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JOÃO ALFREDO DE SOUSA MONTENEGRO
O LIBERALISMO RADICAL DE FREI CANECA
TEMPO BRASILEIRO Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – 1978
2
À minha esposa
Aos meus filhos
Meus agradecimentos
- a Antônio Paim, orientador do trabalho, pelo apoio e
constante estímulo.
– a Professora Celina Junqueira, coordenadora do
Mestrado em Filosofia da PUC/RJ, pela preciosa
atenção dispensada.
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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO – Antonio Paim ......................... .5 INTRODUÇÃO .......................................................................... 26 1. FREI CANECA: VIDA, PERSONALIDADE E CIRCUNSTÂNCIA ........................................................... 26 Esboço biográfico ............................................................. 26 Formação doutrinária: influências ...................................... 48 A conjuntura pernambucana: antecedentes .......................... 66 2. A FUNDAÇÃO DO LIBERALISMO RADICAL NO BRASIL ..................................................................... 93 Perfil biográfico e personalidade de Cipriano Barata ............................................................................... 93 Componentes ideológicos de Cipriano Barata. Teses propostas ......................................................108 3. A OBRA DOUTRINÁRIA DE FREI CANECA ..................160 Formulação ideológica em níveis sobrepostos. O encontro da teoria com a praxis .........................................................160 Privilegiamento do elemento utópico-prospectivo-radical num contexto de mentalidade conservadora .........................214 A mobilização do discurso racionalista. Retórica e domínio autoritário da linguagem. O estilo polêmico na confluência do padrão racionalista e da circunstância.........................................................................261 BIBLIOGRAFIA ........................................................................ 301
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APRESENTAÇÃO
Depois de Evolução do catolicismo o Brasil (Ed.
Vozes, 1972) e de Ideologia e conflito no Nordeste rural
(Tempo Brasileiro, 1976), João Alfredo Montenegro dá -
nos agora uma análise profunda e original do
pensamento de Frei Caneca (1774/1825). A propósito
do primeiro livro, denominando seu autor de “mais
recente historiador do catolicismo” , Alceu Amoroso
Lima afirma que “produziu obra notável em todos os
sentidos”.(1)
A questão da idéia liberal foi sendo gra-
dativamente abandonada pela ensaística brasileira ao
longo da República, talvez pela paulatina extinção da
espécie nos arraiais políticos, circunstância que se
fazia acompanhar da ascensão do republicanismo
autoritário e do autoritarismo doutrinário.(2)
Aban-
donada pela ensaística republicana e pelos políticos, foi
entretanto apropriada pela Universidade a partir dos
anos sessenta. No período desde então transcorrido, o
tema ganhou ‘status” acadêmico, graças sobretudo aos
trabalhos de Roque Spencer Maciel de Barros, Wan-
derley Guilherme dos Santos e Vicente Barreto.
Reconquistamos afinal, ao menos nos círculos uni-
versitários, o entendimento dos grandes teóricos do
século passado, como Silvestre Pinheiro Ferreira
(1796/1846), de que a representação é de interesses.
Semelhante compreensão coloca em primeiro plano, de
5
um lado, a organização do corpo eleitoral e a
consideração dos elementos que concorrem em sua
manifestação, e, de outro, que o próprio eleitorado
aprenda a hierarquizar seus interesses, de sorte a
dispor de plataformas efetivamente polarizadoras. Num
contexto destes, o interesse nacional é fruto de uma
ampla negociação e não se trata de “descobri-lo”, e
muito menos através da ciência, como passaram a crer
os republicanos brasileiros, seguindo nesse passo os
ensinamentos do positivismo. Adquiriu-se igualmente,
nos mesmos círculos, uma consciência clara da com-
plexidade das relações entre as idéias liberal e de-
mocrática. Do breve enunciado do caminho percorrido,
vê-se como nos achamos hoje distanciados da acepção
de liberalismo que conquistou foros de universalidade
na imprensa e nos meios políticos.
Na nova circunstância, passou a revestir-se de
especial relevância a compreensão do liberalismo
radical que empolgou parcela significativa da geração
que fez a Independência. Trata-se de um liberalismo
“sui-generis”, com vários pontos de contato com o
autoritarismo porquanto não admite confrontação e
supõe-se um ponto de vista exclusivo.
Vicente Barreto, no ensaio que dedicou à
Ideologia liberal o processo da Independência(3)
de-
bruçou-se sobre o tema, considerando-o momento
destacado no processo de apropriação da idéia liberal,
processo esse que apresenta, nos movimentos que
antecederam a proclamação, a peculiaridade de
considerá-la unilateralmente, no caso, do ângulo da
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liberdade. Neste decênio, diversas pesquisas levadas a
cabo tanto na PUC do Rio de Janeiro (Anna Maria
Moog Rodrigues), como na Universidade Católica de
Salvador (Francisco Pinheiro Lima Junior e Dinorah
Berbet de Castro) e na Universidade Federal de Juiz de
Fora (José Carlos Rodrigues) sugerem uma vinculação
muito estreita entre o liberalismo radical e a filosofia
introduzida em Portugal com a reforma pombalina da
Universidade, denominada empirismo mitigado.
João Alfredo Montenegro quer conduzir mais
longe a compreensão do fenômeno e o fez com ex-
traordinário brilhantismo. Pretende considerar não
apenas o embasamento teórico, que foi o aspecto
desvendado no período recente. Privilegia a circuns-
tância ética do mesmo modo que a forma de expressão
desse pensamento. Valoriza o caráter retórico e
panfletário do discurso político do liberalismo radical.
Visa assim uma abordagem abrangente e multilateral.
O leitor verá que este livro corresponde a
significativo progresso no estudo da idéia liberal na
expressão radical que veio a assumir. Ao longo da
exposição de João Alf redo Montenegro sobressai o
desempenho compreensivo, a atitude de profundo
respeito pela obra estudada, sem abdicação do espírito
crítico, a ausência de qualquer manifestação de
arrogância. Enfim, todas as virtudes do autêntico
historiador.
Rio de Janeiro, janeiro de 1978.
Antônio Paim
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NOTAS DA APRESENTAÇÃO
(1) História da Cultura Brasileira, Vol. I. Os fundamentos.
Brasília, Conselho Federal de Cultura, 1973, pág. 166.
(2) O primeiro corresponde à prática política de que resulta o
virtual abandono do sistema representativo. O segundo, à
elaboração teórica iniciada por Castilhos e que assume feição
acabada no Estado Novo.
(3) Prêmio Poder Legislativo – 1972. Brasília, Ed. da Câmara
dos Deputados, 1973.
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INTRODUÇÃO
Frei Caneca é autor pouco estudado.
Apenas Lemos Brito dignou-se a fazer uma
análise sistemática da obra do glorioso mártir
pernambucano, abrangendo os vários ângulos de sua
elaboração cultural e de sua atividade política, ambas
inseparáveis. No que não faltou o exame minucioso da
personalidade do monge carmelita, completando o
quadro esboçado.
Tal análise, tem por título A Gloriosa Sotaina do
Primeiro Império, da coleção Brasiliana, Companhia
Editora Nacional, edição de 1937.
O mais que se publicou a respeito forma um
pequeno acervo de art igos ou trabalhos esparsos,
contendo aspectos parcelados ou sínteses aligeiradas,
não oferecendo interesse relevante.
A investigação de Lemos Brito, em que pese o
seu rico conteúdo informativo, focalizou de preferência
as linhas mestras de um pensamento po lítico marcado
pela influência de idéias centradas em Locke e em
Montesquieu, e com o estímulo das “tradições per -
nambucanas”, gerando uma concepção de federação
adaptada à realidade brasileira.
Ao redor desse núcleo central de influências
destaca ele o influxo de pensadores radicais, como
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Raynal, o dos clássicos greco-romanos, o de um dos
teóricos do direito natural, Puffendorf.
Não se lançou, porém, o intérprete em foco, a um
trabalho de aprofundamento da postura filosófica de
Frei Caneca, condição sine qua non da nítida com-
preensão do liberalismo radical que desenvolveu.
Isso se deve não só aos objetivos propostos pelo
autor, como também ao estado da reflexão o domínio da
Filosofia e das ciências humanas, carecendo, na época
de lançamento daquele título, do largo suporte epis-
temológico, do aprofundamento temático das questões, a
privilegiarem o período contemporâneo, ou melhor pre-
cisando, o momento atual.
Hoje em dia, a pesquisa, nesse campo, usufrui das
grandes vantagens do método interdisciplinar, que
possibilita a reunião numa densa e rica perspectiva dos
dados provenientes de segmentos vários da ciência, do
pensamento em geral.
Desse modo, a lingüística, a teoria crítica das
ideologias, a hermenêutica, a filosofia da linguagem, a
teoria da literatura, a antropologia, a história, a
sociologia, a Política, o direito etc., confluem para a
formação estrutural de um enfoque, com maiores
dilucidamentos dos problemas levantados, com mais
segura abrangência da temática.
Dúvida não subsiste que não haverá pontos
suficientemente tratados numa investigação, mesmo não
pretendidamente exaustiva, qualquer que seja o setor
humano a objetivar, se fogem à inserção numa visão
integrativa, qual a interdisciplinar.
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Não importa que ela se apóie com maior tônica
em certas disciplinas, desde que elas apresentem os
melhores suportes com vistas ao atingimento dos
objetivos programados.
Assim, algumas delas são normalmente privile -
giadas, por doarem subsídios pertinentes e alentados
com especialidade à interpretação de escritos, que
permaneceriam obscuros ou mal explicitados, não fora
esse expediente técnico.
Dito isso, já se percebe a intencionalidade que
cerca a presente tese, a de iniciar um trabalho de revisão
da obra de Frei Caneca.
Nada se empreendeu, e com a metodologia
focalizada, a respeito. No entanto, algo se devia fazer
nesse sentido.
É sabido o quanto de portentoso há na tarefa.
Rigorosamente, ela é tarefa de equipe. A sua
urgência é para o autor dessa tese a abraçá-la. E o faz
sem grandes pretensões.
Quer apenas estabelecer um novo enfoque, com
fundamento naquela metodologia, com o propósito de
começar o que desejaria fosse uma série de trabalhos
analíticos a cargo de eminentes pensadores, publicistas
ou historiadores das idéias, sob a ação coordenada de
equipe, ou por valiosa iniciativa particular.
Por isso, não vacila em recolher conclusões de
pesquisas em diversas áreas do conhecimento humano,
algumas até pouco aproveitadas pelos historiadores das
idéias, entre nós, como as atinentes à retórica, e que se
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constituem eficazes instrumentos de interpretação do
pensamento político.
E assim, se exime de encetar pesquisas originais
naquelas áreas. O que só seria possível num trabalho de
equipe, evidentemente.
Eis que o tema a ser desenvolvido, “O Li-
beralismo Radical de Fre i Caneca”, cingir-se-á de forma
nuclear ao seu embasamento filosófico, à estrutura
ideológica que, com ele, se harmoniza, numa inte-
ressante singularidade, uma inusitada particularidade, na
ebulição de uma circunstância, assumindo um momento
original e próprio do pensamento político brasileiro.
A tese proposta, e que se procurará demonstrar, é
a de que o liberalismo radical do carmelita pernam-
bucano resulta de uma composição ideológica cons-
truída com elementos recolhidos de diversas e con-
flitantes fontes, apresentando-se em níveis sobrepostos,
com um fundo de mentalidade conservadora, e em
sintonia com arcabouço matizado de linguagem que
veicula objetivos políticos e estratégicos de natureza
utópica, prospectiva.
Para tanto, far-se-á de início um pequeno esboço
biográfico do heróico personagem, seguindo-se a coleta
de influências doutrinárias que sobre ele pesaram, no
calor mesmo da refrega, da conjuntura política
convulsionada em que viveu e na qual teve saliente
participação, deixando ver os aspectos dominantes de
sua personalidade.
A isso se junta o momento da fundação do
liberalismo radical entre nós, estudando-se o perfil
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biográfico e as componentes ideológicas de Cipriano
Barata.
Porquanto, sem um ainda que rápido desen-
volvimento histórico, fixando os antecedentes relacio-
nados com a vida, com a formação cultural, com a
circunstância, com a atividade político-ideológica do
seu precursor, não se reunirão condições propícias para
a análise objetiva do pensamento caneciano. Muito
menos para a colocação e demonstração da tese em foco.
Ela encontra fortes justificativas nos dias atuais,
de profunda modificação na perspectiva e na
metodologia da história das idéias, a qual saiu de um
estágio empírico para outro de elevada cientificidade.
É quando se impõe inquestionavelmente um
tratamento mais sério e atualizado dos pensadores, dos
ideólogos, que atuaram nos períodos transatos da
história do Brasil, malgrado o esforço abnegado e
admirável que alguns exegetas, comprovado em mo -
nografias que, ainda hoje, constituem fontes necessárias
de consulta a quem se lançar em tão difícil e árdua
tarefa.
Com relação à obra de Frei Caneca, requer-se
prioritariamente, dado o seu caráter consolidador de
importante corrente do pensamento político nacional,
uma avaliação consubstanciada no interesse dominante
da conjuntura presente, com vistas à sua condução
racional e consciente.
Firmada numa pauta de historicidade fornecida
pelos valiosos critérios contemporâneos da filosofia e da
teoria da história, com a assistência dos sólidos recursos
13
metodológicos de que dispõem, os escritos do monge
carmelita ganham um enfoque mais rico, abrindo a
compreensão urgida do processo político do país sob um
contexto global.
Nessas condições, não há como recusar a va-
lorização dos momentos político-ideológicos nucleares
da evolução histórica brasileira.
E cada vez que se alcança uma nova época torna-
se imperativo o empreender a revisão das leituras sobre
esses momentos.
Assim o exigem as necessidades que ela cria.
É voz corrente entre os estudiosos que a polít ica
forma atividade geradora de diretrizes gerais para os
setores da vida nacional. A economia, a cultura, o
direito, etc., sofrem os condicionamentos dessas
diretrizes. Pelo que assumem determinadas tendências,
reorientando às vezes até os valores naturais que
guardam. Politique d’abord.
Daí a importância da revisão da orientação po-
lít ica, encarnada num modelo.
Nessa tarefa toma corpo, sob o afã atualizador,
outra tarefa de revisão, a da exegese daqueles momentos
político-ideológicos.
Uma é correlativa da outra.
Ambas devem ser contemporâneas.
Nesse sentido, urge uma investigação analít ica
que conclua numa nova perspectiva do pensamento
caneciano.
E por que não assumi-la dentro da concepção
atual da história das idéias?
14
Não se mostra oportuno o fazê-lo dentro das
coordenadas assumidas por essa especialidade, que,
aliás, perde o rigorismo do termo, tal, como se viu, o
acervo sofisticado de técnicas, de procedimentos, de
temáticas, de epistemologias, de subsídios, emprestado
por outras ciências, pela filosofia?
Mais se fortalece hoje em dia o entendimento de
que a formulação ideológica se clarifica no interior das
estruturas de linguagem, fornecedora dos grandes sig -
nificados políticos e antropológicos. Mormente quando
se tem o complemento indispensável da hermenêutica
que a faz translúcida nas suas múltiplas conotações,
numa circunstância, no reflexo de uma mentalidade, ou
no jogo complexo das mentalidades em confronto.
O discurso racionalista, na base da concepção
política do liberalismo, na raiz da ideologia caneciana,
reclama, dentro dos critérios nomeados, urgente revisão,
de modo a esclarecer o papel que desempenhou no
exercício político-ideológico, entre nós.
Mais: ele penetra fundo na continuidade histórica
que, fundamentalmente, é continuidade ideológica, em
determinados contextos nacionais.
Daí a prioridade do tema no estudo de vários
períodos mesmo desses contextos.
O discurso racionalista, nas suas matrizes eu-
ropéias e nas particularidades culturais dos países que
sofreram o pesado impacto dele, notadamente os da
América Latina, oferece uma configuração que vem
sendo dissecada através de avançada metodologia e de
critérios epistemológicos operacionais, revelando imen-
15
sa gama de dados ideológicos, todas as grandes linhas
de uma civilização.
Com relação àqueles países que viveram na
inteira dependência dos grandes centros, o mesmo
discurso ganhou matizes interessantes, produzindo uma
fenomenologia específica, a merecer os melhores
cuidados da pesquisa.
Nele se enraízam o comportamento político, as
concepções do mundo, os modelos de sociedade, coisas
desse quilate, que se forjaram no encontro do discurso
pré-formado com a cultura nacional, com a vivência
histórica.
Assim, ao assentar o status quaestionis da tese a
ser desenvolvida, demonstra-se a exigência de se valer
da analítica do discurso racionalista como fundo de
mobilização ideológica.
Como, depois disso, negar o embasamento que ele
empresta ao pensamento caneciano?
Como, então, impedir que se situe, com a
conformação que tomou na circunstância brasileira, no
âmago de qualquer problemática ideológica do século
XIX, mais particularmente?
E essa singularidade que assume o discurso
racionalista entre nós torna mais exigente e premente tal
tarefa, sabendo-se ser mister descer fundo à realidade
nacional, a partir da perspectiva histórica, para se obter
o perfeito entendimento das estruturas de pensamento
importadas.
Com o trabalho que se segue, pretende-se
estabelecer um nível de tratamento epistemológico que
16
se eleve acima da linguagem descr itiva comum, de
pouca força interpretativa. De modo a franquear a
superação do unilateralismo do enfoque, com o advento
de procedimentos lógicos e de contribuições que
transcendem, no caso da doutrina caneciana, o âmbito
restrito do político, iluminando-o.
E aqui cumpre ressaltar as vantagens que daí
resultam. Assim, o problema central do binômio teoria -
praxis, cuja análise mais fecunda e fundante transpõe os
umbrais da política, encontra na perspectiva proposta
melhor dilucidamento.
Trata-se, na verdade, de ponto sumamente
importante na apreensão do comportamento político
numa conjuntura.
E ele se relaciona com o contexto de mentalidade,
com a disposição das forças sociais em atuação, com as
estratégias políticas que se movem dentro dessa
conjuntura.
Tudo isso passa a ser colocado numa visão
estrutural, percebendo-se significativamente o entrosa-
mento das partes.
Num ideólogo da estirpe de Frei Caneca, adepto
do revolucionarismo, participante de rebeliões, guerri-
lheiro, radical, que quer levar as suas convicções
políticas à plena realização, até pela força se for o caso,
é relevante o tema da prática.
Ela, a seu modo e segundo a concepção que
abraçou, em conformidade com o espírito conturbado do
período, se correlaciona dinâmica e dialeticamente com
a teoria.
17
De sorte que o relacionamento de ambas, na viva
trepidação da luta política, tem força de gestação
ideológica, a qual imprescindível de exame na formu -
lação e no desenvolvimento da temática caneciana.
Tal relacionamento repercute nos desníveis
ideológicos que percorrem essa temática. Os quais
despontam com a variedade de momentos a comporem
uma historicidade, ora menos tensos, ora mais tensos,
uns de relativa calmaria, outros de aguda mobilização
política.
Outra vantagem conseqüente à aplicação do
referido procedimento lógico-epistemológico reside na
rica percepção da natureza ideológica do panfleto,
veículo por excelência de fermentação política, parti-
dária, mergulhando na dinâmica dos acontecimentos.
Não se pode empreender de sã consciência a
análise da história das idéias políticas sem se ir até essa
fonte, sem incorporá-la com a sua contextura própria de
linguagem, com a sua imanência ideológica, ao perfil
dos grandes protagonistas, ao retrato das conjunturas.
Ainda se deve acentuar o benefício trazido com a
concepção metodológica aqui seguida, e patenteado na
elevação da consciência política, com o que crescerão as
possibilidades lógicas e as possibilidades reais, por -
quanto ambas andam de mãos dadas. É então que a
utopia adquire nova dimensão, como de fato adquiriu no
presente, e sendo melhor visualizada no passado.
Daí porque se espera que, concluído o presente
trabalho, se tenha obtido uma consciência mais nít ida,
mais realista, mais verticalizada do processo político
18
brasileiro. Nessa hipótese, a história das idéias políticas,
ao expor a contextura político-ideológica de um dos
períodos mais conturbados da vida do país, e sob o
patrocínio da elaboração caneciana, estará prestando
valioso contributo às suas instituições.
Verdade que uma elaboração assim pretendida é
cercada de dificuldades.
Ela forçosamente ficará num grau de densidade,
cuja leitura exigirá conhecimentos diversificados e
experiência razoável da metodologia empregada.
No entanto, vale a tentativa.
O seu caráter de pioneirismo e as circunstâncias
que a presidem, atenuarão as falhas nela existentes.
Pelo menos o registro de um sentido original da
meditação aqui oferecida, abrindo novos horizontes para
a história das idéias no país, compensa os desacertos
possivelmente apontados pela crítica.
Esse sentido se evidencia na revelação de co -
nexões entre a personalidade, a circunstância e a obra de
Frei Caneca, manifestando uma performance ideológica,
de tipo muito peculiar, movendo-se dentro de blocos
valorativos com certa autonomia e em perfeit a sintonia
com os desníveis da historicidade.
E a performance ideológica em referência, ex-
pressando-se em formas de linguagem e denunciarem
interrupções, variações, de um processo lógico -se-
mântico, granjeando configuração que retira a possi-
bilidade de rígida uniformidade, propõe-se como es-
trutura compósita, com a absorção de ingredientes
conservadores e radicais. De tal modo que a conciliação
19
está no fundo do liberalismo radical, após o final da
missão do monge carmelita.
Assim é que, depois das exposições acerca da
vida, personalidade e circunstância, com o coroamento
do estudo sobre a fundação do liberalismo radical no
Brasil, destacando-se a figura de Cipriano Barata, o que
se põe como necessidade lógica para o tratamento do
tema específico, vem o desenvolvimento propriamente
dito da obra caneciana em que é realçado um tipo de
interpretação em conformidade com o projeto epis te-
mológico delineado.
Para tanto, mister se fez uma investigação sobre o
Iluminismo, com o recolhimento de numerosos dados a
respeito das suas bases lógico-epistemológicas, do teor
ideológico nele imanente, do alcance da nova antro -
pologia que trouxe.
Sublinhou-se, então, o avanço da concepção de
praxis em função do progresso da teoria, com o que se
terá condições de fundar o autêntico entendimento da
ideologia liberal radical entre nós e a sua expressiva
inserção no afrontamento da conjuntura subseqüente à
Independência.
Daí se parte para a explicação de uma tipicidade
ideológica que se produz no meio de descontinuidades,
de sobreposições de segmentos valorativos, uns sobre os
outros.
Depois, com o assentamento de fundamentos mais
gerais sobre o perfil ideológico do frade pernambucano,
exporá aí a tônica do elemento utópico-prospectivo, a
dinâmica que alcançou, a modalidade que tomou, no
20
meio de uma estratégia política a se desenrolar num
contexto de mentalidade conservadora.
Após isso é que se ensejará oportunidade para se
estabelecer as conexões existentes entre a ideologia e a
linguagem nos escritos canecianos, esclarecendo as-
pectos importantes, dilucidando pontos que, sem essa
metodologia, permaneceriam obscuros. O que se dará no
capítulo final.
Então o racionalismo aí será, como se pretende,
apresentado de maneira mais lúcida e objetiva.
Como se vê, está-se diante de uma elaboração
presa a um padrão de exegese elevado e denso, às vezes
determinando, como não poderia deixar de ser, certo fe -
chamento da linguagem. Tal a natureza da presente tese.
A qualidade epistemológica imprime-lhe a
necessidade de se apegar a nível de interpretação que
deixa de lado, na exposição do tema, aspectos menos
relevantes, particularidades históricas, hábitos meto -
dológicos, que vinham sendo utilizados por uma série de
estudos sobre o mártir pernambucano.
Acidentes relativos à sua vida e morte, até mesmo
vários episódios históricos que o envolvem, tão co -
mumente invocados, não são trazidos à colação em todo
o desenvolvimento da tese.
É que eles não são pertinentes aos objetivos
propostos, cingindo-se o trabalho a aspectos mais
vinculados ao campo das idéias, das ideologias, da
configuração epistemológica que assumem, especial-
mente a de Frei Caneca. Isso não obsta que, na primeira
parte da tese, se delineiem as circunstâncias históricas
21
dentro das quais se move o comportamento ideológico-
político do heróico frade, as particularidades marcantes
de sua vida, as agitações de um período convulsionado,
o confronto de mentalidades nele instalado.
Nesse caso, demorar-se-á preferencialmente no
plano descritivo, com o propósito claro de assentar pres-
supostos do que será o plano dominantemente inter-
pretativo, na segunda parte, quando se alcançará o cerne
da questão.
Disso resulta que a originalidade caracterizará – e
essa a intenção afagada – os momentos de maior
densidade do tema, tornando desnecessária a pletora de
citações, afastando o apoio demasiado freqüente de
autores às colocações expendidas.
A tese em objeto circunscreverá o seu âmbito ao
ensaio de dilucidamento da estrutura ideológica que
pervade os escritos canecianos.
Mas de uma forma a fazer sobressair um processo
modelador e comunicados dessa estrutura, com as co -
notações várias que reúne, com o jogo valorativo que
procria, com as tendências que define, com os condi-
cionamentos modulados de linguagem que suscita.
Não se trata aqui de sublinhar as influências
doutrinárias que pesam sobre o frade carmelita e como
elas ganham corpo num delineamento próprio ao sabor
da circunstância, numa formulação descritiva longe da
explicitação daquela estrutura ideológica.
Pois ela tem uma natureza, uma composição ar-
ticulada, um embasamento lingüístico, uma posição sin-
22
gular do universo racionalista, que não merecerá atenção
mais detida.
Isso é o que se tentará colocar no estudo que
segue. Porque não há mais sentido para se continuar a
reproduzir, quase sem variações, o mesmo modelo de
enfoque e de metodologia no tratamento da obra de Frei
Caneca.
Expor os aspectos gerais e particulares dessa
obra, de natureza biográfico-histórica e doutrinária, sem
descer até aos fundamentos epistemológicos e axio -
lógicos que a unificam, que a explicam, constitui
trabalho superficial, não mais condizente com as
exigências do pensamento contemporâneo.
Eis que o intento que se fará nas páginas
seguintes vem determinado por essa preocupação de
trazer algo de novo, malgrado as limitações, talvez
grandes, que o cercam.
Nem poderia deixar de existirem elas num
trabalho de largas ambições, mas necessário nos dias
atuais.
E não só em relação à obra de Frei Caneca.
Numerosos ideólogos e pensadores brasileiros, de
todos os períodos, estão à espera de pesquisadores que
se demorem sobre os seus escritos, interpretando-os nos
moldes lógico-epistemológicos renovados, a ensejarem
ampla revisão do que já foi feito nesse campo.
Com tal convicção, a tese a ser desenvolvida
adotará uma metodologia de trabalho que privilegiará os
dados bibliográficos, documental e panfletário.
23
Sobre eles operará a interpretação, porquanto o
que se busca é sobremodo uma leitura calcada naqueles
moldes.
Conforme já foi dito anteriormente, a tese
compreenderá duas partes bem distintas. Uma de caráter
notadamente descritivo; a outra, de feição acentua-
damente interpretativa, a principal, onde se localiza o
cerne da questão.
Para a primeira parte serão utilizados sobretudo
informações históricas.
Isso não veda que, no meio da identificação da
circunstância e da personalidade de Frei Caneca, se
promova a interação dialética entre ambas, até mesmo
para o devido posicionamento das premissas indis -
pensáveis.
Apenas se quer de logo salientar uma qualidade
de exegese, a que de modo algum se poderá eximir em
análises, não obstante prévias, mas já encaminhando
outras de nível mais denso e profundo.
Como se furtar, por exemplo, a essa prática no
esboço da psicologia, das atitudes indicativas de in-
tercorrência dinâmica entre a conjuntura e as exte-
riorizações enérgicas do caráter do carmelita?
E num caráter em que a constituição axiológica se
mostra tão complexa, os imperativos éticos tão singu -
lares, ao estudá-lo, haver-se-á de assumir um plano de
exegese razoável, ainda no meio de esboço descritivo.
Do mesmo modo no respeitante ao perfil de
personalidade e doutrinário de Cipriano Barata, o pre-
24
cursor de Frei Caneca, também de fundas implicações
com a conjuntura do seu tempo, cabe tal prática.
Na efetivação da metodologia exposta, utilizar -
se-á uma bibliografia composta de títulos referentes a
diversos campos de estudo.
Ensaios de filosofia política, de história das
idéias filosóficas e políticas, de história política, de
teoria das ideologias, notadamente relacionados com o
período iluminista-liberal, com o momento político
brasileiro subseqüente à Independência, servirão de
respaldo informativo geral ao tema.
Fontes primárias, constantes de manuscritos,
reforçarão alguns pontos específicos, por recomendação
técnica, pela prioridade que têm sobre escritos de
segunda mão.
Por fim, o panfleto é trazido a lume, como o
melhor suporte de avaliação ideológica, especialmente
ao ser posto em conexão com os títulos que englobam
sobre a retórica, sobre o discurso racionalista.
25
1. FREI CANECA:
VIDA, PERSONALIDADE E CIRCUNSTÂNCIA
Esboço biográfico
Frei Joaquim do Amor Divino, a que se
acrescentaria o agnome de Caneca, não se presta até
hoje a uma dessas biografias copiosas, repletas de
episódios e de incidentes, que compõem e iluminam a
formação evolutiva dos grandes homens.
Certo que ele é um deles. O desempenho
extraordinário que teve na Revolução de 1824 por si só
o atesta, culminando um período a partir de 1817, todo
ele devotado à causa da liberdade. E quando manifestou
qualidades elevadas de caráter, de firmeza moral, de
constância e de intrepidez na defesa do ideal a que se
dedicou. Como também o brilho e a vastidão da cultura,
que instrumentalizou com maestria nos sermões, na
imprensa, na dissertação política, na poesia.
Todavia, não se dispõem de elementos suficientes
para retratar o que foi a sua infância, a sua adolescência,
grande parte da mocidade, as circunstância mais
particulares de uma rara vocação, os motivos que o
levaram a ser religioso, os eventos mais significativos
da vida em convento, num painel que reconstituiria de
modo mais completo o homem, expondo com nitidez
uma psicologia, tendências, uma personalidade. E, desse
26
modo, a visão que se tem da participação do grande
carmelita nos acontecimentos do seu tempo muito se
enriqueceria, caso se conseguissem tais elementos.
Nasceu Frei Caneca no Recife. Mais preci-
samente, no bairro de Fora de Portas, freguesia de São
Frei Pedro Gonçalves.
Nada se sabe a respeito da data do nascimento e
do batismo.
Quem o batizou? Quais os padrinhos? Em que
Igreja se deu a cerimônia?
Nenhum registro sobre isso subsiste.
Quem diz é o Comendador Antônio Joaquim de
Mello, o seu mais autorizado biógrafo, que inclusive
consultou parentes do heróico pernambucano, na falta
de documentação escrita.
Foram os seus pais Domingos da Silva Rabelo e
Francisca Maria Alexandrina de Siqueira.
O apelido de Caneca é de autoria do próprio
biografado. Tem origem na profissão de tanoeiro, do
pai, o que muito orgulhava o filho.
É o mesmo Comendador quem lembra haver em
trabalho de Frei Caneca alguns dados a respeito de sua
ascendência.(1)
Trata-sedo que se contém no panfleto intitulado O
caçador atirando segunda vez à Arara Pernambucana.
Aí ele confirma o que aquele disse acerca dos
nomes de seus pais, dos seus avós, do bair ro onde
nasceu.
Com certa vaidade, fala dos seus antepassados
portugueses, considerando-se ruivo.
27
Entre esses, menciona Antonio Alves da Costa
Dantas, o qual, segundo informa, seu bisavô e tio do
Padre José Dantas, conhecido do seu tempo.
Também parente outro Dantas, Frei Antonio de
Natividade Dantas, como ele carmelita turonense e por
igual conhecido na sociedade pernambucana, português
de Elvas, no Alentejo.
Assim, parece existir uma tradição eclesiástica na
família.
Sua bisavó, esposa de Antônio Alves da Costa
Dantas, era Maria Pereira de Assunção, cujo pai, João
Batista Pereira, natura do Porto, inaugura a progênie
brasileira ao aqui chegar. Pois se casa com uma Maria,
sertaneja do Norte. Aí pelos idos de 1694.
Nesse ponto, sente-se honrado com a presença
indígena ou africana no seu sangue, algo que já
denuncia o pronunciado traço brasileiro ou nacionalista
das convicções de Caneca.
Dá conta dos revezes sofridos pela família em
Olinda com a guerra dos Mascates.
E prossegue:
“Não posso subir mais acima com esta exposição,
porquanto as perturbações, guerras e massacres d’aqueles
tempos infelizes, destruíram os momentos de outras
cousas de conseqüência, quanto mais as notícias de uma
família, que, não descendendo dos Machucas, dos
Queixadas, dos Caiporas, não tinha o seu pedaço de couro
de anta com os nomes escritos de seus maiores, Piratibás,
Pagés, Carnipecabás. Mas é ponto de fé pia, que essa
Maria das Estrellas (a sua primeira ascendente brasileira)
havia de ser alguma Tapuia, Potiguari, Tupinambá,
28
senhora de muito mingão, tipoias, aipi e macacheira; e
também si foi alguma rainha Ginga, nenhum mal me faz;
já está à porta o tempo de muito nos honrarmos do sangue
africano”.(2)
Tomou hábito de Carmelita a 8 de outubro de
1796, no convento de Nossa Senhora do Carmo. Recife.
A profissão solene data do ano seguinte.
Desde cedo, no claustro, revelou especial pendor
para os estudos, portador que era de notável talento, não
tardando a demonstrar erudição.
Isso lhe valeria a aquisição da “patente de leitor
em retórica e geometria”, em 1803, por iniciativa do seu
convento.
Então já se encontrava ordenado há anos. O que
ocorreu ao contar 22 anos de idade, antes da idade
regulamentar. Daí ter sido necessária especial autori-
zação do núncio em Portugal, o Cardeal Pacca.(3)
A erudição de Frei Caneca despertava a atenção
de quantos com ele mantinham contato direto, ou liam
as suas produções literárias ou doutrinárias, ou ouviam
os seus magistrais sermões, todos eles calcados nos
melhores modelos de eloqüência.
Ele hauriu as fontes da cultura clássica, segundo
a perspectiva do Enciclopedismo e das demais correntes
racionalistas da Europa do século XVIII.
Mas o que há de mais interessante, nesse aspecto,
é o modo como exercitava essa cultura, adaptando-a a
diferentes empresas ou circunstâncias.
E nisso aflorava a riqueza do seu talento, o tom
pessoal dos seus escritos, a capacidade de ordenar os
29
cânones clássicos às peculiaridades da vida brasileira,
quando não se vislumbrava às vezes, por força do estilo
pessoal ou da originalidade de enfoque, as matrizes da
cultura estrangeira que assimilara.
É que jamais deixou de se ater à co njuntura
nacional em que viveu.
Toda a sua obra, direta ou indiretamente, elabora-
a em função dos grandes imperativos históricos do país,
consubstanciados no projeto de fundação do Estado
brasileiro, na ereção de um sistema político vazado no
Liberalismo, e no mais puro Liberalismo, expungido de
conotações autoritárias ou absolutistas, voltado para o
desenvolvimento harmonioso da comunidade nacional,
sem privilegiamento de classe ou de elite. Tal como
convinha a um país egresso recentemente do status de
colônia e carente de efetuar o salto histórico reclamado
por uma autêntica independência, o qual repele o
continuismo asfixiante do passado.
Fiel a um projeto dessa ordem, sem tergiver-
sações, Frei Caneca cumpria tendências, pendores de um
caráter autêntico, inconformado, que não aceita con-
cessões pouco edificantes, que não aprova situações
conflitantes com os seus ideais.
Personalidade forte sustentava com a mão de
ferro convicções, defrontando-se desassombradamente
com os adversários, muitos dos quais poderosos e
influentes.
E ia até o ponto de agir sempre às claras, de peito
aberto, sem usar a malícia do político.
30
Nisso se sublinha com vigor o traço de sua
autenticidade, a grandeza de suas atitudes.
Pois concebia o exercício da política como o da
realização de doutrinas no corpo social, promovendo -o
material e moralmente, conforme a concepção racio -
nalista então dominante, não comportando o jogo da
astúcia, dos interesses pessoais, da submissão servil, do
dolo.
Atividade moral por excelência, não via como a
política absorvesse mesmo um certo pragmatismo, que a
torna viável, capaz de alcançar os seus objetivos.
Dada uma autenticidade pouco dosada de espírit o
prático, e que ia até ao desdobramento incontido da
ação, chegava muitas vezes ao alheiamento da represália
violenta de que poderia ser vítima.
Tal na Revolução de 1817 e na Confederação do
Equador. Era, na realidade, uma vocação de mártir. E de
mártir-profeta, que tudo afronta, que não pesa con-
veniências, que não mede conseqüências, para denunciar
a prepotência e os desmandos dos poderosos, o
despotismo dos governantes, sob o influxo do projeto
liberal que esposa, ao qual não faltavam as tintas vivas
do humanismo cristão.
Toda a atividade teórica e prática que encetou
reveste-se, assim, de uma dimensão ética, de uma
responsabilidade social, à qual não faltaria jamais o
concurso de suas forças, do seu talento, da sua coragem.
É, antes de tudo, o ideólogo, cônscio do valor e
da eficácia da verdade que sustenta, para servir de corpo
31
do projeto político nacional, para integrá-la como dever-
ser do momento histórico que atravessava o país.
Tal a veemência do seu discurso, tal o vigor
peremptório da sua palavra, que, de imediato, se
depreende o tonus dogmático com que veiculava e
punha em prática aquela verdade. Os valores al-
cançavam nele a espessura religiosa. Nisso de fazer
equivaler o espaço axiológico que abrange o homem, a
sociedade, a nação, as províncias, a uma teologia
política implícita, dispondo ordenadamente de pres-
crições de acentuadas conotações jurídicas em perfeita
conexão com o sistema religioso um tanto secularizado
do período de Pombal. Ou do liberalismo religioso
introduzido subrepticiamente na reforma promovida
pelo ministro português no ensino universitário do seu
país.
Então é que se melhor percebe a vinculação es -
treita entre a religião, e diria com mais propriedade a fé,
e a obra caneciana, a qual, na maior parte, inseparável
da práxis, conforme entendida na época.
Pois elaborando-a politicamente, ao sabor da
agitada conjuntura política de que participou ativa -
mente, entre 1817 e 1824,ao deixou de impregná-la com
uma concepção de fé que estimulava um papel
proeminente para o homem no mundo, na sociedade,
segundo a prática racionalista que invadira aquele
liberalismo religioso.
Como não vê aí uma clara interferência do abso -
luto, do plano transcendental no campo do imanente,
estimulando vigorosamente as personalidades fortes,
32
adeptas de um humanismo cristão, como Frei Caneca, a
se municiarem ideologicamente para o dinâmico de-
sempenho político?
Permanecem na penumbra ou na obscuridade as
marcantes motivações do comportamento do mártir
pernambucano, se não se capta o enlace firme e
absorvente, nele, entre a fé e a política, entre o
transcendente e a práxis da época.
Aí se robustece e adquire notável dinamismo a
sua personalidade, já naturalmente forte.
Desse modo impossível separar o religioso do
político, ambos se entrelaçam, se completam nessa
mesma personalidade.
E o princípio da liberdade é a matriz axiológica
que a preside, abrindo os canais fluentes e impetuosos
de uma obra que se confunde com o próprio agir, com as
exigências da ação.
Outro não poderia ser o princípio mater na
orientação de um homem nascido para operar grandes
coisas, para forcejar por inovações benéficas e
prioritárias na vida nacional.
Hoje melhor se compreende a ação política de
Frei Caneca, como de outros sacerdotes liberais do
período.
Não estavam eles exercitando de uma maneira
mais autêntica a fé, levando-a a um engajamento
humano necessário e imprescindível, relacionando-a
com uma antropologia, sem o que ela permaneceria
estéril, vaga?
33
Isso, que a teologia contemporânea ensina pela
voz dos seus mais categorizados representantes, passava
por comportamento desviante no seio da ortodoxia
católica.
Ainda em nossos dias um segmento dessa, o
tradicionalista, o confirma.
Antes do Concílio Vaticano II era o ponto de
vista comum.
Certo que há de se distinguir entre o engajamento
político admitido para o padre, nos dias atuais, não
devendo constituir-se em atividade partidária mas num
trabalho em prol de mudanças sociais em prol do
homem, do seu crescimento integral, e o daquele
período, quando, por falta de visão, de consciência da
necessidade daquele engajamento entre os dignatários
da Igreja, muitos sacerdotes, sequiosos de realização
humanística, que não era outra coisa senão uma
atualização da fé, se lançavam nas lutas partidárias,
revolucionárias, num comprometimento com o secular.
E, nesse caso, talvez inconscientemente tendessem para
esse comprometimento, na angústia do impasse da fé
somente apoiada ou explicitada na prática devocional.
Considerando a grande distância que havia ente a
Igreja e o Estado naquele momento histórico, nada de
admirar que os sacerdotes tivessem um comportamento
desviante das normas eclesiásticas, para efeito de um
encontro mais efetivo com o homem. Porque no rol dos
objetivos políticos circunscritos ao Estado, predomi-
nantemente com o aprimoramento de suas instituições,
34
demoravam os anseios daquele encontro. A Igreja
cuidaria apenas do espiritual.
Eis que não prosperam as críticas segundo as
quais o frade carmelita se afastara dos deveres de re-
ligioso ao abraçar a política. Isso num entendimento
amplo, a sobrepairar o juízo ortodoxo.
Desde que contemplada numa unidade fecunda, fé
e política se completam, demonstrando a impossi-
bilidade da crença cristã prosperar sem se ativar no
amor, que é prática histórica.
Os excessos vão por conta dos numerosos desvios
e contramarchas impostos pela praxis, à qual imanente o
conflito.
E, nesse contexto, o espírito do tempo, o mesmo
que demanda superação, adere como um ranço às lutas
produzindo largas demasias.
Veja-se, por exemplo, o costume da época, de
permanente estado de convulsão social e política entre
nós, arrastando naturalmente até mesmo os grandes
espíritos como Frei Caneca para o combate armado, para
as guerrilhas.
Sabe-se que o monge pernambucano adotou o
revolucionarismo como componente básico de sua
filosofia política. Evidentemente um excesso para um
religioso. Mas o mesmo espírito do tempo, pelo menos,
se encarrega de atenuar o pecado. Pois é de se observar
que, dada a unidade formada pelas ideologias religiosa e
política, impositiva se manifestava a tese de que o
inimigo político encarnava o próprio demônio, num
exaltado maniqueísmo de acordo com o qual o bem, que
35
representava um partido, deveria agir atrozmente contra
o mal, no outro partido.
Idade do século que assistia ao entrechoque brutal
dos dogmatismos, de natureza vária, proclama um tipo
de radicalização, o da revolução, como remédio para o
problema prioritário de então, o político.
Nesse ponto, o moralismo rousseauniano empres-
tara a Frei Caneca com mais saliência, todo um elenco
de implícitos postulados cristãos, denunciadores dos
demônios sociais e políticos.
E isso se agudizava numa conjuntura violenta,
como a brasileira, e mais notadamente a pernambucana,
que deixava refletir uma busca inquieta de acomodação
das estruturas sociais.
Nesse caso, a rigidez do dogmatismo doutrinário
deveria criar uma profunda cisão entre teoria e prática,
porquanto as exigências e os apelos desta não en-
contrando retificações correspondentes naquela, ficavam
muita vez à mercê de improvisações, de interesses
alheios à causa, de lideranças pessoais, até de fe-
nômenos circunscritos ao campo da patologia social,
como o banditismo, distanciando-as da inspiração
originária.
Daí vinha que a prática, numa conhecida operação
psicológica, acabava absorvendo o dogmatismo da
teoria, com a perda significativa do seu conteúdo.
Assim, o engajamento político radical, e mesmo
que não o fosse, arrastava fatalmente aos excessos, de
linguagem, de atitudes, de ação.
36
E muito do que hoje se toma por excesso não e ra
tido como tal naquele tempo.
E como poderia sê-lo num contexto de acerbas
confrontações, de acesas radicalizações?
A alimentar o liberalismo radical de Caneca havia
as influências do Enciclopedismo, de Rousseau, mas
também de determinismos da conjuntura em que viveu,
tudo confluindo para as soluções violentas.
Dúvida não existia de que a violência, a justificá -
la ideologicamente o dogmatismo, assentava, entre os
mais ilustrados, num pressuposto ético incoercível. Era
um dado fundamental, operacional, imanente ao dever -
ser, condição de transparência do Ser, do Valor no plano
da sociedade.
Portanto, há de se considerar todo o contexto
ideológico e o peso da circunstância para se formular
um juízo criterioso sobre a personalidade e o desem-
penho do frade carmelita. Tanto mais quando se verifica
uma extraordinária linha de coerência, de lealdade, de
franqueza, de patriotismo, de desprendimento, até do
mais completo despojamento na obra que consumou com
o holocausto final.
E, num enfoque dialético, não estariam sub-
sumidos os seus erros ou excessos, na tarefa grandiosa
de encarnação da Liberdade?
Os sublimes objetivos antropológicos aí emer -
gentes não colocariam em plano secundário o com-
portamento “desviante” do inolvidável mártir? Daí vir
marcado de rígida ortodoxia o julgamento que alguns
37
representantes do clero fizeram do papel político por ele
desempenhado.
Assim, Dom Duarte Leopoldo, malgrado o re-
conhecimento que faz do patriotismo e do nacionalismo
de Frei Caneca, acrescentando mais o fato de ter sido
ele em todos os momentos “o padre com todas as falhas
e defeitos que lhe inspirou a seita (a maçonaria), mas
sempre filho da Igreja a que pertencia por nascimento e
por convicção”, sustenta que o frade em questão deixou -
se fanatizar pela maçonaria. Foi por ela “iludido como
tantos outros. A maçonaria exaltou-lhe o patriotismo,
desvirtuando-lhe a missão sacerdotal”.(4)
Ora, não há provas de que Frei Caneca tenha sido
filiado à maçonaria.
O desmentido parte dele próprio.
Em “Sobre as Sociedades Secretas de Pernam-
buco” esclarece que não tem sobre essa entidade “outras
idéias, que as subministradas por alguns papéis, que
sempre devem ocultar muitas coisas pela per -
seguição...”.(5)
Não se confessa adepto de nenhum dos
agrupamentos maçônicos.
E sobre um deles, o Apostolado, expende um
juízo severo a ponto de afirmar que é “um club de
corrompidos ou estúpidos aristocratas”.
No entanto, com relação à organização em geral,
não a vê incompatível com o Cristianismo.
Escreve ele: “... a Maçonaria não é oposta ao
cristianismo”.(6)
38
Essa mesma opinião a sustenta o Padre Theodoro
Huckelmann.(7)
Prosseguindo o comentário em torno da tese de
Dom Duarte Leopoldo, não há como negar que o ilustre
antiste, ainda partidário de uma concepção
sobrenaturalista, tendo vivido anteriormente ao
momento do Concílio Vaticano II, concebe uma taxativa
separação entre a missão sacerdotal e as atividades em
favor de mudanças políticas que venham trazer o
progresso nacional.
Evidente que tal tese se encontra superada, diante
do alargamento que aquele Concílio proporcionou à
missão da Igreja, agora mais atenta aos problemas
humanos, com a sua inserção mais profunda no mundo.
A visão antropológica não se dissocia mais da
visão teológica.
O que se mostra condenável é o partidarismo
estreito, a política pela política, o espírito de facção
perfilhado pelo sacerdote. O que se denuncia como
oposto à linha evangélica.
Diante do visto, não cabe, por desarrazoada, a
tese de um comprometimento partidário de Frei Caneca,
com desrespeito a essa linha, tão grande e elevada foi a
missão que cumpriu, tendo diante dos olhos a promoção
do seu país, melhores dias para a gente que nele habita.
Por que não dizer, pois, que soube conciliar, no
profetismo que o animava, antropologia e teologia?
Isso, aliás, o levou a anteceder de muito as teses
do Concíclio Vaticano II, bem como o mostrou o Prof.
Andrade Lima Filho.(8)
39
Notável, com efeito, a primazia que o grande
mártir concede ao homem.
Ninguém mais do que ele defendeu em sua época
os direitos humanos. E o faz, invectivando contra o
despotismo, contra o arbítrio dos governantes.
No Typhis Pernambucano assume uma atitude
enérgica e varonil contra a prepotência do ato de
dissolução da Assembléia Nacional.
Dizia que era um ato de força que atentava contra
os direitos da nação, de todas as pessoas, das quais os
governantes eram meros delegados, jamais podendo
ultrapassar os limites outorgados na representação.
Analisando o decreto imperial de 13 de novembro
de 1823, comprova a sua contradição com os princípios
constitucionais-liberais.
Por ele se criava o Conselho de Estado incumbido
de elaborar o projeto de Constituição, após aquela
dissolução.
Mostra que aquilo “que se tem lembrado na
proclamação de 16 de julho, a saber, os sagrados
direitos da segurança individual, da prosperidade e da
imunidade da casa do cidadão; e na de 16 de novembro
independência do império, integridade do mesmo e
sistema constitucional, apesar de se prometer que serão
mantidas religiosamente, são proposições oucas de
sentido...”.(9)
E é intransigente na defesa do sistema cons-
titucional que preserva a liberdade, os direitos humanos,
não admitindo qualquer transigência a respeito, mesmo
da instituição da qual é membro – a Igreja.
40
Assim, não vacila em denunciar o Cabido de
Olinda a propósito da Pastoral por ele emitida a 4 de
março de 1923.
É que esse órgão se mantinha mudo diante dos
“terríveis furacões políticos” que agravavam a con -
juntura nacional e, mais particularmente, a pernam-
bucana.
Censura-o não ter assumido uma atitude pro-
fética, por medo de desagradar os detentores do poder,
os políticos prestigiosos, invectivando a prática do
baixo nível político, responsável pelas inquietações,
pelos desassossegos da população.
Faltou, diz o grande carmelita, a apalavra de
orientação do Cabido nos grandes momentos de crise,
quando o povo estava perplexo diante dos graves con-
flitos, da guerra civil.
Não existe mais autoridade ao colegiado para vir
de público deitar recomendações e imprimir diretrizes.
