meridiano de
Tordesilhas ao se lhe agregar o extenso setentrião inculto.
Dos sucessos do Maranhão nada mais fundo se firmaria na história da nacio-
nalidade do que a figura expressiva do capitão maior da conquista. Personificação autên-
tica do espírito do “povo novo” da nação, Jerônimo de Albuquerque é o arquétipo do
brasileiro primordial. Um mameluco, destro e bravo na guerra como um tupi, conciliador
e cortês nas tréguas como um luso, um homem cordial com amigos e inimigos. Portanto,
da batalha de Guaxenduba emergiu um ícone da nacionalidade – Jerônimo de Albuquer-
que Maranhão, passaria a assinar o velho capitão de 67 anos, depois da façanha que co-
mandou, produzindo mais um de seus atos expressivos e plenos de brasilidade: como os
ancestrais índios, agregou ao nome o troféu da vitória, mas como pensavam os ascenden-
tes lusos, seu maior troféu seria a salvaguarda do território da nação.
Seja como for, o brasileiro Jerônimo de Albuquerque Maranhão imbuiu-se
daqueles sentimentos de amor à terra e de orgulho da raça que alimentam todas as ideo-
logias nacionais, contagiou com eles os seus comandados e juntos, o capitão e a sua tropa
185
mameluca, realizaram o ato fundador da nacionalidade. Serão estes mesmos sentimentos
que irão animar os homens que, ao lutarem contra os holandeses no Nordeste sob a or-
dem da guerra brasílica, darão à luz a nação brasileira, a partir de então erguida aos olhos
de todo o seu povo.
186
Capítulo 8
A DEFINIÇÃO DO PERFIL TERRITORIAL
O país original
A fundação do forte do Presépio no estuário do Amazonas, em 10 de janeiro
de 1616 (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 147-9; Holanda, 1989: 233), marca o fim da primeira
fase da formação territorial brasileira. Situado na baía de Guajará, exatamente sob o me-
ridiano imaginário de Tordesilhas e a 1 grau de latitude sul, o forte guardava os funda-
mentos da cidade de Santa Maria de Belém, a última estância luso-brasileira nas extre-
mas setentrionais do território demarcado pelo tratado de 1494. Conseqüência direta da
conquista do Maranhão, a fundação de Belém colocou termo à consolidação daquela que
Pedro Calmon chamou, com muita propriedade, de “região de condensação” da civiliza-
ção brasileira (Cf. Calmon, 1958: 46).
De fato, como já observamos, ao final do período das capitanias hereditárias
emergiram os “dois núcleos essenciais de formação da nacionalidade brasileira” (Bom-
fim, 1929: 87), as regiões polarizadas pelas vilas de São Vicente e Olinda, as únicas que
medraram em meio ao malogro quase completo da experiência donatarial (Cf. p. 83).
Todavia, a partir da instalação do Governo-geral e até o final do século XVI, enquanto na
região vicentina “dominava a penúria” (Ellis, 1989: 277), a capitania de Duarte Coelho
experimentava um desenvolvimento vertiginoso, que se esparramava pelas capitanias
vizinhas. Assim, em virtude do vigor do progresso de Pernambuco, da instalação do Go-
verno-geral na Bahia e das lutas contra os franceses desde a Paraíba até o Maranhão, po-
demos dizer que durante a segunda metade do século XVI o Nordeste brasileiro pratica-
mente monopolizou os acontecimentos que repercutiriam na formação da nacionalidade,
“condensando” suas tendências históricas.
187
A ocupação do vale amazônico
Mas, se o século XVI viu a consolidação paulatina da soberania luso-
brasileira sobre o território original, o século XVII testemunharia a deflagração de um
movimento de expansão territorial extraordinário, responsável pela irradiação da nacio-
nalidade nascente para muito além do meridiano demarcador. Uma das vertentes deste
movimento, que foi bifacial, resultou da própria conquista do Maranhão-Pará, a qual
franqueara aos luso-brasileiros o rio Amazonas, sempre tido como a “fronteira natural”
das terras portuguesas na América (Cf. Silveira, 1618: 362; Reis, 1989a: 258) e, desde a
célebre expedição de Pizarro e Orellana em 1539-1542 (Cf. Rocha Pitta, 1730: 65; Reis,
1989a: 257), como a única via de comunicação entre o Atlântico norte e as opulentas
minas do Peru, que anunciavam o Eldorado tão pretendido pelos aventureiros da época
(Cf. Magalhães, 1915: 22).
Por isso, navegando pelo rio-mar, ingleses e holandeses freqüentavam a hi-
léia com desenvoltura no início de Seiscentos, explorando o território e comerciando
produtos tropicais com os índios, como pôde verificar in loco o capitão Manuel de Sousa
d’Eça, que expôs a situação aos Conselhos de Portugal e Espanha, em relatório anexado à
documentação sobre a conquista do Maranhão (Cf. Eça, 1615b: 278). Em vista dessa
informação e dos encaminhamentos da Casa portuguesa (Cf. Brasil, 1905 [1615b]: 289,
292 e 293-5), o Conselho de Estado de Espanha deliberaria, de ofício, em 10 de maio de
1615, “que não se perca ponto no remédio do caminho do Rio das Amazonas” (Brasil,
1905 [1615c]: 302). Assim, a questão amazônica passou a figurar na pauta geopolítica de
Filipe III, terminando por provocar uma nova divisão administrativa no governo da colô-
nia com a criação, em 13 de julho de 1621, do Estado do Maranhão (Cf. Varnhagen,
1854-7b: 152; Magalhães, 1915: 35), que compreendia o atual território dos estados do
Pará, Maranhão, Piauí e Ceará e era subordinado diretamente ao governo de Lisboa, tal
como o Estado do Brasil, que abrangia as demais capitanias.
Essa divisão, que perduraria até 1760 (Cf. Magalhães, 1915: 36), teve um pa-
188
pel decisivo para a inclusão da Amazônia no território nacional, uma vez que as iniciati-
vas do governo do Maranhão, implementadas por capitães brasileiros como Pedro Teixei-
ra, Pedro da Costa Favela e Bento Maciel Parente (Cf. Reis, 1989a: 261-3), fizeram face
ao conhecido desinteresse da Coroa de Castela em relação aos negócios do Brasil que,
naquelas circunstâncias, se revelava pelo seu absenteísmo no que concernia às diversas
tentativas de holandeses e ingleses em se firmarem na hiléia, implantando fortins em
pontos estratégicos da floresta. Assim, os esforços do governo do Estado do Maranhão
resultaram na expulsão dos estrangeiros, determinando a ocupação efetiva da planície
amazônica pelos luso-brasileiros e, mais de cem anos depois, quando as disputas entre
Portugal e Espanha sobre os limites de seus domínios na América chegaram à mesa di-
plomática, foi uma das bases decisivas para calçar o princípio do uti possidetis de fato, o
qual fundamentou a decisão de se manter bacia do Amazonas em mãos nacionais (Cf.
Reis, 1989b: 370).
O bandeirismo paulista e a fronteira oeste
Mas o argumento esgrimido por Alexandre de Gusmão nos bastidores das
negociações de 1750 (Cf. Varnhagen, 1854-7d: 84; Reis, 1989b: 368-9) não serviu ape-
nas para legitimar o movimento derivado da conquista do Maranhão-Pará, ele foi o res-
ponsável pela própria delimitação do perfil territorial do Brasil que, desde então, sofreu
pouquíssimas alterações (Cf. Varnhagen, 1854-7d: 84; Reis, 1989b: 370). Neste sentido,
o tratado de Madri ratificou, sobretudo, os avanços da outra vertente da expansão territo-
rial seiscentista, esta propagada a partir do planalto de Piratininga, a principal “região de
dispersão” (Calmon, 1958: 46) da civilização brasileira sobre as terras devolutas da Amé-
rica do Sul.
O “bandeirismo paulista” (Ellis Jr., 1924), como ficou conhecido esse movi-
mento, originou-se de um paradoxo. Desde que o padre Nóbrega, com os auxílios de Ti-
biriçá, Caubi e as suas gentes, instalou o Colégio de São Paulo nos campos de Piratinin-
189
ga, em 1554 (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 275), o povoado que surgiu em seu entorno de-
monstrou grande vocação para tornar-se a cabeça da capitania de São Vicente, em face
do ocaso precoce da vila fundada por Martim Afonso na marinha. Suas excepcionais
condições mesológicas – os campos abertos do planalto, a altitude, o clima temperado e a
rede fluvial (Cf. Magalhães, 1915: 70; Ellis, 1989: 273) –, os atributos de defesa daquela
“verdadeira acrópole” (Ellis, 1989: 274) e a sua própria configuração étnica e social – a
forte presença da “geração mameluca” (Magalhães, 1915: 72) inaugurada por João Ra-
malho (Cf. Madre de Deus, 1797: 121) – associadas à diligência dos jesuítas do Colégio
de São Paulo logo tornaram a povoação um atrativo para os colonos que sobreviviam à
mingua nos sítios adversos do litoral vicentino (Cf. Ellis, 1989: 278), labutando em en-
genhos que não prosperavam (Cf. Abreu, 1907: 85).
De fato, quando o governador Mem de Sá determinou, em 1560, a extinção
da vila de Santo André da Borda do Campo e a mudança do pelourinho para defronte do
Colégio (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 396), transferindo o foro de vila para o assentamento
fomentado pelos inacianos, o segundo “núcleo essencial de formação da nacionalidade
brasileira” (Bomfim, 1929: 87) teria o seu pólo dinamizador deslocado:
“(...) daí por diante ficou a povoação na classe das vilas com o título de S. Paulo de Piratininga, que conservava desde o seu princípio. Os Guaianazes oriundos de Piratininga e mais índios ali moradores vendo que iam concorrendo portugueses e ocupando as suas terras desampara-ram S. Paulo e foram situar-se em duas aldeias, que novamente edifica-ram uma com o título de Nossa Senhora dos Pinheiros e outra com a invocação de S. Miguel.” (Madre de Deus, 1797: 125, ênfase no origi-nal)
Em breve tempo a vila foi crescendo e, na década imediatamente posterior à
sua fundação, Gandavo observou que havia nela “muitos vizinhos, a maior parte deles
nascidos das índias naturais da terra, e filhos de Portugueses” (Gandavo, 1570-6: 91). Em
1583, o padre Fernão Cardim estimou a população da vila em “cento e vinte vizinhos,
com muita escravaria da terra” (Cardim, 1584-90: 173) e, no início do século XVII, se-
190
gundo carta da Câmara de São Paulo dirigida ao donatário da capitania, as suas cinco
vilas podiam “por em campo (...) mais de 300 homens portugueses, fora os seus índios
escravos, que serão mais de 1500” (Apud Magalhães, 1915: 112-3).
No âmbito desse crescimento pronunciado surgiu o paradoxo dos paulistas,
na medida em que três fatores principais retardariam a efetivação, no núcleo social que se
formou, do “inelutável imperativo que lhe assegurasse o padrão de vida que aspirava”
(Simonsen, 1937: 207). O primeiro destes fatores seria a resistência dos índios bravios,
que assolariam a capitania até 1594 (Cf. Magalhães, 1915: 108; Simonsen, 1937: 207); o
segundo se liga ao isolamento de um assentamento sertanejo em terras cujos colonos, na
clássica avaliação de Frei Vicente, “contentam-se de as andar arranhando ao longo do
mar como caranguejos” (Salvador, 1627: 61); e o terceiro terá sido a incapacidade do
planalto em produzir, pelo menos nas condições da época, “nenhum desses produtos exó-
ticos dos climas tropicais que justificassem o estabelecimento, com a Metrópole, das one-
rosas linhas do comércio do tempo” (Simonsen, 1937: 207).
Desta maneira, na capitania de São Vicente e, especialmente, na vila de São
Paulo, “vivia-se uma economia de subsistência” (Wehling & Wehling, 1999: 113; cf.
Simonsen, 1937: 207) bastante incompatível com as ambições dos colonos que haviam
montado as escarpas da serra do Mar, fiando-se nas potencialidades naturais dos campos
de Piratininga para fazerem fortuna. É claro que a cultura de produtos europeus nas con-
dições favoráveis da capitania (Cf. Cardim, 1584-90: 173-4) poderia alavancar a sua eco-
nomia, pois as demais capitanias careciam deles (Cf. Salvador, 1627: 83), mas o imedia-
tismo característico dos nossos colonos (Cf. Holanda, 1936: 74) impediria que eles espe-
rassem – ou trabalhassem – pelo melhoramento das vias pelas quais pudessem escoar a
sua produção. Assim, os paulistas optaram pela solução mais simples e imediata, a qual
foi sumariada, ingênua e grosseiramente, por um cronista dos seus feitos:
“Os paulistas, não sendo opulentos, como eram os baianos, pernambu-canos, etc., os quais, graças às riquezas, que lhes proporcionava a cana de açúcar, podiam importar a cara mercadoria que era o africano escra-
191
vo, ficavam na contingência obrigatória de se atirar ao sertão, para a-presar o índio. Não podiam ter o negro, buscavam o índio – “Quem não tem cão, caça com gato.” (Ellis Jr., 1924: 42, ênfase no original)
Em que pesem as suas causas econômicas, enfeixadas no velho e esfarrapado
pretexto da “falta de braços” para o trabalho, o apresamento de índios se afigurava, na
verdade, como um atalho rendoso para aqueles homens que viam a colônia como uma
estação provisória para realizarem lucros prodigiosos e imediatos, já que o escravo era a
moeda sonante da finança colonial brasileira (Cf. Gandavo, 1570-6: 44; Brandão, 1618:
213). Isto é o que podemos inferir a partir dos documentos antigos:
“‘Buscar o remédio para a sua pobreza’, ‘buscar o seu remédio’, ‘bus-car a sua vida’, ‘o seu modo de lucrar’ são expressões usuais nos testa-mentos de bandeirantes do século XVII, designando suas incursões ao sertão. Traduzem os objetivos econômicos das expedições de apresa-mento do índio.” (Ellis, 1989: 277)
Tal foi a origem do “bandeirismo paulista”, cuja dinâmica Capistrano de A-
breu resumiu com a sua aguda e sempre refinada concisão – a história das bandeiras se
revela, tão somente, pela sua “monotonia trágica”:
“(...) homens munidos de armas de fogo atacam selvagens que se de-fendem com arco e flecha; à primeira investida morrem muitos dos as-saltados e logo desmaia-lhes a coragem; os restantes, amarrados, são conduzidos ao povoado e distribuídos segundo as condições em que se organizou a bandeira.” (Abreu, 1907: 143)
A despeito de suas motivações espúrias e de seus métodos truculentos, o mal-
fadado “ciclo da caça ao índio” (Magalhães, 1915: 75) constituiu a primeira fase do mo-
vimento sertanista ao qual “coube o papel proeminente de triplicar a área da colônia ame-
ricana adjudicada a Portugal pelo concerto de 7 de junho de 1494” (Magalhães, 1915:
70), ao se lhe agregar portentosas extensões territoriais a sul e a oeste do meridiano de-
marcador (Cf. Magalhães, 1915; Ellis Jr., 1924; Cortesão, 1958; Ellis, 1989; Reis,
1989b). Segundo o clássico e pioneiro estudo de Basílio de Magalhães (Magalhães,
192
1915), o bandeirismo de apresamento foi inaugurado em 1561 pela expedição contra os
índios do rio Anhembi (atual Tietê), recalcitrantes à catequese dos jesuítas, na qual se-
guiu como língua o padre Anchieta (Cf. Magalhães, 1915: 109). Entretanto, esta e as de-
mais expedições empreendidas até o final do século XVI não teriam o estofo desbravador
que fez a fama dos bandeirantes paulistas. Seriam elas, tão somente, expressões de um
“bandeirismo tímido” (Ellis Jr., 1924: 39), que “se circunscrevia às proximidades do vila-
rejo piratiningano, onde ainda abundava gente de raça aborígene” (Ellis Jr., 1924: 46).
Quer dizer, sob a alegação da punição aos infiéis que arrostavam a colônia, saíam os ca-
pitães luso-paulistas a colher sua mercadoria humana nos arredores da vila, não para re-
solver os problemas de mão-de-obra que estariam a entravar o desenvolvimento do povo-
ado montanhês, mas para se valerem dela como um meio para auferir lucros instantâneos:
“O capitão-mor [Jerônimo Leitão], comandando um pequeno exército de mamelucos (...), assolou durante seis anos as aldeias do Anhembi, que eram, conforme os jesuítas espanhóis, em número de 300, contando cerca de 30.000 habitantes. Os vencidos, que foram em grande cópia, vieram arrastados para a rude faina dos engenhos e lavouras do litoral.” (Magalhães, 1915:109).
Até que secasse o manancial de que se serviam à saciedade, os preadores
paulistas permaneceram adstritos à vizinhança de Piratininga, mas quando a fonte come-
çou a minguar, arrojaram-se os bandeirantes pelos sertões. O chamado “bandeirismo o-
fensivo” (Ellis, 1989: 284) foi inaugurado pelo capitão João Pereira de Sousa Botafogo
que, em 1596, chefiou uma expedição no rumo do oeste, demandando o gentio do Para-
naíba, a poucas léguas de Piratininga (Cf. Ellis Jr., 1924: 55). A ação dos bandeirantes do
capitão Botafogo foi devastadora: “estabeleceram definitivamente a posse da terra. Der-
rotados, internaram-se os índios pelo sertão adentro, ou aceitaram o cativeiro.” (Ellis,
1989: 284).
Com a chegada de D. Francisco de Sousa a São Paulo em 1599, as bandeiras
tiveram grande impulso. O governador-geral deixara a Bahia para implementar a pesqui-
sa dos metais preciosos e encontrara a vila de Piratininga agitada pelas corridas dos ban-
193
deirantes aos sertões, o que favorecia grandemente o seu desígnio de realizar aquele que
era o sonho mais acalentado na metrópole. Neste sentido, em 1601, D. Francisco patroci-
nou a bandeira de André de Leão (Cf. Ellis, 1989: 285), que seguiria um itinerário inver-
so ao das expedições habituais dos paulistas, dirigindo-se para o norte em busca da mítica
Sabarabuçu, a “serra resplandecente” (Magalhães, 1915: 88) que dourava as quimeras
dos aventureiros desde a legendária “entrada” de Aleixo Garcia em Santa Catarina, reali-
zada em 1526 (Cf. Magalhães, 1915: 76; Ellis, 1989: 289).
Embora a expedição de André de Leão tenha transposto a Mantiqueira e che-
gado até as nascentes do São Francisco, antecipando o roteiro que 73 anos mais tarde
seguiria Fernão Dias Pais Leme na demanda da mesma utopia (Cf. Magalhães, 1915: 88)
e que levaria o paulista Antônio Rodrigues Arzão a descobrir, em 1693, as jazidas do
sertão das Gerais (Cf. Holanda, 1993: 259), os resultados da empresa foram nulos. Entre-
tanto, a organização que D. Francisco imprimira à expedição de André de Leão determi-
naria a “forma e estrutura característica” das bandeiras paulistas (Cf. Cortesão, 1958: 77),
pois “com sua orientação, foram disciplinadas as expedições sertanistas, com divisões
militares, ouvidores do campo, escrivães, capelães e roteiros preestabelecidos.” (Ellis,
1989: 285).
Mesmo que se admita que “sendo a elas contrário aquele governador” (Maga-
lhães, 1915: 115), a ação de D. Francisco viria a repercutir grandemente no desempenho
das expedições apresadoras de índios. De fato, já em 1602, Nicolau Barreto seguiria na
mesma direção da bandeira de André de Leão, “não com o fito de descobrir riquezas mi-
nerais, mas com o de conquistar gentio” (Cf. Magalhães, 1915: 111). Dois anos depois, o
bandeirante voltava à vila de Piratininga, trazendo 3.000 índios cativos (Cf. Magalhães,
1915: 112).
A racionalidade farisaica dos preadores de índios, de tão produtiva para os
capitalistas da época, em alto grau contrastava com as desventuras dos crédulos caçado-
res de pedras e metais preciosos, que voltavam dos sertões estropiados, de mãos abanan-
194
do e desiludidos de seus devaneios faiscantes. Sendo assim, a organização das expedi-
ções sob a orientação de D. Francisco de Sousa viria a fomentar o bandeirismo de apre-
samento que, em verdade, dominaria o sertanismo paulista até 1695 (Cf. Magalhães,
1915: 75). O apogeu do “ciclo da caça ao índio” adviria do encontro da frente bandeiran-
te com a expansão missioneira dos jesuítas castelhanos (Cf. Ellis, 1989: 285), que come-
çariam a implantar as suas “reduções” a sul e a sudoeste do meridiano de Tordesilhas, em
terras de Espanha, a partir de 1610, quando foram iniciados os primeiros aldeamentos na
margem oriental do Paraná (Cf. Abreu, 1907: 144). Em virtude de suas repercussões para
a formação territorial do Brasil, ficaram famosas as incursões às províncias jesuíticas do
Guairá (1619-1631), do Itatim (1632-1633), do Tape e do Uruguai (1637-1641), que se
situavam, respectivamente, nos atuais territórios do Paraná (com exceção da costa), do
sudoeste do Mato Grosso do Sul, do Rio Grande do Sul e da região dos Sete Povos das
Missões (Cf. Abreu, 1907: 146-7; Cortesão, 1958: 130 e 191; Ellis, 1989: 286-7). A ava-
liação de Capistrano de Abreu revela, sucintamente, a lógica que baseou essa tão pronun-
ciada afluência bandeirante ao domínio jesuíta, a qual redundou em uma ampliação bas-
tante sensível do território nacional:
“Não se imagina presa mais tentadora para caçadores de escravos. Por que aventurar-se a terras desvairadas, entre gente boçal e rara, falando línguas travadas e incompreensíveis, se perto demoravam aldeamentos numerosos, iniciados na arte da paz, afeitos ao jugo da autoridade, dou-trinados no abanheen?” (Abreu, 1907: 145, ênfase no original)
Não nos deteremos na análise das marchas e contramarchas das guerras entre
os paulistas e os inacianos pelo direito de submeterem os índios, aliás uma contenda de-
sigual entre capitães e expedicionários encanecidos na preação dos íncolas e padres pou-
co afeitos às lides bélicas, seguidos de índios amaciados pela catequese. Realmente, o
resultado geopolítico demonstra, de maneira incontestável, qual foi o lado vitorioso nessa
disputa e um relato dos recontros evidenciaria, tão somente, a supremacia militar das
forças paulistas e o apetite insaciável dos preadores de índios. É o que podemos inferir,
195
tomando como referência os números apresentados pelos jesuítas em suas representações
contra os paulistas na Europa:
“Em tal extremo, resolveram os jesuítas enviar procuradores a Roma e Madri pedindo providências protetoras (...). Queixavam-se estes emis-sários que andariam por trezentos mil os índios que, desde 1614 a 1639, os paulistas, em número de uns quatrocentos apenas, ajudados por uns dois mil índios seus aliados, haviam cativado; e em parte abonavam es-ta asserção com um atestado (de 12 de outubro de 1637) do governador de Buenos Aires, D. Pedro Estevan Davila, declarando que, desde 1618 a 1630, o número dos cativados havia passado de sessenta mil.” (Var-nhagen, 1854-7c: 129-30, ênfase nossa)
Malgrado a discrepância na contabilidade dos cativos, de qualquer maneira
expressiva, os rogos dos jesuítas tiveram repercussão na Europa, uma vez que os seus
emissários conseguiram que o papa Urbano VIII reeditasse, em atenção ao caso, a bula
de Paulo III determinando que fossem excomungados todos aqueles que “cativassem,
vendessem, traspassassem ou fizessem uso do serviço dos índios” (Varnhagen, 1854-7c:
130). Também obtiveram de Filipe IV uma cédula, de 16 de setembro de 1639, autori-
zando os padres a se armarem e a formarem milícias com os índios aldeados (Cf. Var-
nhagen, 1854-7c: 130) e encarregando o tribunal do Santo Ofício de julgar e condenar
“os bandeirantes passados e futuros (...) a várias penas, entre as quais a perda de bens e
da vida” (Cortesão, 1958: 247). Ou seja, diante da radicalização da investida bandeirante,
a Igreja reafirmava, com a peremptoriedade inquisitorial própria daqueles tempos, o anti-
go cânone publicado em 1537 (Cf. Perrone-Moisés, 1998b: 529; (Cortesão, 1958: 140) e
desde sempre contraditado pela ação dos colonos, enquanto o trono de Castela via-se
premido a mudar uma lei que lhe reservava o direito regalista de limitar as prerrogativas
militares ao governo secular, abrindo um flanco nada desprezível nas divergências cada
vez mais acerbas entre a autoridade eclesiástica e os monarcas nacionais.
O criterioso Jaime Cortesão adverte, todavia, que é preciso “descontar no re-
lato dos membros da Companhia, quando menos, a parte de exagero e de excesso” (Cor-
tesão, 1958: 142), principalmente porque a crônica dos acontecimentos não consigna o
196
testemunho dos bandeirantes (Cf. Cortesão, 1958: 142). Neste sentido, o historiador por-
tuguês apresenta provas de que os jesuítas, ao arrepio da legislação filipina, “possuíam
armas de fogo e armavam os seus índios” (Cortesão, 1958: 149), levanta indícios de que
os padres tinham propósitos geopolíticos e que ameaçavam a soberania das terras sob a
jurisdição da Coroa portuguesa (Cf. Cortesão, 1958: 182-3) e afirma que os inacianos
arrostavam “com imprudência” (Cortesão, 1958: 185) as bandeiras, mesmo quando o
capitão da expedição “declarava que vinha por comida para a sua gente e pedia que o
recebessem em paz” (Cortesão, 1958: 142). Foi o que teria escrito Raposo Tavares ao
superior da redução de Jesus Maria, no Tape, cujo “silêncio desprezativo” (Cortesão,
1958: 212) teria feito irromper o famigerado ataque de 3 de dezembro de 1637, no qual
os bandeirantes “provavam os aços de seus alfanjes em rachar os meninos em duas par-
tes, abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes os membros” (Abreu, 1907: 146), conforme
conta o não menos criterioso Capistrano de Abreu, apoiando-se no relato do padre Mon-
toya (Cf. Cortesão, 1958: 414), reitor do Colégio de Assunção (Cf. Varnhagen, 1854-7c:
129).
Baseado nessas evidências e partindo do princípio de que “aos bandeirantes
paulistas animava a consciência de que defendiam terras de donataria própria, usurpadas
pela Província jesuítica do Paraguai” (Cortesão, 1958: 226), Jaime Cortesão admoesta o
leitor a relativizar a “severidade do juízo” (Cortesão, 1958: 141) de intérpretes nacionais
e estrangeiros sobre o bandeirismo de apresamento, sumariada pela questão capital de
Capistrano de Abreu – “Compensará tais horrores a consideração de que por favor dos
bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?” (Abreu, 1907: 146). Dirá o
insigne historiador português, em conclusão, que os fatos por ele arrolados seriam sufici-
entes para impugnar “a lenda de que o lobo paulista atacou de surpresa e traiçoeiramente
o inocente e indefeso cordeiro das reduções jesuíticas” (Cortesão, 1958: 150).
Embora pensemos que as advertências de Cortesão devam ser consideradas
com toda a atenção que merecem as formulações de um estudo tão bem documentado,
197
não vemos razão para considerar maniqueu o julgamento rigoroso dos historiadores criti-
cados por ele. É natural que a dinâmica dos recontros entre jesuítas, bandeirantes e índios
possa ter envolvido muito mais nuanças do que o quadro pintado pelos documentos sec-
tários da Companhia de Jesus, mas essa alegação não pode obnubilar a eloqüência das
evidências que provam ter sido extremamente cruento o processo, o qual resultou na
morte e apresamento de milhares de índios, os grandes – ou, talvez, únicos – derrotados
nessa contenda entre missionários e sertanistas. Afinal, o próprio Cortesão proclamará,
em favor da nossa interpretação e do “severo juízo” dos historiadores com os quais con-
cordamos, a lógica que moveu os paulistas nas suas investidas sobre as reduções jesuíti-
cas, cujos sucessos marcaram o apogeu do “ciclo da caça ao índio”:
“(...) os numerosos engenhos de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, com suas grandes lavras, cortadas que foram pelos holandeses as co-municações com o golfo da Guiné, ou Luanda e Bengala, e, por conse-guinte, a importação do escravo negro, tornaram-se, desde os inícios do segundo quartel do século XVII, um mercado exigente e a venda do braço indígena altamente remuneradora. A bandeira de 1628-29 abaste-ceu esses mercados, se não com a abundância que se tem acreditado na fé das informações tendenciosas dos jesuítas, com relativa suficiência.” (Cortesão, 1958: 188).
Note-se, todavia, que a ação paulista respondia às demandas de um mercado
em que a escravidão era o fator orgânico (Cf. Cardoso, 1982: 95) e constituía, em razão
disto, a “liga” da mistura que era processada no cadinho da formação nacional. Assim,
não podemos julgar os bandeirantes sem posicionar a “caça ao índio” no contexto mais
amplo da economia brasileira da primeira metade do século XVII, especialmente nas
chamadas “capitanias de baixo”, onde era mínima a presença de escravos africanos (Cf.
Simonsen, 1937: 132; Goulart, 1993: 185): os paulistas faziam o “trabalho sujo” necessá-
rio para fornecer a mercadoria humana que girava as moendas dos engenhos que come-
çavam a abundar na marinha, os quais enchiam a bolsa de seus abastados senhores.
Seja como for, não podemos negligenciar as contribuições do bandeirismo
paulista para a formação da nacionalidade. Em primeiro lugar, em que nos pese a crueza
198
com que se conduziram os bandeirantes, aliás própria do “espírito do tempo” em que
viveram, comportaram-se os paulistas com a mesma ambigüidade essencial que, para o
sempre, distinguirá o espírito do povo brasileiro, com todas as suas contradições e con-
junções, ora degeneradas em hipocrisia e conformismo, ora convertidas em sedição e
conciliação. Os bandeirantes paulistas trucidaram e cativaram índios aos milhares, mas
foram secundados por outros tantos íncolas48 que participavam, ainda que a menor, da
partilha do butim, pois eram eles seus aliados na guerra, seus comarcões na colônia e
seus consortes na mestiçagem, no parentesco e no compadrio. Estes índios lhes seguiam e
orientavam os passos (Cf. Holanda, 1957: 25), legando aos adventícios a sua “arte de
guerrear” (Holanda, 1957: 123) e outros tantos predicados culturais que, amalgamados à
tradição lusa, viriam a formar uma peculiar “cultura rústica” (Cf. Cândido, 1964: 21), a
perene expressão sertaneja do extraordinário sincretismo através do qual a sociedade
brasileira foi formada. Ademais, as bandeiras contribuiriam para a própria construção da
identidade nacional pois, como admitirá Capistrano, “as proezas dos bandeirantes dentro
e fora do país (...) influíram consideravelmente sobre a psicologia dos colonos”, ao culti-
var a auto-estima dos “humildes e envergonhados mazombos do começo do século XVI-
I” (Abreu, 1907: 191).
Em segundo lugar, apesar de sua triste memória, as expedições apresadoras
prepararam o caminho para a descoberta das minas e para a conquista dos sertões, o que
veio a fomentar grandemente o desenvolvimento econômico e a integração territorial do
país, tarefa esta que se dependesse dos acomodados senhores de engenho da costa difi-
cilmente se consumaria. Em suma, a ação dos bandeirantes foi decisiva para que o “país
original” definido pelo tratado de Tordesilhas tomasse as proporções continentais que
viriam a definir o perfil territorial do Brasil e incluí-lo entre as maiores nações do mundo.
48 “Das bandeiras participavam entre cinco e dez por cento de brancos. Noventa ou noventa e cinco restan-tes eram índios, e maiormente os tupi. Estes últimos participaram da missão desbravadora ou preadora das bandeiras, por inclinação e gosto próprio.” (Cortesão, 1958: 134).
199
O país realizado
De fato, entre as décadas de 30 e 40 de Seiscentos, na ocasião mesma em que
o povo português se insurgia contra a dominação do monarca de Espanha e o Brasil resis-
tia à invasão holandesa, as duas vertentes primevas da nacionalidade nascente, uma es-
pargida da “condensação” nordestina e a outra da “dispersão” paulista, fechariam o círcu-
lo da formação territorial brasileira. Naquela conjuntura, as minas do Peru, em plena pro-
dução, eram a área de interseção entre a opulência dos hispânicos e a obstinação dos lu-
so-brasileiros, figurando como um ponto de referência estratégico na configuração geo-
política do continente. Por isso, os dois grandes vetores da expansão territorial brasileira
convergiam para o ocidente na demanda do reino de Quito, formando, naturalmente, um
amplo perímetro de terras delimitado, grosso modo, pela costa atlântica a leste, pelo rio
Amazonas ao norte, pelo rio da Prata ao sul e pela cordilheira dos Andes e pelo Chaco a
oeste.
Desta maneira, o território cercado pelas investidas dos sertanistas luso-
brasileiros superava largamente a área adjudicada a Portugal pelo tratado de Tordesilhas,
criando uma situação de fato que em muito favorecia o trono de Lisboa na configuração
das fronteiras entre os domínios coloniais na América do Sul, questão abrasadora no con-
texto das relações entre Espanha e Portugal, mais deterioradas do que nunca em face do
fim iminente da chamada “União Peninsular”. Sob o ponto de vista dos nacionalistas
portugueses, que viam o povo exaurido pela “tirania de Madri” (Cunha, 1993: 9), desilu-
dido do messianismo sebastianista e pronto para restaurar o trono usurpado, o Brasil se
apresentava como um símbolo expressivo da vitalidade nacional, não só pelo valor da
conquista ao rival centenário da Ibéria, mas, sobretudo, pela potencialidade econômica
que a sua extensão continental encerrava (Cf. Cortesão, 1958: 231-2). Portanto, aos estra-
tegistas da Restauração interessava a consolidação imediata dos avanços que, na prática,
colocaram sob o domínio de Sua Majestade Fidelíssima quase a metade da América do
Sul, pois eles sabiam que as fronteiras da terra inculta se movimentariam a favor de quem
200
fosse mais ousado.
Duas grandes expedições ultimaram, neste sentido, a formação territorial bra-
sileira, realizando os intentos nacionalistas dos restauradores da Coroa de Portugal, os
quais se tornaram manifestos desde a deflagração da insurreição popular no Alentejo e
Algarve, em 1634 e, mormente, a partir da brutal repressão do exército espanhol, que a
sufocou em 1638 (Cf. Cortesão, 1958: 226, 232 e 235). A primeira delas foi organizada,
autocraticamente, pelo provedor-mor da Fazenda Jácome Raimundo de Noronha, gover-
nador interino do Estado do Maranhão entre 15/09/1636 e 27/01/1638 (Cf. Varnhagen,
1854-7e: 269), em virtude da chegada a Belém, em fevereiro de 1637, de dois leigos
franciscanos e seis soldados espanhóis que repetiram a legendária aventura de Pizarro e
Orellana, partindo do Napo e chegando à costa oriental americana pelo rio Amazonas
(Cf. Varnhagen, 1854-7c: 152). A proeza dos espanhóis inquietou o governador interino:
por um lado, provara-se, mais uma vez, que o caminho natural entre as minas do Peru e o
Estado do Maranhão era o rio Amazonas e, por outro, evidenciava-se a possibilidade da
ocupação do vale amazônico pelos castelhanos. Neste sentido, a conquista do rio-mar não
só viria a garantir a soberania lusa sobre a floresta que esconderia o Eldorado, como tam-
bém viria a franquear aos portugueses o comércio com o opulento reino de Quito (Cf.
Cortesão, 1958: 237-8).
Agindo com extrema expediência, Jácome Raimundo determinou que o capi-
tão Pedro Teixeira, desvelado veterano da guerra do Maranhão e companheiro do gover-
nador interino na expugnação de vários fortes ingleses e holandeses na Amazônia (Cf.
Magalhães, 1915: 36), chefiasse uma expedição que deveria subir o rio Amazonas na
demanda do Napo, com o objetivo de legitimar a soberania portuguesa sobre a planície
equatorial. Em 16 de outubro de 1637, partia do forte de Gurupá uma armada composta
de quarenta canoas de bom porte (Cf. Garcia, 1927c: 152), guarnecidas de setenta solda-
dos e mil e duzentos índios flecheiros acompanhados de suas mulheres e filhos (Cf. Var-
nhagen, 1854-7c: 152). Como imediatos do capitão, iam os brasileiros Bento Rodrigues
201
de Oliveira, que comandava um flotilha de vanguarda, e Pedro da Costa Favela, cabo
experiente nas guerras amazônicas (Cf. Magalhães, 1915: 36).
Os luso-brasileiros chegaram a Quito em oito meses (Cf. Varnhagen, 1854-
7c: 153) e, embora o capitão Pedro Teixeira tivesse mandado a relação de sua viagem ao
vice-rei do Peru pela flotilha de vanguarda (Cf. Garcia, 1927c: 153), eles foram recebidos
com desconfiança pelas autoridades espanholas, que só não prenderam os expedicioná-
rios porque a presença holandesa na Amazônia impunha “a necessidade da presença ime-
diata dos expedicionários em Belém” (Cortesão, 1958: 241). Sendo assim, em meados de
fevereiro de 1639, a armada deixou o Peru em torna-viagem e navegou até a foz do Japu-
rá, o pretenso “rio do Ouro” (Cf. Cortesão, 1958: 242) que desemboca no Amazonas,
onde o capitão Pedro Teixeira, a 16 de agosto de 1639, firmou um padrão de posse, cujo
auto também foi assinado por Maurício de Heriarte (Cf. Garcia, 1927c: 170; Cortesão,
1958: 243). Estava fundada a chamada Província Franciscana, “limite dos domínios por-
tugueses nas duas margens do Amazonas” (Cortesão, 1958: 241; cf. Varnhagen, 1854-7c:
153; Magalhães, 1915: 37; Garcia, 1927c: 170), cuja posição garantia a soberania da Co-
roa portuguesa sobre o vale amazônico, formalizada um ano e meio antes da aclamação
de D. João IV. Jaime Cortesão, que esclareceu as dúvidas que ainda pairavam sobre o
cometimento de Pedro Teixeira, revela o sentido daquele episódio no âmbito da formação
nacional:
“A expedição teve (...) o caráter dum ato político, nacionalista, lucida-mente imaginado e resolvido por Jácome Raimundo de Noronha, mas com estreita compreensão e colaboração de lusos e luso-brasileiros, o que denuncia claramente uma consciência de nação, em pleno fervor de afirmação e rebeldia.” (Cortesão, 1958: 241)
Com o mesmo “duplo caráter de oficialidade explícita ou implícita e de ex-
pansão e reivindicação territorial, ostensivamente lesiva do interesses da Coroa de Espa-
nha” (Cortesão, 1958: 251) seria organizada a segunda expedição que viria a completar o
desenho do perfil territorial brasileiro. Segundo Jaime Cortesão, a partir da aclamação de
202
D. João IV em dezembro 1640, o “problema da formação geográfica do Brasil” (Corte-
são, 1958: 306) tornara-se uma questão fundamental para a corte restaurada, pois, como
já salientamos, a preservação do “país realizado geograficamente pelos bandeirantes pau-
listas, pelos sertanistas do norte, pelos religiosos a serviço do Estado e pelos contingentes
militares” (Reis, 1989: 370) era uma tarefa inarredável, em virtude de suas repercussões
políticas, econômicas e de afirmação nacional. Neste sentido, se patenteava a urgência de
duas medidas fundamentais relativas, precisamente, às regiões de “condensação” e de
“dispersão” da nascente civilização brasileira: a restauração de Pernambuco, no apogeu
do período nassoviano, e a concretização da fronteira oeste, a grande conquista territorial
feita aos rivais castelhanos.
No caso da consolidação e legitimação do avanço luso-brasileiro sobre os
sertões ocidentais confinantes à possessão espanhola, realizará a tarefa, como demonstra
o minucioso estudo de Jaime Cortesão, a “grande bandeira dos limites” de Raposo Tava-
res (Cortesão, 1958: 227). Organizada sob os auspícios do governo metropolitano (Cf.
Cortesão, 1958: 311), a expedição é o ponto alto da biografia do “nacionalista e apaixo-
nado” alentejano (Cf. Cortesão, 1958: 284), o íntimo colaborador do conde de Monsanto,
donatário de São Vicente (Cf. Cortesão, 1958: 191), que tivera uma atuação destacada na
liderança da investida paulista sobre as reduções jesuíticas do Guairá (Cf. Cortesão,
1958: 132; 181), do Itatim e do Tape (Cf. Cortesão, 1958: 196; 209; 225; 319-20). Arti-
culando a “espontaneidade de ação” (Magalhães, 1915: 75) que caracterizava o sertanis-
mo paulista em sua faina apresadora com o patrocínio oficial de um governo açulado
pelas disputas com o monarca de Espanha (Cf. Cortesão, 1958: 395), “a estranha bandei-
ra viria a ser a de mais largo âmbito, audácia e dificuldade nas Américas e em todos os
tempos” (Cortesão, 1958: 287).
Na primeira etapa do percurso, os 120 homens e 1.200 índios que partiram de
Piratininga no final de 1647, sob o comando de Raposo Tavares, subiram o Tietê até a
sua confluência com o Paraná e tomaram o curso deste rio até o Paranapanema, pelo qual
203
seguiram até o Peabiru, caminho que usariam para internarem-se no Paraguai e chegarem
à região de transição entre as planícies alagadiças do Chaco e as escarpas da cordilheira
dos Andes, escala indispensável para atingir o meão da jornada, o piemonte dominado
pelos chiriguanos, na rota das minas do Peru (Cf. Cortesão, 1958: 353). Depois de oito
meses de marcha os expedicionários arribaram ao cerro de Santiago – que fica a meia
distância entre as atuais Corumbá e Santa Cruz de la Sierra – e lá levantaram um acanto-
namento fortificado, onde cultivaram roças para o bastimento da tropa, enquanto aguar-
davam a chegada da segunda coluna da expedição (Cf. Cortesão, 1958: 358-9).
A divisão de oitenta homens e algumas centenas de índios liderada por Antô-
nio Pereira de Azevedo partiu de São Paulo no início de 1648 e chegou ao rio Apa em 1º
de novembro do mesmo ano, de onde viria a atacar a redução de Mboymboy (Cf. Corte-
são, 1958: 353), a última posição dos jesuítas castelhanos na banda oriental do rio Para-
guai. Esse episódio é importante porque revela a íntima relação que havia entre os inte-
resses particulares dos bandeirantes e os propósitos da Coroa portuguesa, colocados um a
serviço do outro na empresa de Raposo Tavares. Ao desbaratarem as missões jesuíticas
espanholas assentadas na margem esquerda do Paraguai, os bandeirantes demarcavam ali
a fronteira do território del-rei de Portugal e recebiam, simultânea e imediatamente, a
paga pelos seus serviços patrióticos em índios cativados. É o que podemos deduzir do
relato insuspeito do padre Antônio Vieira, o conselheiro dileto del-rei D. João IV, que se
dirigia ao provincial do Brasil:
“(...) encontrou esta segunda tropa com uma aldeia de índios da doutri-na dos padres da Companhia, pertencente à Província do Paraguai, e es-tando todos na igreja, e o padre dizendo-lhes a missa solene, por ser dia de Todos os Santos, (...) entraram os soldados de mão armada na aldeia, e dentro da mesma igreja prenderam e meteram a ferro a todos os ín-dios e índias que não puderam escapar (...) [e] de tudo despojaram a i-greja. (...) Tiveram contudo notícias do caso (...) os padres de duas al-deias vizinhas, os quais, fazendo logo armar os seus índios, vieram (...) em socorro (...). Saíram os de São Paulo à batalha, e podendo mais a melhoria das armas que a da causa, fugiram os índios e ficou no campo morto um dos padres de uma bala.” (Vieira, 1654: 440)
204
Desarticulado o assentamento jesuíta e dispersados os padres e seus catecú-
menos, a coluna de Antônio Pereira de Azevedo, que se detivera em demasia na marcha,
tinha que seguir imediatamente para o acampamento de Raposo Tavares, devendo trans-
por a planície em pleno inverno, a estação cujas chuvas e inundações tornam os ares do
Chaco extremamente insalubres e deixam os seus caminhos praticamente intransitáveis,
elementos que favoreceriam grandemente os ataques dos belicosos guaicurus49 e paia-
guás, dominadores daquelas paragens50. De fato, a travessia se fez infausta, o que foi um
lenitivo para a indignação do padre Vieira:
“O certo é que não faltou o [castigo] do céu a esta grande impiedade, porque dentro de um mês se viam os executores dela castigados com peste, fome e guerra; a peste foi tal que nenhum ficou que não adoeces-se mortalmente; a fome era quase extrema (...); sobretudo, no meio des-ta fraqueza e desamparo, eram continuamente assaltados de bárbaros de pé e de cavalo, que os atravessavam com frechas, não lhes valendo a di-ferença e melhoria das armas, porque apenas havia quem as manejasse. Finalmente, ao cabo de um ano51 das maiores misérias que jamais se padeceram, se vieram a encontrar com a outra tropa, tão diminuídos que dos portugueses lhes faltava a metade e dos índios duas partes, e os que restavam mais pareciam desenterrados que vivos.” (Vieira, 1654: 441; cf. Cortesão, 1958: 357-8)
Seja como for, em dezembro de 1648 as duas colunas juntaram as forças no
cerro de Santiago, que “faz parte da linha do divortium aquarum entre a bacia hidrográfi-
ca do Prata e a do Amazonas, ou mais objetivamente, entre o Paraguai e o Madeira”
(Cortesão, 1958: 359) e, em abril ou maio do ano seguinte, com o fim do inverno, os
“150 brancos e mamelucos e um número de índios difícil de calcular” (Cortesão, 1958:
365) retomaram a jornada projetada, dirigindo-se para a terra dos chiriguanos, onde teri-
49 “Nos campos abertos, um ataque de cavalaria Guaykuru era o desastre mais temido pelos bandeirantes. Montando sem sela, agarrando-se à crina do animal, o corpo inclinado para o lado a fim de não constituir alvo fácil, os índios cavaleiros avançavam em formação cerrada, munidos de boleadora e lança.” (Carva-lho, 1998: 467). 50 “Foram conhecidos como ‘gentio do corso’, imagem náutica utilizada no período colonial para definir os povos que permaneciam afastados dos povoamentos, constituindo uma ameaça aos empreendimentos colo-niais, saqueando e roubando as aldeias de índios domésticos e as embarcações coloniais. No extremo oeste a expressão gentio de corso foi aplicada aos Paiaguá e Guaicuru da região do Chaco, ambas etnias lembra-das pela selvageria épica com que investiam contra as embarcações monçoeiras.” (Amoroso, 1998: 297).
205
am permanecido até agosto do mesmo ano (Cf. Cortesão, 1958: 378). Ali, em que pesas-
sem suas “diligências de força e manha para reduzir a si os serranos” (Vieira, 1564: 441),
a resistência dos combativos guerreiros piemonteses52 viria a frustar os intentos dos ban-
deirantes paulistas, o que os teria deixado “mais cuidadosos de salvar as poucas vidas que
lhes restavam, que dos interesses e presas que vieram buscar” (Vieira, 1654: 442).
Com efeito, em agosto de 1649, os expedicionários deixariam o piemonte
sul-boliviano e, até março de 1650, estariam explorando os contrafortes dos Andes53, a-
creditando que poderiam encontrar as minas que tanto procuravam na mesma latitude dos
opulentos veios de Potosí, as quais, para o seu desalento, viriam a descobrir estavam de-
fendidas pela altitude da cordilheira. Assim, sem alcançar o metal precioso e nem conse-
guir apresar índios, os bandeirantes tomaram o curso do Guapaí (ou Grande) na demanda
do Amazonas, uma vez que há muito se sabia (Cf. Gandavo, 1570-6: 82; Silveira, 1618:
362) que este rio afluía ao Mamoré, tributário do Madeira, que desemboca no rio-mar
(Cf. Cortesão, 1958: 377). Durante onze meses os bandeirantes de Raposo Tavares nave-
garam através da hinterlândia amazônica, percorrendo mais de três mil léguas de rio (Cf.
Vieira, 1654: 444) até chegarem ao forte de Gurupá, em Santa Maria de Belém, em prin-
cípios de 1651 (Cf. Cortesão, 1958, 443, nota).
Fechava-se, então, o perímetro almejado pela Coroa de Portugal para a sua
possessão na América e o “país realizado” na metade do século XVII era um extenso
triângulo de ponta-cabeça, “figura de uma harpa”, dirá frei Vicente (Salvador, 1627: 61),
formado pela costa Atlântica salvaguardada pelos colonos, índios e os seus filhos caribo-
cas, pela planície amazônica defendida e demarcada pelos capitães reinóis, mazombos e
mamelucos e pela fronteira oeste conquistada pelos bandeirantes paulistas e os seus com-
51 Desde a partida de São Paulo (Cf. Cortesão, 1958: 357 e 441, nota 3). 52 “(...) mesmo os ‘insurretos’ mais intratáveis, especialmente os Jivaro, geralmente preferiam desaparecer na floresta e esperar que seus agressores esgotassem suas forças e suas reservas, em vez de enfrentar mili-tarmente as tropas hispânicas – e nisso também diferem dos Campa-Piro do piemonte central e dos Chiri-guano tupi do sul da Bolívia.” (Taylor, 1998: 218). 53 “Por má fortuna dos historiadores, o testemunho de Vieira foi truncado nessa parte” (Cortesão, 1858: 381).
206
padres índios.
Conclusão épica de um processo de expansão territorial extraordinário, as
empresas de Raposo Tavares e Pedro Teixeira veicularam, contudo, a cruel e hipócrita
realidade que o fomentara desde a morte de Jerônimo de Albuquerque Maranhão, em
1618, e que grassaria no país por três séculos, até que o marechal Rondon restaurasse as
idéias do capitão mameluco com a sua “estratégia de pacificação” (Cf. Lima, 1998: 160).
O Estado, cujos interesses geopolíticos e econômicos coadunavam-se com os projetos de
fortuna dos bandeirantes e com a busca de glória e prestígio dos capitães, avalizava a
conduta truculenta de uns e outros para com os índios54, transgredindo a legislação que
dele próprio emanava e relegando os habitantes ancestrais ao limbo da sociedade em
formação. Quer dizer, ao arrepio das leis seculares e eclesiásticas, desacatadas em favor
dos “interesses nacionais”, os sertanistas realizavam os seus ganhos espúrios, trucidando
e cativando os índios, protegidos que estavam pela cumplicidade do Estado, cuja calcula-
da conivência resultava, por um lado, na inimputabilidade dos crimes e, por outro, no
aumento das terras de Sua Majestade Fidelíssima.
Essa “troca de favores” entre uma elite arrivista e um Estado complacente pa-
ra com ela e draconiano para com o povo é uma das características marcantes da nossa
formação nacional, pois ela se rebateu agudamente na estruturação da cidadania no Bra-
sil. Ela expressa, por um lado, o próprio cerne do sistema econômico que regeu a forma-
ção brasileira – um capitalismo predatório e imediatista, baseado no trabalho escravo e
assentado sobre uma desigualdade civil essencial entre os cidadãos – e, por outro, veicula
uma das disposições mais permanentes da nossa vida social, a própria base do “dilema
brasileiro” (Cf. DaMatta, 1978 e 1987) – as interpolações entre o público e o privado na
54 “Quanto a levas contra as densas tribos que se apinhavam nas matas do Amazonas e de seus tributários, há notícia da de que foi cabo Bento Rodrigues de Oliveira, em 1647, contra os tupinambás; da de João Bittencourt Muniz, contra os anibás do Jari; da de Antonio Arnau Villela, em 1663, no rio Urubu; e da imediata de Pedro da Costa Favela, o qual, em 1664, se aliou aos tapajós contra os guanevenes e, em 1666, venceu os tapuias do Xingu, incendiando-lhes 300 aldeias e matando-lhes 700 homens, fora 400 reduzidos a cativeiro (...). Depois de Bento Maciel Parente, foi Pedro da Costa Favela que mais se notabilizou na
207
conduta das pessoas, especialmente graves quando disseminadas no interior do Establi-
shment, como veremos em breve.
destruição dos nossos fetichistas das selvas.” (Magalhães, 1915: 38).
209
Capítulo 9
A ELABORAÇÃO DA TERRITORIALIDADE
“Abençoado por Deus e bonito por natureza”
Em que nos pesem todas as suas contradições e paradoxos, a “realização” de
um território de dimensões continentais, conquistado, seja pela força d’armas seja pela
ousadia sertanista, a franceses, espanhóis, ingleses e holandeses pelo “povo novo” da
sociedade em formação, viria a repercutir grandemente no sentido da formulação, no seu
âmbito, daquela idéia de amor à terra que é um dos fundamentos universais do sentimen-
to nacional. Aliás, antes mesmo da consolidação desse processo, nos três últimos decê-
nios do século XVI, os cronistas da América portuguesa, homens de vidas e sentimentos
divididos entre o pequeno reino europeu usurpado e a extensa, exuberante e algo inculta
possessão americana, produziriam um discurso encomiástico sobre a terra brasilis (Cf.
Cabral de Mello, 2000: 92), que terá sido a elaboração primeva da territorialidade e o
prelúdio da formação de uma intelligentsia brasileira em inícios de Seiscentos, que, em-
bora incipiente, mostrava-se comprometida com o país e com os seus destinos.
