O MEIO CIRCULANTE: O NOSSO DINHEIRO COMO
IDEOLOGIA E PROPAGANDA.
MARINA CONTIN RAMOS*1
Em 1942, após anos de debate sobre o assunto, aconteceria no Brasil a primeira
renovação do sistema monetário nacional, através de um decreto-lei assinado pelo
presidente da República e pelo seu ministro da Fazenda. No novo meio circulante que
seria lançado, as cédulas e moedas trariam estampadas em suas faces momentos
importantes da história do país e efígies de personagens dela.
Na prática, no momento em que foi substituído, o antigo sistema monetário, o
real, já não tinha mais utilização. Seu valor já se encontrava inflacionado de tal maneira
que em seu lugar era utilizado como unidade de moeda o seu múltiplo, o mil-réis, isto é,
a unidade do sistema não era composta mais por um real, mas de mil unidades do real.
Por continuidade do seu uso, no inicio do século XX, já era comum encontrar em
emprego uma nova referencia ao dinheiro, o conto de réis, que significava a soma de
um milhão de reais.
A confusão que acontecia no sistema monetário refletia também no meio
circulante. No momento em que o Cruzeiro passou a circular era possível encontrar em
uso mais de cinquenta espécies de cédulas diferentes com título, faces e origem gráficas
diversas, que tornavam o meio circulante brasileiro confuso, facilitando falsificações.
Segundo um documento produzido pelas Casa da Moeda, responsável pela apuração da
autenticidade do nosso dinheiro, não havia naquele momento uma moeda ou cédula que
ainda não houvesse sido falsificada. (GONÇALVES, 1989).
Era possível verificar também o isolamento que a nossa moeda se encontrava em
relação às outras vigentes pelo mundo, devido ao fracionamento milesimal que só era
adotado no Brasil dificultando a conversão e o entendimento do nosso sistema.
(TRIGUEIROS, 1987)
Ao juízo de alguns deputados, senadores e estudiosos, as adaptações da
nomenclatura, a diversidade das cédulas em circulação e a diferença em relação ao
*1 Marina Contin Ramos é mestranda em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e bolsista da CAPES.
sistema monetário de outros países havia tornado explícito o caráter obsoleto do nosso
dinheiro e indicava a conveniência da substituição do mil réis, que já havia sido
substituído até mesmo pelo seu criador, Portugal, que havia trocado a moeda para o
Escudo logo após uma mudança política de monarquia para república. Esses
argumentos estavam visíveis a essas pessoas que durante o período republicano, e até
mesmo antes do novo regime, produziram projetos e estudos sobre a necessidade da
renovação do sistema monetário, construindo um debate a cerca do assunto que acabaria
dando origem ao Cruzeiro.
Finalmente em 5 de outubro de 1942, Getulio Vargas assina junto a Artur de
Souza Costa o decreto-lei nº 4.791 que instituiu o Cruzeiro como unidade monetária
brasileira. No decreto, encontrava-se além de medidas econômicas, também
determinações quanto o material, as formas e as imagens que deveriam estampar o novo
meio circulante.
Nas moedas de centavos (10, 20 e 50 centavos), a determinação era que elas
apresentassem de um lado o seu valor e do outro a efígie de Getúlio Vargas, envolto a
inscrição de seu nome separado por uma estrela do nome “Brasil”. Já nas moedas de
Cruzeiro (1, 2 e 5 Cruzeiros) a imagem permanecia a mesma das moedas de mil-réis em
circulação, de um lado o valor e de outro o nome e o mapa do Brasil em alto relevo.
Já nas cédulas podemos partir daquela de maior valor, a de C$1.000,00, onde
vemos Pedro Álvares Cabral e a imagem que faz alusão ao descobrimento do Brasil
sendo representada pela tela de Victor Meirelles intitulada “A primeira missa”. Na
cédula seguinte, de C$500,00 D.João VI vem seguido de uma alegoria criada por
Cadmo de Souza que faz referência a Abertura dos Portos. A nota de C$200,00 trás a
efígie de D. Pedro I e o quadro de Pedro Américo de título “Grito do Ipiranga” no seu
reverso. A cédula de C$100,00 nos exibe D.Pedro II acompanhado no reverso de uma
alegoria, também de Cadmo de Souza, representando a Cultura Nacional. Na cédula de
C$50,00 temos representada mais uma integrante da Família Real, Princesa Isabel, e
novamente seguida no reverso por uma alegoria de Cadmo de Souza, representando a
Lei Áurea. A primeira representação militar do cruzeiro vem na cédula de C$20,00 com
Marechal Deodoro da Fonseca, trazendo no reverso a terceira alegoria de Cadmo de
Souza, a Proclamação da República. Por último nas cédulas de menor valor a de
C$10,00 temos o presidente em exercício de poder da época, Getúlio Vargas,
acompanhado no reverso da última alegoria de Cadmo de Souza, a Unidade Nacional.