Profliga Frei Caneca:
“Desgraçadas ovelhas, a quem estes guardas estranhos
mugem duas vezes por hora, e só sabem extrair a
substância ao gado, e o leite aos cordeiros!”.(10)
Acusa ainda o Cabido de tomar uma posição
contraditória em face do sistema político da nação. Pois
ora propõe acatamento ao sistema constitucional – o que
se dá na citada Pastoral – ora aconselha obediência
irrestrita e ilimitada aos governantes, tal como se vê em
documento sobre coleta.
41
Nisso fica o dito órgão afagando modelos po-
lít icos opostos: o antigo, absolutista, e o novo, cons-
titucional.(11)
Era assim Frei Caneca um autêntico profeta.
A missão profética, exercida com extraordinária
largueza, a ponto de exercê-la também contra a insti-
tuição a que pertencia, dá bem amostra do traço talvez o
mais saliente de sua personalidade, a autenticidade.
As diversificadas atividades que executou, a de
político, a de sacerdote, a de revolucionário, a de
periodista, a de professor, desembocam num estuário
comum – um humanismo mediatizado pelas grandes
prioridades políticas do tempo, e encarnadas no
Iluminismo e no Constitucionalismo.
Esteiado nessa convicção, dela não se afastou por
coisa alguma. E da forma mais desinteressada possível,
porquanto não obteve, nem jamais pleiteou, posições
vantajosas, pingues proventos.
E, recorde-se, o heróico frade, passou por
terríveis provações, por inauditos sofrimentos, sem que
os seus ideais sofressem o menor abalo.
Quando da Revolução de 1817, na qual também
participou ativamente como guerrilheiro, embora com
menor liderança do que na de 1824, padeceu horrores na
prisão, abortado o movimento.
Disso nos oferece comovente relato Francisco
Muniz Tavares.
Levado à cadeia da Bahia, aí suportou ele,
juntamente com revolucionários ilustres como Antônio
Carlos, desembargador, Francisco José Martins, o
42
Morgado do Cabo e outros, as mais pesadas humi-
lhações, fome e vexames sem conta.
Não recebiam os presos segurança e assistência
devida da autoridade militar da Bahia, ficando eles à
mercê de um carcereiro cruel e corrupto.
Depois de muitos requerimentos feitos, por fim se
resolveu abrandar a sorte daqueles infelizes.(12)
Então, ainda se achava fortalecido o absolutismo.
E o governador da Bahia, o Conde dos Arcos, moveu
mão de ferro na repressão.
Mesmo assim, Frei Caneca não vacilou. Manteve-
se fiel quando muitos, e até companheiros de prisão,
arrefeceram, renegaram as convicções revolucionárias,
ou fizeram concessões ideológicas diante do
autoritarismo de Pedro I, mais tarde.
Extraordinária a sua linha de coerência ao longo
da época em que atuou.
Mais admirável ainda ao se examinar o caráter de
turbulência dessa época no meio da revolução
conjuntural, tentando os espíritos à acomodação diante
dos falsos pregões de ordem, de estabilidade.
Com a Independência do país, em 1822, rejubila -
se o grande mártir. E solta aos borbotões o verbo
inflamado e auspicioso por ocasião das celebrações
solenes em torno do evento, promovidas pelo Senado da
Câmara do Recife. É um sermão que se constitui modelo
de eloqüência, da qual mestre consumado, a exaltar o
gesto de libertação do Brasil por um príncipe da alta
estirpe de Pedro I. Gesto esse que compara ao de Maria,
quebrando outro despotismo, o das almas, ao esmagar a
43
serpente. A estrada da felicidade está aberta para o povo
brasileiro. Assim como se operou a liberação dos bens
eternos para a humanidade, por intermédio da mãe de
Deus.(13)
Mas é na Confederação do Equador, a Revolução
de 1824, que se dá o maior envolvimento do heróico
pernambucano. De logo se impõe como o ideólogo do
movimento.
O cerne da doutrina política caneciana se tece ao
sabor da evolução conjuntural que começa com a
dissolução da Assembléia Nacional pelo decreto de 12
de novembro de 1823.
O acontecimento causou forte impacto em
Pernambuco, seguindo-se logo um manifesto em que
deputados da Província lançavam violento protesto
contra o ato de força.
Como conseqüência, a Junta da Província se via
sem condições de continuar a governá-la.
Demissionária, reúne-se um grande conselho e
elege Manoel de Carvalho Paes de Andrade, Presidente
da Província, juntamente com o conselho que deveria
ajudá-lo a governar.
Não obstante a justificação feita pelo novo
governo junto ao Imperador, na qual se apontava para as
condições excepcionais daquela unidade, às voltas com
acerbas convulsões, não aceitou Pedro I as razões
invocadas na representação.
Inaugurou-se então um sério ponto de atrito entre
os dois governos que iria culminar na inconformação
44
desesperada de Pernambuco, na deflagração do movi-
mento confederativo.
Por ora, basta acentuar que o frade carmelita
acharia, nas novas circunstâncias, ocasião de unir a
teoria à praxis, consolidando entre nós a doutrina do
liberalismo radical.
E o fez, com efeito, articulando os aconteci-
mentos da conjuntura candente, nos quais tinha papel
saliente, com uma interpretação doutrinária à luz desses
acontecimentos, a qual a quer ia como corpo de dire-
trizes da ordem política nacional.
Melhor instrumento dessa empresa não poderia
ter utilizado que a Imprensa, como de fato utilizou.
O periódico “Typhis Pernambucano” se prestou
admiravelmente para isso, seguindo a tradição de
oposição radical iniciada por Cipriano Barata no
“Sentinela da Liberdade”.
Durante a sua fase de existência, mais
precisamente, de 25 de dezembro de 1823 a 5 de agosto
de 1824, o intimorato órgão constitui-se o termômetro
de grave crise política que sacudiu o país, especialmente
o Rio de Janeiro e o Nordeste. E nele Frei Caneca extrai
do conflito a grande motivação para o combate ao
autoritarismo, ao despotismo, como herança do período
colonial. Jamais se edificaria uma nação independente,
ciosa de sua liberdade, com um sistema político a
abrigar formas caducas de absolutismo.
Não foi apenas no “Typhis Pernambucano” que o
carmelita desenvolveu a sua atividade panfletária.
45
Fê-lo mais em três escritos assim intitulados:
“Resposta às calúnias e falsidades da Arara Pernam-
bucana”, “O Caçador atirando à Arara Pernambucana” e
“O Caçador atirando segunda vez à Arara Per -
nambucana”.
Neles se envolve em questões pessoais e na
defesa de correligionários, como Manoel de Carvalho,
voltando-se violentamente contra José Fernandes da
Gama que os atingira no “Arara”.
Aí a seriedade da erudição, da argumentação bem
tecido, se acasala com a diatribe quase impublicável, tal
o nível a que desce o sacerdote, naturalmente conduzido
pelas acesas paixões próprias de um estado social
convulsionado.
Registre-se também entre as obras de Caneca
“Dissertação sobre o que se deve entender por Pátria do
Cidadão, e deveres deste para com a mesma Pátria”, na
qual, influenciado notoriamente pelo humanismo clás -
sico e pelo Iluminismo, expõe uma concepção de pátria
em consonância com a história do país, particularmente
a de Pernambuco.
Mais: as “Cartas de Pitia a Damião”, onde ainda
propaga a sua doutrina política.
Nesse rápido esboço biográfico de Frei Caneca,
faltam alguns registros.
Assim, praticou ele com proficiência o
magistério.
Com orgulho subscrevia alguns dos seus escritos
acrescentando “Lente de geometria”.
46
E encarava essa disciplina através de um en-
tendimento que transcendia o seu âmbito formal,
inserindo-a numa lógica que facilitava o acesso a Deus,
à sã moral, à justificação do bem, das coisas retas.
A retórica, que por igual ministrou, e tanto
valorizou, dá uma tônica especial à sua formação
clássica, ao estilo habitual, até à sua dimensão
ideológica.
Por fim, cumpre realçar o heroísmo de sua morte,
extensão do heroísmo de uma vida consagrada ao
serviço da pátria, do humanismo, de sólida fundação
política para o Brasil, pressuposto indispensável de
transformações econômico-sociais e culturais que o
situariam não muito distante entre os grandes países.
Frei Caneca, feito prisioneiro em território
cearense, nas últimas escaramuças da Confederação do
Equador, recomeça o sofrimento terrível das prisões
desumanas.
O processo foi aberto a 20 de dezembro de 1824,
com o depoimento de oito testemunhas e a defesa escrita
do frade. Tudo com relação ao liberalismo que expôs no
“Ryphis”.
Já a 23 do mesmo mês prolatou-se a sentença de
morte, a qual recebe com admirável serenidade.
A 12 de janeiro de 1825, processionalmente, o
Cabido de Olinda e as Irmandades do Recife vão até ao
Palácio do Presidente da Província, então em caráter
eventual o Brigadeiro Lima e Silva, rogar pela
suspensão da execução, na expectativa de despacho pelo
Imperador de súplica a ser encaminhada. Tudo em vão.
47
A 13 é conduzido ao suplício, sem antes deixar de
passar por mais uma penosa humilhação – o da
degradação religiosa – em que a Igreja sanciona a
condenação do frade.(14)
No momento final, mostrou-se digno, conformado
com a sorte mas intrépido na conservação dos seus
ideais.
Formação doutrinária: influências
Multiforme se apresenta o acervo doutrinário de
extração estrangeira que pesa na formação de Frei
Caneca.
A filosofia do Iluminismo está na base do seu
pensamento, radicado que se encontra num processo de
libertação do homem de todos os condicionamentos
ideológicos, políticos e sócio-econômicos que o inibem
nos seus anseios de progresso, de crescimento.
Evidente que o Iluminismo constitui a matriz
doutrinária de um vasto corpo de idéias invocado como
diretriz das grandes mudanças a serem operadas no
mundo ocidental a partir da Revolução Francesa.
Vê-se assim que ele se propunha objetivos
pragmáticos, despidos do alto teor de abstração inerente
aos sistemas filosóficos do século XVII.
Tais sistemas se prendiam metodologicamente à
dedução.
Assentadas certas premissas, tidas como fun-
damentais, prontamente se tiravam daí pela demons-
48
tração silogística conclusões certas a respeito dos seres
e dos saberes.
Agora, o novo pensamento busca reformular o
próprio conceito de filosofia, tornando-o mais flexível,
mais operacional. Para tanto, teria que se desvincular do
modelo oferecido por uma tradição do pensar sediça e
alienada, e se apoiar nas ciências naturais do tempo,
cujo modelo era emprestado por Newton.
Ernst Cassirer, com maestria coloca o problema:
“Porque el camino de Newton no es la pura dedución, sino
el análisis. No comienza colocando determinados
principios, determinados conceptos generales para abrirse
camino gradualmente, partiendo de ellos, por medio de
deducciones abstractas, hasta el conocimiento de lo
particular de lo ‘fáctico’; su pensamiento se mueve en la
dirección opuesta. Los fenómenos son lo dado y los
principios lo inquirido”.(15)
A observação e a experiência passam, dessa for -
ma, a serem privilegiadas, sem levarem ao empirismo.
Porque não se fica no mero domínio dos fatos
singulares, isolados, mas se procura uma ordem e
legalidade que os articulam, que os presidem.
Tem-se aí uma forma explicitada matemati-
camente, conforme número e medida. Porém se afasta a
possibilidade de qualquer antecipação dos conceitos aos
fatos. É preciso encontrar nos fenômenos o necessário
encadeamento lógico.(16)
Considerando a realidade algo em constante
movimento, uma dinâmica de fenômenos, logo se aceita
que a razão constitui um fazer-se, um construir-se.
49
Nessa concepção, ganha relevo a história.
Impregnada do espírito das ciências naturais, ela
assume uma metodologia que leva ao privilegiamento do
imanente, descartando os apelos arbitrários ao sobre-
natural. E de um modo a pesquisar, preferencialmente, o
universo que se oculta debaixo dos eventos, numa
postura tipicamente filosófica.
Malgrado as limitações que cercavam o Ilu -
minismo na realização dessa tarefa, força é reconhecer o
progresso que trouxe à História com uma preocupação
mais concreta, mais elucidativa, passando a enfrentar
mais objetivamente os problemas da época, notadamente
os políticos. Tal o interesse da burguesia que assumia
naquele momento encargos intelectuais.(17)
E a História começa então a tomar uma im-
portância que jamais teve, fazendo da crítica um
poderoso instrumento de análise e de interpretação dos
fatos.
Assim, não poderia deixar de ser uma arma
político-ideológica a serviço da burguesia em ascensão,
e constantemente voltada contra um passado de
despotismos, de trevas, de ignorância.
Essas colocações se fazem necessárias para se
caracterizar a postura filosófica e a metodologia que o
grande carmelita assume em toda a sua obra.
Tal o “clima” iluminista em que vive.
Nele se detecta de imediato, nos escritos ma is
representativos, um espírito crítico, prioritariamente
político, e firmado em conceitos-chaves, que ganham o
50
aval de universais ao contato da análise conjuntural. Ou
após o confronto com uma evolução histórica.
E aí fica patenteado, em que pese o cuidado com
o real, com o histórico, com a conjuntura, o predomínio
do ideal sobre o factual, por longe se encontrar ainda a
constituição epistemológica das ciências humanas.
É o Iluminismo racionalista.
E sob o paradigma de uma “razão” que se pre-
tende analítica, mas que, pré-estabelecida, malgrado não
se dizer conceito puro das matemáticas, acaba por ele
afetada substancialmente.
Nessas condições, há muito de arbitrário nessa
“razão”, impedindo o alcance mais concreto do mundo
histórico, da realidade social, do quadro político.
O “espírito geométrico” invocado por Frei Ca-
neca, e que ele tomou de Fontenelle, indica bem o ter
perfilhado ele aquela razão.
Essa expressão significa o espírito de análise
pura, sem especificação de domínio, numa abrangência
que acusa o tratamento pouco científico das realidades,
especialmente aquelas que começavam a se descobrir
aos olhos atentos do analista.
Veja-se como discorre o mártir pernambucano:
“Pela geometria conhecemos evidentemente a existência
do Supremo arquiteto do universo; pela geometria
admiramos a sua infinita sabedoria no sistema de criação,
a sua providência no andamento regular da natureza; pela
geometria domamos a fúria do oceano, dirigimos a força
dos euros, penetramos os abismos, e subimos aos astros;
ajustamos os impulsos do nosso coração com os ditames
da reta razão; proporcionamos os trabalhos às nossas
51
forças, os remédios às moléstias, as penas aos delitos, os
prêmios às virtudes; pela geometria equilibramos os
movimentos das grandes massas das nações, regularizamos
o valor dos povos e seu entusiasmo”.(18)
Então, se percebe a busca da causalidade que
governa os fenômenos, com arrimo num “modelo” que,
se incita à pesquisa, simplifica a variedade e a riqueza
do concreto.
Com isso, Caneca adota, ao longo de sua obra, um
racionalismo que, pelo espírito crítico que engendra,
paradoxalmente, como se verá, muito o ajudará a
assumir posições realistas, às vezes até proféticas, e a
desenvolver análises precisas do momento histórico, da
conjuntura em que viveu e destacadamente atuou.
Como Iluminista, acolheu com entusiasmo o
humanismo clássico. Com regularidade, na introdução, e
às vezes no próprio corpo dos seus escritos, recorre a
autores greco-latinos, neles também firmando arra-
zoados ou confirmando teses.
Cícero, entre outros, cita-o freqüentemente, ape-
lando para o argumento da autoridade.
Em “Dissertação sobre o que se deve entender por
Pátria do Cidadão”, o filósofo e orador romano é citado
como precioso reforço da conceituação de pátria.
Jurista também, Cícero oferece uma notável ela-
boração do direito natural, que iria apoiar as teses
políticas do Iluminismo, do Liberalismo.
Em Rousseau, que tanto influenciou Caneca, mui-
to evidente o constante apelo à Antigüidade clássica. A
ponto de fazer dos seus grandes homens, da civilização
52
que construíram, dogmas inabaláveis, modelos de per -
feição humana, de organização política, entre tantas
coisas.
Na introdução de trabalho sobre o tema, Denise
Leduc-Fayette discorre:
“Ainsi voudrions-nous indiquer en quoi l’appel de
l’Antiquité chez Rousseau témoigne, sous une forme
certes traditionnelle, d’une certain idéal à la fois
politique, moral, pédagogique et esthétique, et qui est
l’essence même de sa vision philosophique du monde”.(19)
E observe-se que no exemplo trazido a lume, o
respeitante à pátria, Rousseau se demora com especial
agrado, externando acendrada admiração por Catão, e
tomando-o como um dos seus modelos preferidos.(20)
Catão, como Cícero, são estóicos. E se sabe quão
preponderante a influência do Estoicismo na formulação
do Jusnaturalismo moderno, do racionalismo político do
século XVII, continuando no século seguinte.
Então, a teoria do direito natural deixa o domínio
puro da ética e se incorpora à prática política.(21)
Nessa fonte jusnaturalista também se abebera
Caneca, ao manifestar as suas idéias políticas.
Aliás, aí se encontra o cerne da fundamentação
política do mártir pernambucano. Pois é a lei natural que
vai assegurar aos cidadãos o direito à liberdade, à
propriedade, à igualdade, enfim aos direitos civis e
políticos e naturais.
Direitos e deveres têm o respaldo primeiro nessa
lei natural.
53
O pacto social arrima-se nela.
As constituições políticas devem, pois, resguardar
o que por ela são autorizadas, conformarem-se ao que
diz.
Sendo elas o instrumento daquele pacto, quando
malferem os direitos humanos, a segurança individual
ou coletiva, determinam a sua dissolução e franqueiam
as rebeliões. Ou no caso em que os governantes os torna
inoperantes, vazios.
A doutrina do direito natural de Pufendorf é a
preferida por Caneca.
Trata-se de m autor do século XVII cuja filosofia
do Direito teria muita repercussão, legando uma
concepção muito original do direito natural.
Ele infunde no direito uma qualificação
essencialmente ética.
A ação jurídica é uma ação moral.
Ela se distingue da ação natural, por vir carregada
da responsabilidade do autor.
Contudo, a ação natural já traz em si as
exigências irrenunciáveis da natureza humana.
Se, na sua obra política e ética, Pufendorf situa
em lugares diferentes a natureza humana e o direito,
contudo parte dessa natureza humana para chegar a esse,
ao âmbito das leis, do ordenamento jurídico.(22)
O carmelita pernambucano assume a mesma
postura.
Assim, ao denunciar a ilegalidade, a anti-
juridicidade da medida de dissolução da Assembléia
Nacional por Pedro I, ele de imediato estabelece a
54
conexão entre os ditames da natureza humana e a
inconstitucionalidade ou ilegalidade do ato imperial. E
daí vindo em cadeia todas as conseqüências da opressão
assim estabelecida: dissolução dos laços que prendiam
as Províncias entre si, da integridade do Império, direito
à insurreição.(23)
Não observou o Imperador a ordem estabelecida
pela sociedade civil, empenhada no cumprimento do
bem geral, ao romper os vínculos político-jurídicos que
disciplinam a convivência, as atividades que visam à
realização dos homens.
Ocorreu uma série de causas determinantes da
atitude
“que determinou aos primeiros pais de famílias a
renunciarem a independência do estado natural, e irem
formar as sociedades civis; estabelecidas estas, não se
dirigem a outro fim, que o bem da espécie humana, sua
existência cômoda e feliz, o aumento e perfeição de suas
faculdades físicas e morais”.(24)
Caneca transpõe para o Brasil, com as
circunstâncias que lhe são peculiares, essa colocação
central da doutrina do Contrato Social.
O povo brasileiro, ao se tornar independente,
resolveu organizar-se em Império sob um contrato que
deveria manter-se incólume nas suas cláusulas.
Aí se configuravam as boas relações entre go-
vernantes e governados, todos empenhados na pre-
servação do sistema constitucional, que encerrava as
normas básicas do dito contrato.
55
Mais: a integridade do Império, a independência
do país, a segurança individual, a imunidade da casa do
cidadão, integravam as cláusulas em objeto, às quais os
governantes não deveriam violentar.(25)
Isso explica a gravidade do ato dissolutório per -
petrado por Pedro I.
Ele atinge o próprio núcleo do pacto social.
Anote-se, na doutrina do contrato social, a
primazia atribuída à sociedade global sobre o Estado. E
de uma forma tal que ela se arroga direitos absolutos
face à organização política.
O princípio de que a soberania reside na nação
estendia-se no revolucionarismo adotado pelos enci-
clopedistas, com o beneplácito de Caneca, ao direito de
insurreição, no caso de seu descumprimento.
A arbitrariedade, o despotismo da autoridade, in-
vertendo a proposição. criava automaticamente esse
direito.
O carmelita, discípulo ardente do federalismo,
fazia residir a soberania no povo distribuído em
Províncias.
Quer dizer: ele inseria o sistema dentro da rea-
lidade brasileira, onde a vida local, dada a circunstância
do período, exercia domínio incontrastável.
Ele fazia suas as palavras do Deputado Antônio
Carlos de Andrade, as quais transcreve na íntegra,
proclamando que o Federalismo se coadunava à ma-
ravilha ao condicionamento sócio-econômico e cultural
do país:
56
“...E que o Brasil podia esperar, e tal, vez só devia adotar
um governo federal, pouco mais ou menos como o dos
Estados Unidos da América; por ser uma nação assaz
nova; por não ter propriamente classes; porque a sua
nobreza não passa de uma pueril vaidade de indivíduos
que não formam corpo; porque o seu clero é de nenhuma
monta, pela falta de riquezas e luzes; e muito
principalmente atendendo-se a que o Brasil não faz
propriamente uma nação, mas quase tantas quantas as
províncias, distintas em caráter peculiar, e sempre
inimigas e rivais”.(26)
Era justamente essa tese que vai dar grande
reforço ao revolucionarismo do frade, concitando as
Províncias, como entidades políticas independentes,
após o ato dissolutório, a estabelecerem um novo pacto
social, sob uma confederação.
E o movimento confederativo de 1824 é o
resultado direto dessa posição doutrinária.
Influência decisiva sobre a teoria constituciona l
de Caneca proporcionou-a Montesquieu.
Esse publicista francês, provavelmente, possi-
bilita um toque de moderação ao carmelita que, an-
teriormente ao ato dissolutório, e a partir do momento
da Independência, se cingira mais claramente aos cri-
térios const itucionais, ao modelo político, concebidos
pelo filósofo da Restauração.
Assim, defendia um sistema constitucional que
operasse sob o mecanismo da separação dos poderes,
impondo limitações e contra-pesos à ação de cada um
deles, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
57
Tal a exigência do pleno exercício das garantias e
dos direitos humanos, indispensáveis ao livre desem-
penho dos indivíduos como proprietários, nas suas
atividades sociais em geral, como seres capazes de
elegerem o que lhes convém.
A aqui, mais uma vez, se mostra a capacidade que
tinha Caneca de adaptar a doutrina à nossa realidade.
E também nisso vai a faculdade de conciliação,
que não lhe faltava. Conciliação essa que já estava
presente na obra de Montesquieu, ao harmonizar os
interesses do antigo com os do novo regime, produto
típico da Restauração.
Assim, preconiza ele um Império constitucional
para o Brasil.
Escreve:
“Império constitucional?
Colocado entre a monarquia e o governo democrático,
reúne em si as vantagens de uma e de outra forma, e
repulsa para longe os males de ambas. Agrilhoa o
despotismo, e estanca os furores do povo indiscreto e
volúvel”.(27)
Essa linha de moderação se faz constante,
malgrado as teses avançadas do Iluminismo e do Fe-
deralismo americano, nas atitudes e no comportamento
de Caneca, enquanto Pedro I se vinha mantendo fiel ao
modelo constitucional implantado com a Independência.
Até então, ele aceita sem discussão, peremp-
toriamente, a monarquia constitucional.
58
Ainda de acordo com a doutrina de Montesquieu,
que sugere a adaptação das formas de governo às
condições próprias dos países, vê na monarquia cons -
titucional a que mais nos convém.
Ela não oferece os perigos do arbítrio go-
vernamental, do despotismo, porque o poder soberano,
como um doto indivisível, se encontra na nação, e é
exercitado por delegação pela Assembléia Nacional.
O Imperador é apenas o chefe do Poder Exe-
cutivo.(28)
Ele tem as suas atribuições específicas, segundo o
esquema da divisão de poderes, não devendo exorbitá-
las. A tanto lhe veda a Constituição.
A democracia, nesse momento, não merece o
favoritismo do frade, sistema político tido como radical
pela elite dominante.
E o seu elitismo, comprovado por palavras às
vezes cáusticas com que tratava “a parte mais íntima do
povo”, denuncia uma concepção do mundo burguesa.
Tanto quanto, na Revolução Francesa, Robespierre se
referia à “canaille”. Se bem que noutros textos expenda
julgamentos favoráveis à gente humilde, ao povo. A
verdade é que mantém a clássica distinção “clero,
nobreza e povo”, naturalmente sem a mesma semântica,
mas com o resquício de uma hierarquia social, mais
tarde extinta.(29)
E a monarquia constitucional, entre nós, como em
outros países, como todo regime representativo, ca -
racterizou-se também pelo elitismo do corpo eleitora l,
dando como efeito natural o elitismo da representação.
59
Após o ato dissolutório da Assembléia Nacional,
Caneca evolui de posição, até assumir o radicalismo que
vai perfazer o seu liberalismo.
Diz ele então:
“Esperávamos ser mais moderados, com o Império
Constitucional, porém o Imperador iludiu-nos. Não
aceitamos ferros”.(30)
Como mais tarde se explicitará, o carmelita man-
tém convicções em perfeita sintonia com as circuns-
tâncias, sem desmenti-la jamais. O que constitui uma
grandeza de sua personalidade.
A persistir o absolutismo do Imperador, “a
tendência do Brasil é para o governo democrático; a
qual seria sopitada, se em câmbio se lhe desse o regime
constitucional representativo”.(31)
E descreve as vantagens da democracia, ainda que
sob o enfoque do elitismo.
Ela está sob a égide da virtude e da justiça
distributiva. Conserva as distinções naturais de classe,
“distinções nascidas da indústria e propriedade”. Todos
são iguais perante a lei.(32)
Aí se destaca a influência de Locke, cujo modelo
político a serviço de uma burguesia que assumia o
poder. Esse, aliás, um filósofo que pesa na formação
doutrinária de Caneca.
Além do que fala a respeito da propriedade,
outros pontos da obra do pensador inglês podem ser
aflorados, demonstrando aquela influência.
60
Tais as noções de contrato social, da supremacia
do Poder Legislativo, da tirania, da visualização do
Estado como órgão assegurador dos direitos individuais.
Locke, aliás, deixaria um modelo de organização
política, que seria mais tarde desenvolvido por
Montesquieu, principalmente na parte da divisão dos
poderes.
Relevante também a sua influência sobre Rous-
seau, com notoriedade na teoria do contrato social;
E a ponto de Giorgio Del Vecchio afirmar ser ele
“el mayor precursor de Rousseau”.(33)
Desse pensador francês, Caneca receberia o in-
fluxo do igualitarismo, porém despido do radicalismo
que se opunha à propriedade, e ficando vinculado ao
contexto jurídico.
Uma das características da doutrina caneciana é
mesmo o legalismo, em decorrência do culto à lei, às
fórmulas legais, em que se amarrava o liberalismo.
Entretanto, importante sublinhar que a atitude
ética, a todo momento irrompendo no frade pernam-
bucano, no típico embasamento de uma radicalidade,
colheria muito de Rousseau, cuja sede de justiça
atravessa dominantemente toda a sua obra.
Nele, o ordenamento jurídico se subordina aos di-
reitos naturais centrados na liberdade individual, inalie -
nável, dando-lhes melhor viabilidade. E na igualdade.
Não mais se justifica esse ordenamento quando,
em determinada circunstância nacional, viola a vontade
geral, o fundamento de sua existência, impondo-se a sua
substituição.
61
A lei é o instrumento da realização humana.
Confirma o aparelho coordenador das atividades ten-
dentes a preencher gradativamente o fosso existente en-
tre o ser e o dever ser.(34)
A grande prioridade da época consiste na
construção desse aparelho. Para tanto, mister se fazia a
luta sistemática contra o despotismo, contra o
absolutismo, o obstáculo maior no aparecimento do
novo modelo político.
A dimensão ética do pensamento caneciano
alcançaria, porém, outros domínios, que não o mera-
mente político.
Na verdade, a racionalização da fé, uma con-
sideração mais humana dos problemas religiosos, a
inserção dessa fé no plano secular, se fizeram aí
possível graças à emergente antropologia que reorientou
a ética.
Conforme explica Maria do Carmo Tavares de
Miranda, a moral com Adam Smith se desvincula da
Revelação. Torna-se moral natural.
A grande importância desse passo merece registro
especial:
“É do realce dado à importância da natureza humana,
compreendida empiricamente, que com Adam Smith a
moral se torna independente da revelação e é moral
natural. A natureza humana constatada como um “dado”, e
não como valor, permitirá que a filosofia deposite toda
sua fé na Razão Humana, capaz de iluminar a noite de
ignorância e da superstição, imposta, segundo se
acreditava, pela tradição e pela autoridade”.(35)
62
Essa formulação refluiria sobre o pensamento
teológico, fundando correntes do mais lídimo li-
beralismo.
No que diz respeito mais diretamente a nós,
observe-se que o Seminário de Olinda, estruturado com
base na reforma pombalina, e no qual se formou o frade
carmelita, compõe o estuário de idéias libertárias que
começaram a germinar com a Reforma Protestante.
No eixo dessas idéias está a libertação do projeto
de plena autonomia do Estado, frente ao confessiona-
lismo que pervadia as suas prerrogativas.
Daí a necessidade de se elaborar uma ideologia
religiosa a justificar os objetivos e interesses do Estado
moderno.
O jansenismo a consulstancia.
Como em outros países, Portugal, pela mão de
Pombal, o acolhe, inspirando, além de outras coisas,
dentro da reforma da universidade lusa, a reformulação
dos estudos teológicos. Aí reside o que há de mais
avançado na dita reforma.
Pois ela supera mesmo o experimentalismo que se
acha no seu cerne e absorve o aspecto humano e
libertário.
É que, “através do canal teológico, passou para a
Península Ibérica, o dado fundamental da consciência
pessoal engrandecida, valorizada, em cont raposição à
autoridade incontestada”.(36)
Assim, não se pode compreender no seu todo o
pensamento caneciano sem se ir até a concepção religio-
sa que forma uma das grandes colunas que o sustenta.
63
Naturalmente, tal concepção levaria à mais rápida
assimilação dos ideais éticas, de uma antropologia, que
o tornaria propenso não apenas à aceitação desses
ideais, mas a um profundo engajamento em tarefas em
prol da justiça, da liberdade, da igualdade.
Quem sabe se o carmelita não redescobria as
verdades cristãs num Rousseau, no humanismo
iluminista!
Os escritos teológicos, integrados nos seus
sermões e dissertações mais relacionados com a vida
eclesiástica em Pernambuco, não podem ser separados
dos escritos políticos, na explicitação do liberalismo
radical que propagou.
Tomado pelo zelo iluminista de unir a teoria à
praxis, prega uma fé engajada, uma vida espiritual que
eleve e penetre o estado de cada pessoa.
Assim, não aceita o devocionismo, a prática
meramente ritual, e dominante entre os católicos, que,
no fundo, funciona como tranqüilizante da má
consciência.
Escreve: “Orará em tempo oportuno, e alcançará de Deus os
favores, que intenta, o ministro que nas horas em que deve
despachar e fazer justiça às partes, as deixa ficar nas
escadas dos tribunais, para se ir entregar à uma fervorosa
oração?
Orará em tempo oportuno, e será bem atendido o general,
que devendo defender a pátria, repulsar o injusto inimigo,
recolhido nos templos, elevado em êxtases, deixa ao
relento a vida de seus compatriotas, a sua propriedade, a
liberdade da nação?”(37)
64
Do mesmo modo, como se viu nesse capítulo,
desfere pesada acusação ao Cabido de Olinda por se
manter indiferente nos graves momentos de convulsão
social de Pernambuco, fugindo ao compromisso.
Pelo trecho ora transcrito, nota-se perfeitamente
que o Liberalismo imanente ao sistema constitucional
adotado com a fundação do Império, revestia -se de
valores éticos e superiores, que o fazia indissociável do
Cristianismo.
Nos dois momentos de suas reflexões, o da
conciliação e o da radicalidade, permanece intacta tal
associação, que, provavelmente, busca compensar um
divisionismo cartesiano.
Apenas, ao passar de um para outro momento,
torna mais acerba e aprofundada a crítica.
Anote-se que Caneca, colocando a soberania no
povo e não na autoridade, esta um mero delegado
daquele, reforçava o “vox populi vox Dei”.
O povo era então o ungido de Deus. A ele
cumpria realizar a Providência no âmbito nacional,
modelando e executando o destino do Brasil.
Essa concepção estava, alias, na raiz da doutrina
da soberania do Iluminismo, do Liberalismo.
Daí para a justificação da revolução contra o
despotismo da autoridade vai um passo.
Duas atitudes do frade carmelita esclarecem tal
colocação. Elas são caracteristicamente revolucionárias,
indicando o dever de resistência ao despotismo, e até as
últimas conseqüências.
65
Numa, ele se levanta contra o arbítrio ministerial,
negando-lhe autoridade moral para arrecadar tributos da
Províncias, desfalcando-as gravemente de suas riquezas.
Apoiando-se em Mauri e Raynal, diz que o
imposto é produto do despotismo e limita a propriedade
e a liberdade.(38)
Está-se então no auge do radicalismo confede-
rativo em Pernambuco e a circunstancialidade notória do
pensamento caneciano clarifica a mudança de matiz
doutrinário.
Lemos Brito a propósito opina:
“Não se pode analisar uma teoria sem indagar do momento
histórico em que ela se objetiva. A situação de
Pernambuco entre 1817 explica de sobejo o radicalismo
federalista de Frei Caneca...”(39)
A outra atitude se configura na alusão que faz aos
hebreus “na livraria do cativeiro dos Madianitas”, ao
descrever uma das escaramuças finais da Confederação
do Equador.
Embora o faça de passagem, somente querendo
realçar “o valor e a disciplina” como fatores de vitória
de um exército, deixa aí subtendido o papel do conflito
em conjunturas graves como instrumento de afirmação
soberana de um povo, e como mandatário de Deus.(40)
A Conjuntura Pernambucana: Antecedentes
Importante ressaltar os eventos que modelam a
conjuntura pernambucana, e antecedendo imediatamente
66
ao movimento confederativo, para um melhor enten-
dimento do estado de coisas na heróica Província.
Pois aí se arma o ambiente propício à mani-
festação do Liberalismo radical.
Em Pernambuco, como no restante do país, vivia -
se sob a tutela de um governo despótico.
Tinha ascendência o absolutismo, não obstante a
abertura trazida pela presença de D. João VI no Brasil.
Eis o depoimento do historiador da Revolução de
1817:
“A monarquia portuguesa havia degenerado de sua
primitiva forma: o poder de fazer as leis, e de as executar,
residia ali na mesma pessoa, e por conseqüência nenhuma
segurança restava ao corpo social; a lei era a vontade do
Soberano; doutrina, que ensinava-se nas escolas, e que os
fatos comprovarão. Os Capitães Generais, Governadores
das Capitanias do Brasil, representantes do Supremo
Imperante, não reconhecido limites na sua
autoridade...”.(41)
Em que pese a moderação dos dirigentes
pernambucanos, Caetano Pinto de Miranda Montenegro,
governador, à frente, sentia-se que o próprio sistema
absolutista, com fundas tradições, por si só criava uma
aura de férreo autoritarismo na Província para o que
tudo concorria.
Tome-se primeiramente a atividade econômica.
Grassava acentuada insatisfação no seio das clas -
ses mais representativas com o regime fiscal, que era
deveras opressivo.
67
A agricultura, longe de incentivada, sofria atroz-
mente os rigores dos tributos. Pode-se dizer essa a
atividade econômica mais sobrecarregada.
Ao dízimo, cobrado pelo governo português,
onerosíssimo, se reuniam outros gravamos, que incidiam
sobre a produção, sem ponderar o elevado custo da mão -
de-obra.
A décima constituía-se algo também odioso, sem
atenção à proporcionalidade que lhe deve ser inerente,
recaindo indistintamente sobre os proprietários rico s e
os de poucas posses na área urbana.
E tais impostos, nem sequer uma pare destinada a
melhoramentos públicos, canalizados para a Corte.
Pesavam também os graves defeitos da orga-
nização militar, onde perduravam conflitos entre por -
tugueses e brasileiros.
Some-se toda uma série de vícios inerentes à
desfuncionalidade social, que impedia a diversificação
racional de atividades públicas e privadas.
A indisciplina era, portanto, uma constante,
gerando focos de rebeldia e de insubordinação.
A Igreja ressentia-se da pouca ou quase nenhuma
qualificação intelectual e moral de muitos dos párocos,
que cometiam toda sorte de desatinos, e prevalecendo -se
da situação de elite privilegiada que desfrutava.
Com isso, tinham prejuízos o ensino religioso e o
culto.(42)
Vem ainda o que, por sua vez, alimentava e
produzia um crescendo de descontentamento entre as
classes – o despotismo das autoridades.
68
A rivalidade com os portugueses crescia de ano
para ano. E eles não cediam um só milímetro na intran-
sigência de senhores absolutos, inclusive olhando os
brasileiros como seres inferiores.
O ministério português, segundo Muniz Tavares,
nutria e mantinha a discórdia, julgando ser de boa
política, como fortalecendo o domínio sobre a Colônia.
Não só em Pernambuco a situação assim se
configurava.
Também em Minas, São Paulo e outras
Províncias, o descontentamento avultava, as queixas se
multiplicavam.
Naquelas duas já tinham sido violentamente
reprimidos levantes.
Nesse contexto, entra a sublevação de 1710, em
Pernambuco, quando Olinda, núcleo de forte con-
centração da população nativa, se insurge contra a
discriminação que sofria do governador, em tudo o por
tudo favorecendo Recife, onde se reuniam os interesses
mercantis dos portugueses.
Os moradores de Olinda radicalizam o seu
inconformismo e vão à luta armada, tomando posição
contrária à ereção de Recife como vila.
A partir daí recrudesce o ódio dos brasileiros aos
portugueses, que monopolizavam os melhores postos, as
melhores posições, e detinham o controle do comércio.
Essa situação desperta o sentido de inde-
pendência, a imagem de uma organização política onde
os brasileiros não sofressem tais vexames e en-
contrassem condições de prosperidade, de proteção e de
69
amparo à propriedade, com o encaminhamento natural
dos seus negócios, sem a opressão de um governo
infenso aos interesses nacionais.
Daí a simpatia com que se cerca o modelo de
regime republicano dos Estados Unidos.
Não havia ainda, entre nós, a consciência de uma
organização política em conformidade com as ca -
racterísticas do país.
Perfilhavam-se modelos estrangeiros, como se
fosse possível aplicá-los sem dificuldades.
De qualquer modo, isso denunciava a consciência
da necessidade de mudança, embora se desconhecendo
os métodos políticos mais eficazes de realizar o grande
projeto. Sobressai aqui o trabalho de doutrinação real-
mente importante da Maçonaria.
Muniz Tavares dá conta da existência, em 1816,
de quatro lojas, “sob a direção de uma Grande Loja
Provincial”, as quais, num trabalho conspiratório de
profundidade, decisivamente influiria no abalo da velha
ordem absolutista, inclusive levando a insurreição a
corporações militares, onde se acentuava fundamente o
confronto entre o elemento português e o per-
nambucano.(43)
Aliás, cada vez mais, aumentava o fosso entre
pessoas das duas nacionalidades, trazendo constantes
inquietações à Coroa, ao governo provincial, depois de
um período de tolerância.
O ambiente era de franca preparação à Revolução
de 1817.
70
Oliveira Lima oferece um relato mais abrangente
e circunstanciado da conjuntura pernambucana, numa
rica perspectiva histórica.
Interessante acompanhá-lo a partir da criação do
Seminário de Olinda.
Enfatiza o trabalho desse Instituto, a despeito do
seu nível secundário.
Fiel à reforma de Pombal, ele se imbui das novas
doutrinas, notadamente as cartesianas, propagadas pelos
Oratorianos em Portugal.
Sublinha o fato de a abertura não passar de
certos limites, não absorvendo as idéias revolucionárias
francesas e outras em voga.
Tinha um dominante desempenho a instituição da
Mesa Censória, “doseando a divulgação científica, e
correspondente à execução da sua política de
absolutismo...”.(44)
O econômico era o aspecto privilegiado da
administração pombalina, pautando o que se poderia
denominar uma linha de empirismo pragmático.
Nisso absorvia a preocupação maior do século.
E ela se relacionava com o social, ou com uma
teoria social, que estava na base do pensamento de
filósofos, na doutrina dos economistas.
Notabilizava-se por se voltar, entre outras coisas,
para a situação das camadas mais pobres da sociedade,
num esforço para melhorar a sua condição.
Propostas nesse sentido foram formuladas. Tais
como a divisão da propriedade, diminuindo os efeitos
71
nocivos do latifúndio, principalmente o do tempo, mais
improdutivo do que o de hoje.
Na dimensão da política pragmática e despótica
de Pombal, aquelas propostas não iam ao ponto de
suscitar o nivelamento das classes. Pois, mais que
ninguém, era o grande estadista um nobre, um elit ista,
não suportando as idéias rousseaunianas, libertárias, e
as de um socialismo que daí decorriam em França.
A verdade é que o empirismo pragmático não se
excedia no tocante a essas manifestações igualitárias.
Por falta mesmo de uma filosofia que o fundasse.
Diz Oliveira Lima:
“Pombal compreendeu a economia num sentid o muito
menos revolucionário do que aquele por que a entendiam
os Enciclopedistas: antes como um meio mais de servir a
monarquia absoluta”.(45)
No entanto, a sua política procurou melhorar a
sorte do comércio e da indústria, no afã de liberar
Portugal da tutela inglesa.
O sistema de monopólios que introduziu no país,
seguindo as diretrizes do Mercantilismo e prestigiando
ao máximo o controle do Estado sobre as atividades
mercantis, deu nova orientação às atividades
econômicas.
As companhias de Comércio que instituiu tiveram
um papel saliente na prática monopolista.
Inaugurava o protecionismo estatal no tocante à
indústria e ao comércio. O que, de certo, tendo em
mente a pouca dinâmica dos negócios, da economia
72
portuguesa, não deixava de representar um considerável
estímulo a certas atividades que permaneciam esta-
cionárias, especialmente a agricultura. Esta, até então,
comungava com uma mentalidade atrasada, rotineira,
pouco ou nada afeita à economia industrial em plena
expansão na Europa transpirenaica. Faltava mão-de-obra
qualificada.
Os produtos manufaturados não apresentavam a
necessária perfeição. Registrem-se, dentro daquela
mentalidade, os preconceitos notadamente correntes no
seio da aristocracia rural contra o trabalho manual,
contra a atividade comercial, como bem dissecou
Oliveira Viana em Introdução à História Social da
Economia Pré-Capitalista no Brasil.
Na efetivação do objetivo de recuperação
econômica de Portugal, e das Colônias, encontra-se a
fundação da “Companhia de Comércio de Pernambuco e
Paraíba”.
Ela nasce de uma associação de comerciantes de
Lisboa, do Porto e do Recife. Os seus estatutos são
aprovados em 1759. Mantinha todo o monopólio do
comércio interior praticado entre vilas. Ela tem um
desenvolvimento e um desfecho diferentes dos da
Companhia do Grão Pará e Maranhão. Esta, fundada
quatro anos antes, iria proporcionar extraordinário
incentivo ao desenvolvimento do Norte. Possibilitou o
progresso da agricultura, com a diversificação dos
produtos de exportação. Já a Companhia de Pernambuco
e Paraíba, por funcionar em outro meio muito mais
populoso, adiantado, alcançou resultado negativo.
73
Primou pela opressão e pelo excesso de regula -
mentações. Por outro lado, dava primazia abusiva aos
comerciantes de maior prestígio. Com o andar do tempo,
“os gastos absorveram as rendas, e os gêneros arrecadados
pelas grandes companhias do comércio, encarecidos pelo
monopólio da venda e pelos direitos fiscais que pesavam
sobre a exportação, viram diminuir o seu consumo e
estagnar-se portanto a sua produção”.(46)
A crise, na verdade, atingia a todos.
Os pequenos comerciantes se viam tolhidos pela
concorrência desigual da privilegiada Companh ia de
Comércio. Assim como a agricultura, na inteira de-
pendência dessa associação, que lhe ditava os preços
dos seus produtos.
Nessas condições, não havia como durar muito a
poderosa Companhia, dissolvendo-se, afinal, em 1813.(47)
Enquanto isso prosperavam na Colônia as idéias
libertárias, as doutrinas mais recentes de cunho liberal-
revolucionário, rompendo todos os embaraços opostos
pela tradição asfixiante e pelas rígidas proibições de
importação e de leitura dos enciclopedistas.
O exemplo da conjuração mineira de 1789 é
bastante elucidativo desse estado de fermentação
ideológica, presente até no interior das Províncias.
Nesse momento, duas vertentes revolucionárias
são atuantes: a da Revolução Francesa e a da Revolução
Americana.
República, Federação, Democracia são fórmulas
políticas divulgadas, sob a égide da liberdade, da
74
autonomia de cada povo no tocante à sua organização
política.
De sorte que, declarada a Independência polít ica
do Brasil, já se tinha uma certa tradição liberal nas
Províncias, notadamente naquelas que constituem focos
de irradiação econômica e política, como Pernambuco e
Rio de Janeiro.
Mas longe estava o país de apresentar uma
razoável educação política. Tão forte o obscurantismo e
os bloqueios opostos pelo período colonial, de longa
duração.
Não era de imediato, com a Independência que
iria obtê-la.
Ele próprio, com frágil estrutura social,
submetido a práticas políticas de países adiantados, vê-
se sacudido por revoltas, quando se torna incomparável
com o progresso econômico o regime absolutista.
A separação de Portugal nos traria grandes
tarefas, como a da organização de um Estado liberal.
Tarefas, na verdade, demasiado pesadas para um país
que estava longe de acompanhar a experiência liberal
dos europeus e dos americanos.
Subsiste forte tradição autoritária herdada dos
governos despóticos da Colônia. E não eram só os
governos que exerciam o despotismo.
Também os proprietários nos seus vastos do-
mínios, os clérigos, especialmente vigários colados, os
bispos, os agentes fiscais, os comandantes militares.
Era uma elite que se habituara ao mando
exclusivo e autoritário, dado o atraso das populações.
75
Freqüentes as lutas de famílias, na crista de
desavenças entre grandes proprietários rurais que
cumpriam o regime patrimonialista, patriarcalista nos
sertões. Eles prolongavam a dependência externa no
interior, de modo mais acentuado. Pois constituíam os
domínios rurais o centro da vida econômico-social e
política do país, até a República.
A desfuncionalidade social conduzia à plena
indiferenciação de papéis, com a concentração
monopolística das iniciativas, das decisões na camada
dos proprietários, e ao unidimensionamento axiológico.
Daí derivava à estagnação quase completa da atividade
renovadora, com a falta de confronto de posições, de
classes definidas por interesses e objetivos conscientes.
Tudo permanecia em torno de uma tradição vazia,
pobre, não projetando valores de mudança.
Apenas nas cidades litorâneas, como Recife,
Salvador e Rio de Janeiro, desenvolvia-se uma vida
mais ativa, mais diferenciada, com fecundo comércio e
contato com o exterior, dele recebendo aquelas idéias
libertárias. Ou as lições de uma economia mais
progressista. E, assim mesmo, sem condições de se
imporem decisivamente diante do meio rural. A pequena
população e a grande concentração de vida nos sertões
explicam-no.
Todo progresso político, sem dúvida o objetivo
prioritário do período, se via tolhido pelo privatismo,
pelo poderio quase incontrastável da organização
privada diante do poder central.
76
Ela reunia poderosos feudos nos longínquos
lugares, quase de todo isolados dos centros urbanos.
Distante estava a integração social, nacional.
As Províncias pareciam isoladas, separadas, como
corpos independentes.
A vida local ou provincial tinha, por isso, de ser
privilegiada e de constituir o centro das atividades
políticas e econômicas da nação. Esse isolacionismo
provincial, especialmente após a Independência, geraria
problemas agudos, quer de ordem econômica, quer de
ordem política. Porque, e disso é exemplo taxativo o
ciclo revolucionário pernambucano, ele tendia fatal-
mente a contrapor anseios autonomistas ao propósito de
centralização política com o Império.
Veja-se, ademais, como esse problema era acres-
cido de outro que o intensificava, ou seja aquele
modelado pelas conseqüências do domínio português no
Pará e no Maranhão até julho de 1823, quando os
antigos colonizadores se vêem constrangidos a se
retirarem para a pátria.
Lembre-se ainda o fato de a Bahia constituir
também um problema, em face da resistência do General
Madeira com as tropas portuguesas, sofrendo bloqueio
prolongado e padecendo a população os rigores da fome.
Nesse quadro, a unidade nacional é tênue. Nele
não há a concorrência funcional de forças políticas e
sociais.
Não há tradição de programação política na-
cional, por falta de doutrinas próprias ou harmonizadas
com as estruturas do país.
77
Assim, a tendência, como de fato se consumou,
era o aparecimento de projetos políticos radicais, es -
teiados no que havia de mais revolucionário em material
de extração estrangeira, para se contrapor a tudo que
dissesse respeito à centralização, a regime unitário,
confundido com despotismo, com autoritarismo.
O clima exaltado do país, as comoções internas
que o assaltavam, a busca de acomodação de suas
estruturas, o que se fazia de modo doloroso e cruento,
engendravam soluções extremadas.
Somente pequena elite partilhava idéias bem
sentadas a respeito do que convinha ao país.
Fala Oliveira Lima do Brasil, logo após a
declaração da Independência, “privado, ao contrário dos
Estados Unidos da América, de uma longa educação
política durante o período colonial, a braços com
divisões intestinas, e atravessando uma época qualifi-
cada pelo amor às soluções extremas”.(48)
A ausência de um movimento coeso e gene-
ralizadamente consciente em torno das implicações
políticas da Independência, tendentes naturalmente à
organização política da nação, fazia com que as
Províncias, principalmente as mais influentes, não
oferecessem sintonia de posições referentemente ao
projeto político a se elaborar.