É certo que a atividade literária envolvendo a colônia lusa na América re-
monta ao próprio Descobrimento, pois não podemos desconsiderar a sua primeira fase,
das cartas e relações primitivas (Cf. Rodrigues, 1979: 1-15), entre as quais se destacam a
Carta de Pero Vaz, o Livro da Nau Bretoa (1511) e o Diário de Navegação (1532) de
Pero Lopes. Devemos também ter em mente que a chegada dos jesuítas na frota do pri-
meiro governador-geral inauguraria a sua segunda fase, essencialmente missivista com
Manoel da Nóbrega, de 1549 a 1560 (Cf. Nóbrega, 1549-60), mas que se tornaria mais
livresca desde a vinda para o Brasil, em 1553, de José de Anchieta, considerado por mui-
tos o fundador da ação literária no Brasil (Cf. Coutinho, 1986: 128).
Entretanto, se de Caminha a Nóbrega temos uma literatura documental, ofici-
210
al e informativa, embora a originalidade da situação em que fora produzida e a própria
sensibilidade dos autores possam elevar essas fontes a obras, o que podemos denominar,
em sentido lato, de vanguarda da formação de uma consciência reflexiva comprometida
com a sociedade em formação viria a surgir exatamente nas três últimas décadas do sécu-
lo XVI, com o aparecimento da “crônica histórica” no Brasil. Essa produção, apesar de
descritiva, conjuntural e episódica (Cf. Rodrigues, 1979: xvii-xviii; 425-426), diferencia-
va-se dos primeiros escritos por constituir-se em obra desde a origem e por oferecer uma
visão mais geral e uma análise, ainda que incipiente, da situação e dos processos que se
deslindavam na colônia. Seus representantes principais são Pero de Magalhães Ganda-
vo55, que nos legou o Tratado da terra do Brasil, provavelmente escrito em 1570, e a
História da Província de Santa Cruz, “o primeiro livro em português acerca do Brasil”
(Varnhagen, 1854-7b: 11), publicado em 1576 (Cf. Gandavo, 1570-6)56, o padre jesuíta
Fernão Cardim57, autor de dois tratados e uma “narrativa epistolar”, produzidos na década
de 580 e publicados como Tratados da terra e da gente do Brasil (Cf. Cardim, 1584-
90)58, e Gabriel Soares de Sousa59, o cultuado autor do Tratado descritivo do Brasil em
55 “Pero de Magalhães Gandavo, natural de Braga, descendia de flamengos, como seu nome indica (...). Residiu algum tempo no Brasil. Foi insigne humanista e excelente latino, de cuja língua abriu escola entre Douro e Minho (...). E se acrescentarmos que Luís de Camões o teve por amigo, teremos esgotado a sua breve biografia.” (Abreu, 1924: 200; cf. Garcia, 1927b: 25-6). 56 “Conquanto chame História ao trabalho publicado em vida, o nome assenta-lhe mal. (...) A sua história é antes natural que civil; o mesmo se pode afirmar do Tratado. (...) Mais de uma vez repete que seu projeto se reduz a mostrar as riquezas da terra, os recursos naturais e sociais nela existentes, para excitar as pessoas pobres a virem povoá-la; seus livros são uma propaganda de imigração.” (Abreu, 1924: 201; cf. Garcia, 1927b: 25-6). 57 “Em 27 de janeiro de 1625 faleceu na aldeia do Espírito Santo, hoje Abrantes, o padre Fernão Cardim, reitor do colégio bahiano da Companhia de Jesus. (...) Quando morreu, Fernão Cardim passara quase meio século em terras brasileiras, interrompido apenas por uma viagem, como procurador de província, a Roma, e alguns meses ou anos de prisão na Inglaterra. (...) Sabe-se que entrou no noviciado da Companhia a 9 de fevereiro de 1566 (...). Antes de 1582, consta, foi ministro em Évora, e nomeado mais tarde para acompa-nhar Cristóvão de Gouvêa na visitação à província do Brasil. (...) A 16 de outubro de 1585 estava finda a visitação e Cadim ultimava a primeira e maior parte de sua narrativa. (...) Antônio Vieira diz que morreu de 75 anos, 60 vividos na Companhia e, omitindo os servidos como ministro, etc., passaram de vinte os que foi reitor e provincial.” (Abreu, 1925: 218-24; cf. Garcia, 1927b: 27-8). 58 “Teve divulgação em inglês, no princípio do século XVII, na coleção de viagens de Samuel Purchas, aparecida em 1625, sem a correta identificação.” (Iglésias, 2000: 28). 59 “Era Gabriel Soares nascido em Portugal, talvez na própria cidade de Lisboa, onde tinha duas irmãs. Em 1567, passava a Monomotapa, acompanhando a Francisco Barreto quando, arribando à Bahia, preferiu ficar nesta cidade, onde foi medrando, chegando até a fazer-se senhor de um grande engenho de açúcar no rio Jequiriçá. Por morte de seu irmão João Coelho, (...) herdeiro do seu itinerário do descobrimento de várias
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1587 (Cf. Soares de Sousa, 1587), “o que de melhor se produziu sobre a nova terra no
primeiro século da colonização” (Iglésias, 2000: 29).
Estes pró-homens estão imortalizados no panteão da nacionalidade por repre-
sentarem a primeira geração de autores que elaboraram uma concepção de Brasil como
uma entidade territorial definida onde se desenvolvia uma comunidade humana que, em-
bora filiada à nação lusa, exalava peculiaridades. Sem embargo, a grande contribuição
desses autores para a construção da nacionalidade terá sido a formulação da idéia do “gi-
gante pela própria natureza”, âmago da nossa simbologia territorial. Com efeito, o mote
desse discurso laudatório sobre as vastidões tropicais descortinadas pelo gênio lusitano
foi posto por Gandavo e o trovador contemporâneo o glosará, quatrocentos anos depois,
na exaltação de um “país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza”. Assim
escreveu o amigo de Camões:
“(...) é esta Província sem contradição a melhor pera a vida do homem que cada uma das outras de América, por ser comumente de bons ares e fertilíssima, e em grã maneira deleitosa e aprazível à vista humana. (...) Esta Província é à vista mui deliciosa e fresca em grã maneira: toda está vestida de mui alto e espesso arvoredo, regada com águas de muitas e mui preciosas ribeiras de que abundantemente participa toda a terra, onde permanece sempre a verdura com aquela temperança da primave-ra que cá nos oferece Abril e Maio.” (Gandavo, 1570-6: 81-2)
Esse tema – uma terra opulenta, salubre e bela, cujo potencial se dava a co-
nhecer pela sua própria natureza magnificente – será a idéia de força na elaboração da
territorialidade pelos cronistas do fim de Quinhentos. O padre Cardim, por exemplo, em-
bora não tenha produzido uma visão ufanista, chegando a considerar a terra “algum tanto
malencólica”, observava ser ela “regada de muitas águas, assim de rios caudais, como do
céu (...) e cheia de grandes arvoredos que todo o ano são verdes” e acrescentava que o
minas nos sertões, resolveu passar à Europa, a requerer concessões e privilégios; mas houve tal dilação no despacho de seus requerimentos, que, tendo partido da Bahia em fins de agosto de 1584, só depois de mea-dos de dezembro de 1590 foi despachado. Nesse intervalo, talvez com objeto de recomendar-se, ofereceu, no 1º de março de 1587, a D. Cristóvão de Moura, estadista influente no governo, o precioso escrito acerca do Brasil (...).” (Varnhagen, 1854-7b: 37-8).
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clima é “temperado de bons, delicados e salutíferos ares”, donde concluirá que “os ho-
mens vivem muito (...) e a terra é cheia de velhos” (Cardim, 1584-90: 25). Gabriel Soa-
res, bem mais positivo que o jesuíta, escreverá no proêmio de sua obra que tencionava ali
“manifestar a grandeza” de uma “terra [que] é quase toda muito fértil, muito sadia, fresca
e lavada de bons ares, e regada de frescas e frias águas” (Soares de Sousa, 1587: 1-2) e,
com efeito, o seu precioso tratado desvelará um inventário detalhado das capacidades
naturais contidas naquela magnífica corografia tropical.
Entretanto, o viço das matas, a profusão das águas e a salubridade dos ares
que evidenciavam as grandezas da terra e anunciavam a boa ventura dos seus habitantes
eram, tão somente, indícios do potencial daquela amplidão agreste. O elogio da terra bem
servia como uma exortação poética, mas as consciências daqueles homens que abalavam
da Europa para o Novo Mundo com propósitos práticos e intentos objetivos não se apazi-
guariam frente às aptidões apregoadas, era necessário que delas percebessem os frutos.
Quer dizer, para além dos encômios pastorais, os cronistas do final de Quinhentos havi-
am de dar conta da real capacidade produtiva da terra, elemento decisivo para submeter
aquelas vastidões incultas ao labor colonial. Neste sentido, nossos autores primeiramente
se dedicaram a inventariar a profusão natural do Brasil e, tratando das vitualhas da terra,
pintaram um panorama de grande abundância, “pelo que os homens se mantêm honrada-
mente com pouco cabedal, se se querem acomodar com a terra e remediar com os man-
timentos dela, do que é muito abastada e provida” (Soares de Sousa, 1587: 124-5). De
fato, da cornucópia brasílica transbordavam víveres de toda ordem, como proclamará
Gandavo:
“São tantas e tão diversas plantas, frutas e ervas que há nesta Província, de que se podiam notar muitas particularidades, que seria cousa infinita escrevê-las aqui todas, e dar notícia dos efeitos de cada uma miuda-mente” (Gandavo, 1570-6: 95) “(...) desta e de toda a mais caça de que acima tratei participam (como digo) todos os moradores, e mata-se muita dela à custa de pouco traba-lho (...) e um índio só basta, se é bom caçador, a sustentar uma casa de
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carne no mato, ao qual não escapa um dia por outro que não mate porco ou veado, o qualquer outro animal destes que fiz menção.” (Gandavo, 1570-6: 104-5) “É tão grande a cópia do saboroso e sadio pescado que se mata, assim no mar alto, como nos rios e baías desta Província de que geralmente os moradores são participantes em todas as Capitanias, que esta só fertili-dade bastara a sustentá-la abuntantissimamente, ainda que não houvera carnes nem outro gênero da caça na terra de que se proveram como a-trás fica declarado” (Gandavo, 1570-6: 115).
Todavia, os nossos autores não se limitaram a louvar esse ambiente natural
um tanto edênico, esplêndido pela fartura e diversidade de seus gêneros, mas cuja singu-
laridade tropical impactava o “feitio lusitano da existência” (Cabral de Mello, 2000: 85).
Assim, boa parte das crônicas do final de Quinhentos era dedicada a demonstrar a capa-
cidade da terra em prover os colonos de produtos tradicionalmente usados na Europa e,
neste caso, ainda mais entusiásticas seriam as loas60, elevadas à quintessência pelo estro
de Gabriel Soares:
“As vacas são muito gordas e dão muito leite, de que se faz muita man-teiga e as mais coisas de leite que se fazem em Espanha (...). São tão formosas, as éguas da Bahia como as melhores de Espanha, das quais nascem formosos cavalos e grandes corredores (...). As ovelhas e as ca-bras foram de Portugal e de Cabo Verde, as quais se dão muito bem (...). Os cordeiros e cabritos são sempre muito gordos e saborosos (...). A porca pare infinidade de leitões, os quais são muito tenros e saboro-sos (...). As galinhas da Bahia são maiores e mais gordas que as de Por-tugal, e grandes poedeiras e muito saborosas (...).” (Soares de Sousa, 1587: 125-6) “Arroz se dá na Bahia melhor que em nenhuma outra parte sabida, por-que o semeiam em brejos e em terras enxutas (...). Da ilha de Cabo Verde e da de S. Tomé foram à Bahia inhames que se plantaram na ter-ra logo, onde se deram de maneira que pasmam os negros de Guiné (...). Pepinos se dão melhor que nas hortas de Lisboa (...). Abóboras das de conservas se dão mais e maiores que nas hortas de Alvalade (...). Melancias se dão maiores e melhores que onde se podem dar bem na Espanha (...). Nabos e rábanos se dão melhores que entre Douro e Mi-
60 Como as que teceu um extasiado padre Cardim frente às hortas e pomares dos colégios de Olinda (Cf. Cardim, 1584-90: 161), Salvador (Cf. Cardim, 1584-90: 171) e Piratininga (Cf. Cardim, 1584-90: 173-4), cuja exuberância levou o jesuíta a escrever ao seu provincial: “Duvidava eu qual era melhor provido, se o refeitório de Coimbra se este [da Bahia], e não me sei determinar” (Cardim, 1584-90: 171).
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nho (...). As couves tronchudas e murcianas se dão tão boas, como em Alvalade (...). Alfaces se dão a maravilha de grandes e doces (...). Co-entros se dão tamanhos que cobrem um homem (...). A hortelã tem na Bahia por praga nas hortas, porque onde a plantam lavra toda a terra (...). Agriões nascem pelas ruas onde acertou de cair alguma semente (...).” (Soares de Sousa, 1587: 130-3)
Em que nos possa pesar, leitores modernos coagidos pelo racionalismo exa-
cerbado dos nossos dias, o estilo hiperbólico e um tanto fabuloso de Gabriel Soares, aliás
adequado para uma obra que se destinava a divulgar “os grandes merecimentos deste
Estado, as qualidades e estranhezas dele” (Soares de Sousa, 1587: 1), sua composição era
uma expressão legítima do espírito daqueles tempos, uma época de transição entre o do-
mínio do sagrado e o chamado do século nas consciências dos homens. Ademais, afora as
exagerações próprias das peças de propaganda daquela e de todas as épocas, a excepcio-
nal fecundidade do trópico era uma realidade que saltava aos olhos daqueles homens ha-
bituados a cultivar os solos exauridos da velha Europa, onde a faina agrícola se submetia
a uma sazonalidade opressiva. Afinal, a florescente cultura da cana-de-açúcar era uma
evidência objetiva e eloqüente dos predicados da terra que ainda mais legítima se tornava
na medida em que era abonada pelo testemunho de um homem encanecido na lida dos
engenhos:
“as canas-de-açúcar (...) recebeu esta terra de maneira em si, que as dá maiores e melhores que nas ilhas e parte de onde vieram a ela, e que em nenhuma outra parte que se saiba que crie canas-de-açúcar; (...) na Ba-hia plantam-se pelos altos e pelos baixos, sem se estercar a terra, nem se regar (...). E na Bahia há muitos canaviais que há trinta anos que dão canas; e ordinariamente as terras baixas nunca cansam e as altas dão quatro e cinco novidades e mais.” (Soares de Sousa, 1587: 127)
O tratado de Gabriel Soares de Sousa é um marco na elaboração da territoria-
lidade brasileira, não apenas porque foi, no dizer de Capistrano de Abreu, “a enciclopédia
viva do século XVI” (Apud Silva, 2000: 19), mas sobretudo porque dele exalava um sen-
timento franco de apego ao país que surgia no trópico, sentimento este que vinha de um
homem que fizera a sua vida no Brasil, labutando intensamente nas agruras da chamada
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“zona tórrida” por dezessete anos. Assim, o entusiasmo daquele colono ilustrado, preciso
em suas anotações corográficas, minudente em suas observações etnográficas e exaustivo
em suas descrições da fauna e flora nativas, terá sido a primeira expressão objetiva do
amor à terra do Brasil que, como temos defendido, é um dos fundamentos básicos e uni-
versais do sentimento nacional. Afinal, como frisou o mestre cearense, “enquanto esteve
manuscrito [o Tratado descritivo do Brasil em 1587 ] foi largamente aproveitado” (A-
breu, 1904: 21) e terá sido uma referência fundamental para os escritores do início de
Seiscentos (Cf. Silva, 2000: 20), os quais desenvolveriam, às últimas conseqüências, o
fulcro da motivação de Gabriel Soares de Sousa.
Dois profetas da nacionalidade
Com efeito, dois códices seiscentistas, sobreviventes da voracidade do tempo
e da precariedade dos arquivos portugueses, resgatados, como tantas outras obras funda-
mentais sobre a formação da nacionalidade, pelo infatigável visconde de Porto Seguro
em seu labor diuturno nos escaninhos da Torre do Tombo (Cf. Veríssimo, 1915: 118),
denunciam a existência, em inícios de Seiscentos, de uma elite pensante no Brasil que,
embora carecesse de uma organicidade definida, era emocionalmente comprometida com
o país e estava engajada na reflexão sobre as suas potencialidades, na indagação acerca
dos seus dilemas e na avaliação sobre as suas perspectivas para o futuro. Produzidas em
pleno boom açucareiro e já sob os influxos do processo de consolidação territorial do
país, da estabilização institucional da sociedade implantada no trópico e da emergência
de novas identidades coletivas entre os súditos del-rei de Portugal na América61, essas
duas obras-mestras revelarão, realmente, que no início de Seiscentos “o Brasil começa a
se descobrir Brasil” (Mota, 2000: 21), o que indica, pensamos, já reverberavam na coleti-
61 “Somente em finais de Quinhentos e começos de Seiscentos é que começaram a se afirmar as modalida-des do sentimento local que já não se contentavam em frisar o casticismo da América portuguesa.” (Cabral de Mello, 2000: 92).
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vidade primeva os lumes da nacionalidade nascente. Estamos nos referindo a dois ícones
da literatura brasileira, os Diálogos das grandezas do Brasil (Brandão, 1618) e a Histó-
ria do Brasil, 1500-1627 (Salvador, 1627), incompreensivelmente esquecidos do grande
público mas merecidamente cultuados pela crítica especializada (Cf. Bosi, 1981; Couti-
nho, 1986; Martins, 1977 e Veríssimo, 1915).
A autoria dos Diálogos suscitou grande polêmica entre os estudiosos, pois os
apógrafos encontrados por Varnhagen na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Universida-
de de Leiden não continham quaisquer referências de origem (Cf. Silva, 1997b: VII). No
debate opinaram, entre outros, o próprio visconde de Porto Seguro, Capistrano de Abreu
e Rodolfo Garcia (Cf. Mello, 1960: XVI-XXX), até que a circunstanciada análise de José
Antônio Gonsalves de Mello viesse a confirmar ser a obra da lavra de Ambrósio Fernan-
des Brandão, como sugerira Capistrano (Cf. Abreu, 1901). Embora o perfil do autor seis-
centista permaneça um tanto nebuloso em virtude da escassez documental, o esmero do
ilustre historiador de Tempos dos flamengos nos revela traços essenciais da biografia de
Ambrósio Fernandes Brandão, já prospectados por Capistrano e Rodolfo Garcia. “Era
português e do sul de Portugal, ou pelo menos lá passara muito tempo”, estabelecerá o
mestre cearense, que também indicará o ano provável de sua chegada ao Brasil, apoian-
do-se em uma das muitas indicações autobiográficas presentes na obra: 1583 (Abreu a-
pud Mello, 1960: XXIV; cf. Brandão, 1618: 113-4). Brandão fixou-se em Pernambuco e,
em 1585, seria capitão de uma das “companhias de mercadores” organizadas por Martim
Leitão para a conquista da Paraíba, permanecendo no Brasil até, pelo menos, 1597, a
cuidar do seu engenho em São Lourenço da Mata (Cf. Mello, 1960: XXVI). Provavel-
mente neste ano terá voltado para o reino, onde desempenhou funções no serviço público
(Cf. Mello, 1960: XXXI), lá ficando até 1607, quando retornou para o Brasil. “Em 1613
era senhor de três engenhos na Paraíba” (Mello, 1960: XXVII) onde, queremos crer, con-
cordando com Capistrano, teria escrito os Diálogos, com toda certeza concluídos no ano
de 1618 (Cf. Abreu, 1901: 216), quando Ambrósio Fernandes Brandão contava 63 anos
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de idade (Cf. Mello, 1960: XXXI).
O livro é uma saborosa peça composta de altercações entre Brandônio, alter-
ego do autor, colono experiente nas coisas brasílicas e advogado entusiasta das “grande-
zas” do Brasil e Alviano, um céptico contumaz, “reinol vindo de pouco a esta terra”
(Brandão, 1618: 71), que a tinha como a “mais ruim do mundo” (Brandão, 1618: 11).
Considerado por José Honório Rodrigues como “a crônica mais positiva, a descrição
mais viva, o flagrante mais exato da vida, da sociedade [e] da economia dos moradores
do Brasil” (Rodrigues, 1979: 371), o livro foi exemplarmente apreciado por José Verís-
simo, que nele identificou a grande motivação do autor, o amor à terra do Brasil, e os
atributos do estro de Ambrósio Fernandes Brandão:
“Literariamente estes Diálogos, sem serem romance ou novela, são uma ficção, a primeira escrita no Brasil. O processo de diálogos, já o notou Varnhagen, estava então em moda em Portugal, para a exposição de idéias e noções de ordem moral, política ou econômica. São princi-palmente desta ordem as que intenta divulgar o autor deste, com o pro-pósito manifesto de propaganda, como hoje diríamos, do Brasil, por um português que laços diversos de interesse e amor apegariam à terra, da qual fala carinhosamente. Pela língua e estilo, embora não sejam nem uma nem outro primorosos, são estes Diálogos o que melhor nos legou a escrita portuguesa no Brasil nesta primeira fase da produção literária aqui. Por ambos é de um quinhentista que, justamente por não ser um literato, não trazia ainda a eiva do século literário que começava. Es-crevendo, com interesse e amor, de cousas novas, inéditas, bem conhe-cidas suas, fê-lo com maior objetividade, inteligência e simpleza do que era comum em livros portugueses contemporâneos. E, ao menos para nós brasileiros, mais interessantemente.” (Veríssimo, 1915: 33, ênfase nossa)
Quanto ao autor da primeira História do Brasil, bem mais sabemos, em vir-
tude da biografia composta por Capistrano de Abreu para a segunda edição da obra (Cf.
Abreu, 1918), a qual seguiremos com fidelidade. Trata-se de frei Vicente do Salvador,
filho de João Rodrigues Palha, “escudeiro e fidalgo da geração dos Palhas do Alentejo
[que] emigrou por desgostos domésticos, à procura de melhor fortuna, por ter pouco grão
para sustentar família” (Abreu, 1918: 32). O pai do nosso autor veio para o Brasil em
1554 na malograda expedição de Luís de Melo da Silva e foi um dos sobreviventes do
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naufrágio na costa do Maranhão. Decidido a ficar na colônia, foi dar na Bahia e se fixou
no recôncavo, onde formou família casando-se com Mécia de Lemos. Ainda era vivo em
1592, quando contava 62 anos de idade e trabalhava como lavrador na freguesia de Nossa
Senhora da Piedade, no engenho de Bernardo Pimentel, conforme declarou à mesa do
Santo Ofício em 24 de janeiro do mesmo ano (Cf. Santo Ofício da Inquisição de Lisboa,
1591-2: 251-2).
Vicente Rodrigues Palha, seu ilustre primogênito, nasceu na vila de Matoim,
no ano de 1564, e foi batizado na sé da cidade do Salvador em 29 de janeiro de 1567,
segundo Jaboatão (Apud Abreu, 1918: 32). Da infância, pouco se sabe, a não ser que,
muito provavelmente, tenha estudado em Salvador, sob a tutela do tio materno, Jorge de
Pina, cônego da sé, chantre e mestre-escola. Doutorou-se em teologia e cânones em Co-
imbra e, ao que tudo indica, estava de volta à Bahia em 1587, onde serviu de cônego,
vigário-geral e governador do bispado de D. Antônio Barreiros. Tomou o hábito de São
Francisco a 27 de janeiro de 1599 e professou um ano depois, adotando o nome de frei
Vicente do Salvador. É certo que em 1603 o frade servia em Pernambuco e que dali fora
mandado missionar na Paraíba, conforme ele próprio informa no livro (Cf. Salvador,
1627: 433-4). Em 1606 foi nomeado presidente das obras do convento de Santo Antônio
no Rio de Janeiro, onde permaneceu trabalhando até 1608. Foi eleito guardião do con-
vento de Salvador em 1612 e custódio em 15 de fevereiro de 1614. Em 1618 estava no
reino, “talvez desejoso de imprimir a Crônica da custódia do Brasil que compusera”
(Abreu, 1918: 35), e lá conheceu o erudito Manuel Severim de Faria, que teria lido o
manuscrito e visto nele as “qualidades de historiador” (Abreu, 1918: 36) que o teriam
levado a incentivar o frade a se aventurar no gênero, dispondo-se a patrocinar a edição de
um livro sobre a história do Brasil. Teria voltado à colônia, pelo Rio de Janeiro, por volta
de 1621, já com a primeira parte do livro escrita e, em 1624, quando navegava para Sal-
vador, foi aprisionado pelos holandeses e veio a testemunhar a restauração da Bahia, tor-
nando-se o seu principal cronista. Segundo Jaboatão (Apud Abreu, 1918: 37), frei Vicen-
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te do Salvador morreu entre 1636 e 1639.
O manuscrito, que “tem espírito, tem chiste, quase poderíamos dizer que às
vezes tem até humour” (Veríssimo, 1915: 35), não agradou a Manuel Severim de Faria,
“acostumado a obras vazadas em outros moldes” (Abreu, 1918: 40), e não chegaria à
publicidade até que João Francisco Lisboa descobrisse, em 1858, um capítulo avulso da
obra na Torre do Tombo, identificado e publicado por Varnhagen na Revista Trimestral
do IHGB (Cf. Abreu, 1918: 29). Em 1872, em uma de suas jornadas mais profícuas no
arquivo nacional português, o visconde de Porto Seguro deparou-se com o livro e com
um exemplar da Prosopopéia de Bento Teixeira, tido como perdido. Certamente, a noto-
riedade da obra do portuense (Cf. Veríssimo, 1915: 24), ainda hoje considerada a mais
primitiva manifestação literária “não-portuguesa” no Brasil (Cf. Bosi, 1981: 41), ofuscou
a descoberta do códice do frade baiano, que só viria a público na grande exposição de
história e geografia montada na Biblioteca Nacional em 1881, na ocasião do aniversário
de D. Pedro II. Em 1886, o Diário Oficial publica, por instâncias de Capistrano de A-
breu, o primeiro capítulo do livro, cuja completude só seria dada aos prelos em 1889, por
iniciativa da Biblioteca Nacional.
Vindo à luz num momento crucial de consolidação da nacionalidade, o pri-
meiro livro de que se tem notícia escrito por um brasileiro nato surtiu grande efeito sobre
a novel intelligentsia nacional e o seu autor seria mais tarde considerado como o “primei-
ro definidor da tradição brasileira” (Bomfim, 1929: 3), sendo hoje visto como “quem
formulou o primeiro programa nativista para o Brasil” (Cabral de Mello, 2000: 96). Com
efeito, Capistrano de Abreu, o decano da historiografia brasileira do final de Oitocentos e
inícios de Novecentos, vanguarda do nosso pensamento social moderno, soube achar na
sensibilidade de frei Vicente do Salvador as núncias da nacionalidade que repontava no
trópico já em inícios de Seiscentos:
“Sua história prende-se antes ao século XVII que ao século XVI, neste com as dificuldades das comunicações, com a fragmentação do territó-rio em capitanias e das capitanias em vilas, dominava o espírito muni-
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cipal: brasileiro era o nome de uma profissão; quem nascia no Brasil, se não ficava infamado pelos diversos elementos de seu sangue, ficava-o pelo simples fato de aqui ter nascido – um mazombo, se de algum cor-po se reconheciam membros, não estava aqui mas no ultramar: portu-gueses diziam-se os que o eram e os que o não eram. Frei Vicente do Salvador representa a reação contra a tendência dominante: Brasil sig-nifica para ele mais que expressão geográfica, expressão histórica e so-cial. O século XVII é a germinação desta idéia como o século XVIII é a maturação.” (Abreu apud Veríssimo, 1915: 34)
Quer dizer, frei Vicente do Salvador foi um patrono da nacionalidade nascen-
te e, nisto, estava irmanado a Ambrósio Fernandes Brandão, pois além do testemunho
vivo que nos legaram e da comunhão de idéias e temas que abordaram (Cf. Abreu, 1918:
37-8), o ânimo que os movia era o mesmo, o sentimento basilar da nacionalidade – “Para
tentar a História habilitava-o o amor à terra natal, a certeza no seu futuro e tais sentimen-
tos eram raros naquele tempo, como se pode ver também nos Diálogos das grandezas”
(Abreu, 1918: 38). Ora, esse sentimento não podia ser apenas uma quimera de literatos
ou um instrumento de prosélitos, que não os eram os nossos autores, mas ele emanaria,
embora ambígua e timidamente, da realidade social e histórica de que participavam e que
souberam, com fina perspicácia, observar e registrar. Aliás, como pondera Nelson Wer-
neck Sodré, na obra do frade baiano “há expressivo entusiasmo pelo Brasil, manifesta-
ções espontâneas de orgulho, que constituem sintomas importantes no alvorecer do sécu-
lo XVII” (Sodré, 1988: 214, ênfase nossa).
Neste sentido, podemos dizer que o testemunho que esses dois autores nos
legaram aponta para uma evidência irrefragável: na era em que viveram Ambrósio e frei
Vicente, o Brasil realmente se fazia Brasil pelas mãos dos seus filhos, fossem eles natu-
rais da terra ou fossem eles adotados do reino, e embora a colônia fosse considerada co-
mo um mero apêndice da metrópole, ela transpirava um ethos próprio, que se refletia na
emergência de um sentimento coletivo de amor à terra que se transformava em ação so-
cial naqueles momentos cruciais de mobilização do povo pela salvaguarda do território
ameaçado pelo estrangeiro. Assim, pensamos que Ambrósio Fernandes Brandão, que
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compôs o seu livro no mesmo ano da conquista do Maranhão aos franceses, e frei Vicen-
te, “que concluiu a sua história sob o impacto da ocupação holandesa de Salvador” (Ca-
bral de Mello, 2000: 96), foram os profetas da nacionalidade nascente, cuja expressão
apagada no cotidiano daqueles “humildes e envergonhados mazombos do começo do
século XVII” (Abreu, 1907: 191), se patenteava de eloqüência nos episódios heróicos das
guerras contra franceses e holandeses.
Mas se o travo estilístico de Ambrósio Fernandes Brandão vier a agastar o
paladar melindroso dos cépticos de plantão, aqueles que pensam que somente no século
XIX “foi, talvez, que o Brasil começou a se fazer Brasil” (Souza, 1997: 440, ênfase nos-
sa), podemos lhes aviar um lenitivo, oferecendo-lhes a fidedignidade da obra do frade
baiano, atestada pela criteriosa crítica historiográfica pela qual passou e que ficou conso-
lidada nos excelentes Prolegômenos que Capistrano de Abreu apôs à 2ª edição da obra,
publicada em 1918 (Cf. Abreu, 1918), depois anotados e aditados de novas evidências
documentais por Rodolfo Garcia, para a 3ª edição (1931), e frei Venâncio Wílleke, para a
5ª e definitiva, comemorativa do quarto centenário do autor (Cf. Salvador, 1627). Seria
rebarbativo listar as inúmeras abonações ao valor historiográfico da obra, facilmente en-
contráveis nos bons compêndios sobre a historiografia e literatura brasileiras, pelo que
nos contentamos, afinal, em citar dois depoimentos modelares: segundo Wilson Martins,
a obra do frade é “o primeiro livro que se pode legitimamente considerar como perten-
cente tecnicamente ao gênero historiográfico [no Brasil]” (Martins, 1977: 120), e frei
Vicente exerce, na opinião frisante de Francisco Iglésias, “boa prática da historiografia
de todos os tempos, por uma sensibilidade aguda de sua problemática” (Iglésias, 2000:
30).
“Seria este um grande reino”
No que toca, efetivamente, à nossa temática podemos dizer, antes de mais
nada, que frei Vicente do Salvador e Ambrósio Fernandes Brandão desenvolveram o
222
leitmotiv dos cronistas de Quinhentos – a elaboração laudatória da territorialidade –, o
que indica a perenidade de um discurso culto pontuado por uma idéia de Brasil como
uma entidade territorial distinta cujos atributos naturais, embora extravagantes, não obs-
tariam mas, pelo contrário, favoreceriam o estabelecimento de uma comunidade civil nos
trópicos. Esse discurso ressaltará, ademais, uma idéia de adaptabilidade que aponta para
uma realidade dupla: por um lado, o trópico admite a civilidade européia, mas, por outro,
ele impõe ajustes que fazem com que o estilo de vida americano tenha as suas peculiari-
dades. Esta é a base sociológica do que mais tarde Gilberto Freyre denominará de “socie-
dade híbrida” (Cf. Freyre, 1933).
Aliás, o ponto de partida desse discurso é o resgate da tropicalidade – carac-
terística distintiva e marcante do território – fundado na contestação da “opinião que foi
de Aristóteles e de outros filósofos antigos que a zona tórrida era inabitável” (Salvador,
1627: 63; cf. Brandão, 1618: 47-8). Neste sentido, Brandônio advogará ardentemente,
invocando, como de hábito fará em toda a obra, a sua própria vivência na terra. “Temos
experimentado o contrário”, intercede, pois “como lhes faltava a experiência desta zona,
ignoraram os ventos frescos que nela de ordinário cursam”, além do que, “o calor que
nela causa o sol do dia, é temperado com a umidade da noite.” (Brandão, 1618: 48-50).
Aliás, esse “temperadíssimo calor” (Brandão, 1618: 82) é a própria imagem da transitivi-
dade entre as condições do trópico e o estilo de vida europeu pois, como resumirá frei
Vicente, “a intensão de calor se modera com os ventos frescos do mar e umidade da terra,
junto com a frescura do arvoredo de que toda está coberta; de tal sorte que os que a habi-
tam vivem nela alegremente.” (Salvador, 1627: 64, ênfase nossa).
Brandônio é tão enfático nesse aspecto da habitabilidade, que aduz uma abo-
nação hiperbólica para abordar o tema da salubridade do Brasil, onde “os bons céus e
bom temperamento da terra” (Brandão, 1618: 69) fazem com que “toda a gente de qual-
quer nação que seja, prevalece com saúde perfeita e os que vêm doentes cobram melhoria
em breve tempo” (Brandão, 1618: 69): “não faltam autores que querem afirmar estar nes-
223
ta parte situado o paraíso terreal” (Brandão, 1618: 50). Essa noção é sustentada por um
clichê já empregado por Caminha em sua famosa carta e repetido, por exemplo, por The-
vet (1557: 149; 152) e Léry (1578: 245) em meados de Quinhentos: a “perfeita saúde” do
gentio da terra (Brandão, 1618: 68) indica que, afora as “doenças estrangeiras”, “as do-
enças que há nele [Brasil] são tão leves e fáceis de curar que quase não se podem reputar
por tais” (Brandão, 1618: 71-3), ao que atalhará frei Vicente, “não há enfermidade contra
a qual não haja ervas em esta terra, nem os índios naturais dela têm outra botica ou usam
de outras medicinas” (Salvador, 1627: 71).
Como no caso dos escritores quinhentistas, esgotado o tema da habitabilidade
e salubridade da terra, os autores de Seiscentos passam a tratar da “riqueza, fertilidade e
abundância deste Brasil” (Brandão, 1618: 85), no que praticamente reproduzem Gabriel
Soares. Duas máximas e dois produtos resumem a visão dos nossos autores sobre esse
aspecto fundamental: para Brandônio, “a terra é disposta para se haver nela todas as agri-
culturas do mundo” (Brandão, 1618: 11), enquanto para frei Vicente, “é o Brasil mais
abastado de mantimentos que quantas terras há no mundo, porque nele se dão os manti-
mentos de todas as outras” (Salvador, 1627: 73), sendo que, por um lado, “o principal
nervo e sustância da riqueza da terra é a lavoura dos açúcares” (Brandão, 1618: 86) e, por
outro, “o ordinário e principal mantimento do Brasil é o que se faz da mandioca” (Salva-
dor, 1627: 74).
Estes dois produtos – a mandioca e a cana-de-açúcar – simbolizam, precisa-
mente, a natureza bivalente da adaptabilidade que caracterizou o processo de “confrater-
nização de cultura” (Freyre, 1933: 123), o qual, segundo a magistral análise do mestre de
Apipucos, presidiu a formação brasileira. Ora, se a cana-de-açúcar tão bem se amanhou à
terra a ponto de tornar-se a base da economia colonial e o alicerce do povoamento do
Brasil (Cf. Freyre, 1933: 244-5), a mandioca, cultivada e beneficiada imemorialmente
pelos índios, seria agregada à culinária européia a ponto de tornar-se “o pão comum dos
moradores deste Estado” (Rocha Pitta, 1730: 473). Aliás, como assevera Gabriel Soares,
224
“e ainda digo que a mandioca é mais sadia e proveitosa que o bom trigo, por ser de me-
lhor digestão. E por se averiguar por tal, os governadores Tomé de Souza, D. Duarte e
Mem de Sá não comiam no Brasil pão de trigo, por se não acharem bem com ele, e assim
o fazem outras muitas pessoas” (Soares de Sousa, 1587: 141). Quer dizer, a fecundidade
da terra ofereceu, generosamente, o essencial alimento e agasalhou, hospitaleiramente, o
produto primordial que, juntos, sustentaram a formação da nação brasileira em seus pri-
mórdios.
Até esse ponto, o discurso seiscentista muito se aproxima da visão quinhen-
tista, mas alguns elementos novos, postos na elaboração do tema da territorialidade por
frei Vicente do Salvador, em contraste com a abordagem de Gandavo e Cardim e na dire-
ção de Gabriel Soares e Ambrósio Fernandes Brandão, demonstram um franco e explícito
sentimento de inclusão nessa já peculiar comunidade implantada no trópico de maneira
que o amor à terra do Brasil é tomado como o ponto de partida para a elaboração de um
verdadeiro “programa nativista” (Cf. Cabral de Mello, 2000: 96), que é o fundamento
político-ideológico primevo para a formulação do sentimento nacional. Com efeito, em
vista da habitabilidade, da salubridade e da fertilidade da terra do Brasil, atestada esta
pela abundância natural e pela capacidade de adaptação de espécies animais e vegetais
estrangeiras, o frade baiano elabora uma noção de auto-suficiência – baseada, precisa-
mente, no “hibridismo” da cultura local, na excelência das estratégias de adaptabilidade
efetivadas por ela e na própria vocação mercantil que já se firmava – a qual revelará um
insopitável ideal de autonomia62:
“(...) é digna de todos os louvores a terra do Brasil, pois primeiramente pode sustentar-se com seus portos fechados sem socorro de outras ter-ras. Senão pergunto eu: de Portugal lhe vem a farinha de trigo? a da ter-ra basta. Vinho? de açúcar se faz mui suave e, para quem o quer rijo, com o deixar ferver dois dias embebeda como de uvas. Azeite? faz-se
62 Neste aspecto, nos alinhamos à avaliação de Evaldo Cabral de Mello: “Escusado assinalar que a conota-ção autárquica desses tópicos acarretava potencialmente a contestação do monopólio colonial” (Cabral de Mello, 2000: 96).
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de cocos de palmeiras. Pano? faz-se de algodão com menos trabalho que lá se faz o de linho e de lã, porque debaixo do algodoeiro o pode a fiandeira estar colhendo e fiando, nem faltam tintas com que se tinja. Ferro? muitas minas há dele, e em São Vicente está um engenho onde se lavra finíssimo. Especiaria? há muitas espécies de pimenta e gengi-vre. Amêndoas? também se escusam com a castanha de caju, et sic de ceteris. Se me disserem que não pode sustentar-se a terra que não tem pão de trigo ou vinho de uvas para as missas, concedo, pois este divino sacramento é nosso verdadeiro sustento; mas para isto basta o que se dá no mesmo Brasil em São Vicente e campo de São Paulo (...). E com is-so está que tem os portos abertos e grandes barras e baías, por onde ca-da dia lhe entram navios carregados de trigo, vinho e outras ricas mer-cadorias, que deixam a troco das da terra.” (Salvador, 1627: 83).
Esse ideal, formulado em um momento crítico para a consciência nacional
portuguesa, submetida há quase meio século pelo domínio dos Filipes, espelhava uma
concepção homóloga ao declinante Sebastianismo: o “papel messiânico a ser desempe-
nhado pelo Brasil nos destinos de Portugal” (Cabral de Mello, 2000: 97). Com efeito, os
extraordinários contrastes entre o pequeno reino usurpado por Espanha e a exuberante
colônia tropical salvaguardada de franceses e holandeses pelos heróicos esforços do “po-
vo novo” do Brasil, fariam da América portuguesa o último bastião da soberania lusa:
“(...) se alguma hora acontecesse (o que Deus não permita) ser Portugal entrado e possuído de inimigos estrangeiros, como há acontecido em outros reinos, de sorte que fosse forçado passar-se el-rei com seus por-tugueses a outra terra, a nenhuma o podia melhor fazer que esta. (...) pois a gente que cabe em menos de cem léguas de terra que tem todo o Portugal bem caberá em mais de mil que tem o Brasil, e seria este um grande reino (...).” (Salvador, 1627: 162)
Contudo, embora aponte para a redenção da dinastia nacional portuguesa, o
discurso do frade baiano parece muito mais voltado para a própria afirmação da “comu-
nidade política” (Cf. Weber, 1921a: 901) implantada no trópico. De fato, frei Vicente se
refere à terra do Brasil como um refúgio para “el-rei com seus portugueses” e o que po-
deria ser considerado como um ato falho do nosso primeiro ideólogo nacional aponta,
precisamente, para a formulação de um contraste, que sabemos ser a base das identidades
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coletivas63, entre o nós – mazombos, brasis e caribocas – e o eles – portugueses reinóis.
Aliás, essa oposição será o grande instrumento de afirmação do “povo novo” da nação
nos primeiros episódios de confrontação coletiva com laivos nativistas no Brasil, ocorri-
dos no início do século XVIII, a “guerra dos emboabas” (Cf. Mattos, 1989) e a “guerra
dos mascates” (Cf. Cabral de Mello, 1995).
Não queremos com isso dizer que houvesse qualquer movimento de cunho
autonomista articulado na colônia na época de frei Vicente, mas que reponta no “tom
popular” (Abreu, 1918: 38) do seu discurso uma afirmação franca, ainda que incipiente,
da nacionalidade que se construía “à custa do sangue” dos moradores do Brasil, efetiva-
mente derramado nas guerras pela salvaguarda do território. Quer dizer, o frade baiano
dava vazão a sentimentos latentes de afirmação da nacionalidade em construção e se o
seu discurso nos soa como uma voz isolada, havemos de lembrar, antes de mais nada,
que este como os principais documentos coevos do Brasil quinhentista e seiscentista viri-
am á luz apenas no século XIX. Quantos outros depoimentos podem ter se perdido, dis-
solvidos pelo bolor dos arquivos, trinchados pelo apetite das traças, defenestrados pelos
censores metropolitanos ou definitivamente sepultados pelo terrível terremoto de Lis-
boa64? Isso não podemos saber, mas o juízo de frei Vicente parece refletir o vaticínio de
Gabriel Soares de Sousa, proferido quarenta anos antes, o que excita nossa imaginação
sociológica no sentido de supor que já se disseminava entre a parca intelligentsia brasilei-
ra, senão uma elaboração política, mas a afirmação projetiva da nacionalidade nascente:
“(...) estará bem empregado todo o cuidado que Sua Majestade mandar ter deste novo reino; pois está capaz para se edificar nele um grande
63 “A identidade contrastiva parece se constituir na essência da identidade étnica, i.e., à base da qual esta se define. Implica a afirmação do nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. É uma identidade que surge por oposição. Ela não se afirma isoladamente.” (Cardoso de Oliveira, 1976: 5). 64 “O grande terremoto no dia de Todos os Santos de 1755 reduziu a cinzas uma das cidades mais ricas e opulentas da época (...). Cerca de um terço da cidade foi totalmente destruído pelo terremoto e pela enchen-te. (...) Somente em uma mansão perderam-se duzentas pinturas, incluindo um Ticiano e um Rubens e uma biblioteca com dezoito mil livros e mil manuscritos; setenta mil livros da biblioteca do rei se perderam.” (Maxwell, 1997: 21-4).
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império, o qual com pouca despesa destes reinos se fará tão soberano que seja um dos Estados do mundo.” (Soares de Sousa, 1587: 1)
Afinal, como sentenciará Brandônio, colocando termo às imprecações do im-
pertinente Alviano no final do primeiro diálogo,
“Desde o Pará ou Rio das Amazonas, que está situado na linha equino-cial, até a capitania de São Vicente, há de costa quase setecentas léguas, e de norte a sul, contado por rumo direito, quatrocentas e vinte léguas: terra bastantíssima para se poder situar nela grandes reinos e impérios. (...) E o que mais espanta é ver que toda esta grande costa, assim no sertão como nas fraldas do mar, tem excelentíssimo céu e goza de mui-tos bons ares, sendo muito sadia e disposta para a conservação da natu-reza humana.” (Brandão, 1618: 44-5)
“Papagaio real para Portugal”
As obras de frei Vicente do Salvador e de Ambrósio Fernandes Brandão não
se resumem, todavia, a apresentar uma visão profética e ufanista dos destinos da nação
que emergia no trópico. Embora estivessem emocionalmente ligados ao país, nossos au-
tores tinham senso crítico e veia sociológica, pois não deixaram de identificar e apontar
um dos paradoxos essenciais da “comunidade política” que surgia na América portugue-
sa, o qual viria a se rebater fortemente na configuração da vida civil no Brasil. Como
bem observou Evaldo Cabral de Mello, os Diálogos das Grandezas trazem à baila “a
dicotomia da terra e do homem” (Cabral de Mello, 2000: 93), uma característica essenci-
al da mentalidade luso-brasileira sob a égide do sistema colonial.
Pensamos que essa cisão é a matriz histórica mais remota do que Roberto
DaMatta define como o “par estrutural” da “gramática ideológica brasileira” – a oposição
entre as “províncias éticas” casa e rua (DaMatta, 1987: 15) – a qual, embora se constitua
de “categorias sociológicas” virtualmente universais, é “pensada” e “vivida”, no caso
228
brasileiro, a partir de uma lógica específica, o “englobamento”65 (Cf. DaMatta, 1987: 15-
8). Daí resultar ser o Brasil uma “sociedade relacional” (Cf. DaMatta, 1987: 26), na me-
dida em que “o eixo da vida pública é englobado pelo eixo da casa” (DaMatta, 1987: 18).
Quer dizer, o “sistema de ação” brasileiro é montado sobre um “código de valores” mar-
cado por um entremear essencial do domínio público com o domínio privado (Cf. Da-
Matta, 1987: 15), que se rebate naquilo que DaMatta define, baseando-se em Max We-
ber, como “ética dúplice” (Cf. DaMatta, 1987: 50), o que pensamos ser “uma marca do
ethos nacional brasileiro” (Caniello, 1993: 19), já que ela ressalta na conduta social con-
temporânea e tem uma profundidade histórica evidente.
De fato, Raymundo Faoro (1957) demonstra que o patrimonialismo, expres-
são política típica desse “englobamento” do público pelo privado, é um elemento estrutu-
ral da experiência histórica luso-brasileira e o fator “macroprocessual” que condicionou a
sua constituição enquanto tal foi a tendência centralizadora que caracterizou a história
política de Portugal. Já sob D. Afonso Henriques (1139-1185), “os dois caracteres conju-
gados – o rei senhor da guerra e o rei senhor de terras imensas – imprimiram a feição
indelével à história do reino nascente” (Faoro, 1957: 4-5). Com a Revolução Portuguesa
(1385) e a ascensão da Dinastia de Avis, esse processo se consolida, já que o “feudalismo
português” por ela instituído era peculiar: a propriedade das terras era fortemente concen-
trada nas mãos do rei, o que impedia a formação de uma nobreza autônoma e estabelecia
uma norma de “relações diretas” entre o soberano e os súditos. Prematuramente moder-
no, o reino português já aprofundava a tendência centralizadora “em caminho do absolu-
tismo” (Faoro, 1957: 7) ao estabelecer, naquele momento, a arrecadação centralizada
pelo Estado. Em conseqüência, originaram-se três elementos fundamentais do patrimoni-
alismo, os quais fundamentarão a estrutura política portuguesa durante todo o processo
de consolidação nacional: a ascendência d’el rei sobre todos os assuntos, a formação de
65 “Quero me referir àquilo que Louis Dumont tem chamado de ‘englobamento’ (...). O ‘englobamento’ é uma operação lógica na qual um elemento é capaz de totalizar o outro em certas situações específicas. No
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uma extensa rede de funcionários públicos e a “confusão” entre o que é público e o que é
privado nas imensas propriedades do soberano.
Por outro lado, como revelou definitivamente o sociólogo do “dilema brasi-
leiro” (Cf. DaMatta, 1978, 1986 e 1987), esse entremear informa comportamentos típi-
cos, que embora observados nos “dramas cotidianos” (Cf. DaMatta, 1978: 29) da vida
brasileira moderna, têm repercussões macro-estruturais e uma origem que remonta ao
nosso passado histórico mais remoto, como é o caso do “‘Você sabe com quem está fa-
lando’ [que] remete a uma discussão muito séria das relações entre a moldura igualitária
do sistema brasileiro e o sistema aristocrático (e hierarquizante), formando e guiando
durante séculos as relações de senhores e escravos” (DaMatta, 1978: 191, ênfase nossa).
De mais a mais, o próprio “idioma de conciliação” (DaMatta, 1987: 18) – uma virtude de
nossa “cordialidade” essencial, a “contribuição brasileira para a civilização” (Holanda,
1936: 106) – advém desse entremear, se realizando, como demonstramos alhures, na
“produção de estratégias cotidianas de relações sociais essencialmente distensoras” (Ca-
niello, 1993: 31, ênfase no original). Portanto, a intensa interpolação entre as concepções
de público e de privado na consciência do indivíduo é uma das bases do nosso “padrão
ético” (Cf. Caniello, 1993) e, neste sentido, interfere decisivamente na ação das pessoas,
constituindo-se, assim, em um dos traços definidores e mais persistentes do nosso jeito
de ser.
Mas se o entremear entre a casa e a rua é determinante na configuração do
jeitinho brasileiro, essencialmente ambíguo no jogo “micro-estrutural” entre comporta-
mentos autoritários e conciliatórios, ela tem repercussões importantes na própria estrutu-
ração da nacionalidade, na medida em que se reflete numa ambivalência profunda entre o
interesse particular e o bem público, ou seja, na relação entre o indivíduo e a comunidade
que o inclui. Neste sentido, parece haver uma tensão essencial entre o cidadão e a coleti-
vidade, a qual informa, por exemplo, no caso das classes dirigentes, as tão conhecidas
caso brasileiro, a dinâmica é muito familiar.” (DaMatta, 1987: 17).
230
práticas de auto-favorecimento que corrompem o nosso panorama político e, no caso do
vulgo, o profundo desprezo pelo bem comum que perverte a civilidade à brasileira. Co-
mo bem resume Roberto DaMatta, em casa somos “supercidadãos” e na rua somos “sub-
cidadãos” (DaMatta, 1987: 21).
A raiz histórica dessa tensão funda-se, primordialmente, na condição coloni-
al, pois como observou o sargento-mor Diogo de Campos Moreno, em relatório enviado
a el-rei em 1612, “os brancos, ao longo da costa [são] mais hóspedes que povoadores”
(Moreno, 1612: 114). Quer dizer, os reinóis, muitos deles degredados para a América,
viam a colônia ambiguamente: por um lado, era uma extensão de sua casa, uma vez que
se incluía sob o domínio d’el-rei de Portugal, mas, por outro, era um lugar apartado da
terra natal, constituindo-se, tal como a rua, no mesmo “plano de segmentação”66, como
um espaço onde ele ia “ganhar a vida”. Ademais, não podemos esquecer que a “política
mercantilista” (Novais, 1968: 50) impunha que “a produção se devia organizar de modo a
possibilitar aos empresários metropolitanos ampla margem de lucratividade” (Novais,
1968: 59), o que se refletia numa concepção em que a terra da colônia era considerada,
tão somente, como um instrumento para a maximização dos ganhos dos empreendedores
coloniais. Neste sentido, o “englobamento” da rua – a colônia – pela casa – a metrópole
– revestia-se de um sentido altamente predatório, como frisou o sargento-mor: “pondo o
sentido e o coração na pátria, tratam de se acolher, tanto que da província confusa têm
esfolado alguma cousa com o que o fazer possam” (Moreno, 1612: 115). Ou, como dirá
frei Vicente,
“(...) os povoadores por mais arraigados que na terra estejam e mais ri-cos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens
66 “(...) a casa (...) é uma categoria que somente se define e se deixa apanhar ideologicamente com precisão quando em contraste ou em oposição a outros espaços e domínios. (...) A casa define tanto um espaço íntimo e privativo de uma pessoa (...), quanto um espaço máximo e absolutamente público, como ocorre quando nos referimos ao Brasil como nossa casa. Tudo, obviamente, depende do outro termo que está sen-do implícita ou explicitamente contrastado. (...) É que o contraste é realizado aqui num outro plano de oposição, ou, conforme diria Evans-Prichard, (...), num outro plano de segmentação” (DaMatta, 1987: 16-17).
231
que possuem souberam falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como aos papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: papa-gaio real pera Portugal, porque tudo querem para lá.” (Salvador, 1627: 58)
Esse tipo de atitude, através da qual a base comum primordial de uma nação
– a terra – submete-se, à exaustão, ao interesse particular dos seus exploradores, será a
matriz de um dos mais persistentes “dilemas brasileiros”: a cisão, ou, ao menos, a relação
contraditória e tensa, entre o indivíduo e a coletividade. Com efeito, como sentenciou
Alberto Torres, as “nações surgidas por descobrimento e formadas por colonização”
(Torres, 1914: 87) não se constituem na “forma de coletividades em que os indivíduos
são funções da sociedade e a sociedade é função dos indivíduos, desenvolvendo-se, uns e
outra, coordenadamente, sem choques e sem hiatos” (Torres, 1914: 85), já que “governos
coloniais e colonizadores fazem invasões e conquistas: não fundam nações; são explora-
dores: não são sócios (Torres, 1914: 87-88). Foi precisamente isso que observaram os
cronistas de que temos nos valido: para Diogo de Campos, na América portuguesa “ne-
nhuma obra do bem público se coalha” (Moreno, 1612: 114), ao passo que para frei Vi-
cente, os colonos nela assentados “usam da terra, não como senhores, mas como usufru-
tuários, só para a desfrutrarem e a deixarem destruída. Donde nasce também que nem um
homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem
particular.” (Salvador, 1627: 59, ênfase nossa). Enfim, como proclamará Brandônio, os
colonos portugueses eram “todos padrastos do Brasil, com lhes ser ele madre assaz be-
nigna” (Brandão, 1618: 140).
