8/16/2019 O Operariado e o Anarquismo em Amanhã, de Abel Botelho
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O operariado e o anarquismo em Amanhã, de Abel Botelho
António Martins Gomes (CHC – FCSH)
Acreditar que a felicidade se resolve por este processo tão simples:
a anarchia, isto é – supressão de leis e de organização, ficando só de pé avontade de cada um, não é resolver o problema social: parece-me que aocontrario é complical-o. [...] Porque o anarchismo pode mudar as coisas, masnão pode raspar a lepra da alma humana. (Raul Brandão, 1895)
Abel Botelho nasce em Tabuaço (1854) e morre em Buenos Aires (1917), onde
se encontrava, como diplomata, ao serviço da República Portuguesa. A sua obra
essencial é publicada entre 1891 e 1910, sendo de destacar os cinco volumes da
“Patologia Social”: O Barão de Lavos (1891), O Livro de Alda (1898), Amanhã (1901),
Fatal Dilema (1907) e o romance de tese republicana Próspero Fortuna (1910).
Filiado na escola naturalista, Abel Botelho nunca foi muito apreciado ou
reconhecido no meio literário, uma vez que a sua escrita entra em conflito com os
valores estéticos da burguesia oitocentista, ao expor despudoradamente aspectos
repulsivos da sociedade portuguesa, como a depravação da aristocracia decadente, a
pobreza asquerosa do operariado, a pederastia ou a prostituição, temas até aí abafados
pela hipocrisia social e pouco explorados pela geração positivista de 70; esta ousadia
terá certamente contribuído para que, por relutância ou mero preconceito académico,historiadores e críticos literários tenham, em geral, ignorado os romances de Abel
Botelho ou optado mesmo por uma crítica menos positiva.
Redigido entre Outubro de 1895 e Novembro
de 1896, o romance Amanhã aborda três questões
intensamente debatidas na capital portuguesa em finais
do século XIX: a social, a política e a religiosa. Ao
reflectir o antagonismo de classes num momento deascensão do catolicismo e de difusão do anarquismo
pelos trabalhadores, esta obra inaugura em Portugal a
exposição literária das míseras condições sociais do
proletariado, tal como já havia sucedido com Charles
Dickens em Hard Times (1854) ou com Émile Zola em
Germinal (1885). Com efeito, o seu conteúdo envolve a
intensificação da luta do operariado fabril dos bairros ribeirinhos de Marvila e Xabregas
e decorre ao longo dos sete meses de celebrações religiosas que assinalaram o sétimo
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centenário do nascimento de Santo António, mais precisamente entre Novembro de
1894 a Junho de 1895.
Na década de 90, aumenta a contestação aos efeitos negativos do Ultimato
inglês, sendo a sublevação militar de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, a tarefa mais
radical executada pela “geração activa” do Partido Republicano Português. Em Amanhã,
a ficção romanesca concentra-se nos principais eventos históricos ocorridos neste
período de profunda depressão económica, documentando a implantação do anarquismo
no seio do operariado, o crescente recurso à greve1, a visita de delegados da
Internacional, o desfile de trabalhadores no 1º de Maio de 1895 entre os Restauradores e
o Largo do Rato, a procissão do Centenário Antoniano, ocorrida a 29 de Junho desse
ano, ou ainda a preparação de um atentado bombista.
Com efeito, 1895 é um ano-chave na orientação libertária dos socialistas
portugueses, como refere Luiz Gonçalves: “Desde 1882, e principalmente desde 1895,
parece ser o anarquismo o ideal economico e político dos socialistas portuguezes, pelo
menos dos que mais se salientam como taes.” (Gonçalves 1905: 184).
O anarquismo, cuja etimologia provém da raiz grega an (sem) e arkhê
(governo), é uma corrente de pensamento socialista que veicula a dissolução do Estado
em todas as suas formas históricas, o combate à autoridade civil e religiosa, e a
construção de uma sociedade sem leis. As suas diversas vertentes doutrinais – tais como
o socialismo libertário, o individualismo, o mutualismo ou o anarco-sindicalismo – têm
ainda em comum a luta pela abolição das desigualdades sociais e pela transformação da
economia privada numa nova ordem em que os meios de produção serão controlados
pelo operariado.
Ao longo da História, socialistas libertários como William Godwin, Jean-Pierre
Proudhon, Mikhail Bakounine e Piotr Kropotkine, aludem ao poder do Estado como o
principal motivo de perpetuação da desigualdade social. Em Qu’est -ce que la propriété? (1840), Proudhon emprega pela primeira vez a palavra “anarquia” para denominar um
modelo de sociedade mutualista, sem a tutela estatal. É precisamente por via da obra de
Proudhon, autor referenciado em Amanhã, que são divulgadas as primeiras ideias
anarquistas em Portugal, visando criar melhores condições humanas para os
1 Greve é um neologismo derivado do lexema francês grève, surgido a partir do nome da praçaonde se situa a Câmara Municipal de Paris, a actual Place de l'Hôtel-de-Ville, ponto de
encontro de gente sem emprego ou de trabalhadores descontentes com as suas condições.Em Portugal, o primeiro surto grevista ocorre em 1872, em luta pela redução do horáriolaboral, pela abolição do trabalho nocturno e pelo aumento salarial.