De logo, a desritmia se manifesta entre o Rio de
Janeiro, sede da Monarquia, e Pernambuco.
Naquela, dominam sentimentos calorosos a favor
do Imperador, visto como o libertador, coberto de uma
aura paternalista.
78
Na última e em outras, grassava viva insatisfação.
Mesmo oposição ao monarca, do qual se dizia estar a
serviço da causa portuguesa, não aliment ando, no fundo,
intenções emancipadoras. Isso significava que a
Independência fazia parte de um jogo político em
proveito da dinastia portuguesa, que, desse modo,
acabaria mantendo o poder nos dois países. Em Per -
nambuco, acentuava-se essa opinião, favorecida pela
expansão das idéias democráticas.
Aliás, tudo aí confluía para o agudo estado de
oposição.
Afora os motivos ou condicionamentos já
aduzidos, e relacionados com o isolamento das Pro-
víncias, com o sobrepujante espírito local, com os
interesses de proprietários e de negociantes firmados no
meio onde desenvolviam os seus misteres, meio esse que
compunha um universo fora do qual não tinham sentido
outros interesses, outras aspirações, algo mais vinha
agravar a situação. E diz respeito à conjuntura política
esboçada com a decisão do Imperador de, fortalecendo a
unidade nacional, dar mais sentido à estruturação do
nascente Império.
A própria consolidação da Independência exigia
essa unificação revigorada. Contudo, a sua efe tivação
iria servir de acicate para o incremento das desordens,
dos conflitos, dos motins, da sublevação geral de
Pernambuco, refletindo-se no restante do Nordeste.
Evidente que, a persistir tendências centrífugas
em algumas Províncias, focaria irremediavelmente
comprometido o esforço pela Independência. O qual
79
somente produtivo com a união de todas elas ao redor
do poder unificador da Monarquia.
Acontece que, em Pernambuco, não era o
momento histórico propício ao projeto de integração
nacional sob a monarquia unitária. O Federalis mo
contava lá com mais adeptos, em virtude de sua
condição de instrumento de valorização das realidades
locais.
Sobre esse quadro conjuntural oferece minucioso
relato Alfredo de Carvalho. Nele enfatiza os motins que,
ao final de fevereiro de 1823, sacudiram Recife.
Escreve o eminente historiador pernambucano:
“Os motins, que alvorotaram esta Capital nos últimos dias
de fevereiro de 1823, oferecem um dos exemplos mais
contristadores da completa desorganização política e da
eminente dissolução social a que t ínhamos chegado”.(49)
Já em 1821 eram intensos a agitação, a
inquietação dos espíritos, a indisciplina militar, o
exaltado faccionismo, compondo o quadro descrito há
pouco.
E anote-se que aí o republicanismo ganhara no-
tável ascendência, numa escalada que começa nos
primórdios da Revolução de 1817.
Os agentes das facções se encarregavam de
manter acesa a paixão política, utilizando a arma do
boato, dos conciliábulos.
É então que entra em cena a política solerte e
secreta dos Andradas, procurando firmar e r eforçar
80
posições na Província em favor da causa nacional sob a
liderança do Príncipe Regente.
Em 1822, mais precisamente em junho, esse
trabalho culminaria na intimação às Cortes Portuguesas
do “reconhecimento formal do príncipe D. Pedro como
regente e chefe do poder executivo no Brasil, e inteira
sujeição às suas ordens”.(50)
Acontece que governava Pernambuco Gervásio
Pires Ferreira, ex-participante da Revolução de 1817, a
quem os sofrimentos atrozes da prisão e o pessimismo
gerado pelo malogro do movimento levaram à timidez e
à indecisão diante dos momentos decisivos.
A isso se junta o não dispor do requisito polít ico
indispensável: a flexibilidade, para se obter a motivação
completa do fracasso do seu governo.
Ele permanecia, realmente, indeciso num instante
que requeria pronta e clara atitude, seguida de provi-
dências imediatas, diante da situação que se esboçava
com a vitória do partido das Cortes Portuguesas.
Afeito a acreditar no seu pessimismo, na im-
possibilidade de êxito duradouro de qualquer movi-
mento liberal, não via como perdurar a conquista das
Cortes, em como ser viável “o advento da completa
autonomia provincial sob um regime de pura democracia
ou o êxito dos manejos do Príncipe Regente”.(51)
Quer dizer: ele tendia a ficar numa posição de
efetiva neutralidade. O que, na verdade, impossível
numa época em que o comprometimento com uma das
causas em confronto era um imperativo. Não se podia
eximir de envolvimento partidário, quando se forçado a
81
assumir ma posição no recesso de uma conjuntura a
reclamar decisões cruciais dos que ocupavam postos da
política ou da administração.
Queria Gervásio manter uma impossível
neutralidade para evitar perturbações sérias em
Pernambuco. Mas o seu intento gerou o contrário, ou
melhor, contribuiu para intensificar a agitação dos
ânimos. Adota a prática da contemporização, eficaz
noutras circunstâncias. O que, com pouco mais, abala a
neutralidade que assumira.
Com a evolução da conjuntura política nacional, e
reconhecido o príncipe D. Pedro como regente do
Brasil, vê-se Gervásio, diante de pressões, obrigado a
fazer cessões, mas sempre mantendo a dubiedade.
Continua pressionado, mormente depois que demons-
trara “certas ressalvas de deferência para com as Cortes
e a união transatlântica, e de precaução contra o
despotismo do ministério do rio, propenso à ditadura
enquanto a Pátria se não desvencilhasse da crise da
independência”.(52)
Resolve então opinar pela realização de um
plebiscito que desse a Pernambuco o direito de eximir -
se de subordinação às Cortes, ficando sob a regência do
príncipe D. Pedro. Desse modo, facilitar-se-iam as
eleições de procuradores ao Conselho de Estado e de
deputados à Assembléia Constituinte, convocada pelo
regente. Essa posição de Gervásio ainda não agrada ao
partido vencedor, que nela vê algo subreptício,
provavelmente a futura união das duas coroas, segundo
presumido acordo entre J. João e o filho. E atribui à
82
proposta o caráter de manobra tendente a contornar a
obediência jurada.
Os ânimos tornam-se cada vez mais agitados.
Tanto entre os partidários da velha ordem, como entre
os nacionalistas, os radicais defensores da causa da
Independência.
Agrava-se o quadro com a interferência do
visconde de Goiana, Bernardo José da Gama, homem
ambicioso e maquiavélico.
Ele acaba por tumultuar as possibilidades de volta
à tranqüilidade na Província e trama a derrubada da
Junta. No que era favorecido pela impopularidade da
mesma. Quer favorecer o capitão Pedro da Silva
Pedroso, ativista exaltado e maçon, que queria levar a
doutrina da liberdade às últimas conseqüências.
E no meio do terror, quando promove o assas-
sinato de inúmeras pessoas importantes, num ímpeto
radical sem precedentes. É preso. Consegue por um
golpe de sorte escapar ao cadafalso. Recolhido ao
cárcere da Bahia, não é incluído entre os anistiados de
1821. Remetido para Portugal “à disposição das Cortes”,
seria mais tarde liberto, voltando para sua terra.(53)
Contando com impressionante popularidade, pela
sua fama de coragem e de benemérito dos homens de
cor, Pedroso iria logo aumentar o seu prestígio. Dá novo
alento à oposição.
Gama e outros o integram no grêmio dos “liberais
puros”, utilizando o imenso prestígio que gozava. São
esses “liberais puros” que tramam e levam a cabo arrua -
ças no Recife, atemorizando a população e preparando
83
terreno para o golpe final. Este é assestado com a
partida do tenente-coronel José de Barros Falcão de
Lacerda, comandante da tropa, à Bahia, onde daria
combate ao exército de Madeira.
A resistência da Junta esmaece. Gervásio conduz
a bom termo os seus planos.
“Neste propósito, a 16 de setembro de 1822, oficiou em
companhia dos seus colegas os eleitores, congregados em
Olinda para escolha dos deputados à Assembléia
Constituinte, pedindo as suas demissões, que aliás já
haviam antes solicitado de D. João VI e do Príncipe
Regente. Recusou-se o colégio eleitoral a satisfazer-lhes o
pedido, receando ultrapassar os limites das atribuições de
que estava investido. Divulgadas estas ocorrências a
sedição rebentou na manhã do dia seguinte, 17 de
setembro, após um último conciliábulo dos chefes do
Quartel de Artilharia”.(54)
Restava-se em plena sedição. Militares e vo-
luntários, companhias formadas por mestiços e negros,
cuja organização já vinha do governo de Gervásio,
reúnem-se no campo do Erário onde Pedroso fala
exortando-os da necessidade de terem outro co-
mandante, assim como outro presidente da Junta.
Em seguida, marcha para o palácio do governo
onde faz, como novo chefe militar, a deposição do
governo da Província.
Realizada a eleição da nova Junta, ela teve
jurisdição até a nomeação do governo legal pelos
eleitores. O que se faria a 23 de setembro. Os membros
da Junta legalmente eleita passam pelo dissabor de
84
serem demitidos ou afastados de suas funções. Entre
eles Bernardo José da Gama e seu tio, José Fernandes
Gama.
Não havia entendimento unânime entre os
membros da Junta. É o Morgado do Cabo a nova
personalidade que emerge afirmativamente na vida
pernambucana.
Grande proprietário, o maior, muito rico, exer-
cendo larga influência sobre a população rural, alcançou
um prestígio político acentuado em razão de sua fortuna,
de suas ligações com D. Pedro, de quem compartilha o
autoritarismo. É decisiva a sua participação na vitória
do partido imperial.(55)
Já Paula Gomes, outro membro influente da
Junta, tinha outras disposições e teses. Os dois eram os
de maior poder decisório e ascendência no órgão.
Ele atuara na Revolução de 17, chegando a
presidir a Junta rebelde de 1821. Culto, inteligente,
persistente, ardiloso, porém a ambição fê-lo colocar a
causa que defendia em posição secundária, face aos
interesses subalternos e pessoais.
Contava com um grande trunfo: a ascendência
sobre Pedroso, a quem muito se ligara. E o governador
d’armas representava uma força considerável no equi-
líbrio político, nas decisões da Junta.
Paula Gomes, nessas condições, passou a exercer
um papel ativíssimo de conspirador, de agitador.
Os dois, o Morgado do Cabo e ele detinham o
controle da Junta, embora houvesse tendência dos
demais membros de seguirem o Morgado. Contudo,
85
perdurava unânime acordo em torno da “causa
fluminense”.
A esta altura, os republicanos estavam num
segundo plano, não tendo oportunidade de se imporem
como tal.
Constituía uma pecha terrível lançada contra uma
pessoa o chamá-la de republicana.
Ao adversário se dirigia o epíteto com facilidade,
para desgastá-lo vantajosamente.
Não obstante, os ideais republicanos de 17 con-
tinuavam a inflamar muitas pessoas, que os dissi-
mulavam. E, até certo ponto, a doutrina democrática
interferia nos eventos da época. Apenas não havia
condições de livre manifestação, como mais tarde, em
1824. A verdade é que a causa democrática se
manifestou de parceria com a autoridade constituída,
respaldando-a nas crises, nos momentos de perigo.(56)
Confirmando a imaturidade da organização social,
vem agora a crise da autoridade se tornar mais
pronunciada, quando aquelas vozes dominantes na Junta
começavam a discordar. A coisa chega a um ponto de
não querer o Comandante d’armas subordinar -se ao
governo civil. Esse conflito, aliás, surgira primei-
ramente na gestão de Gervásio, quando prevalecera a
supremacia do segundo, mui sensatamente.
Acontece que as instituições ainda eram muito
frágeis para se imporem. Bastava que surgisse no
círculo da administração uma personalidade forte,
dessas que no tempo pesavam mais que partidos, para
que ocorresse um grande retrocesso. E foi o que real-
86
mente aconteceu ao assumir Pedroso a governadoria
d’armas de Pernambuco. Não aceitou, depois de pouco
tempo de empossado, a tutela da Junta, entrando a
exercer os seus encargos do modo mais arbitrário
possível. A ponto de se situar em franca desobediência,
e indo até ao desacato, às ordens emanadas daquele
órgão. No que muito favoreceu a instigação de Paula
Gomes.
Observe-se a que grau de deterioração chegara a
autoridade. Porquanto pessoas que encarnavam mesmo
essa autoridade tratavam de desprestigiá-la, de fazê-la
inócua, subordinando-a a interesses de potentados ou de
grupos pouco dignos.
Nesse diapasão, o comportamento de Pedroso
assume proporções de desafio, de confronto criminoso
com a ordem constituída, da qual fazia parte,
sublinhando a grande contradição a marcar a admi-
nistração pública, com graves prejuízos para ela.
Desta vez, Alfredo de Carvalho, é enfático:
“Consentindo na licença e na insubordinação dos seus
comandados, começou a praticar toda a sorte de atentados
contra a ordem pública, insultando, prendendo e
ameaçando de fuzilamento a quantos incorriam no seu
desagrado e revelando nestas determinações uma
volubilidade inexplicável; as arruaças e os conflitos
sucediam-se quotidianamente a ninguém se julgava a
coberto das iras do frenético Governador das Armas”.(57)
A prepotência de Pedroso realmente não
encontrava limites. O que se explica também pela
quadra anormal que atravessava a Província. A falt a de
87
segurança era absoluta. A autoridade sem força para
reprimir os abusos. Tudo possível nessa situação.
Assim a configuração sócio-política do Recife,
com o aspecto de cidade das mais importantes do
período, entregue a terríveis agitações.
Nela nasce e toma corpo uma ideologia pan-
fletária que iria constituir importante corrente dentro da
doutrina liberal.
Nela se desenvolvem os temas do liberalismo
radical. É uma ideologia que reflete a conjuntura
delicada por que passava a sociedade brasileira, com
grandes desafios a enfrentar.
Funda-a entre nós Cipriano Barata. Então se sofre
em Pernambuco a ditadura de Pedroso, cujos desatinos
motivam a sua deposição e prisão.
Ainda em 1823 dá-se o retorno da Junta
Provisória que, mais uma vez não consegue segurar o
poder, renunciando a 13 de dezembro.
Eleito, sobe ao poder Manuel de Carvalho Pais de
Andrade, republicano de 17, responsável pelo resta-
belecimento da ordem no Recife. Próxima estava a
Confederação do Equador.
NOTAS
(1) “Notícia sobre Frei Joaquim do Amor Divino Caneca”. In:
Obras Politicas e Litterarias de Frei Joaquim do Amor Divino
Caneca. Colecionadas pelo Comendador Antônio Joaquim de
Mello. Recife, Typographia Mercantil, 1875, p. 9.
88
(2) “O Caçador atirando à Arara Pernambucana em que se
transformou o Rei dos Ratos José Fernandes Gama”. In: Obras
Politicas e Letterarias, p. 283.
(3) Comendador Antônio Joaquim de Mello, “Notícia
Biográphica”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 9.
(4) O Clero e a Independência. Rio de Janeiro, Centro Dom
Vital, 1923, p. 192.
(5) Obras Politicas e Litterarias, p. 289.
(6) “Sobre a Sociedade Maçonica em Pernambuco”. In: Obras
Politicas e Litterarias, p. 409.
(7) “O Sacerdote”. In: Ensaios Universitários sobre Frei
Joaquim do Amor Divino. Recife, Universidade Federal de
Pernambuco, Editora Universitária, 1975, p. 53 e ss.
8) “O Polemista”. In: Ensaios Universitários de Frei Joaquim
do Amor Divino (Caneca), p. 136.
(9) “Typhs Pernambucano”, 29 de janeiro de 1824. In: Obras
Politicas e Litterarias, p. 452.
(10) “Sobre a Pastoral do Cabido de Olinda de 4 de março de
1823”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 303.
(11) Ibidem, p. 305.
(12) TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de
Pernambuco em 1817. Recife, Imprensa Industrial, 1917, p. 317 -
321.
(13) “Na solenidade da Acclamação de D. Pedro D’Alcantara em
Primeiro Imperador do Brasil”. In: Obras Politicas e Litterarias,
p. 235 e ss.
(14) MELO, Mário. “Frei Caneca”, Revista do Instituto
Archeológico Pernambucano, Vol. XXXI, p. 7 e ss.
89
(15) Filosofia de la Ilustracion. Máxico, Fondo de Cultura
Econômica, 1975, p. 22.
(16) Ibidem, p. 23.
(17) FUETER, Ed. História de la Historiografia Moderna II.
Buenos Aires, Editorial Nova, 1953, p. 12.
(18) “Offerecendo a Continuação da Resposta ao Ex -Redactor do
Regulador Brazileiro”. In: In: Obras Politicas e Litterarias, p.
339-340.
(19) J.J. ROUSSEAU et le Mythe de l’Antiguité. Paris, Vrin,
1974, p. 16.
(20) Ob. cit., p. 60 e ss.
(21) CASSIRER Ernst. O Mito do Estado. Rio, Zahar Editores,
1976, p. 185.
(22) FRIEDRICH C. J. La Filosofia del Derecho. México,
Breviarios del Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 171.
(23) “Typhis Pernambucano”, 10 de junho de 1824.
(24) “Na Solemnidade de Acclamação de D. Pedro D’Alcantara
em Primeiro Imperador do Brazil”. In: Obras Politicas e
Litterarias. p. 243.
(25) “Typhis Pernambucano”, 8 de abril de 1824. In: In: Obras
Politicas e Litterarias, p. 519.
(26) “Sobre o Espírito Anti-Constitucional, Revolucionario e
Anarchico do Regulador Brazileiro”. In: In: Obras Politicas e
Litterarias, p. 335.
(27) “Na Solemnidade de Acclamação de D. Pedro D’Alcantara
em Primeiro Imperador do Brazil”. In: Obras Politicas e
Litterarias. p. 247.
90
(28) “Sobre os Projectos Despoticos do Ministério do Rio de
Janeiro”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 324.
(29) “Typhis Pernambucano”, 15 de anril de 1824. In: In: Obras
Politicas e Litterarias, p. 527.
(30) “Typhis Pernambucano”, 8 de julho de 1824, ibidem, p. 593.
(31) “Typhis Pernambucano”, 27 de maio de 1824, ibidem, p.
549.
(32) “Sobre a Doutrina Anti-Constitucional e Perigosa do
Conciliador Nacional nº 34”. In: In: Obras Politicas e Litterarias,
p. 368-369.
(33) Filosofia Del Derecho. Bosch, Barcelona, 1947, p. 111.
(34) Ibidem, p. 124.
(35) “O Pensador”. In: Ensaios Universiarios sobre Frei
Caneca”, op. cit., p. 122.
(36) MONTENEGRO, João Alfredo de S. “O Contexto da
Reforma Pombalina da Universidade Portuguesa”. Separata da
Revista Brasileira de Filosofia, Vol. XXVI, p. 333.
(37) “Sobre a Oração”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 231.
(38) BRITO, Lemos. A Gloriosa Sotaina do Primeiro Império.
São Paulo, Cia. Editora Nacional, Brasiliana, 1937, p. 137.
(39) “Sobre os Projectos Despoticos do Ministério do Rio de
Janeiro”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 319.
(40) “Typhis Pernambucano”, 5 de agosto de 1824. In: Obras
Politicas e Litterarias, p. 618.
(41) TAVARES, Francisco Muniz, ob. cit., p. LXXVIII.
(42) TAVARES, Francisco Muniz, ob. cit., p. LXXX-LXXXI.
91
(43) Ibidem, p. LXXXV.
(44) BROCKHAUS, F.A. Pernambuco e o seu desenvolvimento
histórico. Leipzig, 1895. p. 216.
(45) Ibidem, p. 217.
(46) Ibidem, p. 218.
(47) Ibidem, p. 219.
(48) Ibidem, p. 283.
(49) “Os Motins de Fevereiro de 1823”. In: Revista do Instituto
Arqueológico e Geográfico Pernambucano, Vol. X, p. 2.
(50) Ibidem, p. 4.
(51) Ibidem, p. 4.
(52) Ibidem, p. 4.
(53) Ibidem, p. 5.
(54) Ibidem, p. 7.
(55) Ibidem, p. 10.
(56) Ibidem, p. 11.
(57) Ibidem, p. 12.
92
2. A FUNDAÇÃO DO LIBERALISMO
RADICAL NO BRASIL
Perfil biográfico e personalidade de Cipriano Barata
Político e ideólogo de estilo panfletário, repre-
senta Cipriano Barata o momento de fundação do
Liberalismo Radical no Brasil.
É, portanto, o precursor de Frei Caneca.
Não se pode, de sã consciência, entender todo o
quadro das motivações ideológicas e até o desempenho
político do frade carmelita, sem se estudar a vida e as
atividades político-panfletárias do irrequieto jornalista
baiano.
Ademais, há que se destacar o papel cumprido por
Cipriano Barata, com a ideologia que veicula, na quadra
agitada da Independência, para se apreender a natureza,
os condicionamentos e o desenvolvimento do Libe ra-
lismo Radical no país.
É um nome deveras importante na dilucidação da
conjuntura e na formulação das teses defendidas pela
Confederação do Equador.
Aproximadamente dois meses após a demissão de
Pedroso da governadoria de armas, Recife passaria a ter
um novo centro de agitação, desta vez com outra feição.
Trata-se de uma agitação com base ideológica
mais apurada, num corpo doutrinário coerente e distin to,
93
contrapondo-se claramente às outras posturas ideo-
lógicas, também presentes naquele momento histórico.
Nessa nova formulação está a iniciativa criadora
do político em exame, sobre cuja interpretação pesam os
juízos distorcidos dos historiadores da velha escola.
Veja-se em primeiro lugar o que consta na análise
do citado historiador pernambucano, Alfredo de
Carvalho.
Ele, como outros, são profundamente condi-
cionados ideologicamente pelo culto da autoridade, pelo
conservadorismo. A ponto de considerarem um ver-
dadeiro contrasenso a doutrina que realça a liberdade, os
ideais puros do Enciclopedismo, a revolução. Sem com-
preenderem que o próprio período gerava tal doutrina,
quando não a recondicionava entre nós.
Eis que Cipriano Barata é visto por Alfredo de
Carvalho, Câmara Cascudo, seu biógrafo, e outros,
como um “visionário”, um político que alimentava
ideais sem consistência na realidade, um agitador com
intuito simplesmente de agitar, sem mais objetivos.
Ora, uma crítica serena, tanto quanto possível,
imparcial, revela que essa postura não procede.
É que a perspectiva ideológica hoje é outra,
ensejando exegese mais profunda e abrangente do jogo
ideológico em harmonia com os processos sociais
vigentes no período, especialmente em Pernambuco.
Mais: não é o mero êxito político de uma
ideologia, no sentido de sua oficialização, que lhe vai
dar o critério funcional do realismo ou do irrealismo.
No caso de ideologia liberal radical, isso é típico.
94
Porque ela, a partir do momento em que se
propaga, firma-se como uma das matrizes do pen-
samento brasileiro, embora não logre os favores oficiais.
Mas, aqui e acolá, inspira instrumentos e critérios
políticos. A própria Constituição de 1824, contra cujo
projeto levantou-se o liberalismo radical, já começa a
sofrer a sua influência em alguns dispositivos.
O que se dispõe de mais minucioso a respeito dos
fatos que qualifica a vida de Cipriano Barata, é uma
biografia escrita por Luís da Câmara Cascudo, e sob o
enfoque de ideologia conservadora que impede uma
interpretação lúcida e atualizada.
Todavia, informações úteis e esclarecedoras
encontram-se aí.
O autor centraliza a restrição a Cipriano no
considerar o Enciclopedismo e a sua obra – a Revolução
Francesa – produções desumanas ilógicas, demagógicas.
Diz que ele manipula sem sistema, sem direção,
esse acervo. O qual, sob o influxo do nervosismo, da
neurastenia, da irreverência, é apresentado de forma
insolente e descabida.
Por isso, tem Cipriano na conta de um medíocre.
Expõe:
“Ele é um produto típico da ideologia anti -humana e anti-
lógica que em 1789 espalhou pelo mundo. É um adorador
de palavras-guias, escritas com uma maiúscula obstinada.
Liberdade, Povo, Democracia, Tirania, Despotismo são
pontos de referência que ele alinha nos discursos para não
perder o próprio pensamento. É um apaixonado dos
Direitos do Homem, um legítimo Homem-Cívico, cioso
95
das prerrogativas de um liberalismo fremente de utopia e
de nebulosidade”.(58)
Câmara Cascudo, tocado de reacionarismo, dis -
tancia-se do entendimento mais explícito e atual do
mecanismo ideológico e utópico. Porque o importante é
a racionalização das tendências imanentes a um
pensamento, a uma ideologia (que sempre é um sistema)
que organiza os pontos de referência básicos da praxis.
E não o preconcebido julgamento valorativo.
Nasceu Cipriano Barata em 1762 na Bahia e
morreu em 1838 na capital do Rio Grande do Norte,
Natal. Bacharelou-se em Filosofia por Coimbra.
Também logrou aprovação em exames para se
tornar cirurgião.
O legado cultural que acumulou era praticamente
o de um enciclopedista: a cultura clássica, onde o latim
ocupava parte saliente, a história, a retórica e a lógica.
Cascudo afirma que ele tinha mais inteligência do
que memória.
Classifica-o de “democrata sonhador de povos
irmãos, de homens-iguais”.(59)
O que é uma confirmação
da utopia tão presente no que escreve.
Também um nacionalista, aliás uma das
características do liberalismo radical entre nós.
Explica-o em parte os sofrimentos e os vexames
suportados em Lisboa entre dezembro de 1821 e outubro
de 1822, quando deputado às Cortes.
Temperamento trepidante, agitado, do que é
reflexo o seu radicalismo.
96
Afeito às agitações de rua, à verrina panfletária
que as apóia. Homem de luta.
O seu aparecimento em público, começa em 1817,
ao ser molestado pelo Conde d’Arcos, na violenta
repressão ao movimento pernambucano. Contava 59
anos quando eleito para as Cortes Portuguesas.
Para o seu biógrafo, “os acontecimentos escor -
regavam-lhe no espírito como água numa vidraça. Via-
os através dos vidros fabricados anos antes, através do
dorso de livros onde nomes franceses rebrilhavam em
letras de ouro”.(60)
Há aqui evidente exagero, mas algo de ver -
dadeiro. Nisso que enfrentou a conjuntura do seu tempo
com a ideologia do Iluminismo francês, como matriz
dominante do pensamento que alimentou. Mas não
deixou Cipriano de refletir a partir da circunstância
nacional, dos eventos regionais, colhendo inclusive a
problemática social, embora de leve.
E com a interpretação realista dos acontecimentos
políticos, emprestando à sua ideologia maior densidade
e autonomia. Não se restringe a sobre-impor meca-
nicamente à conjuntura, ou tangenciando-a, a doutrina
pré-moldada.
Aliás, ele se orgulha de ser um dos maiores co -
nhecedores de sua época, denotando o cuidado de estar
em dia com o que ocorre de relevante; daí extraindo um
sentido, um significado.
Com efeito, um realista. Estava atento à história,
à prática dos homens. Comentando-a, mesmo sob o
enfoque iluminista, não lhe deixava escapar a dinâmica,
97
o processo, as tendências, os grandes imperat ivos éticos
daí emergentes.
Credite-se a seu favor a honestidade à toda prova,
a elevação moral, o humanismo, que o concitavam a
lances admiráveis de coragem, ao defender a causa dos
oprimidos.
É eleito para as Cortes pela Bahia.
E lá se revela um defensor constante das coisas
do Brasil, das suas riquezas.
Desfrutava de rara independência de atitudes, não
se acomodando a partido algum, cioso de si mesmo, das
prerrogativas morais e intelectuais que possuía.
Orgulhoso, de intrepidez ferina, tipo solitário,
temido, acaba paradoxalmente na tranqüilidade de Na-
tal, esquecido, sem reboliço. Morre aos 75 anos.(61)
Seu nome completo: Cipriano José Barata de
Almeida.
Pais: Tenente Raimundo Nunes Barata e D. Luiza
Josefa Xavier.
Lugar e data do nascimento: Salvador, 26 de
setembro de 1762.
De família pobre, freqüentou as “aulas-maiores” e
o pai consegue enviá-lo para Portugal onde se diploma.
De regresso à Bahia, pratica a pequena agri-
cultura ao mesmo tempo que clinicava.
Há quem diga que reuniu alunos de Francês e
Latim.
Em Coimbra entra em contato com a doutrina
enciclopedista, da qual, ao retornar, se faz leitor
assíduo.
98
E já tem participação na Revolução baiana de
1798, porém sem realce.
Num documento se dá parte dessa participação.
Trata-se da denúncia contra ele formulada pelo
Padre José da Fonseca Neves e encaminhada à D. Maria
I. E na qual diz que propagava com outros sistemas
diferentes do vigente e, assim, ofendendo a dignidade da
rainha e a de “Jesus Cristo e a sua esposa e nossa mãe a
Santa Igreja”. Como? Publicando “as suas depravadas
paixões entre os rústicos povos, já com palavras, já com
escritos, feitos uns novos legisladores”.
Daí a instauração de inquérito contra ele. E a sua
prisão.
“Por nímia debilidade de prova” é absolvido.
Entre 1800 e 1817, data da sentença, sustenta
Cascudo, não há nada que comprove atividade pública
de Barata.
Naquele último ano reaparece.
Maçon e revolucionário participou dos conci-
liábulos, que prepararam a revolução de 1817.
No entanto, só é visto auxiliando os partidários
pernambucanos, paraibanos e riograndenses do Norte,
após a frustração do movimento.
Continua a sua vida de clínico e de pequeno
agricultor, granjeando muita popularidade.
Revela-se um tribuno popular.
E isso numa época em que a oratória, mercê do
prestígio da palavra, gozava de muito acatamento.
Ele a utiliza com mais serventia por ocasião da
revolução constitucional portuguesa em 1820.
99
Adere à carta política de Portugal, prestes a sair,
em 1821.
A nova Junta, em conseqüência daquela
revolução, é apoiada por Barata e pelo povo. Cresce o
prestígio dele.
“Era duma eloqüência fácil, banal, fervilhante de
modismos locais mas tempestuosa, veemente, agressiva,
arrebatadora. Refletia, harmoniosamente, todas as
nuanças do espírito coletivo, fotografando, com
fidelidade, o arremeço doido e recuo imprevisto”.(62)
Isso por si só diz da afinidade entre o tribuno e o
povo.
Diga-se o que se disser dele, não se poderá negar
a sua extraordinária sensibilidade aos problemas, aos
sentimentos, às aspirações, aos hábitos do povo.
Eis que ele baliza o seu projeto político no ideal
democrático. Só entendia liberalismo com democracia,
com a participação ampla do povo nos negócios
públicos.
Daí o radicalismo de sua doutrina.
Quem mantinha tanta afinidade com o povo como
ele, só podia ser radical naquele momento histórico.
Estava distanciado, por isso, da elite que vai
engrossar o liberalismo centrista, da estrutura de
autoridade que marginalizava o povo.
Assim, não tem cabimento a afirmativa de que via
esse como uma entidade abstrata, longe da realidade
cotidiana. Tal como Robespierre.
Não encontra base nos fatos a tese de Cascudo,
segundo a qual “Cipriano como Robespierre, guardava o
100
Povo, à distância, contentando-se em amá-lo teori-
camente, em massa em bloco, em abstrato”.(63)
Na verdade, não alimenta esse amor abstrato
quem anatematiza a prepotência e os privilégios da
nobreza territorial hereditária, com vínculos morgados!
É eleito a 3 de setembro de 1821 deputado às
Cortes de Lisboa. Qual o seu comportamento nessa
assembléia? De logo, se diga que lá o ambiente é muito
diferente.
Não tem a aura popular a cercá-lo e a protegê-lo.
Mas ele não se intimida. Enfrenta a ironia dos
deputados portugueses e o ódio do “populacho lisboeta”.
Não recua ao enfrentar os maiores nomes como
Borges Carneiro e Fernandes Tomás.
Em tudo se acentua o contraste entre Barata e os
seus pares, inclusive os brasileiros mais moderados:
Feijó, Lino Coutinho, entre outros.
O discurso, então, é a grande linha de separação.
Aí está o receptáculo, o depósito de um universo
próprio, com significados particulares.
Ele tem uma sintaxe quase rústica, direta, tenaz.
A outra faz tônica sobre o estilo clássico,
escorreito, refletindo posições de elite.
Por isso, pode ser mais sarcástico, mais ferino,
sem omitir o traço clássico do humanismo iluminista.
O seu partidarismo era intimorato e afirmativo.
Ali se mostra também um agitador, trazendo dias
tumultuosos àquela casa.
Observem-se algumas das suas arremetidas
corajosas e insólitas.
101
Numa das sessões propõe a suspensão do pro jeto
da Constituição, até que se efetivasse a presença
completa dos deputados brasileiros. Isso logo no dia da
posse, 17 de dezembro de 1821.
A proposta se fundava na necessidade de uma
discussão ampla dos artigos da Carta. E declarava que,
caso assim não se procedesse, não estavam aqueles
deputados obrigados a sancionar matéria que não
examinaram. Nem o Brasil obrigado a acatar uma
Constituição feita com essa grave lacuna.
No dia 10 de janeiro de 1822 requer a abolição de
tributos antigos, que relembravam o despotismo,
inteiramente arbitrários. E já no dia seguinte manifesta-
se favorável à volta de uma prática democrática: a dos
juízes eleitos pelo povo.
“É um revolucionário típico, idealista, cioso de fórmulas
revolucionário-democráticas, fazendo questão da abolição
de classes, atroando o casarão legislativo com o estridor
de suas opiniões que recordavam a revolução francesa na
fase inicial de sinceridade espiritualistica”.(64)
Nesse ponto, se destaca a sua preocupação pela
problemática social, que a art iculava com o elitismo de
uma “aristocracia” cheia de privilégios irritantes,
opressora.
Do “Diário das Cortes” podem-se extrair algumas
passagens significativas.
Assim, da sessão de 9 de fevereiro de 1822 consta
um pequeno libelo contra os desembargadores do Brasil.
Acusa-os taxativamente de criminosos.
102
A 12 de fevereiro, sugere que a Igreja dê mais
atenção aos expostos, àquelas crianças deixadas aos seus
cuidados, através da poupança do dinheiro empregado
na compra desnecessária de inúmeras velas para o culto
divino. Pois há necessidade de se atender melhor
àqueles infelizes.
De outra feita, a 16 de fevereiro de 1822, propõe
que se vede o uso de expressões configurativas de
classes, clero, nobreza e povo, cabendo a todos indis-
tintamente o nome de cidadão. Assim raciocina ale-
gando que não compete à Constituição expressar ou
criar tais divisões.
A 7 de fevereiro quer a humanização das prisões,
tornando-as mais asseadas e confortáveis, lançando -se
ao mar instrumentos tais como correntes, tenazes,
grilhões, que aumentam o infortúnio dos presos.
De fato, era justíssima a pretensão de Barata
considerando que as prisões da época tinham sido
construídas no período colonial, e condicionadas pela
concepção e pelos métodos absolutistas de pena. Assim,
com muita just iça, pleiteia, ao final, a extinção das
masmorras úmidas, algumas até com água, porquanto
subterrâneas, abaixo do nível do mar. E a proximidade
deste as inundava facilmente, como na Bahia de todos
os Santos.
A 1º de julho ele clama pela aplicação justa e
igual da Constituição. Tal, diz, a condição imposta pelos
que a juraram na Bahia. Ela estabelece a igualdade de
direitos. E essa igualdade deve ser preservada, garan-
tida. E assim falando, protestava contra a obstrução da
103
matéria de interesse do Brasil pela grande maioria dos
deputados portugueses, constituindo uma elite imper -
tinente. Defende corajosamente os direitos da minoria,
formada pela representação brasileira. Denuncia, no
meio dos protestos dos deputados lusos, as manobras
tendentes a manter o Brasil no regime de escravidão.
Declara que a metrópole não tem condições de enfrentar
os brasileiros, em maior número naturalmente que os
portugueses lá residentes, pouco influentes na decisão
dos eventos.
É totalmente infrutífera a persistência dela em
restaurar o regime despótico em terras da América. Daí
surgem “desvarios” que indicam o desconhecimento da
história e do meio brasileiros. Era a sua reação à
tentativa de se cassarem os direitos de Reino,
restabelecendo-se a situação de colônia no país.(65)
E eis agora Barata em nova etapa de sua cons-
tante luta contra o despotismo. Desta vez, em
Pernambuco.
O seu regresso dá-se nessa Província, onde tem
papel influente nos motins de 1823, mormente através
do periódico que funda, “Sentinela da Liberdade”.
Integra o partido de Manuel de Carvalho, in-
dispondo-se sucessivamente com Pedroso e com Fran-
cisco Pais Barreto.
Por este tempo, Pernambuco estava no auge do
conflito entre brasileiros e portugueses. O que perdu-
rará, embora de forma atenuada, poucos anos depois.
Ora, o temperamento irrequieto de Barata, as
maneiras desabusadas de dizer as coisas, a impe-
104
tuosidade dos seus ataques, tendiam a aguçar um vivo
nacionalismo. O que constitui ma das faces do
liberalismo radical. Especialmente na quadra tumultuada
em que começava a sua militância panfletária na
Província.
Os brasileiros são duramente relegados a plano
secundário, preteridos nos cargos públicos, na vida
social, no comércio, favorecidos que eram os
portugueses, os “europeus”. E com maior intensidade
num momento em que a autoridade usava de intolerável
arbítrio, de despotismo, acesa a luta entre as Cortes,
estas pugnando pela união do Brasil e de Portugal, e os
patriotas brasileiros que desejavam a nossa
Independência.
Um exemplo é típico. Pedroso, de quem se vinha
falando anteriormente, movido pelos seus habituais
arrebatamentos, resolve mais uma vez auxiliar o partido
das Cortes. E o faz justamente numa ocasião em que
Barata desenvolvia diatribe violenta, exacerbando a
rivalidade entre portugueses e brasileiros. No dia 24 de
dezembro de 1822 apareceu no campo do Erário com
tropa mobilizada. Lá discursa e, em seguida, prorrompe
em vivas aos “europeus”. Destes, os que se encontravam
presentes, declara-os naturalizados, sem quaisquer
formalidades, colocando-os sob a sua proteção. O que,
aliás, dura muito pouco.
Porquanto, uma semana depois, por instigação de
“patriotas”, aprisionaria 180 lusos, contra os quais não
havia culpa formada alguma. Nem sequer denúncia na
justiça. Muito menos submetidos a qualquer inquérito
105
policial. Isso com o intuito de se tornar agradável ao
povo, cada vez mais excitado por Barata.(66)
Como se vê, o inquieto político exibe um nacio -
nalismo acirrado, desbordando na agitação de rua. Tal a
radicalidade de sua postura ideológica.
Quer o desaparecimento completo da opressão,
que continuava após a Independência, custe o que
custar.
Sabe que a obra da liberdade não se concluiu com
o grito do Ipiranga.
É preciso lutar ainda, e muito, para eliminar o
sobrevivente despotismo português.
A época é de grande instabilidade política.
Persiste a guerra da Independência. Sem forças o
governo para manter a ordem. No centro da anarquia em
curso atua Barata. Por certo, já conhecia as manobras de
José Bonifácio contra ele, tentando anular a sua ação em
Pernambuco.
O “Sentinela da Liberdade na Guarita de
Pernambuco” é o seu grande instrumento.
Com ele firmou o seu poderio junto ao povo, a
quem inflamava cada vez mais.
O governo central julgava-o incômodo, um
estorvo perigoso.
Assim aquele ministro
“em ofício (nº 139) de 24 de maio manda a Felipe Neri
Ferreira que faça terminar a Sociedade ‘Patriótica
dissolvendo-a por todos os meios possíveis que lhe ditar a
sua mais apurada reflexão’. E manda fazer ‘igualmente
suas diligências para fazer sair daquela Província o ex-
106
Deputado Cipriano José Barata, por ser ali não menos
danosa a sua residência”.(67)
Contudo, a popularidade do intimorato polít ico
era imensa. Não seria a mudança de residência que iria
anulá-lo.
Tanto é assim que a Bahia o elege deputado à
Constituinte.
Não assume o mandato por razões especiais.
No seu lugar vai o suplente e inimigo encar-
niçado, a encarnar a vertente ideológica oposta, José da
Silva Lisboa.
Prefere ficar no Recife, à frente do “sentinela”.
Com a mudança, porém, da administração em
Pernambuco, deposto o presidente da Junta, Coronel
Afonso de Albuquerque Maranhão, a situação de Barata
tornou-se periclitante.
É preso e remetido para o Rio de Janeiro.
Prossegue a devassa contra ele.
Apelos correm em favor de sua soltura, sendo de
destacar a do governo revolucionário do Ceará, e
contido em oficio de 31 de março de 1824.
A partir desse fato, dá-se o rompimento de Barata
com o governo imperial.
Deixa a prisão em 1829.
Personalidade rebelde, inconformada, a se
projetar na dimensão ideológica.
Mas não nutriu o inconformismo gratuito, cego.
Pelo contrário. Põe-se a serviço da causa nobre da
liberdade.
107
Ela tem primazia sobre outra qualquer, concen-
trando toda a sua atenção. Concentra-se nela de corpo e
alma. E o faz notadamente no estilo panfletário do
tempo, que aos olhos de hoje parece tão-somente obra
de demolição. Essa a acusação generalizada entre
adversários e inimigos.
Acontece que a circunstância em que agiu,
altamente convulsionada, esmaece a crítica acerba con-
tra um homem que defendia um objetivo nobre.
E não foi vã a sua missão.
Pois, não muito tempo depois, pelo menos se
dava a reorientação do autoritarismo, velho legado do
absolutismo, sob a Constituição de 1824.
Componentes ideológicos de Cipriano Barata.
Teses propostas
Há do denodado panfletário um expressivo
documento, bastante dilucidativo da sua formação
ideológica, das teses que sustenta em matéria política e
que se constituem o núcleo do liberalismo radical no
Brasil.
Por ele, já se alcança o nível de at ividade
criadora do intrépido periodista e político na formulação
de matrizes político-ideológicas que se prolongariam
numa corrente de pensamento subterrâneo em largos
momentos da nossa história. E emergentes dominan-
temente em escassos momentos outros, mas compondo
um patrimônio definit ivo de idéias.
108
Essa posição precursora de Cipriano Barata re-
clama estudo mais acurado dos especialistas em pen-
samento brasileiro.
O documento de que se fala é o manuscrito que
tem por título:
“Motivos de minha perseguição e desgraça em Per-
nambuco e Rio de Janeiro ou breve e curiosa memória e
relação dos acontecimentos interessantes ao bem do
Brasil, para no caso de que eu faleça servir in perpetuam
rei memoriam e, enquanto vivo para minha defesa”.(68)
De acordo com anotação de Melo Morais à
margem do mesmo manuscrito, trata-se da “memória do
Dr. Barata, que estava em Montevidéu”.
Nesse caso, teria sido escrito no exílio, quando o
bravo lutador se achava perseguido pelo governo de
Pedro I.
Nele se observa em primeiro plano a filiação de
Barata ao Iluminismo francês, denunciando uma clara
aceitação dos princípios da Revolução de 1789.
Colhe aí a radicalidade que funda o seu
liberalismo.
E com o significado bem traduzido por José
Honório Rodrigues, “princípios liberais, radicais – não
porque fossem (as revoluções de 17 e de 24) às raízes
dos problemas, mas porque não hesitavam em recorrer
às soluções extremas...”.(69)
Quer dizer: a luta armada era preconizada pelos
liberais radicais como recurso extremo para a derrota do
despotismo.
109
Contudo, como se verá, o significado visto se
dilataria, terminando por abranger o enfrentamento mais
largo dos problemas políticos e sociais.
Nisso se diferenciam dos liberais contristas. Mas
conciliadores, até no procurarem compatibilizar valores
e interesses da velha ordem com as novas idéias. Nessas
condições, descartam de logo o revolucionarismo.
É que são produtos do segundo momento. Isto é,
da Restauração, absorvendo desta as grandes linhas
ideológicas, com a delimitação das liberdades e reforço
do princípio da autoridade.
Molestados pelos abalos sofridos pela Ordem,
influenciados pelos temores das cassandras do roman-
tismo político no tocante à segurança, à preservação das
instituições, esboçam um sistema de freios ao ímpeto
revolucionário.
Pretendem, então, a composição entre a monar-
quia e o constitucionalismo.
Barata, num dado instante, o que antecede ime-
diatamente a Independência, parece excepcionalmente,
transigir num dos pontos fundamentais do seu ideário
iluminista – o republicanismo, e apoiar a fundação do
Império brasileiro, a ascensão do príncipe ao trono.(70)
Mas, geralmente, desde a revolução baiana de
1798, pública a sua profissão de fé republicana.
Investe acremente contra “os chamados testas
coroadas d’Europa vendo seus tronos abalados pelas
idéias de Liberdade e luzes espalhadas pela Rainha das
Nações, a França”.(71)
110
Era republicano numa conformação absoluta à
doutrina das sociedades secretas maçônicas. Pois
pertencia à velha seita.
Demonstra ele conhecimentos da história da
Maçonaria e, assim, amor à causa dessa sociedade.
Diz que, antes da queda de Bonaparte, os reis
auxiliaram várias das organizações maçônicas com o
fito de derrubarem o Imperador francês.
Nesse trabalho, concorreram para a formação de
algumas dessas entidades, inclusive delas que ao tinham
caráter secreto.
Passado, porém, o perigo do Bonapartismo, na
verdade pondo em risco a segurança dos tronos, volta-
ram-se os monarcas contra elas.
Sentiam-se ameaçados, ao mesmo tempo com uma
possível reforma do sistema monárquico.
Num primeiro momento, temiam que o avanço
revolucionário, presente em todos os setores da
organização social pelos efeitos da palavra veiculada
pela Imprensa, trouxessem a modificação dos costumes
e da mentalidade, entre outras coisas, e aniquilasse de
uma vez por todas com o princípio monárquico, com a
organização política dele derivada.
Nesse ponto se observa a convicção iluminista
esposada por Barata, segundo a qual a vontade ou a
prática é uma das faces da Razão, aquela seguindo a esta
automaticamente, mecanicamente.
A palavra é palavra-ação sem o cuidado da
explicitação das objetividades.
111
Pois bem. Temerosos da sociedade maçônica, os
reis resolvem fundar também uma sociedade secreta com
o desígnio de defenderem o trono.
Não, porém, o trono autor de concessões ao povo,
às liberdades públicas. Tal como encontradiço nas mo -
narquias constitucionais.
Querem o revigoramento do princípio absolutista,
numa franca atitude de repúdio às conquistas das
liberdade públicas.
Cipriano, com isso, intenta dar uma visão sumária
do que foi a Restauração, na realidade representando o
recuo dos conceitos trazidos pela Revolução Francesa.
Com efeito, nesse período, ocorreram movi-
mentos aglutinando vários monarcas da Europa com o
fim da conservação do absolutismo monárquico.
A Santa Aliança é um exemplo.
Afirma que a Santa Aliança emitia instruções
para as sociedades secretas que incentivava. Ela mesma
revestia esse caráter secreto.
A sua tarefa conspiratória se passava de prefe -
rência no topo da vida política e da elite, envolvendo
ministros, conselheiros, nobres, militares, eclesiásticos.
O cunho elitista é aí denunciado por Cipriano,
que enfatiza a oposição dessas pessoas ao “bem geral da
espécie humana”. Isso explica o combate tenaz das
autoridades em vários países “a inocente e virtuosa
Sociedade dosa Franc Massons, como escola, e fábrica
de homens de bem, e de virtudes e luzes”.(72)
O objetivo da perseguição é a restauração do
período de trevas, de despotismo. Essa campanha se
112
estende à Imprensa, como órgão que ilumina o povo ,
levando-o a se libertar das cadeias que o prendem à
ignorância, à submissão servil. Denuncia que corre a
notícia, de extração inglesa, consoante a qual a
concepção e os métodos da Santa Aliança foram
transpostos para o Brasil.
E, entre os seus agentes, quais os mais des-
tacados? Nada mais, nada menos, que os Andradas e os
seus partidários.
Eles propagaram o sistema pelas Províncias e sob
a denominação de “Sociedade Secreta dos Cavalheiros
da Santa Cruz, ou Apostolado”.
Alega que, futuramente, dará provas dessa
afirmação e, inclusive dos métodos e fins denigrativos
que adotam.
Essa filiação da Santa Aliança “é cruzada
diabólica contra as luzes do Século, e direitos do
homem”.(73)
Isso é próprio dos governos monárquicos in-
clinados ao absolutismo, contrapondo-se aos “direitos
do gênero humano”.
Para tanto, não se escusam de gastar vultosas
somas de dinheiro.
Trata-se de manobra diabólica, desumana, repe-
lida pelos governos liberais.
Interessante a tese de Cipriano conforme a qual
os intuitos da Santa Aliança, inspiradores das entidades
secretas absolutistas, convergem para os “países servis,
onde tem seu império o despotismo, a escravidão, e a
tirania”.(74)
113
Pois nesses países o ambiente despótico, uma
longa tradição absolutista, o elitismo dominante, facili-
tam a trama daquelas entidades.
No Brasil, essa a situação.
Eis que prospera a trama do despotismo sob a
chefia, sob a orientação dos Andradas, visando a fins
abomináveis, em tudo contrários aos verdadeiros
interesses do povo.
Seus ataques se concentram no Apostolado, que
utiliza os mais execrando meios para colimar aqueles
fins: traição, homicídios, e outras coisas não menos
tétricas.
Tal sociedade vem empregando o disfarce, mas
realiza perseguição implacável aos “Franc Massons”.
Só os incautos, os desavisados, acreditam que ela
foi composta com a finalidade de “Independência e
Liberdade do Brasil”, e diz que mais tarde sofreu
desvirtuamento dos seus elevados objetivos pela ação de
pessoas egoístas e vis, sob a tutela dos Andradas, “e
outros aristocratas, e privilegiados, e seus partidários
pregoeiros do tempo antigo”.(75)
Desde que se compare o trabalho dessa orga-
nização com a sua congênere, a “Sociedade Apostólica
da Galiça”, constatar-se-ão os mesmos métodos e pro-
pósitos uma e noutra, não havendo como diferençá-las.