Ou seja, os cronistas seiscentistas não só identificaram um traço estrutural da
mentalidade coletiva brasileira, mas sendo homens engajados, como participantes e ob-
servadores, no processo sócio-histórico de construção da nação, preocuparam-se em ava-
liar as suas conseqüências para a sociedade civil que se formava no trópico. Como con-
traparte de um discurso encomiástico sobre a terra, essa crítica aos “moradores do Brasil”
evidencia, por um lado, que a visão destes autores sobre o país seiscentista ia muito além
232
de uma simples “elaboração ideológica” com a eiva do proselitismo nativista e, por outro,
que uma das características mais marcantes do nosso jeito de ser é coeva à própria emer-
gência da nacionalidade.
Todavia, em que pese esse desapego em relação ao Brasil, manifestava-se na
colônia, como temos observado em várias ocasiões neste trabalho, um sentimento franco
de amor à terra, evidenciado nas lutas empreendidas pelo “povo novo” da nação em fa-
vor da salvaguarda do território e exaltado pela incipiente intelligentsia comprometida
com o país. Assim, acreditamos que as observações de Diogo de Campos Moreno, Am-
brósio Fernandes Brandão e frei Vicente do Salvador apontam para a origem de uma ou-
tra cisão importante na formação brasileira: a incomensurável distância entre as elites e o
povo, responsável pela perene desigualdade social que caracteriza a nossa cena social em
todos os tempos. Quer dizer, os nossos cronistas não se dirigiam à massa da população
que construía o país com o seu trabalho, defendia o território com o seu sangue e povoa-
va a terra com os seus descendentes mestiços, ligando-se ao Brasil por laços sinceros de
identidade, mas à elite parasitária que se encastelara no país, interessada tão somente na
maximização de seus ganhos, conseguida a expensas da exploração aguda do trabalhador
e da utilização predatória da terra. É o que podemos deduzir do discurso de Brandônio,
quando ele se refere aos principais “empreendedores” coloniais:
“A quinta condição é daqueles que tratam da lavoura, e estes se divi-dem ainda em duas espécies: uma, dos que são mais ricos, têm enge-nhos, com títulos de senhores deles (...), e os demais têm partidos de cana; a outra, cujas forças não abrangem a tanto, se ocupam em lavrar mantimentos e legumes. E todos, assim uns como outros fazem suas la-vouras e granjearias com escravos de Guiné (...). E como o de que vi-vem é somente do que granjeiam com os tais escravos, não lhes sofre o ânimo ocupar a nenhum deles em cousa que não seja tocante à lavoura que professam, de maneira que têm por tempo perdido o que gastam em plantar uma árvore, que lhes haja de dar fruto em dois ou três anos, por lhes parecer que é muita demora. Porque se ajunta a isto o cuidar cada um deles que logo, em breve tempo, se hão de embarcar para o Reino e que lá hão de ir morrer.” (Brandão, 1618: 13-4)
Seja como for, numa sociedade em que as “distinções jurídicas entre escravos
233
e livres”, os “princípios hierárquicos baseados na escravidão e na raça”, as “atitudes se-
nhoriais dos proprietários” e a “deferência dos socialmente inferiores” estabeleciam
“múltiplas hierarquias de honra e apreço” (Schwatz, 1995: 209), a ordem ideológica e-
manada das elites se dissemina no sistema social de uma maneira impositiva, imprimin-
do-se no inconsciente coletivo como um princípio verdadeiramente estrutural e refletin-
do-se nas atitudes das pessoas como um padrão recorrente. Assim, tanto a cisão entre o
indivíduo e a coletividade com a sua transivitidade essencial entre o público e o privado,
quanto a distância entre as elites e o povo com as suas funestas conseqüências – eviden-
ciadas, como vimos, pela “dicotomia do homem e da terra” observada pelos cronistas em
inícios de Seiscentos – compuseram o ethos brasileiro na origem da formação nacional e
se perpetuarão na configuração da sociedade brasileira como uma nódoa na nossa vida
civil e na nossa cidadania, modulando-se com o tempo e com as circunstâncias históricas.
Uma nação delineada
Do panorama do Brasil pintado pelos nossos escritores quinhentistas e seis-
centistas sobre o tema da territorialidade emerge, pensamos, uma nação delineada, pois a
matéria que veicularam, repleta de homologias discursivas e identidades de conceitos e
idéias, denuncia a presença, em inícios de Seiscentos, de uma consciência reflexiva com-
prometida com a sociedade em formação e com o seu destino, a qual, embora incipiente e
carente de uma organicidade mais pronunciada, terá sido a vanguarda que inaugurou uma
intelligentsia genuinamente brasileira. Esses autores montaram uma cena onde o “país
realizado” pelo “povo novo” da nação nos episódios cruciais da história do primeiro sécu-
lo da vida brasileira é retratado como uma entidade territorial definida, possuidora de
uma identidade geográfica própria, evidenciada pela imagem de uma terra opulenta, sa-
lubre e bela, capaz não apenas de prover os moradores com as suas “grandezas” naturais,
mas também de se amanhar às exigências do estilo de vida europeu e responder às de-
mandas econômicas impostas pelo “pacto colonial”, imprescindíveis para o seu povoa-
234
mento e desenvolvimento.
Essa cena sugeria, sobretudo, a eclosão do sentimento gerativo da nacionali-
dade, o amor à terra que abriga o povo da nação, o qual será sistematicamente proclama-
do através do discurso encomiástico sobre a terra brasilis, a “madre assaz benigna” enal-
tecida por Brandônio. Aliás, mais do que inspirar um sentimento, alguns desses autores
dedicaram-se a cogitar sobre o próprio destino do país ao sugerirem um verdadeiro “pro-
grama nativista” para ele, encarnado na profecia do “grande reino” tropical. Ou seja, os
nossos cronistas não apenas deram expressão e forma escrita à emoção básica da nacio-
nalidade que já reverberava nos recônditos da alma coletiva, cingida pela memória dos
episódios heróicos da luta pela salvaguarda do território, mas eles projetaram o próprio
estatuto político da nação, vestindo-o numa fábula autonomista grandiloqüente.
Por outro lado, sem limitarem o seu discurso aos encômios e às profecias, es-
tes autores também se dedicaram a diagnosticar alguns dos dilemas concretos da novel
comunidade implantada no trópico e, neste aspecto, foram os verdadeiros precursores do
nosso pensamento social, uma vez que identificaram, como vimos, algumas das fontes
primordiais do chamado problema nacional brasileiro. Desta maneira, eles tiveram a
oportunidade de projetar uma imagem dos principais paradoxos do jeito brasileiro de ser
e demonstraram que o “povo novo” da nação, que revelara as suas peculiaridades nas
guerras contra o invasor estrangeiro e no hibridismo da cultura desenvolvida na América
portuguesa, também tinha um perfil de problemas sociais que lhe era próprio.
Portanto, o que as obras destes autores nos revelam é o próprio desenho de
um país que se fazia nação, pois o que estes primeiros ideólogos da nacionalidade fize-
ram foi enaltecer um território delimitado e defendido por um “povo novo” formado pelo
encontro das etnias primordiais e pela “fraternidade” da cultura de seus ancestrais, povo
este que era portador de um jeito próprio de ser, que se revelava tanto nas suas ações
mais heróicas quanto nos seus paradoxos mais escusos.
235
Capítulo 10
A URBANIDADE DO BRASIL SEISCENTISTA
Dois fatos fundamentais da formação nacional
O expressivo desenvolvimento econômico do Brasil entre os três últimos de-
cênios de Quinhentos e a primeira metade do século XVII e a implantação de uma estru-
tura judicial centralizada na colônia em 1609 são os dois elementos que irão rematar o
perfil da nação delineado nas obras dos cronistas coevos. Se a economia vigorada pelo
boom açucareiro proveu o país de uma base monetária que o tornou muito mais do que
um “lugar de passagem”, transformando sensivelmente a sua paisagem humana, a insta-
lação do tribunal da Relação na Bahia veio a dar maior estabilidade à vida civil na Amé-
rica portuguesa, pois foi a primeira instituição do Estado a intervir formalmente no ge-
renciamento dos direitos e deveres dos cidadãos assentados na colônia, já que, no tempo
das capitanias, a justiça fora aplicada sob o arbítrio dos donatários e que, desde a implan-
tação do Governo-geral, era administrada pelos agentes da Coroa.
Embora tenham explicitado de maneira dramática os dilemas da cidadania na
colônia – a economia açucareira aprofundando, odiosamente, a escravidão e a corte judi-
cial submetendo-se, furtivamente, ao estatuto da desigualdade entre os cidadãos – o cres-
cimento econômico e a institucionalização da Justiça vieram a dar uma nota de urbanida-
de à América portuguesa em Seiscentos. Bem ou mal, a instalação da Relação do Estado
do Brasil completou o quadro institucional do país e a riqueza produzida nos engenhos
fomentou o desenvolvimento da sociedade e da cultura brasileiras. Por outro lado, a exe-
cranda base da economia açucareira deu à nação brasileira a sua terceira matriz étnica,
arrancada de África pelos traficantes e trazida para a América nos porões infectos dos
negreiros, submetida ao mais desumano trabalho nas lavouras e engenhos e seviciada
pelos açoites dos feitores, mas que se assimilou ao “povo novo” pela biologia e pela cul-
236
tura, desempenhando, na expressão frisante de Gilberto Freyre, uma verdadeira “função
civilizadora” (Freyre, 1933: 307).
O apogeu da economia açucareira e a instalação da Justiça no Brasil, com as
suas repercussões positivas e os seus paradoxos mais chocantes, revelam que a comuni-
dade implantada no trópico mostrava renovado vigor e adquiria crescente complexidade.
Veremos, a seguir, como estes dois aspectos do Brasil seiscentista vieram a se constituir
em fatos fundamentais da formação nacional, influindo, cada um à sua maneira, na cons-
tituição da civilidade na colônia, na definição do caráter do povo e na configuração da
cidadania brasileira. Aliás, foi opulência do Brasil açucareiro que projetou a imagem do
país no Mundo, excitando a cobiça dos estrangeiros, cujas investidas sobre o território
resultariam na própria afirmação do “povo novo” da nação, mobilizado, de moto próprio,
em sua defesa, como já observamos neste trabalho.
O boom açucareiro
Comecemos pela análise do progresso econômico e de suas repercussões, pa-
ra depois abordarmos o tema da estabilização institucional e os seus dilemas, assunto do
próximo Capítulo. A cultura da cana e o fabrico de açúcar foi, desde a implantação do
sistema de capitanias hereditárias, a principal atividade econômica desenvolvida no Bra-
sil, desprovida que se mostrara a terra de metais preciosos, pelo menos na estreita faixa
litorânea povoada no primeiro século da colonização. Já então, Portugal dominava o co-
mércio mundial da especiaria, produzida na Madeira e em outras ilhas atlânticas, e o arti-
go seria a única solução encontrada para o problema da “utilização econômica das terras
americanas (...), [pois] somente assim seria possível cobrir o gasto de defesa dessas ter-
ras” (Furtado, 1970: 8).
O produto, que na Idade Média fora “artigo caríssimo, escolhido para presen-
tes régios” e passara por uma depreciação aguda entre 1440 e 1501 (Cf. Simonsen, 1937:
95), iria se tornar “uma das especiarias mais apreciadas no mercado europeu” (Furtado,
237
1970: 9), transformando-se no “principal artigo do comércio internacional” em conse-
qüência da “alta geral dos preços e do aumento progressivo no consumo de todos os arti-
gos de comércio”, verificados a partir de meados do século XVI, quando o metal extraído
da América espanhola começava a aquecer a economia européia (Cf. Simonsen, 1937:
97). Naquele momento, como já observamos, a colônia lusa experimentava a violenta
crise das donatarias, mas a capitania de Duarte Coelho constituía honrosa exceção, em
virtude, precisamente, do sucesso do negócio do açúcar. Ora, já na carta dirigida a el-rei
de 27 de abril de 1542, o donatário dizia “temos grande soma de canas plantadas, todo o
povo, (...) e cedo acabaremos um engenho muito grande e perfeito, e ando ordenando a
começar outros” (in Mello & Albuquerque, 1997: 97) e em outra, escrita em abril de
1548, às vésperas da implantação do Governo-geral, solicitava a el-rei que lhe cedesse
“os dízimos dos meus próprios engenhos, e isto somente dos de minha lavra, e o que me
pertencer nos de terceiros” (in Mello & Albuquerque, 1997: 111), o que significava que o
negócio extrapolara a iniciativa particular do donatário, sendo já exercido por sesmeiros
em Pernambuco. Aliás, em sua carta de 24 de novembro de 1550, Duarte Coelho diz ha-
ver em Pernambuco “cinco engenhos (...) moentes e correntes e cada dia se fazem mais
fortes as casas deles” (In Mello & Albuquerque, 1997: 120).
Sabe-se que el-rei deu pouca atenção aos pleitos do donatário empreendedor,
uma vez que já se decidira pela “absorção regalista iniciada por Tomé de Sousa” (Olivei-
ra Lima, 1895: 21), mas D. João III se valeria da experiência pernambucana para definir
o setor prioritário da exploração econômica no Brasil sob o Governo-geral, o qual, tal
como fora desenvolvido pela autarquia donatarial, deveria aglutinar a produção da rique-
za, a fixação dos colonos na terra e a defesa do assentamento colonial. Neste sentido, el-
rei ordenará a Tomé de Sousa, no Regimento que lhe foi passado:
“As águas das ribeiras (...) em que houver disposição para se poderem fazer engenhos de açúcar ou de outras quaisquer coisas dareis de ses-maria livremente sem foro algum e as que derdes para engenhos de a-çúcar será a pessoas que tenham possibilidade para os poderem fazer dentro do tempo que lhes limitardes (...) e para serviço e manejo dos di-
238
tos engenhos de açúcar lhe dareis aquela terra que para isso for necessá-ria e as ditas pessoas se obrigarão a fazer cada uma em sua terra uma torre ou casa forte da feição e grandura que lhe declarardes nas cartas (...) que bastarão para segurança do dito engenho e povoadores do seu limite. (...) Além da terra que a cada engenho haveis de dar para serviço e manejo dele lhe limitareis a terra que vos bem parecer e o senhorio dela será obrigado de no dito engenho lavrar aos lavradores as canas que no dito limite houverem de suas novidades (...).” (in Ribeiro & Mo-reira Neto, 1993: 144)
Com essa diretriz em vigor, a economia açucareira teve grande impulso, pois,
como resume Stuart B. Schwartz, “houve um período de rápida expansão de 1570 a 1620,
marcado pelo aumento do número de engenhos e pela elevação constante, bem acima no
nível geral de preços, do preço do açúcar” (Schwartz, 1997: 146). De fato, por volta de
1570, havia 60 engenhos no país (Cf. Gandavo, 1570-6), quantia que se eleva para 127
em 1587 (Cf. Soares de Sousa, 1587), 192 em 1612 e chega a um total de 346 em 1629
(Cf. Schwartz, 1997: 148). Quanto ao preço do produto, esclarece Roberto Simonsen que
“o açúcar que havia caído em 1506 ao preço de 300 réis por arroba, pouco mais de 2
gramas-ouro, foi de novo subindo até alcançar, em fins do século XVI, preço em ouro 6
vezes maior; e 7 vezes mais, quando atingiu, na primeira metade do século XVII, o perí-
odo do seu apogeu.” (Simonsen, 1937: 112). Em que pese a “lamentável insuficiência de
dados estatísticos sobre o valor real de sua produção e exportação nos séculos XVI, XVII
e XVIII” (Simonsen, 1937: 112), sabe-se que esses índices saltaram na mesma proporção
da curva de preços e do número de engenhos, já que “ao terminar o século XVI, a produ-
ção do açúcar muito provavelmente superava os dois milhões de arrobas” (Furtado, 1970:
42-3). Assim, a exportação do produto, estável em cerca de 300 mil libras esterlinas anu-
ais entre 1536 e 1570, chegou à casa das £ 600.000 em 1580, saltou para o patamar de £
2.300.000 em 1600 e £ 2.600.000 pouco antes da invasão holandesa, chegando ao seu
“pico” por volta de 1650, às vésperas da restauração pernambucana, com o montante de £
3.800.000 (Cf. Simonsen, 1937: 382).
Acompanhando a trajetória ascendente dos números relacionados à produção
239
e exportação de açúcar, a população do Brasil cresceria vertiginosamente. Estimada em
30.000 almas em 1560, ela chegou ao contingente de 100.000 habitantes na virada do
século e atingiu a cifra de 184.000 em 1660 (Cf. Simonsen, 1937: 382). Sendo assim,
havemos de concordar que o progresso econômico oriundo da “grande lavoura” (Prado
Jr., 1942: 130), cujo ponto de inflexão devemos localizar na década de 570, veio a redi-
mir a colônia carecida de metais e o chamado “ouro branco” produzido nos engenhos
tornou-se a base da “riqueza colonial” (Freyre, 1933: 244) e o grande responsável pela
“implantação definitiva do europeu no Brasil” (Simonsen, 1937: 112), já que “é propria-
mente na agricultura que assentou a ocupação e exploração da maior e melhor parte do
território brasileiro” (Prado Jr., 1942: 130). De fato, o panorama humano no Brasil de-
senvolver-se-ia sensivelmente sob os influxos da economia açucareira, especialmente nas
capitais econômica e política da colônia, assim descritas por Gabriel Soares em 1587:
“Esta vila de Olinda terá setecentos vizinhos pouco mais ou menos, mas tem muitos mais no seu termo, porque em cada um destes [cin-qüenta] engenhos vivem vinte e trinta vizinhos, fora os que vivem nas roças, afastados deles, que é muita gente; de maneira que, quando for necessário ajuntar-se esta gente com armas, por-se-ão em campo mais de três mil homens de peleja com os moradores da vila de Cosmos, en-tre os quais haverá quatrocentos homens de cavalo. Esta gente pode trazer de suas fazendas quatro ou cinco mil escravos da Guiné e muitos do gentio da terra.” (Soares de Sousa, 1587: 20-1) “Terá esta cidade oitocentos vizinhos, pouco mais ou menos, e por fora dela em todos os recôncavos da Bahia, haverá mais de dois mil vizi-nhos, dentre os quais e os da cidade, se pode ajuntar, quando cumprir, quinhentos homens de cavalo e mais de dois mil de pé, afora a gente dos navios que estão sempre no porto.” (Soares de Sousa, 1587: 96)
“Este Brasil é já outro Portugal”
A influência do açúcar no progresso da colônia não se restringiu apenas ao
crescimento econômico e à fixação populacional, ele veio a transformar sensivelmente a
sua própria dinâmica social, repercutindo qualitativamente na civilidade da vida brasilei-
ra. Antes de qualquer coisa, o significativo afluxo de capitais para a América portuguesa
240
transformou a própria base da economia e da sociedade, o sistema de trocas econômicas,
pois, afinal, naquele momento, “o principal nervo e sustância da riqueza da terra é a la-
voura de açúcares” (Brandão, 1618: 86). Ora, se por volta de 1570 Gandavo dizia que “o
dinheiro é pouco na terra, e assim [os moradores] vendem e trocam uma mercadoria por
outra em seu justo preço” (Gandavo, 1570-6: 42), Gabriel Soares dirá de Pernambuco
que, em 1587, “é tão poderosa esta capitania que há nela mais de cem homens que têm de
mil até cinco mil cruzados de renda, e alguns de oito, dez mil cruzados” (Soares de Sou-
sa, 1587: 21). Brandônio, por seu turno, proclamará em 1618 que “dentro da vila de O-
linda habitam inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias
de muito preço, de toda sorte, em tanta quantidade que semelha uma Lisboa pequena”
(Brandão, 1618: 32, ênfase nosso).
O aquecimento do mercado interno era uma evidência indubitável de que “a
vida opulenta e até espaventosa daqueles colonos portugueses” (Freyre, 1933: 261) con-
feria à sociedade colonial atributos de civilidade à altura, ou até superiores, aos encontra-
dos na Europa de então. Daí dizer o padre Cardim, em expressão hoje clássica, “Este
Brasil é já outro Portugal” (Cardim, 1584-90: 57). Realmente, muitos símbolos exteriores
e, mormente, o consumo conspícuo, indicavam que o país desenvolvia-se à sombra de
um grande fausto. Na Bahia, havia “muitos moradores ricos de fazendas de raiz, peças de
prata e ouro, jaezes de cavalos, e alfaias de casa, em tanto, que há muitos homens que
têm dois e três mil cruzados em jóias de ouro e prata lavrada” (Soares de Sousa, 1587:
101). Em Pernambuco, o padre visitador era recebido “com tão grandes gastos que não
saberei contar, porque deixando à parte os grandes banquetes de extraordinárias iguarias,
o agasalhavam em leitos de damasco carmesim, franjados de ouro, e ricas colchas da
Índia” (Cardim, 1584-90: 161). E a quem possa duvidar de tal pompa e circunstância,
retrucará Gilberto Freyre, com a sua irretorquível argumentação: “Por que não, se Per-
nambuco e a Bahia tornaram-se desde cedo escala das naus que voltavam do Oriente (...)
cheias de objetos finos que os portugueses vinham introduzindo por essa época na Euro-
241
pa aristocrática e burguesa?” (Freyre, 1933: 260).
Um dos signos mais eloqüentes do clima de prosperidade que envolvia a vida
civil na América portuguesa era a indumentária. “Andam os homens bem vestidos, e ras-
gam muitas sedas e veludos” (Cardim, 1584-90: 57), dirá o nosso cronista inaciano, con-
cluindo que “em Pernambuco se acha mais vaidade que em Lisboa (Cardim, 1584-90:
164). Nisso concordará Gabriel Soares, ao observar que os senhores de engenho da Bahia
“tratam suas pessoas muito honradamente (...) e com vestidos demasiados, especialmente
as mulheres, porque não vestem senão sedas” (Soares de Sousa, 1587: 101), e também
Brandônio, que aduzirá uma comparação deveras convincente para persuadir o incrédulo
Alviano: “eu vi já afirmar a homens mui experimentados na corte de Madri, que se não
traja melhor nela do que se trajam no Brasil os senhores de engenhos, suas mulheres e
filhas, e outros homens afazendados, e mercadores” (Brandão, 1618: 104). Mas, não pen-
semos que a ostentação da vestimenta era um apanágio exclusivo das classes senhoriais.
É certo que havia uma monstruosa desigualdade de renda entre os fazendeiros e a “gente
de menor condição” (Soares de Sousa, 1587: 101), mas a produção de riqueza era tão
volumosa, que ela se espargia sobre a própria plebe, ao ponto de impor, no dizer do ilus-
trado senhor de engenho baiano, “grandes despesas” às próprias classes populares:
“porque qualquer peão anda com calções e gibão de cetim ou damasco, e trazem as mulheres com vasquinhas e gibões do mesmo, os quais, como têm qualquer possibilidade, têm suas casas muito bem concerta-das e na sua mesa serviço de prata, e trazem suas mulheres muito bem-ataviadas de jóias de ouro.” (Soares de Sousa, 1587: 101)67
Por outro lado, a grandeza da economia açucareira se refletia na própria ur-
banidade da colônia, pois ela se esparramava dos engenhos às vilas e cidades. Segundo
67 Para que não se pense que nossos cronistas “douravam a pílula” com estas considerações e que estamos estabelecendo correlações espúrias entre o açúcar e o progresso da vida civil no Brasil, basta que atentemos para o relato do padre Cardim sobre o vestuário da gente de Piratininga, tão apartada da riqueza gerada nos engenhos, o qual nos servirá como um caso-controle. O jesuíta, freqüentemente acusado de intentar avalia-ções hiperbólicas, dirá dos paulistas: “Vestem-se de burel, e pelotes pardos e azuis, de pertinas compridas, como antigamente se vestiam. Vão aos domingos à igreja com roupões ou bernéus de cacheira sem capa.”
242
Oliveira Lima, nos últimos decênios de Quinhentos, em Olinda “as casas eram numero-
sas, e já tinham perdido a miserável aparência das primitivas palhoças, defendidas por
paliçadas e fossos, dentro das quais se haviam alojado Duarte Coelho e seus companhei-
ros” (Oliveira Lima, 1895: 31). Por outro lado, o indefectível Gabriel Soares ao descrever
Salvador em 1587 dá inúmeras indicações do progresso urbano observado por aquele
tempo e vale a pena nos determos sobre o roteiro que ele traçou (Cf. Soares de Sousa,
1587: 95-100), o qual Varnhagen, em visita à cidade em maio de 1851, diz ter acompa-
nhado “quase passo a passo, tanta verdade há em sua descrição” (Varnhagen, 1851: 325).
Nosso cronista parte do centro da cidade – situada com “o rosto ao poente,
sobre o mar da mesma Bahia” – onde havia “uma honesta praça em que se correm touros,
na qual estão da banda do sul umas nobres casas, em que se agasalham os governadores,
e da banda do norte tem as casas do negócio da Fazenda, alfândega e armazéns” e “da
parte de leste tem a casa da câmara, cadeia e outras casas de moradores, com que fica
esta praça em quadro e o pelourinho no meio dela”. Indo desta praça em direção à praia
havia “dois caminhos” que davam, um, no “desembarcadouro da gente dos navios” e o
outro, no “desembarcadouro geral das mercadorias”. Entrando pelo continente, corria da
praça central, ao norte, “uma formosa rua de mercadores” até a Sé – “igreja de três naves,
de honesta grandeza, alta e bem assombrada”, situada defronte ao porto – “no cabo da
qual, da banda do mar, está situada a casa da Misericórdia e hospital”; da Matriz, “pelo
rumo do norte corre outra muito larga também ocupada com lojas de mercadores, a qual
vai dar consigo em um terreiro muito bem assentado e grande, aonde se representam as
festas a cavalo” e, junto dele, “o qual está cercado em quadro de nobres casas” está “um
suntuoso colégio dos padres da Companhia, com uma formosa e alegre igreja”; continu-
ando em direção ao norte, há outra rua “muito larga e povoada de casas e moradores além
da qual no arrabalde da cidade, em um alto, está um mosteiro de capuchinhos (...) que se
começou de esmolas do povo” e “tornando deste mosteiro para a praça pela banda da
(Cardim, 1584-90: 173).
243
terra vai a cidade muito bem arruada, com casas de moradores com seus quintais”. Da
praça do pelourinho para o continente, em direção ao sul, “corre outra rua muito formosa
de moradores, no cabo da qual está uma ermida de Santa Luzia, onde está uma estância
com artilharia”; esta rua, “muito bem assentada”, era “também toda povoada de lojas de
mercadores, e no topo dela está uma formosa igreja de Nossa Senhora da Ajuda com sua
capela de abóbada”; continuando no rumo do sul, encontrava-se “outro arrabalde da ci-
dade, em um alto e campo largo”, onde se situava o mosteiro de São Bento, “com sua
clausura, e largas oficinas e seus dormitórios (...) o qual se mantém de esmolas que pe-
dem os frades pelas fazendas dos moradores”. Cingindo a urbe – de “vista muito aprazí-
vel” com as suas “casas com os quintais cheios de árvores” – havia um cinturão verde,
cuja produção nos revela, sobretudo, o vigor da economia local:
“A terra que esta cidade tem, uma e duas léguas à roda, está quase toda ocupada de roças, que são como os casais de Portugal, onde se lavram muitos mantimentos, frutas e hortaliças, de onde se remedeia toda a gente da cidade que o não tem de sua lavra, a cuja praça se vai vender, do que está sempre muito provida, e o mais do tempo o está do pão, que se faz das farinhas que levam do reino a vender ordinariamente à Bahia, onde também se levam muitos vinhos da ilha da Madeira, das Canárias, onde são mais brandos, e de melhor cheiro e cor e suave sabor, que nas mesmas ilhas de onde os levam; os quais se vendem em lojas abertas, e outros mantimentos de Espanha, e todas as suas drogas, sedas e panos de toda a sorte, e as mais mercadorias acostumadas.” (Soares de Sousa, 1587: 100-1)
Poderíamos desfiar um rosário de outros elementos que indicariam que a
opulência do Brasil açucareiro transbordava na própria dinâmica da vida coletiva, com o
seu cotidiano festivo – “a cada quatro dias se fazem festas de touros, canas e argolinhas
neste Estado, nas quais gastam, os que as fazem e nelas entram, grande quantidade de
dinheiro” (Brandão, 1618: 90) – e as suas comemorações suntuosas, como a boda que
presenciou um estupefato padre Cardim, ao ver os convidados chegarem montados em
cavalos selados em seda (Cf. Cardim, 1584-90: 164). Aliás, o clérigo ficaria siderado
pelos banquetes que lhe foram oferecidos em sua peregrinação pelos engenhos e, em que
244
nos pesem as suas habituais exagerações, ele não estaria mentindo quando observou a
freqüência dos festivais gastronômicos entre os fazendeiros, uma vez que extraía as suas
conclusões a partir de indícios da própria receita alfandegária – “de ordinário bebem a
cada ano 50 mil cruzados de vinhos de Portugal; e alguns anos beberam oitenta mil cru-
zados dados em rol”, registrará o jesuíta (Cardim, 1584-90: 164).
Ademais, outros aspectos demonstram a forte correlação entre o crescimento
da economia açucareira e o progresso da civilidade no Brasil. Por exemplo, a multiplica-
ção de igrejas e a própria manutenção de conventos, colégios e hospitais religiosos – a
base dos serviços públicos na colônia – era garantida pela renda gerada nas moendas e
caldeiras, que subvencionava estas casas, como fica explícito no “alvará sobre o abono de
mantimentos” (Cf. Coaracy, 1944: 20), que os jesuítas obtiveram na corte em 20 de julho
de 1604:
“Para o Colégio do Rio de Janeiro fora arbitrada essa subvenção em um conto de réis. Conseguiu a Companhia de Jesus que a mesma lhes fosse paga em açúcar à razão de 700 réis por arroba e, sendo o produto do Rio de Janeiro nessa época considerado de qualidade inferior ao de Pernambuco que alcançava maior preço no mercado, obtiveram os pa-dres que a referida subvenção ao colégio do Rio lhes fosse paga em Pernambuco.” (Coaracy, 1944: 20)
Mas engana-se quem pensa que o auxílio pecuniário provinha apenas do re-
colhimento de tributos diretos sobre a produção de açúcar, ele era obtido também da ren-
da que circulava no ensandecido jogo da mercancia. As “esmolas dos moradores”, tão
freqüentemente citadas pelos cronistas coevos, eram uma espécie de imposto voluntário
recolhido em favor destas instituições e que era revertido para a coletividade em serviços,
como era o caso da Casa de Misericórdia de Pernambuco, “a qual faz de despesa em cada
ano, na obrigação dela, treze e quatorze mil cruzados, pouco mais ou menos, e estes são
todos dados de esmolas pelos moradores da mesma capitania” (Brandão, 1618: 104). Ora,
certamente a arrecadação das esmolas – matéria regulamentada pelas Ordenações do
reino (Cf. Portugal, 1603: 313) – terá crescido na razão direta da produção da riqueza,
245
não apenas em virtude da caridade dos fiéis, mas pelo próprio receio de se incorrer em
avareza, um pecado capital que podia lhes complicar a vida diante do tribunal do Santo
Ofício, em plena cruzada inquisitorial. De fato, o mesmo Brandônio dirá que “as demais
capitanias todas têm Misericórdias, nas quais se gasta também muito dinheiro; mas nesta
de Pernambuco se faz com mais excesso” (Brandão, 1618: 104).
Assim, também a educação, que dependia do óbolo dos cidadãos e dos tribu-
tos sobre o açúcar, terá sido grandemente fomentada em razão da prosperidade econômi-
ca. Ora, os colégios dos jesuítas serão os grandes responsáveis pela “irradiação de cultura
no Brasil colonial” (Freyre, 1933: 412), não só porque abrigavam “os estudantes de hu-
manidades, que são filhos dos principais da terra” (Cardim, 1584-90: 162), mas porque
“terá sido a vida nos colégios dos padres um processo de co-educação das duas raças – a
conquistadora e a conquistada: um processo de reciprocidade cultural entre os filhos da
terra e meninos do reino”, já que neles vigorava “uma fraternal mistura de alunos”, a qual
encarnava “a igualdade em que parecem ter eles educado nos seus colégios dos séculos
XVI e XVII, índios e filhos de portugueses, europeus e mestiços, caboclos arrancados às
tabas e meninos órfãos vindos de Lisboa” (Freyre, 1933: 152-3). Obviamente, o número
de alunos crescia à proporção do aumento da população que vinha a reboque do desen-
volvimento da economia açucareira, a qual, como temos dito, financiava os estabeleci-
mentos educacionais, “que eram de fato públicos e, como tais, gratuitos, ainda que não
estatais” (Lacombe, 1993: 71). Quer dizer, democratizava-se e massificava-se a fonte da
civilidade do brasileiro seiscentista à medida em que progredia o negócio do açúcar.
Não queremos enfadar o leitor com mais evidências, mas o que parece certo é
que, em virtude do boom açucareiro, o Brasil experimentou um grande progresso em sua
vida civil como um todo. No entanto, rogamos um pouco de paciência para nos determos
– brevemente, asseguramos – em um último e fundamental aspecto da nossa civilidade –
um traço do “espírito do povo” brasileiro, matriz e moeda do processo de construção da
nacionalidade e um dos maiores atributos da brasilidade – que muito se apurou no Brasil
246
açucareiro: a “miscibilidade” e a “mobilidade” do povo, fonte do “especialíssimo caráter
que tomou a colonização do Brasil, a formação sui generis da sociedade brasileira, i-
gualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos” (Freyre,
1933: 8). Falamos da nossa cordialidade essencial, exercitada e aprofundada no contexto
verdadeiramente cosmopolita de um ambiente agitado pela mercancia, como perceberá o
sempre arguto Brandônio: “o Brasil é praça do mundo (...) e, juntamente, academia pú-
blica, aonde se aprende com muita facilidade toda a polícia, bom modo de falar, honrados
termos de cortesia, saber bem negociar e outros atributos desta qualidade” (Brandão,
1618: 106). Interpelado pelo insolente Alviano que retruca, dizendo, “antes isso devia de
ser pelo contrário, pois sabemos que o Brasil se povoou primeiramente por degredados e
gente de mau viver, e, pelo conseguinte, pouco política” (Brandão, 1618: 106), Brandô-
nio aduzirá um argumento irretorquível, guindado da própria trajetória histórica do povo
brasileiro, que mostrava, mais do que nunca, a sua extrema capacidade de “equilibrar
antagonismos” através do exercício de duas atitudes sociais bem brasileiras, a adaptação
e a conjunção. Vale a pena lermos o discurso completo:
“Nisso não há dúvida. Mas deveis de saber que esses povoadores, que primeiramente vieram a povoar o Brasil, a poucos lanços, pela largueza da terra, deram em ser ricos, e com a riqueza foram logo largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pobrezas que padeciam no Reino os fazia usar. E os filhos dos tais, já entronizados com a mesma riqueza e governo da terra, despiram a pele velha, como cobra, usando em tudo honradíssimos termos, com se ajuntar a isto o haverem vindo depois a este Estado muitos homens nobilíssimos e fidalgos, os quais casaram nele e se liaram em parentesco com os da terra, em forma que se há feito entre todos uma mistura de sangue assaz nobre. E então, como neste Brasil concorrem de todas as partes diversas condições de gente a comerciar, e este comércio o tratam com os naturais da terra, que geralmente são dotados de muita habilidade, ou por natureza do clima ou do bom céu que gozam, tomam dos estrangeiros tudo o que acham bom, de que fazem excelente conserva para a seu tempo usarem dela.” (Brandão, 1618: 107, ênfase nossa)
247
“Neste Brasil se há criado um novo Guiné”
Em que pesem as tantas repercussões positivas que o extraordinário cresci-
mento da economia açucareira terá imprimido na vida civil do Brasil colonial, esse de-
senvolvimento estava fundado sobre o mais iníquo sistema de exploração do trabalho, a
própria negação da idéia de civilidade – a escravidão. Este é mais um dos paradoxos da
nossa formação nacional e vem a se configurar, pensamos, na raiz de um dos maiores,
senão do maior “problema brasileiro”. Aqui, o desenvolvimento econômico estará sem-
pre submetido a um estatuto de desigualdade aguda entre as elites e o povo, que se rebate
num panorama social onde impera a mais odiosa exclusão dos menos favorecidos pela
fortuna, a desmesurada base da nossa pirâmide demográfica. Aliás, como propõe Stuart
B. Schwartz, com certo exagero contudo, “o escravismo criou os fatos fundamentais da
vida brasileira” (Schwartz, 1995: 209).
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, o elemento que está na origem dessa
configuração histórico-sociológica é um traço do próprio caráter coletivo do povo lusita-
no, a “inelutável repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao traba-
lho” (Holanda, 1936: 9). Nisto parece concordar o historiador americano, pois, de acordo
com a sua análise, na sociedade portuguesa, dividida em três “estados” ou “ordens”, o
status a ser almejado era o padrão de vida aristocrático próprio da nobreza, o qual se de-
finia “por aquilo que a pessoa não fazia” (Schwartz, 1995: 210). De fato, tal ética parece
ter prevalecido na colônia, pois os seus efeitos na conduta coletiva irão muito afligir, por
exemplo, o autor dos Diálogos das grandezas. Quando Alviano diz que apesar da poten-
cial abundância de víveres da terra, ele observava “haver tanta carestia de todas essas
cousas” no Brasil, Brandônio reponde: “É culpa, negligência e pouca indústria de seus
moradores” (Brandão, 1618: 12). O velho colono voltará ao tema em várias outras ocasi-
ões dos seus diálogos com o jovem reinol e resumirá a sua avaliação sobre esse tipo de
conduta, dizendo fazer ela “envergonhar tantas vezes aos moradores deste Estado”
(Brandão, 1618: 160). A solução para esse dilema estava, precisamente, no trabalho ser-
248
vil, pois, como observa Gandavo, “as pessoas que no Brasil querem viver, tanto que se
fazem moradores da terra, por pobres que sejam, se cada um alcançar dois pares ou meia
dúzia de escravos logo têm remédio para sua sustentação” (Gandavo, 1570-6: 44).
Sem embargo, a relação impositiva entre a colonização da América tropical e
a escravidão é tributária de outros fatores, tão ou mais relevantes, do que o padrão com-
portamental e ético do português recém egresso do Medievo. O mais importante deles
deve ser procurado na própria dinâmica do sistema mundial inaugurado pelo Mercanti-
lismo. Neste sentido, Eugene Genovese nos chama a atenção para o fato de que, por uma
série de razões que escusamos citar, da segunda metade do século XVI até o século XIX,
o “mercado mundial” esteve sob os influxos de uma tendência paradoxal e dominante, “o
aparecimento de um tipo de produção essencialmente arcaico no preciso momento da
ascendência do seu tipo mais avançado”, o que este autor conceitua como “segunda ser-
vidão” (Genovese, 1979: 38). Ou seja, para Genovese a escravidão foi o elemento dina-
mizador do capitalismo comercial, pois ancorou tanto a mineração quanto a monocultura
de produtos tropicais, e que, por isso, se constituía num traço estrutural do sistema mun-
dial na conjuntura que estamos analisando:
“O aparecimento dos sistemas de escravos nas Américas, em oposição ao uso do trabalho escravo em situação periférica dentro de um sistema essencialmente de mão de obra assalariada, deve ser compreendido co-mo o aparecimento de um tipo de produção essencialmente arcaico. (...) A expansão da economia na Europa Ocidental incentivou a regressão social e a retomada de tipos de produção mais antigos na Europa Orien-tal e em certas partes do Novo Mundo. (...) O retrocesso social na Amé-rica – a restauração da escravatura –, quaisquer que tenham sido as suas deficiências econômicas a longo prazo em prover mercados, deu em troca um enorme proveito econômico a estes países, principalmente em forma de rápida expansão da produção de açúcar em Barbados, e mes-mo no Brasil, que sentiu a presença holandesa durante o segundo quar-to do século XVII, e o crescente poder indireto dos britânicos sobre a metrópole portuguesa.” (Genovese, 1979: 39).
Com efeito, como já demonstramos neste trabalho, desde a implantação do
sistema de capitanias hereditárias no Brasil, o trabalho servil se tornou a base do processo
249
produtivo colonial, uma vez que a tão propalada “falta de braços” chocava-se frontalmen-
te com as demandas crescentes da agro-manufatura da cana-de-açúcar que viera a redimir
a economia da colônia carente em metais preciosos. Naquele momento, o “braço indíge-
na” serviu aos intentos dos senhores de engenho, mas a legítima recalcitrância dos ínco-
las em relação ao trabalho forçado na monocultura da cana e a pertinaz ação da Igreja na
defesa da liberdade dos índios vieram a praticamente inviabilizar a consolidação da eco-
nomia açucareira. As inúmeras “guerras contra o gentio”, as dissensões entre os jesuítas e
os colonos sobre a servidão índia e a própria legislação portuguesa foram fatores deter-
minantes na derrocada da experiência donatarial e no relativo imobilismo da economia
colonial até a última quadra de Quinhentos.
Entretanto, a partir do momento em que a “repentina valorização do açúcar
nos mercados aristocráticos e burgueses da Europa” (Freyre, 1933: 198) veio a agitar a
modorrenta economia da colônia, a questão da mão-de-obra ressurgiu abrasadora. Ora, a
escravidão indígena não se colocava como uma alternativa viável não apenas porque a
legislação e a ação missionária a reprimiam ou porque os índios eram “incapazes” para o
trabalho na lavoura. Ela não era factível, sobretudo, em razão da forte depopulação indí-
gena observada na zona costeira, resultante do contato entre o europeu e o habitante an-
cestral, “um contato que redundou em vasta, complicada e desumana letalidade”
(Ab’Sáber, 2000: 42). Realmente, como frisa Rocha Pitta, naquela época “os gentios in-
domáveis estavam pelo interior dos sertões muito distantes [enquanto] os vizinhos eram
vassalos” (Rocha Pitta, 1730: 156; cf. Gandavo, 1570-6: 85). Assim, “a abundância [de
braços] na costa da Guiné, tão próxima, e senhoreada por Portugal” (Varnhagen, 1854-
7a: 222), aqueles negros por cuja liberdade a Igreja jamais pugnaria, seriam a matéria
humana a ser consumida na produção da especiaria que viria a encher a bolsa da classe
senhorial luso-brasileira e que adoçaria a boca da aristocracia e da burguesia européias.
Por outro lado, fariam eles a fortuna dos traficantes europeus e dos “reis e mercadores
africanos (...) [que] arcam com grande responsabilidade na organização dessa pilhagem”
250
(Mattoso, 1988: 29-30).
A introdução de escravos africanos no Brasil foi, muito provavelmente, coe-
tânea à implantação das capitanias hereditárias, uma vez que no contexto quinhentista a
escravidão se encontrava “naturalizada” pelo costume68 e fundamentada numa jurispru-
dência oriunda do Jus Gentium e do Jus Civile romano (Cf. Meira, 1987: 113), “fonte de
todo direito privado moderno” (Meira, 1987: 46), para a qual a principal causa geradora
da escravidão era a “captura em guerra” (Meira, 1987: 113). Ora, como nos ensina Var-
nhagen, “a introdução da escravatura dos africanos foi em Portugal uma espécie de con-
tinuação à dos mouriscos vencidos nas guerras de religião, em represália ao que eles fazi-
am” (Varnhagen, 1854-7a: 222) e, realmente, desde a tomada de Ceuta, o tráfico de es-
cravos tomaria um grande impulso no reino (Cf. Heers, 1983: 49), uma vez que “os por-
tugueses são suficientemente apoiados por seu rei para manterem uma espécie de mono-
pólio [do tráfico]” (Heers, 1983: 80), ao ponto de Lisboa ter se convertido em “um gran-
de mercado de escravos africanos” (Varnhagen, 1854-7a: 222). Assim, a servidão domés-
tica estava bastante disseminada no Portugal da expansão ultramarina e um observador
coevo dirá que “há em Lisboa mais escravos machos ou fêmeas que portugueses livres de
condição” (Apud Heers, 1983: 81).
Evidentemente, os primeiros colonos lusos terão trazido os seus escravos pa-
ra a América, mas logo terão percebido que as caras peças de África podiam ser substitu-
ídas, a baixo custo, pelo abundante gentio americano, seja através do aliciamento pelo
escambo, seja através do apresamento nas razias. Todavia, à medida em que a agro-
manufatura da cana-de-açúcar progredia e que a resistência índia se consolidava, mais se
sentia a necessidade do “braço africano”. De fato, em carta de 18 de agosto de 1545, o
donatário Pero de Góis relatava ao seu sócio no reino a construção de “um grande enge-
nho” na capitania de São Tomé, dizendo esperar mandar-lhe “duas mil arrobas de açú-
68 “O princípio da escravidão foi antigamente admitido por todos os povos, ainda o reconhecem algumas nações da Europa, e até o tolera o Evangelho.” (Varnhagen, 1854-7a: 222).
251
car” em um ano, mas reclamava da falta de trabalhadores e lhe pedia “sessenta escravos
de Guiné” (Apud Varnhagen, 1854-7a: 199). Não se sabe se o pleito do donatário foi a-
tendido, mas o fato é que em 29 de março de 1559, a regente D. Catarina prolatou um
alvará determinando ao capitão da ilha de São Tomé, entreposto do tráfico, que “em pre-
sença de certidão do governo do Brasil, cada senhor de engenho deste Estado poderia
mandar vir até cento e vinte escravos do Congo, pagando só o terço de direitos em vez da
metade, como era costume” (Varnhagen, 1854-7a: 304).
Desde então, torna-se sistemática a entrada de escravos negros no Brasil, pois
“a ele [o alvará] devem ser atribuídos os 2 ou 3 mil africanos que Magalhães Gandavo
encontra aqui onze anos depois” (Goulart, 1993: 186). Já nas três últimas décadas de
Quinhentos havia cerca de 30.000 africanos na colônia, provenientes da costa da Guiné
(Cf. Mattoso, 1982: 53), e, no período áureo da economia açucareira, o volume do tráfico
aumenta exponencialmente, dando entrada no Brasil de 500 a 550 mil escravos até 1640,
alocados, em sua imensa maioria, na Bahia e em Pernambuco (Cf. Mattoso, 1982: 54).
Daí, o dizer de Brandônio:
“(...) neste Brasil se há criado um novo Guiné, com a grande multidão de escravos vindos dela, que nele se acham; em tanto que, em algumas Capitanias há mais deles que dos naturais da terra, e todos os homens que nele vivem têm metida quase toda sua fazenda em semelhante mer-cadoria.” (Brandão, 1618: 52-3)
Portanto, nunca será repetitivo reafirmar que a riqueza que alavancou o de-
senvolvimento da sociedade colonial, o qual deu ao Brasil as suas primeiras feições de
nação, foi construída, fundamentalmente, pelo braço do cativo índio e africano (Cf. Fur-
tado, 1970: 42), pois, como bem sentenciará Antonil, o grande etnógrafo da sociedade
escravista brasileira, “os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho, porque
sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho
corrente” (Antonil, 1711: 159). Ademais, terá sido a “superioridade técnica do negro so-
bre o indígena e até sobre o branco” (Freyre, 1933: 307) o fator que lhes distinguiu na
252
formação de uma classe de artesãos e oficiais livres, que “quebrava” a oposição senhor
vs. escravo no Brasil seiscentista:
“Os trabalhadores de campo eram quase sempre escravos, em geral ne-gros, e predominantemente africanos; os senhores de engenho eram in-variavelmente livres e brancos. Porém, nas funções intermediárias – administrativas, técnicas e artesanais – havia indivíduos livres, libertos e cativos, brancos, pardos ou negros. Bem no coração da economia a-çucareira existia um grupo de trabalhadores que, por sua própria exis-tência, corroboravam o sistema escravista sobre o qual a indústria açu-careira se alicerçava, constituindo-se em exemplos de mobilidade e progresso aos cativos.” (Schwartz, 1995: 261).
Por outro lado, a presença maciça da “coisa venal” (Varnhagen, 1854-7a:
222) importada de África influirá sobremaneira no panorama humano da América portu-
guesa, já que o “processo de repersonalização” (Mattoso, 1988: 102) do escravo trará
repercussões profundas na configuração da cultura brasileira, como demonstrou Gilberto
Freyre em suas obras. Os limites deste trabalho, já excessivamente avançado em páginas,
não permitem que nos detenhamos no tratamento daquilo que Kátia de Queirós Mattoso,
em uma das abordagens mais vivas, instigantes e esclarecedoras sobre a escravidão no
Brasil, chama de “as múltiplas formas da condição escrava no Brasil” (Mattoso, 1988:
99) e seria rebarbativo reproduzirmos o “processo de africanização” (Freyre, 1933: 290)
da cultura brasileira, definitivamente delineado pelo mestre de Apipucos. Apenas dire-
mos, valendo-nos destes dois autores, que “as tensões continuadas” (Mattoso, 1988: 102)
que sofriam os escravos no Brasil estiveram, de ordinário, articuladas ao “unionismo”
(João Ribeiro apud Freyre, 1933: 28 e 72) que sempre caracterizou a dinâmica social no
país, marcada desde sempre pela pessoalização.
Assim, por um lado, os africanos desempenharam uma verdadeira “função
civilizadora” (Freyre, 1933: 307) entre nós – mormente na arte, na música e nos ofícios
técnicos – e figuram como a terceira matriz étnica do povo brasileiro, cujo principal tri-
buto para a configuração do nosso jeito de ser terá sido o que a verve brasileiríssima de
Gilberto Freyre definiu como “amolecimento” (Freyre, 1933: 331), raiz do nosso indefec-
253
tível “jogo de cintura”, que muito contribuirá para o aperfeiçoamento da guerra brasíli-
ca, a encarnação seminal da nacionalidade nos momentos críticos de sua afirmação pri-
meira. Por outro lado, os negros se perpetuaram na história brasileira como alvos da mais
odiosa exclusão social, marcados que sempre estiveram pela eiva da servidão, sofrendo
os efeitos da nossa ambígua ideologia racial. Entretanto, a escravidão rediviva pelo flo-
rescimento do capitalismo veio, no Brasil, a aguçar um traço forte do ethos lusitano pós-
medieval, enredado numa “teia de relações senhoriais” (Genovese, 1979: 82). Neste sen-
tido, se havemos de concordar com Gilberto Freyre que o patriarcalismo oriundo dessa
ordem veio a mitigar a cruel desumanidade do escravismo no Brasil69, não podemos ne-
gligenciar o seu efeito lesivo na reprodução de uma base ética essencialmente discricio-
nária na formação da cidadania brasileira. Quer dizer, concordando com Stuart Schwartz,
pensamos que a perene e aguda desigualdade social brasileira que se rebate num panora-
ma de forte exclusão das camadas menos favorecidas da população não é, tão somente,
uma “herança da escravidão”, mas o resultado de uma ordem ética que se baseia numa
clivagem essencial entre as elites e o povo. Ora, segundo o historiador americano, a coe-
xistência dos “escravos de ganho” com “indivíduos livres que eram sujeitos a coerção,
sofriam discriminação, recebiam pouquíssima remuneração por seu trabalho e eram to-
lhidos pelo costume e pela prática” (Schwartz, 1995: 214) vem a evidenciar que não foi o
“sistema de trabalho” que deu origem ao nosso principal problema nacional, mas que ele
se derivou de um comportamento coletivo profundamente marcado pelo modelo hierár-
quico de relações sociais (Cf. DaMatta, 1978; 1987).
Seja como for, as conseqüências desse tipo de comportamento se tornam
69 Nisto concorda Kátia Queirós Matoso, como podemos observar em duas passagens: “Em geral, o senhor prefere a persuasão à imposição. No nordeste, os senhores de engenho substituem a violência e as ameaças por uma verdadeira manipulação, de caráter patriarcal e paternalista. Buscam fazer do escravo um servidor, membro da grande família” (Matoso, 1988: 103). “As relações sociais no Brasil nos séculos XVII, XVIII e XIX são, pois, bem mais complexas, bem mais do que a imagem simplificadora refletida pela clássica oposição entre os homens livres dominantes e os homens pretos dominados; na classe ‘dominada’ os níveis de hierarquia social são tão implacavelmente sentidos quanto na classe ‘dominante’. Por vezes o relacio-namento entre o escravo e seu senhor é mais ameno do que entre dois escravos ou entre um escravo e um
254
mais agudas quando ele se encarna num individualismo fortemente oportunista e predató-
rio, na medida em que se vincula àquilo que Caio Prado Jr. definiu como o “sentido da
colonização tropical” – “a empresa do colono branco, que reúne à natureza, pródiga em
recursos aproveitáveis para a produção de gêneros de grande valor comercial, o trabalho
recrutado entre raças inferiores que domina: indígenas ou negros africanos importados”
(Prado Jr., 1942: 31). Quer dizer, do capitalismo fundado num padrão ético hierárquico e
numa base colonial e escravocrata resultou a formação de elites econômicas e dirigentes
verdadeiramente parasitárias no Brasil, descomprometidas com o povo que, verdadeira-
mente, constrói a nação. Veremos, a seguir, como a configuração da desigualdade entre
os cidadãos – articulada ao “englobamento” do público pelo privado na conduta das pes-
soas e no funcionamento das instituições (Cf. DaMatta, 1987) – se rebateu fortemente na
formação da cidadania no Brasil, constituindo-se no nosso mais fundamental problema
nacional, modelarmente formulado por Raymundo Faoro: “Estado e nação, governo e
povo, dissociados e em velado antagonismo, marcham em trilhas próprias, num equívoco
renovado todos os séculos, em contínua e ardente procura recíproca” (Faoro, 1957: 94).
liberto.” (Mattoso, 1988: 123).