(TRIGUEIROS, 1987)
Ainda no mesmo ano
Ainda em dezembro do mesmo ano o presidente autoriza, através mais uma vez
de um decreto que o Ministério da Fazenda por intermédio de uma Junta Administrativa
da Caixa de Amortização realize um concurso público para escolha de desenhos dos
motivos simbólicos que figurariam o reverso das novas cédulas de dez, vinte, cinqüenta,
cem e quinhentos Cruzeiros.
Já no ano seguinte, em 1943, devido a problemas com falta de troco, é
autorizada também a confecção de cédulas de C$5,00 trazendo o Barão do Rio Branco
no anverso e a tela de Antônio Parreiras “A conquista do amazonas” no reverso, e em
1944 são autorizadas cédulas de C$2,00 e C$1,00 com o Duque de Caxias e o Marquês
de Tamandaré respectivamente seguidos de imagens da vista da Escola Militar de
Resende e da Escola Naval do Rio de Janeiro.
Ao observar esse conjunto de fontes numismáticas é possível refletir a questão
proposta em um seminário internacional de numismática pelas professoras Ângela de
Castro Gomes e Mônica Kornis:
“Em que momentos da história republicana e sob que forma,
personagens, atividades econômicas e tipos regionais circulam gravadas e/ou
impressas no numerário brasileiro? A seleção e a forma de situá-los em seu
suporte – seja a moeda seja a cédula – não se faz certamente ao acaso. Enfim,
que república nos é contada pelas moedas republicanas, verdadeiros
documentos iconográficos de nossa história?” (GOMES; KORNIS. 2002.
p.9)
Com esse pensamento norteando nossa analise, refletimos sobre o conteúdo
iconográfico produzido pelo novo meio circulante nacional, o cruzeiro, que se instituiu
no momento singular de nossa história. Em 1937, após alguns anos no poder, Getúlio
Vargas liderou um golpe de estado que deu início a um período autoritário que duraria
até 1945 e que seria chamado de Estado Novo.
Temos então, no momento da renovação do material numismático circulante de
todo país um governo que exerce um rígido controle sobre toda produção cultural
existente, através de um órgão que se dedicava especificamente ao cuidado da imprensa
e propaganda, o DIP.
Acreditamos, que essa escolha nada tem de aleatório, e trabalhamos nesta
pesquisa com a ideia de que cada efígie, e cada feito histórico ali apresentado possui seu
simbolismo e colabora com a construção de um imaginário popular que será
responsável pelo fortalecimento e pela legitimação do poder de Vargas. Sendo assim,
estas imagens estampadas nas cédulas e moedas de cruzeiro que circularam pelas mãos
de uma grande parte da população brasileira, se tornariam mais um dos artifícios
utilizados para a construção de uma identidade nacional e difusão e reafirmação da
ideologia do governo varguista.
Para o desenvolvimento da pesquisa utilizamos uma vasta lista de material
disponível a respeito das principais questões a serem trabalhadas. Dando partida ao
nosso estudo, nos baseamos no historiador José Murilo de Carvalho em seu estudo
sobre os símbolos republicanos brasileiro, A formação das almas, onde se discursa
sobre a importância da simbologia para a legitimação de regimes políticos
(CARVALHO, 1990).
O autor se baseia nos estudos de imaginação social de Bronislaw Baczko, por
onde a imaginação esta sempre relacionada com o poder. Para Baczko, o domínio do
imaginário e do simbólico é uma ferramenta estratégica importante, já que através da
apropriação dos símbolos é possível garantir um controle da vida coletiva e exercer
autoridade e poder. O que faz com que o imaginário acabe se tornando objeto de
conflitos sociais e assim dotados de grande interesse para as pesquisas historiográficas
(BACZKO, 1985).