As manobras da Santa Aliança lá são as mesmas
do Apostolado, cá, identificando-se a sincronia de
movimentos e a utilização da mesma estratégia. Anote-
se, por exemplo, a referência do órgão à religião, para
se concluir que ambos fazem parte de um mesmo corpo.
114
A sua prisão, a perseguição que sofre, são obras
da malsinada associação.
Ele se alçou na Imprensa, no Parlamento, na
praça pública, como estrênuo defensor das liberdades,
combatendo toda forma de despotismo. Está sendo
vítima de um plano de vingança, por ter denunciado os
planos absolutistas dos poderosos alojados no Apos-
tolado. A ação dessa sociedade se faz solerte e maldosa
junto a D. Pedro, contando com o esteio forte dos
Andradas que dirigem o Ministério. São eles que
influenciam o Imperador, fazendo-o admitir idéias que
nunca esposara.
No caso da dissolução da Assembléia Cons-
tituinte, isso ficou bem patenteado. Trata-se, aliás, de
um evento que acusará publicamente a trama anti-liberal
dos Andradas. Os quais, por ambição de mando dis -
cricionário, “arriscarão o bem do Império, e a prospe -
ridade dos Brasileiros’.(76)
Com muita argúcia, o intimorato político via aí
um acontecimento saliente na conjuntura e no seu
desdobramento, afetando o futuro.
Pois ele suscitará uma cadeia de males cujas
conseqüências já começavam a se sentir pesadamente no
seu tempo.
E isso resulta principalmente da ocorrência, tão
bem conscientizada por Cipriano, e de suma gravidade,
qual seja a ruptura das bases do Império nascente.
Assim, postergados os princípios da organização
liberal-constitucional, inscritos nos “contratos sociais
para a fundação da Monarquia Imperial Mista que se
115
fazia Constituição liberal por meio da Assembléia
Constituinte Legislativa”.(77)
Com isso, a revolta entre os brasileiros tem sido
uma constante, trazendo o caos, o derramamento de
sangue.
E os Andradas prosseguem no afã de reduzir o
Brasil ao sistema absoluto, abafando a liberdade de
Imprensa, armando toda uma rede de delação nas
Províncias, promovendo devassas por toda parte,
distribuindo “cartas brancas com letras de sangue”.
Desse modo, a tranqüilidade e a liberdade têm
sofrido grandes revezes, dificilmente se mantendo.
Em todas as Províncias criaram-se agências do
despotismo, de onde parte um movimento sincronizado
de apoio ao que se trama no Rio de Janeiro.
O anti-liberalismo é difundido, de que se in-
cumbem periódicos como “O Espelho”, movendo os es-
píritos, transformando as idéias, corrompendo.
Os militares os grandes atingidos.
Assim, as bases do direito liberal, presentes na
Constituição portuguesa de 1822, transtornadas.
Pelas manobras sórdidas e corruptas, o Imperador
altera a sua concepção liberal, aberta às novas “luzes do
século”, e assume posições despóticas, depois de lhe
insinuarem vagas notícias da anarquia. E ele, tão
inclinado que era ao “governo popular misto”, muda de
orientação. Os “direitos inalienáveis e imprescritíveis”
dos cidadãos não mais acatados. Caminha-se regres-
sivamente para a “velha Monarquia arbitrária”. A farsa
“liberal” prepondera. A fundação da Assemb léia
116
nacional e a elaboração da Carta Magna fizeram parte de
manobra insidiosa e enganadora. Alvo que daria a
imagem de um sistema liberal, quando, na verdade,
dominava o contrário, consolidando um poderio a ser -
viço da ambição e da vaidade.
O plano solerte segue em tudo o modelo das
“sociedades secretas dos Reis da Europa”.
Os Andradas forcejam por alcançar definiti-
vamente os seus fins, chegando a ultrapassarem em
crueldade e em arbítrio a Pombal e a Richelieu, assim
como outros tiranos da história.
Eis que intentam o arremate da transformação da
forma de governo misto, “por sua natureza doce e
humano, em Governo de sangue, de traição e de
morte”.(78)
Nesse empenho, José Bonifácio conclui em 1822
o trabalho de formação de uma sociedade secreta,
produto da adaptação das normas de entidade congênere
da Itália. Está constituído o Apostolado.
Daí parte a ação nefasta contra a Assembléia
Constituinte e Legislativa.
Acabou-se então a tranqüilidade garantida pelas
bases políticas do Império nascente.
O absolutismo recobrou alento com a franca
cobertura da Santa Aliança,
Escarmentadas as autênticas sociedades, as que
pugnam pela liberdade, pelos direitos inalienáveis, pelos
mais puros princípios liberais.
Reinstala-se a perseguição política e religiosa.
A tirania está solta.
117
Observa-se nas Províncias a presença de emis-
sários, tramando em prol da entidade absolutista, contra
os “sagrados direitos da espécie humana”.
Então, Cipriano empresta a esta exacerbação
absolutista a iniciativa de sua perseguição, de sua pri-
são. Bem como lutas e disenções sangrentas nas Pro -
víncias. Tudo em favor da restauração da Legitimidade,
com o que ao compactuam os novos tempos.
Importante o detectar neste e em outros docu-
mentos do político baiano, em meio à linguagem
panfletária, as linhas mestras da ideologia liberal
radical. Percebem-se, com efeito, os traços afirmativos
de um pensamento no seio das objurgatórias contra os
adversários, no interior mesmo de exacerbado par -
tidarismo, que é bem o tom do confronto ideológico do
período.
Por isso, a preocupação dominante do intérprete,
do analista, não é tanto escoimar a virulência do
acometimento frontal, senão captar o interesse, que
embasa a causa do político, as tendências ideológicas a
serem extraídas do contexto do discurso.
Em outras palavras, não se deve descartar esse
discurso pelo que ele apresenta de faccioso, mas pelo
que ele revela de uma mensagem.
Mesmo porque se trata da natureza da ideologia o
fazer-se presente em níveis diversos e sobreimpostos de
linguagem em que a forma do discurso pouco importa,
senão os móveis que o levam a manifestar-se.
Não se cuida de verificar a veracidade dos acon-
tecimentos, do desempenho de personagens históricos,
118
como José Bonifácio, procurando saber se o autor
cometeu ou não distorções.
É evidente que distorções ocorreram. Esta quase
sempre a regra do discurso ideológico do panfleto.
Mas essas próprias distorções ajudam a fazer
transparecer o tônus ideológico, dando maior nitidez à
doutrina esposada.
A verificação da veracidade do relato não cabe
num texto panfletário.
Ele não contém um discurso de historiador.
A estratégia que adota, comumente, é a de se
firmar em torno de acontecimentos relevantes, como a
dissolução da Assembléia Constituinte, para daí inferir
axiomas, ou melhor conformá-los, alimentando teses ou
juízos favoráveis à causa.
Esta entende com uma filosofia política, com uma
concepção do homem e da sociedade.
Apenas tais fundamentos valorativos transpare-
cem num tipo de discurso menos foral, sem o aparato
lógico do pensamento filosófico. E ainda que não deixe
de absorvê-lo. Mesmo porque é difícil separar os dois
níveis de conhecimento: o filosófico e o ideológico.
O primeiro representa geralmente uma elaboração
epistemológica mais refinada e sutil, embora não se
escuse a reter interesses, como mostra muito bem
Habermas.
Veja-se o exemplo da Filosofia Liberal, mais
propriamente uma ideologia exposta num plano mais
abstrato, como que escondendo a circunstancialidade
que a ensejou.
119
Num plano mais baixo, a ideologia panfletária é
investida totalmente na circunstância, no evento, a partir
deles racionalizando interesses e objetivos políticos. E
no meio de apelos reiterados à densidade da Filosofia.
Ela sempre se enraíza em algo mais elevado que a mera
racionalização de fundo estritamente circunstancial.
Viu-se como Cipriano Barata invoca “direitos
essenciais da pessoa humana”, “liberdade”, temas do
cerne da filosofia iluminista.
Há, então, uma articulação de dois níveis: o da
filosofia com todos os seus ingredientes, e o da
circunstância, que, mesmo absorvendo o primeiro,
oferece um contexto autônomo, propenso à modificação
dessa circunstância.
Oportuna agora a colocação dos temas centrais da
ideologia liberal radical fundada entre nós pelo valente
panfletário.
Em primeiro lugar, registre-se sob o “des-
potismo” dos Andradas a tentativa pioneira, aliás
exitosa, de reorientar o liberalismo no país, conferindo -
lhe um suporte autoritário, privilegiador da organização
monárquico-constitucional sob o controle do poder
encarnado no Imperador.
Nisso se descortina o ponto essencial da contenda
no Parlamento, na Imprensa, nas agitações de rua, nos
levantes, e do confronto entre dois princípios: o da
liberdade e o da autoridade.
Barata entendeu muito bem que aquela reorien-
tação do liberalismo o expungiria ou o deslocaria do
campo da democracia para outro em que interesses de
120
facções poderosas, naturalmente esteiadas no poder
econômico, sobrepujariam os do povo.
Este se veria reprimido no exercício político,
arbitrariamente tolhido na participação nos negó cios da
nação, e se colocaria como agente passivo do processo
político.
Dessa forma, não reuniria condições viáveis de
fazer valer os seus direitos, de levantar reivindicações,
que tenderiam também a abrir o processo sócio -
econômico.
Cipriano se situa num plano utópico, saindo do
lugar ditado pelo proprietário que concentrava as
riquezas.
Vários anos depois, por 1831, ele é liberal
agitador “que toca nos ressentimentos de classe e de
raça e acena com promessas de uma nova ordem social”,
escreve Paulo Pereira Castro.(79)
Era preciso romper um círculo vicioso e
hermético de privilégios, de opressões, para ter êxito o
liberalismo radical.
Ele se apega, por isso, ao voluntarismo, projetado
nas sedições, para se afirmar.
Mas se afirma também através da linguagem so-
berana, demasiado impositiva, refletindo uma semântica
sugestiva, aliciante, auto-suficiente.
É a linguagem do racionalismo iluminista, a se
fechar no contato funcional com as objetividades. Ou, se
se preferir, com as empiricidades do contexto sócio -
econômico, sócio-cultural, comprazendo-se no jogo
retórico, impressionista.
121
Contudo, por outro lado, se abre à trama dos
acontecimentos políticos, à conjuntura dentro da qual se
processam e ganham sentido, embora vistos na opa-
cidade circunstancial, pobremente translúcida ao uni-
verso das significações.
Desta sorte, corrente nesse tipo de linguagem o
senso comum, a visualização factual pelos pontos de
referência empíricos da sociedade da época.
Daí a inviabilidade dos projetos de mudança
social no contexto em objeto.
A utopia formava, compensatoriamente, o quadro
das aspirações, inconscientemente mobilizado no inte-
rior dos levantes. E com uma amplitude transbordante
dos parâmetros pragmáticos de então.
Utopia por igual presente no panfleto radical, as
campanhas em prol das liberdades no parlamento, nos
conciliábulos.
Espécie de compensação do senso comum e, com
ele, dialeticamente relacionado. Numa operacionalidade
tendente a reiterar um modelo ideológico de protesto, de
luta até, porém retesado nos limites impostos pela
situação dominante.
Figura como recurso estratégico para o qual
apelam movimentos contestatórios mais impotentes, ao
longo da história política brasileira.
Aquele senso comum constituiria um nível de
percepção superficial, tido como natural e p rodutivo no
fastígio do racionalismo, no vazio da não constituição
das ciências humanas, no domínio da utopia como arma
de reconstrução político-social.
122
Agora, o retorno às teses de Cipriano Barata, o
precursor de Frei Caneca.
De início, cumpre dizer que o senso comum
parece confundir-se no fundador do liberalismo radical
no Brasil, com “reta razão”.
Depois de denunciar a ação despótica do mi-
nistério, a qual se fazia sentir violenta em Pernambuco,
através de agentes seus, portadores de “cartas brancas”,
com vistas à prisão de inúmeras pessoas – o que é
complementado com atos de corrupção – afirma que,
passado o primeiro instante de surpresa, entrou “a
discorrer com madureza e sangue frio, segundo os
ditames de uma reta razão”.(80)
Como se bastasse voltar ao senso comum para ver
melhor, saindo do estado emocional que o obnublava.
Ainda aí se observa que o exaltado panfletário
estimula a oposição entre o Rio de Janeiro, onde se
desenrola a trama do ministério, e Pernambuco, a
aparecer como vítima do despotismo desse ministério.
Nisso vai acendendo os ânimos e preparando o
terreno para a tese da autonomia provincial, mais tarde
desenvolvida pela Confederação do Equador.
É realmente importante ver como temas que
constituem a bandeira desse movimento começam a ser
elaborados por Cipriano.
Em outro número do “Sentinela da Liberdade”, o
de 3 de maio, explicita o estado de terror generalizado a
partir de determinações e atos de força do governo
central, com a institucionalização do medo, da
insegurança das arbitrariedades policiais.
123
Aí está igualmente uma tese posteriormente
retomada por Caneca, e que representa um contributo do
liberalismo radical na análise de uma situação de
autoritarismo, na denúncia de uma ordem política
despótica.
Tal se manifestava como um dos elementos
fundamentais na elaboração de ideologia contraposta
àquela dominante e que, portanto, abria vias de
diversificação valorativa no cenário político brasileiro,
numa época em que a herança colonial pesava
demasiado, e que tinha como natural o absolut ismo, o
autoritarismo dos régulos e dos potentados.
É, de fato, uma abertura para, se não o rom-
pimento imediato da opressão, pelo menos a criação de
frentes conscientes de resistência. Nisso teve êxito o
liberalismo radical.
A obra de Cipriano Barata não caiu no vazio. Ela
terá repercussões na história imperial e republicana.
Então, na denúncia ao “terror público”, exproba
os “assassínios clandestinos” e outros excessos cla -
morosos, por tudo isso responsabilizando o ministério,
que ao encontra limites ao seu arbítrio.
Violados os direitos do povo, promulgadas leis
contrárias ao bem comum, criados tributos sem base
legal. Diante desse quadro de arbítrio, o poder público
se vê constrangido a consolidar a força, caindo num
círculo vicioso para abafar a resistência incontida.
O “terror público” vem no desdobramento
dialético do arbítrio, da força sem regra empregada pelo
governo.
124
Procurando anular a oposição, quebrar -lhe as
forças, também estigmatiza as suas idéias, não sabendo
como parar.
E então ocorrem a desolação, o modo de falar, de
agir, o exílio. A coisa chega a um ponto tal que uma
suspeita ínfima motiva uma perseguição.
Interessante o ter Cipriano consciência de que
isso constitui um estado de crise.
Sim, crise porque reflete uma situação de anor-
malidade, infecundo para o trabalho, para a
manifestação da vontade, para o progresso.
As pessoas sentem-se tolhidas, temerosas das
denúncias falsas, dos delatores. Diz: “A Sociedade
geme, despotismo impera; e a tirania devasta tudo”.(81)
Aqui se nota claramente o dissídio entre a
sociedade civil e a sociedade política, com a evidente
exacerbação do papel cometido ao elitismo burguês
instalado no poder. Elitismo esse preconizado mesmo
pelos filósofos liberais, como Locke, a privilegiarem a
classe dos proprietários.
Seria preciso que Cipriano Barata corrigisse o
desnível causado pela separação entre sociedade política
e sociedade civil na doutrina liberal, incentivando o
gigantismo da elite governamental, e com as idéias
democráticas do Enciclopedismo, notoriamente as de
Rousseau, para se contrapor, fundando uma corrente o
liberalismo brasileiro, ao natural exarcebamento do
liberalismo centrista, autoritário.
Tal uma posição inovadora na temática e na
vivência ideológicas do período, e tendente a incorporar
125
toda a sociedade civil no centro das decisões políticas
com o decurso do tempo.
Estar-se-ia diante de um princípio de ruptura com
a velha ordem. Porque o liberalismo centrista, com
aquelas conotações ideológicas, animadas pelo atraso do
povo carente de consciência política, facilmente
resvalaria em despotismo, em autoritarismo.
Contra esse estado de coisas se levanta Cipriano,
propugnando a acolhida dos “direitos da espécie hu -
mana”, não fazendo distinções de classe, não privi-
legiando a elite dominante.
Explica-se pois que ao queira uma constituição
outorgada, fruto exclusivo da deliberação de poucos, os
do grupo governamental.
Pleiteia que a nação, pela sua representação,
elabore o documento político.
Não sendo assim, a tendência é o advento de uma
Constituição despótica.
Não descansa Cipriano no denunciar tudo que
indica despotismo, arbitrariedade do poder.
É o ideólogo panfletário por excelência. Aquele
que faz a racionalização ideológica no seio mesmo dos
acontecimentos.
Não faz arrazoados ou preleções desligadas da
conjuntura política na qual vive e atua.
A todo evento ou cadeia de eventos corresponde a
colocação particular de uma uniformidade ideológica, a
de um corpo doutrinário com clara identidade, com
dimensão própria.
126
O acontecimento, a conjuntura se articu lam de
modo operacional, segundo o modelo do período, com a
ideologia em referência, clarificando a “situação”,
particularizando-a, identificando no quadro valorativo
de uma radicalidade os móveis do comportamento
político da esfera governamental.
Malgrado a limitada operacionalidade dessa es-
tratégia, ela procria segmentos utópicos de uma so -
ciedade ainda por vir, estimulando o voluntarismo, a
resistência à opressão.
A própria limitação do modelo operacional dessa
postura ideológica, ignorando a complexidade dos pro-
cessos sócio-econômicos influentes numa conjuntura,
induz ao élan combativo, à revolta, fundados em
ingênua concepção do agir, da praxis.
Então, em Cipriano não há qualquer tentativa de
elaboração ideológica mais sofisticada, não passando do
nível panfletário.
No entanto, não se menospreza a eficácia do
voluntarismo, aí emergente, porquanto, no fundo, en-
tende com a disposição ontológica para a superação dos
obstáculos à realização humana.
Ora, o despotismo se encontra entre esses obs-
táculos, e ele atrai a resistência, o repúdio, mais cedo ou
mais tarde.
Aquela disposição ontológica se acasala com os
interesses de uma facção política, que se vê contrariada
por outra instalada no poder.
Na dialética do confronto, o corajoso político de-
senvolve uma notável aproximação com os aconte-
127
cimentos, fazendo-o um crítico implacável dos seus
grandes protagonistas, os que estão na cúpula do poder.
Denuncia, entre outras coisas, o que chama de manobras
do ministério tendentes a escamotear as leis vigentes, o
figurino constitucional.
Verbera, por exemplo, e com base em notícias
vagas, quando se refere ao fato de que “correm novas”
mas eficaz dentro de sua estratégia política, porque
incrementa a oposição – o objetivo do “futuro Go-
vernador das Armas” de Pernambuco de vir autorizado a
se manter numa linha de total independência do governo
da Província, com suspeitas de, num golpe de força,
substituir-se a ele, inclusive perturbando as “novas
eleições”.(82)
Com isso, se coloca Cipriano num plano de
acatamento à lei, de repúdio ao solerte intento despótico
de malferi-la. O que é elevado por ele ao máximo do
acatamento, considerando que todas as ideologias do
período têm em comum o legalismo, a ele juntando o
moralismo.
O grande pecado do despotismo é justamente a
quebra de uma ordem político-jurídica consagrada pelos
povos livres.
Constituição, leis, com plenas garantias aos
direitos individuais, são tudo.
Há, na produção panfletária de Barata, trechos
doutrinários que demonstram a sua filiação iluminista,
mais precisamente a Rousseau.
Um deles é característico. Diz que Deus criou o
homem de uma forma privilegiada com relação aos
128
animais, infundindo-lhe inteligência, espírito, órgãos
anatômicos-sensoriais mais apurados. A isso acrescenta
“uma tendência natural, para e le viver em Sociedade
com seus semelhantes, a fim de aperfeiçoar todos esses
dons já recebidos da sua Bondade e fazer feliz nessa
Sociedade, para que foi criado”.
Porém, possibilitando a “comunicação recíproca”,
a sociabilidade, o bem geral. E nesse ponto se acentua
propriamente a superioridade do homem sobre todos os
animais.
Em função de uma primazia da linguagem, que
tem a propriedade de “dilatar a esfera do seu ser”.(83)
Isso diz bem da soberania da palavra, do discurso
iluminista.
Ele representa o quadro perfeito dos significados
integrados e concluídos definitivamente pela combi-
nação dos signos, das definições, verdadeiros axiomas.
O discurso contém a ordem universal das coisas,
a verdade inscrita no Ser, não havendo necessidade de
uma extroversão sua no campo das objetividades, para
precisar as significações. Estas se encerram e esgotam
no interior do discurso.
A representação do mundo constitui-se repre-
sentação das idéias, rede compacta de signos.
A semântica é o resultado da aproximação desses
signos. Nessas condições, não há como se admirar do
julgamento de Cipriano segundo o qual a palavra é a
dilatação do ser do homem.
Na concepção clássica e iluminista do período, o
ser se acha inscrito na palavra.
129
Percebe-se então a correlação que se pode est a-
belecer entre essa concepção da linguagem e a de uma
concepção da relação teoria-praxis.
Passa-se naturalmente de uma para outra.
É que a prática também já está inscrita na
linguagem que fabrica com os seus elementos, sem sair
do universo a que se cinge. Assim a linguagem da
filosofia, da literatura, não havendo como se articular
com as empiricidades, de um modo que apareça apenas
como instância mediadora.
Ela, por isso, impõe os seus significados próprios,
o sentido das coisas, do mundo.
Não cabe a articulação da teoria com a prática.
Porque a teoria já é prática.
Resta apenas explicitar a vontade como dimensão
da razão para se atingirem os objetivos.
A ideologia panfletária se socorre dessa
concepção, usando a palavra, e só a palavra, no discurso
compacto da contestação, pretendendo que, absorvida
essa palavra-exortação, essa palavra-protesto, se esteja
de posse de todos os recursos para agir.
Ignora, assim, as mediações sócio -culturais, só-
cio-econômicas, políticas, e vai diretamente à ação.
O acontecimento é ingrediente de manifestação
do contexto do discurso. Em função dele e sob a palavra
que o veicula, promovendo-se a prática.
Se alguma estratégia se mostra mais objetiva não
é a do discurso, e sim a que nasce e se estrutura nos
conciliábulos, no desenrolar da ação. É então que se
130
moldam os rumos dessa ação, que se mediatiza
propriamente pelos recursos da sociedade do tempo.
A soberania inerente ao discurso, o estilo retórico
dominante, auto-suficiente, até arrogante, facilita a
linguagem violenta, desabrida.
Porquanto essa linguagem soberana, reputando-se
“dona da verdade”, inclina-se à oposição violenta a
quem dela se afasta.
A anti-verdade, a mentida, o opróbrio, estão com
os usuários de outro discurso, ou com os agentes de
eventos que contrariam o discurso da verdade.
É um dogmatismo inerente à linguagem, que a faz
fanática, desabrida.
A sacralização da linguagem não se separa da
sociedade sacral daquela época.
Daí o ataque do Iluminismo às bases religiosas da
sociedade, ao providencialismo, à soberania da insti-
tuição religiosa face à instituição secular.
Tal faz parte das competições extremadas dentro
do contexto social, dos grandes confrontos aí praticados.
E num país de insignificante diferenciação social,
intensificando a virulência do confronto entre as
oligarquias, entre os proprietários poderosos, isso se
fazia deveras marcante. Nesse contexto, evidente o
desabrido enfrentamento das posições políticas.
Os insultos, os doestos, a ironia, assacados contra
os adversários, são uma constante.
Cada posição assume a sua linguagem, e nela
encontra todos os parâmetros do Ser, da verdade. Ela é a
projeção de um universo que não transpõe os ligamentos
131
do discurso, dele extraindo moral e valores sobrepostos
à realidade social. Embora com ela entrando numa
específica relação dialética, que até tornam distanciadas
as exigências dessa realidade. No entanto, sobre ela
influindo, e num tipo de ação desordenada, porque ba-
seado só no voluntarismo.
E justamente no estilo da ideologia panfletária.
Sendo esta a mais adequada forma para a sociedade da
época, com a procriação de um pensamento político em
confronto com o oficial. E se coadunava perfeitamente
com a natureza da racionalidade experimentada na
linguagem que mais comunicava “verdade”, e da
ideologia.
Não havia possibilidade de se constituir um pen-
samento político em nível filosófico.
O país, recém-saído do estado colonial, não in-
gressara e longe disso estava, num estágio de razoável
progresso cultural capaz de permitir uma reflexão mais
profunda.
O que se tinha de melhor nessa matéria era
importado. E o caminho natural seria a sua transfusão no
bojo da conjuntura, dela e com ela se compondo, com a
absorção dos conflitos políticos submetidos à raciona-
lização no confronto ideológico.
Pois inexistiam guias- valorativos autônomos nu-
ma sociedade de papéis ou de objetivos pouco ou
toscamente elaborados.
A vivência política era primária e não recolhia
funcionalmente no contexto social os anseios profundos
que jaziam no plano do inconsciente.
132
A grande opção do período é a de afirmação da
liberdade, com a vitória sobre qualquer forma de
despotismo, no melhor modelo da Independência
política.
A pureza desse modelo é violado pelo despotismo
sobrevivente. E os que disso dão conta, como Cipriano,
iniciam o movimento de retificação do grande desvio
político. Tão só possível no confronto vivo das duas
posições.
O problema parece se resumir no detectar as
grandes tendências de afirmação nacional, contidas no
projeto do liberalismo radical fundado por Cipriano.
Justamente nesse ponto transparece a dimensão
utópica da ideologia radical, e que se revela em tópicos
portadores de uma estratégia racionalista mas
denunciante de um imperativo real de mudança.
Mudança apoiada no horizonte valorativo do
momento, não claramente ou exaustivamente formulada.
Porquanto fica no aspecto político. E, ainda assim, no
plano meramente institucional, não captando nas suas
motivações amplas o comportamento político.
Contudo, tópicos como “opressão”, “liberdade”,
já comportam uma abertura continuada, e sempre
terminando por expressões como “felicidade dos povos”.
E o conceito de felicidade, como diz André
Vachet, expressa, no ideário liberal a fruição hedo -
nística e pragmática dos bens, das riquezas.(84)
Ora, para o acesso a esses bens, a essas r iquezas,
mister se faz a promoção sócio-econômica e não apenas
política do povo.
133
Neste estão representadas todas as camadas
sociais, todas as etnias, todos os grupos humanos,
segundo a linha rousseauniana.
Eis que o pensamento de Cipriano apresenta uma
face utópica.
E não estaria a aspiração de promoção social na
dependência da opção política, da implantação de um
sistema liberal-democrático no país?
Pelo menos em termos operacionais, se impunha
num primeiro momento a ênfase sobre a liberdade, sobre
a reformulação política com esse fim, como condição de
outras conquistas.
E o dado utópico se insere no projeto da liberdade
sob a forma de tópicos a reunirem objetivos mais
amplos e profundos. Os quais somente mais tarde
ganhariam operacionalidade.
Depois, esse dado utópico se adensa na proporção
dos obstáculos postos ao modelo político em questão.
É que a forte tradição conservadora, tão
favorecida a reforçada pela concentração do poder
econômico nas mais da elite proprietária, obstava a
eliminação da opressão social, a base da política
dominante.
Os movimentos liber4tários sempre esbarraram
diante de tais obstáculos. Pois, ainda que tempo-
rariamente vitoriosos, como a Confederação do
Equador, não modificam o estado de opressão. Muitos
dos seus próprios líderes e mentores são proprietários
abastados.
134
As reformulações políticas que empreendem
deixam intactos os seus direitos ilimitados de
propriedade. Assim como as suas posições elevadas na
hierarquia social.
De sorte que, diante desses obstáculos, mais se
adensava o conteúdo utópico do liberalismo radical.
Conteúdo que a linguagem racionalista facilitava, pro -
pagava com intensidade.
Proclama Cipriano:
“Da palavra nascem a comunicação, a perfeição. a
Civilização, as artes, as ciências, e tudo que diz respeito
ao adiantamento melhoramento, cômodos, segurança do
homem...”.(85)
Daí a ansiedade de se divulgarem doutrinas e
idéias no período, no meio do conflito, com a certeza de
que elas, assimiladas, levariam o homem e a sociedade
ao progresso. É o culto da palavra, que a racionalidade
clássica instalou nos espíritos.
Ela é associada à moral, às virtudes, trans-
formando-os, dada a face voluntarista da razão. E do seu
exercício dependendo a consumação dos objetivos de
felicidade humana.
Eis aí o ponto central de inserção da utopia na
temática racionalista.
É a Imprensa, por isso, o órgão da felicidade
geral, por excelência.
“É a imprensa, que aumenta a faculdade de falar, e de
pensar, nos encaminha para defendermos, e segurarmos
135
nossa Liberdade Civil, nossa igualdade social, nossa
segurança natural, nossas normas de justiça nossa
felicidade neste mundo”.(86)
É que a Imprensa é o meio de comunicação dessa
idade do século, o veículo da palavra-orientação, da
palavra-ação, o portador de um dinamismo que só o
voluntarismo poderia ensejar.
Numa revolução, então, ela assume uma co-
notação toda especial, considerando que, nesse mo -
mento, a vontade se desprende de todas as amaras, de
tudo que a cerceia, e se manifesta no clímax da
liberdade. A Imprensa, assim, exerce, como de t ato
exerceu, um papel singular num período de sedições.
Porque explora ao máximo os confrontos radicais
entre régulos, entre famílias poderosas, entre líderes
políticos, a política patriarcalista, absorvendo os con-
flitos inter-raciais, os desajustamentos provenientes da
larga marginalidade estrutural.
A própria inconsciência das causas e dos fatores
dessa crise, desses conflitos, deveria provavelmente
geral a transferência para supostos fatores, como a
ignorância, da origem de todos os males.
Eis que proclama o periodista que a informação
ilumina, o conhecimento redime, a palavra salva.
De posse da palavra, resta lutar, numa atitude que
omite a estratégia eficaz, funcional.
Porque o voluntarismo exclui a análise fria e
objetiva de uma “situação”, de uma con juntura, ponde-
rando os seus fatores e desenvolvimento.
136
A objetividade se elide em favor da subjetividade,
projetada na vontade.
Nesses termos, constitui-se um grave pecado o
garroteamento da Imprensa. Na verdade, um atentado
inominável à “felicidade dos povos”.
Isso significa que o governo quer esconder os
seus crimes, os seus erros, o despotismo.
É então que se nota a clara contraposição entre
ele e a sociedade, a sociedade civil.
Tal um dos traços do liberalismo radical, a
estreita afinidade entre ambos. O governo deve ser o
coroamento da vida social.
Não se compreende como possa obstruir o meio
mais eficaz e poderoso do progresso dessa sociedade:
“Prender a imprensa é querer fazer o homem hovamente
selvagem, e bruto... É o mesmo que privar o homem de
seu ser social”.(87)
A liberdade, nessa concepção, é a liberdade da
palavra, de pensamento, como meio de educação e,
conseqüentemente, de progresso dos povos. Mantê-los
ignorantes o maior crime.
Não se trata de uma educação sistemática,
processada nas escolas, nos institutos. É uma mais
imediatista, desintegrada de qualquer processo de
aprendizagem, de um condicionamento psico-sócio-
cultural. É a da informação, doutrinária ou não, que
colhe indistintamente a todos, a todos iluminando.
No fundo, há um elitismo nessa concepção.
Porque não se deve deixar de reconhecer na época a
impossibilidade de a grande maioria da população ter
137
acesso à Imprensa, por analfabeta ou pela pouca
instrução. Daí a doutrina panfletária dirigir -se natural-
mente ara a camada dominante, letrada.
Contudo, reveste-se tal concepção de ambi-
güidade. Nisso que a sua dimensão utópica levava -a
forçosamente à uma generalização desse tipo, ficando os
“direitos da espécie humana” como algo apenas passível
de realização num futuro mais distante. Mas cuja
enunciação favorecia a abertura para o progresso.
Cipriano Barata anuncia uma tese, que depois
será retomada por Frei Caneca e outros paladinos do
liberalismo radical, segundo a qual não se deve fazer
opção rígida pela monarquia ou pela república.
Provavelmente por razões táticas.
Não se preocupava com rei no poder, ele que é
maçon, por convicção republicano.
Ele faz uma concessão que atesta o cuidado de
afinar com a circunstância nacional.
Afirma: “Quanto aos Reis e Imperadores; que
tenho eu, que se agastem? Que não sejam malvados; e
logo direi bem deles”.(88)
O importante é haver liberdade, ter acabado a
opressão, com rei ou sem rei.
Nessa citação se observa o tom moralista, de
inspiração racionalista.
Do caráter do governante, algo que entende com a
vontade, depende o bem-estar da coletividade, livre de
despotismos. Mais uma vez, relevante a ausência de
condicionamentos, de mediações sociais, políticas e
econômicas.
138
É o individualismo liberal que assim o enseja.
Ele se volta contra privilégios, isenções, que se
articulam com o arbítrio, constrangendo a todos im-
placavelmente.
Fala, por exemplo, no poder despótico dos ouvi-
dores que, motu proprio, mandavam carregar de ferros
até eclesiásticos.(89)
A síntese de sua doutrina acha-se em o “Credo
Político”. Então, toma por modelo o credo da Igreja
Católica.
Primeiro diz: “Creio na Santa Independência Po -
lít ica do Império do Brasil”.
Uma independência completa, sem união com
Portugal.
Guardava, desse modo, um sentido muito acen-
drado de autonomia nacional.
Em seguida, “Creio na comunicação e reunião das
Províncias”.
Compreende a necessidade de manter o país,
unido, ou mais claramente, com as suas províncias
unidas, formando um só corpo político. Assim,
demonstra invulgar intuição do prejuízo para a causa d a
Independência com o possível desligamento de alguma
ou de algumas delas.
Considerava o estado de coisas no Pará e no
Maranhão, a forte concentração de portugueses na
Bahia. A ocorrer tal separação, o partido português
encontraria reforços numa contra-revolução.
Vem agora:
139
“Creio na Remissão, ou alívio das nossas desgraças por
meio de uma Constituição liberal, como foi ajustado, na
qual parece de razão que não haja veto absoluto, nem a
iniciativa das Leis fora das Cortes ou Congresso
Soberano; nem duas Câmaras, nem o Comando das Armas
no nosso Imperador; e na qual deve haver Jurados no Civil
e Crime, e liberdade da imprensa, e a responsabilidade dos
ministros e de todos os Empregados públicos, além de
tudo mais segundo as Bases, que já foram juradas, e d e
que parece não nos devemos apartar”.(90)
Aí ele se bate por um Estado liberal sem a
interferência ou o privilegiamento de prerrogativas abu -
sivas e atribuídas ao Imperador, com a divisão ampla
dos poderes, com delimitações constitucionais e legais,
e sem órgão legislativo outro que a Assembléia.
Provavelmente, ele previa a vitaliciedade dos
membros do Senado, distorção grave de tudo que
pregava.
A segurança dos cidadãos estaria garantida pela
instituição do Júri, com julgamento democrático.
A oposição ao veto absoluto representava a
limitação suprema ao poder do Imperador. Era uma
precaução contra o autoritarismo, tão presente entre nós,
o qual confirmado pelo Poder Moderador, incluído na
Carta outorgada de 1824.
Prossegue o enunciado do “credo” assim:
“Creio na Ressurreição da liberdade da imprensa; na
destruição do Despotismo, seja ele qual for; na destruição
das devassas, terrores e espias pela vigilância do nosso
Congresso Soberano; e na destruição de tudo mais que nos
é danoso”.(91)
140
Fica vem claro aqui o privilegiamento da liber-
dade, como exercício soberano do povo.
A autoridade não deveria adotar práticas não
previstas em lei, das quais não pudesse prestar contas ao
Legislativo com o fito de conter os seus abusos.
Nessa doutrina, não se admite a supremacia, de
fato ou de direito, do poder Executivo.
Tal supremacia era o grande terror de Barata e de
todos os liberais puros. Pois sabiam que, através dela,
surgiria inevitavelmente outra forma de despotismo, e
exercido em pleno regime liberal-constitucional.
Era um esforço inaudito para debelar as arbi-
trariedades sem conta de presidentes de províncias, de
governadores de armas, de ouvidores e até de vigários,
cuja vítima a população, e numa escala hierárquica que
começava pelo Imperador, malgrado a organização
constitucional.
Pretendia Barata que se debelasse o acentuado
autoritarismo, fortemente apoiado na herança colonial,
mediante uma distribuição de poderes prevista por um
modelo constitucional-liberal que privilegiasse o Le-
gislativo, como representante da nação. Não aceitava a
teoria constitucional de Montesquieu, que atenuava dito
privilegiamento. A leitura do panfletário baiano dá a
impressão de que todo o mal reside no despotismo.
Desde que ele fosse erradicado, viável a “feli-
cidade dos povos”.
Por fim, o “credo” termina assim:
141
“Creio na vida eterna da Constituição e do patriotismo
Brasileiro, vigilância e bom governo do Imperador;
constância e valor das Províncias”.(92)
Aqui ele reitera o valor central da Constituição,
como órgão normativo máximo da nação, delimitador de
funções e de atribuições da autoridade, e salvaguarda
das liberdades. Também há o apelo a todos os bra -
sileiros, autoridades e povo, no sentido de defenderem e
de preservarem a Independência, ameaçada pela so -
brevivente resistência portuguesa.
Mas é patente a tese da autonomia das Províncias,
embora unidas. Cada uma delas, com os seus próprios
recursos e iniciativa, deveria por igual preservar o
legado da liberdade, combater o despotismo, seja qual
for a sua forma.
Nisso ele refletia a intensa concentração de inte-
resses na Província.
Pelo visto, Barata é um panfletário que denuncia
os abusos contra as liberdades, partidos do alto, os
privilégios remanescentes da velha ordem.
Ergue-se contra as manobras daqueles que
querem imping ir uma Constituição “menos liberal”, com
poderes exorbitantes ao Imperador,
“que tire a Iniciativa das Leis das Cortes Soberanas, que
conceda duas câmaras, sendo uma de Mandões ou
Fidalgos, uma Constituição finalmente armada de modo
que se dividam os Cidadãos em Classes, umas para
trabalhares e outras para desfrutarem, em fim uma
Constituição toda feita com desprezo das Bases que
142
juramos (exceto poucas) só afim de ficar toda recheada da
vil Carcundagem Aristocrática e despótica”.(93)
Nessa passagem, bastante elucidativa, colhe-se a
dimensão social da ideologia de Cipriano, sendo nítida a
influência de Rousseau, dos princípios democráticos,
que alcançavam o problema das desigualdades sociais.
Um ataque frontal ao elitismo burguês, preco-
nizado no modelo lockeano de Constituição. De acordo
com o qual caberiam só aos proprietários, aos que
detivessem rendas, os direitos eleitorais, a representação
da nação, a composição do seu corpo político.
Admirável a intuição de Cipriano. Parece que via
o futuro.
Tocou num ponto essencial: o do poder eco-
nômico-social que, a ser privilegiado pela organização
político-jurídica do país, acabaria sufocando os direitos
da esmagadora maioria do povo.
Tal começava com a criação de uma câmara de
nobres, cujos membros nomeados pelo Imperador, dis-
tanciada do povo, e constituindo fator ponderável de
despotismo.
Não suporta Cipriano a continuidade de uma
aristocracia que desfrute o trabalho das outras camadas
sociais. Configura-se aqui a opressão social, que se
articula com a opressão política.
Por aí se vê como estava ele tocado pelo ideário
social de Rousseau, pelo igualitarismo pregado pela
Revolução Francesa. Nesse aspecto, acentua-se a face
utópica da ideologia radical, lançando as bases de um
143
projeto de mudança social, segundo o modelo retórico e
impressionista da época, sem atentar para os obstáculos
concretos a superar.
No entanto, vale o núcleo do projeto, a cons-
ciência da opressão num sentido mais profundo que o
meramente político. Projeto esse que tende a se
esvaziar, dada a prioridade evidente do fator político,
então. Demais, não tendia a mobilização política, em-
preendida sob os auspícios do liberalismo radical numa
quadra revolucionária, a deixá-lo de lado, pelo simples
motivo de inúmeras personalidades da “aristocracia”
aderirem a essa mobilização?
Aí está contida a doutrina burguesa da Revolução
Francesa, centrada no combate e na destruição dos
privilégios da classe feudal, aristocrática.
A diferença estava em que essa classe aris -
tocrática Cipriano a via encarnada nos proprietários,
portugueses ou não, que porfiavam pela manutenção dos
privilégios que consolidaram na Colônia. Inclinados,
por isso, para a causa portuguesa. Ou para uma orga-
nização política que os resguardasse intactos.
E haveria de triunfar essa organização política,
com a conservação de uma estrutura de autoridade que
favorecia os interesses dos dominadores.
Trata-se de uma estrutura de autoridade assim
interpretada por Michel Debrun:
“Vejo aí dos aspectos. Em primeiro lugar um hiato muito
grande entre dominantes e dominados e, segundo, o fato
de que, devido ao caráter de extremo rebaixamento de
certos dominados (os escravos e suas seqüelas, como
144
agregados e moradores), sempre houve a possibilidade,
por parte dos dominantes, de utilizar e/ou de neutrali zar
todos os dominados”.(94)
Daí se acentuar mais uma vez, de forma
eloqüente, a visão utópica do panfletário baiano.
Na linguagem racionalista da ideologia radical do
período, lança, em termos retóricos, o desafio ao
fundamento da vida política, então muito forte, aquela
estrutura de autoridade, dado o grande estado de
marginalização da maior parte da população brasileira.
Cipriano queria a mudança dessa estrutura ou a
sua erradicação pela abertura democrática.
E não aparece o elemento utópico, sobretudo, no
distanciamento em que ficava tal erradicação, em
virtude da prévia opção política a fazer, a promover?
Ela se esboçaria como algo possível num futuro
não próximo.
Assim, a inviabilidade imediata do projeto é que
lhe confere a relevância utópica. Mas que deixava a
possibilidade de se ir estruturando de forma consciente e
funcional ao longo da história, com a transposição
progressiva dos obstáculos.
E sublinha o denodado político os males
relacionados com o predomínio do espírito e da prática
elitistas.
Mostra que “as nossas Cortes Soberanas” são
compostas quase unanimemente por pessoas da “aris -
tocracia”: desembargadores, corregedores, juízes de
fora, eclesiásticos, que provêm do antigo regime
145
colonial. Habituadas a concentrarem privilégios abu-
sivos e a exercerem opressão sobre a população.
A Independência não afetou substancialmente a
situação dessas pessoas. Continuam elas desempenhando
os antigos papéis, com a mesma mentalidade, com os
mesmos interesses de antes, granjeando riquezas e
poderio. E são elas que pretendem participar do
Gabinete, do Ministério. Com o poderio, com a
influência de que dispõem, fazem maquinações, intrigas,
toda sorte de insinuações, para atingirem os seus
objetivos. Entre eles, uma Constituição, “com desprezo
dos inalienáveis d ireitos do povo; Constituição fundada
sobre os princípios e dogmas do bárbaro Direito
Romano, e tenebrosas anti-sociais máximas de
Teologia”.(95)
Impressionante a maneira como Cipriano insere o
realismo no interior mesmo da utopia, num prenúncio
admirável da tese de Ernst Bloch, que, ao fundá-la na
consciência antecipante, a associa ao processo real, à
possibilidade concreta.(96)
Ele enceta a distensão do presente, visto como
inconcluso.
O realismo é imanente à colocação utópica de um
objetivo que se impõe como necessário.
Sabia que o problema crucial do seu tempo era
vencer o elitismo todo privilegiado e despótico.
Não se podia promover satisfatoriamente a
reformulação política de grande porte, consistente na
implantação do regime liberal-constitucional, sem a
146
quebra de uma estrutura de autoridade correlativa
daquele elitismo. Ou sem se prevenir contra ela.
Essa a grande verdade.
Assim, a conotação social emprestada por
Rousseau, vai servir de instrumento de conscientização
daquele problema, ainda que sob o discurso retórico, a
mit igar o alcance da observação.
E Cipriano vai até aos fundamentos teóricos da
postura absolutista-elitista, longe de ser vencida com a
Independência.
Aponta o princípio rígido e despótico da auto -
ridade no Direito Romano, o qual sancionado pela
Teologia medieval, atribuindo o carisma divino ao rei,
privilegiando os “direitos majestáticos” numa sociedade
tipicamente feudal.
Ao se pretender objetivar uma nova ordem polí-
tica, atenta à uma sociedade mais aberta e diferenciada,
impunha-se a superação daquele princípio.
O denodado panfletário queria uma ordem liberal
completa, com a participação de todas as camadas
sociais.
O racionalismo impediu que ligasse os condi-
cionamentos do país ao projeto político que afagava.
Foi exímio do pinçar as bases ideológicas do
surto autoritário do seu tempo, sendo importante a que
se relaciona com a religião, na verdade a base primeira,
inclusive de outras racionalizações. Ela, com efeito, a
grande justificadora da estrutura autoritária, dos in te-
resses da camada dominante.
147
Realisticamente percebia a articulação entre o
universo ideológico da elite autoritária e a elaboração de
uma carta política que fortalecesse abusivamente o
poder Executivo:
“Constituição em que capciosamente se restabeleça a mais
devastadora Aristocracia, ou Governo em que os Grandes
predominam e o Poder Executivo pode abusar de tudo,
ficando debaixo dos pés os nossos direitos sociais...”.(97)
Destarte, prolongava-se praticamente o estado
colonial, continuando o povo a suportar o jugo da
aristocracia incólume no país.
Clero e nobreza conservariam todos os privi-
légios. A tirania persistiria, não obstante a Constituição.
Aí está o motivo de insatisfação, de agitação nas
Províncias. No que acertou em cheio, pois se sabe que
os motins de 1823, a deflagração do movimento con-
federativo, tiveram na conspiração “aristocrática” com
vistas à uma Constituição que assegurasse a “estrutura
de autoridade”, notório incitamento.
As províncias resolveram então unirem-se,
segundo Cipriano, aumentando a solidariedade entre
elas, dando-lhes mais força, em torno de uma
Constituição “feita metódica e legalmente”.
Não admite que as províncias sejam manipuladas
pelo poder central através das manobras de José
Bonifácio que “com uma resma de papel embrulha toda s
as dezenove Províncias”.(98)
A tese de Rousseau sobressai aí, de acordo com a
qual o pacto político sucede ao pacto social. Ou melhor,
ao decidirem os homens constituir a sociedade política,
148
o fazem no pressuposto da pré-existência deles com
relação ao Estado.
As províncias, na doutrina de Cipriano, parecem
formar comunidades que abrigam os povos, os homens
de uma nação. Elas preexistem à qualquer tipo de
unificação que lhes imprime o estatuto político.
Há, assim, uma adaptação da doutrina de
Rousseau à circunstância brasileira. É que naquele
momento histórico a vida política, social e econômica
tinha como fulcro as províncias, frouxamente unidas por
um centro político, o Império nascente.
Daí a idéia de uma república federativa fundada
no modelo norte-americano, e que, melhormente for-
malizada por Caneca, ficaria como uma das teses
centrais do liberalismo radical.
Merece realce o argumento de Cipriano segundo o
qual a Constituição pode tornar-se um instrumento de
força, de opressão, desde que não siga o figurino
esboçado no “credo”.
Basta que ela deixe de incluir apenas um artigo
que discipline as liberdades ou a segurança dos
cidadãos. Estaria então moldada pelos déspotas, pela
“aristocracia”, segundo os seus interesses, ditada pelo
egoísmo de classe, esquecendo os interesses da nação,
esvaziada dos seus superiores objetivos. Nesse caso,
justificada a revolução. O revolucionarismo emerge
como meio de demolição dos privilégios de uma casta,
que tripudia sobre a vida da nação.
O racionalismo se apresenta aí, na transposição
simplista do quadro francês para o quadro brasileiro.
149
Ou, antes, um lance estratégico na demolição
panfletária que Cipriano empreende?
A Constituição, porque servindo de elo entre as
províncias, por estas representativamente elaborada, não
pode ultrapassar os limites da expressa vontade do povo.
Pois convencionou isto as províncias. Ela não deve ficar
à mercê da vontade do Imperador e do ministério,
deslocando-se do centro da vontade popular. A quebra
das promessas e dos juramentos pelo monarca autoriza o
povo a fazer o mesmo, não sendo mais obrigado a
obedecer-lhe, a não seguir as normas constitucionais
atinentes especialmente à matéria grave da Liberdade,
da Igualdade, da Segurança, da Independência.
Por conseguinte, fica sem valor o pacto social,
aquele que constitui o Império. As províncias, nesse
caso, retomam a plena autonomia e cada uma passa a se
reger por si própria. O povo não tem mais obrigações
para com o governo central, e reassume o direito de
formar novo pacto social. O que significa constituir o
governo que julgar conveniente.
Ora, isso induz ao direito de revolução, em se
sublevar o povo contra o Imperador perjuro, em resistir
às suas ordens. Com Cipriano, tem-se formalizada a tese
da revolução, entre outras que compõem o Liber alismo
Radical entre nós. Tudo deriva justamente da primazia
da liberdade, encarnada na vontade coletiva, sobre a
autoridade. E as sublevações que pululam na quadra
imediatamente posterior à Independência, encontram,
em grande parte, aí motivação. Motivação que integra
um complexo ideológico, resultado do advento de
150
fatores circunstanciais que determinam o inconformismo
político.
Mais uma vez alude à federação como a melhor
organização política, a preferida pelas províncias, o que
lhes convém. Se bem que não afaste a possibilidade de
um governo “Imperial liberal como se acha constituído;
ou de outro modo, se os tempos e as circunstâncias o
permitirem”.(99)
O importante é que se respeite a primazia dos
“povos”. Sofrendo a carta magna um processo de ela -
boração que deve começar na Assembléia Nacional.
Mas, antes de entrar em vigência, deve ser submetida ao
voto do povo nas câmaras, segundo o processo usado
pelos “Americanos do Norte e os Franceses em 1799”.
Tal se justifica pelo princípio de que a soberania res ide
no povo, “o único e legítimo Soberano Legislador”.