255
Capítulo 11
A FORJA DA CIDADANIA
A desigualdade civil: eiva da “cidadania à brasileira”
Não é preciso ser um cientista social para saber que a desigualdade e a sua
conseqüência mais funesta, a exclusão social, são os maiores problemas brasileiros. To-
dos os indicadores econômicos e sociais contemporâneos demonstram que a distribuição
de renda no Brasil é uma das mais iníquas do mundo e todos sabemos, pela prática e pelo
costume, que o acesso das pessoas à cidadania é fortemente submetido à própria posição
delas num sistema sócio-econômico essencialmente hierárquico. Vimos que esse proble-
ma tem uma profundidade histórica notável, já que foi inexoravelmente imposto pela
economia colonial, mas não vamos discutir esse processo, já brevemente abordado no
Capítulo anterior, senão as bases institucionais que contribuíram para a sua reprodução
na configuração da cidadania no Brasil entre os séculos XVI e XVII.
Primeiramente, consideraremos os efeitos do estatuto da desigualdade civil
no ordenamento da Justiça no Brasil com o objetivo de demonstrarmos que ele se rebateu
fortemente na dogmática do Direito colonial brasileiro70, cujas práticas penais revelariam
a sua face mais draconiana. Esse estatuto já estava presente no código de leis nacional
mais antigo do Mundo, idealizado por João das Regras, “braço direito de D. João I” (La-
ra, 1999: 30) e, portanto, planejado sob os influxos da revolução de 1385, certamente o
primeiro ensaio do Absolutismo em Portugal. Concluída somente depois da morte do
mestre de Avis e do seu grande conselheiro, a compilação das leis civis, fiscais, adminis-
trativas, militares e penais do reino de Portugal ficaria conhecida sob o título de Ordena-
ções afonsinas, pois foram publicadas no reinado de D. Afonso V, vigorando a partir de
70 “A Colônia, como extensão da ordem jurídico-institucional metropolitana, submetia-se à mesma lógica
256
1446 (Cf. Salgado, 1985: 15). Ora, as Ordenações foram elaboradas sob uma ordem jurí-
dico-institucional em que “a soberania [era] calcada na vontade suprema do rei, que anu-
la os direitos individuais em troca da garantia de segurança e de ordem a seus súditos”
(Salgado, 1985: 15) e, assim, seus preceitos ficariam fortemente marcados pelos “poderes
senhoriais” que sustentavam o sistema, emanando do monarca todo-poderoso, sustentan-
do os privilégios da nobreza e do clero e submetendo, inapelavelmente, o terceiro estado.
Ou seja, as leis, mormente na legislação penal, vinham carregadas de um forte tônus dis-
cricionário, marcadas que estavam pela graduação de direitos que diferenciava os cida-
dãos, pois “num jogo de distinções hierárquicas, a economia das penas não deriva dire-
tamente do crime cometido” (Lara, 1999: 40).
As Ordenações afonsinas foram depois reformuladas, mantendo-se a sua es-
trutura doutrinária básica, em pleno apogeu da expansão ultramarina portuguesa, por or-
dem de D. Manuel e as então chamadas Ordenações manuelinas foram promulgadas em
1521 (Cf. Lara, 1999: 49), sendo reeditadas por três vezes, com pequenas modificações,
em 1526 e 1533, no reinado de D. João III, e em 1565, sob D. Sebastião (Cf. Lara, 1999:
49). Quando Portugal encontrava-se sob a égide da “União Peninsular”, Filipe II de Es-
panha ordenou, por intermédio de uma alvará de 5 de junho de 1595 (Cf. Paula, 2000:
159), a recopilação da legislação anterior (as Ordenações) reunindo-se-lhes as Leis ex-
travagantes, “promulgadas, em abundância, no transcurso do século XVI, para dar supor-
te jurídico ao contexto iniciado com a descoberta de novos mercados coloniais” (Salgado,
1985: 15). Assim, surgiram as Ordenações filipinas, publicadas em 1603 (Cf. Lara,
1999: 50), “o primeiro monumento legislativo a que, guardadas as proporções, se pode
dar o nome de Código” (Almeida, 1993: 45), cujo texto, embora tenha sido elaborado sob
o domínio de Castela, “segue a tradição legal portuguesa, tanto do ponto de vista formal
como do normativo, com raras influências castelhanas” (Lara, 1999: 34). As Ordenações
dos padrões administrativos peculiares ao Estado absolutista.” (Salgado, 1985: 16).
257
filipinas perpetuar-se-ão como o arcabouço jurídico português – e, portanto, brasileiro71 –
e a sua legislação penal, consolidada no Livro V (Cf. Portugal, 1603), nos revelará a face
mais perversa de um sistema fundado na hierarquia entre os cidadãos, que embora revo-
gado pela evolução dos direitos civis, permanece até hoje vigente nos desvãos do com-
plexo judicial brasileiro.
Mas se a letra da lei cristaliza padrões éticos atuantes na tradição ideológica
hegemônica de um sistema social e pode ser tomada pelo analista como um “signo” des-
ses padrões, será a prática efetivada nas arenas da Justiça que melhor veiculará a sua
efetividade na vida das pessoas. Aliás, foi precisamente partindo da distinção entre “cria-
ção” e “aplicação” das leis (Weber, 1921b: 508), que Weber veio a revolucionar a socio-
logia do Direito e hoje os praticantes desta disciplina estão muito mais voltados para a
dinâmica do “campo jurídico [como] o lugar de concorrência do monopólio do direito de
dizer o direito” (Bourdieu, 1989: 212) do que propriamente com aquilo que o sociólogo
alemão definiu como “animismo jurídico”, ou seja, a reificação do documento legal co-
mo “um ‘portador’ material de direitos” (Weber, 1921b: 550). Neste sentido, a instalação
da Relação do Estado do Brasil, em 1609, veio a evidenciar os principais dilemas e para-
doxos do acesso à Justiça no Brasil colonial, colocando à baila, precisamente, as influên-
cias das diferenças entre os cidadãos – postas pela hierarquização do sistema social e de
seus abismos econômicos – e da própria interpolação entre o público e o privado na con-
duta das pessoas e no funcionamento das instituições.
Este capítulo será dedicado à verificação, sem maiores aprofundamentos con-
tudo, das conseqüências de tais influências – o estatuto da desigualdade civil e a prática
nas arenas da Justiça – na configuração da civilidade no Brasil seiscentista, procurando
demonstrar porque elas permanecem como um traço perene da cidadania à brasileira.
71 “(...) as Ordenações Filipinas mantiveram-se no Brasil mesmo após a independência: até 1830 no direito penal, até 1832 no direito do processo penal, até 1850 no direito comercial e até 1916 no direito civil. Re-gistre-se que em Portugal elas foram abandonadas mais cedo, em 1867, quando da aprovação do Código Civil Português.” (Paula, 2000: 74).
258
A letra da lei
Como já dissemos, alguns intérpretes da realidade social brasileira demons-
traram que nossa sociedade tem um caráter extremamente pessoalizante, hierárquico (Cf.
DaMatta, 1978 e 1987) e patrimonialista (Cf. Faoro, 1957), o qual se reflete na sua pró-
pria estrutura jurídica, profundamente marcada pela diferença entre os cidadãos. Quer
dizer, os indivíduos, formalmente iguais entre si, não são os agentes jurídicos operantes:
na prática são as pessoas, carregadas de atributos adquiridos pela sua posição econômica
e pelo seu status, que travam relações com a lei e com a Justiça. É o que denominamos
de estatuto da desigualdade civil.
Como bem aponta Stuart Schwartz, a origem desse estatuto se liga à distin-
ção entre “peões” e “pessoas de mor qualidade” (Schwartz, 1995: 210), base da ideologia
social portuguesa pós-medieval que, obviamente, seria transposta para a colônia72. Com
efeito, a Carta de grandes poderes ao capitão-mor e a quem ficasse em seu lugar pas-
sada por D. João III a Martim Afonso de Sousa em 20 de novembro de 1530, por ocasião
da primeira grande expedição colonizadora de base oficial ao Brasil (Cf. Ribeiro & Mo-
reira Neto, 1993: 136), já determinava, sob a chancela e delegação do poder absoluto
d’el-rei, que ao capitão-mor era dado “todo o poder e alçada assim no crime como no
cível” para julgar “todas as pessoas” da armada e da terra do Brasil, dando “aquelas sen-
tenças que lhe parecer Justiça conforme a direito e minhas ordenações até morte natural
inclusive, sem de suas sentenças dar apelação nem agravo” (in Ribeiro & Moreira Neto,
1993: 137). Entretanto, “se alguns fidalgos cometerem alguns crimes”, deveria o capitão
prendê-los e enviá-los “com os autos das ditas culpas para cá se verem e determinarem
72 Observe-se, entretanto, que a estrutura social portuguesa tinha algumas gradações, as quais figuram no código filipino: abaixo dos peões – “homens do povo” ou “plebeus” (Almeida, 1870: 58) – vinham os escravos e entre a gente de “mor qualidade”, havia os nobres – “fidalgos de solar ou de linhagem, com terras e herdades, e o da cota de armas, que tinha brasão concedido pelo rei” (Almeida, 1870: 58), ou, como ensina Varnhagen, “a aristocracia de serviços e a de nascimento ou de sangue (que não é outra coisa mais que a de serviços, com algumas gerações acima)” (Varnhagen, 1854-7a: 156). Imediatamente abaixo da nobreza, gozando de alguns de seus privilégios, vinham “o cavaleiro [que] era o que servia na guerra a cavalo, julgando-se portanto que tivesse posses suficientes para manter o animal [e] o escudeiro [que] era o
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como for justiça, porque nos ditos fidalgos no que tocar nos crimes hei por bem que ele
não tenha a dita alçada” (in Ribeiro & Moreira Neto, 1993: 137, ênfases nossos). Com a
instituição do sistema de capitanias hereditárias, embora o regime processual tenha se
uniformizado, não admitindo recursos a nenhum respondente, o instituto de penas dife-
renciadas segundo a qualidade do réu, aliás mais especificamente qualificada, seria man-
tida, como fica dito na Carta de doação dada a Duarte Coelho, em 5 de setembro de
1534, passada por D. João III:
“(...) nos casos crimes hei por bem que o dito capitão e governador e seu ouvidor tenham jurisdição e alçada, de morte natural inclusive, em escravos e gentios e assim mesmo em peões cristãos homens livres em todos os casos assim para absolver como para condenar sem haver ape-lação nem agravo e nas pessoas de mor qualidade terem alçada de dez anos de degredo e até cem cruzados de pena sem apelação nem agra-vo.” (in Ribeiro & Moreira Neto, 1993: 139)
Apesar da centralização do governo do Brasil, em 1549, ter restringido a al-
çada dos capitães-mores na administração da justiça, o Regimento passado ao primeiro
ouvidor-geral, desembargador Pero de Góis, responsável pelos negócios da Justiça no
governo de Tomé de Sousa, mantive aquela forma discricionária, segundo Varnhagen:
“...[o ouvidor geral] teve alçada até morte natural, exclusive, nos escravos e peões cris-
tãos livres; aos quais, quando competisse pena de morte, poderia esta aplicar-se sem ape-
lação (...). Nas pessoas de mor qualidade teria o ouvidor alçada até cinco anos de degre-
do.” (Varnhagen, 1854-1857a: 234; cf. Salgado, 1985: 194).
Portanto, a configuração da legislação penal no primeiro século da vida brasi-
leira aponta para um sistema fundado na desigualdade ou, o que é pior, para um sistema
legitimador da desigualdade, o qual faria com que mão de ferro do legislador absolutista,
com “todo o requinte do arsenal punitivo do Antigo Regime” (Lara, 1999: 40), caísse
impiedosamente sobre a plebe, refugando, contudo, diante dos “privilégios” da nobreza.
Com a publicação das Ordenações filipinas, a legislação penal é destrinçada em 143
pajem ou criado que levava o escudo do cavaleiro” (Almeida, 1870: 58).
260
artigos (Cf. Portugal, 1603) que qualificam os crimes e as penas, os quais exalam o espí-
rito punitivo do tempo, com os seus rigores e as suas hierarquias.
De fato, “chamado por muitos de ‘monstruoso ou ‘bárbaro’” (Lara, 1999:
40), o Livro V do código filipino é um tanto aterrador para o leitor moderno, principal-
mente em virtude de sua doutrina punitiva. Crimes que hoje seriam considerados banais
eram punidos com uma severidade draconiana, como por exemplo, “se alguma pessoa
comprar alguma colmeia para somente se aproveitar da cera e matar as abelhas, se for
peão será açoitado, e se for pessoa em que não caibam açoites, será degredado dois anos
para África” (Portugal, 1603: 241-2). Quando se tratava de crimes contra a moral, o rigor
ainda mais se aguçava, como fica dito no artigo 13:
“Toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimado e feito por fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória e todos os seus bens sejam confiscados (...); pelo mesmo caso seus filhos e ne-tos ficarão inábeis e infames, assim como os daqueles que cometem crimes de lesa-majestade.” (Portugal, 1603: 91).
Muitos outros exemplos poderíamos aduzir para retratarmos o tom dantesco
das penas previstas nas Ordenações filipinas, mas havemos de relevar o fato de que a
profusão de horrores que elas preconizavam fazia parte do contexto histórico em que o
código fora elaborado. Ora, como lembra Foucault, “a morte, a questão com reserva de
provas, as galeras, o açoite, a confissão pública e o banimento” eram “as formas gerais da
prática penal” que vigoraram na França até 1789 (Foucault, 1977: 33), envolvendo uma
lógica que, embora fosse altamente seviciadora, tinha a marca da pedagogia da época
(Cf. Foucault, 1977: 35). Não queremos com isto justificar a perversidade das penas pre-
vistas nas Ordenações filipinas, mas deslocar o nosso olhar para uma questão mais im-
portante, aquilo que vimos definindo como o estatuto da desigualdade civil.
Também em relação a este aspecto, devemos começar propondo uma certa
relativização. É bem verdade que, em geral, aos “peões” são prescritos duros castigos
corporais e exprobação pública, enquanto às “pessoas de mor qualidade”, o degredo e
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penas pecuniárias, mas há muitos crimes em que a punição não varia conforme a condi-
ção do réu, mormente aqueles contra a Igreja, o Estado e a moral. Assim, por exemplo,
acontece que os culpados por feitiçaria, por crimes de lesa-majestade, por falsificação de
moeda ou do selo real, por falso testemunho e por sodomia, bestialidade, incesto, estupro
ou bigamia eram todos condenados à morte, alguns na fogueira e outros por “morte natu-
ral” e todos tinham os seus bens confiscados (Cf. Portugal, 1603: 63, 71, 87-8, 91, 99,
103, 106, 182 e 185). Entretanto, é indispensável frisar que mesmo na classe de delitos
cometidos contra a Igreja e a moral – mas não os contra o Estado – aqueles considerados
mais leves eram julgados de acordo com a condição do réu e os processos sumários que
caracterizavam a grande maioria dos julgamentos, especialmente de plebeus e escravos,
não se aplicava. De mais a mais, as penas eram graduadas de acordo com a “qualidade”
do réu – é o caso dos crimes de blasfêmia, de adultério e de mancebia (Cf. Portugal,
1603: 58, 117 e 125-9). Veja-se o exemplo:
“Mandamos que o homem que dormir com mulher casada, e que em fama de casada estiver, morra por isso. Porém, se o adúltero for de maior condição que o marido dela, assim como se o adúltero fosse fi-dalgo e o marido cavaleiro ou escudeiro e o marido peão, não farão as Justiças nele execução até no-lo fazerem saber e verem sobre isso nosso mandado.” (Portugal, 1603: 117)
Por outro lado, os crimes contra o patrimônio e as defraldações eram geral-
mente punidos tomando-se em conta não a condição do réu, mas o valor envolvido no
delito – são, por exemplo, os casos de roubo, furto, falsificação de mercadorias e fraudes
nos pesos e medidas (Cf. Portugal, 1603: 191-2, 193 e 198-9). Ora, raramente nobres
incorriam nesses crimes, mais comuns entre pequenos mercadores e a massa despossuída,
fato que conferia uma certa ambigüidade à letra da lei, como podemos verificar na cláu-
sula sobre o furto:
“Mandamos que qualquer pessoa que furtar um marco de prata ou outra coisa alheia que valer tanto como o dito marco (...) morra por isso. (...) E qualquer pessoa que furtar valia de quatrocentos réis e daí para cima,
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não sendo o furto de qualidade porque deva morrer, seja publicamente açoitado com baraço e pregão; e sendo de valia de quatrocentos réis pa-ra baixo, será açoitado publicamente com baraço e pregão ou lhe será dada outra menor pena corporal que aos julgadores de bem parecer, ha-vendo respeito à quantidade e qualidade do furto e do ladrão. Porém, se for escravo, quer seja cristão quer infiel, e furtar valia de quatrocen-tos réis para baixo, será açoitado publicamente com baraço e pregão.” (Portugal, 1603: 194, ênfase nosso)
Mas se o julgamento dos delitos contra os pilares da estrutura de poder lusa –
a autoridade do soberano que era o Estado, os preceitos da religião que definiam a moral
e a ética da mercancia que regulava as relações econômicas – eram imunes ou, quando
muito, ambíguos em relação às prerrogativas da nobreza, os chamados “crimes contra a
pessoa” eram punidos seguindo-se a regra das “distinções que ordenavam as desigualda-
des e os privilégios naquela sociedade” (Lara, 1999: 46). O artigo 35, “Dos que matam e
ferem”, e o 95, “Dos que fazem cárcere privado”, são modelares neste aspecto:
“Qualquer pessoa que matar outra ou mandar matar, morra por isso morte natural. (...) Porém, se algum fidalgo de grande solar matar al-guém, não seja julgado à morte sem no-lo fazerem saber, para sabermos o estado, linhagem e condição da pessoa, assim do matador como do morto, qualidade e circunstâncias da morte, e mandarmos o que for do serviço de Deus e bem da república.” (Portugal, 1603: 143-4) “Mandamos que nenhuma pessoa, de qualquer estado e condição que seja, faça por si cárcere privado, retendo nele alguma pessoa, de qual-quer qualidade que seja, por coisa alguma. (...) E o que o fizer, se for peão, seja açoitado publicamente e degredado para África por cinco a-nos. E se for escudeiro ou de semelhante condição, seja degradado para África cinco anos e mais pague três mil réis para a nossa Chancelaria. E se for fidalgo ou cavaleiro, seja degredado para África por quatro a-nos.” (Portugal, 1603: 301-2)
Ora, os crimes contra a pessoa colocam em jogo, precisamente, o conceito de
integridade civil do indivíduo, pois são eles que, mais dramaticamente, deflagram as de-
mandas ou disputas entre os sujeitos da ação, as quais mormente alimentam o chamado
“campo jurídico”, a arena da salvaguarda da cidadania. Neste sentido, a “maneira nor-
mal” como essas disputas são dirimidas, reflete a própria dinâmica da vida civil em uma
sociedade (Cf. Felstiner, Abel e Sarat, 1980-1: 653). Quer dizer, se a regra da desigual-
263
dade civil impera na solução das demandas inter-individuais, isso significa que a Justiça
opera a partir de um modelo de exclusão social que, no caso em tela, funciona a partir de
uma hierarquia entre os cidadãos. O que torna essa operação mais abjeta é a brutal distor-
ção da pirâmide social, em cuja base desproporcional está alocada a imensa maioria da
população, enquanto o afilado cume é ocupado por uma reduzidíssima elite.
O elemento central e verdadeiramente dramático dessa situação é que a peda-
gogia das penas nas Ordenações filipinas estava fundamentada precipuamente, como
vimos, nos castigos corporais e na exprobação pública e que a condição de nobreza, norte
da ideologia social, definia, como o próprio texto do código coloca em diversas ocasiões,
“pessoas de qualidade em que não cabem açoites”73, cuja honra, base dessa condição,
lhes dava a prerrogativa de não serem expostos à opinião pública. Assim, em geral, a
pena de açoite dada aos plebeus e escravos era comutada por degredo quando se tratava
de nobres e a exprobação no pelourinho com “baraço e pregão”, era substituída pelo
“pregão na audiência”, ou seja, no espaço restrito do tribunal (Cf. Almeida, 1870: 98) 74.
Evidentemente, o que prevalecia nessa sistemática, além da maior suavidade
das penas aplicadas aos nobres, era a cristalização da desigualdade civil num momento
simbolicamente carregado de uma pedagogia, digamos, civilizadora, parafraseando Elias,
já que “a arte de punir deve repousar sobre toda uma tecnologia da representação” (Fou-
cault, 1977: 94). Quer dizer, no momento em que o Estado vinha a público reafirmar as
normas dele emanadas para o convívio dos cidadãos, Estado este que tinha como prática,
tradição e costume afirmá-las ardentemente, a mitigação das penas segundo a “qualida-
de” dos réus expressava, tão somente, o seu paradoxo mais essencial, a negação mesma
de toda a idéia de cidadania: a diferença essencial dos homens perante a lei. Assim, defi-
73 Para detalhes, conferir o artigo 138, “Das pessoas que são escusas de haver pena vil” (Portugal, 1603: 488, passim). 74 “Pelourinho era a coluna de pedra ou madeira, com argolas e pontas de ferro, colocada na região central de uma vila ou cidade, próxima à Câmara. Ali eram castigados os criminosos, afixados os editos ou lidos os comunicados dos governantes. Baraço era o laço usado para apertar a garganta dos enforcados. Essa pena consistia em levar o condenado com o baraço no pescoço, enquanto o pregoeiro anunciava suas cul-
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nia-se um dos aspectos mais persistentes da cidadania à brasileira, a impunidade dos
poderosos articulada à flagelação dos despossuídos, aquilo que Roberto DaMatta resumiu
com o seu estilo direto: “Se o criminoso é pobre ou ignorante, pau nele! Mas se é um
letrado, um doutor ou tem família, é tratado com todas as finezas a que uma pessoa tem
direito.” (DaMatta, 1996: 62). Hoje podemos observar que um dos signos mais expressi-
vos desse aspecto perene, a desigualdade civil entre a elite e o povo, é uma relíquia do
código filipino. A chamada “prisão especial” – “um traço do nosso sistema legal que dá a
certas categorias de pessoas (...) o direito a um tratamento privilegiado por parte da justi-
ça, independente do crime cometido” (DaMatta, 1996: 208) – tem a sua origem nas dis-
posições filipinas acerca dos procedimentos processuais:
“Mandamos que os fidalgos de solar ou assentados em nossos livros, e os nossos desembargadores, e os doutores em leis ou em cânones, ou em medicina, feitos em estudo universal por exame, e os cavaleiros fi-dalgos ou confirmados por nós, e os cavaleiros das Ordens Militares de Cristo, Santiago e Aviz, e os escrivães de nossa Fazenda e Câmara, e mulheres dos sobreditos, enquanto com eles forem casadas ou estive-rem viúvas honestas, não sejam presos em ferros, senão por feitos em que mereçam morrer morte natural ou civil. E pelos outros, em que não caibam as ditas penas de morte, serão presos sobre suas homenagens75, as quais devem fazer aos juízes que os prenderem, ou mandarem pren-der. E por eles lhes serão tomadas, e lhes darão por prisão o castelo da vila ou sua casa, ou a mesma cidade, vila ou lugar, segundo for a quali-dade do caso.” (Portugal, 1603: 402-3)
Quer dizer, mesmo com a evolução da dogmática jurídica – que desqualificou
muitos crimes previstos no código seiscentista, que revogou os seus métodos de punir e
que aboliu a diferenciação hierárquica das penas que ele estabelecia – as chamadas “rega-
lias dos réus especiais”, que atualmente têm colocado em xeque a eqüidade da Justiça no
Brasil, são uma herança das Ordenações filipinas. Isto apenas reforça o nosso pressupos-
to de que o estatuto da desigualdade civil, paradoxo essencial da cidadania no Brasil e
fonte da torpe exclusão que caracteriza a nossa cena social em todos os tempos é um tra-
pas e suas penas pelas ruas da vila ou cidade (...).” (Almeida, 1870: 59). 75 “Promessa solene ou jurada de fidelidade ou de executar algo.” (Almeida, 1870: 403).
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ço marcante do processo de formação nacional, constituindo-se em um dos nossos mais
ingentes problemas. Por outro lado, estas homologias entre o Brasil colonial e o Brasil
atual são mais um indício a favor da nossa tese de que a nação, com o seu perfil peculiar,
os seus dilemas essenciais e o seu ethos próprio, delineou-se, visivelmente, na aurora de
Seiscentos. Veremos, a seguir, que o próprio processo de institucionalização da Justiça
no Brasil levanta ainda outra evidência no campo da cidadania que nos coloca em face de
uma continuidade reveladora no âmbito da nossa formação nacional.
As arenas da Justiça
Quando interpretamos a visão dos cronistas coevos sobre a vida brasileira
seiscentista, dissemos que a interpolação entre o público e o privado na conduta das pes-
soas é um dos paradoxos essenciais e mais persistentes da ideologia social brasileira, uma
vez que ela, na figura da “dicotomia da terra e do homem” (Cabral de Mello, 2000: 93),
saltou aos olhos de observadores judiciosos como Diogo de Campos Moreno, Ambrósio
Fernandes Brandão e frei Vicente do Salvador e figura como base de importantes análises
sociológicas contemporâneas, como as de Raymundo Faoro e, especialmente, as de Ro-
berto DaMatta, que a apresenta na forma da “oposição casa e rua” (DaMatta, 1987: 15).
Afirmáramos, então, que esse paradoxo é um dos elementos básicos do processo de for-
mação nacional, uma vez que ele atua tanto na “micro-sociologia” da conduta cotidiana,
quanto na “macro-sociologia” dos processos e estruturas mais gerais do nosso sistema
social, mas naquele momento nos dedicamos apenas a demonstrar a efetiva presença dele
na ideologia brasileira seiscentista. O que vamos abordar agora é, precisamente, o efeito
dessa interpolação na institucionalização da Justiça no Brasil e, conseqüentemente, no
âmbito de suas arenas, o espaço concreto das ações pela salvaguarda da cidadania. Nosso
objetivo é, mais uma vez, demonstrar que esse paradoxo é um elemento constitutivo da
formação nacional, que ele sofreu injunções da própria evolução histórica e institucional
da sociedade brasileira, mas que permanece pautando o acesso à cidadania no Brasil.
266
Segundo a organizadora de um dos mais esclarecedores e criteriosos estudos
sobre a administração no Brasil colonial, baseado em exaustiva pesquisa documental
patrocinada pelo Arquivo Nacional, as condições históricas da formação brasileira mode-
laram “um padrão especial de poder, onde o público e o privado se mesclaram de manei-
ra a proporcionar os contornos da ordem jurídico-administrativa implantada.” (Salgado,
1985: 48). Isto porque o modelo de colonização fora baseado precipuamente “na entrega
a particulares dos riscos dos empreendimentos iniciais que viabilizassem a lucratividade
da empresa colonial em troca da concessão de poderes e privilégios” (Salgado, 1985: 47),
entre os quais se destaca a própria administração da justiça. Realmente, essa foi a lógica
que presidiu a implantação do sistema de capitanias hereditárias no Brasil, como fica
claro na Carta de doação que D. João III passou a Duarte Coelho:
“(...) por esta presente carta faço mercê irrevogável doação entre vivos valedoura deste dia para todo o sempre de juro e herdade para ele e to-dos seus filhos netos e herdeiros sucessores (...) de sessenta léguas de terra na dita costa do Brasil (...) e me apraz que o dito Duarte Coelho e todos os seus herdeiros e sucessores que a dita terra herdarem e sucede-rem se possam chamar e chamem capitães e governadores dela e ou-trossim lhe faço doação e mercê de juro e de herdade para sempre para ele e seus descendentes e sucessores (...) da jurisdição cível e crime da dita terra (...).” (In Ribeiro & Moreira Neto, 1993: 138-9)
Este ato, pelo qual “a administração judicial na Colônia ficava sob a direta e
exclusiva responsabilidade e arbítrio dos donatários” (Coelho, 1985: 74), estabelecia,
contudo, alguns pequenos avanços em relação às medidas tomadas por Martim Afonso
neste particular, as primeiras no sentido de estabelecer uma base institucional na colônia.
Na Carta de grandes poderes dada ao capitão-mor em 1530, el-rei determinava: “dou
poder ao dito Martim Afonso para que ele possa criar e fazer dois tabeliães que sirvam
das notas e Judicial” (in Ribeiro & Moreira Neto, 1993: 137). E isto foi feito, além do
que, com a fundação da vila de São Vicente e a instalação da sua câmara, em 1532, fo-
ram criados outros dezesseis cargos (Cf. Salgado, 1985: 129-142), entre os quais o de
juiz ordinário, “principal autoridade das câmaras municipais” (Salgado, 1985: 50), cuja
267
atribuição fundamental era “proceder contra os que cometerem crimes no termo (municí-
pio) de sua jurisdição” (Salgado, 1985: 130) e o juiz de vintena, a ele subordinado, que
deveria “conhecer e decidir, verbalmente, das contendas entre os moradores de sua juris-
dição” (Salgado, 1985: 131)76. Ora, com a instituição do sistema de capitanias hereditá-
rias, a estrutura judicial se ampliaria, na medida em que, entre as prerrogativas e atribui-
ções dos capitães donatários,
“Cabia-lhes, ainda, a nomeação de algumas autoridades administrati-vas, tais como o ouvidor, para zelar pelo cumprimento da lei, os tabeli-ães do Público e do Judicial, para dar validade legal aos atos (...). Outra atribuição da sua competência era presidir as eleições dos juízes ordiná-rios (...) e de alguns funcionários menores da administração local: os meirinhos e os escrivães77” (Salgado, 1985: 50)
Mas não nos enganemos em face de tal aparato institucional, uma expressão
da “incipiente organização das bases administrativas na colônia” (Salgado, 1985: 51).
Como sabemos, a experiência das donatarias teve vida curta e resultados desastrosos,
destacando-se os próprios desmandos praticados pelos capitães e seus prepostos na admi-
nistração da justiça, uma das principais razões que levaram D. João III a decidir pela cen-
tralização do governo do Brasil, em 1548 (Cf. Varnhagen, 1981 [1854-1857]: 232). Ali-
ás, quando o desembargador Pero Borges fez correição nas capitanias, em 1550, encon-
trou um panorama onde havia muitos funcionários e nem um só perito, muita burocracia
e pouca probidade. Assim o magistrado relatou a situação para el-rei D. João III:
“Parece-me que devia V. A. mandar Jorge de Figueiredo [donatário de Ilhéus] e aos outros capitães que ao menos ponham ouvidores homens entendidos (...) por que a vossa casa do cível tem pouco mais e estão nela homens muito bons, letrados e experimentados e são sempre em uma sentença ao menos dois e aqui um homem que não sabe ler nem escrever dá muitas sentenças sem ordem nem justiça e, se se executam,
76 Estas medidas levaram Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso e que o acompanhara na expedi-ção, a escrever eu seu diário que, na vila, estabelecera-se uma “vida segura e conversável”, pois havia o capitão-mor tudo posto “em boa ordem de justiça” (Apud Abreu, 1907: 76). 77 Os meirinhos tinham como função “fazer diligências e prender os suspeitos” enquanto os escrivães, “escrever os autos dos processos” (Coelho, 1985: 76).
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tem nas execuções muito maiores desordens (...). Aqui (...) não há ho-mens para serem Juizes ordinários nem vereadores e nestes ofícios me-tiam degredados (...). Eu não consinto agora que nenhum degradado sirva nenhum ofício e mando que não haja Juiz dos órfãos nem escri-vães por nenhuma destas capitanias (...). Só nesta vila [Porto Seguro] que tem cem vizinhos havia quatro tabeliães, dois inquiridores, escrivão dos órfãos e outros oficiais e não há homens para os ofícios do conce-lho por que não há senão um Juiz ordinário e dois vereadores e um pro-curador e tesoureiro do concelho (...). Nem pude emular com os tabeli-ães dos Ilhéus e alguns aqui do Porto Seguro porque os achei servir de-les sem carta dos ofícios senão com uns alvarás dos capitães, nenhum tinha livros de querelas, antes alguns tomavam em folhas de papel. Ne-nhum tinha regimento, levavam o que queriam as partes, como não ti-nham por onde se regerem, alguns serviam sem juramento, e porque is-to é uma pública ladroice e grande malícia, porque cuidavam que lhe não haviam de tomar nunca conta, viviam sem lei nem conheciam su-perior (...).” (In Varnhagen, 1854-7a: 189, passim)
Com a instituição do Governo-geral, consolidar-se-ia o arcabouço da admi-
nistração judicial na colônia, mantendo-se, contudo, a mesma estrutura funcional nos
municípios e capitanias. As principais mudanças foram a diminuição da alçada dos capi-
tães donatários e a criação do cargo de ouvidor-geral, autoridade máxima da Justiça na
colônia. Subordinado administrativamente apenas ao governador-geral, necessariamente
um juiz “letrado”, o ouvidor-geral detinha uma função que estabelecia, embora tibiamen-
te, a separação entre os poderes executivo e judiciário no recém criado Estado do Brasil.
Além disso, ele estava vinculado diretamente aos tribunais superiores do Reino e tinha
como uma de suas atribuições atuar como corregedor, fiscalizando o exercício da Justiça
nas capitanias e municípios (Cf. Coelho, 1985: 76; Salgado, 1985: 147 e 194). Frei Vi-
cente do Salvador, com a sua argúcia costumeira, fez uma avaliação das mudanças na
Justiça advindas da instalação do Governo-geral:
“[El-rei] mandou (...) Tomé de Sousa, do seu conselho, com o título de governador de todo o estado do Brasil, dando-lhe grande alçada de po-deres e regimento em que quebrou os que tinha concedido a todos os outros capitães proprietários, por no cível e crime lhes ter dado demasi-ada alçada (...); mandando que no crime nenhuma tenham sem que dê-em apelação para o ouvidor-geral deste estado, e no cível vinte réis so-mente e que o dito ouvidor-geral possa entrar nas suas terras por correi-ção e ouvir nelas de ações novas e velhas, o que não faziam dantes.” (Salvador, 1627: 160)
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Assim, a estrutura judicial estabelecida a partir da instalação do Governo-
geral ia do juiz de vintena, que legislava nos pequenos povoados de 20 até 50 habitantes,
ao ouvidor-geral, que julgava recursos vindos dos ouvidores das capitanias e que podia
apelar e agravar para a Casa da Suplicação e o Desembargo do Paço, no Reino (Cf. Coe-
lho, 1985: 75-6). Ou seja, “a administração judicial estendia suas ramificações por todo o
território colonial” (Coelho, 1985: 76) e a sua autoridade máxima estabelecia a conexão
entre o Estado do Brasil e as instâncias superiores da Justiça metropolitana.
Evidentemente, essas mudanças vieram a melhor disciplinar a aplicação da
justiça no Brasil, principalmente no sentido de mitigar a ascendência dos poderes senho-
riais dos donatários, prevista nas Cartas de doações, o instrumento da “mescla” entre o
público e o privado na ordenação jurídico-administrativa da colônia. Entretanto, como
bem notou um outro pesquisador do Arquivo Nacional, essa era uma contrapartida da
tendência que governaria todo o processo de consolidação institucional do Brasil, “a
constante ampliação dos poderes concedidos aos funcionários mais diretamente ligados à
Coroa” (Coelho, 1985: 73). Ora, como bem demonstrou Raymundo Faoro, a emergência
de uma “rede patriarcal que prende os funcionários ao rei, estabelecendo um estamento
administrativo” (Faoro, 1957: 20) foi um dos principais elementos que moldaram o mun-
do social e político de Portugal desde os primórdios da formação nacional lusa e que de-
ram origem a “uma estrutura permanente, viva no Brasil” (Faoro, 1957: 22). O estamento
funcionava a partir de uma lógica corporativista fundada na idéia do privilégio (Cf. Fao-
ro, 1957: 46), o que transformava o corpo administrativo numa comunidade de interesses
pautada, precisamente, pelo entremear do público com o privado – como assevera Faoro,
“no país os cargos são para os homens e não os homens para os cargos” (Faoro, 1957:
58). Com efeito, essa “burocracia de caráter aristocrático” (Faoro, 1957: 48) domina a
cena política, mas fomenta o desenvolvimento mercantilista, ao ponto de observar-se um
“congelamento do estamento burocrático” (Faoro, 1957: 75), ou seja, um processo de
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disseminação de sua ética no corpo social como um todo:
“O funcionário está por toda a parte, dirigindo a economia, controlan-do-a e limitando-a à sua própria determinação. Uma realidade política se entrelaça numa realidade social: o cargo confere fidalguia e riqueza. (...) O patrimonialismo, organização política básica, fecha-se sobre si próprio com o estamento, de caráter marcadamente burocrático. Buro-cracia não no sentido moderno, como aparelhamento racional, mas de apropriação do cargo – o cargo carregado de poder próprio. O Estado ainda não é uma pirâmide autoritária, mas um feixe de cargos, reunidos por coordenação, com respeito à aristocracia dos subordinados.” (Fao-ro, 1957: 82 e 84)
Quer dizer, o paulatino alijamento dos donatários em relação à condução ju-
rídico-administrativa da colônia não significou, na prática, a dissociação entre o interesse
privado e o bem público no exercício do poder político e na administração da justiça.
Como no processo de consolidação do Estado português sob a égide do Mercantilismo, a
aristocracia proprietária de terras foi substituída por uma elite emergente do estamento
burocrático que conduzia os negócios públicos em proveito particular e que se comporta-
va sob o arrimo de uma ética cujos pilares eram a hierarquia e o privilégio, as próprias
bases da sociedade senhorial. No último ato do processo de normatização institucional da
colônia, a instalação de uma corte de Justiça na Bahia, essa tônica sobrevirá, mais do que
nunca, eloqüente, indicando que o acesso à cidadania no Brasil permaneceria eivado de
paradoxos, mesmo em face de uma presença mais efetiva do Estado e de suas instituições
na regulamentação da vida civil na América portuguesa.
A Relação do Estado do Brasil foi criada pela lei de 7 de março de 1609, a
qual aludia ao regimento de 25 de setembro de 1587, que já a regulamentara (Cf. Garcia,
1927b: 105; Coelho, 1985: 76-7). Sua instalação vinha a responder uma demanda “dos
moradores de todo este Estado”, os quais “se achavam molestados e agravados das inso-
lências de que usavam os ouvidores-gerais, que (...) tinham a administração da justiça em
sua mão” (Brandão, 1618: 36). De fato, segundo Varnhagen, a câmara da Bahia teria
enviado uma carta a el-rei em 27 de janeiro de 1610, na qual “agradeceu com grande fer-
271
vor o ter levado avante essa instalação, alegando que antes o governador ligado com o
ouvidor davam por assim dizer a lei” (Varnhagen, 1854-7b: 106-7). Instalado em Salva-
dor pelo governador-geral D. Diogo de Meneses e Sequeira, fautor da conquista do Ma-
ranhão, o nosso primeiro tribunal de Justiça era estruturado na mesma forma das Casas
da Relação de Lisboa e de Goa (Cf. Brandão, 1618: 36) e estava subordinado diretamente
à Casa da Suplicação e ao Desembargo do Paço, suas instâncias superiores no Reino (Cf.
Salgado, 1985: anexos):
“Era o tribunal máximo da região e recebia recursos de todas as instân-cias judiciais existentes, subordinando e fiscalizando, através das cor-reições e ‘residências’78 os demais funcionários e oficiais de Justiça, in-dicados ou não pelos donatários. [Era] formada por magistrados profis-sionais (um chanceler, dois desembargadores dos Agravos e Apelações, um ouvidor-geral do Cível e do Crime, um juiz dos Feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, um provedor dos Defuntos e Resíduos, afora dois de-sembargadores extravagantes) e oficiais menores. (...) a Relação era di-rigida pelo próprio governador-geral do Estado do Brasil, no cargo de governador da Relação, o que lhe permitia controlar e fiscalizar as ati-vidades dos desembargadores.” (Coelho, 1985: 77-8)
Embora a instalação da Relação da Bahia tenha, em tese, assegurado a nor-
malidade processual das causas, dado mais garantia ao direito individual dos cidadãos e
estabelecido o controle institucional da aplicação da Justiça no Brasil, a presença de um
aparelho jurídico na colônia veio, na prática, a dar azo à ação deletéria da vanguarda do
“Estado patrimonial de estamento” (Faoro, 1957: 47), os especialistas encastelados no
chamado “campo jurídico”, “o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer
o direito” (Bourdieu, 1989: 212). De fato, três anos após a instalação do tribunal de Justi-
ça, Diogo de Campos Moreno faria a seguinte avaliação:
“(...) pondo o sentido e o coração na pátria, [os povoadores do Brasil] tratam de se acolher, tanto que da província confusa têm esfolado al-guma cousa com que o fazer possam; daí nasce tanto trocar, tanto men-
78 “Ou seja, segundo Antônio de Morais Silva, Dicionário da língua portuguesa, s.v. ‘Residência’, ‘exame ou informação que se tira do procedimento do juiz ou governador, a respeito de como proceder nas coisas de seu ofício durante o tempo que residia na terra onde o exerceu.” (Coelho, 1985: 77, nota).
272
tir, tanta trapaça que as novas delas não fazem mais que acarretar ba-charéis à pobre província, a qual, com os termos religiosos que tratados ficam, e com a multidão de letras que do Reino vão, e que nos estudos lhes ensinam aos mecânicos, em lugar de fazendas e de trabalhadores, multiplica-se na terra em licenciados, escrivães, meirinhos, solicitado-res, clérigos e frades. (...) Nesta cidade se tem a Relação por cousa pe-sada e não muito conveniente, assim pela natureza dos pleitos, pelo pouco que se há que fazer neles, como pela quantidade de letras que se ficarão anadindo (sic) aos muitos estudantes, clérigos e frades que ali há (...) ” (Moreno, 1612: 115 e 147)
Ambrósio Fernandes Brandão fará eco às críticas do sargento-mor, acrescen-
tando que a manutenção de um tribunal na Bahia com o seu farto e aparatoso corpo de
funcionários – “pagos de seus salários da fazenda de Sua Majestade” (Brandão, 1618: 36)
– não se justificava porque os virtuais demandantes moradores do Brasil “são liados uns
aos outros por parentesco ou amizade [e] nunca levam os seus pleitos tanto ao cabo que
lhes seja necessário (...) a apelação deles à Relação da Bahia, porque antes disso se me-
tem amigos e parentes de permeio, que os compõem e concertam” (Brandão, 1618: 37).
Embora seja justo ressaltar que a presença dos “juizes de vintena” garantia uma certa
lisura na solução das demandas ao nível local, é bem verdade que essa prática de solução
de conflitos tão brasileira, pessoalizante e conciliadora ao extremo pode, quando veicu-
lada em demandas que envolvam pessoas hierarquicamente diferenciadas, favorecer a-
quelas em posição superior, mas diante da sanha de tantos doutores e rábulas, da coni-
vência dos magistrados e do colaboracionismo interesseiro dos inúmeros funcionários e
oficiais, a opinião de Brandônio parece bastante ponderada. Ora, talvez o direito consue-
tudinário brasileiro não pudesse responder plenamente às exigências da dogmática e e-
qüidade jurídicas em vigor, especialmente quando aplicado sob a ordem dos agentes da
Coroa, mas a implantação de uma estrutura burocrática eivada pelo corporativismo, pela
pessoalidade, pelo privilégio e pelo interesse também não viria a ultimar o aperfeiçoa-
mento da Justiça no Brasil. Esse é, aliás, o parecer de Varnhagen:
“O certo é que a experiência veio a provar que se aumentaram excessi-vamente as demandas, em razão da demasia de advogados, doutores e
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rábulas, que acompanharam os desembargadores, e dos competentes escrivães e solicitadores, que não tratavam de nada mais do que de en-cherem-se à custa das partes. Viu-se então a Bahia, como meio século antes se haviam visto muitas cidades de Portugal, molestada pela dema-sia dos letrados. (...) os advogados rábulas eram um mal, pela sua igno-rância e seus enredos; os doutores pela ascendência que tinham sobre os magistrados, de quem haviam sido condiscípulos ou contemporâneos em Coimbra, e em favor dos quais estavam os últimos prevenidos pela amizade ou, se haviam feito estudos mais brilhantes que eles, pela con-sideração e respeito a suas opiniões.” (Varnhagen, 1854-7b: 107)
Portanto, a Relação do Estado do Brasil não cumpriu os seus desígnios no
sentido da boa distribuição da Justiça entre os cidadãos da América portuguesa porque,
em primeiro lugar, a sua pesada estrutura burocrática e o bacharelismo e o funcionarismo
a ela vinculados não concorriam para a agilização dos processos, mas, ao contrário, para
a sua multiplicação e dilação, com as chicanas e delongas de praxe em favor dos especia-
listas e em detrimento dos demandantes: por um lado, “a Relação veio a tornar-se passa-
gem quase obrigatória aos letrados que almejassem atuar nas instâncias judiciais hierar-
quicamente superiores localizadas na Metrópole” (Coelho, 1985: 77) e, por outro, “os
competentes escrivães e solicitadores não tratavam de nada mais do que de encherem-se
à custa das partes” (Varnhagen, 1854-7b: 107). Em segundo lugar, porque o corporati-
vismo e as relações pessoais colocavam-se de entremeio na condução dos processos, não
para promover a conciliação entre as partes, como na prática costumeira, mas para favo-
recer os causídicos envolvidos. E, em terceiro lugar, porque o rito processual, assim dila-
tado na “província confusa”, tornava-se extremamente caro: segundo Brandônio, na Ba-
hia, o acompanhamento de um processo necessitava “dinheiro de contado, que custa mui-
to a ajuntar-se no Brasil”, ao passo que no Reino bastava, “para a sua despesa, um caixão
de açúcar” (Brandão, 1618: 37). Ora, como sentenciará Brandônio, em expressão flagran-
temente atual, a Justiça no Brasil “custa muito enfadamento, tempo e despesa” (Brandão,
1618: 39).
Em conclusão, podemos dizer, por um lado, que os dilemas da estabilização
jurídica da colônia observados na dinâmica das arenas da Justiça apontam para um fato
274
ineludível – “a ética medieval sobreviveu no pensamento dos letrados e da corte, estra-
nhamente contemporânea da aventura ultramarina” (Faoro, 1957: 61) – e que esta é a
origem de “um dado irredutível da singularidade brasileira” (DaMatta, 1987: 104), estar
o nosso sistema social “fundado na lógica da hierarquia e da complementariedade” (Da-
Matta, 1993: 146). Aliás, a operação que favorece “a enorme profundidade e atualidade
do uso da relação pessoal para a navegação social no caso brasileiro” (DaMatta, 1987:
93) advém da própria “tradição ibero-latina” que, através de “mistura, confusão e combi-
nação” possibilitou a articulação do tradicional ao moderno na formação histórica ameri-
cana (Cf. DaMatta, 1993: 128-9). No caso do Brasil, esse processo redundou na emer-
gência da chamada “ética dúplice” (Cf. Weber, 1904b: 36; DaMatta, 1987: 85-6 e 1993:
141-2; Caniello, 1993: 18), fator diacrítico da “cidadania à brasileira” e um dos signos
supremos do ethos brasílico. Por outro lado, podemos afirmar que o estatuto da desi-
gualdade presente nas Ordenações filipinas sobrevive como uma nódoa na vida civil
nacional, fomentando a fragorosa exclusão social que é, sem dúvida, o produto mais iní-
quo da chamada “tradição brasileira”. É bem verdade que a draconiana letra da lei foi,
pelo menos em parte, revogada, mas os seus preceitos permanecem a pautar, nos desvãos
da nossa ordem institucional, o exercício da Justiça no Brasil, com as suas prisões espe-
ciais para a elite e os seus calabouços infectos para o povo.
275
Capítulo 12
GUERRAS CONTRA OS HOLANDESES
O progresso do Brasil e a rapinagem estrangeira
Como vimos, na primeira quadra de Seiscentos, florescia a colônia lusa na
América. Com o seu imenso território “realizado”, uma estrutura institucional implanta-
da, a vida civil estabilizando-se e a uma economia que fervilhava, o Brasil contava com
seis cidades – Salvador, Rio de Janeiro, Filipéia, São Luís, Cabo Frio e Belém –, dezesse-
te vilas – entre as quais São Paulo e a fulgurante Olinda – e uma infinidade de lugarejos
que surgiam no entorno da zona canavieira nordestina e das regiões polarizadas pelos
binários São Paulo-Rio de Janeiro e São Luís-Belém (Cf. Azevedo, 1956: 12-4 e 26).
Sobreviviam como capitanias de donatários São Vicente, Santo Amaro, Espírito Santo,
Porto Seguro, Ilhéus, Pernambuco e Itamaracá, ao passo que já havia oito capitanias re-
ais, a saber, Rio de Janeiro, Bahia, Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Mara-
nhão e Pará (Cf. Abreu, 1907: 116). O “governo separado do Sul”, instituído em razão
dos requerimentos de D. Francisco de Sousa, fora revogado em 1612 (Cf. Varnhagen,
1854-7e: 245) mas, em 1619, já se projetava a formação do Estado do Maranhão, inde-
pendente do Brasil e abrangendo as capitanias do Maranhão, Pará e Ceará, cuja criação
seria efetivamente determinada pela carta régia de 13 de julho de 1621 (Cf. Varnhagen,
1854-7b: 152).
Entretanto, toda a colônia estava unificada pela administração eclesiástica,
pois o país formava uma só diocese e o bispo assistia na Bahia com o cabido, estando
secundado por dois administradores, um para as capitanias do norte, residente na Paraíba,
e outro para as do sul, estabelecido no Espírito Santo. Em geral, cada capitania formava
uma freguesia, mas as vigararias se multiplicavam, mormente naquelas mais desenvolvi-
das – na Bahia, por exemplo, havia quatorze, e, em Pernambuco, treze. Disseminavam-se
276
colégios e conventos por todo o território e “quase todas as capitanias sustentavam casas
de misericórdia” (Cf. Abreu, 1907: 115-6).
Por volta de 1620, o extraordinário processo de expansão da economia açuca-
reira atingira o seu ápice. Em cinqüenta anos de crescimento acelerado, o número de en-
genhos quintuplicara e a produção de açúcar chegara à casa de dois milhões de arrobas, a
especiaria se popularizara na Europa e os seus preços explodiram no mercado internacio-
nal. O Brasil faturava 2 milhões e meio de libras esterlinas por ano com a exportação do
produto (Cf. Simonsen, 1937: 112 e 382; Furtado, 1970: 42-3; Schwartz, 1997: 146-8).
Como conseqüência, aquecia-se a economia interna: em 1617, as despesas públicas mon-
tavam a, aproximadamente, 55 contos de réis (Cf. Abreu, 1907: 115) e a receita fiscal das
capitanias de Pernambuco, Paraíba e Bahia – as grandes provedoras da Fazenda Real –
totalizava, no mesmo período, 68 contos e 800 mil réis (Cf. Brandão, 1618: 24, 31 e 40),
numa conjuntura em que “um engenho dos bons” produzia um lucro anual de mais de 2
contos de réis, aproximadamente (Cf. Brandão, 1618: 102)79.
A opulência do Brasil era um fato e sobre ela cresciam os olhos dos corsários
e piratas que coalhavam o oceano amiudadamente percorrido pela mercancia. Ora, a fe-
cunda colônia mal defendida, refém de um monarca estrangeiro embevecido pela prata
do Peru e pelo ouro do México, envolvida, à custa da bolsa, do suor e do sangue de seus
moradores, na faina diuturna pela salvaguarda da terra, era uma presa apetitosa. Os salte-
adores do mar não davam trégua às frotas que aportavam no Brasil e nem se intimidavam
diante das cidadelas implantadas na costa. A rapina era incessante.
De fato, há muitos episódios registrados durante todo o período de ascensão
da economia açucareira. Em 1587, por exemplo, o padre Marçal de Belliarte, que vinha
substituir a José de Anchieta no provincialato jesuíta, teve que se deter por mais de seis
79 Nessa época, um escravo valia, em média, 30 mil réis e uma arroba de açúcar, 450 réis (Cf. Mattoso, 1988: 89); um alqueire de farinha de mandioca, “bastante para sustentar a um homem por espaço de um mês”, de 250 a 300 réis (Brandão, 1618: 135); a construção de uma nau de 400 toneladas era orçada em 4 contos e 500 mil réis (Cf. Moreno, 1955 [1612]: 156-9).
277
meses em Pernambuco antes de seguir para Salvador, pois, como assegura o padre Car-
dim, “o mar andava infestado de franceses e ingleses” (Cardim, 1584-90: 178). No Natal
de 1591, Thomas Cavendish, o terceiro circunavegador da Terra, incendiou a vila de San-
tos porque lá não encontrara os víveres que esperava tomar para transpor o estreito de
Magalhães (Cf. Abreu, 1918: 233). Em 1595, a vila de Ilhéus e a cidade de Salvador
foram acometidas por corsários franceses (Cf. Salvador, 1627: 369; Vianna, 1955: 148) e
o Recife foi sitiado e esbulhado, durante um mês inteiro, por James Lancaster (Cf. Abreu,
1918: 232). Enfim, o sargento-mor do Estado advertia el-rei Filipe III de Castela no seu
relatório de 1612 que, até 1604, “a terra nova, remota e fronteira” da capital da colônia
houvera sido acometida quatro vezes por armadas inimigas (Cf. Moreno, 1612: 148).