Carvalho fala especificamente da disputa pela predominância de símbolos no
inicio da república brasileira, quando competiam pela dominação ideológica três
correntes políticas distintas. O autor nos mostra que esse embate aconteceu também em
outros momentos como na Revolução Francesa e destaca que esse tipo de produção
simbólica acontece sempre que existe uma disputa política entre diferentes ideologias.
No caso do Estado Novo, embora seja caracterizado por ser um regime autoritário e de
censura, que não tenha permitido grupos partidários, existia a necessidade de se
legitimar e de se sobrepor ao regime anterior que havia sido derrubado.
Para pensarmos a questão da ideologia e da propaganda política do Estado Novo
usamos o estudo da professora Elisa Pereira Reis (REIS, 1998). A pesquisadora acredita
que o governo de Getúlio Vargas foi o primeiro da história do Brasil a dar uma
relevância política a questão de formar uma ideologia nacional. Isso aconteceu, pois
após a independência a preocupação do império se focou em consolidar o poder em um
território amplo como o nosso, e na primeira república a presença de detentores
privados de poder ligados a construção do Estado, caracterizando quase autarquias, na
visão da autora, inviabilizou esse tipo de ação e deu espaço para outro tipo de atitude.
Assim, para Reis, o golpe de Vargas às oligarquias permite o inicio de um processo de
unificação ideológica a fim de formar um sentimento nacional.
No mesmo sentido encontramos o trabalho de Nelson Garcia Jahr (JAHR, 1982).
Segundo o autor o período que tratamos na pesquisa é especialmente interessante para
um estudo sobre propaganda governamental, por se tratar de um momento autoritário
em que os meios de produção e difusão de idéias estavam sob o total controle do
Estado. Para o autor, a propaganda varguista será a principal explicação para neutralizar
o conturbado período anterior, onde greves, reivindicações e manifestações propondo
mudanças políticas profundas eram constantes, e as idéias socialistas efervesciam entre
as classes médias e os operários que se encontravam em um crescente nível de
conscientização e organização.
Para tratar de ideologia ainda utilizamos o trabalho da professora Maria Celina
D’Araujo sobre a necessidade de uma ideologia forte e única como uma das vertentes da
ideologia de Getúlio Vargas que necessita da unidade da nação como base para o seu
desenvolvimento (D’ARAUJO, 2007). Para a autora Vargas adota uma doutrina
alternativa ao socialismo e ao capitalismo, que é o corporativismo. A proposta
corporativista busca manter hierarquias, mas diminuir desigualdades sociais, evitando
os conflitos, gerando harmonia e progresso. Para que isso seja possível é necessário que
o Estado seja capacitado de mais poder. Os partidos políticos e suas organizações,
tipicamente liberais, precisam ser substituídos por organizações que sejam capazes de
realizar o consenso, e a população também deve colaborar com o governo e se expressar
através de atividades cívicas e econômicas, e não partidárias.
Assim, o corporativismo se caracteriza por ser uma organização de forma
vertical, feita de cima para baixo, e que encontra na base o individuo concebido como
parte do Estado, posto pertencente a uma só organização que integra uma máquina
estatal. Desta forma, através dessa por essa necessidade de integração nacional em um
mesmo ideal de desenvolvimento político e econômico do governo corporativista, a
unidade nacional pregada no meio circulante se tornará tão importante.
Por fim, utilizamos também o trabalho de Aline Lopes de Lacerda que nos expõe
através da analise de documentos arquivados na fundação Getúlio Vargas o intuito do
Estado em preencher a sociedade com valores do novo regime. Sua tática inclui
mobilizar as multidões recorrendo ao mito da personalidade, tornando a figura de
Vargas onipresente, divulgada em diversos veículos de comunicação, compartilhando a
noção de que uma personalidade carismática é um elemento de grande fascínio para as
massas aderirem a integração política (LACERDA, 1998).
Com essas considerações, trazemos neste trabalho, para ocasião da apresentação
da pesquisa no XXVII Simpósio Nacional de História da ANPUH, as principais
questões refletidas na pesquisa para se pensar e expor os resultados obtidos com a
analise das fontes. Dentro do simpósio pretendemos contribuir com o debate inserindo
um corpo de fontes imagéticas de grande circulação que dialoga com o imaginário
social e contribui para a legitimação de um governo.
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