Evidencia-se, nesse passo, a influência da doutrina
democrática, a de que o povo deve ter uma participação
dominante e decisiva na feitura, na formalização das
leis. E em dois momentos: o primeiro, através de seus
delegados; o segundo, quando examina e julga o tra-
balho desses.
Assim, por tal conceito de representação. Os
delegados são submetidos a um julgamento constante e
não periódico através de eleições.
Nessa concepção, não se admitia que o Imperador
fizesse prevalecer a sua vontade em detrimento da do
povo. Ele seria um cidadão como outro qualquer, apenas
investido de uma função, que o tornaria um “cidadão
agraciado”, a desempenhá-la de acordo com a vontade
151
soberana da nação, expressa na Constitu ição e nas leis.
Como se tolerar, então, que ele atemorize a Assembléia
Nacional Constituinte e Legislativa, a representação
mais elevada do povo?
Como se concebe que um poder menor se levante
contra outro maior? É que o Imperador está subordinado
à Assembléia. É um governante como outro qualquer,
que deve acatar e seguir a expressa vontade da nação,
ali formalizada.
Um inominável atentado à vontade popular o
forçar aquela Assembléia com aparato militar, pro -
curando dobrá-la ao arbítrio do Imperador.(100)
É de se destacar por igual na obra panfletária de
Cipriano Barata a tônica que dá, em determinado mo -
mento, ao liberalismo econômico, o qual não separa do
liberalismo político.
Pleiteava a “liberdade das Indústrias de Corpo e
Espírito, para se gerarem Ciência e Riqueza, com toda
segurança individual”.
Na linha das reivindicações burguesas, batia -se
por uma diversificação econômica capaz de gerar o
progresso material.
Também o tema da edificação de “Indústrias do
Espírito” é praticamente novidade no ideário radical,
assinalando ele os benefícios trazidos pela livre criação
intelectual, cultural, com a abertura de novos hori-
zontes, de nova mentalidade. Porquanto se conhece o
quanto de bloqueio pesava sobre o ensino, sobre a
criatividade em todos os domínios da cultura, desde a
Colônia, asfixiando os vôos altaneiros do pensamento.
152
Ainda dominante a tradição religiosa de franco apoio à
tradição, aos poderes estabelecidos, com sérios pre-
juízos para a formação de uma consciência crítica no
país. Isso facilitava a ascendência das elites, da
“aristocracia”, em detrimento do povo.
Dilucidativo o posicionamento de Barata no to -
cante à nobreza surgida com a propriedade territorial,
ensejando uma forma de domínio cercado por pri-
vilégios consagrados pela legislação, notoriamente a
civil, e eternizando práticas evidentemente anti-sociais,
contrárias ao interesse coletivo.
Sem desenvolver o assunto, tecnicamente ligado
ao direito, antes fazendo uma alusão, revela, contudo,
fundado em Rousseau, sensibilidade para um problema
social que somente muito posteriormente viria a ser
objeto de discussão, de reformulações. Teve, pelo
menos, a intuição de um obstáculo sério à completa
erradicação da opressão.
Realmente, ele a via não apenas na dimensão
política, mas numa dimensão global. Eis aí a presença
de uma linha radicalizante do Enciclopedismo. Nela se
colhe a impossibilidade de uma vivencia plena da
liberdade sem a superação de entraves de natureza
social.
Exemplo disso é a proposição divulgada por
Diderot, Rousseau e outros, de conformidade com a qual
“a escravidão social conduz de imediato à escravidão
política”.(101)
Seguindo um procedimento peculiar ao Ilumi-
nismo, o fundador do liberalismo radical entre nós busca
153
também justificação para as suas teses na história greco -
romana.
No caso da Federação isso é bem pronunciado.
Ao defendê-la, além do exemplo dos países
ocidentais, invoca “a razão e a experiência da Grécia
antiga”.
Mas não fica no modelo estrangeiro. Descobre
por igual razões na peculiaridade da vida brasileira.
Ressalta a distância entre Pernambuco e o Rio de Ja-
neiro. A dificuldade nascida da organização adminis -
trativa pouco funcional e expedita. Ele é taxativo:
“O Brasil todo sabe, e eu já o tenho dito muitas vezes, que
o governo das nossas Províncias deve ser frouxo com a
Capital do Rio, atentas as circunstâncias das distâncias, e
de mil dificuldades, que se opõem a qualquer outra forma
de governo; cada Província precisa de fazer suas Leis
particulares, seus arranjos em separado, o que só deve ser
organizado dentro delas pelos seus naturais e seus
governos privativos; havendo em separado Leis gerais que
façam a união Imperial, e ex equi a Federação”.(102)
Apontava obstáculos para a implantação do
projeto unitário os quais de fato existiam. Vêem de
longe. Desde o regime das Capitanias Hereditárias, que
desenvolveram formas de vida econômica, social e
política, caracteristicamente locais, num autarquismo
bastante realçado pelos historiadores. E isso ficou,
impregnando as províncias, estruturadas nos domínios
das Capitanias, do localismo, quase não sentindo o peso
de uma administração central.
154
E tal a exigência natural do federalismo, no
sentido do respeito à uma situação de fato, tornada
reivindicação constante no pensamento político e
freqüente objeto de iniciativas parlamentares.
Em 1870, o manifesto republicano o tomaria
como uma das suas principais teses. Ele exaltaria as
divisões naturais, estabelecidas pela fisiografia do país.
Matizes da topografia, a variedade de climas, com
produções diversificadas, as cordilheiras e as águas,
falavam em favor de uma exigência, a “de modelar a
administração e o governo local acompanhando e
respeitando as próprias divisões criadas pela natureza
física e impostas pela imensa superfície do nosso
território”.(103)
E tal haveria naturalmente de se oficializar com a
Proclamação da República.
Assim, Cipriano Barata levantava a bandeira do
Federalismo com muito realismo e de forma pioneira, e
inspirado não somente no modelo americano ou no de
países da Antigüidade, mas também na própria realidade
brasileira.
Na época em que viveu, isso se fazia sentir de
modo impositivo. Se pesou mais a idéia unitária é que
assim se atendia aos interesses da estrutura de
autoridade emergente com o Império, com a fundação do
Estado nacional brasileiro. Faltou um modelo político
capaz de compatibilizar os objetivos da organização
imperial e os da autonomia provincial.
E o liberalismo radical não preconizava uma
autonomia absoluta das províncias, a ponto de se tornar
155
impraticável um governo central. Nota-se, pela retro-
citação do panfletário em exame, que essa a verdadeira
versão.
Aí se classificam duas ordens de leis: uma
específica das províncias, da competência delas
mesmas; e outra atinente à união de todas elas, na
composição do Império.
Faltou às províncias, dentro do arcabouço polít ico
imperial, um mecanismo de poder que lograsse influir
decisivamente na elite dominante. Tal ficou claro no
momento em que essa elite consegue a adesão do jovem
Imperador à mensagem de autoridade, de ordem, a qual
vedava de fato a sensibilidade às aspirações provinciais.
Observe-se, pois, que o Federalismo se situava no
cerne do projeto radical de diluição ou de amor te-
cimento do autoritarismo, quando também prevenido
contra a supremacia das oligarquias locais.
Todavia, tão marcante o autoritarismo que, com a
própria República federativa, ele se robusteceria nas
oligarquias estaduais sem se esvaziar no governo
central. Isto é: ele correria solto no Federalismo.
Justamente porque persistiu a estrutura de auto -
ridade condenada por Cipriano Barata.
O rompimento dessa estrutura de autoridade,
ainda hoje, se faria conseqüência do processo de
desenvolvimento, com a diversificação racional dos
grupos sociais, mais autônomos e conscientes, excluindo
privilegiamento abusivo de qualquer deles.
Nessas condições, admirável se apresenta o
projeto político utópico do ideólogo radical.
156
Mobilizando os valores avançados do seu tempo,
surgia na arena política como um antecipador do que
melhor convinha ao país. Demorava-se na dimensão do
futuro-presente. Um profeta. Um precursor.
NOTAS
(58) O Doutor Barata. Imprensa Oficial do Estado, Bahia, 1938,
p. 1-2.
(59) Ibidem, p. 2.
(60) Ibidem, p. 2-3.
(61) Ibidem, p. 3.
(62) Ibidem, p. 13.
(63) Ibidem, p. 5.
(64) Ibidem, p. 17.
(65) Ibidem, p. 18-23.
(66) CARVALHO, Alfredo de. “Os Motins de Fevereiro de
1823”. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano, Vol. X, p. 14-15.
(67) CASCUDO, Luís da Câmara, “O Doutor Barata”. Bahia,
Imprensa Oficial do Estado. 1938. p. 28-29.
(68) Biblioteca Nacional. Seção de Manuscritos.
(69) “Frei Caneca: A Luz Gloriosa do Martírio”. In: Corpo do
Tempo. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1976, p. 129.
(70) Doc. cit.
157
(71) CUNHA, Pedro Octávio Carneiro da. In: História Geral da
Civilização Brasileira, Tomo II. “O Brasil Monárquico”, 1º Vol.,
p. 177. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970.
(72) Ibidem.
(73) Ibidem.
(74) Ibidem.
(75) Ibidem.
(76) Ibidem.
(77) Ibidem.
(78) Ibidem.
(79) “A Experiência Republicana”, 1831-1840. In: História
Geral da Civilização Brasileira, II. O Brasil Monárquico. 2. São
Paulo, Difusão Européia do Livro, 1967, p. 10.
(80) “Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco”, 26 de
abril de 1823.
(81) Ibidem.
(82) Suplemento à Sentinela da Liberdade, 3 de maio de 1823.
(83) Sentinela da Liberdade, 10 de maio de 1823.
(84) L’Ideologie libérale. Paris, Anthropos, 1970. p. 110.
(85) Sentinela da Liberdade. 10 de maio de 1823.
(86) Ibidem.
(87) Ibidem.
(88) Sentinela da Liberdade, 14 de maio de 1823.
158
(89) Ibidem.
(90) Sentinela da Liberdade, 17 de maio de 1823.
(91) Ibidem.
(92) Ibidem.
(93) Sentinela da Liberdade. 14 de junho de 1823.
(94) “As duas faces da ‘Conciliação’ ”, entrevista. In: Caderno
especial do Jornal do Brasil, 10 de outubro de 1976.
(95) Sentinela da Liberdade, 14 de junho de 1823.
(96) Le Príncipe Espérance, I. Paris, Éditions Gallimard, 1976,
p. 239-241.
(97) Sentinela da Liberdade, 14 de junho de 1823.
(98) Ibidem.
(99) Sentinela da Liberdade, 8 de outubro de 1823.
(100) Sentinela da Liberdade, 8 de outubro de 1823.
(101) VENTURI, Franco. Utopia and Reform in the Enligh-
tenment. Cambridge, Cambridge University Press, 1971, p. 80.
(102) Sentinela da Liberdade, 8 de outubro de 1823.
(103) FERREIRA, Waldemar. História do Direito Brasileiro. Rio,
Freitas Bastos, 1951, v. 1, p. 152.
159
3. A OBRA DOUTRINÁRIA
DE FREI CANECA
Formulação ideológica em níveis sobrepostos.
O encontro da teoria com a praxis
Constrói Frei Caneca um pensamento deveras
plantado na circunstância, e com vistas à sua modi-
ficação, utilizando, é verdade, materiais doutrinários
importados, mas, no esforço de interpretá-la, de sugerir-
lhe guias valorativos, acolhe dela Projeções, produzindo
um sistema ideológico autônomo.
Daí resulta um discurso de níveis sobrepostos. No
sentido de um conglomerado de perfis doutrinários, ou
de influências de autores, como os do Iluminismo, com
os seus diversos matizes, e os do Liberalismo pro -
priamente dito, entre fins do século XVIII e as duas
primeiras décadas do século XIX, em suas várias rami-
ficações, o Jusnaturalismo, maxime o de Pufendorf, o
Constitucionalismo de Montesquieu, de Locke, o Fede -
ralismo americano.
Tal a parte mais saliente, acrescentando-se ainda
o procedimento iluminista de apelo ao humanismo
greco-romano, à Antigüidade clássica.
O que suscita um nível teórico e estratégico com
ampla autonomia de manipulação, principalmente no
160
que diz respeito à uma concepção de história e à uma
técnica de justificação ética.
Mas não se deve omitir uma postura pro fético-
crítica, fundada num conceito peculiar de Cristianismo ,
que nasce com a Reforma e se desenvolve no
Liberalismo.
Por fim, cabe enfatizar um patamar ideológico
vigoroso ainda do período e originário da Retórica, e
responsável pelo arbítrio e pelo autoritarismo de juízos.
E até mais, com considerável aspecto da postura
ideológica caneciana.
O desempenho panfletário do carmelita em exa-
me, em que mais se articulam os ditos níveis, contém,
de modo preponderante, o grande influxo da circuns -
tância. Quando o teor ideológico mais ganha identidade
própria.
Está-se diante de um pensamento caracteristica-
mente circunstancial.
E com um significado todo especial.
Aquele que se elabora em função do aconte-
cimento, da conjuntura.
Toda a coloração doutrinária exposta, se não é
algo diretamente condicionado pelo evento ou pela
trama factual, com vistas à racionalização em termos
valorativos de um momento histórico, de suas ten-
dências, de seus grandes objetivos, representa, segundo
as projeções do espírito liberal de então, uma su-
perposição do dado valorativo, do juízo político, da
proposição filosófica, da expressão retórica, da narrativa
histórica, sobre o acontecimento ou sobre a conjuntura.
161
Tal como se fazia na objetivação racionalista do
Liberalismo, com os complementos derivados da origi-
nalidade do autor. De uma ou de outra forma, não perde
a nota de pensamento ideológico. Em função mesmo do
engajamento político na circunstância.
Importante o destaque que se deve dar, malgrado
a superposição referida, ao realismo que daí provém, à
uma mais aguda observação, à melhor possibilidade de
alcançar a verdade ínsita no processo histórico.
Assim, passava a ocorrer maior aproximação
entre as contingências que se desenhavam na vida
política, na esfera sócio-econômica, e as expressões, os
significados traduzidos na linguagem.
Por isso, tem-se em Caneca um pensador que
prega um liberalismo mais coerente com a realidade
brasileira.
Afirma-o com agudeza Silvio Romero.
E atualmente José Honório Rodrigues, ao se
referir ao seu “nacionalismo caboclo”.(105)
Valorizou a história do Brasil. Nela, freqüen-
temente, haurindo justificativas para as suas teses.
Exemplo: sustenta que os brasileiros, ao longo da
evolução histórica do país, formaram “um espírito de
independência, de insubordinação e de liberdade
extrema”.(106)
Como bom iluminista, recorre à história,
juntamente com a autoridade e com a razão, como fonte
demonstrativa de suas argumentações. Tal se registra
claramente ao mostrar “que a Pátria de Direito é
preferível à Pátria de lugar”.(107)
162
Ele mesmo foi historiador, deixando o ‘Catálogo
dos Bispos de Pernambuco e dos Governadores que
existiram no mesmo tempo”.
Além dessa obra, refere o Prof. José Antônio
Gonsalves de Mello à outra. Seria a “História da
Província de Pernambuco”, perdida, comprometida
politicamente.(108)
Não há como evitar o registro de que a sua
pregação liberal ao calor da refrega política ativíssima
que assinalava o momento histórico, despertava-lhe um
sentido de temporalidade que punha o presente em
tensão entre o passado e o futuro.
Tem da história uma perspectiva de engajamento.
Está constantemente a racionalizar “situações”,
tomando partido e influindo com a sua elaboração
doutrinária na marcha dos acontecimentos.
Isso daria um enfoque ideológico a grande parte
de sua produção intelectual, notoriamente a panfletária.
A conotação ideológica, a reiterada fidelidade aos
temas liberais no púlpito, nos escritos, nas escaramuças
políticas, expressam um sentido particular da obra de
Frei Caneca. Ele desautoriza a crítica de imparcial ao
heróico frade porventura atribuída, segundo a concepção
clássica. Não “construiu” uma filosofia nos moldes tra-
dicionais, descompromissada do trabalho de modifi-
cação da realidade concreta, até dela afastada. A crítica
que exerce sobre o momento político é engajada, como
imperativo inarredável de então. Porque, mesmo as que
se pretendem “neutras” e nem de longe envolvidas
diretamente pelos eventos, não guardam isenção com-
163
pleta. No fundo, externam uma convicção ideológica.
Exemplo: a obra de Silvestre Pinheiro Ferreira, o teórico
do liberalismo centrista entre nós.
Caneca faz ideologia. Mas uma ideologia sui
generis. A do participante dos acontecimentos, dos
episódios marcantes do período em que viveu. Assume o
perfil ideológico do liberalismo radical a partir de
Cipriano Barata, imprimindo-lhe fisionomia nova, mercê
de teses originais, de um embasamento filosófico,
epistemológico, de conformação particular.
A linguagem virulenta do panfletário oposi-
cionista, que se ergue de imediato e prontamente contra
decisões ainda quentes do governo, sobrepõe outra
linguagem: a do erudito versado no humanismo clássico,
na doutrina canônica, no iluminismo avançado, na
moderação do constitucionalismo de Montesquieu, na
teoria de Locke, na lição dos federalistas americanos. E
como constituindo uma exposição à parte. Nesse
segmento, pode-se detectar algo mais sofisticado, mais
refinado. Como se tratasse de uma dedução estritamente
teórica, “descompromissada”, nela se verificando o
encadeamento das teses doutrinárias e das ilustrações
humanísticas apanhadas nos clássicos.
Nesse ponto, nota-se a filiação filosófico-ideo-
lógica, a concepção do mundo, os valores concernentes
a uma Antropologia típica do Iluminismo.
Concerne a uma espécie de introdução ao que se
segue, a descida vertical nos acontecimentos, na con-
juntura política, desferindo os seus ataques contra o que
julga despótico, opressivo, anti-constitucional etc.
164
É preciso convir que essa justaposição de partes
distintas na seqüência do discurso caneciano, não afeta
propriamente a unidade do pensamento.
Apenas a linguagem sofre uma inflexão,
procurando colher o circunstancial. E de um modo que
atinja o seu objetivo primacial: não fazer doutrina pela
doutrina, não comentar ou reconstituir aspectos
relevantes ou a visão global de sistemas, de tendências
filosóficas, de ideologias.
Nisso, ele parece seguir um procedimento típico
do período, qualquer que seja a ideologia adotada.
Por ora, basta atentar para a relevância doutri-
nária que cercava as linguagens políticas de então: a
panfletária, a retórica, a parlamentar. Tal comprova que
a linguagem circunstancial alcançava a generalidade dos
homens públicos, dos periodistas de um extenso período
da história brasileira. Dos publicistas mesmo.
Não há dúvida que Caneca aprofundou essa
metodologia.
Ativou-a a ponto de tirar da circunstância, do
acontecimento, lições morais e guias de ação, perfis de
elaboração doutrinária autônoma
Haja visto a teorização que faz em torno do Poder
Moderador. Na doutrina deste insere muito das nossas
realidades, correlacionando-as com as raízes doutri-
nárias do processo político que vinha da Colônia. De
sorte que a doutrina do Poder Moderador se adapta à
circunstância brasileira.
Quer dizer: anota tal excrescência constitucional
no corpo da fundação do Estado nacional entre nós
165
dentro de uma obra de recondicionamento político que
macula o liberalismo a serviço da tradicional estrutura
de autoridade.
Voto de Frei Caneca, apresentado por escrito à
Câmara municipal do Recife, expressa-o muito bem:
“O poder moderador de nossa invenção maquiavélica é a
chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote
mais forte da liberdade dos povos. Por ele o Imperador
pode dissolver a câmara dos deputados que é a
representante do povo, ficando sempre mo gozo dos seus
direitos o senado, que é a representante dos apaniguados
do Imperador. Esta monstruosa desigualdade das duas
câmaras, além de se opor de frente ao sistema, que se deve
chegar o mais possível a igualdade civil, dá ao Imperador,
que já tem de sua parte o senado, o poder de mudar a seu
bel prazer os deputados, que ele entender, que se opõem
aos seus interesses pessoais, ficando o povo indefeso nos
atentados do imperador contra seus direitos, e realmente
escravo, debaixo porém das formas da lei, que é o cúmulo
da desgraça...”.(109)
Como se vê, vincula o Poder Moderador ao cerne
mesmo da vida política do país. E daí extrai linhas de
ação políticas ao longo da sua obra.
Exemplo de que o produto doutrinário estrangeiro
sofre recondicionamento ao aqui chegar, mercê do
imperativo de harmonizá-lo com a realidade nacional.
É que a teoria do Poder Moderador se inclui no
sistema de direito constitucional de Benjamin Constant,
publicista francês. E no dito processo de recondicio-
namento parece que Caneca vai mais longe do que
outros ideólogos do seu tempo.
166
Porque do próprio acontecimento ele deduz a
doutrina, sem perder de vista a radicalidade da fonte
importada.
Quer dizer: exprobra os desvios do modelo cons-
titucional, o malferimento das liberdades coletivas, o
descumprimento da norma legal, os surtos de auto -
ritarismo ocorrentes no momento, conservando os cri-
térios ideológicos, os grandes perfis conceituais do
Iluminismo e do Liberalismo.
Mas a fidelidade às origens doutrinárias impul-
siona-lhe a acrescentar algo mais no quadro do seu
pensamento.
Trata-se de um plus que se produz ao encontro da
filosofia esposada com a análise conjuntural.
No final, obtém-se uma unidade ideológica que
acolhe aquela superposição de segmentos – o da ideo-
logia pura e o da racionalização do episódio – apre-
sentando-se original, enraizada na circunstância, desta
ganhando novo matiz.
E, provavelmente, a radicalidade ideológica induz
a tanto. Justamente porque ela encerra grandes motiva -
ções para o despertar de uma consciência crítica.
Não evidentemente no mesmo nível da de hoje.
Mas, sem dúvida, ela é plena de sugestões de devas-
samento, de prospecção da realidade circunstancial.
Apenas ainda não se capacita, em virtude da
indigência do instrumental metodológico e da ausência de
uma teorização forrada em bases epistemológicas seguras,
a deter-se analiticamente na consideração dos movimentos
sócio-econômicos e políticos de caráter estrutural.
167
O Iluminismo que, nesse ponto, fornecia à Caneca
os recursos epistemológicos e conceituais, não o
permitia, a despeito de ser o instrumento analítico que
mais longe ia nesse trabalho.
A radicalidade iluminista é, apesar de tudo, um
poderoso estímulo de elaboração crítica da realidade.
Assim, se explicita a qualidade crítica super ior do
liberalismo radical, face ao liberalismo centrista.
É que, diante do cuidado de fortalecer a auto -
ridade, de aparelhar o Estado com instrumentos que lhe
ensejasse a melhor operacionalidade de suas ins -
tituições, de seus objetivos, tendia o poder central a
esvaziar a força crítica do liberalismo. Principalmente
quando, no caso brasileiro, confluía com a corrente do
tradicionalismo político, do autoritarismo.
A tradição absolutista na metrópole e na Colônia,
presente também em vertentes ideológicas propul-
sionadoras da ação violenta, como nos episódios da
reação miguelista em Portugal e das revoluções
abrilistas e pró-restauração de Pedro I no Brasil, todos
eles instigados pelo colunismo, constituía forte entrave,
sólida barreira, ao desenvolto desempenho libertário.
Para o que contribuía a inexistência de classes, gerando
o monopólio dos papéis político-sociais e econômicos
pelos grandes proprietários.
A radicalidade, que está na base do pensamento
caneciano, resulta da transposição do limitado e fechado
enfoque autoritário, alcançando o âmago da circuns-
tância. Não importa que ela fuja ao espírito de sistema.
O que importa é extrair do julgamento caneciano sobre
168
instituições, episódios e comportamento de camadas
sociais, de líderes políticos, um discurso coerente que,
na sua fluência, edifica critérios de orientação, de
filosofia política, de prática social, de política religiosa,
os quais, na verdade, constituem um pensamento.
Nem se diga que, por não ter levado às últimas
conseqüências as vigas mestras do seu discurso, omitiu-
se ou deixou de dar uma visão racional de fundas
conotações axiológicas, morais, do quadro político e,
mais do que isso, do quadro conjuntural de um período
agitado e turbulento da vida nacional.
A circunstancialidade dos seus escritos, produ-
zindo aquela coloração ideológica própria e autônoma,
tornou viáveis, através de uma postura lógico -
epistemológica determinada, uma prospectiva, rica e
significativa, uma amplitude tendencial de suas co -
locações, uma análise valorativa dos fa tos e das
conjunturas, que têm muito de teorização específica da
Filosofia da História.
Não o acuse também de omisso na formulação de
conceitos-chaves. O que se faria no seio do “Ecletismo
Mitigado” de Silvestre Pinheiro Ferreira.
Tal, por exemplo, o conceito de pessoa humana.
Não pretendeu, como afirmado antes, o frade
carmelita fazer uma reflexão filosófica na linha do
aprofundamento sistemático de conceitos, acabando num
“modelo” cujas partes se articulam entre si por força do
rigor lógico-epistemológico, pelo propósito de desen-
volver exaustivamente proposições em função do
modelo.
169
O tipo de reflexão desenvolvido por Caneca é
outro. Ele escreve ao sabor das circunstâncias, dos
acontecimentos políticos, das crises provinciais e
nacionais. Volta-se para a evolução conjuntural de
Pernambuco. Daí a variedade dos seus escritos, no
gênero e na temática.
São sermões, o tratado de retórica, o periodismo,
o relato de expedições militares, a descrição histórica
etc. Tudo sem o encaixe harmonioso na arquitetura do
conjunto.
Quer atender a imperativos do momento em que
escreve. Quase se poderia dizer que Caneca é o pe-
riodista por excelência. Aquele que está sempre
descrevendo fatos emergentes, conjunturais se armando,
eventos marcantes do cotidiano. E o faz no estilo da
Imprensa do tempo, de mistura com a elaboração
doutrinária, com juízos de valor que se articulam
coerentemente entre si, formando uma linha de
pensamento.
As considerações expendidas até agora autorizam
a afirmação de que há na obra caneciana algo de muito
original.
E concerne à correlação que estabeleceu entre
teoria e praxis.
Porquanto o caráter circunstancial dessa obra,
levando-a a privilegiar o acontecimento, lhe atribui um
sentido de praxis inerente, senão ao conhecimento, pelo
menos aos valores liberais, aos do humanismo
iluminista, suscitando a conseqüente aplicação prática
deles.
170
E isso tudo no meio de intenso teor de mo -
ralidade.
Lógico que é uma praxis que não alcança a
plenitude do real, dadas as imitações do conhecimento
da sociedade global e a não constituição epistemológica
das ciências humanas.
Todavia, dentro do quadro de pensamento, no
qual se destaca a superposição, com o desnível da
doutrina e do evento, em função de acentuado volun-
tarismo se desenha uma praxis específica. Esta vai
assumindo diferentes planos, ora de maior, ora de menor
densidade, segundo o estilo que adota: o polêmico -
contestatário, o retórico, o do publicista etc.
Em todos eles fica claro o alcance prático.
O projeto político que propõe ao Brasil é de-
monstração objetiva de sua concepção de praxis.
Aí está uma Constituição que oferece um novo
aparelho político-institucional.
Trata-se de um documento que, não obstante
proposto por ele, foi redigido por “uma sociedade de
homens de letras”.(110)
É um “pacto-social” que redimensiona o
problema da autoridade, contendo salvaguardas contra a
opressão.
Por aí se vê o cuidado de se preservar as
liberdades, os “direitos naturais, políticos e civis”, numa
definição manifesta de que o grande objetivo político é
o aniquilamento do autoritarismo. Assim, se patenteia a
visão objetiva de uma realidade sócio-política que deve
ser vencida. E através do remédio legal.
171
Isso vem denunciar justamente um tipo de
relacionamento teoria-praxis, haurido nas fontes
iluministas.
Os enciclopedistas franceses, numa linha dou-
trinária que remonta a Newton, infensa em tudo à
construção de “sistemas”, explicam já a tônica sobre o
circunstancial, sobre o real.
Não acentuam mais a dedução a partir de uma
certeza fundamental, na verdade uma hipótese abstra ta
que desceria até o âmago do Ser, possibilitando a
integração dos elementos mediatizados por ambos os
momentos.
Surge agora outra concepção de filosofia, mais
dinâmica, mais abrangente do real. E justamente
tomando por modelo a ciência natural.
Então, vem a campo o problema da instauração de
novo método. Acolhe-se aquele estipulado nas regulae
philosophanti de Newton.
E a nova postura metodológica opera uma
verdadeira revolução no campo do pensamento.
Não mais se começa sublinhando conceitos
fundamentais, premissas absolutas, princípios axiomá-
ticos, para, por intermédio da dedução , chegar ao
factual, ao particular. Inverte-se a orientação.
Qual o resultado desse procedimento?
Perdem os princípios elevada dose de abstração,
porquanto eles são assentados agora após a apreciação
detida dos fenômenos, dos dados, a conseqüência destes.
Dessa forma, supera Newton a oposição entre
“experiência” e “pensamento”. Não se pode mais falar
172
numa distinção taxativa, numa separação absoluta entre
o “pensamento puro” e o “fático puro”.
Essa atitude metodológica logo é abrigada por
enciclopedistas como D’Alembert, Condillac, Voltaire,
Condorcet etc.
Pretende-se a conciliação fecunda entre a
positividade e a racionalidade.
A “razão’ não se a apreende como um princípio,
uma norma, proposta anteriormente aos fenômenos,
aprioristicamente posta. Há estreita vinculação entre
ambas. E no terreno da própria imanência. É evidente a
presença do fantasma da abstração alienada. Quer-se
extrair a lógica dos próprios fatos. Depois da análise
detida e demorada dos fenômenos é que o investigador
reúne condições para, dirigido pelo movimento
fenomênico, estabelecer a lógica precisa. E mais do que
isso: a verdade.
Ora, tal implica numa reformulação do rela -
cionamento entre sujeito e objeto. Conseqüentemente
entre teoria e praxis.
Ernst Cassirer ensina a respeito:
“La nueva lógica que se busca, y con respecto a la cual se
está convencido que se encontrará siempre en el camino
del saber, no es la lógica de los escolásticos ni la del
concepto matemático puro, sino mejor la ‘logica de los
hechos’. El espiritu tiene que abandonarse a la plenitud de
los fenómenos y regularse incesantemente por ellos,
porque debe ser seguro y, lejos de perderse en aquella
plenitud, encontrar el ella su propria verdad y medida. De
este modo se alcanza la auténtica correlación entre
‘sujeto’ y ‘objeto’, de ‘verdad’ y de ‘realidad’ y se
173
establecer entre ellos la forma de adecuatión de
correspondencia, que es condición de todo conocimiento
cientifico”.(111)
Com efeito, daí parte uma reformulação completa
da filosofia, agora com novo enfoque lógico-
epistemológico.
E o argumento central desse enfoque é a cons-
trução do conceito de razão. É um conceito operacional.
Resulta de um fazer. Não é um conceito de ser.(112)
Reorientado o relacionamento sujeito-objeto,
também o será o relacionamento teoria-praxis.
Toda a filosofia do Iluminismo passa por essa
revolução epistemológica.
Mas não se conclua daí que tenham os pensadores
iluministas chegado à exaustão total do problema. Muito
ainda se teria que fazer para se atingir a concepção
contemporânea de praxis. O que só se dará com o
advento da dialética hegeliana. Se bem que Kant
houvera lançado os fundamentos de uma dialética que
seria desenvolvida por Hegel. Pois justamente Kant
estabelecera os conceitos básicos da teoria crítica do
conhecimento de modo rigoroso. E a partir do
acabamento da dedução transcendental no “eu penso”,
campo da unidade sintético-originária da apercepção.
Mas a influência do modelo newtoniano afetará
substancialmente a reflexão do pensador de Konisberg,
como a dos outros pensadores do período iluminista.
Isso porque, malgrado o pensar sobre a história
entre vários deles, colocando-a como eixo das inves-
174
tigações sobre a sociedade, o direito, o homem, o
Estado, advêm as conseqüências prejudiciais daquele
método analítico-sintético.
A concepção de história aí subjacente é deveras
incompleta.
Faltou aos pensadores do período a consciência
da necessidade de uma construção epistemológica a
partir da realidade específica da história, da realidade
humana. Obra que caberia a Dilthey, neokantiano, fazer,
seguindo a inspiração do método crítico de Kant. Pois
só aí seria elidida uma separação injustificável entre o
mundo inteligível e o domínio do sensível.
Veja-se i impasse a que chegou a filosofia da
história de Kant por ter reproduzido aquela separação.
Ela incide na pura especulação, a despeito do que
inovou na ordem do relacionamento teoria-praxis. E tal
ocorre no próprio campo de Filosofia da História, que
conservando embora certo teor de especulação, limitava
os seus altos vôos, renunciando a atingir o sentido
último da evolução, como expressa bem Raymond
Aron.(113)
A filosofia kantiana da história se estrutura no
ensaio Idéia de uma História Universal de um ponto de
vista cosmopolita, vinda a lume em 1784.(114)
Distingue, de início, o filósofo alemão, entre
manifestações fenomenais, nas quais se inserem os
próprios atos humanos compartilhando da natureza, e
leis naturais de caráter universal.
É uma distinção que, de logo, assume uma
importância fundamental.
175
Trata-se de uma dedução que promoveu ao longo
da Crítica da Razão Pura, ao separar o mundo inteligível
do mundo sensível.
Clara a transposição para o plano da Crítica da
Razão Prática, porque ela já entende com o conceito de
liberdade da vontade.
Está-se diante de um princípio a partir do qual se
desenrola a explicação kantiana da história.
Ele permite uma tomada de posição peremptória a
respeito dos eventos, considerados isoladamente, na sua
singularidade.
Compõem tais eventos dados sensíveis que, nessa
qualidade, não são passíveis de interesse pelo filósofo
da História.
Apenas mediante aquelas leis universais, autên-
ticas formas, alcançam dignidade epistemológica.
Assim, o conteúdo da História não merece, no
plano em questão, a atenção do investigador.
Acentue-se, porém, que as ditas leis universais
resultam da descoberta de um curso regular das mani-
festações fenomenais.
Como se faz essa descoberta?
Através daquilo que, mais tarde, Hegel chamaria
de astúcia da razão. Ou através do “jogo da liberdade
da vontade humana na generalidade”.(115)
Não importa o desconhecimento das causas dos
fatos.
O importante, realmente, é a constatação de uma
constância no desenrolar dos eventos, que não provém
da realidade externa, mas de disposições originárias dos
176
indivíduos. Constância que se esboça no desenvol-
vimento contínuo dessas disposições.
Aqui Kant já deixa pressupor uma prevalência das
atitudes e dos atos individuais sobre a realidade
fenomênica.
Ou, em outras palavras, a ascendência do eu, das
suas iniciativas de fundo ético, sobre o plano da história
objetiva.
Duas inferências podem ser tiradas dessa
colocação.
A primeira: o relevo que toma o dado estatístico,
como configurador de leis naturais universais.
Cita Kant o exemplo dos casamentos, os quais,
em qualquer país, submetem-se a uma certa causalidade,
impossível de determinar nas minúcias, mas possi-
bilitando, no conjunto, leis naturais, uma regularidade
de manifestações.
Em segundo lugar, uma reformulação da relação
teoria-praxis.
Nesse ponto, merece destaque o contributo
valioso de Francisco Javier Herrero.
Considerando que “la práctica sólo tiene sentido,
valor y realidad efectiva en la medida en que surge del
concepto de deber”, mostra que em Kant “este deber
contiene los principios que possibilitan y prescriben la
praxis”.(116)
Tais princípios são as mesmas disposições origi-
nárias. O homem é sujeito da lei moral. Nisso ele guarda
a sua autonomia. Orienta-o o dever, por essência tenden-
cial, concitando-o a encarnar na História a razão, o Ser.
177
Por esse ângulo Kant abre novas possibilidades
para a praxis.
Como sumamente esclarecedora a palavra de
Herrero, convém retomá-la.
Na verdade, o filósofo de Konisberg renovou o
significado dos conceitos de teoria e de praxis.
Agora, o caso não é apontar uma teoria pre-
cedente à prática. Nem isso se põe no contexto crítico
de um circunstanciamento histórico, do qual trans -
pareceriam motivos para uma nova fase da prática.
Também não se trata de incorporar os resultados da
ciência à ética. Há necessariamente que correlacionar a
praxis do homem, posta em dimensão completa, a um
fundamento: o da razão prática, vista como liberdade
agente. Compartilha a praxis, mesmo da teoria “en
cuanto ésta es inherente a la consciencia misma e acción
moral, en cuanto es um deber realizarla inte -
gramente”.(117)
Percebe-se, contudo, que o dever se mant ém
condicionado à liberdade da vontade. E esta, eviden-
temente, não se orienta sempre na direção do dever. Os
homens agem, na sua maioria, desatentos ao imperativo
categórico. E há sempre oposição entre eles no tocante
às intenções. Pois cada um cumpre a sua separadamente,
não se preocupando com as dos demais. E até povos
inteiros procedem assim.
No entanto, existe um desígnio oculto da natu-
reza, que leva todas essas ações, muitas vezes con-
traditórias, a, inconscientemente, se harmonizarem no
sentido de um propósito. É que Kant situa os homens
178
num plano de ação intermediário, numa posição entre os
animais e os “cidadãos racionais do mundo” que seguem
um projeto determinado.
Quer dizer: agem como obedecendo aos seus
interesses, ambições etc., no meio dos quais a
racionalidade pouco aparece.
Assim, não reúne o filósofo condições para
presumir um particular objetivo racional nos homens.
Resta-lhe somente ensaiar captar um desígnio da
natureza no transcorrer absurdo das coisas humanas, a
partir do qual se faça viável uma história que se curva a
um determinado plano da natureza, a respeito de
criaturas que agem sem plano próprio.(118)
Depreende-se daí a não valorização devida do
indivíduo, prosseguindo a linha da filosofia do
Iluminismo.
Sustenta Emilio Estiú que Kant não atribui vali-
dez às diferenças existentes entre os indivíduos, mas
sim ao fator racional que as pervade e as torna
homogêneas.
Em atinência com a concepção que tem do rela-
cionamento teoria-praxis, não vê a humanidade como
um todo dos homens, como um conjunto simples de
pessoas habitando os diversos países.
Isso seria considerá-la numa postura estática.
Kant tem da humanidade uma visão dinâmica,
como uma totalidade, como uma associação universal
dos homens engajados numa tarefa comum. E esta
consiste na realização das possibilidades infinitas e
indeterminadas que emanam da razão.
179
Na razão se localiza o mais elevado valor, ao qual
inerente a universalidade, correlativa da racionalidade.
Um acontecimento, uma iniciativa particular re-
vestem-se de valor ao representarem o universal.
Assim, compreende-se logo a escassa importância
que Kant atribuía à história factual. Via nela uma
simples crônica.(119)
Nisso ele se contrapõe radicalmente ao atual
entendimento da Teoria da História, unânime na
valorização dos eventos, pelo que têm de individual,
quer postos destacadamente, quer construindo uma
“situação”, que configura uma “estrutura” única.
A universalidade que nelas existe é inerente
mesmo a essa singularidade.
Tal, entre outras, a exegese de José Antônio
Maravall, historiador espanhol, para quem “es en esos
conjuntos que englobam um gran número de datos
donde, lejos de descubrir uma generalización, ha llamos
lo individual que caracteriza el objeto de la
História”.(120)
Nessas condições, pode o historiador detectar um
sentido, uma tendência ou tendências daquelas estru-
turas, independentemente de apriorismos sobreimpostos
aos fatos.
É ele movido pela observação dos determinismos
sociais e das ações das grandes personalidades.
Embora impossível a exclusão dos valores, a
interferência da subjetividade no trabalho do histo -
riador, este, contudo, se norteia, numa postura cien-
tífica, pelos dados colhidos da t rama causal de cada
180
estrutura histórica. No campo em exame, só se pode
falar em generalização com uma conotação particular,
restrita à especificidade do objeto.
Daí a crítica justa de eminentes historiadores
contemporâneos, que expressa a inviabilidade, em ter-
mos científicos, de uma história universal.
Lógico que a concepção da história de Kant induz
a afirmação de que o sentido, uma regularidade na
evolução factual, seriam elaborados pelo filósofo e não
pelo historiador.
Analisando essa posição, Henri Marrou de-
monstra a possibilidade de coexistência “de lois ou de
principes généraux expliquant réellement le compor-
tement humain dans le temps”, e “la validité de cette
expérience directe du passé, de cette connaissance
singuliére, que représente l’histoire , que conservarait sa
valeur propre, son niveau spécifique d’inteli-
gibilité”.(121)
Como se vê, em Kant a Idéia se sobrepõe à
história concreta.
Sendo a Idéia os conceitos racionais, compondo o
mundo inteligível, não há como se materializar na
experiência.
Eis que o destino do homem se revela como uma
Idéia, sobreposta, e distanciada dos fatos empíricos, das
obras concretas, urdidas ao longo da história.
Nesse passo, mais uma vez se evidencia o en-
tendimento kantiano a respeito da teoria e da praxis.
Pois somente os indivíduos correlacionam de modo
181
consciente a razão e o dever, que é ação que imprime
sentido à teoria, à mesma razão.
Esta alimenta a liberdade da vontade, inerente ao
dever. Agora se retoma o ponto nuclear dessa inves-
tigação, tal como explicit ado de começo, na colocação
do problema.
Preciosa novamente a informação de Herrero,
aprofundando o mesmo ponto.
Escreve ele:
“Si la razón no puede determinar lo real que le es dado ni
encontrar la realidad que corresponde a su necesidad de
determinación absoluta, ahora se le abre la posibilidad de
producirlo. Para encontrarse a si misma y llegar a su fin,
la razon debe hacerse práctica”.(122)
É aí, com efeito, que se dá a união da razão
teórica e da razão prática.
E se pode dizer que é a partir dessa união que se
torna possível o novo dimensionamento da relação
teoria-praxis.
Porém não logrou o grande filósofo realizar de
modo plenamente satisfatório aquele novo dimen-
sionamento. Não o logrou em virtude mesmo de sua
concepção da história.
É que, descartando, como se anotou, as indi-
vidualidades históricas, as particularidades concretas
dos povos numa dimensão temporal, forçosamente teria
de evitar o problema do relacionamento entre “la
individualidad de los hombres y los pueblos, por uma
182
parte, y la universalidad del todo de la historia, por la
outra”.(123)
E aí se esclarece a comunidade doutrinária entre
Kant e os outros filósofos iluministas.
No terreno da filosofia política, então, notória e
identidade de concepções entre Kant, Rousseau,
Montesquieu e outros.
Daí ser interessante a recapitulação do ponto de
vista do pensador alemão sobre importante aspecto do
ideário político.
Trata-se do Estado, cujo papel é deveras saliente.
Antes da presença do Estado, havia um abismo
profundo entre a Idéia e a realidade.
Ele vem justamente possibilitar o enlace entre os
dois reinos.
Através dele viabiliza-se a passagem ou a
ascensão da realidade à Idéia, conforme sublinha Emilio
Estiú.
Ao Estado, pois, está reservada uma grande
missão.
E ele cumpre essa missão em virtude de com-
portar na sua estrutura elementos dos dois reinos.
Com efeito, participa concomitantemente da Idéia
e da realidade: “Tiene um origen empirico, fundado en
el poder, y uma finalidad moral, concretada en el
derecho y la justicia”.(124)
Assim sendo, o Estado encarna a possibilidade de
a Razão se apresentar, de fato como unidade.
Ele encaminha o enlace da razão teórica e da
razão prática.
183
Porque, articulando a eticidade e as propensões
naturais, arma as condições do progresso.
Kant situa o Estado na raiz da realização
progressiva do sollen.
Surge como um princípio absolutamente
incondicionado do dever: “Il dovere di passare dallo
stato di natura allo stato civile”, observa Michele
Barillari.(125)
Dá-se nesse passo a transição da matéria à forma,
a qual se põe sob a tutela de um princípio prático da
razão.
Tal salienta peremptoriamente e normaliza a
adesão e a obediência à uma vontade legislativa geral.
A lei encerra o dever de submissão à uma vontade
superior, o contrato.
Indica uma atitude de transcendência, porquanto
não parece estabelecida pelos homens, mas por um
legislador supremo e infalível.
Em Kant persiste o substrato ultra-jurídico do
princípio segundo o qual toda autoridade provém de
Deus.
Como assinala Barillari, identifica-se aí a mesma
posição de Aristóteles, que na “Política” levanta uma
questão profunda da relação psico -social entre comando
e obediência, a qual relação adquire o valor de lei
natural.
Nisso transparece uma supremacia sacra a
imutável, representada como unidade do mundo moral e
assegurando ao contrato uma nota ideal, estritamente
ideal.
184
Assim, faz-se mais compreensível a qualificação
moral da política.
Enfatizando o contrato como pura idéia da razão,
assume ele o critério de valorização por excelência,
servindo para distinguir as leis injustas das justas.
Também encerra o ideal de uma constituição
política, diante da qual devem curvar-se os súditos.
Mais ainda: leva os governantes ao dever de
adaptarem gradativamente os diversos Estados
concretos. E, naturalmente, na medida em que se for
realizando a idéia do Soberano Bem Político ínsita
naquele contrato.
Inferência lógica é a presença constante na
filosofia kantiana da história do que se poderia chamar
de normativismo.
Trata-se de uma manifestação típica do
Jusnaturalismo presente nos pensadores do período.
Isso é que faz Kant formular um tipo de
pensamento racionalista.
Não entronca aí a tradição jusnaturalista,
sobressaindo-se com Pufendorf, e tão presente em
Caneca. Não é evidente nos iluministas a qualificação
oral da política?
O normativismo também se faz presente.
O papel do Estado como um instrumento
transcendental.
Nele se associam experiência e finalidade moral.
Manifesta a herança rousseauniana: o dever de
caminhar do estado de natureza para o estado civil, e
com o acréscimo de Kant, através do Estado.
185
O grande problema está na passagem de um
princípio, de um mundo inteligível, para o interior da
realidade objetiva, temporal.
Parece que o impasse, que tranca o acesso à
praxis, decorre justamente da insuficiência do método
analítico-sintético visto, malgrado o enriquecimento da
relação teoria-praxis com Kant.
E, na verdade, subsiste o modelo cartesiano que
procria premissas absolutas, axiomas, princípios in-
dependentes da experiência, conceitos-guias da prática.
O que resulta numa superposição da teoria sobre a
praxis, no bloqueio da realidade concreta, grandemente
inacessível no desdobramento dos seus processos
imanentes, nos encadeamentos factuais.
Ora, o que se infere daí senão a enfatização do
normativismo, do moralismo, do legalismo?
Clarifica-se, dessa forma, aspecto relevante da
postura caneciana.
Ela ainda se prende à concepção iluminista, de
conformidade com a qual a norma resolve todos os
problemas. E que a sua aplicação é automática. Persiste
nela a superposição da teoria sobre a prática. O
legalismo é o mesmo compartilhado pelos autores da
época.
Isso, porém, é temperado, é amortecido pela
superposição ideológica que se comentou, pela imersão
nos acontecimentos vivos, “quentes”, ensejando -lhe
certo domínio sobre a conjuntura e rasgos de realismo
na análise de instituições sociais.
186
A praxis, contudo, na sutileza dos seus dina-
mismos, conserva-se indomável, sujeita aos prejuízos,
às limitações da herança iluminista.
A esta altura, de utilidade a exposição de alguns
pressupostos da filosofia do século XVIII, para melhor
precisar o binômio teoria-praxis no pensamento político
de Caneca.
Essa filosofia absorve elementos jusnaturalistas
veiculados, em grande parte, retoricamente.
Na Economia Política se formam já com fun-
damento na doutrina de Locke, aí pela segunda metade
daquela centúria, concepções que estruturam as leis da
Sociedade Civil e do Estado.
Aquilo que Locke expendera, relativamente à
complementação da teoria da Sociedade Civil “par une
conception de la politique comme domaine public”,(126)
vai apresentar-se de muita importância para a colocação
e para o encaminhamento do problema. Tal teoria, em
virtude de sua base científica, não obstante acabar numa
aplicação técnica, conserva um liame inconsistente com
a prática das pessoas que dispõem do poder decisório e
são agentes ativos na sociedade.
Eis que transparece a necessidade de se lhe dar
um complemento didático. Ele, na verdade, não aparece
como um prolongamento natural da teoria, mas sim
prático.
De qualquer modo, isso representa um progresso,
um passo adiante do que concebiam os fisiocratas, que
atribuíam ao monarca o papel de segurador da “ordem
natural”, posta na sociedade.
187
Mas já se falava num “público esclarecido”, como
instância a que o monarca deveria recorrer. Por si só,
não reunia condições para dominar as leis da “ordem
natural”.
Entra em cena, então, o que se passou a
denominar “opinião pública”, efeito de sedimentada
educação de amplos setores da população pelos
filósofos, e ao redor dos fundamentos da ordem social.
A opinião pública visualiza as leis naturais dessa ordem
social mediante “la forme des certitudes pratiques des
citoyens agissants”.(127)
Ao príncipe cabe daí extrair
orientações.
Tal concepção é encontradiça entre os publicistas
liberais que perfilham a doutrina moral escocesa.
E aqui se dá justamente um avanço em relação à
Fisiocracia.
A mediação da opinião pública se coverte em
“elément de l’extension de la théorie de a société civile
en philosophie de l’historie”.(128)
Os direitos naturais se colocam numa linha de
historicidade que atravessa toda a sociedade civil. Es -
tabelece-se a lei do progresso contínuo e necessário da
humanidade. A começar do primitivismo dos primeiros
tempos. E com uma meta: a de uma sociedade liberal
política e economicamente.
Ao longo do desenvolvimento da economia
liberal, vai estruturando-se uma consciência política,
propiciando conceitos novos sobre a igualdade social e
os direitos correlatos.
188
É clara a associação entre um tipo de socialização
e uma filosofia da história, sendo esta a seqüela
daquela.
Dita socialização reitera o imperativo de
crescimento da consciência prática.
Todavia, importante sublinhar um ponto: a
socialização não explica as suas conexões com a prática.
Tem no crescimento da consciênc ia prática algo
necessário. Ou que apresenta o caráter de necessidade.