Assim, tem razão o visconde de Porto Seguro em afirmar que, naquela época,
“por todas as capitanias, os receios de alguma invasão estrangeira era como um senti-
mento público” (Varnhagen, 1854-7b: 161). Entretanto, o butim não se colhia sem resis-
tência, pois os moradores, mesmo inferiorizados em petrechos e munições, contingente e
comandantes, não raro lutavam, com ânimo, armas e táticas, verdadeiramente, brasílicos.
Foi o caso da resistência em Ilhéus, celebrizada pela saborosa verve de frei Vicente do
Salvador:
“(...) os nossos se iam secretamente meter em algumas casas, aonde os franceses, julgando que iam buscar lã, vinham sem pelo. E não houve, de vinte e sete dias que ali estiveram, um em que destas ciladas lhe não matassem alguns e algumas vezes caíam mortos dos franceses quinze. À vista disto se animaram e cobraram tanto brio os nossos que se resol-veram a sair a campo com eles. E, porque o capitão da terra não acaba-va de chegar, que estava na sua fazenda distante duas léguas, elegeram outro, não o mais nobre, nem o mais rico, mas o mais valente, e que se havia mostrado mais animoso nos assaltos e ciladas, que era um pobre mamaluco (...) chamado Antônio Fernandes, e por alcunha o Catuca-das, porque assim chamava às estocadas na língua de sua mãe. E foi coisa maravilhosa que, sendo os nossos só quinze ou vinte, sem outras armas mais que arcos, setas e espadas, mataram dos franceses no cam-po cinqüenta e sete, em que entrou o capitão (...). Com esta perda fugi-ram os franceses (...). Não só foi esta confusão para os franceses mas também para o capitão da terra, que nunca apareceu.” (Salvador, 1627: 369-70)
278
“Brigam Espanha e Holanda pelos direitos do mar”
Mas, o maior perigo que pairava sobre o Brasil no limiar do século XVII não
eram as investidas contumazes, porém isoladas, de piratas ingleses e franceses. Como
ressalta Capistrano de Abreu, desde quando a Coroa espanhola anexou o reino luso, “os
inimigos de Castela passaram a ser os de Portugal” (Abreu, 1907: 117) e, assim, a cha-
mada “guerra dos oitenta anos” (1568-1648) na fase da luta pela independência dos Paí-
ses Baixos contra o monarca imperialista (Cf. Cabral de Mello, 1998: 21) iria repercutir
grandemente na “neutra Lisboa” (Wätjen, 1921: 65) e, mormente, na colônia lusa na
América, também sob o domínio do Habsburgo:
“A união de Portugal à Espanha no ano 1580 tornou-se fatal tanto para a metrópole como para as colônias portuguesas. Estas eram considera-das pelos espanhóis como ‘quantité négligeable’, como possessão es-trangeira, em cuja defesa não convinha empregar o máximo das forças. (...) Uma vez que à defesa desses territórios (...) não tocava o estrita-mente imprescindível, não é de admirar que os adversários de Filipe, holandeses e ingleses, sobre eles se lançassem com todo o peso. A con-versão de Portugal em província espanhola atirou os portugueses, a contra gosto, nas lutas pela supremacia universal da Espanha. Eles tive-ram de ‘pagar o pato’, e no final da enorme peleja foram eles que tive-ram de chorar os mortos.” (Wätjen, 1921: 85-6).
Segundo o mesmo Wätjen, a própria idealização da Companhia das Índias
Ocidentais (W.I.C.), encetada por Willem Usselinx na última década do século XVI, fun-
dou-se num argumento precípuo: “deslocar as lutas do teatro da guerra holandês, mudan-
do-lhes o cenário para as regiões ultramarinas” (Wätjen, 1921: 73). Ou seja, a colônia
lusa usurpada pelo monarca de Espanha se tornaria a bucha de canhão dos potentados da
recém proclamada República Unida da Holanda, pouco dispostos a se arrojarem contra as
bem entrincheiradas minas do Peru e do México80.
80 “Como assinalará um alto funcionário do Brasil holandês, não existia no Novo Mundo região mais fa-cilmente conquistável do que a América portuguesa, onde bastava assenhorear-se dos dois ou três princi-pais portos, ao passo que a América hispânica seria indispensável a ocupação de extensas áreas.” (Cabral de Mello, 1998: 25).
279
As outrora pacíficas e profícuas relações comerciais entre as nações ibéricas e
os Países Baixos, freqüentes desde a Idade Média, começaram a ser abaladas a partir da
série de apreensões de navios neerlandeses ancorados em portos sob domínio castelhano,
ordenadas por Filipe II e Filipe III entre 1585 e 1599 (Cf. Abreu, 1907: 117 e Wätjen,
1921: 65). A retaliação holandesa, determinada por necessidades comerciais e animada
por objetivos políticos, foi dirigida à possessão americana d’el-rei de Espanha. Por um
lado, os batavos iniciaram suas investidas na Amazônia, freqüentando as costas da Guia-
na e da Venezuela e internando-se pela hiléia (Cf. Wätjen, 1921: 71), por outro, os seus
corsários foram dar em portos brasileiros, onde faziam escala as especiarias das Índias e
se embarcavam os açúcares do Brasil.
Na antevéspera do Natal de 1599, por exemplo, uma esquadrilha de sete naus
comandada por Hartman e Broer (Cf. Garcia, 1927b: 93) entrou pela baía de Todos os
Santos e, segundo frei Vicente, “se senhoreou do porto e dos navios que nele estavam,
queimando e desbaratando os que lhe quiseram resistir” (Salvador, 1627: 331). Os holan-
deses não se animaram a desembarcar em Salvador, mas atacaram o recôncavo e a ilha de
Itaparica, onde queimaram dois engenhos e de onde foram repelidos por André Fernan-
des Morgalho e Álvaro Rodrigues da Cachoeira “com o seu gentio” (Cf. Salvador, 1627:
332). Depois de cinqüenta e cinco dias barbarizando a Bahia, os neerlandeses fizeram
vela, mas só deixaram a barra após tomarem a nau de Francisco de Araújo que chegava
trazendo uma carga de pau-brasil do Rio de Janeiro e, não antes de se apossarem do car-
regamento, colocarem a tripulação a ferros e queimarem o navio mercante (Cf. Salvador,
1627: 332).
Outro ataque holandês célebre contra a Bahia aconteceu nos meses de julho e
agosto de 1604. Empreendido por Paulus van Caarden, cuja armada de sete naus e um
patacho se reconhecia pela almiranta guarnecida por quarenta e quatro peças de artilharia
e ornada por um jardim cultivado no convés, o assalto está bem documentado por um
diário escrito “por testemunha presencial que ficou anônima” e por uma certidão de ser-
280
viços do governador Diogo Botelho (Cf. Garcia, 1927b: 93). Sem entrarmos em detalhes
e resumindo as informações disponíveis (Cf. Garcia, 1927b: 95-7), basta dizer que os
holandeses não lograram desembarcar em Salvador em virtude da resistência orquestrada
pelo governador-geral e, mesmo assaltando o recôncavo, não queimaram nenhum enge-
nho. Durante quarenta dias, a armada fundeada na baía trocou fogos e pelouros com a
força entrincheirada na praia, verificadas perdas de parte a parte, e os holandeses conse-
guiram apresar sete naus carregadas de açúcar durante a refrega. A frota deixou a Bahia
em 28 de agosto e, a 19 de setembro, estava defronte de Pernambuco. Ali, van Caarden
despachou uma flotilha para bater o porto, a qual foi recebida com tal carga de artilharia
que ficaram demovidos no almirante corsário quaisquer intuitos de saquear o Recife.
Mesmo durante a chamada “paz dos doze anos”, o armistício acordado entre
Espanha e Holanda em 9 de abril de 1609, quando “de 10 a 15 barcos holandeses veleja-
vam anualmente de portos portugueses para a costa oriental da América do Sul, e volta-
vam ao Porto e a Viana carregados de açúcar e madeiras do Brasil” (Wätjen, 1921: 77), a
rapina não cessou. A colônia lusa na América, largada à própria sorte pelo monarca pa-
drasto e envolvida, de moto e recursos próprios, na salvaguarda do território arrostado
pelos franceses, teria que fazer face às investidas dos holandeses, cuja mal disfarçada
cobiça grassava na terra e no mar. Em 1616, por exemplo, os batavos se internavam pela
hiléia, plantando fortins e levantando tranqueiras (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 148-9), en-
quanto os seus salteadores do mar apresavam um total de 28 navios de carreira do Brasil
(Cf. Varnhagen, 1854-7b: 162).
Com o fim das tréguas em 1621, mais se agravou a situação do Brasil, uma
vez que os ideólogos da afirmação nacional holandesa voltavam a colocar com veemên-
cia a necessidade de atacar as colônias ultramarinas sob domínio espanhol. A fundação
da Companhia das Índias Ocidentais (W.I.C.), em 3 de junho daquele ano, objetivava,
precipuamente, a instrumentalização de tal intento, pois a ela foi delegada, por delibera-
ção oficial dos Estados Gerais, o encargo projetado pelos estrategistas das Repúblicas
281
Unidas (Cf. Wätjen, 1921: 80). Cumpre lembrar que a longa guerra entre espanhóis e
holandeses entrava em uma nova fase, transformando-se, no dizer de Evaldo Cabral de
Mello, em “uma contenda bélica entre duas potências européias, que eram também po-
tências coloniais” (Cabral de Mello, 1998: 21) e, uma vez que a tática definida pelos ge-
nerais de Flandres consistia em “ferir ao vivo o inimigo nacional no seu ponto mais vul-
nerável” (Edmundson apud Wätjen, 1921: 83), deliberaram-se os holandeses a atacar a
Bahia, a capital da colônia negligenciada pelos Filipes de Espanha.
A perda e a recuperação da Bahia
Captados os 7 milhões de florins do capital declarado da Companhia em
1623, armou-se a frota para a jornada sobre o Brasil. Em 21 de dezembro daquele ano,
partiu da Holanda a armada de vinte e seis vasos, sob o comando do almirante Jacob Wil-
lekens, cujo imediato era o depois lendário Piet Hein. Vinha como comandante dos 3.400
homens da tropa de desembarque o coronel Jan van Dorth (Cf. Salvador, 1627: 436; Ro-
cha Pitta, 1730: 167; Wätjen, 1921: 85-8).
A armada levou quatro meses para transpor o Atlântico e quando chegou à
baía de Todos os Santos, a notícia de sua vinda já era conhecida no Brasil, pois el-rei
havia comunicado o fato ao governador-geral, que transmitira a notícia aos governadores
de todas as capitanias (Cf. Salvador, 1627: 436). Embora o conde-duque de Olivares,
ministro plenipotenciário do jovem Filipe IV, não houvesse providenciado qualquer auxí-
lio efetivo para a colônia, mobilizaram-se no Brasil os capitães-mores. No Rio de Janei-
ro, por exemplo, Martim de Sá levantou barricadas por toda a cidade e convocou voluntá-
rios, mas vendo estes recalcitrantes ao chamado, “por andarem descalços e não terem
com que calçar librés, ordenou uma companhia de descalços de que ele quis ser o capi-
tão, e assim ia diante deles nos alardos descalço e com umas ceroulas de linho” (Salva-
dor, 1627: 436).
Também na Bahia, o governador-geral havia tomado as suas providências.
282
Segundo Rocha Pitta, Diogo de Mendonça Furtado houvera juntado mil e seiscentos mo-
radores do recôncavo e oitenta soldados pagos em Salvador, mas a demora dos holande-
ses agira de maneira a dispersá-los da mobilização (Cf. Rocha Pitta, 1730: 166). Por ou-
tro lado, como assevera Capistrano, “as fortalezas já arruinadas umas, outras por acabar,
a barra larga e franca (...), a guarnição reduzida e imbele, a população trépida (...), não
encerravam elementos de resistência eficaz.” (Abreu, 1907: 120). Realmente, já na noite
de 9 de maio, fundeada a armada na baía, debandaram os moradores da cidade. Na ma-
nhã seguinte, os holandeses tomaram Salvador sem disparar sequer um tiro e prenderam
o governador-geral, que, debalde, se entrincheirara em sua casa com alguns homens.
Todavia, o bispo D. Marcos Teixeira, o “ardoroso patriota” (Wätjen, 1921:
89) que andava às turras com o governador-geral e que também se retirara para o recôn-
cavo na noite de 9 de maio, iria articular a resistência. Aclamado capitão-mor pelo povo,
o prelado nomeou dois capitães, assentou o arraial a uma légua da cidade e definiu, de
imediato, a tática a ser empregada: dividiu os homens em trinta companhias ligeiras que
deveriam ficar de campana em diversos pontos dos arredores de Salvador, de maneira a
surpreender o inimigo quando este saísse para renovar provisões (Cf. Salvador, 1627:
445-6; Abreu, 1907: 120). Assegura Capistrano que “a falta de armamentos apropriados,
a escassez e por fim a carência completa de pólvora limitaram as operações à arma bran-
ca, à flecha, ao combate singular, à tocaia” (Abreu, 1907: 120). Quer dizer, a resistência
se configurou como uma guerrilha em moldes brasílicos, cuja tática preconizada pelo
bispo se mostraria adequada às condições do teatro da guerra: em meados de junho, caiu
o próprio comandante das tropas holandesas, colhido por um tiro de escopeta numa em-
boscada. O episódio foi dramático, enlevando os da resistência e aterrando os invasores,
porque o coronel Jan van Dorth teve o seu corpo trinchado pelos índios, “conforme seu
gentílico costume” (Cf. Salvador, 1627: 445-6).
Durante meses a luta correu dessa maneira e cumpre destacar apenas dois
pontos mais relevantes. Os holandeses, com plena hegemonia no mar, apresaram, apro-
283
ximadamente, cinqüenta naus (Cf. Salvador, 1627: 453) – entre as quais a que vinham os
padres da Companhia e frei Vicente do Salvador, que esteve detido por mais de 120 dias
– e, como de praxe, deram muitas assaltadas pelos engenhos, não sem serem molestados
pelas volantes da resistência (Cf. Salvador, 1627: 460). D. Marcos, alquebrado pela cam-
panha, que já era velho o bispo, morreu em 8 de outubro de 1624 (Cf. Salvador, 1627:
458), sendo rendido por Francisco Nunes Marinho, preposto do governador de Pernam-
buco, Matias de Albuquerque, o qual capitão-mor “foi continuando com os assaltos na
forma que o bispo havia ordenado” (Salvador, 1627: 460).
Segundo o bem informado frade baiano, testemunha presencial, enquanto re-
sistiam os moradores da Bahia, os governadores do Reino, D. Diogo de Crasto e D. Dio-
go da Silva – seguindo as orientações do conde-duque de Olivares, mas sem contarem
com um real sequer da bolsa de Filipe IV – despacharam, de imediato, duas caravelas de
socorro ao Brasil e, depois, mandaram vir o novo governador-geral, D. Francisco de
Moura, em flotilha de três caravelas, e Salvador Correia de Sá e Benevides, em um navio
que seguiria para o Rio de Janeiro, ambos levando reforço de soldados pagos e munições
de boca e de guerra. Chegando D. Francisco a Pernambuco, “pátria sua”, juntaram-se ao
governador o capitão Manuel de Sousa D’Eça, veterano de Guaxenduba e capitão-mor do
Pará, e Feliciano Coelho de Carvalho, filho do governador do Maranhão. Em seis carave-
lões guarnecidos de “80 mil cruzados de novos provimentos” – tudo doado por Matias de
Albuquerque – “se meteu todo o socorro que vinham nas caravelas, e se partiram do Re-
cife” (Cf. Salvador, 1627: 463). O reforço chegou ao arraial baiano em 3 de dezembro.
Entretanto, tudo isso eram providências emergenciais. É verdade que os ho-
landeses permaneciam praticamente sitiados na cidade em virtude da campana brasílica e
também é certo que os reforços remetidos viriam a protelar tal situação, mas a expugna-
ção do bem entrincheirado exército invasor, defendido por sua poderosa armada, requeria
investimentos de maior monta, uma vez que o golpe de misericórdia só se daria mediante
“uma operação mista de bloqueio naval e de sítio, extremamente dispendiosa mas geral-
284
mente considerada a solução final do problema” (Cabral de Mello, 1998: 49). Ora, con-
quanto a colônia lusa fosse considerada “quantité négligeable” pela Coroa de Espanha, a
tomada de Salvador pelos holandeses criava uma fratura no domínio castelhano na Amé-
rica e inferiorizava Filipe IV na correlação de forças da guerra de Flandres, para não di-
zer que a iminente perda do Brasil tiraria dos hispânicos as polpudas rendas do açúcar.
Sendo assim, o monarca mandou que se aprestassem armadas em Castela, Portugal e Bis-
caia para recuperar a Bahia (Cf. Salvador, 1627: 468). Deliberação acertada, uma vez que
recebida a notícia da conquista na Holanda, o conselho deliberativo da W.I.C. “imedia-
tamente ordenara o aparelhamento de uma nova força naval”, que seria remetida para o
Brasil sob o comando do burgomestre de Edam, Boudewijn Hendrikszoon (Cf. Wätjen,
1921: 90-1).
Tudo indica que Filipe IV não teve dificuldades para armar a esquadra restau-
radora. Por um lado, o metal americano, abundante na bolsa d’el-rei, terá financiado o
alistamento da tropa regular e os aprestos necessários para a jornada, que se arrumaram
em 32 naus da Marinha de Espanha (Cf. Salvador, 1627: 475). Por outro lado, a notícia
causara grande consternação em Portugal e a fidalguia acolheu, em peso, à convocação
d’el-rei81. Como observa Edmundson, “pela primeira e única vez achou-se a Corte espa-
nhola cordial e mesmo entusiasticamente apoiada pelo sentimento nacional português”
(Apud Wätjen, 1921: 90). Ademais, não faltaram recursos para guarnecer a frota lisboeta
de 4 galeões, 14 naus e 26 patachos e caravelas (Cf. Salvador, 1627: 468) e para munir a
soldadesca do necessário, pois a nobreza, o clero e os comerciantes concorreram com um
montante de duzentos e vinte mil cruzados, “que foi o gasto da armada, sem entrar nele a
fazenda de Sua Majestade” (Salvador, 1627: 473).
Em fevereiro de 1625 as frotas lusa e hispânica reuniram-se em Cabo Verde e
a 11 do mesmo mês, terça-feira de Carnaval, a esquadra “com doze mil homens, mil e
81 Frei Vicente do Salvador arrola, nominalmente, “os mais de cem fidalgos [que] só na armada de Portugal se embarcaram” (Cf. Salvador, 1627: 468-71).
285
quinze peças de artilharia e sessenta e seis naus” (Rocha Pitta, 1730:175) fazia vela em
direção ao Brasil, sob o comando do generalíssimo do mar e terra D. Fradique de Toledo.
Iniciava-se a chamada “Jornada dos Vassalos”, no dizer seiscentista de Bartolomeu Guer-
reiro (Cf. Abreu, 1918: 468). No sábado de Aleluia, 29 de março, a armada restauradora
fundeou na baía de Todos os Santos, ao tempo em que a caravela de Salvador Correia de
Sá, vinda do Rio de Janeiro “com duzentos e cinqüenta homens brancos e índios em qua-
tro canoas” (Salvador, 1627: 476), e o navio de Jerônimo Cavalcanti de Albuquerque –
filho do conquistador do Maranhão – “com dois irmãos seus e outros parentes e amigos e
cento e trinta soldados, todos sustentados à sua custa” (Salvador, 1627: 478), saído de
Pernambuco, se lhe agregaram (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 196). Durante vinte e três dias
de cerco, feriu-se grossa batalha de artilharia, “sem se deixar de ouvir estrondo de bom-
bardas, esmerilhões e mosquetes de parte a parte um quarto de hora, de dia nem de noi-
te”, anota frei Vicente (Salvador, 1627: 485). Em 30 de abril, os holandeses capitularam,
aceitando as condições impostas por D. Fradique de Toledo (Cf. Varnhagen, 1854-7b:
197-8), e a 1º de maio o exército restaurador entrou na cidade. Um mês depois, a armada
de Hendrikszoon apontava na barra, mas chegava fora de tempo o reforço holandês e, em
tempo seguro, o burgomestre de Edam decidir-se-ia pela retirada.
Embora devamos tributar à armada luso-hispânica os preitos pela restauração
da Bahia, havemos de admitir que sem a concorrência das companhias volantes da resis-
tência brasílica que sitiaram Salvador por um ano e não permitiram a ocupação do recôn-
cavo pelos holandeses, tudo poderia ter sido diferente no teatro da guerra baiana (Cf.
Cabral de Mello, 1998: 353). Quando mais não seja, a ação destra dos guerrilheiros des-
velou a eficiência tática de um estilo próprio de lutar, o que levará o analista a entrever,
sem pejo, que o “povo novo” da nação começava a forjar a sua identidade e a conquistar
a sua auto-confiança na luta pela defesa da terra em que germinava a nacionalidade, tal
como ocorrera na guerra do Maranhão e tal como ocorrerá na guerra de Pernambuco. É o
que reconhecemos num episódio corriqueiro da guerra, eternizado pela pena de frei Vi-
286
cente do Salvador. O homem comum, agindo ardentemente, toma as cores do herói sob o
olhar do cronista seu compatriota e essa transfiguração revela – pela ação do soldado e
pelo testemunho do escritor – que já reverberava no espírito coletivo aquele sentimento
solidário que liga espiritualmente o indivíduo ao seu povo fazendo de cada pessoa um
bravo na defesa da sua coletividade. Aqui, outra vez evocamos o estro do frade brasileiro
para sublimar o feito do infante baiano, um arquétipo do “povo novo” da nação e um
símbolo vivo do ethos brasílico:
“(...) sobre este roçar de matos e derribar casas houve alguns encontros (...). E aqui testificou o capitão Lourenço de Brito do negro Bastião (...), que se adiantou a todos, dizendo que sua frecha não chegava tão longe como o pelouro dos arcabuzes, e assim lhe era necessário pera empregá-la nos inimigos chegar-se mais perto deles, o que também fez em outros encontros. E uma vez, já andando com eles à espada, dizen-do-lhe os nossos negros que se retirasse, respondeu: ‘Não retira, não, sipanta, sipanta’, querendo nisto dizer que não era tempo de retirar quando brigavam já à espada, porque tinha experimentado dos holande-ses que não eram tão destros nesta arma como nas de fogo, e assim vin-do à espada tinha já o pleito por vencido.” (Salvador, 1627: 448)
A invasão de Pernambuco e a resistência brasílica
A derrota na Bahia não provocou mudanças significativas na estratégia global
dos holandeses em relação aos domínios de Filipe IV na América, especialmente no que
se referia à ação dos corsários financiados pela W.I.C., já que a Companhia “exercia a
pirataria em grande escala e a essa atividade principal devia verdadeiramente os seus
lucros” (Sombart apud Wätjen, 1921: 84). De fato, em março e julho de 1627, Piet Hein
remiria os prejuízos decorrentes da empresa frustrada no Brasil, ao tornar-se senhor da
baía de Todos os Santos por dois meses inteiros, da qual aventura conseguiria remeter à
Companhia 2.700 caixas de açúcar, além de tabaco, couros e algodão (Cf. Varnhagen,
1854-7b: 200; Wätjen, 1921: 91-2). Um ano depois, em feito que se tornou merecida-
mente legendário, o almirante pirata apoderou-se, nas águas do Caribe, da portentosa
“frota de prata” espanhola de 1628, cujo esbulho de 80 toneladas do metal e mais 60 qui-
287
los de ouro e outras mercadorias rendeu aos cofres da W.I.C., aproximadamente, 15 mi-
lhões de florins (Wätjen, 1921: 93; Edmundson apud Garcia, 1927b: 200).
Tal aporte de recursos viria a reacender nos holandeses os seus intentos de
conquista sobre a América portuguesa, mas, desviando-se da capital do Estado do Brasil,
decidir-se-iam a atacar a sua capitania mais próspera, o Pernambuco vestido de canaviais
e ponteado de engenhos. Em 1629, o Conselho dos XIX delineava os planos da emprei-
tada, mas a infanta Isabel, condessa de Flandres, teria avisado seu sobrinho Filipe IV dos
projetos da W.I.C. (Cf. Rocha Pitta, 1730: 181; Netscher apud Garcia, 1927b: 224). To-
davia, mais uma vez a Coroa de Espanha não envidaria esforços para salvaguardar a co-
lônia lusa sob seu domínio. Efetivamente, el-rei nomeou Matias de Albuquerque – irmão
de Duarte de Albuquerque Coelho, quarto donatário de Pernambuco – “superintendente
na guerra” (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 224) e determinou que ele seguisse para o Brasil
comandando os reforços que mandara aprestar em Lisboa. Qual não foi a surpresa do
futuro conde de Alegrete ao chegar à foz do Tejo e encontrar os reforços prometidos por
el-rei: “uma caravela com 27 soldados e algumas munições” (Coelho, 1654: 34).
Mesmo assim, Matias de Albuquerque fez vela para o Brasil em 12 de agosto
de 1629, aportou no Recife a 18 de outubro do mesmo ano (Cf. Coelho, 1654: 34) e, se-
gundo Varnhagen, que invoca depoimentos de “vários contemporâneos”, fez o que pôde
para reforçar as defesas da capitania (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 225). Entretanto, as pro-
vidências tomadas seriam de pouca efetividade frente ao poderio da esquadra holandesa,
cujos mastros se avistariam da vila de Olinda ao meio-dia de 14 de fevereiro de 1630 (Cf.
Coelho, 1654: 43). Comandada pelo almirante Hendrick Corneliszoon Loncq, a armada
era composta de 56 navios, guarnecidos de 3.780 marinheiros e de 1.170 canhões de to-
dos os calibres, e transportava um efetivo de 3.500 soldados, sob as ordens do comandan-
te-em-chefe do teatro de operações, Jonkheer Diedrik van Waerdenburch (Cf. Varnha-
gen, 1854-7b: 226; Wätjen, 1921: 98-9).
Na tarde do dia 15 de fevereiro, Waerdenburch desembarcou com 3.000 ho-
288
mens na praia de Pau Amarelo, enquanto Loncq tentava, debalde, entrar pela barra do
Recife, onde era contra-arrestado por Matias de Albuquerque, entrincheirado no forte de
S. Jorge (Cf. Albuquerque, 1630: 272). No dia seguinte, as colunas de Waerdenburch
avançavam em direção à Olinda e, quando se preparavam para varar o rio Doce, pelas 9
horas da manhã, feriu-se a primeiro recontro entre os holandeses e os da terra, pois Mati-
as de Albuquerque, sabedor do deslocamento das tropas inimigas, colocara-se naquela
posição com “550 infantes e 100 cavalos” e “mais alguns 200 índios”, liderados por An-
tônio Filipe Camarão (Coelho, 1654: 49), “chefe pitiguar de vinte e oito anos de idade, o
mais fiel e precioso dos auxiliares” (Abreu, 1907: 124). A desigualdade de forças, agra-
vada pela deserção da tropa pernambucana (Cf. Albuquerque, 1630: 273; Coelho, 1654:
49-50), resumiu a escaramuça a pouco mais de um quarto de hora, ao termo de qual perí-
odo os holandeses já transpunham o rio.
Matias de Albuquerque com os cem homens que não fugiram da luta retira-
ram-se para Olinda, onde permaneceram entrincheirados na principal via de acesso à vila,
donde repeliram três investidas do inimigo. Entretanto, era descomunal o desequilíbrio na
relação de forças e os holandeses não tiveram muita dificuldade em tomar a vila, asses-
tando-a a partir do seu cimo. Já na madrugada de 17 de fevereiro, depois de alguns pou-
cos combates, eram os batavos senhores do antigo burgo duartino. A população evadiu-
se, espavorida, mas, segundo Rocha Pitta, “conduzindo todos o mais precioso que possu-
íam e puderam carregar, causa pela qual acharam os inimigos o saque menos rico do que
imaginavam” (Rocha Pitta, 1730: 185; cf. Brito Freyre, 1675: 174-5). Entretanto, os ho-
landeses não ficariam de mãos abanando, pois “toparam com nada menos de 500 pipas de
vinho das Canárias (...) [e] não houve soldado que não fizesse a sua provisão de vinho,
azeite, farinha de trigo, uvas e azeitonas” (Cabral de Mello, 1998: 272-3).
Do lado da resistência, tombaram 45 homens, entre os quais o capitão André
Pereira Temudo, e saíram feridos outros 56 (Cf. Albuquerque, 1630: 283; Varnhagen,
1854-7b: 227-8). Matias de Albuquerque e a tropa remanescente retiraram-se para o por-
289
to do Recife, “onde eu tinha os dois fortes mui bem providos e o lugar mui bem entrin-
cheirado, e em ele sete companhias reforçadas” (Albuquerque, 1630: 283), mas logo o
general perceberia que a manutenção da povoação era uma quimera, tal a debandada dos
moradores, decidindo-se, enfim, por abrasar o lugarejo, o porto e os armazéns, de manei-
ra a tirar “das mãos ao inimigo mais de 4 milhões, saindo-lhe baldadas as contas que ha-
via feito na Holanda” (Coelho, 1654: 51). Outras providências tomadas foram a de botar
a pique quatro patachos carregados de pedra, bloqueando o porto, a de ajuntar a gente
que sobrara na Ilha Seca – ou Asseca –, na outra margem do Beberibe, e a de guarnecer
os fortes de São Francisco e de São Jorge, os quais defendiam a entrada da barra.
Entretanto, o avanço holandês resultaria na rendição dos fortes a 1º de março,
depois de duas semanas de assesto (Cf. Coelho, 1654: 53-62). Impôs-se a retirada e o
inimigo tomou o istmo, onde logo levantaria o forte do Brum (Cf. Barlaeus, 1647: 142), e
ocupou a ilha de Antônio Vaz, apoderando-se do convento de Santo Antônio, que con-
verteu em uma cidadela – o depois forte do Ernesto (Cf. Barlaeus, 1647: 143) – e iniciou
os trabalhos para a edificação do forte das Cinco Pontas (Cf. Barlaeus, 1647: 143;
Wätjen, 1921: 105).
Em face das novas condições, Matias de Albuquerque tomou duas medidas
que definiriam a estratégia a ser empregada na resistência contra o invasor e que perdura-
ria por todo o período da resistência. Por um lado, vendo-se na contingência da perda do
porto do Recife, “coração dos espíritos de Pernambuco” (Brito Freyre, 1675: 179), o ge-
neral resolveu-se a assentar um arraial em um colina situada a meio caminho entre a vila
de Olinda e o povoado do Recife, “a uma légua de ambas as praças” (Brito Freyre, 1675:
182), “perto do rio Capibaribe, e ainda mais do riacho Paranamirim, com boa água e le-
nha, e em posição apropriada para ser socorrido” (Coelho, 1654: 64). Implantado na en-
trada da fertilíssima várzea, o arraial do Bom Jesus localizava-se em um sítio estratégico,
na confluência dos caminhos entre o porto, a vila e os engenhos de Pernambuco, Itama-
racá e Paraíba. Por outro lado, ponderando a gritante desigualdade de forças, certamente
290
o general terá se valido das experiências das guerras da Bahia e do Maranhão, que capi-
tães tinha, veteranos de ambas (Cf. Cabral de Mello, 1998: 353), para eleger como priori-
tária a tática que sustentara a vitória luso-brasileira nas duas memoráveis campanhas.
Como anota Duarte de Albuquerque Coelho,
“Em tão duras e grandes impossibilidades, que cada dia cresciam com a falta de tudo, para poder conservar-se ali o general estava de ânimo constante e desvelado em tolerá-las, e até vencê-las, procurando ainda a defesa: achando seu infatigável cuidado para fazê-lo, o que o mesmo tempo lhe negava; porque formou quatro tropas de 12 homens cada uma, e alguns índios (...), para que, andando perto da vila, não deixas-sem entrar nem sair dela pessoa alguma. (...) Não foi só para este efeito que se organizaram estas partidas mas também para impedir, quanto fosse possível, que o inimigo saísse às hortas da mesma vila, sem es-torvo, quando não fosse muita gente. Na [horta] de Manuel Valente de-golamos-lhe de uma surtida 34 homens; na ermida de S. João, junto à vila, 19, e ficaram 3 prisioneiros (...).” (Coelho, 1654: 53-4)
As notícias da implantação da praça fortificada e, mormente, do sucesso das
sortidas dos “soldados ventureiros volantes” (Calado, 1648a: 54) atraíram para o arraial,
que já contava com 300 índios de Filipe Camarão (Cf. Brito Freyre, 1675: 183), morado-
res de toda a circunvizinhança, inclusive da Paraíba (Cf. Wätjen, 1921: 103), “aventurei-
ros, senhores de engenho sós ou seguidos de escravos, índios aldeados” (Abreu, 1907:
124), de sorte que, em breve tempo, Matias de Albuquerque já contava com 22 compa-
nhias ligeiras de 12 homens cada (Cf. Brito Freyre, 1675: 185), as quais colocariam em
polvorosa o inimigo sitiado. A tática característica da guerra brasílica revelar-se-ia, como
nas experiências anteriores, extremamente eficaz, como assegura o donatário de Pernam-
buco em outra passagem de suas memórias da guerra:
“Sua utilidade cada dia se fazia mais notória pelo grande temor que o inimigo foi delas concebendo. Não ousava sair nem mesmo às hortas da vila que ocupava. Com a presença destes capitães de emboscadas, não só se lograva o presente efeito, como de futuro servia ela muito, vedan-do-lhes, com este receio, o comerciar com os moradores, e obstando-lhes, por seis anos, de apoderarem-se da campanha (...).” (Coelho, 1654: 57)
291
Com efeito, segundo Evaldo Cabral de Mello, a chamada “guerra lenta” (Cf.
Rocha Pitta, 1730: 190) seria a estratégia preponderante durante todo o período da resis-
tência, demarcado pela queda de Olinda, em 1630, e pela retirada das tropas luso-
brasileiras para a Bahia, em 1637 (Cf. Cabral de Mello, 1998: 15 e 39). Segundo este
autor, a estratégia tinha como objetivo precípuo “a contenção do inimigo no Recife” (Ca-
bral de Mello, 1998: 47) e consistia, por um lado, na manutenção de uma ou duas praças
fortes – o arraial de Bom Jesus e o forte de Afogados, desde 1630, e somente o arraial
após a perda do forte, em 18 de março de 1633 (Cf. Cabral de Mello, 1998: 34 e 64) – as
quais desempenhavam “uma função estratégica”, pois se destinavam a dar abrigo às “for-
ças convencionais”, ou seja, à artilharia e às tropas regulares (Cf. Cabral de Mello, 1998:
351). Por outro lado, o cerco se faria, efetivamente, através da implantação de uma “linha
de postos avançados, as estâncias ou redutos” (Cabral de Mello, 1998: 34 e 351), coloca-
da entre as posições fortificadas e o exército holandês, a qual cumpria uma “função táti-
ca” da maior importância: “no espaço entre as estâncias, vagavam as companhias volan-
tes, cujas emboscadas tinham o objetivo de impedir a penetração do inimigo” (Cabral de
Mello, 1998: 351).
De acordo com a teoria do diplomata pernambucano, “o recurso à guerrilha
originou-se não numa concepção militar mas numa conveniência prática” (Cabral de
Mello, 1998: 351), uma vez que “devido à impossibilidade do emprego estratégico do
poder naval, a resistência de Pernambuco teve de basear-se na defesa local, isto é, na
guerra terrestre” (Cabral de Mello, 1998: 33). Fundamentando-se no contexto do “pacto
colonial” e na “teoria econômica clássica”, o autor propõe que teria havido uma “divisão
de tarefas” entre a Coroa de Filipe IV e as tropas da resistência, uma vez que “o emprego
do poder naval tendia a maximizar os gastos da metrópole; a defesa local, os da colônia”
e, sendo assim, “a estratégia lusohispana na guerra da resistência (...), procurou, por con-
seguinte, combinar poder naval e defesa local, segundo a disponibilidade relativa de am-
bos ‘fatores’.” (Cf. Cabral de Mello, 1998: 28-9).
292
O problema é que Filipe IV, como aliás observa o próprio Cabral de Mello,
jamais abriu a sua bolsa para financiar uma esquadra restauradora nos moldes daquela
enviada para recuperar a Bahia, limitando-se a remeter reforços minguados para a colô-
nia, como o fez com as “armadas de socorro” de D. Antônio de Oquendo (1631) e de D.
Lope de Hoces (1635) (Cf. Cabral de Mello, 1998: 32). Concordamos que a posição de-
clinante da Espanha no contexto das guerras européias e a própria crise da economia me-
tropolitana não permitiriam rasgos de generosidade do Habsburgo, mas daí a dizer que a
chamada “guerra de usura” (Cabral de Mello, 1998: 33) empreendida no Brasil deveu-se
não ao “descaso castelhano pela sorte de uma colônia lusitana” (Cabral de Mello, 1998:
36) mas a um “programa” destinado a “aliviar o peso fiscal iniquamente concentrado
sobre Castela” (Cabral de Mello, 1998: 35), é demais. Ora, o que sustenta o chamado
“pacto colonial” é a ética da vassalagem, ou seja, a troca de bens produzidos na colônia,
sob a base do “princípio do exclusivo colonial” (Novais, 1968: 53), pela proteção d’el-
rei, senhor da terra e das armas. Para se ter uma idéia dos recursos aplicados na defesa da
colônia, basta dizer que, no início do século XVII, em pleno boom açucareiro, os efeti-
vos regulares que guarneciam a capital do Estado do Brasil e o principal centro produtor
da especiaria que enchia os cofres da Coroa eram insignificantes: a “tropa paga” resumia-
se a 252 homens em Salvador e a 130 em Pernambuco (Cf. Cabral de Mello, 1998: 223).
Portanto, nunca houve “pacto” algum entre o monarca imperialista e a colônia usurpada,
situação que não mudaria durante a guerra contra o holandês. Aliás, sustentamos a tese
do descaso castelhano pois temos demonstrado neste trabalho que durante todo o período
da chamada “União Peninsular”, mesmo quando a Espanha conhecia o seu período áureo
nas finanças, na marinha e nas armas, a Coroa de Castela pouco ou quase nada faria para
se engajar na luta pela salvaguarda da colônia lusa na América – foi assim na conquista
da Paraíba, na ocupação da costa leste-oeste e na guerra do Maranhão. Quando houve por
bem recuperar a Bahia aos holandeses encurralados em Salvador, o fez para arrostar o
seu inimigo na guerra européia e, mesmo assim, dividindo as despesas com a nobreza e o
293
clero de Portugal. Agora, com o orçamento apertado em face de suas veleidades imperia-
listas, voltaria o Habsburgo a incorrer no absenteísmo oportunista que sempre caracteri-
zou a prática da dinastia em relação ao Brasil, fato observado pelo insuspeito Wätjen
(1921: 109-10). Assim, sem arredar um palmo nas políticas de arrecadação, Filipe IV
avançava célere na limitação das despesas, como bem resume Cabral de Mello:
“(...) os recursos ordinários cobrados pela Coroa só foram aplicados à guerra um ano e meio antes da rendição da Paraíba, e um ano antes da capitulação em Itamaracá. Caso isto se tenha verificado em Pernambu-co a partir de 1633, já terá sido de modesta utilidade, tendo em vista que a desorganização do sistema açucareiro havia reduzido substanci-almente a renda do dízimo.” (Cabral de Mello, 1998: 181-2)
Por outro lado, achamos por bem relativizar a idéia de que a escolha estraté-
gica de Matias de Albuquerque tenha sido, tão somente, um fruto das circunstâncias, ou
seja, que a prioridade dada à ação tática da companhias ligeiras decorresse, tão somente,
de uma “conveniência prática” (Cabral de Mello, 1998: 351) e que se constituiria, de
fato, em um “recurso meramente defensivo” (Cabral de Mello, 1998: 354), trazido à baila
em função da “impossibilidade do emprego estratégico do poder naval” (Cabral de Mel-
lo, 1998: 33). É óbvio, como avalia, por exemplo, o visconde de Porto Seguro (Cf. Var-
nhagen, 1854-7b: 237), que a “fortuna da guerra”, seria outra se a Coroa de Castela tives-
se remetido uma armada para arrostar o inimigo em igualdade de condições, mas é, no
mínimo, temerário, negligenciar o fato de que as táticas brasílicas, que tantas vezes ha-
viam selado o destino dos freqüentes conflitos na colônia, já não se impusessem como
um traço da cultura militar no Brasil. Quer dizer, certamente as carências econômicas e
as limitações estratégicas advindas do absenteísmo de Filipe IV terão influído na tomada
de decisão do comando da resistência, mas não podemos esquecer que os capitães de
Matias de Albuquerque eram soldados encaniçados na guerra brasílica e terão aconselha-
do o inexperiente general (Cf. Cabral de Mello, 1998: 352) a adotar uma estratégia que se
impunha, sobretudo, em virtude de sua eficácia, relevada nos episódios mais recentes da
luta pela salvaguarda do território, a expugnação da França Equinocial (1614) e a restau-
294
ração da Bahia (1625).
Estranhamos esta postura de Cabral de Mello porque quando ele vai analisar
a adoção da estratégia holandesa para a invasão de Pernambuco, ele parte do princípio de
que “a preferência da W.I.C. pela guerra de bloqueio e assédio era, em primeiro lugar,
econômica”, mas frisa que “recomendavam-na a formação e a experiência dos soldados
neerlandeses, ou (...) da cultura militar do país.” (Cabral de Mello, 1998: 54). Ou seja, na
análise sobre a decisão batava, o autor articula as determinações econômicas às influên-
cias da cultura na explicação, mas quando teoriza sobre o caso brasileiro, cai naquele
reducionismo econômico que tanto empobrece a interpretação. Sendo assim, de duas,
uma: ou Cabral de Mello não reconhece que o processo histórico quinhentista tenha pro-
duzido uma tradição militar caracteristicamente brasileira que se afirmava por sua eficá-
cia ou estará incorrendo, senão num etnocentrismo às avessas, ao menos, num pecado
metodológico, ao desconsiderar na análise da decisão doméstica um fator que destaca na
decisão estrangeira. Entretanto, a primeira alternativa não se aplica, a considerarmos o
que diz o autor nas seguintes passagens:
“(...) aprendida dos índios durante decênios de convívio e conflito ao longo da marinha ou nos fundos do sertão, a guerra volante já se havia incorporado em começos do século XVII à experiência militar dos co-lonos lusobrasileiros, proporcionando a sertanistas e a soldados os mei-os de se oporem a estrangeiros, como foi o caso da conquista do Mara-nhão.” (Cabral de Mello, 1998: 323) “A influência da cultura militar dos indígenas exerceu-se não no tocan-te ao equipamento militar mas à assimilação de suas táticas. Já no co-meço do século XVII, afirmava-se a noção de uma arte ou estilo militar próprio do Brasil e mais apropriado às suas condições que qualquer ou-tro.” (Cabral de Mello, 1998: 349)
Seja como for, o fato é que a estratégia empregada por Matias de Albuquer-
que foi de grande eficácia. Nos dois primeiros anos da guerra, os holandeses permanece-
ram encurralados no Recife (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 241). Depois que o exército da
resistência repeliu o ataque do inimigo ao arraial ainda em construção, em 14 de março
295
(Cf. Coelho, 1654: 68), elevou-se o moral da tropa e, durante todo o ano de 1630, as vo-
lantes brasílicas fustigaram o inimigo em seu terreno, dando sortidas contra as posições
fortificadas, fazendo emboscadas e provocando escaramuças (Cf. Coelho, 1654: 68-80).
O cerco era de tal modo apertado, que “em Antônio Vaz ninguém se deixava ver fora das
fortificações a menos que quisesse servir de alvo aos escopeteiros adversários” (Wätjen,
1921: 107). A fome era tão avassaladora, que os sitiados foram obrigados a comer gatos e
até ratos, como informa um soldado das hostes neerlandesas (Rischoffer apud Wätjen,
1921: 108).
No ano seguinte, permaneceram acossados os holandeses pela chamada guer-
ra volante, especialmente depois da chegada, em inícios de junho, de Martim Soares Mo-
reno (Cf. Coelho, 1654: 87), o legendário fundador do Ceará, um mestre nas “artimanhas
da guerra brasílica” (Cabral de Mello, 1998: 353). Assim, embora o inimigo consolidasse
a sua posição no Recife, plantando fortes no terreno conquistado e mantendo a senhoria
do porto, não alcançavam os holandeses o objetivo de expandir a conquista, de maneira a
compensar a W.I.C. pelos capitais investidos na empreitada. Imperava o impasse na rela-
ção de forças: o invasor não conseguia ampliar o seu domínio, a resistência não lograva
debelar o inimigo. Em vista dessa situação, o Conselho dos XIX pressionava os coman-
dantes militares “a despertarem de sua letargia e tratarem de subjugar as capitanias de
Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte” (Apud Wätjen, 1921: 109) e, para que reali-
zassem tal intento, determinou a remessa de uma armada de reforço para o Brasil, com
tropas frescas e mantimentos. Entretanto, o resultado da providência não foi o esperado.
Primeiro, a notícia logo correu pela Europa e comentava-se que o objetivo da esquadra de
Andriaan Pater era o seqüestro da “frota de prata”, o que levou o conde-duque de Oliva-
res a ordenar, incontinênti, o apresto de uma armada, a vir sob as ordens de D. Antônio
de Oquendo, para contra-arrestar os supostos corsários. Aproveitando a ocasião, o minis-
tro de Filipe IV embarcou um destacamento de reforço para o Brasil, comandado pelo
conde de Bagnuolo (Cf. Wätjen, 1921: 110).
296
Em 12 de setembro de 1631, toparam-se a armada espanhola de 20 navios de
guerra – acompanhados das 12 caravelas de reforço e de 24 navios mercantes comboia-
dos desde Salvador – e as 16 naus da esquadra holandesa, que chegara ao Recife em abril
daquele ano (Cf. Coelho, 1654: 94-5; Wätjen, 1921: 110). Em que lhe pesasse a desi-
gualdade das forças, o desvelo do comandante holandês (Cf. Brito Freyre, 1675: 215)
faria com que o recontro resultasse naquilo que hoje chamamos de “empate técnico”,
pois remanesceram navios e homens de lado a lado, desembarcando o reforço holandês
no porto do Recife e as tropas de Bagnuolo na Paraíba (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 238-9;
Wätjen, 1921: 111-3). Todavia, o saldo da batalha naval foi negativo para ambas as par-
tes. Segundo Duarte de Albuquerque Coelho, que vinha embarcado em uma das carave-
las de reforço (Cf. Coelho, 1654: 91), “a perda que tivemos [foi] de mais de 1.500 ho-
mens de guerra e mar (não sendo menor a do inimigo)” (Coelho, 1654: 98). Encabeça-
vam a lista de baixas, o almirante Pater, do lado holandês, e o vice-almirante Francisco
de Valecilla, da armada espanhola (Cf. Wätjen, 1921: 111-2).
Melhor sorte não tiveram os neerlandeses nas incursões que fizeram em vir-
tude da chegada das tropas vindas pela armada de Pater. Tirante a implantação, sem re-
sistências, do forte Orange (Cf. Barlaeus, 1647: 143) numa restinga deserta da ilha de
Itamaracá, em maio de 1631 (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 236-7; Wätjen, 1921: 116), o ini-
migo foi repelido em suas tentativas contra a Paraíba e o Rio Grande do Norte, em de-
zembro do mesmo ano (Cf. Coelho, 1654: 104-13), e contra o cabo de Santo Agostinho,
em fevereiro de 1632 (Coelho, 1654: 117-19). De mais a mais, em virtude do cerco aper-
tado em que se encontravam, os batavos se viram obrigados a abandonar Olinda, de mo-
do a concentrarem as suas defesas em só ponto do território conquistado, e isto fizeram
em fins de novembro de 1631, não sem antes incendiarem a vila, “para que o local ficas-
se imprestável para o inimigo” (Wätjen, 1921: 114). O relato do desenlace da campanha
mangrada contra o Rio Grande do Norte demonstra bem a situação dos invasores naquela
conjuntura:
297
“(...) procurando todavia tornar útil a viagem, tentou tomar algum gado que por ali abundava; porque, tanto na povoação do Recife, como nos outros postos que ocupava, não havia carne fresca. Mas nem isso pode conseguir, por lhe estorvar Matias de Albuquerque Maranhão, não só com a gente e índios que levava, como com a muita que se lhe ajuntou das aldeias circunvizinhas. Unidos assim puderam retirar o gado para o centro, e subtraí-lo à cobiça do inimigo, que, estando na posse do Reci-fe havia quase dois anos, ainda não lhe era possível (nem lho consentia o nosso general) comer uma só vaca. Alimentavam-se somente com os gêneros que a Holanda lhes enviava; pelo que, pode dizer-se sem es-crúpulo que, estando eles em terra havia tanto tempo, ainda navegavam, pois que não tinham outros mantimentos mais que salgados.” (Coelho, 1654: 113)
A ventura da guerra, contudo, mudaria de rumos em breve tempo. O impasse
provocado pela resistência brasílica estava a provar que a estratégia dos holandeses não
funcionava no teatro da guerra tropical e os diretores da W.I.C., impacientes com aquela
empresa que só consumia recursos e não rendia dividendos, instavam os comandantes
neerlandeses a avançarem sobre as várzeas ocupadas pelos engenhos, oficiando-lhes disto
em “linguagem severa e tom sarcástico” (Wätjen, 1921: 115). Por outro lado, o destaca-
mento de 580 soldados europeus (Cabral de Mello, 1998: 226) vindos com a armada de
D. Antônio de Oquendo, além de não representar um acréscimo significativo no contin-
gente mobilizado contra o invasor82, acabou por se constituir num fator de desagregação
entre as fileiras da resistência. Em primeiro lugar, porque a chegada do conde de Bag-
nuolo dividiu o comando, antes sob plena responsabilidade de Matias de Albuquerque, o
que feriu suscetibilidades e acarretou desentendimentos no que concernia à estratégia a
ser empreendida na guerra (Cf. Cabral de Mello, 1998: 41-2 e 355-6). Em segundo lugar,
porque a presença da tropa européia melindrou os infantes da terra, os quais se sentiram
diminuídos em virtude do tratamento que passou a lhes ser dispensado, do que teria resul-
tado uma “deserção maciça” (Cabral de Mello, 1998: 227). Realmente, como relata frei
82 Segundo Cabral de Mello, em 1632, “os efetivos somavam 5.512, dos quais: 3.095 milicianos, 500 orde-nanças de cavalaria, 417 irregulares, 200 índios, 900 soldados espanhóis e napolitanos sob o comando do conde de Bagnuolo e 400 soldados enviados de Portugal.” (Cabral de Mello, 1998: 226).
298
Manuel Calado,
“(...) começou-se a fazer mais caso dos capitães, e soldados que haviam vindo do Reino; e os soldados de Pernambuco, que até então haviam defendido a terra, e reprimido o inimigo, com tanto esforço, e valor, metidos por os matos, passando rios descalços, e por lamas, e atoleiros, com grandes descômodos, vendo que não eram tratados com o amor, e benevolência que o General Matias de Albuquerque os havia até então tratado, uns se foram indo para as suas casas, outros se afrouxaram do contínuo trabalho, assim diurno, como noturno, com que andavam o-primidos, dizendo que trabalhassem os soldados, que haviam vindo do Reino, pois eram pagos, e que soubessem, e experimentassem ao que sabia o andar por matos e atoleiros, o que eles até então tinham feito, sem outro interesse mais que o zelo e a defensão da pátria (...).” (Cala-do, 1648a: 53-4)
Entretanto, o catalisador da mudança na dinâmica da guerra seria a defecção
de Domingos Fernandes Calabar, que se bandeou para o lado holandês em 20 de abril de
1632 (Cf. Coelho, 1654: 120; Calado, 1648a: 54; Brito Freyre, 1675: 239). Muita tinta já
se verteu na apreciação desse episódio e as opiniões se dividem em relação à real respon-
sabilidade de Calabar na mudança dos destinos da guerra (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 241-
2; Abreu, 1907: 126; Oliveira Lima, 1895: 71; Wätjen, 1921: 119; Bomfim, 1929: 274-
5; Calmon, 1950: 197; Cabral de Mello, 1998: 247 e 361), mas a verdade é que há uma
coincidência significativa entre a deserção do mulato de Porto Calvo e o avanço holan-
dês. Não vamos entrar nessa polêmica, nem para engrossar o coro dos que vilipendiam a
memória de Calabar e nem para fazer eco aos que se esforçam para redimi-la, mas have-
mos de admitir que a ajuda do soldado que “assistiu e serviu ao princípio desta guerra”
(Coelho, 1654: 120), um “guia ousado e ladino” (Wätjen, 1921: 119) e “prático dos luga-
res da terra e portos do mar” (Brito Freyre, 1675: 239), seria um handicap importante
para os holandeses.