Não havia, assim, a possibilidade de intervenção
prática em sentido vertical na sociedade. A qual não ia
além do ato de firmar certas diretrizes concernentes à
ação individual. E a limitadas ingerências do aparelho
político na ordem social. Notoriamente quando
assomava uma concepção que alimentava a correlação
necessária e o acordo que estava havendo entre o
processo histórico e aquela limitada intervenção. Nessas
condições, inexistia a exigência de orientação dos
cidadãos acerca do modo como deviam “organiser le
progrès social”.(129)
Observe-se que, na base dessa concepção, estava
o cienticismo colhido nos métodos e na estrutura da
Física, especialmente. Então, focalizava-se o curso dos
acontecimentos históricos nos moldes do curso dos
fenômenos naturais. Daí a possibilidade de solução do
problema do relacionamento teoria-praxis.
Entende-se, portanto, a extensão natural das
previsões da filosofia da história aos efeitos práticos dos
seus princípios, no momento da atividade prática dos
cidadãos.
189
Não se atentava, com essa postura, à possibi-
lidade de modificação da teoria pela prática.
Partia-se de uma estrutura teórica tida como
cientificamente rigorosa, para sofrer, qualquer abalo e m
decorrência de sua aplicação.
O caráter de apêndice imposto à política,
“apêndice didático” da mesma estrutura teórica, tendia a
operar, sem que disso se tomasse consciência, modi-
ficação da teoria.
Tal passou inadvertido ao evolucionismo dos
autores escoceses e à filosofia linear da história dos
enciclopedistas.
A filosofia social, ao se ocupar da prática, o faz
de um modo antecipado. Ou seja: diz o que os cidadãos
vão fazer, antecipando na história a consciência prática
deles. Cidadãos que se comportam politicamente. Uma
inferência de ordem metodológica se tira daí: a de que
não havia como considerar relevante o confronto entre o
dispor e o agir. Ou melhor, não havia como desconhecê -
lo.
A filosofia social oferecia-se cientificamente co-
mo filosofia da história, e se fundava numa metodologia
rigorosa. E esta, ao alcançar a consciência prática, não
se dobrava ou se reformulava, mantendo-se coesa e
granítica. Não se via a exigência de flexibilidade, de
provisoriedade, do método, sem quebra do seu rigor, da
sua precisão.
Sem dúvida, com os iluministas, sem considerar
outros filósofos como Hobbes, a teoria obstaria, com o
hermetismo metodológico, a prospecção larga do real, e
190
se conservaria fechada às solicitações de mudança de
orientação prática. Isso implicaria necessariamente
numa reformulação da própria filosofia social. De modo
que houvesse uma mediação eficaz entre a teoria e a
prática. Tal reformulação iria esclarecer um ponto
essencial; o de que a doutrina política já surgira como
uma introdução à prática.
Jürgen Habermas, a apoiar essa parte, traz à
colação subsídios esclarecedores de Vico e de Kapp. E
no que concerne à tradição grega a servir de respaldo à
doutrina clássica da teoria e prática.
O primeiro demonstrou que, entre os gregos, os
procedimentos tópicos e retóricos acompanhavam a
política.
Mas não estruturavam eles um método científico.
Tanto no que se relacionava com a filosofia
teórica, como com a filosofia prática, apenas um método
era usado: o da arte do diálogo, a dialética.
O segundo, após interessante pesquisa, chegou à
conclusão de que, com Aristóteles, abandona-se a dia-
lética. Quer dizer: ela perde a dignidade metodológica e
passa a assumir um papel pedagógico. Fica como uma
espécie de propedêutica ao aprendizado e à pesquisa.
Sob esse ângulo, a dialética, continua Habermas, ganha
o nível de discurso didático, e algo introdutório à
analítica.
Acontece que a filosofia prática desfigura esse
posicionamento da dialética, dando-lhe outra função.
Sobreveio um acréscimo. Primeiramente, suprime o
caráter propedêutico da dialética. A retórica tinha a
191
serventia de conclamar, de aconselhar, com vistas à ação
dos cidadãos. No calor mesmo dos debates políticos, ela
se transfigura ao fazer “oeuvre philosophique d’habilité
pratique”.(130)
Por importante, merecem transcrição os dizeres
textuais de Habermas, em prosseguimento à exposição:
“C’est là qu’Aristole conseille la procédé tipique comme
un procédé dialectique: il part de quelque chose de connu
pros hemas, de points de vue rendus légitimes et dignes de
foi par la tradition ou l’autorité, de leiux communs, de
règles, et les éprouve au contact de tâches pratiques dans
une situation déterminée Pa l’aide de la dialectique”.(131)
Os tópicos granjearam no “Organon” de
Aristóteles um lugar primordial, a crer em Hamelin, em
Werner Jaeger, entre outros estudiosos da filosofia
grega. E aquilo que absorvem se torna matéria do
silogismo dialético, ao transformarem-se em “ciencia
del razonamiento sobre lo probable”, como diz por sua
vez, Ferrater Mora.(132)
Como se vê, na transcrição acima de Habermas,
os tópicos visam a situações particulares, as quais se
vinculam a normas a se explicitarem na própria apli-
cação esquemática a tais situações.
Disso provém o seu estatuto lógico, a autoridade
de um instrumento que, por antecipação, produz esque-
mas a subordinar os casos particulares. Tem-se então
uma hermenêutica do vivido, de situações expe-
rimentadas. O que permite a formação de acordo entre
os cidadãos que desenvolvem atividades políticas.(133)
192
A circunstancialidade do pensamento caneciano
se acasala com essa concepção da teoria e da prática,
que perfilha.
No “calor” do evento racionaliza os dados da
“situação”.
E o faz de um modo que ela, entendida como um
conjunto de casos particulares, imediatamente se sujeita
aos tópicos, pela recepção de um modelo iluminista-
constitucionalista, o do liberalismo radical, que assimila
tais casos aos já incorporados nesse modelo. Ou, pelo
menos, a técnica de subordinação é a mesma, mudando
os casos, as situações particulares. A verdade é que
perdura a sobreimposição da teoria. A prática como a
sua mera aplicação.
Há, desse modo, a tendência à reiteração de si-
tuações. Ou a pouca ou nenhuma diversificação dos
eventos, do ponto de vista de sua significação. Ou a
utilização unívoca ou padronizada do mesmo esquema
interpretativo, da mesma leitura, sem que fatos super -
venientes possam modificá-los.
Todos esses fatos se ajustam arbitrariamente ao
esquema. Isso conduz ao enfoque autoritário, de que
falam Horkheim e Adorno.
Aliás, o tópico já encerra essa conotação auto-
ritária. E, com razão, tem nascimento na política, lugar
do mecanismo refinado do poder. Nesse ponto, favorece
a exuberância ideológica. Principalmente nisso que a
ideologia procria o congelamento do pensamento. Daí
ser travado o curso mais desenvolto e frutífero da
criatividade. A contestação aí emergente tem muito de
193
retórico. Ela não leva a uma prática metodológica e
filosoficamente fundamentada. Não dispõe de uma
consciência crítica que desça fundo nos centros
irradiadores da movimentação política, da formação
institucional, centros esses que não devem ser enfocados
a partir apenas de atitudes morais e da instrumentação
político-jurídica. Os quais desligados de seus suportes
sócio-econômicos. Faltava ao período aquela cons-
ciência. Esta é especificamente moral, empolgando
tanto os liberais centristas quanto os radicais.
Contudo, ela é mais abrangente, contando com
uma dimensão social, dada a presença notória de
Rousseau, de Mably, mais precisamente. Tem um
sentido mais vivo do progresso, da mudança. Por igual o
sentido da nacionalidade, vista perfeitamente compatível
com a estruturação institucional que se fazia. Ou
melhor, em harmonia com ela. Tal consciência encerra
uma face utópica, de muita importância como força
propulsora que, se aproveitada convenientemente na
política, teria suscitado transformações mais amplas da
realidade brasileira. Pois dispunha de poderoso recurso,
dinâmico por natureza, que, bem harmonizado com o
princípio da autoridade, com a ordem que se fazia mister
aperfeiçoar, poderia ter-se firmado na vida nacional
domo tendência dominante, em contraste com a linha
tradicionalista que acabou vencendo, após a vitória
definitiva do liberalismo centrista, com Pedro I.
A liberdade, no seu processo de amadurecimento,
na sua caminhada, encontrava sérios obstáculos: a
mentalidade da época, a organização sócio-econômico
194
em vigor, os valores religiosos que radicavam na es -
colástica tridentina, na Contra-Reforma, o tradi-
cionalismo.
A ideologia religiosa é permeada pelos valores
políticos da ordem, no regime “unionista”. O libe ra-
lismo radical tendida a exaurir -se diante desses
obstáculos, fortemente calcados nos interesses da elite
proprietária. A sua tragédia está em que não dispõe de
meios eficazes, de condicionamento sócio-político,
credenciando-o a romper a velha ordem.
E não só pela desfuncional correlação que
mantinha entre a teoria e a prática. Mas também pela
falta de adequada consciência crítica, que está na raiz
dessa desfuncional correlação, Daí porque assimila os
elementos tradicionalistas. E vale-se até dos agentes do
sistema, com a vedação de clara definição dos objetivos
do liberalismo radical. Afinal, este se insere num
contexto ideológico heterogêneo. Está-se a ver o
impasse a que chegara tal ideologia política, justamente
pela inexistência de bases sociais sólidas, a se
constituírem em todos de irradiação axiológica
autônoma.
A justaposição de dois planos ideológicos – o do
Iluminismo e o do circunstanciamento provincial-
nacional – se compõe com um estado de coisas ca-
racterizado pela vigorosa herança colonial, pela
opressão dos proprietários que concentram os papéis
mais relevantes da organização social, pela fragilidade
institucional, pelo legalismo reinante (um dos elementos
da velha ordem a pesar sobre o liberalismo radical).
195
Como levar às últimas conseqüências o radica-
lismo inerente a essa ideologia? Não havia como fazê-
lo. A tendência era exaurir -se no papel de agente
proeminente da cena política, e transferir -se para os
subterrâneos do complexo institucional, para a
intimidade das convicções sinceras e abnegadas, de
onde ressurgiria periodicamente no transcurso de longa
história.
Para manter-se ativamente, com o empolgamento
ruidoso dos seus partidários, necessita incutir a sua
mensagem em canais funcionais e expressivos de
reivindicações de classes, de grupos sociais conscientes
e objetivos na apresentação de um projeto nacional. O
que não havia no tempo.
Inconsistente era o projeto que propagava, eivado
de legalismo, de moralismo.
Não havia ainda aparecido grupos sociais capazes
de se apropriarem com eficácia, e como uma constante
política, da dimensão utópica subjacente na mensagem
ideológica. Eis que não se percebe tal impasse, evi-
denciado de modo especial no esquema de distribuição
de poderes na sociedade do período, maxime na per -
nambucana, e com todo aquele envolvimento estrutural-
valorativo.
Isso significa que o binômio teoria-prática, como
posto, sustava o expedito desenvolvimento das
virtualidades utópicas no projeto do liberalismo radical.
Com base nesse raciocínio, e considerando o
quadro da sociedade brasileira de então, não há como
deixar de reconhecer que o liberalismo centrista foi mais
196
realista. Desde que se registre a disposição de forças
políticas em atuação. E a não viabilidade de êxito do
movimento confederativo de 1824.
Era preciso que aquelas virtualidades utópicas se
fossem realizando pari passu com a montagem do
aparelho político nacional. A fim de que o liberalismo
radical persistisse e animasse novas transformações,
novas conquistas no campo sócio-econômico, segundo
as possibilidades da época. Por aí ele seria mais aberto,
na pauta de uma organização social menos rígida, menos
senhorial, e com estímulos razoáveis ao progresso geral.
Diante do exposto, claro fica que o liberalismo
radical se deparava com óbices intransponíveis ao
objetivo de se encarnar no aparelho político brasileiro.
Ele não tinha condições de efetuar a com-
patibilização com a ideologia da ordem reinante, de seus
critérios, valores, metodologias e metas. É que nessa
ideologia repousavam os critérios valorativos mais
destacados e atuantes da vida política, naquela idade do
século de aguda indiferenciação social. O liberalismo
radical, que lograria destaque com a Confederação do
Equador, deve a sua curta presença no poder às
circunstâncias políticas do Nordeste, vítima de política
discriminatória do Imperador em favor das Províncias
do Sul, e que redundava em opressão econômica do
Pernambuco açucareiro, tolhido no seu desenvolvimento
autônomo. O que incentivaria, em “clima” assim ex-
cepcional, o apelo ao radicalismo. Coisa transitória.
Logo refluindo para os subterrâneos da atividade
política, até que momentos outros de tensão aguda, a
197
fizessem aflorar sobranceiramente. E, menos de uma
década depois, ver-se-ia rebentar acerbado surto
reacionário, pró-restauração de Pedro I, 1831, a
chamada abrilada, que mobilizaria também senhores de
engenho.
Nunca demais repetir que, no bojo geral do
liberalismo no Brasil, abundavam os impedimentos à
formação de guias valorativos de eficaz transformação
da ordem política, etapa mediadora da real promoção do
homem e da organização social.
O liberalismo centrista gozava de melhor
viabilidade por se compor com os interesses da classe
dominante.
E sem veleidades outras senão a de co mpatibilizar
a organização política nacional com a ordem privada,
aprimorando as condições de funcionamento do aparelho
político.
Afinal de contas, tudo radicava na natureza do
encontro teoria-prática, ínsito ao liberalismo, qualquer
que fosse a sua modalidade.
Era impressionante a sobreimposição da teoria
sobre a prática, num corte epistemológico que privile -
giava autoritariamente a primeira.
Dela não escapa Caneca.
Típica a sua afirmativa de que da natureza das
idéias decorre a boa ou má qualidade das açõ es, como
repercussão em todo o corpo social.
Inerentes às idéias ou delas dependentes a
vontade, a mora, os costumes de um povo. Eis o que diz
textualmente:
198
“Com efeito, as idéias falsas e inexatas, que fizermos das
cousas sociais, produzirão infalivelmen te juízos falsos,
incoerências, crimes, atentados, perturbações da sociedade
e a sua ruína afinal. Isto não só mostra a razão, como, para
desgraça da humanidade, o comprova a experiência diária
desde os mais remotos séculos.; E se em alguma parte
produz efeitos prejudiciais e funestos a imperfeição das
idéias, é sem contradição na moral e nos costumes dos
povos...”.(134)
Está aí exemplo claro de um intelectualismo com
raízes na filosofia grega, na pauta mesma do Ilumi-
nismo, a remontar constantemente aos clássicos da
Antigüidade.
Trata-se de colocação fundamental, a mais geral,
a partir da qual se chega a outras, articuladas com as
situações particulares, quando se dá o encontro real da
teoria com a prática.
Nesse último aspecto, assoma o voluntarismo,
aquela conotação moral da razão, do conhecimento, que
assume um papel instrumental, de mediação, entre a
verdade, o que se deve fazer, e os atos que a executam.
Surge, então, a necessidade de se explicitar o
projeto político caneciano.
Ele ganha elevada nitidez ideológica ao ser
acentuado o voluntarismo, algo por si imanente à
ideologia.
Aderindo ao princípio axiológico formal se
encontra “la voluntad de superar la oposición sujeto -
objeto e a de erigir barreras entre el sujeto y el
objeto”.(135)
199
Tal se erige como uma constante no curso da
historia. E converge para os complexos estruturais-
conjunturais que se vão formando no tempo, e que são
produtos da integração dinâmica, ou melhor, conciliação
dialética entre a vontade em tensão do ser individual ou
coletivo, dominado pela insatisfação causada pelas
avaliações determinantes do real (presente), e esse real
numa fase de potenciação possível de sua historicidade.
Isto é, na efetivação de sua transcendência, alcançando
o futuro.
O levantamento de obstáculos entre sujeito e
objeto concerne à atitudes axiológicas negativistas, e
talvez preferível fosse apresentá-lo não como mera
alternativa, mas como elemento necessário à formulação
dialética a que se submete a oposição sujeito -objeto na
ação.
Aqui o elemento vontade logra especial relevo.
O Ciclo axiológico se completa na transcendência
do real, quando o fim é atingido por uma intenção de
ação, como frisa Raymond Polin, em que a vontade se
exerce eficazmente, superando a fase puramente
“imaginativa” e dando àquele fim a dimensão precisa de
valor, eleito entre outros que o sujeito depara no
confronto entre o projeto representativo e desvinculado
da vontade e da concretude, e as possibilidades, medidas
circunstanciais e tendências de uma ação que se leva a
cabo, conscientizada, portanto, na avaliação de uma
situação objetiva. É, então, que se resguardam fins
concretos particulares.
Veja-se a exegese sensata e penetrante de Polin:
200
“Le ...projet acquiert sa pleine signification téléologique
lorsqu’il devient une intention d’action, une fin
proprement dite… Le proprie de l’intention d’action, c’est
de conformer à la fin en tant que telle un projet d’oeuvre
particulier. On ne peut concevoir d’intention d’agir sans
un projet imagé auquel elle s’applique”.(136)
E pouco além:
“Dans le projet téléologique intervient, comme remarque
Kaufmann, l’appréciation de la probabilité avec laquelle
cet état imagineire pourra se réaliser. Mais dans sa forme,
l1intention d’action se présente comme une décision el
relève du vouloir, de la volonté générale de transcender le
réel et d’effectuer contre lui une transcendance; elle est,
selon le mot de Scheler, un vouloir agir”. (137)
Na verdade, o fim entende diretamente com algo
a ser executado em meio ao conhecimento de uma trama
circunstancial.
Daí vem a alusão de Polin à consciência de uma
ação prática impelida pela vontade e precedida ou
embasada pelas criações “imaginativas” que lhe dão
forma, constituindo dois momentos axiológicos inte-
grados, procurando o segundo transcender o primeiro no
domínio e manipulação do real.
Atribui-se por igual ao fim a índole de momento
axiológico, porque a sua concretização implica neces -
sariamente em avaliações decorrentes da transcendência
do primeiro momento com o indefectível cortejo de
aplicações e de readaptações dos valores no campo
fático. Isso em conseqüência do caráter dialético de toda
201
ação social e também das distorções que sofre a
realização dos valores na prática, por fatores múltiplos
relativos à liberdade humana e à modificação das
circunstâncias. Tal não significa que ao momento do
“projeto imaginário” se segue automaticamente um
momento de prática em que adquire nova tonalidade
axiológica.
No fundo, sempre se conserva uma linha
continuada de coerência entre um e outro momento.
Geralmente, são as alterações provocadas pelos fatos
que determinam a adoção de novos critérios de ação e
que, devido ao caráter dialético desse, sugerem a
atualização do projeto.
O importante em tudo isso é a vontade de agir, de
efetuar a transcendência do real, vontade de agir imersa
na dupla linha de integração – a do projeto e a da ação
intencional, numa consciência crítica de toda uma
situação que se pretende trabalhar.
Pois bem. O projeto caneciano, tendo em mente o
espírito do tempo, o estado da cultura e da prática do
período, não reunia possibilidades de desdobramento
alongado, de efeitos significativos, no leito da história
política brasileira. A não ser que se considere o
contributo que deu ao implante de te4ses liberais em
diversos documentos políticos e ao progresso da
consciência de resistência ao autoritarismo.
Mas não transpõe eficazmente a fase imaginativa,
por falta de recursos de avaliação do real, do presente,
numa postura de globalização que arma de melhor
operacionalidade à ideologia.
202
A vontade não transcende a dita fase imaginativa.
Aspecto esse já relacionado com a inoperância do pe-
ríodo diante das virtualidades históricas, das alter -
nativas que somente a verticalização na historicidade
enseja.
Diante disso, o moralismo, correlativo do volun-
tarismo, era realçado.
O corte entre a teoria e a prática, a intransi-
tividade da fase imaginativa, a não consciência da
possibilidade de tensão dialética entre ambas, mesmo
em virtude de uma concepção contínua da história, tão
do gosto do Iluminismo, levam ao privilegiamento da
vontade. Mas de uma vontade individualizada, desligada
dos condicionamentos sociais.
Era como se a união de vontades individuais,
desatenta às vinculações de grupos, transcendendo até as
peculiaridades desses, pudesse formar um corpo coeso
capaz de operar as reformas institucionais preconizadas.
Nessas condições, estava-se frente ao irrealismo, que
fechava a avaliação correta dos obstáculos e das
possibilidades do real. Até mesmo nas coisas mais
simples se manifestava esse irrealismo. Como no
subestimar o poderio das forças políticas e militares à
disposição de Pedro I. Inclusive no mistão ideológico
que constitui o cerne do pensamento caneciano, integra-
se o providencialismo, de certo modo, uma contradição
com a antropologia iluminista.
Todavia, essa contradição parece ser aparente,
porquanto o providencialismo vem como explicação das
falhas das ações humanas, da sua incapacidade de prever
203
os resultados que almejam, de transpor obstáculos. Ele
aparece como substituto do homem, na realização da
segunda fase do projeto, quando a vontade é exercitada,
completando o ciclo axiológico, ao transparecer o valor
concreto, particularizado.
Deus entra aí numa atitude de compensação,
como o valor concreto por excelência. A Sua vontade,
efetivando, independentemente do homem, a história, se
oferece como o instrumento primordial do aconte-
cimento. Isso limita a antropologia caneciana.
Como tornar viável e completo o projeto
axiológico? A ausência de certo controle sobre os fatos
favorecia a tônica sobre o papel da Providência.
Assim, escreve o carmelita:
“São inexcrutáveis os juízos do Altíssimo, e
incompreensíveis os seus mistérios! Quantas vezes se
frustram aos mortais as ações mais bem combinadas, e de
muito premeditadas! E a quem devemos atribuir o es torvo,
que nos embaraça e inutiliza os esforços, que se punham
em ação, senão e a vontade do Todo Poderoso, que
prescrutando os corações e as entranhas do homem, e
tendo presente todos os futuros, dirige todas as coisas para
o bem e felicidade de suas criaturas! Assim o pensamos
nós, e não receiamos ser contraditos pelo filósofo, que
reconhece uma causa prima na natureza, a cujo aceno tudo
se move, vive e acaba”.(138)
A condição de religioso de Caneca, vivendo e
atuando no seio de uma sociedade permeada de valores
sacrais, faz compreensível esse providencialismo. Porém
se está num período ansioso de abertura humana, de fé
nas possibilidades do homem.
204
O grande problema é que a antropologia ilu -
minista tendia a chocar-se com a sociedade escravocrata
brasileira, com o mesmo providencialismo que conso-
lidava o status quo, com o autoritarismo carismático do
Imperador, não obstante o empenho do frade em
combatê-lo.
Transparece a todo momento a dificuldade de se
harmonizarem teoria e prática em Caneca.
Ele manobra um corpo abstrato de juízos, de
propriedade do racionalismo iluminista. Compõe um
espaço privilegiado, quase se diria inefável, um plano
superior, onde conquista a virtude.
Com isso, ele agirá eficazmente. Trata-se de uma
razão estática, universal, perfeita no prevenir todas as
situações, cabendo ao filósofo deduzir, estender os seus
princípios, ao cobrir a particularidade histórica.
E ao espaço da razão junta o argumento da
autoridade. Invoca o testemunho dos pensadores e dos
poetas clássicos, numa atitude metodológica que tem
muito da Escolástica, se bem que o espírito do huma-
nismo renascentista, tão sobrevivente e influente do
Iluminismo, esteja também vivo aí.
Ao se demorar no tema da pátria, essa meto-
dologia sobremaneira se explicita. É quando deixa o
carmelita expender a tese da primazia da sociedade
sobre os cidadãos.
Eis um tema, entre outros, por meio do qual
assenta a conexão entre a metodologia, imanente a um
pensamento mais geral, e os seus objetivos ideológicos,
relacionados com a circunstância nacional. E onde fica
205
claro que, mesmo em se tratando de algo mais concreto,
particular, ele não abdica da metodologia iluminista.
Justamente por não haver empreendido a articulação
mais funcional dos fatos com a teoria. Como as
circunstâncias e o estado da cultura, da ciência do seu
tempo não o permitiam.
Um trecho significativo:
“Por último fizemos ver, que nascendo o homem para a
sociedade dos outros seus semelhantes, ele é mais dos
outros, que de si mesmo, pelo que tudo quanto existe no
homem, que seja bem físico ou moral, se deve aplicar ao
benefício da sociedade, e ao feliz ser da república. E
dando à caridade aquela ordem, sem a qual ela deixa de
ser racional e justa, provamos, que na oposição dos
deveres de cada um cidadão para o comum, e os
particulares, as relações particulares, ainda as mais
próximas e estreitas, como de pai, filho, irmão
desaparecer, quando é necessário salvar -se a pátria e
libertá-la do despotismo e escravidão: e sustentaram
inabalavelmente nossas decisões a razão mais cla ra e
evidente, a autoridade dos mais célebres filósofos e poetas
antigos e modernos e afinal a prática sempre constante de
personagens conspícuas na história do gênero
humano”.(139)
Com efeito, a razão se materializa nos en-
sinamentos e no desempenho dos mais conspícuos
personagens da história, dos filósofos mais eminentes de
todos os séculos.
A virtude ganha, como conotação moral da razão,
especial destaque. Ela representa a associação da
perfeição física e da perfeição moral do homem, se -
gundo Cícero. Ou, mais restritamente, o valor, a
206
coragem. Não sem propósito foi a virtude divindade
entre os antigos.
Ao se alcançar a virtude, mediante a razão,
alcança-se a perfeição, o que está concluído, o que
encerra toda a verdade. Está-se preparado, então, para
agir perfeitamente, como se tivesse a posse de um
receituário para todas as situações. Daí porque não
importa que o filósofo ou personagem da história seja da
idade antiga ou da moderna. Desde que haja
equacionado a razão e, com ela, a virtude, obteve uma
formula acabada, perfeita, julgamentos conclusos sobre
o sentido, as tendências, a natureza do homem, da
sociedade, da história. Resta apenas aplicá-los aos casos
particulares.
Aí subjacente a concepção da história do
Iluminismo. A despeito do apreciável progresso que
essa concepção alcançara com relação às anteriores,
efetuando maior aprofundamento do concreto, ressente-
se da sobrecarga das ciências da natureza. Busca, por
exemplo, com Voltaire, uma conciliação entre o
empírico e o permanente.
Ambos se enlaçam, com a distinção de cada um
deles.
Diz Cassirer:
“La solución tácita que nos da (Voltaire) en el Ensaio
sobre las costumbres consiste en que nunca permanece en
la exposición del acontecer, sino que la enlaza
directamente con un análisis intelectual de los fenómenos
mediante el cual se habrá de distinguir lo accidental de lo
necessario, lo permanente de lo pasajero”.(140)
207
Essa razão não se dá de uma vez por todas, pelo
trabalho de assimilação. Ela se vai progressivamente
revelando à medida que vai rompendo o amontoado de
costumes e de preconceitos. Sem, porém, se afirmar
muita vez em virtude da resistência oferecida por esses
preconceitos. Mas isso não significa que ela deixe de ser
o que é, o que encerra a sua natureza.
O progresso, enquanto tal, não modifica a
universalidade da razão. A humanidade também não é
afetada pelas resistências à razão. O progresso irá
realizar a razão na sua explicitação empírico-objetiva.
Nessa explicitação, nessa efetivação da transparência da
razão, integra ele “el sentido profundo del proceso
histórico”. Eis que não se apresenta relevante para a
historia “el problema metafísico del origen de la razón...
porque la razón como tal es algo supratemporal,
necesario y eterno a lo que no puede dirigirse la
cuestión de su origem”.(141)
Essa tomada de posição epistemológica sublinha a
predominância do racionalismo, que funda a razão
absoluta, sobre a análise serena e detida dos fatos,
buscando a conexão existente entre eles, a estrutura que
os interliga e o significado autônomo daí emergente.
Porque não há dúvida que o peso dos juízos, dos
julgamentos “prévios” da razão, acaba obstando a
verticalização no processo histórico, a composição
funcional do relacionamento teoria-prática.
Em Caneca essa postura sofreria até um decesso.
208
Nem sequer realiza ela a compatibilização
iluminista entre o permanente e o acidental de modo
satisfatório.
Pelo menos, Voltaire, Montesquieu, d’Alembert,
entre outros, desceram à uma prospecção original dos
costumes, da família, da vida política, das artes,
oferecendo um quadro sociológico incipiente, é verdade,
mas que serviria de ponto de partida para posteriores e
lúcidos desenvolvimentos. O frade carmelita não
chegaria a tanto.
Certo que não praticou de modo sistemático a
análise histórica. E quando o fez se esquiva, por
qualquer motivo, à tarefa de construção daquele quadro.
Contudo, mesmo na dimensão do seu pensamento
circunstancial, não há uma imitação completa do modelo
iluminista. Às vezes, como no Itinerário, ao assumir
outra camada da linguagem, uma mais simples, mais
discritiva, permite-se certo realismo fecundo. Pois a
narrativa oferece a transparência crua e significativa da
imersão ativa, vertical, de Caneca em eventos que se
sucedem sob a tensão belicosa, Isso indica que o modelo
iluminista não é uma constante na sua obra. Ainda
quando o perfilha, não vai longe. É que torna a relação
teoria-prática mais rígida, ao passar sem muito rigor
metodológico dos juízos universais, da “razão”, para os
acontecimentos, para a conjuntura. Em que plano fica a í
a sua ideologia, aquela que se sobreimpõe, ou que se
justapõe à ideologia iluminista?
Na verdade, Caneca pratica com todas as in-
fluências doutrinárias que recebeu uma reposição pró -
209
pria e lhes infunde uma configuração nova no contexto
do seu pensamento. Este se vai geralmente delineando
no meio dos episódios relatados, comentados. Do que
afloram um sentido, tendências que confluem em torno
de teses, na formação das quais entre muito de sua
contribuição pessoal, as suas observações particulares,
sobremodo positivas como interpretação de nossa
formação social ou política. Veja-se, por exemplo, a
descrição que faz, influenciado por Montesquieu, da
forma de governo adotada no país.
E o realiza sublinhando as peculiaridades bra-
sileiras, a diversidade de costumes, com a formação de
verdadeiras nações dentro da nação. O que, com seu
tempo, insuladas as províncias, com a falta de
comunicações expeditas entre elas, assim transparecia.
Mais: a ausência de classes, de alta distinção honorífica
da nobreza, um clero sem grandes poderes, a liberdade
inata entre os brasileiros e tão presente na evolução
histórica do país, com uma tradição de fato republicana
no governo de indígenas e de europeus, o despotismo
que assolou a nação no regime colonial de três séculos,
tudo isso confluiu para a opção política racional, a do
governo firmado na prática da liberdade, depois de
pesada e atenuada a força das circunstâncias.(142)
Quer dizer: o carmelita pernambucano tem o
sentido de certos determinismos históricos e sócio -
culturais a incidirem sobre a vida política. Não lhe foge,
assim, algum realismo. A “razão” não cai de um uni-
verso abstrato sobre a realidade. Com esta se harmoniza.
E se observe que não faz filosofia da história, como os
210
iluministas. Provavelmente, jamais alimentou esse
projeto. Fica num domínio de maior realismo.
No exemplo retrocitado, chega a afirmar que o
Brasil se adapta naturalmente ao estado federativo.(143)
Contudo, ao fazê-lo, vai buscar justificativas ligadas à
identidade nacional, à circunstância brasile ira. E numa
linguagem periodística, na coerência límpida dos fatos,
praticamente não partindo da “razão”, não fazendo
doutrina. E parece ser esta a camada mais usada, ente as
várias que se superpõem na estrutura lingüística do
discurso caneciano. A ausência dessa razão é com-
pensada pelo adensamento ideológico da descrição
factual à qual prende incidentalmente postulados
teóricos, não submetidos à demonstração. É a linguagem
do panfleto. Esta a linguagem dominante. A mais
freqüente, considerando a circunstancialidade dos seus
escritos.
Observações particularizadas emergem com
assiduidade aí. Mas não são exaustivas, fazendo
sobressaírem objurgatórias, ataques violentos, em que o
particular é subposto no pathos ideológico. E que vem
para reforçá-lo. Malgrado não sobressaía a positividade
do factual e do significado dele extraído. Há, nessas
condições, em Caneca, até um desdobramento de posi-
ções em decorrência da variedade de linguagens com
que opera, fazendo oscilar o nível da relação teoria-
prática. Ainda que ela, estruturalmente, se mantenha a
mesma. Isto é: com os mesmos fundamentos, com a
mesma concepção. Algo se destaca em Caneca: a
autosuficiência do discurso, que dispõe de grande
211
soberania, assimilando com largo arbítrio o proveniente
do exterior, do mundo histórico-social, da conjuntura
política.
As observações são feitas fora do intuito de uma
investigação científica sem comprometimentos ideoló -
gicos ostensivos. Elas são recolhidas ao interior do
discurso, para justificá-lo. Mais do que para modificar
as suas linhas estruturais, os seus condicionamentos
ideológicos. A teoria se emaranha no discurso, que nele
se desdobra e se repete, insusceptibilizando-se com uma
sua possível remodelação pela via dos fatos. Fecha -se ao
andamento dialético no encontro com eles, dada a
sobreimposição que se expôs antes. Uma passagem do
“Tratado de Eloqüência” o confirma: “Confirmação ou
prova é o discurso, que o orador produz para convencer
os ouvintes, ilustrando o entendimento”.
E continua afirmando que as provas são de duas
classes: intelectuais e morais. As últimas influem na
vontade, levando a incorporação do discurso na
prática.(144)
Isso que fica bem patenteado na eloqüência,
transpõe os umbrais dessa arte e alcança domi-
nantemente o discurso em geral, que, na exacerbação
ideológica, ganha acentuado relevo autocrático. Eis que
em Caneca e em outros escritores do período,
notadamente os panfletários, a elaboração do discurso se
mostra caracteristicamente como uma dedução a partir
de nutrizes ideológicas a priori acolhidas. Aí o factual é
visto pela ótica dada por essas nutrizes. Tal não
significa que os fatos sejam sempre distorcidos em favor
da causa. Acontece, porém, que eles são selecionados ou
212
deslocados da conjuntura, para servirem de prova do
discurso. Por isso, se nota nos escritos do frade
pernambucano a despreocupação por documentar – afora
autores iluministas, publicistas, clássicos – o que expõe,
o que proclama. E assim mesmo essa documentação de
autores é restrita a certas introduções, a alguns
parágrafos. Eis que, no discurso caneciano, é comum a
transposição arbitrária do plano das idéias para o plano
factual. E, seguindo as premissas do racionalismo
iluminista, a privilegiarem a “razão”, aprioristicamente
tomada, de entendimento acerca da verdade.
Expondo, verbi gratia, as causas das longas
dissenções que tem havido entre os nativos e os
europeus, no Brasil, e mais particularmente em
Pernambuco, a partir de 1710, dissenções essas que têm
tanto perturbado a província, diz:
“Estes os fatos, que nos apresenta a história desta quarta
parte nova do mundo, sobre os quais refletindo a razão,
tem descoberto, que se não tem sido o motivo único desta
indisposição, ao menos lhe tem sublimado a acrimonia a
falsa idéia, que se tem feito da pátria do cidadão”.(145)
Isto é, ele declara que se europeus e nativos
tivessem uma concepção de pátria diferente da que se
baseia no lugar do nascimento, se considerassem, na
realidade, essa pátria o lugar onde desenvolvem as suas
atividades com uma alongada permanência, de modo a
se tornarem naturais do país e a compartilharem com os
nascidos aí as oportunidades e os frutos do trabalho, por
certo não teria ocorrido a Revolução de 17, fruto da
213
rivalidade entre portugueses e pernambucanos, vistos
como estranhos, com interesses distintos por terem
nacionalidades distintas.
Se a palavra “patriota” tinha um sentido pe jo-
rativo para os portugueses, é que estes não concebiam a
idéia de adesão ao Brasil, a terra que os acolheu.
Mas, nada melhor que o entendimento de Caneca
acerca do que denomina “espírito geométrico”, para se
obter nítida percepção da sua estrutura teórica.
Pautando um procedimento tipicamente ilumi-
nista, busca assentar os princípios certos e infalíveis da
razão, princípios reguladores do raciocínio, de modo a
não se cair na inanidade da abstração deslocada. Eles
irão orientar e controlar a observação, a dedução, as
atividades práticas. Configuram uma estrutura teórica,
axiológica e pragmática, numa extensão facultada pela
articulação da teoria e da prática, num plano de ação da
razão que tem muito de cartesiano.
Privilegiamento do elemento utópico-prospectivo-ra-
dical num contexto de mentalidade conservadora
Em extensão ao enfoque utópico, prospectivo e
radical de Cipriano Barata, ao lançar os fundamentos do
liberalismo radical entre nós, desdobra-se, com mar-
cantes particularidades, o pensamento político de
Caneca.
A meta da liberdade, na estrita orientação ilu -
minista, já lhe assegura lugar prioritário em opção po -
lít ica revolucionária.
214
Disso não se pode duvidar. É claro que se
contrapõe às posições francamente autoritárias do
liberalismo oficial vertidas no estatuto político do
Império, base angular do Estado nacional brasileiro que
surgia.
Contudo, não realizou o destemido carmelita uma
obra de simples perfilhamento ou de assimilação me-
cânica da doutrina iluminista-liberal alienígena. Obser-
vou-se o caráter circunstancial do seu pensamento. O
que lhe ensejou a comentada sobreimposição ideológica
no encontro dinâmico com os fatos.
Para maior esclarecimento, importa fazer a
comparação entre a postura liberal européia de natureza
radical e a sua congênere caneciana.
Aquela carrega um significado novo, inteiramente
inédito, de revolução.
Explica-o com perfeição Hannah Arendt:
“La conception moderne de la Révolution, inextri -
cablement liée à l’idée que le cours de l’Histoire,
brusquement, recommence à nouveau, qu’une histoire
entiérement nouvelle, une histoire jamais connue ou
jamais racontée auparavant, va se dérouler, était inconnue
avant la fin du XVIII siécle et ses deux grandes
révolutions”.(146)
E justamente a idéia de liberdade coincidia nesse
quadro com a de um acontecimento inédito, jamais
ocorrido antes na história da humanidade, imprimindo -
lhe nova orientação, novo começo. Ela assinalava
também o critério de julgamento das Constituições, o
215
mecanismo livre das atividades políticas garantidas por
ela, a liberdade haveria de concretizar -se, feita a
revolução, substancialmente na liberdade de
movimento.(147)
Aí se explica a tese de Condorcet de que, com o
advento da liberdade, se inaugura nova história. Tese,
aliás, também compartilhada pelos outros enciclope-
distas.
Essa história aparecia em delineamentos impre-
cisos, dado o utopismo que a circunscrevia. O que havia
de preciso era a reformulação do poder, a nova organi-
zação política, como instrumento e como condição de
transformação histórica, de mudança social. Mas instru-
mento indireto. É que assegurava os meios político -
jurídicos de um livre desempenho dos cidadãos ani-
mados pelos objetivos burgueses.
A história futura seria a efetivação desses obje-
tivos na sociedade. Tarefa a cargo dos cidadãos,
individualmente considerados. E num prolongamento do
utilitarismo que franqueara o Renascimento. O qual se
casa com a secularização crescente, facilitando as
aspirações e o acesso centrados nos bens econômicos.
Emerge liberada a vontade de poder tendente à im-
plantação de nova ordem econômica com exaltação da
prosperidade, da acumulação de riquezas.(148)
O
voluntarismo, agora se percebe melhor, é inseparável do
liberalismo. E se revigora no liberalismo radical, a
privilegiar a liberdade. É a mola da história, da
construção da nova história, reformulado o poder,
edificado o Estado nacional no bojo das constituições
216
garantidoras do novo desempenho econômico e das
subjacentes liberdades civis e políticas.
Mas é de muita importância estabelecer a dis -
tinção entre duas concepções de liberdade que
fundamenta, por sua vez, a distinção entre o liberalismo
centrista e o liberalismo radical ou utópico.
Concebeu-se entre os pensadores liberais dois
tipos de liberdade: a interna, campo do livre arbítrio, e a
externa, consistente em metas de realização humana, e
tomando como ponto de referência um determinado
contexto social; entende com o dado cultural. Um
segundo significado de liberdade externa diz respeito à
natureza completa e total do homem.
Assim, verifica-se que o liberalismo, compelido
pela circunstância histórica, tendia a enfatizar o
conceito de liberdade que se demorava na afirmação de
independência e de autonomia do indivíduo em face da
autoridade não apenas política mas também social. Ele
se opunha à toda sorte de constrangimentos, de res-
trições, que embaraçavam aquela afirmação.
A liberdade interna mereceu pouca atenção dos
mesmos pensadores, uma vez que comporta raciocínio s
da mais densa abstração, não afinando rigorosamente
com os objetivos político-ideológicos, pragmáticos, que
cercavam o liberalismo.
Sob a influência do determinismo metafísico ou
empírico, nega-se até, algumas vezes, a sua existência
ou possibilidade. Vem daí que, a partir de Descartes, o
racionalismo liberal assenta a determinação completa da
vontade pela razão.
217
Embora atenuada, essa colocação é retomada por
Locke, que separa a vontade da liberdade. A primeira
“is an act of the mind directing its thought to the
production of any action, and thereby exerting its power
to produce it”.(149)
A segunda “is of a power in any
agent to do ou forbear any particular action, according
to the determination or thought of the mind”.(150)
. No
campo da liberdade, portanto, interfere com adequação a
razão, como juízo condicionante da vontade, e tendo por
meta o maior bem.
Está clara a subordinação da vontade à liberdade
que, por sua vez, se harmoniza com a razão e, por
imanente a esta, com a norma do bem. Não obstante,
Locke se mostra impotente no esforço de sobrepujar a
corrente de pensadores que negava o livre arbítrio, e
fortemente escorada em Newton, no mecanismo mate-
rialista, quando “une psycho-physiologie mécaniciste
remplace la métaphysique de l’homme et l’épist é-
mologie classique”.(151)
A idéia de liberdade externa, por não conflitar
com a concepção que nega o livre arbítrio, expande-se
consideravelmente, absorvendo todo o conceito de
liberdade.
Ela passa generalizadamente a ser tida como um
poder externo.
Apóia-se num indeterminismo que se cinge ao
curso da ação, e designa a afirmação absoluta do homem
sobre as coisas. Também a sua plena autonomia em rela -
ção aos outros. Isso entende ainda com o volun tarismo,
com o entendimento da praxis iluminista. A liberdade
218
está a serviço de uma missão: a de investigar e recompor
as coisas no mundo, a que não se furta o ordenamento
do próprio homem, com vistas a alcançar o supremo
bem.
Então, a liberdade pressupõe a lei, sendo a sua
mais lídima expressão. Aquele supremo bem só será
usufruído se o homem submeter-se “aux lois de son être
et de sa raison”.(152)
Isso, com efeito, marcou fundamente o libe-
ralismo, a ponto de fundar o culto da norma, de ser
intrinsecamente normativista.
A tese kantiana está aí subjacente, de con-
formidade com a qual a liberdade se funda na sujeição à
lei. E não há como ver contraste entre a lei e os
determinismos.
A razão ilumina esses determinismos e os
vincula, portanto, à lei. Porque o pragmatismo dessa
razão aprofunda pelo conhecimento as relações entre as
coisas, entre elas e os interesses do homem, tornando -a
prática. E a vontade se faz explícita e melhormente
atuante no universo social.
Nessa perspectiva, a liberdade fica notoriamente
condicionada ao conhecimento, à capacidade do domínio
sobre as atividades humanas. Quanto mais preparado
para essas atividades, e aqui é relevante a educação,
mais exercita com eficácia o homem a liberdade. Depois
viria a recomendação de se analisar o envolvimento
social e a condição do pensamento, para o aprimo-
ramento do que seria agora uma liberação, e não mais a
liberdade no sentido tradicional.
219
Querem-se, em conseqüência, regras práticas nos
diversos setores da nação, de tal modo que se orientem
utilitariamente o social, o político, o econômico.
Não há mais a liberdade universal, mas a liber-
dade social, a liberdade política, a liberdade econômica.
Em cada um dos ditos setores preside a ra-
cionalidade pragmática expressa num sistema de nor -
mas, guias-modelos do comportamento dos indivíduos,
do exercício da liberdade.
Na medida em que se vai aperfeiçoando a norma,
com a assimilação de novas relações, de novos ele -
mentos, mais a vontade se afirma concretamente,
dominantemente. Tal a doutrina corrente entre os pen-
sadores do século XVIII.
Todavia, não havia entre eles unanimidade a
respeito da liberdade externa ou de expansão.
“En effet, on peut considérer avec Locke, Montesquieu et
Voltaire, la liberté comme la condition culturelle de
l’individu, ou encore avec Rousseau comme sa condition
naturelle. L’une n’excluant pas nécessairement l’autre,
mais la qualifiant de sorte que la signification des
conclusions diffère sensiblement”.(153)
De acordo com a primeira tese, a liberdade, se se
desprender da fundação originária que é o estado de
natureza, atualiza-se no interior da ordem social,
viabiliza-se sob o império da lei. Somente quando a
razão a faz possível e real. Essa a concepção vitoriosa
no seio do liberalismo, na medida de sua efetivação nos
quadros políticos do Ocidente.
220
Locke deixa isso bem claro, ao afirmar que a lei
natural, que disciplina o estado de natureza, e que
obriga cada indivíduo, se confunde com a razão e,
portanto, com a lei civil. E ela determina que qualquer
dos homens se abstenha de prejudicar a propriedade, os
bens da vida, do outro. Mesmo porque todos são iguais e
independentes.(154)
Porém é preciso não esquecer que, pela lei
natural, já tem o homem assegurada a sua autonomia no
interior de um circunstanciamento, e a sua
independência relativa frente ao poder político,
emergente posteriormente à mesma lei.
Por conseguinte, a liberdade, já estruturada no
estado de natureza, antecede à própria organização
social, ao ordenamento político-jurídico, cabendo a este
apenas regulamentá-la, dar-lhe um processamento fun-
cional, numa ampla compatibilização dos interesses em
jogo.
Daí se segue que não se deve submeter ao jugo da
autoridade despótica, a infringir a todo instante a lei
natural que resguarda a liberdade.
O homem sabe o que lhe convém. Ele tem o
princípio de seu comportamento colhido no direito
natural e, portanto, independe da autoridade para ser
exercido.
A ela compete sancioná-lo.
Nessa concepção, o indivíduo tem prioridade
sobre o Estado.
A razão está originariamente nele. E são seres
razoáveis, os indivíduos, que formam o Contrato e, por
221
via de conseqüência, o Estado, com um raio de ação
estipulado previamente no documento que estrutura o
pacto social, a Constituição.
Dada a supremacia do indivíduo, o agente por
excelência da razão, aquele que contém em si a auto -
suficiência moral, uma vontade que se nutre da
racionalidade, que se encarna nas criações do progresso,
o Estado não tem outra missão senão a de garantir a
liberdade de todos, evitando a ruptura do pacto, o
bloqueio da harmonização dos desempenhos livres
individuais.
O Estado, então, é o lugar, o meio de for-
malização da liberdade, a instrumentalização da sua
coerência objetiva, no âmago de uma circunstância
histórica, nos limites de uma sociedade.
Ora, sofrendo essa limitação que endossa e
perfilha o status quo vigente numa nação, com a elite
burguesa no topo da hierarquia social controlando
aquela instrumentalização, o organismo político, os
meios de produção, a propriedade, a liberdade torna-se
elitista, ao alcance apenas dos que detêm bens eco -
nômicos.
Isso esclarece, por exemplo, a doutrina lockeana
da representação política, padecendo da mesma li-
mitação.
Sem tal odiosa restrição, porque fiel ao ideal
democrático, destaca-se a concepção rousseauniana da
liberdade.
Ela é radical.
Escreve Vachet:
222
“Par contre, la deuxième conception de la liberté
d’expansion est radicale: partant aussi de l’homme
naturel, elle voit celui-ci dans une liberté totale qui n’a de
limite que l’individu lui-même. Pour Rousseau, par
exemple, l’homme naturel isolé exprime sa condition
essentielle dans sa liberté en tant que celle-ci se résume
dans l’auto-gouvernement. Cette liberté est originelle,
précédant la raison et. non seulement, toute règle sociale
ou politique, mais toute loi morale. Elle s’identifie en
quelque sorte à la nature”.(155)
Assim, o homem realiza até na imediatez con-
creta, sem qualquer instância mediadora, naturalmente
restritiva, as suas atividades, os seus projetos, como ser
livre. E essa instância pode ser o Estado, a Sociedade, a
Cultura. Nenhuma delas dispõe de poder, de autoridade,
para ocupar o lugar do homem natural, para se equiparar
ao modus essendi da liberdade. Isso significa que a
liberdade faz parte do ser do homem. É inalienável.
Insubstituível. Rousseau diz que da própria natureza dos
homens deriva a liberdade: “.. . la liberté étant un don
qu’ils tiennent de la nature en qualité d’hommes...”.(156)
Nesse caso, a lei não condiciona a liberdade, e sim a
liberdade condiciona a lei.
E aqui se tem um momento clássico na obra de
Rousseau, em que ele exalta o estado de natureza, longe
dos cerceamentos opostos pela sociedade ao livre de-
senvolvimento humano, distante dos embaraços trazidos
pela cultura, a qual, em nome da razão, criou distinções
odiosas entre as pessoas e fabricou toda sorte de males.
Com isso, tudo se complicou, não mais se valorizando a
223
sensibilidade, a intuição, caminhos naturais do pleno
desabrochar das faculdades humanas.
Evidente que assim discorrendo, Rousseau cai no
radicalismo, na antagonização do indivíduo frente ao
Estado. Pois sem esta não havia como fazer viável a
liberdade, considerando que, ao se problematizá -la,
forçosamente, se joga com o dado da instituição política
onde acharão um denominador comum as liberdades
individuais em coexistência e, freqüentemente, em
conflito dentro de um espaço social. Percebeu o grande
filósofo francês o impasse. E tentou superá-lo no
Contrat social. Através da “forma de associação” que
preconiza. Nela, a liberdade individual não sofre
qualquer limitação. As pessoas conservam-se tão livres
quanto antes. O essencial é preservado.
O pacto social visa à garantia, à defesa da pessoa
e dos bens dos associados. E, ainda tornando per -
manente a união de todas as pessoas, as leis que daí
emanam resultam da vontade de todos, não como um
colegiado que faça desaparecer a participação de cada
um pela força mesma de entidade coletiva, mas que a
faça sobressair.(157)
Associação desse tipo não prescinde
do auto-governo do indivíduo.