O fato é que dez dias após a apostasia de Calabar, a 1º de maio de 1632, fe-
riu-se o evento que, verdadeiramente, “constituiu uma virada na fortuna da guerra”, o
ataque a Igaraçu (Cf. Cabral de Mello, 1998: 62). Segundo a crônica coeva, o cometi-
mento foi ideado e dirigido por Calabar e o seu bom êxito deveu-se aos préstimos e habi-
299
lidades do trânsfuga. A ação foi célere e precisa. Ou “cirúrgica”, como dizem os moder-
nos. Segundo Duarte de Albuquerque Coelho, no anoitecer de 30 de abril, Waerdenburch
e um destacamento de 500 homens deixaram o Recife, sendo orientados por Calabar e,
“como levou tão bom guia, não foram sentidos no caminho que seguiram”. Pelas 8 da
manhã do dia seguinte, Waerdenburch chegou em Igaraçu e “começou a saquear a vila
com muita facilidade, e degolou ali trinta pessoas”. Depois de vazar as pipas de vinho
para que os soldados não se excedessem no esbulho e recolher as mulheres à Igreja para
evitar o estupro em massa, o general apoderou-se da prataria do templo, manietou os fra-
des descalços do convento franciscano e foi embarcar os seus homens nas barcas vindas
de Itamaracá, que os esperavam na barra do rio (Cf. Coelho, 1654: 121-2; Wätjen, 1921:
120).
Pela primeira vez na guerra de Pernambuco, rompia-se o cerco que sustentara
o impasse provocado pela estratégia da resistência e, como bem observa Cabral de Mello,
o sucesso do ataque à Igaraçu viria a provocar uma mudança na estratégia holandesa: a
suspensão dos “planos ambiciosos de sítios das praças-fortes” em favor de “uma série de
ataques pontuais contra objetivos civis no interior da capitania” (Cabral de Mello, 1998:
62). Desta maneira, o povo aterrorizado pelos ataques não teria outra alternativa senão
fugir, enquanto à elite açucareira seria dada a oportunidade do colaboracionismo. Quer
dizer, intimidando a população civil, o invasor conseguiria desarticular as “bases de a-
poio locais” da resistência e mitigar o cerco que lhes era impingido (Cf. Cabral de Mello,
1998: 62-3). Basta compararmos os discursos de Waerdenburch e de Duarte de Albu-
querque Coelho sobre o episódio para percebermos que, realmente, “a Deusa da Fortuna
voltava-se em favor dos conquistadores” (Brandenburguer, 1917 apud Wätjen, 1921:
119):
“(...) se se pudesse efetuar, de quando em vez, mais algumas dessas rá-pidas incursões, incendiando e massacrando, lançar-se-ia não somente uma grande consternação entre os habitantes mas também se causaria até a [Matias de] Albuquerque, em seu arraial, uma grande falta de di-versas coisas indispensáveis, tanto mais quando se diz que Igaraçu tem
300
mantido anualmente no arraial uma companhia, além de sua contribui-ção ordinária.” (Waerdenburch apud Cabral de Mello, 1998: 62) “Esta entrada que o inimigo efetuou, persuadido e guiado por Calabar, foi sentida não só por ser a primeira, mas também porque facilitaria ou-tras a que o instigaria sua natural cobiça, pelo interesse dos roubos, e porque se iriam fazendo senhores do campo; e se por esta causa os mo-radores o desamparassem, abandonando (como alguns começavam a fazer) suas casas, para se internarem na mais espessas florestas, por fu-gir à tirania do inimigo, ficávamos privados dos grandes serviços que prestavam, morando perto, com seus carros, pretos e cavalos, para aju-darem a comboiar para o Real [arraial] todo o necessário, e para plantar roças e mais mantimentos, como arroz e legumes.” (Coelho, 1654: 122)
Além disso, os holandeses começavam a amanhar-se à guerra brasílica (Cf.
Cabral de Mello, 1998: 361), certamente adestrados por Calabar, e já surpreendiam os da
resistência com os seus próprios estratagemas. Em 19 de outubro de 1632, o inimigo ar-
mou uma emboscada bem sucedida às margens do Beberibe, fato que rendeu a seguinte
observação do donatário de Pernambuco: “foi a primeira que nos fez, porque já o tempo
o ensinava a imitar o nosso modo de fazer-lhe a guerra até então, aprendendo tanto a sua
custa, que se tornaram mui bons mestres, como depois o experimentamos.” (Coelho,
1654: 127).
Ou seja, naquela altura da guerra, depois de amargarem dois anos de sítio e
sentindo o doce de uma vitória conseguida em virtude dos obséquios de um desertor e a
expensas da população indefesa, os holandeses reviam a sua “ética militar, tão devedora
da mentalidade nobre”, caracterizada por “valores como a coragem e a lealdade, firme-
mente embutidos no comportamento profissional” (Cabral de Mello, 1998: 360-1): por
um lado, atacavam e barbarizavam a população civil e, por outro, adaptavam a sua “cul-
tura militar” aos preceitos da guerra brasílica, evidentemente mais eficaz do que a sua
guerra convencional na condições movediças do trópico (Cf. Wätjen, 1921: 120-1; Ca-
bral de Mello, 1998: 325-41).
Enquanto isso, do lado luso-brasileiro, aguçava-se a dissensão provocada pe-
la chegada das tropas européias de reforço, na medida em que o inimigo ia tendo sucesso
301
em suas arremetidas, especialmente em razão da “ofensiva maciça contra a linha de es-
tâncias que o isolavam no Recife” (Cf. Cabral de Mello, 1998: 355-6). O pomo da dis-
córdia entre o conde de Bagnuolo e os capitães da terra era, precisamente, a estratégia a
ser empreendida: dividia-se a oficialidade entre dois partidos, o que defendia a manuten-
ção da guerra volante e o que reivindicava o empreendimento da guerra convencional
(Cf. Cabral de Mello, 1998: 355-6). Ao contrário dos holandeses, pensava Bagnuolo em
adaptar a guerra brasílica aos preceitos da guerra européia (Cf. Cabral de Mello, 1998:
365-6), definida por Cabral de Mello, com rara felicidade, como “a guerra de Flandres,
guerra de ricos” (Cabral de Mello, 1998: 319).
Segundo o autor de Olinda restaurada, depois da queda do forte de Afoga-
dos, em 18 de março de 1633 (Cf. Coelho, 1654: 138-40), com a conseqüente franquia da
várzea do Capibaribe ao inimigo, o debate recrudesceu. A partir de então, os capitães da
terra passariam a defender a alternativa da “guerra volante à outrance” (Cabral de Mello,
1998: 356-7), enquanto o conde napolitano, temeroso de ver o seu comando pulverizado
(Cf. Cabral de Mello, 1998: 358), apegava-se ao principal preceito da guerra de Flandres,
“uma guerra de sítios pelo controle das praças-fortes” (Cabral de Mello, 1998: 366).
Bagnuolo argumentava que não tinha efetivos suficientes para sustentar o arraial e em-
preender uma ofensiva daquela ordem (Cabral de Mello, 1998: 355), acrescentando que,
dadas as condições do terreno, não teria como transportar a artilharia para lugar seguro
(Cabral de Mello, 1998: 366). A posição dos defensores do uso da guerrilha como uma
estratégia global, bem mais lúcida e pragmática, Cabral de Mello extraiu da Carta ou
papel em que um capitão desta guerra responde a outro o que lhe parece do estado
presente desta capitania, discursando a matéria com algumas razões em ordem do re-
médio dela, de 25 de abril de 1633:
“O missivista anônimo não lhe formula as regras [da guerra volante à outrance], dando-as por assentes; apenas as menciona de raspão: a ine-xistência de confrontações decisivas como batalhas campais e sítios; a inutilidade de praças-fortes e posições fortificadas; a mobilidade (‘a maior substância desta guerra consiste na velocidade da nossa gente’);
302
a surpresa e os ataques contínuos destinados a desgastar a resistência inimiga etc. (...) As posições a serem mantidas eram os engenhos e fa-zendas, não as fortalezas do litoral. Guardar no arraial o grosso do e-xército era oferecer aos holandeses a oportunidade de desfechar um golpe definitivo na resistência.” (Cabral de Mello, 1998: 357)
Mostrava fina visão da conjuntura o capitão da terra, mas a posição de Bag-
nuolo prevaleceu. E com ela, o progressivo desbarate da resistência, que, no entanto, não
caiu sem lutar com denodo. Os holandeses, que haviam recebido um reforço de 3.000
homens em dezembro de 1632 (Cf. Coelho, 1654: 133), depois de verem baldados os
seus esforços para tomar o arraial de Bom Jesus (Cf. Wätjen, 1921: 122), ocuparam a ilha
de Itamaracá em 21 e 22 de junho de 1633 (Cf. Coelho, 1654: 150-1). Em novembro da-
quele ano, receberam os invasores mais reforços (Cf. Wätjen, 1921: 124) e marcharam
sobre o Rio Grande do Norte, cujo forte capitulou em 12 de dezembro (Cf. Coelho, 1654:
174-6). Em fevereiro de 1634, os batavos tentaram ocupar a Paraíba, mas foram rechaça-
dos no Cabedelo (Cf. Coelho, 1654: 180-4). Todavia, depois de receberem um outro re-
forço de 4.000 homens e 1.500 marinheiros (Cf. Wätjen, 1921: 126-7), puderam final-
mente conquistar a capitania real, em 23 de dezembro de 1634 (Cf. Coelho, 1654: 207-
24).
A ofensiva do invasor era renhida e as suas vitórias sucessivas, mas logravam
os defensores safarem-se pelos matos, quando caía a posição que defendiam. Em junho
de 1635, o arraial de Bom Jesus foi expugnado, depois de dura porfia, em “que passou de
mil homens os mortos e de setecentos os feridos” (Coelho, 1654: 254). No mês seguinte,
capitulava forte de Nazareth, no cabo de Santo Agostinho, para onde Matias de Albu-
querque, perdido o arraial, transferira “o grosso de suas forças” (Wätjen, 1921: 131), a-
lém dos moradores que fugiam ao assesto holandês sob a sua proteção. Seria inevitável
uma nova retirada em direção ao sul, pois o conde de Bagnuolo já se escafedera com os
seus terços para Alagoas e o inimigo se aquartelara em Porto Calvo, enquanto o general
ainda resistia no rio Formoso, onde, assegura Varnhagen, “durante os quatro meses que
[lá] permaneceu não deixou de achar-se a braços com o inimigo”, acrescentando que “o
303
expediente das companhias de emboscada, que tanto lhe havia aproveitado em outras
ocasiões, ainda lhe valeu nesta, prestando de novo mui valiosos serviços o herói índio
Camarão” (Varnhagen, 1854-7b: 261). Mas a posição não se sustentaria em face do a-
vanço batavo e decidiu-se Matias de Albuquerque pela retirada. Reuniu a população do
distrito de Serinhaém, “mais de três mil moradores e de quatro mil índios” (Coelho,
1654: 257), e com eles partiu ao encontro do conde napolitano. Duarte de Albuquerque
Coelho conta como se realizou a diáspora pernambucana:
“Sessenta índios iam adiante com os seus capitães (...) a fim de desco-brirem os caminhos e bosques, no que eram práticos por terem nascido neles. Sucediam [seis] capitães (...). Sucediam-lhes os moradores que se iam retirando, e levariam duzentos carros, atrás dos quais marcha-vam [sete] capitães (...). Formava a retaguarda o capitão-mor Antônio Filipe Camarão com oitenta de seus índios armados de mosquetes e ar-cabuzes. (...) Seria fastidioso nomear todos os moradores que se retira-ram. Direi somente que o nosso general procurou muito fazer que estes fossem os de mais consideração, pelo que poderiam servir o inimigo se os achasse em suas casas. Logo se viu bem o acerto desta providência; porque entrando ele não achou quem lhe desse um carro, farinha ou qualquer outra coisa. O que mais o exasperava era ver os engenhos e fazendas ao desamparo; porque além de ficarem sem braços para o tra-balho, deixaram-nos em estado que muito lhes custou a pô-los moentes e correntes (...).” (Coelho, 1654: 258-9)
Em breve tempo, os holandeses consolidariam o seu domínio sobre o Nor-
deste açucareiro, não sem antes sentirem, contudo, o travo provocado pelos terços de
Matias de Albuquerque. O general, depois de enviar os retirantes para Alagoas, sitiou
Porto Calvo por seis dias e obteve a rendição do reduto batavo (Cf. Coelho, 1654: 259-
64). Ao capitular, o coronel inimigo entregou Calabar, que lá estava, aos sitiantes e o
desertor foi enforcado e esquartejado, sumariamente, em 22 de julho de 1635 (Cf. Coe-
lho, 1654: 264). Foi a última vitória do exército da resistência, que sofreria, já sob o co-
mando de D. Luís Rojas y Borja83, o decisivo revés na batalha de Mata Redonda, em 18
83 D. Luís Rojas y Borja viera para o Brasil com a incumbência de substituir Matias de Albuquerque no comando geral das tropas (Cf. Coelho, 1654: 269). Ele conduzia a “armada de socorro” de 30 naus, que trazia o reforço de 1.700 homens – cuja “maioria não servia para nada” (Cabral de Mello, 1998: 251) – e o
304
de janeiro de 1636 (Cf. Coelho, 1654: 281-4).
Entretanto, continuariam as companhias volantes, nos beirais do território in-
vadido, a fustigar o inimigo, incendiando canaviais e armando emboscadas, recusando-se
a admitir o domínio estrangeiro. Os capitães e infantes da terra manteriam o cerco, como
se estivessem ainda no Recife dos primeiros anos de luta, convictos de que a tática brasí-
lica viria a prevalecer, mais cedo ou mais tarde. Com efeito, o coronel Arcizewski, “mili-
tar de vocação, já muito experimentado” (Barlaeus, 1647: 28), escreverá ao Conselho dos
XIX, cinco meses depois da vitória em Mata Redonda:
“O inimigo é extremamente ágil. Esconde-se nos matos ou nos canavi-ais, obriga os habitantes a lhe fornecerem informações, e se os infelizes não querem dar esclarecimentos ameaça-os de tortura e morte. Quando os lerdos perseguidores holandeses se aproximam, desaparecem as hor-das nas espessuras da mata sem deixar vestígio. Eles conhecem perfei-tamente as nossas fraquezas e sabem que não podemos carregar às cos-tas provisões para mais de oito dias. A funesta escassez de provisões de boca está sempre a nos impedir o desferir golpes decisivos contra os saqueadores.” (Arcizewski, 13-06-1636 apud Wätjen, 1921: 134-5)
A era nassoviana
Quando o conde João Maurício de Nassau-Siegen chegou ao Recife para as-
sumir o governo da Nova Holanda, em 23 de janeiro de 1637, a possessão da Companhia
das Índias Ocidentais era um domínio disperso. Os campos estavam devastados pela
guerra, praticamente abandonados por moradores e índios (Cf. Wätjen, 1921: 145); quase
nenhum engenho moía e raras eram as roças para o mantimento (Cf. Barlaeus, 1647: 50-
1); nas cidades, vilas e aldeias, imperavam “a impiedade, os furtos, o peculato, os homi-
cídios e a libidinagem” (Barlaeus, 1647: 49); nas fronteiras do território ocupado, esta-
novo governador-geral, Pedro da Silva. D. Luís assumira o comando da armada porque declinara da missão D. Fradique de Toledo, que pensava serem necessários, pelo menos, 12.000 homens de reforço para sub-meter os holandeses. Em razão disso, o restaurador da Bahia foi preso e viu os seus dias acabarem no claustro (Cf. Wätjen, 1921: 132). Também preso foi mandado Matias de Albuquerque para o Reino e nessa condição permaneceria o general da resistência brasílica até 1640 (Cf. Cabral de Mello, 1998: 40). Pior sorte teve o novo general, que morreu na batalha de Mata Redonda.
305
vam os neerlandeses expostos aos “incêndios, esbulhos e matanças” (Barlaeus, 1647: 36)
que lhes impingiam, freqüentemente, as volantes brasílicas de D. Antônio Filipe Cama-
rão, Henrique Dias, Martim Soares Moreno e Luís Barbalho Bezerra, entre outros, com
os seus “capitães de emboscadas” como Francisco Rebelo, o célebre Rebelinho (Cf. Coe-
lho, 1654: 265, passim; Brito Freyre, 1675: 376, passim). Impunham-se ao Staathalter
providências urgentes para assegurar a possessão recém conquistada e fazê-la produtiva
para a W.I.C.
O conde, um estrategista lúcido, começaria por atacar o problema mais grave,
a salvaguarda dos limites entre o seu senhorio e o território inimigo (Cf. Barlaeus, 1647:
36). Assim, menos de duas semanas depois da chegada ao Brasil, Nassau deslocava-se
com o coronel Sigismundt von Schkoppe e os seus efetivos, por terra, em direção à foz
do rio Una, onde se reuniria aos contingentes do coronel Arcizewski, para lá anterior-
mente embarcados (Cf. Calado, 1648a: 79; Varnhagen, 1854-7b: 282-3; Wätjen, 1921:
146). O objetivo das manobras era tomar Porto Calvo, base das volantes brasílicas e dos
terços do conde de Bagnuolo84, estacionados estes nas Alagoas e movimentando-se aque-
las entre Serinhaém, Barra Grande e Peripueira, no seu diuturno fustigar aos redutos ho-
landeses fronteiriços.
A notícia das manobras das tropas inimigas – “cinco mil e quinhentos infan-
tes, fora os índios e negros que também nesta ocasião armaram” (Coelho, 1654: 309) –
logo chegaram aos ouvidos do comando da resistência – “que não chegava a contar mil e
quinhentos [homens]” (Garcia, 1927b: 283) – por intermédio de três holandeses apresa-
dos por uma das volantes de Henrique Dias (Cf. Coelho, 1654: 307). Colocado o assunto
em conselho, o debate tomou a forma da velha polêmica entre os estrategistas conven-
cionais e os táticos brasílicos, estes últimos galvanizados, então, pelo tenente-general
Manuel Dias de Andrada, dono de “uma folha de serviços de trinta anos”, o “mais alto
84 Depois da deportação de Matias de Albuquerque e da morte de D. Luís Rojas y Borja, o conde napolita-no assumira o comando geral do exército da resistência (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 267-8).
306
oficial lusitano” (Cabral de Mello, 1998: 45) que viera para o Brasil na armada de D.
Luís Rojas y Borja. Apoiado por Duarte de Albuquerque (Cf. Coelho, 1654: 307-8) e
“por um punhado de capitães, todos veteranos da guerra do Brasil” (Cabral de Mello,
1998: 368; cf. Calado, 1648a: 80), o tenente-general formulou a seguinte proposta, cujos
detalhes revelam bem a lógica da tática brasílica:
“(...) o inimigo havia de desembarcar na barra grande, (...) [e assim] havia de marchar cinco léguas para chegar à povoação, e havia de subir, e descer outeiros, e passar por caminhos estreitos, alagadiços, e passos perigosos, que lhe fôssemos fazendo trincheiras nos lugares apertados, e emboscados, e viéssemos fazendo emboscadas por todo o caminho, brigando sempre com ele, e retirando-nos de uma e outra trincheira, e que deste modo o desbarataríamos, e que de nenhum modo o deixásse-mos chegar à vista da povoação, e da nossa fortaleza, porque se a via com os olhos a havia de tomar, e render sem remédio, e se ofereceu pa-ra ser ele o que governasse esta facção.” (Calado, 1648a: 80)
Bagnuolo, entretanto, fincou pé em seu convencionalismo de soldado euro-
peu, calçou-se da autoridade que portava e ordenou que as tropas se agrupassem intramu-
ros, com o objetivo de defender a posição fortificada. A decisão do conde napolitano
agastou “vereadores, capitães e gente do povo”, que pretenderam depô-lo e empossar no
comando o tenente-general (Cf Calado, 1648a: 80-1), tão evidente se mostrava a melhor
via para enfrentar o inimigo. O disciplinado oficial português não acedeu, todavia, ao
clamor dos amotinados e submeteu-se à autoridade do comandante-em-chefe. Talvez
tivessem melhor sorte os defensores de Porto Calvo se Manuel Dias de Andrada houves-
se se insurgido contra o conservadorismo tático de Bagnuolo, porque depois de duas se-
manas de assesto e sítio, a posição caía nas mãos do inimigo (Cf. Coelho, 1654: 310-6;
Barlaeus, 1647: 36-9; Calado, 1648a: 81-2; Brito Freyre, 1675: 395-403 ).
A capitulação de Porto Calvo, assinada em 6 de março de 1637 (Cf. Coelho,
1654: 315), pôs termo à ocupação holandesa de Pernambuco e a retirada das tropas da
resistência constituir-se-ia num capítulo melancólico na carreira militar de Bagnuolo,
como bem sintetiza Wätjen: “inteiramente desanimado (...), ele não cuidava agora senão
307
de si, de sua salvação pessoal, deixando vergonhosamente em apuros os seus soldados. A
conseqüência foi que a retirada do inimigo batido degenerou em desordenada fuga”
(Wätjen, 1921: 147; cf. Coelho, 1654: 316-9; Barlaeus, 1647: 43; Calado, 1648a: 82-6;
Brito Freyre, 1675: 436). Em 27 de março, os últimos retirantes atravessaram o São
Francisco, tendo já as tropas de von Schkoppe nos seus calcanhares (Cf. Coelho, 1654:
319), e Maurício de Nassau escreveria aos Estados Gerais, aboletado em Penedo: “Con-
tentes de havermos expulsado o inimigo de toda a capitania de Pernambuco, aí firmamos
a nossa vitória e demos por satisfeitos os votos da primeira campanha” (Nassau, 1637 in
Barlaeus, 1647: 44-6).
Todavia, as volantes brasílicas ainda manteriam acesa a chama da resistência.
De abril a junho de 1637, por exemplo, os capitães Sebastião do Souto e João de Almei-
da, acompanhados de soldados e índios, deram várias sortidas pela margem pernambuca-
na do São Francisco (Cf. Coelho, 1654: 321-2), chegando os homens de Souto a degolar
20 holandeses na Vila Formosa de Serinhaém, “por crerem que não podíamos passar o
rio” (Coelho, 1654: 322). Como anota Barlaeus, a ação brasílica na região, “arrastando
mais propriamente que levando a guerra ao Sergipe del Rei”, tornara-se preocupante para
holandeses, pois “mandados para ali pequenos troços, infestava-nos as terras, lavouras e
engenhos, queimando, talando, saqueando” (Barlaeus, 1647: 65). Diante dessa situação, a
W.I.C. resolveu agir e, em outubro, von Schkoppe começava a movimentar as suas tropas
aquarteladas em Penedo, então reforçadas por 1.800 soldados e 500 índios (Cf. Coelho,
1654: 325), com ordens de assolar a capitania, tornando-a “imprestável para operações
militares por parte do inimigo” (Cf. Wätjen, 1921: 156). Bagnuolo soube, de imediato,
das manobras de von Schkoppe, mas, ou porque lhe faltassem homens, ou porque a capi-
tania “era um lugar aberto e sem porto de mar principal” (Coelho, 1654: 325), ou porque
lhe dominasse o “derrotismo” (Cabral de Mello, 1998: 365), “tratou de marchar logo para
a Bahia” (Coelho, 1654: 326), decisão que amargurou fundamente os emigrados da Para-
íba e de Pernambuco, “que já tinham as suas choupanas e plantações junto à cidade de
308
Sergipe” (Coelho, 1654: 326). Quando von Schkoppe chegou a São Cristóvão, em 17 de
novembro, a cidade estava deserta e puderam o coronel e os seus homens esbulhar a capi-
tania com calma e sem muito trabalho, rendendo a aventura aos holandeses 3.000 cabeças
de gado (Cf. Barlaeus, 1647: 65-6). Enquanto isso, em 15 de dezembro, Bagnuolo chega-
va a Salvador e, no dia seguinte, o governador-geral o mandava de volta para a Torre de
Garcia d’Ávila, onde veio a saber que von Schkoppe não deixara pedra sobre pedra na
capitania d’el-rei e que já se retirara para Penedo (Cf. Coelho, 1654: 329-30).
Com a devastação de Sergipe – que se transformaria numa espécie de zona
de exclusão entre os exércitos beligerantes – e a conquista de Fortaleza, ferida em outu-
bro de 1637 (Cf. Coelho, 1654: 329-30; Barlaeus, 1647: 68), o conde de Nassau consoli-
dava o território do Brasil holandês, delimitado, ao sul, pelo rio de São Francisco e, ao
norte, pelo Ceará. Mas, em maio de 1638, daria João Maurício ocasião ao conde de Bag-
nuolo lavar a sua honra ultrajada, ao empreender a atabalhoada tentativa contra a Bahia,
orquestrada pela W.I.C. (Cf. Wätjen, 1921: 161-4). Comandando porfiosa resistência
numa Salvador sitiada onde “reinava o mais vivo entusiasmo bélico” (Wätjen, 1921:
161), o conde napolitano redimiu a sua reputação na memorável batalha de 18 de maio
(Cf. Coelho, 1654: 350-4), que redundou na retirada das tropas de Nassau da Bahia, às
caladas, na madrugada de 26 do mesmo mês (Cf. Coelho, 1654: 355; Barlaeus, 1647:
86). Essa façanha fez exultar Filipe IV, cujo moral andava em baixa desde a retomada de
Breda pelos neerlandeses, e o levou a fazer inúmeras mercês aos defensores da Bahia.
Para citar apenas algumas delas, el-rei de Espanha deu o título de príncipe de Nápoles a
Bagnuolo, o de conde de São Lourenço ao governador-geral Pedro da Silva e “comendas
lucrativas” ao mestre-de-campo Luís Barbalho Bezerra e a D. Antônio Filipe Camarão,
que já recebera o foro de fidalgo e o hábito da Ordem de Cristo em 4 de setembro de
1636 (Cf. Coelho, 1654: 357; Varnhagen, 1854-7b: 298).
De volta ao Recife, Nassau viria a mitigar o seu abatimento pela derrota na
Bahia dedicando-se à retomar a “organização da república”, “um de seus principais fei-
309
tos” (Barlaeus, 1647: 345), encetado depois da expugnação de Porto Calvo (Cf. Barlaeus,
1647: 49-54). A partir de 1638, o conde estará voltado, quase inteiramente, à recomposi-
ção da indústria açucareira (Cf. Mello, 1947: 137, passim), ao ordenamento da adminis-
tração, das finanças públicas e da vida civil na Nova Holanda (Cf. Barlaeus, 1647: 69-71;
Wätjen, 1921: 291, passim; Mello, 1947: 64-70) e à edificação de uma cidade na ilha de
Antônio Vaz (Cf. Barlaeus, 1647: 150-8; Mello, 1947: 83-5), depois ligada ao povoado
do Recife na fundação da cidade Maurícia (Cf. Mello, 1947: 85).
Iniciava-se a “idade de ouro do Brasil holandês” (Cabral de Mello, 1998: 15),
que se estenderia até a volta do conde de Nassau para a Holanda, em 22 de maio de 1644
(Cf. Varnhagen, 1854-7b: 332), época que ficaria conhecida pelo seu vigor econômico
(Cf. Wätjen, 1921: 425 e 494-521), pelo palácio de Friburgo e pela casa da Boavista,
realizações arquitetônicas de “um grão-senhor que não se sentia bem senão em palácios”
(Mello, 1947: 83), pelo progresso urbanístico e sanitário da nova capital de Pernambuco,
de traçado planejado, com as suas ruas e praças calçadas de tijolos, as pontes sobre o
Beberibe e o Capibaribe, o jardim botânico, o zoológico e o museu artístico (Cf. Barla-
eus, 1647: 150-3; Mello, 1989: 243-5). Período que também se celebrizaria em virtude de
sua atmosfera cultural, enriquecida com a presença de artistas como Frans Post e Albert
Eckhout, cientistas como Jorge Marcgrav e Willem Piso e letrados como Johan Bodecher
Benning e Elias Herckmans (Cf. Melo, 1989: 239 e 245-6).
No entanto, não podemos dizer que tenha sobrevindo a paz durante o período
nassoviano. Com uma freqüência perturbadora, as volantes brasílicas infernizavam a vida
de plantadores de cana e senhores de engenho, do Staathalter e do Conselho Político, da
W.I.C. e da câmara do Recife (Cf. Barlaeus, 1647: 78). Era a resistência que sobrevivia
lutando, dando estocadas no poderoso invasor e não dobrando a espinha frente ao domí-
nio estrangeiro:
“Os incêndios de canaviais eram praticados em largas extensões do ter-ritório ocupado. Na Paraíba, André Vidal de Negreiros deixou atrás de si um rasto de fogo: queimou canaviais inteiros, casas-grandes, casas de
310
purgar, armazéns de açúcar. Outros se afoitaram a queimar plantações na Várzea e em Apipucos. Os clarões dos incêndios eram avistados do Recife. Essas partidas de incendiários entravam em território ocupado com os seus objetivos prefixados; um campanhista preso descreveu em 1638, ao Alto Conselho, as missões de cinco partidas de incendiários vindas de Sergipe e composta de 150 homens ao todo, dos quais 50 brancos e o restante mulatos e negros de Henrique Dias, “Capitão e go-vernador dos negros”, com atribuições de queimar os canaviais entre Serinhaém e a Várzea.” (Mello, 1947: 137-8).
Entrementes, Filipe IV via os exércitos de Castela sendo dobrados pelo pode-
rio de Flandres na guerra européia e, depois da derrota em Brabante, o monarca madrile-
nho tentaria a sua cartada decisiva frente ao inimigo de oitenta anos, armando duas gran-
des esquadras para arrostar as Províncias Unidas (Cf. Barlaeus, 1647: 169; Wätjen, 1921:
172; Cabral de Mello, 1998: 33). Uma seria confiada a D. Antônio de Oquendo e deveria
atacar os Países Baixos e a outra, “de restauração do Nordeste” (Cf. Cabral de Mello,
1998: 33 e 50), viria para o Brasil sob as ordens do novo governador-geral (Cf. Varnha-
gen, 1854-7e: 245), D. Fernando de Mascarenhas, conde da Torre, nomeado capitão-
general de mar e terra (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 306).
A armada do conde da Torre partiu de Lisboa em 7 de setembro de 1638 e
abordou o Recife em 23 de janeiro do ano seguinte, sem contudo assestar a capital da
possessão holandesa, em razão da perda de 1-3 da guarnição, que caiu vitimada por fe-
bres durante a viagem (Cf. Wätjen, 1921: 173). Segundo Varnhagen, que se apóia em
uma carta de João Maurício aos diretores da W.I.C., “ao receber disso a certeza, Nassau
respirou” (Varnhagen, 1854-7b: 307), desprevenido de forças que estava naquela ocasião.
Seja como for, o conde da Torre dirigiu-se para a Bahia como determinava o Regimento
que lhe fora passado (Cf. Garcia, 1927b: 333-40), o que deu tempo a Nassau para tomar
as providências para defesa da Nova Holanda. O Staathalter mandou restaurar as fortifi-
cações e instalou baterias, arregimentou suas tropas e convocou os índios, recenseou os
cidadãos e promulgou leis sobre o abastecimento (Cf. Barlaeus, 1647: 159-63), além de
mobilizar a esquadra holandesa de guarnição no Brasil, já que não pôde contar com re-
311
forços vindos da Europa, negados pela W.I.C., “em grande aperto financeiro” (Wätjen,
1921: 174).
O conde da Torre também teve dificuldades para aprestar o ataque a Pernam-
buco, em vista, como escreverá a el-rei do “aperto em que achei esta terra (...), [com]
soldados descontentes e por pagar, a fazenda real consumida e endividada em mais de
cento e cinqüenta mil cruzados, sem ter consignação de que me aproveitar, os armazéns
sem armas, as fortificações danificadas e caídas” (Conde da Torre, 26-05-1639 in Garcia,
1927b: 341). Desta maneira, o governador-geral não conseguiria ultimar os preparativos
para a jornada contra o invasor antes do final do ano, mas ele se valeria dos “oficiais ex-
perimentados da campanha de guerrilhas” (Wätjen, 1921: 173) para dar início à luta pela
restauração de Pernambuco (Cf. Barlaeus, 1647: 186; Calado, 1648a: 125-6; Mello,
1954: 20), por intermédio de quatro medidas preliminares, as quais revelam, pelo seu
cunho oficial, a consolidação da estratégia militar brasílica naquela conjuntura tão dra-
mática.
A primeira providência foi determinar que André Vidal de Negreiros avan-
çasse pelos sertões até a Paraíba (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 308), disposição que teve re-
percussões importantes: o capitão semeou a sedição entre os senhores de engenho da sua
terra e devastou as plantações dos recalcitrantes (Cf. Barlaeus, 1647: 188), fato que levou
Nassau a colocar a sua cabeça a prêmio (Cf. Barlaeus, 1647: 191). Depois, no mês de
agosto, o governador-geral despachou D. Antônio Filipe Camarão com o seu terço para
articular alianças com os índios de Pernambuco e “inquietar o inimigo (...), acrescentan-
do que não desse quartel, que incendiasse tudo quanto não lhe aproveitasse, e que tratasse
de guerrear só à maneira índia, por meio de assaltos e emboscadas” (Varnhagen, 1854-
7b: 308; cf. Barlaeus, 1647: 186-7). A terceira providência do conde da Torre, tomada a 4
de setembro de 1639, foi dar a patente de “cabo e governador dos crioulos, negros e mu-
latos” ao intrépido Henrique Dias (Cf. Mello, 1954: 21-2), negro pernambucano, comba-
tente nos primeiros dias da luta contra o invasor (Cf. Mello, 1954: 8-10), voluntário que
312
se apresentou “com alguns de sua cor” a Matias de Albuquerque em 1633 (Cf. Coelho,
1654: 149), já então sem um braço, perdido numa escaramuça em Porto Calvo (Cf. Cala-
do, 1648a: 82-3). Em seguida, ordenou o capitão-general que o governador e as suas vo-
lantes fossem bater Alagoas à procura de informações sobre o inimigo (Cf. Mello, 1954:
20). Finalmente, às vésperas da partida da esquadra, em 17 de novembro, D. Fernando de
Mascarenhas ordenou ao capitão João Lopes Barbalho, sobrinho de Luís Barbalho Bezer-
ra, que ele se deslocasse para Pernambuco com um regimento de 100 homens para se
reunir aos terços de Filipe Camarão e André Vidal de Negreiros e lá aguardarem a che-
gada da “armada de restauração” (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 308).
O conde da Torre lutaria contra os volúveis alísios que sopram na nossa costa
por dois meses antes de chegar a Pernambuco e, lá apontando a fatigada guarnição (Cf.
Barlaeus, 1647: 179), sofreria duros reveses em quatro batalhas consecutivas (12, 13, 14
e 17 de janeiro de 1640), até desbaratar-se por completo a armada (Cf. Barlaeus, 1647:
172-81). Assim, caberia às falanges brasílicas, mal desembarcadas da frota estropiada na
costa do Rio Grande do Norte, a vindita pela derrota da esquadra d’el-rei de Espanha. O
mestre-de-campo Luís Barbalho, “ativo e destemido pernambucano (...), tendo às suas
ordens, entre outros valentes oficiais, a Francisco Barreto” (Varnhagen, 1854-7b: 313),
tomaria o rumo da Bahia por terra com 1.500 homens, “abrindo caminho para si a ferro”
(Barlaeus, 1647: 190; cf. Calado, 1648a: 129). Engrossariam as fileiras do mestre-de-
campo “as tropas que tinham vindo do Rio de Janeiro, os índios das capitanias do Sul e
os negros de Henrique Dias” (Mello, 1954: 23), de quem se guarda duas cartas relatando
a jornada (Cf. Mello, 1954: 23-5). Passando pela Paraíba e Pernambuco, a coluna recebe-
ria ainda os destacamentos de André Vidal de Negreiros, D. Antônio Filipe Camarão e
João Lopes Barbalho (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 314-5; Garcia, 1927b: 343, passim).
O exército brasílico teve muitos recontros e pelejas nessa jornada, mas a re-
frega mais memorável foi ataque ferido em Goiana, onde “deu improvisamente [sic] so-
bre os nossos batalhões aquartelados (...), sendo mortos Picard, o capitão Lochmann e
313
cem soldados rasos85, ficando outros feridos ou em debandada” (Barlaeus, 1647: 198).
Nassau ficou furioso com o assalto e lançou, incontinênti, as suas tropas no encalço da
coluna inimiga. O destacamento de Tourlon, “em marchas forçadas e molestíssimas”,
chegou a percorrer 17 milhas em 12 horas para alcançar os campanhistas (Cf. Barlaeus,
1647: 189). Baldados esforços, contudo, frente à agilidade dos infantes da terra, que se
escafederam, sem deixar rastros, pelos outeiros e veredas, ocultando-se em canaviais e
grotões, movimentando-se, céleres, num terreno que dominavam como ninguém. Mais
enfurecido ainda ficou o conde, que retaliaria covardemente o acometimento de Goiana
mandando para a Bahia, já em 24 fevereiro de 1640 (Cf. Garcia, 1927b: 316), uma es-
quadra de 20 naus e 2.500 homens de guerra sob as ordens do vice-almirante Lichthart e
do coronel Carlos Tourlon (Cf. Barlaeus, 1647: 199; Varnhagen, 1854-7b: 315-6), não
para dar nas tropas inimigas ou emboscar regimentos desavisados, nem para assestar as
fortificações ou incendiar furtivamente canaviais, nem, muito menos, para sitiar a capital.
Os batavos e os seus mercenários foram à Bahia com a determinação de barbarizarem
indiscriminadamente a população civil do recôncavo, inocente dos fatos ocorridos em
Pernambuco, agindo como se estivessem numa batalha campal:
“Desembarcando ali os soldados, deram provas horrendas e cruéis do seu furor bélico. Reduziram a cinzas todos os engenhos de portugueses, menos três; tomaram ou queimaram quantos navios pequenos encon-travam aqui e acolá; devastaram e depredaram, à vista dos cidadãos, as lavouras circunvizinhas, os casais, granjas e prédios. A ilha de Itaparica e outras foram inteiramente postas a saque, para não se mencionarem outros danos, porquanto em parte alguma estorvou ou sustentou o ini-migo a nossa violência. Trucidavam-se a ferro os homens e os que po-diam pegar em armas. Foram poupadas somente as mulheres e crian-ças.” (Barlaeus, 1647: 199)
Pretende Wätjen que Nassau deliberou-se pela cruenta ação de suas tropas na
Bahia para “pagar na mesma moeda” os rebates das guerrilhas brasílicas (Cf. Wätjen,
1921: 178). Em parte ele tem razão, pois o esbulho e a devastação do terreno inimigo
85 Quatrocentos, assegura o visconde de Porto Seguro (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 313)
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eram procedimentos usuais, tomados de parte a parte na guerra seiscentista, mas nem
Barlaeus e nem o próprio Wätjen apontam qualquer episódio, em tempo algum da guerra,
em que as nossas volantes trucidaram adrede e indiscriminadamente civis, embora cum-
pra-nos registrar que os campanhistas não raro degolavam e seviciavam colonos holande-
ses ou mesmo colaboracionistas recalcitrantes (Cf. Calado, 1648a: 126). Por outro lado,
no caso da ação de Luís Barbalho, causa imediata da desforra de Nassau (Cf. Wätjen,
1921: 178), o terço do mestre-de-campo pernambucano, “sem mantimento algum mais do
que os soldados haviam trazido em suas mochilas” (Calado, 1648a: 125), que não podia
contar com o auxílio dos moradores “porquanto estavam despojados de armas, que lhas
tinha o inimigo tomado até as foices de cortar lenha” (Calado, 1648a: 125), era diutur-
namente arrostado por “holandeses e nativos [que] seguiam-lhe a pista como sabujos e
opunham-lhe todos os óbices imagináveis na travessia” (Wätjen, 1921: 178), enquanto na
Bahia o exército neerlandês massacrou cidadãos imbeles, praticamente desprotegidos e
pegos de surpresa pelo desembarque à viva força de um corpo de tropas poderoso, com
soldados armados até os dentes.
Seja como for, esses dois acontecimentos viriam a precipitar negociações de
tréguas entre o conde de Nassau e o marquês de Montalvão, D. Jorge Mascarenhas, que
chegaria à Bahia em 5 de julho de 1640 para substituir o conde da Torre no governo do
Brasil (Cf. Barlaeus, 1647: 206-7; Calado, 1648a: 127-8; Varnhagen, 1854-7a: 317-8).
Efetivamente, os dois mandatários acordaram que “se restaurassem as leis de guerra con-
cernentes aos prisioneiros e à devastação das lavouras” (Barlaeus, 1647: 207) e trocaram
reféns para formalizarem o tratado de tréguas, mas nem um lado e nem o outro cumpriria
à risca as convenções (Cf. Barlaeus, 1647: 208; Calado, 1648a: 128), pois o Conselho
dos XIX considerou “que elas abriam caminho ao inimigo para penetrar nos segredos do
Brasil holandês” (Barlaeus, 1647: 207-8) e o marquês de Montalvão não podia corromper
o título de que fora investido, o de “vice-rei e capitão-general de mar e terra do Brasil,
empresa e restauração de Pernambuco” (Varnhagen, 1854-7b: 317).
315
Entretanto, aproximava-se o tempo da realização da profecia sebastianista e,
com ele, tornariam Portugal e Holanda à sua condição de aliados, inimigos comuns que
eram da monarquia de Castela. Com efeito, assim que o duque de Bragança subiu ao tro-
no restaurado, em 1º de dezembro de 1640, empenharam-se os holandeses na reaproxi-
mação com a corte de Lisboa, decretando os Estados Gerais, em 13 de fevereiro de 1641,
que “os portugueses fossem considerados como amigos” (Varnhagen, 1854-7b: 321), à
qual proclamação D. João IV respondeu com uma carta patente, em 20 de março, “man-
dando que os habitantes das Províncias Unidas fossem tratados com todo o favor e ami-
zade” (Garcia, 1927b: 321).
No Brasil, as boas novas da revolução portuguesa, chegadas em fins janeiro
pelas mãos do padre Fancisco de Vilhena e do tenente-mestre-de-campo Pedro Correia
da Gama (Calado, 1648a: 165), foram saudadas com júbilo pelo povo e el rei foi aclama-
do na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo (Cf. Rocha Pitta, 1730: 219-20; Holanda,
1993: 454). Quanto a Pernambuco, sabe-se que Nassau recebeu, em 14 de março, o padre
Vilhena e Correia da Gama, que traziam um comunicado oficial do marquês de Montal-
vão informando-lhe da aclamação de D. João IV, da desmobilização das tropas hispano-
napolitanas e da ordem dada aos “corpos de voluntários guerrilheiros (...) de não mais
cruzarem as fronteiras da Nova Holanda” (Wätjen, 1921: 182; cf. Barlaeus, 1647: 208).
Pelos mesmos emissários, o vice-rei propunha conversações sobre um armistício (Cf.
Barlaeus, 1647: 209; Wätjen, 1921: 181-2). O conde apressou-se em dar mostras de sua
satisfação pelas boas novas e comemoraria a aclamação de D. João IV com grande faus-
to, promovendo ricos festejos por ocasião da Páscoa, nos quais neerlandeses, brasileiros e
portugueses se confraternizariam durante três dias (Cf. Calado, 1648a: 167-71).
Mas agia com doblez Maurício de Nassau, incorrendo numa prática que per-
duraria nas negociações sobre os territórios portugueses sob domínio holandês, ponto
chave nos entendimentos entre a casas de Orange e Bragança. O Staathalter respondera
ao vice-rei “que deixaria de executar as projetadas represálias às pilhagens sofridas no sul
316
de Pernambuco”, mas acrescentou que “quanto à proposta de pôr termo ao estado de
guerra somente poderia tratar depois que os Altos Poderes e Diretores dessem o seu con-
sentimento” (Wätjen, 1921: 182), quando já havia recebido uma determinação pérfida do
Conselho dos XIX, lavrada a de 26 de fevereiro, apenas treze dias após a decretação de
que “os portugueses fossem considerados como amigos” (Varnhagen, 1854-7b: 321).
Segundo Barlaeus, a instrução dada a Nassau dizia, “explicitamente”, a seguinte:
“Depois que Portugal, abalado pela revolução, não pudesse mandar so-corros para o Brasil, deveria ele, espiando as ocasiões, tratar seriamente de ampliar o território e prolongar as lutas numa glória contínua, antes que fossem sopitados ou terminados por tratados de paz os ardores marciais. Tudo ainda estava patente ao vencedor, ao passo que, pelo tratado, cada uma das partes teria salvas as suas possessões e não se poderia ir mais além.” (Barlaeus, 1647: 210)
Quer dizer, quando o conde de Nassau levantou brindes, deu salvas de arti-
lharia e se esmerou nas cavalhadas, na argolinha e no jogo de canas e laranjadas (Cf. Ca-
lado, 1648a: 169-70), tudo feito em honra de D. João IV, ele já houvera tomado as suas
providências no sentido de não apenas assegurar o seu senhorio sobre as terras usurpadas
ao rei de Portugal, mas de estendê-lo, à sorrelfa, o quanto pudesse. De fato, um mês de-
pois dos festejos na ilha de Antônio Vaz, em 1º de junho, escrevia Nassau aos Estados
Gerais:
“(...)que antes de receber as ordens (de 28 de março) [sic] que lhe man-dava a Assembléia dos XIX, prevendo que a revolução de Portugal de-veria necessariamente conduzir às pazes, e aproveitando-se do que pac-tuara e da retirada dos nossos guerrilheiros das fronteiras, havia ele dis-posto que das forças aí destinadas a fazer-lhes frente, passassem, umas a ocupar Sergipe, e se embarcassem outras contra Luanda.” (Varnha-gen, 1854-7b: 322)86.
Sendo assim, quando foi assinado o tratado de paz estipulando a suspensão
das hostilidades entre as Províncias Unidas e Portugal por dez anos, pactuado em Haia a
86 “Dessa carta há cópia no Instituto Histórico, Documentos holandeses, 2, fls. 272-274 v.” (Garcia, 1927b:
317
12 de junho de 1641 (Cf. Garcia, 1927b: 323), Nassau já havia anexado a desamparada
Sergipe e enviado uma armada para submeter possessões portuguesas na África e nas
ilhas do Atlântico (Cf. Barlaeus, 1647: 211-21; Wätjen, 1921: 183-8). Quer dizer, em
pleno processo de negociações de paz, os Estados Gerais empreendiam um plano de con-
quista ambicioso sobre as colônias do seu novel aliado. Aliás, essa duplicidade se refleti-
ria no próprio texto do acordo, revelando, por um lado, a inépcia dos negociadores portu-
gueses e, por outro, a insídia da diplomacia neerlandesa: de acordo com o artigo 8º, a
cessação das hostilidades “‘nas terras e mares pertencentes ao distrito da jurisdição con-
cedida pelos Senhores das Ordens Gerais à Companhia da Índia Ocidental’ (isto é no
Brasil e na África) só deveriam começar a contar em cada lugar desde que aí fosse apre-
sentada a ratificação do tratado” (Varnhagen, 1854-7b: 323). Ora, a cláusula era uma
chicana: obrigava um rei recém aclamado por uma revolução popular, há apenas seis
meses no governo de uma nação submetida a 80 anos de dominação estrangeira, aliás,
ainda em luta contra o vizinho usurpador, a apresentar uma validação burocrática do “tra-
tado de aliança ofensiva e defensiva contra a Espanha” (Wätjen, 1921: 191) em cada co-
lônia do ultramar para fazer vigorar um acordo bilateral firmado em foro internacional.
Isto não isenta de responsabilidade D. João IV e os seus ministros, pois el-rei só ratificou
o tratado em 18 de novembro de 1641 (Cf. Garcia, 1927b: 323), mas se a Coroa de Por-
tugal agiu com incúria e imprudência, os Altos Poderes incorreram em deliberado opor-
tunismo, pois “não se deram pressa também em se ocupar do assunto até 22 de fevereiro
de 1642, e deixaram, ainda, que se escoassem quase dois meses, antes que tratassem de
dar a João Maurício conhecimento do ocorrido” (Wätjen, 1921: 191).
De qualquer maneira, o tempo decorrido entre a assinatura do tratado, sua ra-
tificação e o encaminhamento aos governos ultramarinos permitiu às Províncias Unidas
uma sensível ampliação do seu domínio colonial a expensas da anexação de territórios de
D. João IV e ao arrepio dos protestos interpostos pela chancelaria de Portugal (Cf.
322).
318
Wätjen, 1921: 192). Como disse Rocha Pitta, “procedendo os holandeses na sinistra in-
terpretação das suas capitulações, foram prosseguindo as suas conquistas nas nossa pra-
ças ultramarinas” (Rocha Pitta, 1730: 224). Realmente, em agosto de 1641, os batavos
tomaram Angola e, “por este meio, a Companhia, que ali já prosperava muito com a
compra e venda de escravos, chamaria a si o monopólio daquele rendoso tráfico” (Barla-
eus, 1647: 211-2; cf. Wätjen, 1921: 185). Dias depois, se assenhorearam os neerlandeses
das ilhas de Ano Bom, São Tomé e Príncipe, célebres pela produção de açúcar (Cf. Bar-
laeus, 1647: 215-21; cf. Wätjen, 1921: 186-7). Em novembro do mesmo ano, Lichtardt e
Koin, “afamados por um longo exercício da milícia” (Barlaeus, 1647: 232), ocuparam,
sem encontrar resistência, São Luís do Maranhão (Cf. Barlaeus, 1647: 232; Wätjen,
1921: 190-1). De mais a mais, como frisa o frei Manuel Calado, “usavam os holandeses
tão mal das tréguas que tinham assentadas com S. Majestade, que depois delas apregoa-
das tinham tomadas dezesseis embarcações que vinham de Portugal para o Brasil, e do
Brasil iam para Portugal” (Calado, 1648a: 181).
Sendo assim, em 1642 o território da Nova Holanda atingia o seu perímetro
mais largo, estendendo-se desde Sergipe até o Maranhão. Consolidava-se o domínio co-
lonial holandês na América do Sul, pois haviam cessado as sortidas das volantes brasíli-
cas, a indústria açucareira produzia sem maiores percalços, leis eram promulgadas para
mitigar a emulação entre neerlandeses e luso-brasileiros, a administração colonial se es-
tabilizara e seguiam as obras na cidade Maurícia (Cf. Wätjen, 1921: 204-12), mas o con-
de de Nassau pedia com insistência ao Conselho dos XIX a sua exoneração (Cf. Barla-
eus, 1647: 249).
Entrementes, repontava no Brasil a chama sediciosa, deflagrando-se o levante
contra o jugo holandês no Maranhão, a 30 de setembro de 1642 (Cf. Varnhagen, 1854-
7b: 328-9). Ali primeiro se conflagraram os ânimos revolucionários porque a tirania ho-
landesa grassava no domínio recém anexado: “haviam aí os holandeses imposto aos se-
nhores de engenho exações tão arbitrárias que maliciaram não seriam elas cumpridas sem
319
que em cada engenho houvesse uma escolta” (Varnhagen, 1854-7b: 328; cf. Wätjen,
1921: 214). Todavia, a insurreição se impunha como um projeto pela autodeterminação
daqueles que se sentiam aleivosamente submetidos pelo interesse estrangeiro, calando
esses planos nos espíritos dos homens que resistiram lutando ao assesto batavo e se in-
fundindo nas mentes dos mandatários aviltados pelo embuste dos Altos Poderes. É o que
podemos concluir, refletindo sobre as informações que nos dá o visconde de Porto Segu-
ro:
“Os primeiros planos para se levar isso a cabo em Pernambuco, pelos esforços dos seus próprios habitantes, haviam tido lugar antes de ser ocupado o Maranhão, e até já antes das entrevistas de tréguas entre Nassau e Montalvão. Se não foi André Vidal o autor da idéia (...) po-demos dizer que a perfilhou, que a fez familiar na Bahia, e veio a ser, por assim dizer, a alma do plano que foi posto em execução, depois de abraçado pelo governador Antônio Teles [da Silva]. (...) Sabemos, por documentos oficiais que, no dia 23 de maio de 1642, achando-se Vidal em Lisboa, e ao que parece já para regressar ao Brasil, donde tinha vin-do, o rei D. João lhe fez pessoalmente promessa de lhe dar, quando se restaurasse, o governo do Maranhão, ainda então sob o domínio holan-dês. Era ministro da Coroa Montalvão, o qual, com a notícia de haver sido ocupado o mesmo Maranhão, devia ter perdido toda esperança de poder contar com Nassau, e haveria já reconhecido que não tinha outro remédio senão usar o recurso de autorizar as insurreições.” (Varnhagen, 1854-7b: 326-7)
A insurreição maranhense seria uma jornada custosa, dominada por um sítio
atroz à cidade de São Luís (Cf. Barlaeus, 1647: 250-1). Entre marchas e contramarchas, a
luta durou dezessete meses e teria custado a vida de mais de oitocentos holandeses (Cf.
Teixeira de Melo apud Garcia, 1927b: 331), vindo o inimigo a capitular em 28 de feve-
reiro de 1644 (Cf. Wätjen, 1921: 214). Em breve tempo, findava a era nassoviana do Bra-
sil holandês: em 22 de maio de 1644, o conde João Maurício de Nassau-Siegen faria vela
da Paraíba, tomando o rumo da sua pátria (Cf. Barlaeus, 1647: 328; Wätjen, 1921: 219).
Não muito depois, o rastilho da conjura, aceso no Maranhão e atiçado no Ceará (Cf. Bar-
laeus, 1647: 304), viria a abrasar os corações e as mentes dos revolucionários pernambu-
canos e, por força dela, o Brasil se desvencilharia do adjetivo que desdourava os seus
320
brios de nação.
A Restauração pernambucana
Em 14 de agosto de 1644, o governador Antônio Teles da Silva dirigia uma
carta ao Alto Conselho do Recife solicitando um salvo-conduto para que André Vidal de
Negreiros pudesse passar à Paraíba aonde pretendia ir beijar a mão dos pais antes de se-
guir para o Reino (Cf. Garcia, 1927c: 14; Mello, 1956: 93). É bem verdade que as então
ambíguas relações entre Portugal e Holanda davam margem a um pedido desse tipo, mas
era, no mínimo, uma imprudência dos conselheiros confiar em tal singeleza de desígnios
num homem que, cinco anos antes, tivera a sua cabeça colocada a prêmio em virtude das
façanhas que obrava pelos campos da Nova Holanda.
Ora, conquanto jovem, o oficial paraibano era um notório agitador e um guer-
rilheiro veterano, modelado na campanha contra os holandeses. André Vidal entrara no
serviço ativo em julho de 1625, quando contava dezenove anos, alistando-se no terço do
capitão Antônio de Albuquerque, o qual ia agregado às forças remetidas por Matias de
Albuquerque à barra do Mamanguape com o objetivo de arrostar a esquadra de socorro
do almirante Hendrikszoon, ali fundeada de torna-viagem para a Europa depois de ter
chegado com atraso à Bahia já restaurada (Cf. Varnhagen, 1854-7b: 199). Na resistência
pernambucana, servira desde a primeira hora como “soldado e alferes à sua custa”, como
proclamou el-rei em carta-patente de 11 de agosto de 1644 (In Varnhagen, 1854-7c: 58),
depois fora ajudante-de-ordens do ativo capitão de emboscadas Sebastião do Souto (Cf.
Coelho, 1654: 300), e, com a morte de Estêvão de Távora, em abril de 1638, assumiria o
comando da companhia daquele respeitado cabo brasílico, também um voluntário de
1630 (Cf. Coelho, 1654: 67 e 340). Tornara-se capitão André Vidal, portanto, em plena
campanha pela expugnação do sítio de Salvador e, desde então, ele estaria sempre entre
os protagonistas dos episódios mais importantes das lutas contra os holandeses, como na
campanha do conde da Torre, na épica travessia de Luís Barbalho Bezerra e na própria
321
conjura do Maranhão, como já vimos.
Pois bem, era para este homem que o governador Antônio Teles da Silva pe-
dia o salvo-conduto, num momento em que, além de Portugal e Holanda andarem às tur-
ras na disputa por domínios coloniais, a atmosfera em Pernambuco se mostrava a tal pon-
to agitada que uma Generale Missive87, escrita um mês antes da chegada de André Vidal
ao Recife, advertia as autoridades neerlandesas de que “é de temer que [os moradores
portugueses] se resolvam a uma insurreição contra este governo” (Apud Mello, 1956:
133). Realmente, a situação era grave, principalmente porque a economia açucareira de-
gringolava sob os rigores da contenda entre holandeses e luso-brasileiros, crise esta agra-
vada pela queda dos preços do açúcar no mercado internacional (Cf. Mello, 1956: 123).
Segundo Wätjen, “a falta de dinheiro na colônia havia assumido formas verdadeiramente
grotescas” (Wätjen, 1921: 223) e a imensa maioria de plantadores e senhores de engenho
via-se à beira da insolvência, afundando-se em dívidas agravadas por juros extorsivos
(Cf. Mello, 1956: 116-7) e amesquinhando-se sob o bordão de credores holandeses e ju-
deus (Cf. Mello, 1947: 232-9; Mello, 1956: 105 e 119).
Esse estado de coisas só concorria para que se aprofundassem as diferenças
entre luso-brasileiros e holandeses. Por um lado, aqueles colonos que haviam tomado
empréstimos à W.I.C. eram coagidos por “uma multidão de procuradores” que, sumaria-
mente, lhes confiscavam o açúcar e seqüestravam os bens, mesmo tratamento que a eles
dispensavam os credores particulares, os agiotas e os corretores (Cf. Wätjen, 1921: 224)
– “Pobres senhores dos engenhos, que não tinham domínio útil, e só feitorizavam sua
Fazenda para a desfrutarem flamengos e judeus a puros embelecos”, sentenciará frei Ma-
nuel Calado comentando o fato (Calado, 1648a: 206). Por outro lado, com as finanças em
frangalhos, falhavam os colonos no pagamento de impostos e os escabinos e escoltetos,
“que nenhum outro cargo executavam mais que argüir aos pobres moradores tudo aquilo
87 As Generale Missiven eram “[longas cartas] que o governo holandês em Pernambuco enviava periodi-camente ao Conselho dos XIX e que são verdadeiros relatórios sobre a colônia e suas necessidades.” (Mel-
322
que lhes ditava a imaginação” (Calado, 1648a: 205), os vexavam e tiranizavam na co-
brança das fintas (Cf. Calado, 1648a: 217, passim). A opressão era brutal (Cf. Wätjen,
1921: 224; Mello, 1956: 98-100) e sentida como intolerável, pois “se algum homem por-
tuguês trazia demanda com flamengo, saía com as mãos na cabeça, e por mais justiça que
tivesse, sempre deixava a pele por as custas” (Calado, 1648a: 214).
Além disso, as relações entre os luso-brasileiros e holandeses, que jamais ha-
viam sido harmoniosas (Cf. Mello, 1947: 233), “azedaram-se terrivelmente” (Mello,
1947: 239) em razão da intolerância religiosa que dominava o Alto Conselho naqueles
tempos. Sem nunca ter efetivado inteiramente as garantias de liberdade confessional, o
governo da Nova Holanda vinha endurecendo com os “papistas” desde 1640, quando
Nassau expulsou um grande número de frades do território ocupado (Cf. Varnhagen,
1854-7b: 318; Mello, 1947: 245). De mais a mais, cumpre lembrar que a emulação entre
holandeses e luso-brasileiros só se aguçara desde a restauração da corte de Lisboa e, na-
quele momento, os ânimos nacionais estavam sobremaneira excitados em virtude dos
acontecimentos no Maranhão e em Angola.
Evidentemente, André Vidal fora ao Recife de caso pensado, como ressaltam
Varnhagen (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 13), Wätjen (Cf. Wätjen, 1921: 230) e Gonsalves
de Mello (Cf. Mello, 1956: 130). Concordamos com estes autores que naquele propício
agosto de 1644, colocava-se um plano em execução: ia o tenente imbuído de seus ideais
revolucionários, calçado pelo apoio velado do governador e de D. João IV, com o objeti-
vo de encetar a luta pela restauração de Pernambuco por intermédio de uma articulação
com os endividados senhores de engenho e plantadores da Várzea do Capibaribe que,
desde 1641, formavam “o principal núcleo da reação contra os holandeses” (Mello, 1956:
75). Nesse grupo militava João Fernandes Vieira, “o homem destinado a converter a idéia
em ação” (Wätjen, 1921: 230). Aquele madeirense, “filho ilegítimo de Francisco de Or-
nelas Muniz, havido em mulher de condição humilde e talvez de cor, pelos anos de 1610”
lo, 1947: 25).
323
(Mello, 1956: 26), que viera para o Brasil quando tinha apenas 11 anos, provavelmente
sozinho, e que se fizera rico, como ele mesmo declarou, “com minha agência e indústria
e com as minhas mãos” (Apud Mello, 1956: 23), realmente era a pessoa certa para liderar
a sedição em Pernambuco. Era um personagem dúplice numa trama essencialmente am-
bígua. Com efeito, a vida de João Fernandes Vieira se equilibrava num jogo de antago-
nismos. Quando da invasão holandesa, ele teria se apresentado entre os primeiros volun-
tários (Cf. Mello, 1956: 27), mas é duvidoso, como aliás o são muitos aspectos da sua
biografia, que tenha combatido. O certo é que até 1635 foi o “encarregado da distribuição
de víveres” entre os aquartelados no arraial do Bom Jesus (Cf. Mello, 1956: 30) e que,
depois da sua queda, “foi um dos muitos que ficaram entre os holandeses” (Mello, 1956:
37). Naquela ocasião teria se aproximado de Jacob Stachouwer, membro do Alto Conse-
lho, por intermédio de cuja relação “Vieira estabeleceu ligações estreitas com os invaso-
res” (Cf. Mello, 1956: 34) e começou a amealhar a sua fortuna, primeiro trabalhando
como marchante de carnes, depois como feitor dos engenhos de Stachouwer e, a partir de
1638, como procurador do ex-conselheiro, que naquele ano regressava para a Holanda
(Cf. Mello, 1956: 42 e 45). Nessa função, Vieira alavancou os seus negócios e, em 1640,
era “o rendeiro principal dos dízimos, escabino de Maurícia e pessoa de confiança do
Alto Conselho (...), um proeminente ‘amigo dos holandeses’” (Wätjen, 1921: 230; cf.
Mello, 1956: 49, passim). Em 1642, era um homem abastado – possuía cinco engenhos,
criava gado e cortava pau-brasil (Cf. Mello, 1956: 63) – e no ano seguinte ligar-se-ia de-
finitivamente à “nobreza rural”, casando-se com D. Maria César Berenguer de Andrada
(Cf. Mello, 1956: 67-8). Entretanto, como os ricos da sua classe, também Fernandes Vi-
eira era um homem endividado por volta de 1640 (Cf. Mello, 1956: 52) e, consta que, ao
menos desde 1639, colaborava com os luso-brasileiros (Cf. Mello, 1956: 68-70). José
Antonio Gonsalves de Mello, o biógrafo de quem tomamos estas informações, pinta des-
324
sa personalidade doble e controversa um retrato bastante sugestivo que nos remete ao
aforismo do velho Sá de Miranda88, no qual Sérgio Buarque Roberto DaMatta encontra-
ram ecos do “espírito” luso-brasileiro (Cf. Holanda, 1936: 81; DaMatta, 1993: 125):
“Servindo aos holandeses e tratando de grangear com eles a sua vida, mas ‘com diferença nos costumes’, como acentuou no testamento, Viei-ra não se distanciou dos seus conterrâneos. A colaboração com uns não o afastou dos outros. Homem economicamente poderoso, influente jun-to aos holandeses, amigo de dar para ganhar afeições e irmandades, o seu prestígio firmou-se entre os seus contemporâneos de Pernambuco no mesmo tempo em que se distinguia pela sua colaboração com os dominadores e pela sua ‘apertada amizade’ com Stachouwer.” (Mello, 1956: 70-1)
A conjuração foi concertada entre André Vidal e João Fernandes Vieira (Cf.
Calado, 1648a: 231-3) e assim que o tenente deixou o Recife, em 4 de outubro, começa-
ram a circular rumores de que se preparava o levante (Cf. Mello, 1956: 138-44). Real-
mente, enquanto Vieira procurava galvanizar os sequazes na Várzea e aprestar manti-
mentos para a tropa (Cf. Mello, 1956: 148), Vidal tratava de providenciar as armas junto
ao governador e pensar numa fórmula para mobilizar o efetivo sem despertar suspeitas.
Tudo tinha que ser feito à socapa porque D. João IV não podia entrar em rota de colisão
com os Estados Gerais em virtude da posição delicada de Portugal na conjuntura euro-
péia. Sendo assim, André Vidal pôs em prática um plano engenhoso. Primeiro fez ir ao
Recife, em janeiro de 1645, o capitão Antônio Dias Cardoso para dar apoio logístico a
Fernandes Vieira na preparação do levante (Cf. Mello, 1956: 147). Depois, em 25 de
março, o tenente de mestre-de-campo, que estava na fronteira do rio Real, convocou, sob
a chancela do governador-geral, Henrique Dias e D. Antônio Filipe Camarão e determi-
nou que os capitães deslocassem os seus homens em direção a Pernambuco. Concomitan-
temente, escreveu uma carta a Antonio Teles da Silva informando-o que Dias havia fugi-
do com a sua gente para se juntar aos insurretos de Pernambuco e que ele mandara o ter-
88 “Pouco por força fazemos – isso que é, por saber veio – todo o mal jaz nos extremos, – o bem todo jaz no
325
ço de Camarão em sua captura. O governador-geral, que era um dos atores da trama, co-
locou o assunto em conselho em 31 de março, o qual aprovou a medida de André Vidal, e
comunicou os holandeses do fato, acrescentando que já mandara colocar as tropas de
sobreaviso, caso fosse necessária uma intervenção mais incisiva para prender Henrique
Dias e sufocar a rebelião que se fazia anunciar (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 16; Mello,
1954: 30-1).
Entrementes, João Fernandes Vieira deixava tudo em ponto de bala para a de-
flagração do levante. Enquanto aguardava a chegada das tropas de Henrique Dias e de D.
Antônio Filipe Camarão, tida como certa para maio (Cf. Mello, 1956: 152), conservava o
capitão Antônio Dias Cardoso em compasso de espera na mata de pau-brasil que ele ar-
rendava, e tratava de apaziguar as divergências entre os radicais, o seu grupo, e os mode-
rados, dividindo o comando das ações com Antônio Cavalcanti, líder destes (Cf. Mello,
1956: 147). Em 15 de maio assinavam os cabos da conjura “em nome da liberdade divi-
na” e “para vingar agravos e tiranias” (Apud Varnhagen, 1854-7c: 16) a patente que no-
meava capitães a Miguel Gonçalves e Amador de Vilas, “com poderes para recrutar gen-
te, requisitar abastecimentos, perdoar crimes e dispensar o pagamento do que devessem a
holandeses e judeus, conceder alforria aos escravos que tomassem armas etc.” (Mello,
1956: 150). Oito dias depois, João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e mais 16 cons-
piradores pactuaram o ato de sublevação contra o domínio holandês:
“Nós abaixo assinados nos conjuramos e prometemos em serviço da liberdade não faltar a todo tempo que for necessário com toda a ajuda de fazenda e pessoas contra todo o risco que se oferecer contra qualquer inimigo, em restauração da nossa Pátria, para o que nos obrigamos a manter todo o segredo que nisto convém, sob pena de que, quem o con-trário fizer, ser tido por rebelde e traidor e ficar sujeito ao que as leis em tal caso permitem e debaixo deste cumprimento nos aliamos em 23 de maio de 1645.” (In Mello, 1956: 151, grifo nosso)
Em 30 de maio, a notícia da insurreição veio à tona na forma de uma denún-
meio.”
326
cia anônima entregue ao Alto Conselho por um médico sefaradi e, poucos dias depois, foi
dada ordem de prisão aos insurretos, sob pretexto de cobrança de dívidas (Cf. Mello,
1956: 152 e 155). Desde então, João Fernandes Vieira “nunca mais dormiu em sua casa,
senão por os matos, e em diferentes partes” (Calado, 1648a: 244). No dia de Santo Antô-
nio, 13 de junho de 1645, era deflagrado o levante, indo os conjurados, em número de 50,
se aquartelarem num engenho vizinho ao de Fernandes Vieira, na margem esquerda do
Capibaribe (Cf. Calado, 1648a: 254; Mello, 1956: 162). Deste dia até o final de julho,
alternam-se pequenos recontros – o primeiro deles ferido na Ipojuca, por volta de 20 de
junho – (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 19; Mello, 1956: 165), deslocamentos dos insurretos,
que se escondiam pelas matas e se refaziam nos engenhos dos simpatizantes da causa
(Cf. Mello, 1956: 172), protestos oficiais do Alto Conselho dirigidos ao governador-geral
(Cf. Calado, 1648a: 260-2) e manobras das tropas holandesas (Cf. Mello, 1956: 170;
Wätjen, 1921: 233).
Como observa Wätjen, há dois aspectos a se destacar dessa fase das ativida-
des, as quais se concentravam ao sul do Recife. O primeiro é que “com muita rapidez
cresceu o número de combatentes pernambucanos da campanha libertadora” (Wätjen,
1921: 231). Realmente, no final de junho, a força restauradora, à qual já se juntara o capi-
tão Antônio Dias Cardoso “com 40 soldados práticos e bem armados” (Mello, 1956:
167), contava um efetivo de “mais de 900 homens, ‘afora mulatos e negros’” (Mello,
1956: 169), no entanto, “os mais deles desarmados” (Calado, 1648a: 264). O segundo
aspecto relevante é “que a luta libertadora teve que começar pelas guerrilhas” (Wätjen,
1921: 233), não só por parte dos levantados (Cf. Calado, 1648a: 271), mas também por
parte dos holandeses, que se punham ao encalço dos pernambucanos em “pequenos des-
tacamentos de exploração” sob as ordens do capitão Jan Blaer, “que tinha fama de guerri-
lheiro destemido (...), [pois] havia empreendido uma expedição bem sucedida contra os
negros ‘selvagens’ que viviam na mata de Palmares” (Wätjen, 1921: 233). Neste sentido,
cumpre frisar que se instaurava, já nos alvores da guerra de restauração, o processo que
327
iria determinar a derrocada do domínio holandês no Brasil, como bem ponderou Evaldo
Cabral de Mello – a “impregnação” da guerra de Flandres pela guerra brasílica (Cf. Ca-
bral de Mello, 1998: 370). De fato, isto vai ocorrer, claramente, no primeiro episódio de
maior repercussão dessa fase da luta contra os holandeses.
No dia 31 de julho de 1645 os insurretos se determinaram, finalmente, a abrir
as hostilidades contra o inimigo, pois as tropas do coronel Hendrick van Haus já se apro-
ximavam de onde eles estavam estacionados (Cf. Calado, 1648a: 273; Wätjen, 1921: 236;
Mello, 1956: 170 e 174). Embora a propriedade do Covas fosse “a mais alterosa, e espa-
çosa que no sertão de Pernambuco havia” (Calado, 1648a: 270), “o lugar em que estavam
não era acomodado para receber ao inimigo, e brigar com ele, porquanto além de o ini-
migo nos poder acometer por muitas partes, não havia ali lugar para retirada” (Calado,
1648a: 273). De mais a mais, os 22 dias em que ali acantonaram foi tempo suficiente
para se ajuntar todas as volantes que davam as sortidas contra os holandeses, atrair parti-
dários da causa e, o mais importante, receber a notícia da aproximação dos terços de Fili-
pe Camarão e Henrique Dias, que “chegariam àquele sítio dentro em cinco até seis dias”,
como informara uma sentinela (Cf. Calado, 1648a: 271-3).
Sendo assim, João Fernandes Vieira e os seus efetivos deixaram a proprieda-
de do Covas e foram se aquartelar no outeiro das Tabocas, situado na região do atual mu-
nicípio de Vitória de Santo Antão, local escolhido pelo capitão Antônio Dias Cardoso
(Cf. Mello, 1956: 174), “um experimentado herói da ‘guerra brasílica’” (Mello, 1989:
252). Tem razão Wätjen em afirmar que aquela era “uma posição admiravelmente criada
pela natureza” (Wätjen, 1921: 236), pois como explica o frei Manuel Calado, o topônimo
definia bem o lugar: “um alto e empinado monte todo cercado de tabocais mui cerrados
(...), uma certa casta de canas bravas, grossas, e todas cheias de rígidos, e agudos espi-
nhos, que aonde chegam não há vestido que se possa resistir a seus gadanhos, e puas”
(Calado, 1648a: 273-4). Era o terreno ideal para se empreender uma batalha sob as con-
dições da guerra brasílica, especialmente porque vinham mal armados os insurgentes,
328
“um exército que dispunha apenas de 300 espingardas, estando na sua grande maioria,
equipado de espadas, estoques, facões, dardos e sobretudo paus tostados, situação, aliás,
típica dos primeiros tempos da revolta” (Cabral de Mello, 1998: 343).
A batalha das Tabocas feriu-se no dia 3 de agosto de 1645, quando as tropas
de van Haus – “mil e quinhentos soldados de armas de fogo, que eram a flor da soldades-
ca holandesa (afora muitos índios caboclos)” (Calado, 1648b: 13) – por quatro vezes
investiram o contra o serro e por quatro vezes foram rechaçadas pelos terços do capitão
Antônio Dias Cardoso (Cf. Calado, 1648b: 14, passim)89. Evidentemente, a vitória veio a
levantar o moral da tropa, mas, como observa Capistrano de Abreu, sua conseqüência
mais objetiva “foi proporcionar armas de fogo e munições tiradas aos inimigos mortos”
(Abreu, 1907: 137).
Nesse ínterim, Antônio Teles da Silva, pressionado pelo Alto Conselho do
Recife, resolvera tomar providências contra os insurretos, dando seguimento à pantomi-
ma montada para ludibriar os holandeses. Aproveitando-se da passagem da armada de
Salvador Correia de Sá e Benevides que seguia para Angola, ordenou o governador-geral
que se destacasse dela uma flotilha que seria guarnecida com tropas pagas, as quais devi-
am desembarcar em algum ponto do sul de Pernambuco. Ao governador do Rio de Janei-
ro determinou que ancorasse no Recife, fazendo-o portador de uma carta ao Alto Conse-
lho na qual explicava estarem seguindo as tropas “para obrigarem os sublevados de Per-
nambuco e os seus auxiliares a depor as armas” (Apud Varnhagen, 1854-7c: 28). É muito
difícil acreditar que as autoridades holandesas ainda dessem crédito às falácias do gover-
nador-geral, especialmente naquela altura dos acontecimentos, pois os cabos dos dois
regimentos mandados para sufocar a rebelião eram, simplesmente, “o velho Martim Soa-
res Moreno e o ardente Vidal de Negreiros” (Abreu, 1907: 136), notórios veteranos das
89 Segundo o biógrafo do mulato madeirense, “João Fernandes Vieira não tomou parte ativa na luta, a pedi-do de muitos, para não arriscar a vida e com ela talvez a causa da restauração” (Mello, 1956: 174). Tam-bém não participaram os terços de Filipe Camarão e Henrique Dias, que ainda não haviam chegado ao teatro da guerra.
329
lutas contra os batavos. Seja como for, as tropas – “1.800 portugueses armados até os
dentes” (Wätjen, 1921: 238) – desembarcaram em Serinhaém a 28 de julho (Cf. Varnha-
gen, 1854-7c: 29) e a 4 de agosto já rendiam o forte holandês (Cf. Abreu, 1907: 136).
Em 16 de agosto de 1645, na vila de Santo Antônio do Cabo, reuniam-se aos
insurgentes pernambucanos de João Fernandes Vieira e Antônio Dias Cardoso, que já
vinham acompanhados dos terços de Filipe Camarão e de Henrique Dias, os regimentos
de André Vidal e de Martim Soares Moreno (Cf. Mello, 1956: 175). Formava-se o exér-
cito da restauração, desde então sob o comando do mestre-de-campo André Vidal de Ne-
greiros90. No dia seguinte, os restauradores tomaram Casa Forte, rendendo, sem encontrar
resistência, os mercenários de van Haus, Blaer e Listry, os quais, entre mais de 300 ho-
mens, caíram prisioneiros (Cf. Wätjen, 1921: 238). A partir de então, o avanço do exérci-
to restaurador será em rota batida e as posições holandesas irão caindo sucessivamente,
não obstante o malogro das tentativas de conquistar o Rio Grande do Norte e Itamaracá.
Já em setembro, serão tomados os fortes de Nazareth e do Pontal, situados no cabo de
Santo Agostinho, posições de grande valor estratégico, e, até o final do ano, o do Cabede-
lo, na foz do Paraíba. Logo também estarão ocupadas Goiana, Porto Calvo, Penedo, O-
linda e Maurícia, a qual será destruída pelos holandeses quando da sua evacuação (Cf.
Wätjen, 1921: 238-45).
Assim, em quatro meses, os restauradores terão se assenhoreado do território
desde o rio de São Francisco até o Paraíba e os holandeses estarão sitiados no Recife e no
forte Orange, em Itamaracá. Praticamente se reproduzia a configuração dos primeiros
dias da invasão (Cf. Cabral de Mello, 1998: 70), o que realmente se verificará a partir de
meados de 1646, quando os luso-brasileiros fundarão o Arraial Novo do Bom Jesus (Cf.
Varnhagen, 1854-7c: 41) e os holandeses receberão o socorro da armada de James Hen-
90 “Vidal trazia já para Fernandes Vieira a nomeação de mestre de campo (...). Mas, se até então Vieira nada resolvia senão pela boca de Antônio Dias Cardoso, daí em diante, até tomar o mando o general Fran-cisco Barreto, foi Vidal o verdadeiro diretor da guerra, e assim entendeu o inimigo, que com ele manteve principalmente a correspondência (...).” (Varnhagen, 1854-7c: 30-1). Wätjen tem esta mesma opinião (cf.
330
derson e Sigismundt von Schkoppe, guarnecida com 2.000 homens (Cf. Wätjen, 1921:
248). Quer dizer, por um lado, os luso-brasileiros terão o domínio do terreno, e, valendo-
se das companhias ligeiras, manterão as bases holandesas sob sítio. Por outro lado, os
batavos manter-se-ão aquartelados intramuros e, servindo-se de sua eficiente esquadra,
controlarão a marinha.
Em decorrência desse estado de coisas, o exército restaurador resolveu res-
tringir o raio da ação militar ao Recife abandonando as posições conquistadas no Rio
Grande do Norte, Paraíba e Itamaracá e concentrando todas as suas forças no sentido de
apertar o quanto pudesse o cerco à cidade (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 41; Wätjen, 1921:
248; Cabral de Mello, 1998: 71). Temendo que os holandeses retaliassem com os seus
costumeiros ataques à população civil – a chamada “estratégia do hit and run” (Cabral de
Mello, 1998: 73) –, o comando brasílico resolveu evacuar os civis de toda a área ao norte
de Olinda, “o total de cerca de 20.000 pessoas (...), em proveito das freguesias do Cabo e
Ipojuca (...) e de toda a região compreendida entre a ribeira do Capibaribe e Serinhaém”
(Cabral de Mello, 1998: 222). Evidentemente, o território desocupado foi totalmente de-
vastado.
Os holandeses, por seu turno, sentindo as agruras do duro sítio ao qual esta-
vam submetidos e sabendo que a supremacia dos restauradores de Pernambuco provinha
da articulação entre os insurgentes e o Governo-geral do Brasil91, resolveu recorrer “à
velha tática observada no início da guerra” (Wätjen, 1921: 255), manter o quanto pudesse
a defesa da praça fortificada e valer-se de sua poderosa armada para tentar dispersar o
foco da campanha e obter víveres (Cf. Handelmann apud Wätjen, 1921: 255). Destarte, o
comando batavo deliberou-se por enviar uma esquadra guarnecida de 1.100 homens sob
Wätjen, 1921: 238). 91 Todas as dúvidas acerca do apoio de Antônio Teles da Silva e de D. João IV aos conjurados foram diri-midas quando, em 9 de setembro de 1645, o almirante Lichtardt aniquilou a esquadra de Jerônimo Serrão de Paiva, a qual desembarcara os regimentos de André Vidal e Martim Soares Moreno na baía de Taman-daré e seguia, então, para Portugal. A ação de Lichtardt foi tão espetacular que o comandante Serrão de Paiva sequer teve tempo para destruir os documentos secretos que levava a bordo e que revelavam o con-luio entre el-rei, o governador-geral e os pernambucanos (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 34-5; Wätjen, 1921:
331
as ordens de Lichtardt e Henderson com o objetivo de reconquistar Penedo (Cf. Wätjen,
1921: 255). Agiam com acerto os neerlandeses, pois, conseguindo assenhorear-se da foz
do São Francisco, lograriam interceptar a via de comunicação entre Salvador e o Arraial
Novo e se avizinhariam dos rebanhos de Sergipe (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 46).
Em 4 de novembro de 1646, os holandeses tomaram o forte Maurício, mas
não seriam muito ditosos os seus dias à beira do São Francisco. Primeiro, o almirante
Lichtardt, tomado por cólicas e desarranjos, morreria em poucos dias (Cf. Wätjen, 1921:
255). No mês seguinte, Henderson pretendeu desalojar uma posição luso-brasileira ao sul
de Penedo, mas levou tal rebate o destacamento de La Montagne, pego em uma embos-
cada tipicamente brasílica (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 47), que o próprio comandante clas-
sificou a derrota como “indesculpável” (Apud Wätjen, 1921: 256) e levou os oficiais que
sobreviveram à corte marcial. Seguiu-se daí o sítio da praça e, com o sítio, vieram a fo-
me, as epidemias e as deserções. Em três meses, a situação tornava-se insustentável e
“Henderson teve assim de voltar para o Recife com as mãos abanando” (Wätjen, 1921:
256).
Não queremos ser repetitivos, mas reincidentes eram os holandeses. Diante
da fragorosa derrota militar em Penedo, resolveu o comando retaliar, mais uma vez, tru-
cidando os moradores imbeles da ilha de Itaparica, com o objetivo de ocuparem a ilha e,
estacionados ali, ameaçarem a capital do Estado do Brasil. Ali desembarcaram, a 8 de
fevereiro de 1647, 2.400 soldados que deram curso, nas palavras de Wätjen, a um “horrí-
vel massacre” (Wätjen, 1921: 257-8). Escusado é comentar, mais uma vez, os métodos de
Sigismundt von Schkoppe e seus sequazes, mas não podemos calar diante da covardia do
exército mais luzente e poderoso do século XVII. Basta, para isso, que mencionemos o
depoimento coevo do insuspeito Moreau:
“(...) os soldados não pouparam aí uma só vida, mataram até mulheres e crianças, saquearam tudo quanto puderam, e só o incendiar lhes foi pro-
240).
332
ibido; de modo que duas mil pessoas, que contava esta ilha, pereceram, umas pelo ferro, outras afogadas nos barcos, em que a tropel se lança-vam, a fim de passarem à cidade da Bahia, quando chegaram os holan-deses; os quais deste modo viram vingada a perda que acabavam de ex-perimentar no rio de São Francisco.” (Moureau, 1652 apud Varnhagen, 1854-7c: 47)
Não podemos deixar de evocar também a indignação de João Fernandes Viei-
ra, contida na carta que escreveu a seu antigo patrão e amigo Jacob Stachouwer em 14 de
fevereiro de 1647, a qual também escusamos comentar:
“Nunca mais havemos de nos sujeitar aos potentados holandeses. Prefe-rimos morrer vinte vezes a suportar, mais, semelhante tirania. Os tem-pos em que plantadores convidavam um Sigismundo von Schkoppe pa-ra banquetes estão definitivamente passados. E mesmo que as cousas corram mal para nós, antes invocaríamos a proteção do Sultão da Tur-quia do que a do Senhor von Schkoppe. O nosso poder é invencível, pois 100 portugueses na capoeira valem 1.000 neerlandeses em campo raso. Além disso, os negros nos servem com mais gosto que aos holan-deses!” (Apud Wätjen, 1921: 257)
Naquele momento, a guerra chegara ao impasse. Enquanto os luso-brasileiros
mantinham o Recife em apertado sítio, os holandeses, aquartelados em Itaparica, coloca-
vam em xeque a cidade de Salvador. No Reino, compelido pelo padre Vieira, seu confes-
sor, e oprimido pela conjuntura européia sob as negociações da paz de Munster que pori-
am termo à guerra dos oitenta anos, D. João IV pensava em capitular em Pernambuco
para preservar a Bahia sob o seu senhorio e conservar o aliado neerlandês na adversa
conjuntura européia (Cf. Wätjen, 1921: 251-2 e 268). Assim, para contemporizar com os
holandeses, el-rei dera ordens ao governador-geral para que determinasse a retirada das
tropas em Pernambuco (Cf. Wätjen, 1921: 252), onde, comenta Varnhagen, elas “foram
recebidas com pasmo, e felizmente não chegaram a ser executadas” (Varnhagen, 1854-
7c: 50). Aliás, essa atitude do comando só vinha a confirmar uma realidade que já se in-
sinuava há algum tempo. Em face da tibieza do trono de Lisboa em relação ao apoio à
causa da restauração de Pernambuco, crescia entre os combatentes a convicção de que a
guerra que empreendiam, antes de ser uma campanha em honra d’el-rei de Portugal, era
333
uma luta pela preservação do Brasil. De fato, em outubro de 1645, os moradores de Per-
nambuco dirigiram um Manifesto de Direito a D. João IV no qual os signatários afirma-
vam:
“(...) com toda a submissão prostrados aos pés de Vossa Majestade, tornamos a pedir socorro, e remédio com tal brevidade, que nos não o-brigue a desesperação. Pelo que toca ao culto divino, a buscar em outro Príncipe Católico o que de Vossa Majestade esperamos” (In Calado, 1648a: 212)
Em 28 de maio de 1646, por ocasião da chegada dos reforços de von Sch-
koppe, os mestres-de-campo André Vidal de Negreiros e Martim Soares Moreno, res-
pondendo a Antônio Teles da Silva que os instava a depor as armas, advertiram o gover-
nador-geral:
“Por remate de tudo diremos a V. S. que, desejando muito achar com-panheiros para nos sair desta confusão, nem um só homem achamos que nos quisesse seguir, antes é forçado encobrir nossos ânimos, por-que, se no-los conhecerem, temos por certo que nos hão de tirar as vi-das, e estamos com suspeitas que estes homens, depois de virem estas ordens de V. S., têm mandado pedir socorro a algum príncipe católico, e tenha V. S. por certo que, se houver algum que lhe queira conceder, ainda que não passe de mil infantes, que com eles chegarem, e algumas armas que faltam a estes moradores, hão de ser senhores do Recife em muitos breves dias, e hão de ser muito fixos e muito locais vassalos ao príncipe que os livrasse deste cativeiro.” (Apud Garcia, 1927c: 64)
Mais direto ainda seria João Fernandes Vieira, que não tinha papas na língua,
em carta datada de 11 de setembro do mesmo ano:
“(...) Quebramos as nossas cadeias e nenhuma obediência vos devemos mais. Se não fosse a esperança, que tínhamos, de que chegaria essa o-portunidade, há muito teríamos implorado o auxílio do rei de Espanha ou de França e, se eles não quisessem saber de nós, teríamos recorrido aos Turcos e Mouros. Não vos iludais, que não foi feito para vós o Bra-sil.” (Apud Garcia, 1927c: 64)
Se não conseguia demover o comando brasílico para sensibilizar os holande-
ses, não tinha melhor sorte D. João IV aliciando diretamente o seu “aliado natural”. Ora,
334
em 19 de agosto de 1647, estará o embaixador Sousa Coutinho em Haia propondo aos
Estados Gerais a entrega do território desde o Rio Grande do Norte até Sergipe e ainda
prometendo uma indenização de 10.000 caixas de açúcar, em troca do cessar-fogo no
Brasil, proposta que foi olimpicamente recusada (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 56-8). Agiam
com perspicácia os neerlandeses, pois tudo levava a crer que, mais uma vez, D. João IV
estivesse blefando, pois em 12 de janeiro havia nomeado Francisco Barreto mestre-de-
campo-general em substituição a João Fernandes Vieira, fato do qual estavam cientes os
holandeses quando da formulação da proposta, pois o novo comandante fora feito prisio-
neiro quando se aproximava do Brasil, em fins de abril, tendo a notícia chegado à Holan-
da em agosto (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 53). De mais a mais, em Lisboa apressavam-se
os preparativos para a partida da armada de socorros do novo governador-geral conde de
Vila-Pouca de Aguiar, embora se saiba que ela “tinha ordens expressas de limitar-se à
expulsão dos holandeses de Itaparica, cuja ocupação poderia ser apresentada como uma
violação do tratado de tréguas de 1641” (Cabral de Mello, 1998: 202), fato que levou,
inclusive, von Schkoppe a ordenar a desocupação da ilha, uma semana antes da armada
fundear na baía de Todos os Santos em 22 de dezembro (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 51).
Por outro lado, a opinião pública holandesa se agitava num debate acerbo, provocado por
pasquins e panfletos, sobre o domínio colonial no Brasil e os Altos Poderes e o Conselho
dos XIX chegavam à conclusão de que a manutenção de Pernambuco era, mais do que
um problema particular da combalida W.I.C., uma questão de Estado para a Holanda,
uma potência européia em plena afirmação nacional (Cf. Wätjen, 1921: 259-61). Destar-
te, os Estados Gerais e a Companhia juntaram esforços para armar uma potente armada,
com 18 navios de guerra e 7.350 soldados, comandada pelo célebre Witte Corneliszoon
With, que partiria para o Brasil em fins de dezembro de 1647 (Cf. Wätjen, 1921: 262).
Quer dizer, no início de 1648 havia um disposição clara, de lado a lado, para
que o impasse na guerra de Pernambuco se resolvesse por força d’armas e a conjuntura
indicava uma superioridade luso-brasileira na correlação de forças. Em primeiro lugar,
335
porque a ocupação de Itaparica, embora estrepitosa, não resultara em conseqüências mili-
tares mais objetivas, ao passo que se apertava o cerco ao forte Orange e ao Recife, sendo
que desde o início de novembro as tropas estacionadas à margem do Capibaribe bombar-
deavam diariamente as cidadelas de Antônio Vaz e da península (Cf. Wätjen, 1921: 263).
Em segundo lugar, porque a aliança com os índios no Ceará e no Rio Grande do Norte,
base da manutenção do domínio holandês naquelas capitanias, era rompida em virtude
dos equívocos do “sanguinário tenente-coronel Gartsman” (Cf. Wätjen, 1921: 263). Fi-
nalmente, mas não menos importante, porque Francisco Barreto, valendo-se de sua ami-
zade com o filho de seu carcereiro, evadira-se da prisão e apresentara-se ao Arraial Novo
a 23 de janeiro, assumindo o comando do exército restaurador (Cf. Varnhagen, 1854-7c:
54).
Portanto, quando a armada de With chegou ao Recife, em 18 de março de
1648, imediatamente os holandeses começaram a planejar as ações para o rompimento do
cerco atroz que lhes impunham as forças da restauração e, um mês depois, Sigismundt
von Schkoppe saía com as suas tropas do Recife, tomando logo alguns bastiões pelo lado
sul (Cf. Wätjen, 1921: 264). Todavia, não seria venturosa a jornada do “arrogante Sigis-
mundo com o grande exército que conduzia” (Rocha Pitta, 1730: 247), pois, como ressal-
ta Varnhagen, “um general experimentado, já conhecedor da guerra do Brasil, por haver
sido um dos cabos que em 1640 havia acompanhado a Luís Barbalho, havia tomado o
mando de nossas forças” (Varnhagen, 1854-7c: 54). Com efeito, o mestre-de-campo-
general Francisco Barreto de Menezes havia deslocado as tropas da restauração para uma
“posição inigualável” (Wätjen, 1921: 264), a qual agasalharia a primeira vitória do Exér-
cito brasileiro:
“Travou-se a primeira batalha dos Guararapes nestas colinas em 19 de abril de 1648, havendo 2.500 homens do lado português e coisa de 6.000 do lado contrário, comandados aqueles por Francisco Barreto e o inimigo por Sigemundt von Schkoppe. Acampados os pernambucanos na crista dos montes – com o quartel-general no lugar onde está hoje a igreja votiva –, foram atacados rijamente por um exército superior em número e material, porém desfavorecido pelas condições do terreno, ra-
336
zão principal de sua derrota. Relamente, ao primeiro embate cederam as vanguardas, e chegaram os holandeses a investir o vale, em cujas en-costas se mantinham as reservas de Francisco Barreto. Mas, na carga final, ladeiras abaixo, foram levados de vencida, abandonando no cam-po nada menos de 515 mortos, 523 feridos, mais de trinta bandeiras. Dos sete coronéis que os comandavam, dois morreram, um foi captura-do e Segismundo ferido. Com razão se comemora, com a batalha dos Guararapes, o destroço do domínio flamengo no Brasil: foi o seu maior revés.” (Calmon, 1950: 248)
De fato, desde então, a “ventura da guerra” não mudaria de curso. Efetiva-
mente, os holandeses permaneceriam sitiados, sentindo as agruras do cerco exacerbarem-
se com o passar dos dias durante todo o ano de 1648, do qual cumpre apenas ressaltar a
tomada de Olinda por Henrique Dias, em 22 de abril (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 55), a
morte de D. Antônio Filipe Camarão, em agosto (Cf. Varnhagen, 1854-7c: 78-9), a pu-
blicação, em outubro ou novembro, do Papel forte do padre Vieira defendendo a entrega
de Pernambuco aos holandeses (Cf. Garcia, 1927c: 50 e 57) e os ataques da esquadra de
With pelo litoral brasileiro, desde maio até dezembro (Cf. Varnhagen, 1854-7a: 79-80).
Entrando 1649, em 19 de fevereiro, confirmar-se-ia a preponderância brasílica na arena
da guerra de restauração:
“Com 3.500 soldados o coronel van den Brande decidira ocupar a vár-zea, sem cometer o erro de Sigemundt von Schkoppe, que fora tentar a conquista das alturas em que estavam os pernambucanos. Estes espera-ram que os holandeses iniciassem a retirada – uma vez que não tinham querido a iniciativa do combate – e se arrojaram sobre eles na campina, desbaratando-os numa ação surpreendente. Morreu o coronel van den Brande com 173 oficiais e sub-oficiais e 855 soldados, o que atesta a ferocidade da luta. A segunda batalha dos Guararapes completou o de-sastre flamengo que tivera começo no ano anterior: tirou ao estrangeiro a suposição de poder retomar pelas armas o terreno perdido e pratica-mente o aprisionou na praça do Recife, a depender dos auxílios maríti-mos, que lhe mandasse Holanda.” (Calmon, 1950: 255)
Nos anos que decorreram desde a segunda batalha de Guararapes até entra-
rem no Recife João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros e Francisco Barreto de
Meneses, em 27 de janeiro de 1654, nada mudaria de figura em Pernambuco, repetindo-
se nos cinco anos finais da guerra de restauração as mesmas condições dos três anos ini-
337
ciais da guerra de resistência. Ou seja, um panorama onde os holandeses permanecerão
encurralados no Recife, as volantes brasílicas estarão garantindo a senhoria do terreno e a
solução da contenda dependerá de qual lado impuser a sua preponderância no domínio da
marinha. É por isso que Evaldo Cabral de Mello diz que “a guerra de restauração vindi-
cou a guerra volante” (Cabral de Mello, 1998: 372). Destarte, a restauração pernambuca-
na configurou-se como uma afirmação cabal da eficácia da guerra brasílica, a qual é o
mais genuíno produto cultural das primícias da formação nacional brasileira, como temos
procurado demonstrar. O que torna esse fato especialmente significativo é que a afirma-
ção da guerra brasílica processou-se num tempo cujo “espírito” era, fundamentalmente,
bélico e numa situação que era, antes de qualquer coisa, “ardente”: a luta de um povo
dotado de parcos recursos materiais pela salvaguarda do seu território, usurpado por um
dos exércitos mais poderosos do Mundo. O relatório de Michiel van Goch, comissário da
W.I.C e testemunha presencial da segunda batalha de Guararapes, redigido apenas três
dias depois do recontro, é uma peça de pura sensibilidade etnográfica, pois ao mesmo
tempo em que revela a peculiaridade do jeito brasílico de guerrear, aponta a sua incon-
testável superioridade nas condições do teatro de operações tropical. Assim, afirmam-se,
ardentemente num mesmo evento, a terra e o povo, as pedras fundamentais de uma na-
ção:
“A respeito do combate acima relatado, notei sobretudo duas particula-ridades que (em meu parecer) merecem muita atenção: em primeiro lu-gar, as tropas do inimigo, saindo dos matos e detrás dos pântanos e ou-tros lugares, onde têm a vantagem da posição, atacam sem ordem e em completa dispersão e se aplicam em romper diferentes quartéis. Em se-gundo lugar, as tropas inimigas são ligeiras e ágeis para correr adiante ou afastar-se, e por causa de sua crueldade inata são temíveis também: elas se compõem de Brasilianos, Tapuias, Negros, Mulatos, Mamalu-cos, etc., todas as nações do país; aliás, Portugueses e Italianos, que têm muita analogia com os naturais da terra quanto à sua constituição, de maneira que atravessam e cruzam os matos e os pântanos, sobem aos montes, tão numerosos aqui, e descem, e tudo isso com uma velocidade e agilidade, que são verdadeiramente notáveis; nós, ao contrário, com-batemos formados e colocados da maneira que se usa na mãe-pátria, e nossos homens são indolentes e fracos, de modo algum afeitos à consti-tuição do país, do que resulta que essas espécies de ataques com armas
338
de fogo, como o de que aqui trato, devem ter bom êxito inevitavelmen-te, e que, rechaçando os nossos batalhões e pondo-nos em fuga, eles nos matam maior número de soldados na perseguição do que no próprio combate, - esta ocasião, ai de nós! não fez mais do que fornecer prova disso; aliás, as peças de artilharia de campanha, não podendo ser dispa-radas sobre bandos dispersos, tornaram-se inteiramente inúteis ou, para melhor dizer, verdadeiras charruas para o nosso exército; sem contar com uma porção de outros inconvenientes, bastante numerosos para se-rem relatados aqui. E o que é representado agora e demonstrado à as-sembléia, não tem outro fim senão tomar em consideração se não será necessário prestar atenção para o futuro, a fim de seguir uma mesma maneira de combater que eles, e servirmo-nos de armas e de tropas se-melhantes às suas, ao menos em parte, e tanto como delas nos puder-mos proporcionar.” (Van Goch, 22-02-1649 in Garcia, 1927c: 111)
Portanto, a vitória conseguida “a custa do seu sangue, vidas e fazendas” (A-
pud Cabral de Mello, 1998: 14) viria a se constituir num símbolo poderosíssimo para a
auto-afirmação da nação que surgia no trópico, pois, além de ter salvaguardado, definiti-
vamente, a integridade do território, numa afirmação eloqüente de amor à terra, ela foi
conseguida, precipuamente, em virtude da força da raça daquele “povo novo”, faltos que
sempre estiveram os infantes brasílicos de “munições de boca e de guerra” e do apoio do
soberano da Metrópole, fosse ele o Habsburgo, fosse ele o Bragantino. De mais a mais, a
vitória guerra de Pernambuco deveu-se a um jeito próprio de guerrear e, como vimos
tentando demonstrar neste trabalho, o estilo é uma expressão do ethos e o ethos revela o
“espírito do povo”, a matriz e a moeda da formação nacional. Sendo assim, consideramos
a restauração pernambucana como um “fato social” que revela, significativa e ardente-
mente, “como os destinos de uma nação ao longo dos séculos vêm a ficar sedimentados
no habitus de seus membros individuais” (Elias, 1989: 30):
“Foi nesse período de luta que se ajuntaram num mesmo esforço as vá-rias raças que constituem o substrato do povo brasileiro. Ainda então foi que se começou a aprimorar o estilo da ‘guerra brasílica’, o do ata-que de surpresa, o da dispersão das tropas, o da mobilidade do comba-tentes, o da iniciativa individual. Uma antecipação do estilo brasileiro de jogar futebol, tão bem fixado por Gilberto Freyre como ‘um conjun-to de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de brilho e de espontaneidade individual... alguma coisa de dança e de capoeiragem. De dança teria a luta, a que assistiram, do alto das muralhas, os defensores do Arraial Velho, de três brasileiros
339
contra alguns flamengos: ‘parecia-nos que toureavam, pelo valoroso desenfreado com que obravam’, relembra um observador. Anos mais tarde, um mazombo de Pernambuco haveria de orgulhar-se das ações de seus conterrâneos, ao recordar sobretudo ‘a ciência experimental’ que ‘os naturais da terra’ tinham do estilo da guerra de emboscadas. E argumentava jactancioso, referindo-se aos reinóis: ‘se os Governadores nos propusessem os seus pareceres, antepondo o dos expertos na guerra brasílica, quiçá não sucedera o que sucedeu a Antônio Teles da Silva, quando mandou desalojar os holandeses de Itaparica contra o Mestre de Campo Rebelinho e de todos os mais peritos da guerra americana, por-que não perdera a flor da infantaria, cabos e o mesmo Rebelinho; nem tampouco acontecera o que aconteceu a D. Luís de Rojas, por dizer que não era macaco para andar pelos matos, porque não seria derrotado e morto como foi... nem finalmente seria necessário ao conde de Bagnuo-lo a sua retirada para a Bahia, se submetera os seus ditames ao dos na-turais’. Era já o sentimento de ufania por uma contribuição brasileira à arte militar.” (Mello, 1989: 238).
341
Súmula teórica
Temos sustentado neste trabalho que uma nação se define, sobretudo, “pela
Idéia que a governa” (Mauss, 1920: 28, ênfase no original). Neste sentido, partimos do
princípio de que o fulcro da identidade nacional não se encontra na urdidura dos aspectos
políticos que definem o Estado, mas na trama das disposições culturais que constituem a
tradição civilizacional de um povo. Assim, propusemos que a gênese e a essência de uma
nação devem ser buscadas através da reconstituição do seu ethos, isto é, perscrutando o
jeito de ser do seu povo em ação numa determinada conjuntura.
Ora, sob o nosso ponto de vista, o entendimento das situações históricas con-
cretas passa exatamente pela correlação entre a ação social que as provocou, os padrões
culturais enfeixados no “espírito do povo” que condicionaram esta ação e os constrangi-
mentos do “espírito do tempo” que ambienta tais situações. Assim, quando nos dedica-
mos a reconstituir o ethos na acepção que definimos, vale insistir, como um conceito
histórico, procuramos, por um lado, desvendar a dinâmica da ação social nos termos do
seu contexto, e, por outro, identificar os constrangimentos e recursos da estrutura que a
informa, no caso, os padrões da cultura.
Desta maneira, através da nossa abordagem do conceito de ethos como algo
resultante de uma dupla dialética entre a estrutura e a agência e entre a permanência e a
mudança (Cf. Introdução: 16-18) procuramos nos posicionar no campo das “propostas de
síntese” da teoria social moderna (Cf. Alexander, 1987 e 1990). Assim, esperamos que a
nossa análise empírica sobre o ethos brasílico, entendido como uma realidade sociológi-
ca prefigurativa mas não coextensiva ao ethos nacional brasileiro, possa vir a colaborar
na sustentação da idéia de que o mundo social é “ambivalente”, pois “no tempo, as ações
se transformam em instituições e estas, por sua vez, são transformadas por aquelas” (A-
brams, 1982: 2). Entendemos que esta é a principal contribuição do nosso estudo para o
debate corrente na teoria social contemporânea.
342
Sem embargo, a nossa maior motivação para o empreendimento deste estudo
não foi produzir contribuições para o desenvolvimento da Sociologia, embora tenhamos
agido com escrúpulos teóricos e metodológicos na condução dos procedimentos de pes-
quisa, reconstituição histórica, interpretação e análise. O que nos moveu nesta empreitada
foi o propósito de realizar aquela “tarefa que a sociologia ainda não enfrentou, ajudar
uma nação a conciliar-se com o seu passado” (Elias, 1989: 30), contribuindo, assim, para
a superação daquilo que Nélson Rodrigues chamou de “complexo de vira-latas, a inferio-
ridade que todo brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo” (Ro-
drigues, 1958: 52), e que Roberto DaMatta conceitua como “a recorrente visão negativa
de nós mesmos” (DaMatta, 1999: 2), tão presente no nosso cotidiano, nos meios de co-
municação de massa e no próprio obscurantismo das “tradições de estudos notoriamente
negativos da identidade nacional brasileira” (DaMatta, 1999: 2). Portanto, o nosso esfor-
ço foi empreendido, sobretudo, em favor do resgate da tão espicaçada auto-estima do
povo brasileiro e, desta maneira, talvez a maior contribuição do nosso estudo tenha sido a
relembrança do heroísmo de nossos antepassados, a quem rendemos preito reivindicando
que a luta deles não foi vã.
Colocamos toda a nossa energia neste trabalho para demonstrarmos que o e-
thos brasílico revelou o “espírito do povo” brasileiro e pretendemos que, bem ou mal
sucedidos nesta empreitada, a nossa tese sobre a longevidade do Brasil-nação possa vir a
representar algum avanço para a reflexão sobre a nossa identidade enquanto “povo”, ao
menos pela proposição de um balizamento mais preciso da emergência do sentimento
nacional entre nós. Para tanto, imbuídos de uma orientação teórica que cunhamos em
nossa dissertação de Mestrado – a de que para além das injunções conjunturais, o ethos
mantém a sua essência definidora “modulando-se” através do tempo (Cf. Caniello, 1993:
314) – procuramos aqui demonstrar que a Idéia que governa a nação brasileira originou-
se dos processos ocorridos entre o final do século XVI e o início do XVII e que, portanto,
o ethos brasílico guarda os fundamentos da identidade nacional.
343
Ora, nas sociedades ocidentais, esses fundamentos são incutidos nas consci-
ências dos indivíduos através de um mito nacional formulado por uma intelligentsia que
se dedica à desvelar o sentido do fluxo da experiência coletiva, através da reconstituição
da sua história (Cf. Lévi-Strauss, 1981: 63). Daí concordarmos com Weber no sentido de
que “a ‘comunidade de memórias’ constitui o elemento decisivo, em última instância, da
‘consciência nacional’” (Weber, 1921a: 903), pois, como propõe Anthony Smith, a nação
é uma entidade congregadora de “atributos culturais mais permanentes, como memória,
valor, mito e simbolismo” (Smith, 1993: 3). A propósito, foi partindo dessa perspectiva
menos substancialista e mais subjetivista que Marcel Mauss (Cf. Mauss, 1920) elaborou,
de maneira seminal, o conceito idealista de nação que abraçamos neste trabalho.
Entretanto, não podemos negligenciar o fato de que o conceito envolve tam-
bém critérios objetivos, pois uma nação é, concretamente, uma “comunidade política”92,
cujos membros estão submetidos a uma ordem institucional própria e participam de uma
mesma tradição étnica e cultural (Cf. Mauss, 1920; Gellner, 1993; Smith, 1993). Sendo
assim, a abordagem da gênese da formação nacional teve que se reportar, por um lado, ao
processo que a produziu e, por outro, à forma como este processo foi desencadeado. Quer
dizer, a origem e a essência do Brasil-nação foram perseguidas levando-se em conta,
fundamentalmente, a maneira pela qual se desenvolveram os seus processos formadores
básicos – a constituição do povo e do território, a conformação institucional e a configu-
ração de uma identidade própria enfeixada na sua tradição histórica e nos sentimentos de
inclusão que ela pontua –, pois eles denunciam, precisamente, o jeito de ser que caracte-
riza significativa e diacriticamente uma nação, já que acreditamos, seguindo Roberto
DaMatta, que “tanto os homens como as sociedades se definem por seus estilos, seus
modos de fazer as coisas” (DaMatta, 1986: 15).