Aí está a origem da lei. A vontade geral não passa
de um artifício para a preservação, para o exercício da
vontade individual. Nisso Rousseau legitima a sociedade
democrática. Sob o modelo das democracias da Grécia
antiga ou da Suíça.
Há uma completa participação das pessoas nas
decisões políticas ou coletivas.
224
Nessa matéria, praticamente se confundem von-
tade individual e vontade geral. “L’individu ne se
retrouve donc que dans et par la volonté générale, c’est -
à-dire la volonté collective. La société civile,
l’État,devient donc le lieu de la liberté auquel s’oppose
tout privé, toute association particulière”.(158)
Dessa forma, a concepção radical de liberdade faz
Rousseau eliminar a representação política imanente ao
constitucionalismo de Montesquieu, de Locke, com mais
evidência. Justamente o punctum dolens do problema
prático da liberdade na construção do Estado liberal.
Porquanto ela aí se via, por razões históricas, na
contingência de se esvaziar quase totalmente de sua
dimensão utópica, prospectiva, para e acomodar à
estrutura de classes de uma sociedade permeada de
graves desigualdades sociais.
Na ambigüidade do projeto de Rousseau,
atravessado de tensão, que estabelece a permanente
oscilação entre a vontade individual e a vontade geral
precariamente individualizadas no cenário político,
provavelmente se preserva incólume a liberdade.
Eis que o filósofo do Contrato social não chega
propriamente a oferecer um projeto político, formal ou
tecnicamente falando.
Ele não se compõe de um modelo de organização
política, no qual se esboçam a estrutura e a dinâmica de
um governo, com as normas do seu funcionamento. A
liberdade aí estaria convertida num dado objetivado,
numa técnica, num procedimento cristalizado. O que,
evidentemente, não é o desejo de Rousseau.
225
E vem, então, a necessidade de se colocar a
doutrina do Contrato social em harmonia com o que o
filósofo desenvolve na “De l’inégalité parmi les
hommes”.
Como assim?
Nessa última obra constrói o projeto de um
homem novo dentro de uma sociedade nova, onde as
opressões terão cessado, quando o binômio senhor-
escravo desaparecerá, quando os indivíduo s não mais se
depararão com entraves à plena realização de suas
potencialidades.
Ora, é inegável que o advento do pacto social,
não obstante as ambigüidades que comporta e as
concessões que arrisca, não se contrapõe à filosofia
social exposta em tal obra. Pelo contrário, pode até ser
tomado como meio de sua efetivação.
Esse meio seria não uma fórmula acabada, um
instrumento técnico, adequado a um momento histórico,
sopesadas as determinantes dos grupos que têm o poder
de decisão. E, claro está, que o signif icado desse
momento histórico se fundava no presente, na
circunstância da implantação segura do domínio
burguês, entre os constitucionalistas do liberalismo
moderado.
Ficando em torno da especulação, da filosofia,
mesmo em matéria política, parece que Rousseau,
privilegiando o futuro, acreditava ser imprescindível se
transcender o presente, o status quo restritivo da
realização humana, ou mais precisamente, de fe-
chamento das possibilidades dessa realização, em
226
sintonia com indicações de uma viabilidade política, não
formulada precisamente. O que acentua o seu utopismo.
Anote-se que, nesse contexto doutrinário, são
partes que compõem a visão social e a visão política.
A racionalização política de Rousseau, centrada
no Contrato, instituindo a democracia, já pressupunha a
igualdade, um dado social.
Ora, se a igualdade se conservava como um
projeto utópico, não há como não reconhecer se fazia
necessária a revolução para a implantar, dadas as
condições da época.
Isso ia cada vez mais encaminhando essa doutrina
para a alternativa socialista, com o crescente avanço do
liberalismo constitucional de Montesquieu, de Locke e
de outros publicistas.
Pois é inconteste que em Rousseau tem suas
origens “o comunismo moderno”, segundo Paul
Janet.(159)
Porém não se omita que faz esse papel no seio do
utopismo.
Assim, falta a precisão científica no trato com
problemas centrais, como a propriedade, não desen-
volvendo uma argumentação em ajustamento funcional
com os fatos, com os matizes da realidade social.
Escreve aquele autor:
“No fundo, só encontramos em Jean Jacques Rousseau
doutrinas incoerentes acerca da propriedade, doutrinas
essas, ora justas e exatas, ora errôneas; e deve confessar -
se que forneceu ao socialismo moderno mais fórmulas do
que argumentos”.(160)
227
Ressalte-se, contudo, que ainda no século XVIII,
entre teóricos da Revolução Francesa, graças ao influxo
de Rousseau, ganha corpo, melhor precisão, uma teoria
do comunismo.
E é justamente Mably, que tanto influenciou
Caneca, quem primeiramente dá as bases de uma
estruturação geral dessa teoria.(161)
A caracterização utópica do pensamento do
filósofo francês se faz num estreito relacionamento
entre “ideals and facts, between hopes and reality”.(162)
Ele quase sempre está denunciando um quadro de
injustiça social sem, porém, deixar de sugerir a sua
correção no futuro, com a vinda de uma nova sociedade.
E, ao que tudo indica, trata-se de uma utopia
salientemente impregnada de modernidade, malgrado os
apelos freqüentes a modelos de sociedade antiga ou de
algumas décadas, como no caso da república genovesa,
que trazia a consciência das transformações econômicas
da época e de suas repercussões em todo o âmbito da
sociedade.
Assim, sabia Rousseau que a idéia de virtude
estava sofrendo grandes modificações em razão do
impacto dos novos padrões de vida econômica. Para ele,
a frugalidade mudou de motivação. Entre os repu-
blicanos da Antigüidade romana, era praticada por
virtude; entre os manufatureiros do seu tempo por
avareza, com o fim de obterem mais lucros.(163)
Quer dizer: o já examinado relacionamento entre
teoria e praxis no Iluminismo, possibilitava um melhor
conhecimento da natureza e do significado das trans -
228
formações sócio-econômicas de modo a produzir o
redimensionamento da utopia, aproximando-a do seu
conceito mais atual, por por-vir, do ainda-não-existente.
Contudo, o conceito rousseauniano, o iluminista,
de utopia era pleno de moralidade, ficando muito numa
enunciação de denúncias, de opressões, que articulava
despotismo social e despotismo político, com o ofe -
recimento de projetos vagos de felicidade social. Os
quais, porém, constituíam apelos éticos para a par -
ticipação entusiástica na tarefa de construção da nova
ordem de coisas.
Aí está um aspecto importante da utopia, que
representa um avanço notável sobre as visões utópicas
de Thomas More, de Campanella.
Rousseau não tencionava propor um retorno a um
período histórico longínquo, a uma idade de ouro, onde
não houvesse senão “une répartition égale immédiate de
la propriété”.(164)
Depois, ele se situava realisticamente na corrente
do tempo. O futuro era trabalhado no presente. Havia
conexão entre ambos. Diferentemente pensavam os
chamados utopistas. Excluíam o futuro como o “lugar”
de realização do projeto de uma sociedade comunista
onde não existisse propriedade privada. Não admitiam
que essa sociedade nascesse com os recursos do
presente. Veja-se, por exemplo, que a cidade por eles
sonhada não se localiza no futuro, mas num espaço
afastado daquele em que viviam os seus autores.
Essa cidade, a sociedade perfeita, podia ser
instituída a qualquer momento e em qualquer lugar, a
229
depender exclusivamente da vontade dos homens que
para tanto fariam uma constituição política.
A propósito, discorre Max Horkheimer:
“L’utopie saute par-dessus le temps. Partant des
aspirations qui sont conditicionnées par une situation
déterminée de la société et qui à chaque modification de a
réalité se modifient elles aussi, elle entend utiliser les
moyens qu’elle trouve donnés dans cette rélité pour
instaurer une société parfaite: le pays de cocagne d’une
imagination historiquement conditionnée”.(165)
Essa concepção de utopia conflita com os grandes
pressupostos da doutrina social e política de Rousseau,
os quais assentam numa antropologia tendente à
concessão de crescente autonomia ao homem.
E é importante ver que ela se inscreve numa pauta
de secularização iniciada com o Renascimento.
Até a religião entra nesse processo.
A religião natural é obra de Rousseau. Obra essa
que seria retomada e ampliada por Kant e por Hegel.
A intenção do filósofo em tela era trazer a
religião ao plano da razão. E através de um processo
educativo em que a pessoa internalizasse valores trans -
cendentais não pelo argumento da autoridade, mas pela
convicção livremente formada.
Os artigos da fé não são impostos “de cima pa ra
baixo”. Eles são conhecidos e acatados a partir de uma
reflexão sobre o indivíduo e sobre o universo que o
cerca. Portanto, sem o auxílio de dogmas ou do
pronunciamento da autoridade. Nessas condições,
230
Rousseau adotava uma postura realista, de certo modo
antecipando a concepção mais atualizada da Teologia
que parte da Antropologia.
Com isso, ele se munia de poderoso suporte
ideológico para a sua doutrina social, liberando energias
para o trabalho de afirmação humana. Uma nova ética
surgia daí, aprestando a vontade livre e convicta no
inato amor da justiça. Em oposição ao sobrenaturalismo,
e numa linha que lembra os profetas do Antigo
Testamento, ensinava que a justiça, princípio inato na
alma do homem, aferido precisamente pela consciência,
deve ser praticada no mundo, e que não se deve
transferir a sua realização para o céu.(166)
Transpunha, dessa forma, Rousseau os limites
doutrinários do liberalismo na configuração utópica.
Como se viu, a sua concepção de liberdade é
radical. As bases filosóficas sobre que assenta o
explicam.
Diferentemente acontece com o liberalismo de
Locke, de Montesquieu, de Voltaire, e de outros, que se
orienta para a formulação constitucional, para a textura
de obrigação política que sanciona os interesses da
burguesia, concentrados na propriedade.
O objetivo social é inteiramente elidido aí.
A utopia, inerente ao liberalismo, por obra das
novas construções político-jurídicas, do impulso norma-
tivista, congela-se, paraliza-se. Esvazia-se a idéia li-
beral das nobres aspirações que cobriam o homem e a
sociedade, ao se corporificar no estatuto político, ao se
individualizar no circunstanciamento nacional, fugindo -
231
lhe a universalidade e descendo ao mero plano de ideo -
logia de classe, e de classe dominante.
Com a exceção da corrente rousseauniana, é de se
reconhecer que a laicização do pensamento, completa
com a Revolução Francesa, enveredara por um prag-
matismo que atinge até o campo religioso, e que exalta a
satisfação dos apetites materiais, a apropriação de
riquezas, o conforto e o bem-estar trazido pela posse de
bens, pela propriedade, o grande instrumento de
produção econômica e de promoção social.
Descartes é o começo da nova perspectiva
filosófico-ideológica.
Ele ensinara ao homem a procurar por si mesmo,
numa investigação autônoma que afastava o argumento
da autoridade, fundado somente na razão, as leis do
universo, de tudo que nele havia, do corpo e da alma e
das relações entre ambos. Preconizava uma meto -
dologia, desse modo, autônoma, que levava ao domínio
incontrastável da subjet ividade.
Nesse intento, está implícito o cuidado de por
limites ao conhecimento, justamente para evitar que ele
se fizesse frouxo e sem consistência em conseqüência de
uma abstração sem freios, sem rigor lógico. Ou melhor,
fundada numa lógica cujo mecanismo era auto-propulsor
de verdades, tendo perdido o contato com a realidade.
No entanto, é necessário que ser ressalte o
ceticismo que a postura cartesiana gerava, por falta de
critérios objetivos que controlasse o subjetivismo. E
isso é bastante palpável nos pensadores liberais que, por
não contarem com a base segura de uma transcendência,
232
no afã do imanentismo, resvalam quase sempre no
pragmatismo, no ideologismo.
A exceção de Rousseau, do liberalismo radical,
justifica-se muito provavelmente pela acentuada
presença implícita do cristianismo, que fornece os
grandes temas de uma antropologia, de uma teoria da
sociedade, do princípio-base da igualdade.
Assim, o hedonismo haveria de marcar defi-
nitivamente o liberalismo conservador, graças à in-
fluência da Psicologia, que vai justificar o indi-
vidualismo.
Abre-se um espaço da sensibilidade, o dos ape-
tites, como coisa natural, a merecer pleno acolhimento,
sob a jurisdição da razão.
Está-se diante de uma proposição que se presta
admiravelmente à uma justificação ideológica de uma
classe ansiosa por se afirmar nos negócios, nas ati-
vidades econômicas. Aquela razão dá-lhe agora forte
respaldo. E numa modalidade em que ela, esvaziada de
universalidade, concentra-se em área específica de
atuação humana, a de sua realização imediata. Torna-se
uma razão seletiva, firmada em prioridade de alcance
próximo.
Para Harold Laski, aí, na raiz do problema, uma
psicologia hedonista sobressai. Ela
“prepara o clima de que o liberalismo precisaria, ao
proclamar o direito do indivíduo a estabelecer os seus
termos com um universo em que o seu próprio conceito de
realização só é limitado pelos seus conhecimentos do que
um homem racional deve procurar atingir. Sua implicação
233
é, portanto, fortemente individualista. O processo da vida
é, para o homem, uma constante busca de satisfações que
lhe conferem um sentimento de poder”.(167)
Como não poderia ser de outra forma, o egoísmo
é erigido em moda propulsora da vida humana, no
princípio nuclear de uma prática caracterizada pela larga
abstenção social. O indivíduo agora se rege por uma
moral utilitária que lhe estimula a ação livre nos
domínios da vida material, conquistando um poder
imenso. A moral, a psicologia e a política se encontram
na razão liberal, numa concepção do mundo oposta à da
Idade Média.
Eis que se forma uma teoria da sociedade que
retrata esse “background” filosófico.
Nela se funda o modelo político do liberalismo de
Locke, como de outros pensadores. Contudo, por se
relacionar com os objetivos do presente trabalho, ele
será aqui apresentado.
Locke tem um entendimento dos direitos naturais
que vai de logo afetar substancialmente o dado da
igualdade. É que ela ao tem existência concreta, viabi-
lidade prática numa sociedade cujas relações são típicas
de uma sociedade mercantil.
Di-lo com muito acerto C. B. Macpherson, tra-
duzindo o individualismo do século XVII lá subjacente:
“La sociedad se convierte en um hato de individuos libres
iguales relacionados entre si como proprietarios de sus
propias capacidades y de lo que han adquir ido mediante el
ejercicio de éstas. La sociedad consiste en relaciones de
intercambio entre proprietarios. La sociedad politica se
234
convierte en un artificio calculado para la protección de
esta propiedad y para el mantenimiento de una relación de
cambio debidamente ordenada”.(168)
Trata-se de uma sociedade estruturada com vistas
ao domínio incontrastável da burguesia. Um modelo que
marginalizaria, na prática, a classe trabalhadora, cujos
objetivos e interesses subordinar -se-iam aos daquela,
detentora do poder.
Ainda que a Constituição, as leis generalizem a
liberdade, concretamente a aproveita a classe do -
minante. Ela se põe funcionalmente em relação com a
posse. Sendo a liberdade a essência da sociedade
política, e ela viabilizando os interesses da propriedade,
assegurando o pleno funcionamento das relações de
troca, tornar-se-ia um princípio ideológico de manu-
tenção das conquistas burguesas e, apenas de modo
remanescente e precário, uma fórmula utópica, a conter
aspirações de outras classes.
Nessas condições, os trabalhadores constituem
uma classe voltada a um desempenho subordinado, não
lhes sendo permitido sair do mero nível de subsistência
imposto pelo salário. O que lhes retira a pretensão de
participação decisiva na sociedade política. A sua
condição econômica impede-os de serem racionais. Evi-
dente que, desprovidos de propriedade, devem assumir o
papel de seres dependentes.
E Locke também adota a religião como instru -
mento ideológico de contenção, de conformação, dos
assalariados.
235
Com orientação diversa da de Rousseau, embora
com ele tenha uma concepção de religião natural,
estabelece que os princípios religiosos devem estar à
altura da capacidade do vulgo, daquele que não tem
condições de elevar-se ao plano das verdades trans-
cendentais, do argumento lógico. Os dogmas mais
simples da fé, numa linguagem de fácil compreensão,
concitando à obediência, à prática dos bons costumes,
devem ser propagados entre os trabalhadores. E dogmas
que se firmem em sanções sobrenaturais, que por sinal
estende a todas as classes, uma religião de prêmios e de
castigos que lembra as recompensas e perdas da
sociedade mercantil.
Tal ainda é o corolário de uma concepção elitista
que alcançava os domínios do conhecimento, da polí-
tica, da economia, da religião.
O assalariado é o vulgo, o dependente, o incapaz
de assimilar a ética racionalista, como as verdades ra-
cionalistas em geral.
Pela religião natural, transfere-se para o além a
possibilidade de conquista do status burguês, de auferir
lucros e vantagens, desde que se mostre dócil, obe-
diente, pacífico, suportando sem queixas e sem revolta a
condição de assalariado.
É um moralismo, produto de racionalização reli-
giosa, que constituiria a fé.(169)
Esse moralismo funcionaria como poderoso fator
ideológico de aviltamento da classe trabalhadora. E num
crescendo que levaria a Restauração a retirar da doutrina
e da prática política direitos que a assistiam.
236
Então, marcante se faz aqui a influência do
Puritanismo, que muito contribuiu para a idéia da
incapacidade moral de tal classe. Os trabalhadores eram
comumente considerados como pessoas de costumes
dissolutos, sem merecerem confiança. Já não são mais
vistos como compondo uma classe. São uma “raça à
parte”. Não mais cidadãos. “Un conjunto de fuerza de
trabajo potencial o real disponible para los objetivos de
la nación”.(170)
É comum o se ver nos assalariados uma
mercadoria, um meio de se produzirem riquezas, uma
“materia prima que debia ser elaborada y utilizada por
la autoridad politica”.(171)
É preciso deixar claro para o bom entendimento
do problema da igualdade em Locke, que, conforme a
exegese de Macpherson, há, na obra do pensador inglês,
dois conceitos de sociedade. O que obriga a um tra-
tamento bifronte desse problema.
O primeiro conceito, de inspiração cristã, tem os
homens como iguais, por essência.
Contudo, ele é elaborado através da ótica do
materialismo do século XVII, eivado do enfoque
atomístico, que acabaria destruindo a organicidade do
relacionamento social.
Pois se explicita que a igualdade natural, ao se
tornar problema prático, ao se materializar, exige a sua
conformação à capacidade, ao engenho de cada um. O
que se funda no individualismo a privilegiar o vo -
luntarismo, sem qualquer atenção aos determinismos
sociais.
237
E, nesse passo, se cai de novo no moralismo.
É que, se os homens são iguais por direito
natural, também seguramente se afirma que eles são
racionais. Como tais, cumpre-lhes desenvolver as suas
capacidades, agirem denodadamente a fim de fazerem
jus à propriedade, ao lucro.
Assim, comportam-se como homens dignos, bons,
merecedores das benesses sociais, das posições
políticas.
A diligência é toda sustentada por uma ideologia
de fundas conotações morais. Ela se encaminha no
sentido da obtenção das recompensas engendradas pela
sociedade mercantil. O instinto possessivo constitui vir-
tude fundamental. A tanto leva o materialismo do
período, responsável por infrene utilitarismo.
Os homens que não chegam aos resultados
prescritos por essa ideologia omitiram-se na realização
do bem, marginalizaram-se socialmente, tornaram-se
indignos.
Inconteste que a teoria política de Locke se
compõe com essa teoria da sociedade.
Ela enseja a conciliação entre o Estado e o
indivíduo.
O constitucionalismo lockeano representa, em úl-
tima análise, a superação de possível tentativa de
confronto entre individualismo e coletivismo.
Como assim?
Os proprietários são os cidadãos, a eles com-
petindo dirigir o aparelho estatal.
238
Exercendo eles o controle da sociedade civil,
naturalmente exercem também o da sociedade política.
Vê-se, assim, o individualismo reforçado pela
presença do Estado.(172)
Tal individualismo se converte no modelo
constitucional em exame em segura salvaguarda do
direito de propriedade.
Mais de uma vez se faz elucidativo o juízo de
Macpherson:
“En el estado de Locke no se halla directament protegido
ningún derecho individual. La única protección de que
dispone el individuo frente a un gobierno arbitrario se
sitúa en el derecho de la mayoria de la sociedad civil a
decir cuando un gobierno ha perdido su confianza de
actuar siempre en el sentido del bien público e nunca
arbitrariamente”.(173)
Possivelmente concebia Locke que os direitos dos
indivíduos estavam subsumidos no direito da maioria. E
o importante era a tutela da propriedade, a qual, como se
deduz facilmente, formava a base de todo o exercício da
racionalidade humana. Fora dessa base nada era
possível, do ponto de vista da valia sócio-econômica ou
política. E da dita maioria se excluía a classe
trabalhadora.
Do sutil jogo do individualismo com o cole -
tivismo no modelo político de Locke sai recrudescido o
bloqueio à afirmação plena dos indivíduos, oficia -
lizando-se a marginalização da maioria real deles. Aí se
revigoram as instituições típicas da classe burguesa, a
239
repousar no pragmatismo que dificulta crescentemente a
vertente utópica do liberalismo, congelando-a mesmo no
domínio incontrastável da maioria formalizada pelo dito
modelo.
Com isso, a igualdade não alcança o patamar da
objetivação, permanecendo apenas de modo subjacente
no modelo liberal, e por força da inspiração cristã, como
força latente a emergir nos momentos de crise.
E é fundamentalmente por justificar as desi-
gualdades sociais numa teoria elitista da sociedade, que
a concepção de liberdade é restritiva. Com ela se tem o
liberalismo centrista ou autor itário.
O pensamento político de Frei Caneca integra a
chamada corrente do liberalismo radical, que, como se
examinou, privilegia a utopia.
No entanto, necessário se faz sublinhar que a
peculiaridade da postura caneciana produz uma mani-
pulação toda especial da utopia, dando-lhe um facies
conceitual específico.
De início, e como postulado básico, não se deve
omitir que a circunstancialidade do pensamento do car -
melita, determinando-lhe atitudes estratégicas, de den-
sas implicações políticas, transmite essa mesma circuns-
tancialidade à utopia.
De sorte que não se pode falar sequer da
possibilidade de permanência da mesma postura em
outras circunstâncias.
Por outro lado, ressalte-se o profundo emba-
samento ideológico, traduzido na mentalidade conser -
vadora, dominante no período, entre nós.
240
O próprio estado da sociedade brasileira assim o
determinava. Sociedade escravocrata, com domínio
absoluto de uma elite proprietária, cavada por grandes
desigualdades sociais.
As normas e os valores atuantes denunciam
notoriamente a herança colonial, o projeto da Contra -
Reforma, a antropologia pessimista e alienante expressa
no saber de salvação, o conceito pobre e inexpressivo
da história, em que pese a reforma pombalina. O que se
retém de mais progressista são as idéias do Enciclo-
pedismo, as do Federalismo, as teorias constitucionais,
no seio de uma elite estudiosa.
Nessas condições, a veiculação do liberalismo
radical dá-se, no país, num contexto de mentalidade
adversa, ainda que se queira apelar para a ação
subversiva das entidades secretas com o auxílio de
ideologias radicais.
A tese que se propõe agora é a de que Frei
Caneca não levou até à autêntica radicalidade o seu
pensamento. Faltavam-lhe condições subjetivas e
objetivas para tanto.
Prioritariamente, a circunstancialidade de sua
obra doutrinária, em grande parte condicionada pelas
exigências da luta política, não lhe permitia a
formulação em bases sólidas de uma filosofia radical. E
a partir da qual toda a sua reflexão política se
desenvolvesse com originalidade e necessária
amplitude.
Onde uma concepção da história, uma teoria da
sociedade, uma antropologia, profundamente estrutu-
241
radas e articuladas com um modelo político, nos escritos
do frade pernambucano?
Isso não quer dizer que não apresentem eles todas
essas coisas. Porém o fazem ao calor do exarcebamento
ideológico, quase sempre, sob o acicate da luta par -
tidária. Daí revelarem principalmente tendências, dire-
ções de pensamento, entre posicionamentos estratégicos,
muito ao sabor do momento, dos acontecimentos.
Nesse labor, afloram com freqüência elementos
da mentalidade conservadora do período, ao lado de
proposições radicais e, às vezes extremamente radicais.
Tome-se o exemplo seguinte: Em trecho de um de
seus escritos, adotando uma concepção francamente
escolástica, contraposta à outra que dignifica a auto -
nomia humana, tão a gosto do Iluminismo, diz, inclusive
ressuscitando a ideologia feudal:
“O monarquia, a aristocracia, a democracia , todas são
potestades; todas vêm de Deus; todas são ordenadas por
Deus; a todas se deve de obedecer, e por todas se deve de
orar.
E a maneira que Deus é o instituidor na monarquia, o é
também na aristocracia e democracia, ou puras, ou
temperadas.
E a única conseqüência que daqui se deve tirar é que Deus
aprova toda e qualquer forma de governo, que as nações
hajam de estabelecer para melhor encherem os deveres da
lei natural; bem como quando se trata da escravidão Deus
manda aos servos e escravos, que obedeçam a seus
senhores temporais, com temor e tremor, na sinceridade de
seus corações; com o que jamais se pode provar, que Deus
mande positivamente estabelecer a escravidão”.(174)
242
Em outro escrito assume uma tese completamente
oposta à retrocitada, ao afirmar: “Toda espécie de tributo público, diz o abade Mauri a fl.
233, desagrada o povo, e não pode jamais existir algum,
que não prejudique parcialmente a liberdade ou a
propriedade dos cidadãos, e M. Rainal, no tomo 3º, fl.
552, que o tributo e o imposto é a prova do despotismo, ou
aquilo que mais depressa ou mais devagar conduz a
ele...”.(175)
Aqui Frei Caneca perfilha a corrente mais radical
do Iluminismo francês.
A circunstancialidade dos escritos, dos quais
destacados os trechos acima, então se patenteia. Eles
refletem dois momentos diferentes, duas estratégias
diferentes. O discurso caneciano, mesmo na limpidez da
linguagem periodista, se desdobra sob a ars probandi,
que traz à colação qualquer dado capaz de fortalecer a
tese. Trata-se de uma linguagem essencialmente ju-
rídica, que não deixa de utilizar o silogismo. O que é
muito válido para o escrito ideológico, circunstancial.
No fundo, pretende-se atingir aquele objetivo particular.
Assim, se clarifica a circunstancialidade de uma obra
doutrinária, que, ao final, se apresenta bastante
fragmentária, nela podendo-se apontar pesadas
contradições, como se viu no exemplo há pouco
projetado.
Diante das considerações expostas, cumpre agora
precisar a dimensão utópica do liberalismo de Caneca.
Já foram registradas as influências múltiplas e
contraditórias que estão no cerne dos seus escritos.
243
Entre elas, Kant tocou profundamente o que diz respeito
à concepção da teoria e da praxis.
O grande filósofo fecha o caminho para uma
prática sob a égide da utopia, e tendente à realização ao
longo do tempo da igualdade social.
Numa colocação muito aproximada da de Locke,
aceita a coexistência do Estado liberal de duas
categorias de cidadãos, os ativos, dis Staatsbürger,
eleitores e com plena participação na soberania, e os
passivos, die Staatsgenossen, sem personalidade civil,
apenas desfrutando da proteção das leis. Nessa última
categoria colocava as mulheres, os assalariados e os
criados. Todavia, estes podem passar de uma categoria
para a outra, se assim a lei o permite. Nesse passo,
procura conciliar a liberdade com a igualdade natural.
Sem que, porém o consiga. Porquanto persistem, na
verdade, as grandes desigualdades.
Afirma Raymond Polin:
“Kant abre por esse modo o caminho para um liberalismo
aristocrático, notável pelo rigor dos seus princípios, pela
sua preocupação de emancipação política , mas também
pela estreiteza de suas aplicações”.(176)
Um dos teóricos que mais influenciaram Caneca,
Montesquieu, por igual barra o acesso liberal à utopia,
na forma característica do pensamento da Restauração.
A sua concepção da história já traz esse
fechamento. Ela se articula funcionalmente com a teoria
política que esboça.
244
Aliás, não criou ele propriamente uma teoria da
história.
Não chega a desenhar um sentido da história.
No interior de uma relação constante entre a
natureza e o princípio de governo busca apanhar a
evolução histórica.
Esta se dá, portanto, em limites pré-estabelecidos,
em quadros pré-definidos, que reprimem a esperança em
mudanças radicais, em transformações que rompam
aquela relação constante, ensejando o advento do
novum.(177)
A ênfase que igualmente dá aos costumes, às
tradições, na melhor linha romântica, determinantes da
eficácia das leis, já diz bem da sua posição.
Não sem razão considera a monarquia o regime
do presente. E a monarquia com os fundamentos da
ordem feudal.
Uma monarquia se apoiando na nobreza e no
clero, especialmente na primeira, mas pressupondo a
estrutura de ordens, dentro das quais se inserem.
As leis encontram arraigado suporte aí, donde flui
o poder.
Assim, a essência da monarquia é a honra.(178)
A existência de ordens privilegiadas por si corta a
possibilidade de materialização do princípio da igual-
dade social. As desigualdades, dentro do regime
monárquico, são uma constante.
Ao tratar da república, Montesquieu que, evi-
dentemente, a desdenha, diz que nela se pratica a
245
democracia. Não porém a democracia direta de anti-
gamente, e sim a representativa.
E, ainda aí, se mostra a propensão elitista do
pensador francês. Porque afirma textualmente a sepa-
ração dos “homens livres” dos que não o são. Tais os
escravos e os artesãos. Isso nas democracias antigas,
cuja separação aplaude. Com as adaptações necessárias,
transpõe o modelo para a teoria política do seu tempo,
recomendando cuidado para não se acolher o “baixo
povo” na dita representação.(179)
Quer dizer: também na democracia devem per-
sistir as desigualdades.
Na famosa teoria da separação dos poderes, a
moderação pretendida ou a suposta autonomia absoluta
de cada um deles, instituindo um sistema de freios ao
arbítrio governamental, acaba, na prática, numa “com-
binación de potencias”.(180)
Aí o poder do monarca, que representa o poder
executivo, consolida-se, na verdade, como o mais
forte.(181)
Desse modo, mesmo na monarquia constitucional
ele tem predominância. E a criação do Poder Moderador
viria apenas coroar com um reforço as prerrogativas do
monarca, conferindo-lhe uma posição ímpar na “divisão
dos poderes”.
Em tudo isso se vê o objetivo primacial dos
teóricos da Restauração em restringirem cada vez mais o
exercício da soberania do povo. E é justamente esse
objetivo que vai incentivando as desigualdades sociais,
246
pela concentração dos direitos políticos na classe dos
proprietários, com a restrição das liberdades civis.
Nessa linha doutrinária se destaca Benjamin
Constant, o criador das chamadas constituições cen-
sitárias, inclusive com receptividade entre nós.(182)
Veja-se Silvestre Pinheiro Ferreira e a Cons-
tituição de 1824.
Não há dúvida que, como bem disse Lemos Brito,
a realeza encerra um autoritarismo contrário à de-
mocracia.(183)
Tanto isso é verdadeiro que Caneca, no calor da
refrega revolucionária abandonaria a devoção que
prestava à monarquia constitucional e, em parte, às
lições de Montesquieu, para adotar plenamente a causa
da república democrática.
Porque, qualquer que seja a forma de monarquia,
ela tende, na verdade, a limitar a soberania do povo, as
liberdades, especialmente num país de fundas tradições
autoritárias como o Brasil. A esta altura, já se percebe
melhor a dificuldade de se fazer viável no contexto do
país o liberalismo radical.
Afora o mencionado contexto de mentalidade
conservadora vigente entre nós, Caneca se via
embaraçado pelos próprios autores liberais que muito
contribuíram para a sua formação, notadamente para a
elaboração do modelo constitucional que propagava.
Como se examinou, esses autores traziam
acentuado teor de conservadorismo que favoreciam
antes a implantação do Estado liberal centrista ou
autoritário. Daí vem que o carmelita se veria compelido
247
a mobilizar a componente radical ou utópica do seu
pensamento em outras fontes.
Antes de tudo, necessário lembrar que ele já
encontra elaborado um núcleo originário do liberalis mo
radical com Cipriano Barata.
Por aí se apoderava do utopismo rousseauniano,
que, com efeito, vai constituir -se um aspecto importante
mas não único do seu liberalismo.
É que não se devem omitir o profetismo inerente
à teologia que esposava e ela própria, de muita
importância.
Tem-se aí uma exuberante tônica sobre teses que
se ocupam de uma justiça, de uma liberdade, repassadas
de utopia, de alcance num futuro distante.
No primeiro capítulo deste trabalho foram ano-
tadas algumas atitudes proféticas do grande carmelita,
algumas delas tendo por alvo o próprio Cabido de
Olinda, o comportamento da Igreja a que pertencia.
Primava pela autenticidade, não se conformando
com o erro, com a injustiça, com a opressão, com a
omissão, onde quer que elas se manifestassem, cora-
josamente denunciando-as.
Assim, nutria admiravelmente um sentido an-
tecipador das coisas. Como se as visse sempre incon-
clusas. Como se o Ser fosse apanhado no dinamismo de
sua realização, mas se deixando contemplar de antemão
em plenitude.
O Iluminismo otimista está na raiz dessa postura.
Como também o Cristianismo que, na visão antecipada
do futuro absoluto, na parusia, instaurou a meta, onde o
248
Ser é o próprio ato, realizada toda a potência, na
linguagem aristotélica.
Importante sublinhar em Caneca o espírito de jus -
tiça imanente à uma linha de comportamento autêntico e
de realização integral do homem, dentro da prática
religiosa, ou talvez melhor dizendo prática da fé, tal a
grandeza dos juízos que expende sobre o assunto, que
ele parece transpor os limites do confessionalismo, tão
vivo no seu tempo, na verdade antecipando teses da
Igreja contemporânea, pós-conciliar.
Então, ele supera o dualismo espírito-matéria,
corpo-alma, natural-sobrenatural, vendo o homem como
um todo, permeado em todos os momentos de sua vida,
em todas as áreas do seu comportamento, por profunda
moralidade que o faz cônscio de obrigações para com
Deus, para com a sociedade, para com o próximo, para
com a nação, numa unidade indissolúvel.
Desse modo, não cabe na teologia caneciana a
separação cartesiana dessas obrigações. Há uma impli-
cação recíproca entre elas. O que, com efeito, representa
na época um radicalismo, uma extensão do liberalismo
utópico, que pregava nos meios mais desenvolvidos a
indissolubilidade da antropologia e da política, dentro
do contexto histórico-social.
Portava, assim, uma visão mais integral, mais
ampla, que o liberalismo centrista, longe de, na prátic a,
intentar, muito ao contrário tratava de obscurecer ou
marginalizar.
Recriminava a caroline, a hipocrisia inerente ao
devocionismo absorvente, que leva à desqualificação
249
moral do homem, que pode servir de pretexto para a sua
grave omissão diante dos problemas sociais e políticos.
Caneca quer vê-lo atuante, cumprindo os seus
deveres de estado, os quais concebia como uma parcela
de participação na tarefa em prol da nação.
A religião tem uma profunda dimensão ética, para
ele, e como tal, de muita influência na vida social, na
vida política.
Aliás, este problema foi focalizado no primeiro
capítulo do presente trabalho, quando se demonstrou a
impossibilidade de nítida distinção entre os
fundamentos religiosos e os fundamentos filosóficos na
obra do carmelita.
O importante agora é explicitar o fato de uma
religião entremeada por uma moral secularizada, emba-
sando-se numa antropologia, servindo de suporte
ideológico à ação política.
A própria religião já fora secularizada por
Rousseau, tornando-se moral, como se verificou
anteriormente.
A reforma pombalina, de par com o Iluminismo
francês, favorece o advento da nova teologia, voltada
para o terreno secular, também, se bem que dita reforma
não permitisse que ela se abrisse a ponto de pôr em
risco a segurança do Estado inaugurado sob a égide do
despotismo esclarecido.
Num dos seus escritos Caneca deixa claro que a
Igreja não deve ficar alheia aos graves problemas que
afligem a pátria, aos cidadãos.
250
Assim, ele se opõe ao que considera omissão do
Cabido de Olinda no concernente a essa matéria,
dizendo, entre outras coisas, o seguinte:
“Viu o cabido a guerra civil abrir a lice; derramar -se o
sangue precioso do irmão pela mão do mesmo irmão; e o
cabido?
Caladinho.
Viu os povos divididos entre o erro e a verdade, vacilant es
sem saberem que estrada seguir; a intriga e a calunia
correndo com a rapidez do raio, levando os estandartes da
revolta até o mais interior do bispado; os cidadãos probos
caluniados, consternados, trementes, e esperando a cada
momento pelo seu degoladouro sobre os altares do
interesse e da ambição; e o cabido?
Caladinho!!!”.(184)
Está clara aí uma tomada de posição a favor do
engajamento da Igreja em assuntos da vida secular,
desde que em jogo as exigências da verdade e da justiça.
E, sem dúvida, se identifica nesse setor um
núcleo filosófico estimulante e consolidador da estrutura
utópica do pensamento caneciano.
É que tal núcleo, em aliança com o ideário radical
do Iluminismo francês, possibilitaria a propositura de
teses francamente utópicas, e com o significado es-
clarecido por Karl Mannheim:
“Chamaremos utópicas somente as orientações que
transcendem a realidade e que, ao serem postas em
prática, tendem a destruir, parcial ou completamente, a
ordem de coisas existente em determinada época”.(185)
251
A começar pela idéia central de liberdade, os
escritos do carmelita estão plenos de temas cuja
aplicação importaria necessariamente na transformação
ampla da sociedade brasileira do seu tempo. E isso ia
contra os valores dominantes e que inspiravam a
disposição das forças sociais e políticas dessa
sociedade.
Tanto é assim que, no seu tempo, Caneca en-
contraria formidável resistência ao tipo de liberalismo
que propunha. Apenas o futuro algumas proposições
dessa doutrina, como o Federalismo, achariam o mo-
mento propício de realização.
Todavia, ao longo do Império e até da República,
o ideário utópico do frade seria uma constante,
alimentando uma possibilidade.
Depois do que já foi examinado, tem-se por
comprovadamente assentado que esse ideário não
percorre tranqüilamente todo o contexto da obra ca-
neciana. Mesmo se ficando no mero domínio político.
Ele compõe um momento epistemológico, que se
diferencia em muito dos outros, eivados de conteúdo
doutrinário que fechava o acesso à utopia.
Montesquieu e Locke, entre outros, estão nessa
linha.
No entanto, tal a carência de estruturas políticas
no país, na quadra da Independência, que ambos se
completavam em darem subsídios importantes para a
edificação do novo Estado brasileiro.
A monarquia constitucional vem daí.
Nesse ponto tinham a sua serventia.
252
Numa nação recentemente saída do estado de
colônia, o projeto político da Independência era uma
colocação obrigatória.
E veja-se que o liberalismo utópico não se preo-
cupara prioritariamente com esse projeto. A não ser p ara
instrumentalizar os direitos individuais, a liberdade. Em
Caneca isso é bem típico.
Retomando a postura rousseauniana, lança as
“Bases para a formação do Pacto Social, redigidas por
uma Sociedade de homens de letras”, na qual se dá mais
ênfase à liberdade do que à organização política.
Trata-se de um projeto de documento introdutório
ao projeto de Constituição, sem o qual esta não
desfrutaria de nenhuma eficácia.
Esse documento traria as normas que visam “a
conservação dos direitos naturais, civis e políticos”.(186)
Tal a prioridade que o liberalismo radical lhes
concedia. Constituíram o objetivo mesmo da Carga
Magna.
Por transcender a realidade do seu tempo, a
proposição em foco, com todas as conseqüências dela
extraídas, mergulha na utopia. Diz também da ausência
de um sistema coerente nos escritos do carmelita. Os
quais se ressentem, na verdade, de sólido embasamento
teórico.
Com razão afirma Antônio Paim:
“De modo geral, o combativo publicista não parte de
princípios claramente estabelecidos. Desejoso da
Independência e de um ‘governo constitucional’ – cujos
contornos precisos nunca chegou a delinear – foi
253
elaborando uma doutrina ao sabor dos acontecimentos e
até mesmo da posição dos adversários”.(187)
Já se observou linhas acima a coexistência de
partes contraditórias nos escritos de Caneca.
Isso é resultante da dita insuficiência teórica, com
o reforço da circunstancialidade.
Mas não se deve esquecer que se está diante de
um pensamento político-ideológico, armado para o
estabelecimento de critérios norteadores de uma tensa
conjuntura política, conflitante especialmente ao nível
das elites.
Como tal, ele é fruto da mobilização urgente de
valores que orientassem a ação prática, o ímpeto
revolucionário. No que se vira forçado a realizar cortes
epistemológicos no copioso acervo dos publicistas de
vários matizes, com esse fim.
O dado político se sobrepõe ao teórico.
Não importa, seguindo essa tese, o confronto
entre textos conservadores e textos utópicos ou radicais.
A não ser para a sua melhor explicitação.
Antes de tudo, a própria insuficiência teórica se
compõe com o contexto de mentalidade conservadora,
de atonia social, a denotar a inexistência de matrizes
culturais consistentes, capazes de incentivarem a
elaboração de um liberalismo entre nós, de ext ração
nacionalista.
E como era forte o determinismo que fluía dessa
mentalidade conservadora!
254
O pensamento político-ideológico de natureza
circunstancial, com vistas ao alcance revolucionário, tal
como possível no período, facilmente se coadunava com
aquela mentalidade.
É que o utopismo nele imanente não ia
naturalmente ao ponto de sequer pleitear reformas de
largo porte, sociais, não obstante Rousseau, Mably,
Raynal. Nem tampouco o povo, cujo conceito talvez seja
o mais ambíguo em Caneca, recebeu cuidadosa atenção.
Porquanto o interesse básico, aí subjacente, é o de uma
burguesa que emergia e que já se revoltara em 1817.
Assim, não havia condições pára a bem cuidada
elaboração teórica do liberalismo radical no país.
Disse-o com propriedade Vicente Barreto:
“Para serem bem compreendidas as dúvidas e imprecisões
conceituais de Frei Caneca é preciso lembrar que a sua
obra teórica foi feita para atender circunstâncias políticas
em que era requerida uma racionalidade dos acon -
tecimentos”.(188)
O fato de a utopia caneciana se intensificar em
quadra revolucionária, nos instantes de crise, quando até
teses denodadamente defendidas anteriormente são
substituídas por outras, no que há de muito estratégico,
com o abandono do freqüente tom conciliatório imposto
pela mentalidade conservadora, demonstra à sociedade o
caráter circunstancial, político -ideológico, destoante do
rigor teórico, de um pensamento que não encara rea-
listicamente os obstáculos que se lhe antepõem.
255
Provavelmente por tática ignora-os, ou se recusa a
avaliá-los.
Assim, ao passar do tom conciliatório ao
genuinamente radical, o projeto político que sustenta
sofre modificações, contanto que seja fortalecido o ideal
da liberdade. A evolução dos acontecimentos vai
gerando essas modificações. Resume bem essa atitude
Lemos Brito ao escrever:
“Trabalhando pelas idéias de Montesquieu a respeito da
liberdade, assustado pelas ameaças da antiga metrópole,
que trama a reconquista da sua colônia, estimulado no
próprio Brasil em oposição aos interesses da nação
emancipada, o frade pernambucano abandona as soluções
intermediárias, como fizeram os patriotas do Rio, que
certamente não se acomodaram ao golpe da dissolução da
Constituinte por docilidade perante o monarca, mas pelo
temor de sacrificarem a independência pela liberdade
política, e se entrega de corpo e alma ao pregão de uma
democracia avançada, com a liberdade de imprensa por
base e a sujeição do imperador à vontade popular por
culpa do regime”.(189)
Isso está bem patenteado no “Typhis Pernam-
bucano”, de 27 de maio de 1824.(190)
Interessante é que, quanto mais se fortalecem os
obstáculos, rejeitando a autoridade central as propostas
conciliatórias, mais ganha corpo a utopia, como nos
episódios descritos na citação acima. Então, cada vez
fica mais distante a meta.
A insuficiência teórica do projeto polít ico
caneciano aqui se faz sentir de modo acentuado, pre-
judicando-o visivelmente.
256
O conceito do povo, por exemplo, apresenta-se
ambíguo, ora num sentido depreciativo, ora num signi-
ficado mais dignificante.
O carmelita pernambucano, nesse passo, como em
outros, sofreu a influência elitista de Locke e de
Montesquieu. E porque não dizer da própria tradição
absolutista?
De sorte que, ao dizer que a soberania vem do
povo, fica no terreno da imprecisão, não se sabendo qual
autor ou qual momento lhe dita o significado.
Ao aludir às três classes: nobreza, clero e povo,
provoca a dúvida quanto à soberania residir no povo
como classe ou no Povo, reunindo todas elas.
Há momentos em que Caneca revela grande
pessimismo com relação ao povo.
Não tem confiança nele.
É profundamente elitista.
Num dos seus escritos assevera que
“a volubilidade e o amor da novidade é, como diz o
Venusino, o caráter essencial da população; a qual hoje
lança por terra e despedaça as estátuas, que ontem
levantou aos seus bemfeitores e aos seus heróis. Mas que
tenham assim obrado homens, que pelos seus talentos, sua
doutrina e suas ações pareciam estar sobranceiros ao povo,
nos faz ou chorar com Heraclito a loucura e inconstâncias
dos homens, ou delas nos rirmos com Demócrito”.(191)
Assim, não é de admirar que afirme: “A canalha
de qualquer lugar é a parte mais ínfima do povo, pela
sua qualidade, pelas suas ocupações, pelos seus vícios,
pela falta de educação honesta”.(192)
257
De outro ângulo, quando o instante político,
muito provavelmente, exige que se afague o povo, tem
para ele palavras enaltecedoras.
Diz, por exemplo, que os matutos, os homens do
mato, “são o verdadeiro órgão da pública opinião”.(193)
Também condena a aristocracia, com os seus
privilégios abusivos, vendo na concentração ou na
“reunião das diversas regalias no chefe do poder
executivo”(194)
uma forma de sua manifestação.
No entanto, isso não retira de Caneca o elitismo,
mas atenuado, próprio da época em que vivia, de
transação entre a velha e a nova ordem.
É justamente esse elitismo que arrefece o ímpeto
revolucionário, nacionalista, de congraçamento amplo
das raças, do europeu, do brasileiro, caindo muito na
retórica ao colocações que a respeito faz em “Sobre o
que se deve entender por Pátria do Cidadão”.
No auge da crise política, em 1824, na ocasião de,
com a pregação da democracia, se apelar para o povo e
com a necessidade do seu recrutamento para a luta
armada, para a insurreição, sente-se a falta da comu-
nicação consciente com ele. Porquanto, entre outras
coisas, não fora suficientemente valorizado no libe -
ralismo radical.
Recorde-se que, na época, os proprietários rurais
detinham a vida política. Fora eles havia a grande massa
de escravos e uma esfera reduzida de homens livres, d e
pouca valia política. Desse modo, percebe-se que Frei
Caneca nutria uma concepção de povo, bastante
condicionada pela realidade social do seu tempo.
258
A propósito, preciosa a informação de Paulo
Mercadante:
“Quando da independência, na segunda década do século
passado, o Brasil político era algumas centenas de
famílias dispersas pelos extensos latifúndios e que
constituíram a única realidade política do país. Uma
sociedade de proprietários, em geral rudes, cuja vida
repousava naquela dualidade econômica já aludida.
Senhores de escravos nos domínios e comerciantes de
produtos de exportação. Entre essa gente próspera das
fazendas e a massa de escravos, mestiços e cafusos,
vegetava com ínfimos salários nos centros urbanos uma
parcela reduzida de homens livres. Estes dispunham de
modos de pensar correspondentes a estratos sociais
inferiores, sem validade pública; ao domínio é que caberia
fornecer grupos sociais encarregados de proporcionar uma
visão do mundo para a sociedade senhorial”.(195)
E não há dúvida que o frade pernambucano
representava os interesses de uma elite proprietária que,
na sua província, chegara a um estado de radicalismo,
conforme se analisou no primeiro capítulo.
Trata-se de uma circunstância na qual somente os
elementos dessa elite e os seus prepostos, e entre estes
os que compunham uma intelligenza, tinham re-
presentatividade política.
O restante era aquela massa amorfa, ociosa ou
agarrada ao sub-emprego, a turba, facilmente trabalhada
para as agitações.
Em uma circunstância tipicamente pernambucana,
que empolga o espírito de Caneca, retirando-lhe a
possibilidade de uma visão coerente do todo nacional.
259
Ao expor “no Typhis do dia 10 de junho os
princípios da separação das províncias, sente -se quanto
em seu pensar o sentimento local estava acima do
sentimento nacional, quanto Pernambuco preocupava-o
mais que o Brasil inteiro”, escreve Tobias Monteiro.(196)
Em face dessas colocações, a utopia caneciana se
circunscreve nos domínios da mentalidade conserva-
dora. E o radicalismo que preconiza não passa dos
limites da luta armada. Tudo isso não obstante
Rousseau, Mably e outros genuínos radicais.
Esses pensadores, cm o acréscimo da concepção
do Cristianismo propagada pelo heróico carmelita,
provavelmente a face mais original do seu pensamento,
e mais Cipriano Barata, dariam os aspectos de maior
abertura do liberalismo radical entre nós.
Todavia, todo esse material é manipulado por ele
com vistas à montagem e ao desdobramento de sua
estratégia.
E nesse material se inclua o subsídio do
constitucionalismo da Restauração, do próprio libe-
ralismo centrista ou moderado, do racionalismo
tradicional.
A utopia caneciana se dobra àquela estratégia.
Esta é estilizada ideologicamente em momentos
sobrepostos, com o objetivo de alcançar as metas
políticas, que culminariam numa república democrática
federativa.
A conciliação do elemento doutrinário vário se
põe nessa perspectiva. É preciso ver o pensamento
caneciano sobretudo como um pensamento político, para
260
se entender o jogo da manipulação de dados díspares,
com vistas aos interesses que abriga.