92 “Em nossa terminologia, uma ‘comunidade política’ é constituída onde nós temos (1) um ‘território’; (2) a disponibilidade de força física para a sua dominação; e (3) a ação social que não está restrita exclusiva-mente à satisfação de necessidades econômicas ordinárias no quadro de uma economia comunitária, mas ela controla mais geralmente as inter-relações dos habitantes do território.” (Weber, 1921a: 902).
344
Tomando estas premissas como base epistemológica, procuramos identificar
nas primícias da formação brasileira elementos que sustentem a nossa tese de que o Bra-
sil se fez nação no primeiro meado de Seiscentos, na medida em que, naqueles tempos,
estabilizavam-se os seus caracteres definidores: havia um “povo novo” (Ribeiro, 1972:
70 e 1995: 19-20) etnicamente diferenciado, portador de uma cultura e uma identidade
próprias que se firmariam como elementos de uma tradição civilizacional particular; o
território estava praticamente configurado; firmava-se um perfil institucional que se re-
produziria pelos séculos seguintes; e, finalmente, consolidava-se o seu princípio ativo
mais essencial, os sentimentos de inclusão colocados à baila nos momentos dramáticos
de defesa do território frente ao invasor estrangeiro e elaborados pela incipiente intelli-
gentsia brasileira, que fala, modelarmente, pela voz de Brandônio: o amor à terra, a
“madre assaz benigna” (Brandão, 1618: 140), e o orgulho da raça oriunda de “uma mis-
tura de sangue assaz nobre” (Brandão, 1618: 107).
Tudo isso foi marcado por um estilo próprio de fazer as coisas, a emanação
concreta do ethos que nos proporciona a sua abordagem interpretativa, a qual indicou as
homologias entre a sociedade colonial e a sociedade contemporânea que nos permitiram
restaurar alguns liames do Brasil-nação. A seguir, sintetizaremos nossas principais con-
clusões sobre esses processos que reconstituímos no corpo da tese e as relacionaremos
com alguns princípios da teoria social contemporânea e das perspectivas analíticas mais
relevantes sobre o tema produzidas no âmbito do pensamento social brasileiro. Tencio-
namos, com isso, fundamentar melhor nossas ilações, revisitar a discussão acadêmica
clássica sobre a identidade brasileira e isolar os elementos estruturais do nosso mito his-
tórico da nacionalidade.
A etnia brasílica
Os dois fundamentos ideacionais básicos da nação, referências elementares
do credo gregário que sustenta a sua solidariedade interna, são o postulado de uma as-
345
cendência étnica comum do povo, elemento central da identidade coletiva (Cf. Weber,
1921a: 391; Smith, 1993, passim), e a configuração de um território soberano, base in-
dispensável para a auto-realização do povo conseguida através do desenvolvimento de
sua tradição civilizacional. Sendo assim, os processos de formação étnica e territorial são
elementos decisivos para a emergência da identidade nacional.
No caso de países formados por colonização, esses processos estão imbrica-
dos e envolvem contradições profundas, pois a construção da nação estará invariavel-
mente marcada por episódios de usurpação territorial, expropriação econômica e submis-
são das populações nativas, que, não raro, resultam no próprio extermínio destas últimas.
Como demonstramos neste trabalho, no Brasil isso não foi diferente, pois, como é sufici-
entemente sabido, a colonização representou um duro golpe para os ameríndios e a teoria
sobre o contato aponta para a presença marcante e perene de processos de “fricção inte-
rétnica” (Cf. Cardoso de Oliveira, 1964: 15-30 e 1967: 85) entre íncolas e adventícios.
Entretanto, houve uma dupla contrapartida a esse processo. Em primeiro lu-
gar, não há como negligenciar o fato de que muitos grupos indígenas sobreviveram à
“vasta, complicada e desumana letalidade” (Cf. Ab’Saber, 2000: 42) do contato, pois,
como observa um dos maiores especialistas no assunto da atualidade, “na Amazônia, os
povos indígenas detêm parte significativa de seus territórios e nichos ecológicos”, ao
passo que no Nordeste articula-se “o chamado processo de etnogênese, abrangendo tanto
a emergência de novas identidades como a reinvenção de etnias já reconhecidas” (Olivei-
ra, 1999: 18). Em segundo lugar, é também fato notório que a fusão das matrizes étnicas
marcou a constituição da população brasileira. Por um lado, a intensa miscigenação veri-
ficada desde os primeiros dias da formação nacional produziu um “povo novo” (Cf. Ri-
beiro, 1972: 70 e 1995: 19-20) dotado de um perfil étnico próprio que se reproduz na
genética da gente brasileira93 e, por outro lado, ocorreu um profuso processo de acultura-
93 É o que conclui o “Retrato molecular do Brasil” composto a partir de uma pesquisa realizada por geneti-cistas brasileiros: “Vários autores, dentre os quais despontam os já mencionados [Paulo] Prado, [Gilberto]
346
ção entre os povos fundadores que redundou na formação da tradição civilizacional pecu-
liar que chegou até nossos dias (Cf., por exemplo, Freyre, 1933, passim e Galvão, 1953:
126-34). Em virtude desse processo, completado pela inserção, em bases semelhantes, do
elemento africano, podemos dizer que o Brasil formou-se como um “estado poliétnico”
(Smith, 1993: 150), o que definiu uma ideologia fortemente marcada por valores conjun-
tivos, pois, como assevera Roberto DaMatta, “a ‘fábula das três raças’ se constitui na
mais poderosa força cultural do Brasil” (DaMatta, 1981: 69).
Aliás, esse entendimento perpassa a formulação clássica do pensamento soci-
al brasileiro sobre os fundamentos da nacionalidade, condicionando a reflexão sociológi-
ca sob as mais variadas extrações teóricas. Gilberto Freyre, por exemplo, fala do “largo e
profundo mestiçamento” (Freyre, 1933: 93) e da “confraternização de cultura” (Freyre,
1933: 123) que produziu uma sociedade “híbrida” (Freyre, 1933: 11), em que o “unio-
nismo” (João Ribeiro apud Freyre, 1933: 28 e 72) dá o tom das relações sociais desde
suas origens. Sérgio Buarque de Holanda, por seu turno, afirma que a mestiçagem foi um
“processo normal” na América Portuguesa (Holanda, 1936: 36), o que atribuiu “extraor-
dinária plasticidade” (Holanda, 1936: 22) ao palco das relações sociais, produzindo “a
contribuição brasileira para a civilização [...], o ‘homem cordial’ (Holanda, 1936: 106),
arquétipo do “traço mais específico do espírito brasileiro”, o “horror às distâncias” (Ho-
landa, 1936: 110). Caio Prado Jr. também destaca o “caráter mais saliente da formação
étnica do Brasil: a mestiçagem profunda das três raças que entram na sua composição”
(Prado Jr., 1942: 107), informando “uma certa ‘atitude’ mental coletiva particular” (Pra-
do Jr., 1942: 10) que, sendo “antes um fardo político”, foi contudo, pela “uniformidade
de sentimentos, de usos, de crenças, de língua. De cultura, numa palavra [...] a base mo-
ral e psicológica para a formação do Brasil como nação” (Prado Jr., 1942: 346, ênfase no
original). Por fim, Darcy Ribeiro sintetizou este entendimento ao cunhar o conceito de
Freyre, [Sérgio Buarque de] Holanda e [Darcy] Ribeiro enfatizaram a natureza triíbrida da população brasi-leira, a partir dos ameríndios, europeus e africanos. Os dados que obtivemos dão respaldo científico a essa noção (...). A presença de 60% de matrilinhagens ameríndias e africanas em brasileiros brancos é inespera-
347
“povo novo” (Cf. Ribeiro, 1972: 70 e 1995: 19-20).
Intentamos contribuir para a compreensão desse processo, relevando dois de
seus aspectos essenciais. Em primeiro lugar, procuramos demonstrar que índios e portu-
gueses comungavam de um “padrão ético” (Cf. Caniello, 1993: 9, passim) que favorecia
largamente o congraçamento entre as gentes. Como tivemos oportunidade de salientar no
Capítulo 1, a ênfase na pessoa caracterizava o “espírito” dos povos tupi e luso e, neste
sentido, cada uma à sua maneira, eram “sociedades holistas” (Cf. Dumont, 1970: 13-4;
1985: 37), as quais se caracterizam pela preeminência da lógica relacional sobre a lógica
individual (Cf. DaMatta, 1987). Quer dizer, nessas sociedades, a ligação entre os indiví-
duos é um valor muito mais relevante que a própria individualidade do sujeito e, tanto no
caso tupi quanto no luso, será a oposição entre “amigos” e “inimigos” que definitivamen-
te irá pautar a conduta das pessoas, invariavelmente embebida numa verdadeira “lógica
da inclusividade” (DaMatta, 1993: 130), a qual sustentou os processos de miscigenação e
aculturação que caracterizam a formação brasileira. Este era o espírito desses povos
(Volksgeist), que se reproduz, em constante rejuvenescimento, na sociedade brasileira,
num movimento que “é sempre no sentido da relação e da conexão” (DaMatta, 1987: 26).
Em segundo lugar, procuramos demonstrar que a alternância entre conflito e
harmonia refletia a própria conjuntura americana em Quinhentos: por um lado, o europeu
precisava do índio para estabelecer-se no trópico e o índio necessitava do europeu para
ter acesso a uma tecnologia que estava longe de dominar; por outro lado, a condição co-
lonial e a tradição senhorial portuguesa impunham uma cisão radical entre os povos,
submetida a uma forte lógica hierárquica, que se agudizava com a própria atmosfera
bélica daqueles tempos. Ou seja, reciprocidade e desavença alternavam-se ao sabor das
necessidades mais imediatas, condicionadas pelo “espírito do tempo”, mas o “espírito do
povo” sobrevirá, de certa forma preservado, ao processo, pois, como assevera José Honó-
rio Rodrigues, “história cruenta e incruenta se alternam no processo histórico brasileiro,
damente alta e, por isso, tem grande relevância social.” (Pena & outros, 2000: 25).
348
embora seja correto e justo afirmar que os exemplos de conciliação predominem” (Ro-
drigues, 1965: 66).
Realmente, a realidade do contato colocava uma questão de sobrevivência
tanto para os íncolas quanto para os adventícios, pois o conflito aberto gerava uma situa-
ção de dissolução para ambos, o que pudemos observar no conturbado período das capi-
tanias hereditárias (Cf. Capítulo 3). Desta maneira, embora nem sempre fossem deseja-
das, as alianças entre índios e lusos eram indispensáveis e foram freqüentes, especial-
mente porque as próprias relações intra-étnicas estavam marcadas por fortes oposições
entre “amigos” e “inimigos”, seja no caso europeu (portugueses vs. franceses), seja no
caso americano (tamoios vs. temiminós, potiguaras vs. tabajaras, tupinambás vs. caetés
etc.).
Portanto, podemos dizer que a formação da etnia brasílica realizou-se sob
um clima de profunda ambigüidade, num “processo de equilíbrio de antagonismos” (Fre-
yre, 1933: 53) que se refletirá na própria configuração do ethos brasílico, marcado, de
qualquer maneira, pelo “unionismo” (João Ribeiro apud Freyre, 1933: 28 e 72). Por um
lado, o “espírito pessoalizante” de tupis e lusos apontava para uma irrefragável tendência
ao congraçamento entre as gentes, embora ela estivesse sempre submetida aos fundamen-
tos hierárquicos colocados pela tradição senhorial lusitana e agravados pela condição
colonial. Por outro lado, o “espírito capitalista” que dominava o contexto do contato im-
punha os preceitos da perversa ética do individualismo “em sua patética desumanidade”
(Weber, 1904b: 72). Dessa química resultou o “povo novo” da nação e, em virtude dela,
originou-se aquilo que Roberto DaMatta define como “um dado irredutível da singulari-
dade brasileira” (DaMatta, 1987: 104), a chamada “ética dúplice” (Cf. Weber, 1904b: 36;
DaMatta, 1987: 85-6 e 1993: 141-2; Caniello, 1993: 18-9 e 324).
A ética brasílica
Aqui tocamos num elemento fundamental do ethos que nos conduz a um dos
349
princípios teóricos centrais da nossa abordagem, o pressuposto – certamente idealista –
de que a ação dos indivíduos é determinada no âmbito de estruturas subjetivas montadas
sobre três fatores básicos, parâmetros racionais, códigos de conduta e princípios de per-
tença, sendo que estes dois últimos elementos informam o registro cultural do compor-
tamento humano, revelando a própria essência do jeito de ser de um povo (Cf. Introdu-
ção, p.).
Os códigos de conduta (na próxima seção trataremos dos princípios de per-
tença) expressam prescrições arbitrárias do “padrão ético”, mas eles se afiguram a partir
de conjunturas históricas, pois se fundamentam no que Weber chama de “imperativos
éticos” (Weber, 1904a: 112), as normas para a ação definidas a partir da “relevância” que
historicamente a sociedade imputa a determinados valores, virtualmente universais (Cf.
Segady, 1987: 71, passim). Sendo assim, também no caso dos códigos de condutas, o
“espírito do povo” e o “espírito do tempo” conformam a dialética que definirá o “padrão
ético” – que é, portanto, uma realidade histórica – informando mais um aspecto do ethos.
Neste sentido, podemos dizer que a ética presente no ethos revela, precisamente, um esti-
lo peculiar imperativo para a ação, advindo da experiência histórica mas fixado na men-
talidade coletiva como uma disposição subjetiva modal dos indivíduos. Weber demons-
trou isso ao relacionar a “ética religiosa” ao “ethos de um sistema econômico” (Cf. We-
ber, 1904b: 12), mas pensamos que foi Aristóteles quem deslindou essa operação quando
falava a Nicômaco sobre a “virtude moral”:
“Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino – por isso requer ex-periência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter-se formado o seu nome (ηθκη) por uma pequena modificação da palavra ηθοζ (hábito). Por tudo isso, evidencia-se tam-bém que nenhuma das virtudes morais surgem em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza. (...) Isto é confirmado pelo que acontece nos Estados: os legisladores tornam bons os cidadãos por meio de hábitos que lhes incutem.” (Aristóteles, 1973: 267)
350
Assim, pensamos que a ética ou, mais precisamente, o padrão ético, é uma
espécie de “cimento da identidade” (Caniello, 1993: 324) porquanto seja um produto da
tradição civilizacional de um povo e um dos principais sustentáculos da reprodutibilidade
dela. Pensamos, portanto, que a ética é uma poderosa Idéia que governa a nação e, sendo
assim, ao recuperarmos a sua gênese e ao demonstrarmos as suas recorrências estamos
cumprindo nossa tarefa de “conciliar” o Brasil do presente com o seu passado de nação.
Procuramos fazer isso abordando a dualidade seminal do processo de forma-
ção do Brasil, a qual procuramos identificar, por um lado, através da interpretação da
carta de Caminha (Cf. Capítulo 2: 53, passim) e das crônicas de Seiscentos (Cf. Capítulo
9: 227, passim), e, por outro, das análises da dinâmica da alternância entre o escambo e a
escravidão durante o período das capitanias hereditárias (Cf. Capítulo 3) e da interpola-
ção entre o “sistema de terror” e das estratégias de conciliação e cooperação nas políticas
empreendidas pelo Governo-geral (Cf. Capítulo 4). Procurávamos as fontes da constitui-
ção da “ética dúplice” (Cf. Weber, 1904b: 36; DaMatta, 1987: 85-6 e 1993: 141-2; Cani-
ello, 1993: 18 e 324), que, alhures, demonstramos ser um dos “traços decisivos do ethos
nacional” (Caniello, 1993: 18). Naquele trabalho e nesta tese nos dedicamos a demons-
trar a validade das teorias de Roberto DaMatta sobre a sociedade brasileira e pensamos,
em favor de nossas próprias suposições, que esse aspecto estrutural do estilo brasileiro
ao ser observado no período colonial, nos dá ensejo a afirmar que a nação de hoje reflete
o ethos daquele Brasil de antanho, pois esse é um dos aspectos estruturais da sociedade
brasileira contemporânea e uma das raízes de nossa própria peculiaridade, uma vez que,
desde sempre, “aqui o sistema é dual” (DaMatta, 1987: 20).
Ora, já dissemos nesta Conclusão, recuperando a questão da formação do et-
nia brasílica, que a ênfase na pessoa era a base do “espírito” dos povos tupi e luso e que
o “espírito do capitalismo” ambientou o contato interétnico. Como vimos, essa dinâmica
ambivalente teve repercussões decisivas na configuração do ethos do “povo novo” da
nação, indo precisamente na rota tão bem detectada por Gilberto Freyre e definitivamente
351
teorizada por Roberto DaMatta, a do “equilíbrio de antagonismos” (Freyre, 1933: 53) ou
da “relação e da conexão” (DaMatta, 1987: 26). Cumpre agora abordar as peculiaridades
desse traço marcante em cada um dos povos fundadores, pois entendemos que embora
possamos classificar a ambas sociedades como “holistas” (Cf. Dumont, 1970: 56-9), por-
tadoras que eram de um “padrão ético pessoalizante” (Cf. Caniello, 1993: 280), serão
seus aspectos particulares colocados na dinâmica do contato que redundarão na formação
da ética dúplice. Neste sentido, podemos dizer que o padrão ético pessoalizante luso es-
tava instaurado sobre dois valores relevantes, a hierarquia e a conjuntividade, enquanto o
padrão ético pessoalizante tupi se assentava sobre a segmentação e a intimidade.
No caso português, “a cultura da personalidade (...), o traço mais decisivo na
evolução da gente hispânica” (Holanda, 1936: 8) articulada ao Absolutismo e ao “cristia-
nismo liricamente social” (Freyre, 1933: 22), informava a acomodação de duas atitudes
modais opostas, pois havemos de concordar que a postura senhorial portuguesa estabele-
cia “múltiplas hierarquias de honra e apreço” (Schwartz, 1995: 209): por um lado, afir-
mava-se o padrão aristocrático provindo da “ética medieval” (Faoro, 1957: 61), por ou-
tro, empreendia-se “a incoercível tendência para o nivelamento das classes” (Holanda,
1936: 8), tão bem revelada pela “mobilidade e miscibilidade” (Freyre, 1933: 8) do povo
lusitano.
No caso tupi, uma solidariedade interpessoal fortemente baseada na localida-
de (Cf. Fernandes, 1948: 55 e 69-70) era fundamentada sobre um veemente sentimento
de pertença e fervorosos padrões de honra e lealdade, que também definiam duas atitudes
modais opostas: por um lado, observava-se “o trabalho de uma lógica do centrífugo”
(Clastres, 1982: 201) operada por um faccionalismo extremamente virulento resultante da
segmentação dos grupos determinada pela vendetta, forma normal de resolução de desa-
venças intestinas (Cf. Fernandes, 1948: 264) e que era o fio condutor das guerras (Cf.
Capítulo 1, p. 33-35); por outro lado, havia uma extrema valorização dos laços pessoais
que redundava num comportamento marcado por profunda intimidade e franca amizade
352
entre os pares, base da proverbial hospitalidade e generosidade dos índios para com os
seus amigos (Cf. Thevet, 1557: 144; Léry, 1578: 237, passim; Cardim, 1584-1590: 91;
Abbeville, 1614: 227-8).
Como sabemos, diante da realidade do contato entre os povos fundadores,
ocorreu um fundo processo de interrelações entre as matrizes éticas que, embora marcado
pela preeminência do padrão ético luso sobre o padrão ético tupi, resultou numa terceira
forma que denominamos de ética brasílica. Consideramos essa uma evidência eloqüente
do hibridismo cultural apontado por Gilberto Freyre, pois, como ensina Sérgio Buarque,
“a experiência e a tradição ensinam que toda cultura absorve, assimila e elabora em geral
os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus
quadros de vida” (Holanda, 1936: 11). Por um lado, a conjuntividade lusa solapou a seg-
mentação tupi em virtude da cooperação firmada através do escambo e das alianças esta-
belecidas para enfrentar as coalizões entre os franceses e os índios seus amigos. Essa
dinâmica resultou de um quadro de mútua dependência entre os íncolas e os adventícios,
mas foi favorecido tanto pela “plasticidade social” do português (Cf. Freyre, 1933: 189;
Holanda, 1936: 22) quanto pela hospitalidade tupi, ambos critérios éticos pessoalizantes
característicos destes povos. Por outro lado, a conjuntividade lusa bem se amanhou à
intimidade tupi e dessa química surgiu o traço mais proeminente da tradição civilizacio-
nal brasileira, a nossa cordialidade essencial (Cf. Holanda, 1936: 106) que informa a pe-
rene disposição brasileira para a conciliação (Cf. Rodrigues, 1965, passim).
Esses foram os próprios fundamentos do processo de miscigenação e acultu-
ração observado no Brasil, revelador da tendência ao “unionismo” (João Ribeiro apud
Freyre, 1933: 53) que governou a formação brasileira diferentemente das tendências se-
paratistas observadas na América espanhola (Cf. Freyre, 1933: 28 e 57-8; Holanda, 1936:
22). Ora, estas evidências concorrem para a nossa tese sobre a longevidade da nação na
medida em que revelam tanto a constituição de um sentido comunitário nas primícias do
encontro entre os povos fundadores, quanto a emergência de um traço estrutural próprio
353
da sociedade brasileira, desde sempre presente em nossa vida social: um padrão ético
pessoalizante, cuja peculiaridade se deve, precisamente, à “mistura, confusão e combina-
ção” (Cf. DaMatta, 1993: 128-9) das éticas tupi e lusa e que, por isso, estará profunda-
mente marcado pela ambigüidade, uma disposição ética característica da nossa tradição
civilizacional, como já afirmamos várias vezes nesta tese.
Aliás, em um trabalhos anteriores (Cf. Caniello, 1990; 1993; 1995), procura-
mos elucidar a lógica da dialética entre o padrão ético e a mudança histórica propondo
que dela emergem “processos de modulação”, ou seja, que diante das pressões conjuntu-
rais, o padrão ético sofre modificações, mas mantém sua coerência adaptando-se aos no-
vos influxos – como resultado dessa dialética, temos, por exemplo, a formação dos pa-
drões éticos dúplices. Naquele momento estávamos preocupados em analisar a dinâmica
das relações entre o tradicional e o moderno na sociedade brasileira contemporânea, pre-
cisamente entre a pessoalização e a individualização, e chegamos à conclusão de que o
nexo estrutural do padrão ético pessoalizante se mantinha exatamente em virtude de sua
duplicidade. Nesta tese procuramos demonstrar que a disposição para a duplicidade ética
é contemporânea à gênese da nacionalidade e que permaneceu pautando o estilo brasilei-
ro por intermédio de um profuso jogo de operações combinatórias, do qual extraímos
duas mais significativas.
Em primeiro lugar, a hierarquia sempre se colocou como uma contrapartida à
cordialidade e à conciliação, pois, como pudemos observar, a alternância entre a misci-
genação e o apresamento, entre a reciprocidade e a escravidão e entre as políticas de ter-
ror e as estratégias de pacificação dominaram a história das relações entre índios e bran-
cos por todo o período que estudamos. Neste sentido, consideramos que esses eventos
formam a gênese histórica de um dos traços estruturais do estilo brasileiro, estar nosso
sistema social “fundado na lógica da hierarquia e da complementaridade” (DaMatta,
1993: 146).
Em segundo lugar, o padrão ético pessoalizante interagiu com as pressões in-
354
dividualistas advindas da conjuntura capitalista do contexto colonial produzindo oposi-
ções significativas, como a “dicotomia da terra e do homem” (Cabral de Mello, 2000: 93)
denunciada pelos cronistas de Seiscentos. Quando interpretamos os textos destes autores
(Cf. Capítulo 9: 227, passim) esperamos ter demonstrado que essa dicotomia se constitui
na origem de outro traço estrutural do nosso jeito de ser, aquela “oposição básica da
gramática social brasileira” (DaMatta, 1987: 17) entre a “casa” e a “rua”, entendidas co-
mo “entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade”
(DaMatta, 1987: 15). Aliás, quando analisamos a carta de Caminha percebemos que a
relação entre o “espírito do povo” e o “espírito do tempo” prenunciava o quadro de am-
bigüidades que marcaria a história brasileira para sempre (Cf. Capítulo 2: 56-57). Ou
seja, que a forte solidariedade interpessoal fomentada pela predisposição ética de tupis e
lusos estaria sempre constrangida por um individualismo de caráter predatório, próprio
do mercantilismo que dominava a cena mundial em Quinhentos e Seiscentos. Daí, obser-
varmos, por exemplo, a coabitação do “unionismo” com a cisão entre as elites e o povo.
Cumpre salientar, neste sentido, que a especificidade da formação ética bra-
sileira liga-se, precisamente, à síntese formulada em seu âmbito, uma vez que, de acordo
com Weber, a dualidade entre os critérios da “vantagem material independente de obri-
gações pessoais ou sociais (Vergesellschaftung)” e a “noção de solidariedade com os
outros (Vergemeisnchaftung)” seria uma característica virtualmente universal da ação
social (Apud Bendix, 1964: 49-50). Realmente, como ressalta Roberto DaMatta, a singu-
laridade brasileira está no fato de que a “lógica da inclusividade” que a define articula-se
“em planos de oposição hierárquica ou complementar” (DaMatta, 1993: 130). Sendo as-
sim, no Brasil, a relação do indivíduo com a coletividade estará, de ordinário, balizada
por uma ética dúplice, mas a operação que define a sua lógica é o “englobamento da rua
pela casa” (Cf. DaMatta, 1987: 15-8), evidenciada, por exemplo, pelo “patrimonialismo”
(Cf. Faoro, 1957, passim) que dominava a cena social nos século XVI e XVII.
Isto pudemos observar quando analisamos a dinâmica das “arenas da Justiça”
355
no Brasil seiscentista (Cf. Capítulo 11: 265, passim), o que nos levou a concluir que a
própria gênese da configuração da cidadania é um fator representativo do jeito brasileiro
de ser. Ora, a cidadania, entendida como “um papel social” ou “ como forma específica
de pertencer a uma determinada totalidade social” (DaMatta, 1987: 72), foi, mesmo antes
da Revolução Francesa – “quando pela primeira vez na história, uma nação constituiu a
consciência de si mesma” (Mauss, 1920: 9) – o critério básico da nacionalidade, pois,
segundo Mauss, “os grandes filósofos e economistas do começo do século XVI” já pre-
conizavam que “uma nação é o conjunto dos cidadãos de um Estado” (Mauss, 1920: 7-8).
Realmente, segundo Bendix a noção de cidadania como atributo da nacionalidade emerge
como uma conseqüência direta da transição do Medievo para a Idade Moderna e, “por
conseguinte, um elemento essencial da construção da nação é a codificação dos direitos e
deveres de todos os adultos que são classificados como cidadãos” (Bendix, 1964: 110).
A nossa primeira preocupação ao abordar esse aspecto da formação nacional
brasileira foi demonstrar que as condições de urbanidade do Brasil seiscentista indicam a
presença, naquela conjuntura, de uma comunidade política estável na colônia, em virtude
da consolidação do território (Cf. Capítulo 8), da estabilidade do quadro institucional
definido com a instalação do Governo-geral – o qual suplantou, inclusive, o domínio ab-
senteísta dos Filipes – e do sensível desenvolvimento sócio-econômico decorrente do
boom açucareiro. Aliás, esse conjunto de fatores já preconizava a articulação dos quatro
grupos de instituições públicas – os tribunais, os corpos representativos, os serviços soci-
ais e as escolas – que, segundo Bendix, sustentam a cidadania (Cf. Bendix, 1964: 111),
pois, de fato, a instalação da Relação da Bahia, o funcionamento das câmaras municipais
e a manutenção das Santas Casas e dos colégios religiosos (Cf. Capítulo 10) indicavam a
presença da base institucional que define a nação como um conjunto de cidadãos. Quer
dizer podemos dizer que, bem ou mal, sob o ponto de vista formal, o Brasil era já uma
nação no limiar de Seiscentos.
Sem embargo, a cidadania é muito mais do que uma realidade institucional,
356
pois ela é, também, um produto cultural. Neste sentido, pensamos que a cidadania é, nas
sociedades nacionais, o liame mais essencial entre o agente e a estrutura, pois ela realiza
eticamente a relação entre a ação do indivíduo e a norma geral, entre o discernimento
pessoal e a razão coletiva, entre a idiossincrasia do sujeito e os valores da coletividade,
entre a integridade do cidadão e o poder do Estado. Por esta razão, consideramos que a
cidadania é uma área onde o jeito de ser de um povo se expressa de uma maneira especi-
almente significativa e duradoura, já que ela é ordem na qual mormente atua o “padrão
ético”. Por outro lado, a cidadania é também uma área particularmente problemática, pois
ela é a salvaguarda do bem-estar e o guia do bom proceder, constituindo-se num atributo
conferidor de civilidade. Desta maneira, podemos dizer que reconhecemos a essência de
uma nação ao entendermos como nela forjou-se a cidadania, pois acreditamos, como
Bendix, que há um ponto de disjunção fundamental que caracteriza a singularidade dos
processos de formação nacional: “a questão é o quão exclusiva ou inclusivamente o cida-
dão é definido” (Bendix, 1964: 110).
Neste sentido, reconhecemos a “cidadania à brasileira”, por um lado, como
um caractere nacional, porque ela foi, no seu caldeamento original, e é, ainda hoje, vaza-
da por uma ética pessoalizante e por uma “lógica relacional” (Cf. DaMatta, 1978, 1986,
1987 e 1993), e por outro lado, como um problema nacional porque esteve, desde sem-
pre, corrompida por um estatuto de desigualdade civil. Assim, como um caractere e co-
mo um problema nacionais, a “cidadania à brasileira” é uma expressão da continuidade
estrutural significativa que nos permite afirmar que a sociedade de hoje harmoniza-se
com a sociedade colonial e que, portanto, nesse aspecto essencial, o estilo que define a
nação de hoje é uma marca do ethos brasílico.
O sentimento brasílico
Se a ética é o desiderato para a ação do indivíduo, o sentimento é o fulcro da
357
parte motivacional da alma. Dissemos que a ética conforma a relação do sujeito com a
coletividade e agora queremos sugerir que é o sentimento que informa a ligação do ho-
mem com a sua comunidade. Isto porque entendemos que esses dois fatores subjetivos da
ação são o próprio fundamento da vida social, pois é através deles que se elabora o “sen-
timento de solidariedade” (Durkheim, 1893: 71, passim) que a sustenta, pois acreditamos,
concordando com Alexander, que “os vínculos emocionais da solidariedade social e os
códigos simbólicos da moralidade social são as estruturas sociais fundamentais, das quais
todas as outras emergem” (Alexander, 1990: 25). Aliás, esses dois fatores formam tam-
bém o sustentáculo da cultura porque é através deles que “a ação é organizada para for-
mar os padrões e instituições da vida cotidiana” (Alexander, 1990: 14), processo que de-
semboca nos próprios “sistemas simbólicos”, os quais “são mais do que classificações
cognitivas: eles são mapas emocionais e morais do bem e do mal” (Alexander, 1990:
321).
Como já foi dito, a ética se expressa através de códigos de conduta e o senti-
mento de inclusão através de princípios de pertença e ambos, códigos e princípios, são os
fatores subjetivos da ação do indivíduo que, em sendo informados culturalmente, deter-
minam a dinâmica particular do sistema social que os produziu. Mas, se os códigos de
conduta têm por função equilibrar as tensões entre a ação do indivíduo e a ordem coleti-
va, uma vez que são eles os portadores da “tipificação” (Cf. Alexander, 1990: 312-4) dos
valores relevantes para o grupo, os princípios de pertença operam de maneira a integrar o
indivíduo à coletividade, pois se objetivam como emanações do sujeito, por sentimentos
de honra, orgulho etc., as “emoções” que estão relacionadas “à necessidade de acreditar
no próprio valor” (Elster, 1989: 88-9). Essas emoções, quando elevadas em “ação coleti-
va” (Cf. Elster, 1989: 149-60) nos eventos representativos da história de um povo, reve-
lam a tomada de consciência da comunidade que fornece ao indivíduo a auto-
determinação necessária para afirmá-la como uma condição existencial sua. Ao serem
elaborados por uma intelligentsia, a vanguarda artística, intelectual ou política que medi-
358
ta sobre a experiência histórica como um agente destinado a revelar-lhe o sentido e a ver-
dade, esses eventos transformam-se em símbolos e voltam-se para o povo como a própria
imagem da sua essencialidade: a nação.
Ou seja, como o padrão ético, os princípios de pertença também são conduto-
res da Idéia que governa a nação, mas além de refletirem o “espírito do povo” (Volks-
geist) em sua peculiaridade cultural, eles veiculam tanto o “sentimento” que sustenta
esse espírito quanto a “força ativa” (Inwood, 1997: 252) através da qual tal povo faz mo-
vimentar a sua história. Já tratamos a ética brasílica como um registro da tradição civili-
zacional brasileira, agora nos resta finalizar nossas ilações demonstrando que os senti-
mentos basilares da nacionalidade eclodiram no contexto do ethos brasílico.
Max Weber foi o primeiro sociólogo a abordar a questão de como e por que a
identidade nacional funciona como critério de solidariedade social, o que fez em dois
artigos seminais, os quais consideramos como a formulação clássica sobre o tema (Cf.
Weber, 1921a: 385-98 e 901-40; Weber, 1921c: 187-210). Nesses artigos, Weber estava
preocupado em identificar a “natureza e legitimidade de organizações políticas territori-
ais” (Weber, 1921a: 901), ou seja, da “comunidade política” – a base societária da nação
– entendendo-a como uma “comunidade de sentimentos” (Weber, 1921c: 207), na medi-
da em que “o conceito de nação nos remete ao poder político [e], portanto, a um tipo es-
pecífico de pathos” (Weber, 1921a: 398).
Ora, segundo Weber, a “comunidade política”, mais do que um mero agru-
pamento para atingir fins econômicos, é, em sua estrutura definidora, uma associação
implantada num território delimitado, cujas inter-relações entre os indivíduos é ordenada
por um “sistema de valores” que prevê o uso da força física para a “dominação pacífica”
da conduta das pessoas (poder de polícia) e para a salvaguarda do território comum (po-
der militar) (Cf. Weber, 1921a: 901-2 e 905). A questão que se coloca é o que torna o uso
potencial da “violência política” (Cf. Neiburg, 1999: 44) para a garantia da solidariedade
do grupo algo admitido pelo indivíduo, questão, aliás, também formulada por Elias (Cf.
359
Elias, 1997, passim; Neiburg, 1999, passim). Weber responde que são, precisamente,
aqueles princípios de pertença que estabelecem a ligação “espiritual” do indivíduo com a
sua coletividade, os quais estão fundamente arraigados na sua alma porque advêm de
duas heranças básicas que constituem a pessoa: a descendência étnica transmitida heredi-
tariamente e a tradição cultural constituída historicamente (Cf. Weber, 1921a: 394).
Neste sentido, apoiando-nos em Weber, pensamos que na “comunidade polí-
tica” – entendida como o embrião da nação – a solidariedade é elaborada através de sen-
timentos de inclusão fundamentados nos seguintes princípios de pertença: (1) “crença na
etnicidade comum” (Weber, 1921a: 387); (2) “apego” ao território; (3) “confiança” na
tradição; e (4) “participação” em um “destino político comum” (Weber, 1921a: 903).
Esses princípios evocam sentimentos de honra, orgulho, proteção, fraternidade etc., os
quais fazem os indivíduos identificarem-se ardentemente entre si ao ponto de se imbuí-
rem daquela “paixão” (pathos) que os leva a agirem – mesmo inconscientemente – de
maneira a preservar o “espírito” do seu povo, ação que, pensamos, é o âmago do senti-
mento nacional. Por outro lado, a maneira peculiar como esses princípios são construídos
e veiculados revela o próprio jeito de ser do povo, característica diacrítica da tradição
civilizacional estabelecida pela história desse povo. Sendo assim, pensamos que podere-
mos identificar a emergência de uma nação na medida em que perscrutarmos a presença
desse conjunto de princípios atuando em uma “comunidade política”. É o que pretende-
mos fazer para aduzir nosso último argumento em apoio à tese da longevidade nacional
brasileira.
Em vista dos vários indícios a que já aludimos, não pode haver dúvida de que
o Brasil da primeira metade de Seiscentos era uma “comunidade política” que desenvol-
via as “funções básicas do Estado” (Weber, 1921a: 905), pois, além de comportar uma
economia efervescente (Cf. Capítulo 10), havia aqui um território delimitado (Cf. Capítu-
lo 8), uma vida civil implantada nele (Cf. Capítulos 10, 11 e seção anterior) e uma estru-
tura de autoridade e poder estabelecida (Cf. Capítulo 4). Evidentemente, esses fatores
360
formais da “comunidade política” estavam em processo de formação e apresentavam os
dilemas próprios da situação colonial, mas a conjuntura do domínio espanhol (1580-
1640) e, mormente, o absenteísmo dos Filipes em relação à colônia lusa na América, fa-
voreciam grandemente a configuração de uma dinâmica política própria no Brasil, muito
mais referenciada pela autoridade dos governadores-gerais do que pela lealdade ao mo-
narca padrasto, como pudemos observar em vários pontos deste trabalho.
Mas, o que dizer dos princípios de pertença os quais, segundo o nosso ponto
de vista, indicam que na “comunidade política brasílica” agiam aqueles laços subjetivos
que estavam a governar a formação nacional brasileira?
Primeiramente, tomemos a “pertença étnica” (Weber, 1921a: 389), o funda-
mento mais elementar da identidade comunitária que desemboca no sentimento nacional
porquanto “o sentimento de honra étnica é a honra específica das massas (Massenehre),
por ser acessível a qualquer pessoa que pertença à comunidade de descendência subjeti-
vamente imaginada” (Weber, 1921a: 391). Ora, como vimos, a constituição da etnia bra-
sílica é um fato histórico coetâneo às primícias da formação do Brasil e, considerando
que o critério básico para definir a pertença étnica é “a atração ou repulsão racial recípro-
ca”, verificando-se “se relações sexuais são freqüentes ou raras entre dois grupos e se
elas são exercidas permanentemente ou temporária e irregularmente” (Weber, 1921a:
385), não há como negar que a intensa miscigenação terá sido uma evidência eloqüente
da gênese de um sentimento de inclusão baseado na etnicidade comum. Afinal, como
proclamará Brandônio, “se há feito entre todos uma mistura de sangue assaz nobre”
(Brandão, 1618: 107).
Entretanto, Weber adverte que não é a substancialidade das “relações de san-
gue” (Weber, 1921a: 393) que define a solidariedade comunitária, mas sim a “crença
subjetiva na descendência comum” (Weber, 1921a: 389). Ou seja, o princípio de pertença
étnica é, sobretudo, um fato da cultura, porque ele é um produto de disposições ideológi-
cas. Disso decorre que a construção do sentimento de inclusão dele emanado é fruto do
361
processo histórico, refletindo, desta maneira, o próprio estilo do povo que o conduziu.
Assim, cumpre ressaltar, nos reportando à própria reconstituição histórica empreendida
neste trabalho, que, desde sempre, o sentimento de pertença étnico terá sido elaborado de
maneira ambígua no Brasil e os paradoxos dos encontros interétnicos que o produziram
se perpetuarão nos profundos dilemas da nossa ideologia racial, “uma ideologia que per-
mite conciliar uma série de impulsos contraditórios de nossa sociedade” (DaMatta, 1981:
68). Portanto, tanto no seu aspecto biológico, quanto no seu aspecto cultural, podemos
dizer que o princípio de pertença étnico que informa a “fábula das três raças” (Cf. Da-
Matta, 1981: 58-85) é uma realidade contemporânea à “comunidade política brasílica” e,
nos seus termos estruturais, se reproduzirá até os nossos dias.
Em relação aos princípios de pertença territorial e o político, basta que nos
reportemos aos processos que estudamos neste trabalho e, especialmente, à avaliação dos
cronistas coetâneos, para chegarmos à mesma conclusão que chegamos no que toca à
pertença étnica. Em primeiro lugar, sabemos que a formação territorial e política operou-
se sob fortes paradoxos (Cf. Capítulo 8), mas há uma compreensão unânime entre histo-
riadores e intérpretes de que a “realização” do território pelo “povo novo” da nação resul-
tou num país unitário de dimensões continentais, cujas fronteiras pouco mudaram desde
que foram estabelecidas entre o final do século XVI e meados do XVII. Esse processo de
formação territorial e política revela, precisamente, o “unionismo” (João Ribeiro apud
Freyre, 1933: 28 e 72) que prevaleceu na construção nacional do Brasil, através do “equi-
líbrio de antagonismos” (Freyre, 1933: 53) que caracteriza o jeito de ser brasileiro. Por
outro lado, a própria intelligentsia brasílica elaborava esses princípios de pertença e dava
à luz duas idéias de força profundamente arraigadas no sentimento nacional brasileiro
desde então: a imagem do “gigante pela própria natureza”, âmago da nossa simbologia
territorial, e a profecia do “grande reino”, a nossa maior utopia política (Cf. Capítulo 9).
Quanto aos vínculos culturais, ocorre o mesmo “unionismo” temperado pelo
“equilíbrio de antagonismos”, pois sabemos, à exaustão, que a sociedade brasileira for-
362
mou-se, desde as suas primícias, sob um amplo processo de aculturação (Cf. Freyre,
1933), embora ele estivesse sempre pautado por relações friccionais entre os diversos
grupos que entraram em sua composição, como já mostramos diversas vezes neste traba-
lho. Esta é uma característica proeminente da formação nacional brasileira. Segundo We-
ber, dentre todos os fatos da cultura, são a “comunidade de linguagem” e a “comunidade
de religião” que informam os princípios de pertença cultural básicos da comunidade polí-
tica (Cf. Weber, 1921a: 390). Ora, a língua e a religião são dois produtos culturais mode-
lares da formação brasileira nos termos definidos por Gilberto Freyre.
Em primeiro lugar, a “língua geral” – isto é, o tupi – foi o idioma falado no
Brasil até o governo pombalino (Cf. Wehling & Wehling, 1999: 284-5), mas o português
manteve-se como língua oficial não somente porque se perpetuou na literatura e na co-
municação escrita, mas porque, já em meados de Seiscentos, “era perfeitamente familiar
a muitos (...) africanos e ao gentio da terra” (Holanda, 1936: 35). Assim, “a nossa língua
nacional resulta da interpenetração das duas tendências” (Freyre, 1933: 334), pois, além
de absorver milhares de vocábulos tupis e africanos, sua sonoridade revela as múltiplas
influências que sofreu no meio tropical. Portanto, podemos dizer, por um lado, que no
contexto colonial formou-se mais um traço peculiar da cultura brasileira, pois como asse-
vera Gilberto Freyre, o português falado no Brasil é uma expressão da “potencialidade da
cultura brasileira [que] parece-nos residir toda na riqueza dos antagonismos equilibrados”
(Freyre, 1933: 335). Por outro lado, havia indiscutivelmente na comunidade política bra-
sílica um “grupo de linguagem” tal como define Weber, aquele “portador de uma ‘pro-
priedade cultural de massa’ específica (Massenkulturgut) e [que] faz com que o entendi-
mento mútuo (Verstehen) seja possível ou facilitado” (Weber, 1921a: 390): a literatura
elaborada em português cumpria a primeira função, enquanto o tupi falado cotidianamen-
te a segunda.
Em segundo lugar, sabemos que o “sincretismo religioso” é uma das expres-
sões mais salientes da cultura brasileira e, em que nos pese o processo de hegemonização
363
do catolicismo no Brasil – aliás, um processo “normal” e inescapável na conjuntura da
colonização –, a definição de uma “religião oficial” teve grande importância para a cons-
trução da unidade nacional. Sendo assim, aconteceu com a religião algo semelhante ao
que ocorreu com a língua: mesmo com a imposição da doutrina dominante, sobreviveram
preceitos oriundos dos grupos subalternos, os quais interagiram de maneira ativa, embora
ambígua, com o catolicismo, o que deu origem a um estilo de religiosidade bastante pe-
culiar ao Brasil. Por outro lado, os grandes fautores dessa hegemonização foram os jesuí-
tas, cuja ação no campo do ensino e dos serviços sociais – aliás, como vimos, financiada
pelas esmolas dos cidadãos e pelos impostos sobre o açúcar (Cf. Capítulo 10: 239ss) –
terá sido a grande responsável pela “irradiação de cultura no Brasil colonial” (Freyre,
1933: 412) e, conseqüentemente, pela formação de uma consciência comunitária na A-
mérica portuguesa.
Portanto, em vista de todas essas evidências, podemos dizer que a comunida-
de política brasílica congregava em si princípios de pertença peculiares a ela, oriundos
da dinâmica social deflagrada pelo contato interétnico, os quais indicavam, sobretudo, a
configuração de um jeito de ser próprio que se perpetuaria no “espírito do povo” como
uma marca da tradição civilizacional brasileira.
Sem embargo, não basta que os princípios de pertença étnicos, territoriais,
políticos e culturais estejam presentes em uma comunidade política para que ela se afir-
me como uma nação, pois o que a define enquanto tal é a emergência e a difusão entre os
seus componentes de uma ideologia propugnadora de identidade. Isso é o que propõe
Mauss quando afirma que uma nação se configura enquanto tal somente na medida em
que “todos os cidadãos que a compõem participem, em suma, da Idéia que a governa”
(Mauss, 1920: 28, ênfase no original). Ora, Weber diz que isso ocorre tão somente quan-
do a “ação comum (principalmente política)” de um “grupo étnico” esteja ligada “a al-
gum antagonismo contra os membros de um grupo obviamente diferente” (Weber,
364
1921a: 385), pois é o contraste que informa a identidade coletiva94. Quer dizer, uma na-
ção emerge quando os princípios de pertença da “comunidade política” forem mobiliza-
dos em face de um grupo antagônico, o que age em favor da redução das virtuais “dife-
renças internas” (Weber, 1921a: 391) e da introjeção do sentimento de inclusão fundado
na identidade coletiva que sustenta a “comunidade imaginada”. Essa operação realiza, ao
fim e ao cabo, uma ligação espiritual e ardente do indivíduo com a sua nação:
“Em última instância, é esperado do indivíduo que ele enfrente a morte pelo interesse do grupo. Isso provê a comunidade política de seu pathos particular e dá origem às suas fundações emocionais duradouras. A comunhão de um destino político, isto é, sobretudo de uma luta política comum de vida e morte, deu origem a grupos com memórias comuns as quais tiveram freqüentemente mais impacto do que os meros laços co-munitários culturais, lingüísticos, ou étnicos. É essa ‘comunidade de memórias’ que constitui o elemento decisivo, em última instância, da ‘consciência nacional’.” (Weber, 1921a: 903)
Efetivamente, a lógica que governa tal operação é o que Weber chama de “i-
déia de legitimidade específica da violência” (Weber, 1921a: 905), a qual é trazida à bai-
la quando a integridade do grupo é ameaçada pela presença de um grupo antagônico. Ou
seja, o contexto das guerras é especialmente propício para a elaboração da identidade
nacional porque, primeiro, ele define “o desenvolvimento do aparato coercitivo e a con-
solidação do interesse na solidariedade contra estrangeiros” (Weber, 1921a: 908), segun-
do, porque através da “cultuação da bravura militar e da guerra como vocação” e do esta-
belecimento da “fraternidade militar como um elemento essencial da existência do indi-
víduo” (Weber, 1921a: 906) essa solidariedade é inculcada profundamente no espírito do
povo, e, terceiro, porque “toda guerra aumentará o prestígio da cultura” (Weber, 1921a:
926). Quer dizer, será na arena ardente do campo de batalha que se patenteará o fulcro
do sentimento nacional, pois, em primeiro lugar, será nela que se afirmarão, sem subter-
94 Essa perspectiva conceitual teve grande penetração na teoria contemporânea da identidade social desde que Frederick Barth, certamente seguindo os passos de Weber, definiu o “grupo étnico” como um “tipo organizacional” (Cf. Barth, 1969: 10-1). No Brasil, Roberto Cardoso de Oliveira foi o grande portador
365
fúgios, as suas emoções básicas, o orgulho da raça, o amor à terra, a confiança na tradi-
ção e a comunhão de um destino político comum, e, em segundo lugar, porque dela e-
mergirão os feitos heróicos que, fixados na história do povo, comporão o mito histórico
da nacionalidade que irá assegurar “que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao pas-
sado” (Lévi-Strauss, 1981: 63). Neste sentido, podemos dizer que a guerra brasílica sin-
tetiza a tradição civilizacional brasileira, marca a emergência do sentimento nacional no
Brasil e é o signo mais proeminente do nosso estilo. Senão, vejamos.
Com efeito, cumpre lembrar que a guerra atuava como um “fato social total”
(Mauss, 1923-4: 41) para a sociedade tupi e que ela foi a grande responsável pelo proces-
so de dispersão desse povo pelo território brasileiro antes da chegada dos europeus (Cf.
Capítulo 1). Os tupis eram os índios mais prestigiosos naquela conjuntura porque, valen-
do-se de sua cultura militar, haviam subjugado outros grupos menos traquejados nas lides
bélicas, conquistado os territórios que eles ocupavam e, em 1500, formavam uma espécie
de cinturão em torno do atual território nacional (Cf. Mapa 1). A partir do Descobrimento
e, mormente, desde o aprofundamento da empresa colonial, a guerra tupi foi o grande
instrumento de resistência à intrusão estrangeira e muito concorreu, inclusive, para a der-
rocada do sistema de capitanias hereditárias (Cf. Capítulo 3), mas uma série de fatores
impediu que houvesse um confronto aberto e generalizado entre os íncolas e os adventí-
cios, dentre os quais se destacam as dissensões imemoriais entre os próprios nativos, a
demanda dos índios pela tecnologia portada pelos europeus, o estabelecimento de laços
de cooperação, parentesco e amizade entre tupis e lusos e a presença dos entrelopos fran-
ceses.
Essa configuração conjuntural, favorecida pelo “espírito pessoalizante” de
tupis e lusos, determinou a formação de um panorama humano em que a divisão entre
“amigos” e “inimigos” solapou a oposição entre “brancos” e “índios”, o que redundou na
emergência de uma solidariedade comunitária interétnica onde havia alianças estabeleci-
dessa perspectiva ao elaborar o conceito de “identidade contrastiva” (Cf. Cardoso de Oliveira, 1976: 1-31).
366
das. Foi nesse contexto que surgiu a guerra brasílica como um resultado da fusão das
tradições militares de tupis e lusos, pois ela é nada mais do que a associação da técnica e
da tática indígenas, inigualáveis no terreno tropical, com a estratégia e a hierarquia por-
tuguesas, indispensáveis num teatro de operações muito mais complexo do que as condi-
ções existentes na América pré-cabralina. Sendo assim, consideramos a guerra brasílica
como o primeiro produto cultural genuinamente brasileiro, na medida em que ela sinteti-
za, significativamente, o processo desvelado por Gilberto Freyre – a produção de uma
tradição civilizacional unitária através do “equilíbrio de antagonismos”.
Entretanto, a guerra brasílica foi se transformando em um símbolo da nacio-
nalidade nascente na medida em que foi sendo acionada para arrostar a ameaça estrangei-
ra sobre o território ocupado pela comunidade formada por lusos, tupis – e, depois, tam-
bém africanos – e a sua descendência mestiça. Por mais paradoxais e ambíguas que se
afigurassem as relações entre os membros da comunidade política brasílica, sua unidade
se afirmava em vista do contraste com o alienígena, fosse ele o europeu inimigo dos por-
tugueses, fosse ele o índio desafeto dos tupis comarcãos. Entretanto, serão obviamente as
lutas empreendidas contra a usurpação estrangeira do território legitimamente adjudicado
à Coroa portuguesa pelo tratado de Tordesilhas (Cf. Capítulos 5, 7 e 12) que veicularão a
emergência da nacionalidade brasileira, pois as repercussões desses episódios de grande
mobilização coletiva na colônia e de reduzido apoio oficial metropolitano, virão a ser os
condutores da elaboração das quatro “emoções” básicas que informam o sentimento na-
cional.
Em primeiro lugar, o objetivo manifesto dessas lutas era defender a terra e-
xaltada pelos cronistas coevos. Em segundo lugar, essas lutas evocavam uma ação políti-
ca comum, que, embora presa das muitas ambigüidades da formação nacional, era mar-
cada pela concorrência “unionista” de todos os seus componentes. Em terceiro lugar, foi
a eficiência do jeito de guerrear forjado a partir da fusão cultural que constituiu a tradição
civilizacional brasileira o instrumento que daria os louros da vitória às falanges da terra.
367
Em quarto lugar – e, isto é o mais importante – foi o voluntarismo de infantes e capitães
brasílicos, arquétipos do “povo novo” da nação, o fator decisivo em contendas marcadas
por uma funda desigualdade de forças.
Ou seja, a luta contra franceses e holandeses viria a se tornar um símbolo de-
cisivo da emergência da nacionalidade porque colocou em voga o amor à terra, a comu-
nhão de um destino político comum, a confiança na tradição e, sobretudo, o orgulho da
raça do “povo novo” da nação. Pensamos que estas são evidências irrefragáveis de que a
gente brasílica, imbuída dos princípios de pertença que lhes eram próprios, garantiu, com
o seu jeito de guerrear – aliás um estilo que Gilberto Freyre surpreendeu no jeito brasi-
leiro de jogar futebol (Cf. Mello, 1989: 238; Capítulo 12: 338) – a integridade do alicerce
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