Nunca demais o realçar o vigoroso caráter
ideológico aí incrustado, ao qual se ajunta a camada da
utopia, em larga desenvoltura. E com essa estratégia e
ideologia, ou melhor dizendo, o elemento utópico da
ideologia não se conforma com razoável precisão aos
quadros da realidade objetiva. Principalmente quando se
tem em mente a tarefa a empreender, a se operar, uma
mudança importante nessa realidade.
Daí o reforço compensatório do voluntarismo, do
moralismo. E, por essa via, conciliando a “razão” liberal
com as exigências da ação.
A “sobreimposição” que marca a ideologia
caneciana, e já comentada, viria com o impulso político,
num período de impossível elaboração autônoma do
material nacional. Ela também reflete os momentos, o
exercício da estratégia política. Disso a simplificação é
uma conseqüência natural.
O legalismo, tão presente na obra de Caneca, por
si só, atesta essa simplificação, sofreando o alcance
utópico, na linha do liberalismo.
A mobilização do discurso racionalista. Retórica e do-
mínio autoritário da linguagem. O estilo polêmico na
confluência do padrão racionalista e da circunstância.
O discurso racionalista tende a criar uma situação
de arbitrariedade no jogo complexo dos signos, das
expressões, das frases, projeções mesmo dos axiomas,
261
das premissas, de antecipações cristalizadas de formas
verbais, que constituem a base mesma do arrazoado.
Ele utiliza uma linguagem que busca a coerência.
Mas não de um modo a referenciá-la no contexto
dinâmico das objetividades, com o rigor que lhe é re-
querido. Assim, é um discurso silogístico, auto-demons-
trativo, auto-suficiente, autoritário.
Por isso, privilegia a forma, com prejuízo do
conteúdo. Não sem razão, e a partir da Aristóteles, a
lógica, no discurso racionalist a, é imanente à linguagem,
na expressão sintática se firmando.
A semântica é o próprio mundo dos significados
fornecidos pela palavra como criação artificial, e não
como o reflexo pleno da realidade humana, aí.
Então, o mundo, essa realidade humana, con-
tinuam distanciados do sujeito. E o diálogo se ressente
de maneira inusitada, fortalecendo o exarcebamento
ideológico, os preconceitos, o monólogo, que cristaliza
e dogmatiza “posições”.
Sustenta Georges Gusdorf:
“Le langage manifeste la transcendance de la réalité
humaine, seule capable de constituer le monde. Avant la
parole, le monde n’est que le contexte actuel, toujours
évanouissant, des comportements humains, sans même que
soient bien délimités les confins de la personnalité et de
l’ambiance. Le langage apporte dénomination, précision,
décision; à la fois conscience et connaissance” .(197)
Daí porque não pode haver dinâmico e eficaz
relacionamento sujeito-objeto, pessoa-mundo, sem uma
262
linguagem que seja o meio de expressão vigoroso dos
acontecimentos, dos desdobramentos do real, com o
enriquecimento correlato da subjetividade.
Quanto mais a linguagem se insere nesse contexto
dialético, como instrumento de uma expressão humana
aberta para o novum, para o ser em processo de
plenificação, que divisa horizontes, que perscruta
tendências, que arma antecipações, que é futurística,
mais ela torna flexível a sua estrutura.
E, nesse caso, instrumentaliza a liberdade de
forma criativa, no plano da pessoa humana e da
sociedade. Ela marcha concomitantemente com o pen-
samento, que é sempre palavra.
O discurso racionalista criou uma compensação
artificial às suas limitações estruturais no tocante à
abertura para o mundo; o normativismo.
Por ele e através dele se formaram expressões
típicas, nasceram fórmulas, estereótipos, tão freqüentes
nos pensadores, nos publicistas, e que alicerçaram
concepções, construções político-jurídicas, um direito
natural a se sobrepor às contingências particulares.
A falta de uma linguagem dinâmica, integrada
funcionalmente com a cultura, com sólidos liames
antropológicos, cavaria a situação de se pretenderem
universais aquelas fórmulas, quase todas verdadeiras
ficções, mas absolutizadas pelo liberalismo.
E a linguagem senhorial, com muita ênfase vei-
culada pela sociedade tradicionalista e, at ravés da
retórica, principalmente no período da Restauração,
andaria de mãos dadas com a linguagem do liberalismo.
263
Nos escritos de Frei Caneca, tocados pelo espírito
da Restauração, isso se fez sentir com ascendência.
Os seus sermões são trabalhados seguindo os
critérios dos melhores mestres da Eloqüência. E sobre a
qual elaborou um tratado.
Mas a retórica não fica apenas aí. Ela pervade
toda a obra caneciana, ora isoladamente, ora em com-
binação com a linguagem mais direta, simples.
Exemplo solitário é o “Itinerário”, onde o autor
faz um relato muito fiel dos eventos, sem qualquer
atavio literário, como quem está redigindo uma carta.
Aqui não há o emprego da retórica.
No panfleto, evidencia-se um estilo próprio, de
alta exacerbação ideológica, no qual se realiza
integralmente aquela combinação. Ele constitui um
extraordinário campo de pesquisas.
Pois onde a retórica, a ideologia, o autoritarismo,
dão ao discurso uma configuração especial, traduzindo à
perfeição a postura política utópica-radical do carmelita.
Todos os números do “Typhis Pernambucano” assumem
essa forma.
Com efeito, sem a análise da linguagem retórica,
nos seus diversos desdobramentos, não se compreenderá
de todo o discurso caneciano.
A retórica, pela sua natureza, dispõe de auto -
dinamicidade, de uma movimentação própria, sob
princípios ordenadores, com larga captação de recursos
na esfera dos sentimentos e da imaginação sob o
pretexto de agradar a leitores ou a ouvintes.(198)
264
Nisso, ela se pode converter numa ideologia,
quando não é já de começo uma ideologia.
Afora o elemento intelectual, sobre o qual age a
influência retórica, induzindo a confirmação ou a
modificação dos dados que o sujeito, que recebe a
mensagem, possui a respeito da circunstância presente
ou do futuro, o elemento afetivo, muito dinâmico na
manifestação ideológica, pode levar o mesmo sujeito
“a desejar ou a temer a realidade de certos dados da
situação presente ou a realização de certas eventualidades,
quer despertando neste parceiro a esperança de certas
satisfações ou o receio de insatisfações, quer, ao
contrário, procurando inibir tais esperanças ou
temores”.(199)
E se observe que a nota dominante dos escritos de
Frei Caneca é a de convencer os leitores da certeza e da
veracidade de suas teses, num estilo demonstrativo ou
jurídico, que traz as informações ao interior do
arrazoado mais para aumentar o poder de convencimento
do que para construir as mesmas teses. Estas estão
previamente estabelecidas. Cumpre levá-las adiante.
Mas não houve mudanças no projeto polít ico
caneciano, com o desdobramento dos acontecimentos?
Sim, de fato. Isso não trouxe, contudo, alteração
na técnica, na forma do poder de convencimento.
A retórica facilmente se mantém em diferentes
domínios do saber ou dos saberes. Transpõe-nos mesmo
atingindo todos os campos da realidade humana, ine-
rente que lhe é uma linguagem geral, projeção indis -
265
cutível das práticas sociais. Uma constante ideológica,
que assume maior ou menor intensidade, esta ou aquela
configuração, a depender da circunstância histórica.
Para Roland Barthes, “a retórica é a técnica
privilegiada (já que só pagando se consegue adquiri-la)
que permite às classes dirigentes assegurar-se a pro-
priedade da palavra”.(200)
Até o século XIX ela reinou, numa ampla
oficialização, normativamente imposta, sobrevivendo
hoje em certas atitudes ideológicas facilmente
identificáveis.
Barthes tem inteira razão. Em Caneca é manifesta
na mobilização retórica, a vontade de poder de uma elite
burguesa, que se vê distanciada da propriedade política.
O autoritarismo de sua linguagem, energicamente
afirmativa, se compraz no jogo retórico do monólogo de
quem se reputa dono da verdade, e que a defende
exacerbadamente.
Na verdade, a retórica é uma linguagem senhorial
correlativa de uma ideologia da forma.
Ela quer se sobrepor à história e se pretende
invulnerável aos seus determinismos.
Representa uma sócio-lógica e contém uma
identidade taxionômica, em correspondência com o
estrato histórico que lhe é inerente. E de tal sorte que,
desfeito esse estrato, ela se esboroa.(201)
Eis que a dimensão utópica do liberalismo ra-
dical, entre nós, somente se viabiliza da forma singular
explicitada, a saber mediante a superposição lingüística
que acompanha a superposição ideológica. Outros níveis
266
de linguagem que não o da retórica, principalmente, ou
em combinação com ela, veiculam a mensagem utópica.
A mentalidade conservadora, por sua vez,
permite, sem graves danos para a elite proprietária, que
tal mensagem transcorra as esferas sociais que lhe estão
atreladas. Pois ela com ou sem os ingredientes retóricos
não transpõe perigosamente os lindes dessa mentalidade.
Assim, corre frouxo o desdobramento utópico no
plano do discurso caneciano, sem abalar a ordem social
vigente.
Jamais esse discurso reúne condições de alcançar
a ascensão do discurso rousseauniano, malgrado as
influências deste.
Jamais ele se levanta contra a propriedade, contra
as desigualdades sociais.
A não ser a condenação expressa nas “Bases para
a Formação do Pacto Social” à escravidão, não se
registra uma Palavra enérgica à malsinada instituição.
Ao fazê-lo ele estaria infringido as linhas mestras da
ideologia senhorial que compartilha.
No discurso caneciano é trancado o acesso p leno
ao real.
Nele, linguagem e ideologia tecem uma viva
intercorrência dialética, sendo difícil a separação entre
ambas.
Essa intercorrência dialética não se estende
funcionalmente à dinâmica social.
Porque a linguagem continua com as mesmas
construções, com o mesmo ordenamento tradicional das
proposições, tendendo a conservar intactos o mundo do s
267
valores, a retórica, o conjunto articulado dos sig -
nificados.
Tais valores, dado aquele relacionamento teoria -
prática, afinavam com as operações rotineiras da so -
ciedade pouco dinâmica.
Assim, ocorria até que conservadores, e foram
muitos os que aderiram à Confederação do Equador,
eram liberais radicais, uma camada da burguesia que
achava no radicalismo uma abertura para os seus
interesses.
Isso obstruiu uma concepção eficaz da história.
O estilo polêmico-panfletário seria a exacerbação
dessa linguagem ganhando a dimensão plena da
linguagem política, na qual emerge o sentido neurótico
da disputatio.(202)
E não é a exacerbação das “posições” a projeção
do fechamento da linguagem, que impede a composição
dialética dos pontos de vista, o reconhecimento dos
dinamismos sociais, um denominador comum de in-
teresses em torno dos objetivos públicos, num período
de intenso privatismo, que cobria os segmentos da
classe dominante, determinando que cada um deles
guardasse intransigentemente a sua posição?
Daí não vinha que o campo do discurso, na
contextura de proposições axiomáticas, de juízos abso -
lutos, fosse o abrigo da certeza inquestionável, dos sig -
nificados irremovíveis e seguros?
Ora, na prática panfletária isso se intensificava.
Os interesses políticos em jogo assim o ditavam.
As paixões eram gigantescas no tempo.
268
O teor ideológico recrudescia, alcançando o
pathos efervescente, numa circunstância vivamente
conflitiva. E a nota conflit iva era mais intensa porque
resultava da contraposição entre segmentos da elit e do-
minante, que só conhecia uma linguagem, a do
autoritarismo retórico.
Havia, então, a confluência do mesmo padrão
lingüístico-ideológico, desconhecendo-se outros, apenas
possíveis numa sociedade razoavelmente diferenciada.
Pois se houvesse tal diferenciação social, e com
ela a diferenciação do discurso, da linguagem, quebrar -
se-ia aquele autoritarismo. O tom exacerbado do dis -
curso, da polêmica arrefeceria.
Até onde entra aí a atmosfera do sagrado de uma
sociedade, o absolutismo religioso que se projetava no
sermão, na eloqüência que o armava?
A eloqüência tem um papel destacado aqui. Ela é
campo propício ao juízo absoluto, à verdade absoluta.
O que dizia esgotava o tema. Ela quer demonstrar
as altas teses.
Essa demonstração desce até ao panfleto.
Apenas este se faz mais ideológico, mais circuns-
tancial, mais ao nível do conflito. Assim o conflito entre
liberais centristas e liberais radicais.
A superposição é evidente: racionalismo sobre
acontecimento, ensejando o desnivelamento ideológico
por razões estratégicas e de composição teórica, com a
reunião de material diverso, sobretudo em função da
circunstância. O que se faz com certo arbítrio, com certa
simplificação.
269
O absolutismo do discurso racionalista o fran-
queava. Mais ainda no momento do confronto.
Diante dessas considerações, apreende-se melhor
a correlação entre utopia e discurso em Frei Caneca.
Esse discurso é urdido de tal modo que a utopia
nele se apresenta com uma especial conformação.
Preliminarmente se observe que, em termos
gerais, “el campo de la posibilidad lógica es más amplio
que el de la posibilidad real”, segundo Frédéric
François.(203)
Aí está um traço fundamental do discurso. Disso
se vale o heróico carmelita para impor a sua estratégia
político-ideológica, conforme os moldes expostos.
Nela se manifesta uma racionalidade que não se
dá conta do irracional que absorve.
Dir-se-ia que a possibilidade lógica, adquirindo
inusitada auto-suficiência, gerava possibilidade dita
real, na verdade se traduzindo em segmentos quebrados
da realidade objetiva, da história que se fazia.
O caso da República Federativa, o do auto-
ritarismo contido no poder central, formam exemplos
expressivos de um desdobramento utópico não alinhados
dentro de uma perspectiva global de dados concretos,
perfeitamente imbricados entre si.
Por isso, prestam-se mais ao uso político-
ideológico, dando-lhes conformação própria.
É que, a ideologia caneciana, como as demais,
incluindo as contemporâneas, e ela com as limitações do
período, desenvolve-se em situação conflitava, portanto
uma imagem verossímel do real.
270
“Lo que hace posible, linguisticamente, el conflicto entre
las ideologias, es que todas ellas son verosímiles.
Verosimil no se opone a cierto. Atribuimos mucho menos
certeza a nuestras ideologias que a nuestra ciencia, en la
cual el análisis se efectúa, antes, en términos de
probabilidad. Verosímil significa: alli donde no que se
puede hacer otra cosa que mostrar donde la demonstración
analitica no es más que un artificio”. (203a)
Nos escritos do frade pernambucano essa ve-
rossimelhança adere à estratégia político -ideológica que
perfilha, numa estrutura de superposições lingüísticas,
na qual a retórica tem primazia.
Então, nasce o artifício que viabiliza a pregação
utópica sob os condicionamentos da mentalidade
conservadora.
Quer dizer: o material libertário, o mais avançado
no tempo, é utilizado em prol de determinados objetivos
políticos, adaptando-se perfeitamente àquela estratégia,
com o esvaziamento de teses que, noutro contexto,
levariam a perturbações mais sérias da ordem cons-
tituída. Os agentes do liberalismo radical entre nós in-
tegravam a elite dominante, com interesses, com
linguagem, com práticas, com comportamentos próprios
dela.
A concepção do mundo que adotavam se chocava
com a dos liberais radicais de outros países, não só pela
diversidade de contexto cultural, como também pelo
desnivelamento de linguagem, pela maior ou menor
abrangência de utopia, pelo maior ou menor aco -
lhimento do universal, pelo maior ou menor desen-
271
volvimento dado ao problema da liberdade, pela
densidade antropológica e social, aprofundada nas
fontes, mitigada aqui.
Com Michel Foucault torna-se possível um exame
mais apurado dos diversos discursos que, ao longo dos
tempos, constituem amostras sucessivas de
regularidades, imanentes às quais uma prática.
Tais regularidades entendem diretamente com
conjuntos de enunciados.
Usando a expressão daquele filósofo, quer-se
acentuar aqui a “homogeneidade enunciativa”.
Ela compõe uma unidade global que permite uma
compreensão mais ampla das articulações que se
desenham no emaranhado das práticas discursivas.
Por isso, abre horizontes, alarga perspectivas de
apreensão do dizer humano, e com todas as implicações
de ordem antropológico-existencial.
E Foucault diz que a homogeneidade enunciativa
se distingue da “analogia lingüística (ou traduti-
bilidade) e da identidade lógica (ou equivalência)”.(204)
Ela marca períodos específicos, mas não
herméticos, porque a sua influência cobre vários deles,
embora sem a plena autonomia e o domínio do momento
originário.
Em todo discurso há enunciados diretivos a
condicionarem o campo da observação e o dos objetos a
serem detectados, os modos de descrição e de exegese, a
formação dos conceitos com uma conseqüente aplicação,
as colocações estratégicas que manipulam recursos da
linguagem, da lógica, certas técnicas.
272
Assim, a homogeneidade enunciativa utiliza
elementos da linguagem, das configurações lógico -
epistemológicas, dos procedimentos metodológicos, das
filosofias, das visões do mundo, sem se confundir com
nenhum deles.
E não lhe escapam também o jogo entre as
instituições, as práticas sociais, as ideologias e as
linguagens.
Nisso, Foucault dá uma original e importante
contribuição às ciências humanas, considerando-se que
o “objeto (destas) é agora a linguagem, as leis segundo
as quais se organizam as linguagens sociais, históricas
ou psicológicas. A consciência não é mais, nessas
condições, do que uma representação – o mais das
vezes, falaciosa dos determinismos que a or-
ganizam”.(205)
No setor das ciências humanas, a história, e mais
particularmente a história das idéias, muito aproveitou
da “descoberta” da arqueologia. Porque através dela se
capta com especificidade as formações discursivas, os
enunciados, o campo enunciativo, as práticas discursivas
etc., sublinhando diferenças.
Verdade que entre arqueologia e história das
idéias há uma radical contraposição de procedimentos,
de objetos.
A única afinidade entre ambas proporciona-a o
fator tempo, a sucessão, fazendo da arqueologia uma
história.
Todavia, tendo em mente aquela relação já
mostrada entre linguagem e determinismos sociais, entre
273
linguagem e práticas que afloram no campo da cultura,
não há como deixar de reconhecer a utilidade para o
historiador das idéias da elaboração de Foucault.
Desse modo, just ifica-se plenamente o emprego
da arqueologia na análise do discurso de Frei Caneca.
E tanto mais quanto se percebe que esse discurso,
composto principalmente entre 1820 e 1824, retrata
certas regularidades, certas formações, próprias do
racionalismo clássico, e analisadas pelo filósofo francês.
Por outro lado, não fica tudo aí. Pois uma
perquirição não muito demorada colherá no discurso do
clérigo revolucionário de diferentes níveis, todos eles
articulados operacionalmente, e com vistas à propagação
do liberalismo radical. Assim como à estratégia da luta
armada e ao confronto de ideologias panfletárias. E
refletindo o momento subseqüente à independência
política do país, o qual culmina na Confederação do
Equador.
Aqueles diferentes níveis, sobrepostos uns ao s
outros, denunciam uma formulação composta, a teoria
política de Montesquieu, o federalismo e as projeções da
circunstância, como se analisou.
Essa formulação produz uma distribuição peculiar
dos enunciados, maior ou menor afirmação das
verdades, diversificação de ritmos de linguagem e de
estruturas narrativas, segundo o gênero da produção e a
conjuntura, ambos postos freqüentemente em relação
dialética.
De modo que ao se pode encontrar a linha de uma
rígida uniformidade, aí.
274
Na verdade, existem diversos campos enun-
ciativos nos escritos de Frei Caneca, atestando aquele
caráter compósito.
Sermões, panfletos, obras didáticas, relatos his -
tóricos, diário, estudos cívico -políticos, análises
teológicas, integram o acervo intelectual do autor em
foco. Essa variedade por si só marca a existência de
variados campos enunciativos, de desníveis no discurso.
O que se intensifica pela força da circunstância, muitas
vezes. Mas não convém esquecer que, no bojo das
diversificações, na trama das sobreposições de lin-
guagens, permanece subjacente o discurso clássico.
E o afrontamento dinâmico da conjuntura, ao
realçar a insuficiência ou a indigência desse discurso,
como que lhe forneceu uma compensação.
É que a linguagem que nele se externa acentua
uma soberania, a qual mais acentuada ainda no calor da
refrega panfletária e na crispação revolucionária.
Num primeiro momento, a dita soberania se
confina estritamente ao espaço da representação. E de
uma maneira que o pensamento é imanente à repre -
sentação, e não ao mundo.(206)
Num segundo momento, porém, essa linguagem,
pela sua inacessibilidade ao mundo, se fecha em
introduções retóricas e autoritárias do discurso, ne -
cessitando de um complemento para comunicar o
evento, o desenrolar da conjuntura. E assim vem a
sobreposição, o desnível, a desritmia, manifestos de
forma particular: através do relato periodístico, que tem
muito das palavras do senso comum.
275
Ao final de contas, efetuou-se uma derivação que
apenas toca a realidade exterior, sem lhe absorver o
cerne, distanciada ficando de suas conexões desve-
ladoras. E é justamente aqui que entram em cana o
doesto, a incriminação violenta, a repulsa enérgica aos
adversários.
Isso funciona não de forma uniforme, porquanto,
como se disse a ausência de uniformidade percorre todo
o discurso de Frei Caneca.
Trata-se, contudo, de um esquema que funciona
no interior das formações particulares de enunciados,
ora com maior ora com menor intensidade.
Tome-se um exemplo claro, o da dissertação que
tem por título “Sobre o que se deve entender por P átria
do Cidadão, e deveres deste para com a mesma Pátria”.
Na introdução, coloca ele as premissas, racio -
nalistas como sempre, do tema que irá desenvolver
adiante.
Nelas faz aflorar a supremacia das idéias sobre o
contexto social, sendo elas independentes dele, como
verdades que se absolutizam, que requerem apenas
aplicação prática. E nessa aplicação prática se con-
servam incólumes. Tal espelha os contornos dogmáticos,
herméticos e soberanos do pensamento como repre-
sentação, e nada mais do que representação.
Escreve o monge carmelita:
“Sendo dado ao homem o entendimento para, ao favor de
suas luzes, saber marchar nos diversos caminhos da vida,
e ser-lhe um como fio de Ariadne no intrincado labirinto
do mundo, quem poderá duvidar, que não sendo este bem
276
formado com as idéias das coisas humanas, cairemos em
erros absurdos?
Com efeito, as idéias falsas e inexatas, que fizermos das
coisas sociais, produzirão infalivelmente juízos falsos,
incoerências, crimes, atentados, perturbações da sociedade
e a sua ruína final”.(207)
E ele prossegue atribuindo a selvageria de um
povo à sua ignorância.
É pela instrução que o cidadão pode prestar o
maior serviço ao seu país.
Ao trazer à colação trechos da poesia de Horácio,
reforça o apelo racionalista ao acervo do humanis mo
greco-romano.
E, aqui particularmente, esse acervo tem um
efeito probante, demonstrativo. Pois se compreende que,
na soberania da linguagem racionalista, principalmente
de matiz clássico, o argumento da autoridade tenha
especial privilégio.
Na peça em exame a introdução vale como
introdução retórica, tal como usual nos sermões da
época.
Daí parte para a abordagem propriamente dita do
tema, que é motivada pela intensa rivalidade, respon-
sável por muitos atritos, entre portugueses e per -
nambucanos. E o faz sem se deter em algum momento
sobre os determinismos próprios da conjuntura, moti-
vadores do confronto.
O que responsabiliza pela rivalidade?
Nada mais, nada menos que “a falsa idéia, que se
tem feito da Pátria do Cidadão”.(208)
277
Então, não percorre o autor sequer a epiderme de
uma trama causal dos acontecimentos.
Apenas faz menção ligeira de datas-chaves, de
episódios marcantes da história pernambucana, no que
concerne à dita rivalidade, e através de um estilo
retórico, que estabelece de logo uma estratégia peculiar
para o discurso.
É uma estratégia que, tal como o sermão, quer
convencer, e não explicar ou interpretar.
Daí porque não se tira daí senão a lição moral.
Longe estava a época, entre nós, de um cuidado
pressuroso sobre o encadeamento dos fatos uma língua-
gem que o encarnasse.
O moralismo, tão transparente no discurso ra-
cionalista, é o centro mesmo daquela estratégia, que
prepara a distribuição dos enunciados, a articulação de
um sentido que é mais o do sujeito que fala do que o dos
eventos, o das “coisas sociais”.
As regras de composição do sermão, não no seu
rígido formalismo, mas no espírito que procria, contudo,
a indefectível disposição formal, estão aí presentes.
Elas ditam o acasalamento do estilo retórico, com
pesada carga sobre enunciados prenhes de afirmações
didáticas, com a intentio probandi.
Natural, então, que as proposições, ao darem
conta da infidelidade dos homens e dos fatos à oral
inerente ao discurso, tendam à recriminação, à censura
acre das pessoas sobre as quais caia responsabi lidade
das práticas sociais, das conjunturas.
E, desse modo, transborda o individualismo.
278
Ele é a face natural do moralismo, da ênfase
sobre o sujeito, numa época em que o objeto permanece
subsumido nas malhas da linguagem, como uma coisa
opaca e pouco translúcida.
Estranho o conúbio aí entre eventos trazidos em
citação, e ocorridos em períodos transatos, como a
Antigüidade, e os contemporâneos, apenas aflorados,
fazendo da História algo inanimado, que já disse todas
as coisas.
É a História do tempo cíclico, fruto da concepção
grega. Ela constitui material didático, servindo ao
intencionalismo moral.
Como então não ver que, assim, a linguagem
também é cíclica? Não sem razão o tema da pátria
recebe um tratamento especial, herança típica que é da
tradição romana, transplantada para o racionalismo
clássico. E se prestando para configurar enunciados-
modelos, inseridos na doutrina liberal.
Qualquer que seja a situação, o acontecimento, a
conjuntura estão presentes tais enunciados no imo -
bilismo do discurso, correlativo do imobilismo social.
O tempo do discurso é correlativo do tempo
social.
Por isso, a linguagem jurídica, filha do modelo
clássico, é empregada com muito freqüência por Frei
Caneca, ao construir enunciados demonstrativos, os
quais podem pertencer à família dos enunciados-
modelos.
Ele mesmo também é um jurista, e invoca o
direito natural, com as fórmulas clássicas, as do direito
279
romano ou as posteriores, com o propósito de fun-
damentar enunciados-teses, de dirimir questões que ele
próprio suscita e não diretamente o contexto.
O legalismo representa uma face do moralismo,
insinuando-se com naturalidade numa linguagem que se
fecha ao real.
Com o legalismo aquele imobilismo recebe forte
respaldo.
E os objetos do discurso ganham, em função de
tudo isso, uma soma absurda de repetições, de
postulados cristalizados, que impede as distinções
naturais que há em cada um deles, à medida que o tempo
transfigura ou matiza as coisas.
No tema em foco, o da pátria, por força de
estereótipos enunciativos, Caneca invoca opiniões de
filósofos e de publicistas, desde os tempos greco -
romanos até os de sua atuação, para dar uma definição
de pátria, que acaba enrijecida e que não acolhe as
distinções dadas pelas épocas, pelos lugares.
É que, na linguagem jurídica, se identifica va o
leito natural da autoridade e da razão.
Não é de estranhar, portanto, que, em deter -
minado momento do seu “arrazoado”, afirme o frade
pernambucano: “Basta de autoridades, passemos às
razões”.(209)
Então, começa a fazer demonstrações silogísticas,
que constituem formas de derivações juntamente com as
“deduções”, a partir de certos postulados.
Tudo para justificar uma tese, previamente
colocada.
280
E novamente traz o apoio do legado greco-
romano e do Iluminismo: Ovídio, Cícero, D’Alembert,
Voltaire, afora outros, entre os quais estabelece uma
comunidade discursiva.
Pois entre eles situa uma intercorrência de
pensamento, de postulados de derivações, fundando uma
estratégia que tem muito do Iluminismo, mas também
dele próprio.
Por ela, autoridade e razão são elementos
inseparáveis, elos centrais de uma cadeia de enunciados
demonstrativos, que visam ao convencimento.
É que todas as derivações se fundam, ao final de
contas, no argumento da autoridade, direta ou in-
diretamente.
Como assim?
As deduções, mesmo sem se firmarem expli-
citamente num autor tradicional ou moderno, acostam-se
a uma formulação axiomática ou a colocações próprias
da tradição ou do racionalismo clássico.
De sorte que não há jamais uma linguagem
imanente aos fatos, a não ser em raros momentos,
quando o senso comum condiciona o relato.
Quer-se afirmar isso com despeito ao nível
enunciativo, do qual é exemplo frisante o do tema da
pátria.
Ainda aí se observa que o argumento da razão
ganha acentuado arbítrio, mercê da soberania da
linguagem que não se defronta serena e humildemente
com a realidade externa. E a ponto de incorporar ao
cerne da argumentação um dado que lhe é visceralmente
281
antípoda, contrário. Especialmente se se considerar a
linha de secularização que percorre o Racionalismo.
Esse dado é o da Providência, que emerge como a
intervenção de um poder superior ao dos homens.
Isso significa que o humanismo iluminista se
auto-limitava, não concedendo plena autonomia ao
homem, vendo-o ainda impotente no mundo.
Parece que a interferência de uma força
sobrenatural é inerente à estrutura de uma linguagem
que se mostrava indigente na edificação de uma
Antropologia voltada para o real, para o domínio do
concreto, de modo eficaz.
Caberia à Feuerbach iniciar o momento autônomo
dessa Antropologia.
A prática iluminista ainda se ressente do
adensamento contemplativo, não obstante o humanismo
que inaugura. A sua linguagem bem o demonstra.
Concomitantemente com o providencialismo, ins -
tila-se destacadamente em Caneca um certo pessimismo,
que se articula com o implícito reconhecimento das
imitações humanas.
Nesse ponto, há, de certo modo, uma contradição
com outros textos do autor, aqueles que se intervalam
em produções que indicam outros níveis enunciativos,
portadores de outras regras, de outras estratégias , de
outros contextos, de outros condicionamentos.
Porque o comum nele é uma confiança inabalável
no homem, como ser capaz de efetuar mudanças insti-
tucionais, de transformar situações de opressão, de im-
plantar um regime político sob o primado da liberdade.
282
Só em ele ser um revolucionário, um incon-
formado diante de uma estrutura absolutista ou auto -
ritária, não se comprazendo apenas com o protesto
verbal ou escrito e indo até à luta armada, diz bem da fé
que alimentava no homem como agente de mudanças.
De maneira que ao afirmar: “pede a razão que nós
olhemos toda terra como um lugar de desterro, à fim que
nos costumemos à todo lugar, à que nos levar a
providência”,(210)
deve-se admitir-se aí a postura comum
de uma sociedade sacralizada, na qual a religião exercia
um papel absorvente dentro da cultura e das instituições
brasileiras.
Isso naturalmente pesava na formação de um
religioso, malgrado os interesses seculares que, no
período, começavam a envolver o clero no país.
Tal se ligava ao contexto do discurso iluminista,
um grande instrumento de estímulo àqueles interesses.
Importante realçar que o providencialismo de-
nuncia um contexto lingüístico ambígüo, cuja expressão
semântica se demora sobre a liberdade, sobre o ativismo
do homem e, ao mesmo temo, sobre o “desterro” que é a
terra.
Frise-se, contudo, que, no jogo da ambigüidade
semântica, a ênfase é sobre o humano, o secular.
E o apelo à providência se faz normalmente como
reforço retórico da demonstração que se intenta, da
dedução que se faz.
Aquelas limitações antropológicas assim o
determinavam. Pois a linguagem soberana utiliza meios
compensatórios de um sentido que se articula com o
283
real. A falta de plenificação do sentido no real induz
essa prática.Todos os níveis do discurso do mártir
pernambucano adquirem identidade segundo os matizes
de linguagem.
É que esta dispõe de uma elasticidade que
acompanha talvez mais o gênero literário do que a
filosofia do escritor.
Os cortes de linguagem, obedecendo à uma
estratégia política ou didática (ou as duas combinadas),
formam diferentes discursos.
Assim, no sermão, no panfleto, no diário, na
dissertação, se desenrolam pensamentos, uma visão
teológica, uma analítica de conjunturas, uma filosofia
política, uma antropologia, uma concepção da
sociedade. E de uma maneira tal que se inserem não de
todo, globalmente, nesta ou naquela obra. Cada uma
enfatiza determinados significados, até com certa
peculiaridade de sintaxe, com uma formação enunciativa
particular, na dependência daquela estratégia.
Acontece até abandonar Frei Caneca a domi-
nância da enunciação demonstrativa para se concentrar
no relato seco, na descrição simples, que corre ao sabor
das impressões da campanha como guerrilheiro, ao final
do movimento confederativo de 1824, do qual foi o
ideólogo.
Tal se dá no “Itinerário que fez Frei Joaquim do
Amor Divino Caneca, saindo de Pernambuco a 16 de
setembro de 1824, para a Província do Ceará Grande”.
Mas ainda aí não se encontra ausente uma
“estratégia”, um tema, a teoria política, uma concepção
284
do homem, o providencialismo. E na introdução do
trabalho. É que aqui os objetos, a estrutura enunciativa
corrida, a explicitação semântica, os conceitos expen-
didos, respondem ao gênero do mesmo trabalho.
Daí o corte especifico que produz na obra do
autor.
Quer dizer: o que há de mais comum no discurso
caneciano, a alta densidade axiomática, formada por um
edifício de enunciados cuja base a compõem as pre-
missas da autoridade e da razão, e cujo topo ou
conclusão um determinado alinhamento dos fatos ou dos
objetos com vistas aos propósitos ou ao cerne axio -
lógico assentados na base, vai perdendo ou diminuindo a
carga desse modelo à medida que se passa dos escritos
mais doutrinários para os de pouca ou quase nenhuma
formalização ideológica.
A literatura panfletária do clérigo pernambucano,
malgrado os desníveis nela existentes, se enquadra entre
os escritos de menor densidade.
A ideologia, no recinto do panfleto, compõe uma
estratégia toda especial, na qual a doutrinação ora
alcança um alto teor de expressividade, na “introdução”
ou ao longo do desdobramento enunciativo, ora se
esmaece no relato factual.
Mas essa expressividade não se articula tanto com
aquela densidade axiomática, e sim com o impacto dos
acontecimentos de uma conjuntura política convul-
sionada.
Está-se na quadra subjacente ao momento da
Independência.
285
O confronto entre a idéia autoritária, abrigada no
liberalismo centrista, e a idéia libertária, com morada no
liberalismo radical, do qual Frei Caneca é o principal
arauto, o grande teórico, empolga os espíritos. E cons-
titui facções que se defrontam com exacerbação.
É então que se desenvolve a literatura panfletária,
cujos representantes máximos são José da Silva Lisboa,
pelo liberalismo centrista, e Frei Caneca, pelo libera-
lismo radical.
Isso na quadra compreendida entre 1822 e 1824.
Diga-se de logo que há uma visível comunidade
de métodos, de formação e de distribuição dos grupos
enunciativos, de tratamento dos objetos, de linguagem,
que denuncia o discurso racionalista.
Nos panfletos dos centristas há um privile-
giamento exaustivo do conservadorismo, que apenas
reorienta as colocações liberais, quer as atinentes à
ordem, quer as referentes à liberdade.
Interessante que aqui se correlacionam três or -
dens: a do cosmo, a da sociedade humana e a do dis -
curso, o que se veicula através de uma linguagem que
recapitula a representação, numa demonstração de que
não acompanhara essa facção certas conquistas da
empiricidade e do homem na linguagem da mesma
época, notadamente na Europa.
Nesse caso, ocorre um maior distanciamento entre
os objetos-eventos e a formulação enunciativa, com-
pondo uma prática que se esmera na sacralização dos
atributos majestáticos, autoritários, da ordem esta-
belecida. E com a emergência de um sentido vivo de
286
hierarquia dos seres, de hierarquia de estamentos, com o
rei no topo.
Um forte teor de religiosidade integra essa
ideologia.
Dentro de uma região fechada do sagrado a re-
resentação como que recobra forças, bloqueando no
interior dos enunciados, da estratégia, da organização do
discurso, a epifania de algo importante, a ruptura
provoca pela intensa crispação dos acontecimentos.
O sagrado se cinge à dimensão do tempo estático,
repetitivo. Coroa a soberania da representação e se
acompanha do móvel moralista, tirado do racionalismo.
No moralismo se manifesta também a comunidade
existente entre o conservadorismo e o radicalismo.
A diferença está em que no primeiro ele busca a
obediência, o posicionamento definitivo e eterno das
pessoas conforme a ordem estabelecida, o acatamento de
todos à autoridade intocável do soberano, que, na or-
ganização política, se situa de modo privilegiado, acima
de qualquer outro poder; e, no segundo, ele erige como
valor primordial a liberdade, cobrindo os opressores
com o estigma da desumanidade, da malvadeza etc.
A objurgatória violenta, os doestos, os insultos,
as diatribes contra os adversários políticos, tidos na
realidade como inimigos, a paixão virulenta das dis -
cussões, coisas assim que são imanentes à linguagem
panfletária, indicam bem a força do moralismo, afora a
natural paixão partidária do período.
Não se omita que o voluntarismo é uma das faces
do racionalismo.
287
Isso significa que a prática dos homens, o com-
portamento das facções, quando inspirados na ideologia
racionalista-liberal, estavam orientados por uma vo n-
tade, que se justapunha, mas não era do domínio natural
da representação, porque, como se examinou, essa,
fechada à realidade exterior, não integrava a ação, a
história, a praxis, campo específico do comportamento
humano.
Em conseqüência, produzia-se um fenômeno no
âmbito do discurso, o da sobreposição de blocos
enunciativos, um arranjo singular dos objetos, uma
atuação particular do sujeito ou dos sujeitos, um tipo
original do relacionamento sujeito-objeto, uma mar-
cação distinta dos eventos, determinando uma estrutura
de linguagem, a panfletária.
É digno de interesse a verificação daquele esmae-
cimento da força axiomática no ordenamento dos
parágrafos, no aligeiramento do estilo, na simplicidade
da sintaxe, da estratégia.
Mas é justamente no dito esmaecimento que
ganha relevo e energia o discurso político, agora armado
de maior poder de comunicação. Poder de comunicação
que é vontade de poder, que atravessa com impe-
tuosidade os círculos da elite letrada e proprietária,
levando o apelo à ação ou à reação.
Esse apelo não passa pelas mediações sociais, não
se socorre de uma análise das possibilidades do
manuseio e das modificações dos objetos, de um plano
de superação dos males condenados, dos fatores que
confluem, quando devidamente absorvidos, para o bom
288
desempenho das atividades políticas, e com vistas ao
êxito da causa esposada.
A linguagem racionalista não o permite.
Vem então o voluntarismo, cujas projeções claras
e impositivas constituem a própria densidade moral de
um agrupamento de enunciados, a estrutura de com-
posição do texto, por onde caminham como gritos de
fogo as recriminações contra a violação das teses da
ideologia política abraçada pelo panfleto.
As infringências ao modelo do constitucionalismo
liberal puro, sem concessões à velha ordem monárquico-
feudal, são recebidas, pela facção radical, como atos que
denunciam uma trama de grupos conservadores, a al-
mejarem o retorno ao estado de dependência a Portugal.
Manifestações anti-liberais de Pedro I, como a
dissolução da Assembléia Nacional, levam aquela
facção a ver a execução da mesma trama.
E então vêem no corpo do discurso panfletário
uma estratégia moralista na qual os dados do hu-
manismo iluminista, habitualmente jogando com me-
táforas, com disposições retóricas que absorvem desde
elementos da mitologia grega até às projeções da
história, se acasalam com os episódios integrantes da
conjuntura nacional ou provincial, sempre terminando
com invectivas, com censuras acres ao despotismo
ministerial, a uma política oficial que pratica arbi-
trariedades, prisões ilegais, atos anti-constitucionais.
E tal numa escala ascendente, a começar aí por
1823, até culminar no concitamento à revolta armada
para defender, entre outras coisas, a autonomia pro -
289
vincial, o absoluto respeito aos direitos individuais, u ma
constituição que estabeleça a supremacia do poder
legislativo, aquele que abriga a representação nacional,
a voz do povo.
O estilo do panfleto é polêmico, que afronta o
adversário com palavras de fogo, inserindo-o no interior
de uma estratégia entremeada pela descrição factual,
pelas colocações retóricas, pelo tom de desafio, pela
ironia ferina que acompanha a objurgatória, pelas de -
clarações de heroísmo.
Ocupa o discurso panfletário um lugar especial
num contexto estratégico que responde aos desafios
reiterados, freqüentemente duros, da luta política.
Por isso, ao contrário de outros escritos, vê -se
constrangido ao confronto envolvente dos fatos, das
ocorrências da conjuntura tumultuada.
O alinhamento enunciativo que, em função disso,
se dá, enseja dificuldades. Porque a realidade exterior
não sabe de modo funcional no seio da representação
inerente a uma teoria que apenas começou a romper a
opacidade da linguagem, se conseguir, porém, con-
figurar os objetos, os fatos, numa dimensão de processo
sócio-político.
Porém não se esqueça que, no âmago do discurso
panfletário, é que Frei Caneca, como outros, conseguem
maior sintonia com os eventos, com a conjuntura.
A indigência ainda persistente nesse gênero não
autoriza um apanhado, mesmo periodístico, da situação
factual. De modo que a descrição não equaciona devi-
damente a trama conjuntural, o emaranhado completo
290
dos fatos e do mundo de significados daí decorrentes.
Porquanto esses fatos são os marcantes de uma
conjuntura, como o da dissolução da Assembléia Na-
cional, e compondo uma classe de enunciados in-
tercalados na exposição ideológica, a do liberalismo
radical, e com o sentido de afirmação autoritária dessa
exposição.
Não há uma correlação dinâmica entre os fatos e
a estratégia presente no discurso. É que faltou uma
análise mais minuciosa, mais objetiva, salientando o
jogo das realidades nacional e provincial, os meandros
da situação real da sociedade civil e as suas ligações
com a sociedade política, adotando uma nomenclatura
tão a gosto dos publicistas liberais.
A radicalidade do discurso caneciano, nessas con-
dições, malgrado uma prospectiva, uma utopia, que lhe
são imanentes, se fechava no bojo de uma estratégia
ainda muito tocada pela representação, insusceptível de
realizar a abertura ampla e dialética com a conjuntura,
até ao ponto de modificá-la operacionalmente.
Tudo isso está presente na vasta polêmica par -
tidária que desenvolveu no “Typhis Pernambucano”, em
“Cartas de Pitia a Damião” etc.
Tal polêmica se abre num discurso que se
inscreve na afirmação soberana, autoritária, de uma
postura ideológica que se sobrepõe às alternativas
históricas, à dilucidação objetiva dos fatos.
E isso é responsável pelo maniqueísmo axio -
lógico, que se instala nos refolhos da linguagem, e dita
as regras do enfoque, a sobreposição da justificação
291
sobre os incidentes da circunstância, que nunca é
esclarecida de todo.
Esse maniqueísmo escolhe os incidentes que não
se ajustam às suas grandes linhas, e por eles res -
ponsabiliza a grei oficial, acusando-a de infidelidade, de
imoralidade e de outros epítetos desse jaez.
Então, a descrição factual e a sua estrutura
interpretativa quase se esvaziam de todo, com exceção
de alguns momentos em que Frei Caneca se alonga em
fazer história, especialmente em textos mais densos.
Aliás o apelo à história, como se viu, é a história
já feita, já escrita, tido como “modelo”, como este -
reótipo pedagógico, a incrementar a justificação
ideológica.
É assim subjacente aos objetivos do discurso.
Jamais para fundar uma mais ampla integração da
prática histórica com a teoria, com a estratégia, se bem
que, nos limites do discurso racionalista, houvesse certa
integração entre ambas.
O problema consistia no impasse criado pela falta
de maior valorização da história em elaboração con-
juntural do que da história escrita.
Todavia isso diz respeito ao problema teoria -
praxis, que só mais tarde seria satisfatoriamente
equacionado.
Pela ausência de um discurso que formalizasse o
problema, nesses moldes, a ideologia liberal-radical,
presa ainda às malhas da representação em que se
circunscrevia o pensamento, mostrava-se de todo im-
potente no viabilizar as teses que oferecera à Con-
292
federação do Equador, frustrando-a após várias esca-
ramuças no Nordeste.
É o ideal, desatento à realidade social mas ali-
mentado pelo voluntarismo, que estimula o movimento
por algum tempo.
Assim, conclui-se que a espessura ideológica da
obra de Frei Caneca, marcada por uma composição
híbrida de diferentes doutrinas, desde as de linhagem
empirista às de coloração idealista e tradicionalista , com
os acréscimos da circunstância, e num ritmo alucinante
de confronto político, fabricou um discurso que, com
certas variantes, se inclui na episteme clássica.
NOTAS
(105) Ob. cit., p. 132.
(106) “Oferecendo a continuação da resposta ao ex -redactor do
Regulador Brasileiro”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 346.
(107) “Sobre o que se deve entender por Patria do Cidadão”. In:
Obras Politicas e Litterarias. p. 199.
(108) “O Historiador”. In: Ensaios Universitarios sobre Frei
Caneca. Ob. cit., p. 97-98.
(109) “Noticia sobre Frei Joaquim do Amor Divino Caneca”. In:
Obras Politicas e Litterarias, p. 42.
(110) Frei Caneca. Ensaios Políticos. PUC/RJ, Conselho Federal
de Cultura, Editora Documentário, 1976, p. 105.
(111) Ob. cit., p. 23-24.
293
(112) Ibidem, p. 29.
(113) La Philosophie Critique de l’Histoire. Paris, Librairie
Philosophique J. Vrin, 1964, p. 15.
(114) Editorial Nova, Buenos Aires, 1958.
(115) “Idéia de uma História Universal de um ponto de vista
Cosmopolita”. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História, 2ª
ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1974, p. 28.
(116) Religión e Historia en Kant. Madrid, Gredos, 1975, p. 166.
(117) Ibidem, p. 166-167.
(118) KANT, Filosofia de la Historia. Buenos Aires, Ed. Nova,
1958, p. 40.
(119) “Filosofia Kantiana de la História”. In: KANT, Immanuel.
Filosofia de la História. Ob. ct., p. 17.
(120) “Teoria del Saber Histórico”. In: Revista de Occidente.
Madrid, 1961, p. 73.
(121) De la Connaissance Historique. Paris, Du Seuil, 1966, p.
200.
(122) HERRERO, Francisco Javier. Ob. cit., p. 21.
(123) ESTIÚ, Emilio. Ob. cit., p. 22.
(124) ESTIÚ, Emilio. Ob. cit., p. 36.
(125) “Rilettura della ‘Rechtslehre’ Kantiana”. In: Rivista
Inrternazionale di Filosofia del Dirito. Marzo, Giugno, 1959, p.
132.
(126) HABERMAS, Jurgen. Théorie et Pratique, 1. Paris, Payot,
1975, p. 101.
294
(127) Habermas, ob. cit., p. 101.
(128) Ibidem, p. 101-102.
(129) Ibidem, p. 102.
(130) Ibidem, p. 103.
(131) Ibidem, p. 103.
(132) Diccionario de Filosofia. Buenos Aires, editorial
Sudamericana, 1971, vérbete Topico.
(133) Habermas, ob. cit., p. 104.
(134) “Dissertação sobre o que se deve entender por Pátria do
Cidadão, e deveres deste para com a mesma Pátria”. In: Obras
Politicas e Litterarias, p. 181.
(135) STERN, Alfred, Filosofia de los Valores, 2ª ed., Buenos
Aires, Comp. General Fabril Editora, p. 173-174,
(136) La Création des Valeurs, Paris, Presses Universitaires de
France, 1952, p. 175-176.
(137) Ibidem, p. 176
(138) “Itinerário que fez Frei Joaquimd o Amor D ivino Caneca,
saindo de Pernambuco a 16 de setembro de 1824, para a Província
do Ceará Grande”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 110.
(139) “Sobre o que se deve entender por Pátria do Cidadão, e
deveres deste para com a mesma Pátria”. In: Obras Polit icas e
Litterarias, tomo II, p. 220.
(140) CASSIRER, Ernst. Ob. cit., p. 246.
(141) Ibidem, p. 247.
295
(142) “Typhis Pernambucano”, de 8 de julho de 1824. In: Obras
Politicas e Litterarias. tomo II, p. 593.
(143) Ibidem, p. 592.
(144) “Tratado de Eloqüência”. In: Obras Politicas e Literarias,
tomo II. p. 68.
(145) “Sobre o que se deve entender por Pátria do Cidadão”. In:
Obras Politicas e Litterarias, p. 185.
(146) Essai Sur La Révolution. Paris, Gallimard, 1967, p. 36-37.
(147) Ibidem, p. 38 e 42.
(148) VACHET, Andre. Ob cit., p. 70.
(149) An Essay Concerning Human Understanding. London, Ency-
clopedia Britannica, Inc., 1952, p. 184.
(150) Ibidem, p. 180.
(151) VACHET, Andre. Ob. cit., p. 199.
(152) Ibidem, p. 201.
(153) Ibidem, p. 202.
(154) An Essay Concerning the True Original Extent and End of
Civil Government. London, Encyclopaedie Britannica, In., 1952,
p. 26.
(155) VACHET, ob. cit., p. 204-205.
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(158) VACHET, ob. cit., p. 206.
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(160) Ibidem, p. 127.
(161) Ibidem, p. 127.
(162) VENTURI, Franco. Ob. cit., p. 82.
(163) Ibidem, p. 82.
(164) HORKHEIMER, Max. Ob. cit., p. 99.
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(170) Ibidem, p. 196.
(171) Ibidem, p. 197.
(172) Ibidem, p. 218-219.
(173) Ibidem, p. 219-220.
(174) “Sobre a Pastoral do Cabido de Olinda de 4 de março de
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(180) ALTHUSSER, Luís. Ob. cit., p. 123.
(181) Ibidem, p. 125.
(182) POLIN, Raymond. Iniciação Política. Ob. cit., p. 122.
(183) BRITO, Lemos. Ob. cit., p. 89.
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nº 26, de abril de 1823
nº 03, de maio de 1823
nº 10, de maio de 1823
nº 14, de maio de 1823
nº 17, de maio de 1823
nº 17, de maio de 1823
nº 14, de junho de 1823
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