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trabalhadores através da união em cooperativas e federações; um dos órgãos promotores
do associativismo é O Eco dos Operários, fundado em 1850.
Em 1864, surge a Associação Internacional dos
Trabalhadores, que irá exercer um papel determinante na
Península Ibérica a partir da década de 702,
especialmente na organização do movimento operário
em estruturas associativas. Um ano após a criação da
AIT, também conhecida como Primeira Internacional, o
Catecismo Revolucionário de Mikhail Bakounine
salienta que a força laboral é a forma mais eficaz de
evolução civilizacional e de libertação do homem:
O trabalho é a base fundamental dadignidade e do direito humano. Pois é unicamente pelo trabalho livre e inteligente que o homem,tornando-se por sua vez criador e conquistador sobre o mundo exterior e sobre a sua própria bestialidade, humanidade e direito, cria o mundo civilizado. (1865)
Em 1871, o ano da Comuna de Paris e das Conferências Democráticas do
Casino Lisbonense, Antero de Quental expõe as ideias essenciais da Internacional num
texto decisivo para a consolidação do socialismo em Portugal, enfatizando igualmente o
trabalho e a luta de classes:
Há, efectivamente, um grande combate travado; há dois exércitos e duas bandeiras inimigas: dum lado o Trabalho, do outro o Capital: dum lado aqueles que,trabalhando, produzem; do outro lado, aqueles que, sem esforço, e só porquemonopolizaram os instrumentos do trabalho, terras, fábricas, dinheiro, vivem da pesada contribuição que impõem a quem, para produzir e viver, precisa daquelesinstrumentos, daquele capital. (Quental, 1980, 9)
Para além de Carrilho Videira, um outro autor referido na obra de Abel Botelho
é José Fontana (1840-1876), considerado o primeiro doutrinador do movimento
operário em Portugal. Imbuído do espírito da Internacional e inspirado em Bakounine,
forma as bases da resistência operária, convoca greves e organiza as primeiras
manifestações do 1º de Maio. Em 1872, promove a criação da Associação Fraternidade
Operária. Mateus, o operário protagonista de Amanhã, tem o seu retrato na parede do
seu quarto, ao lado do de Kropotkine, e chega a tecer algumas considerações elogiosas a
propósito da missão evangelizadora deste grande ideólogo:
2 Para mais pormenores acerca da fundação da Internacional em Portugal, cf. Anselmo Lorenzo,“A fundação da Internacional em Portugal”, in João Medina, As Conferências do Casino e o
Socialismo em Portugal , 1984, 179-189, e António José Saraiva, “Como e por quem foifundada a Internacional em Lisboa”, in A Tertúlia Ocidental – estudos sobre Antero deQuental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e outros, 2ª ed., 1995, 51-60.
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Pois José Fontana […] viu o espectáculo doloroso da miserável inércia donosso povo e tremeu de indignação, consumiu-se de piedade. Quase simultaneamente,o estrondear do canhão nas ruas de Paris, os paroxismos iconoclastas da Internacional,anunciavam ao proletariado de todo o mundo que havia soado a hora de ele impor asua vontade, de fazer ouvir dominadoramente a sua voz. E então José Fontana foi oarrojado clarim da Ideia nova em Portugal. Veio soletrar-nos o novo Verbo. (Botelho1982, 456)
Em 1886, a visita do ideólogo francês Elisée Reclus vem estimular a fundação
de algumas associações anarquistas e a edição de obras como A Anarquia na Evolução
Socialista, de Piotr Kropotkine. Em Novembro do ano seguinte, surge no Porto A
Revolução Social , o primeiro jornal anarquista, em cujo Número-Programa é publicada
a Declaração de Princípios do Grupo Comunista-Anarquista em Lisboa, onde se afirma
que a propriedade individual e os instrumentos de trabalho provocam a miséria dos
operários, e que o Estado é a causa do privilégio, da divisão de classes e da corrupçãosocial; como meios de acção, propõe o recurso à abstenção eleitoral, à deserção militar,
à greve violenta e à propaganda ilegal.
Para o final do século XIX, o pensamento libertário é já difundido por várias
publicações periódicas, tais como A Revolta (1892), A Propaganda (1894), O Agitador ,
Grito de Revolta e O Lutador (1895). O romance de Abel Botelho alude mesmo a
alguns órgãos de imprensa nacional, como Pátria e O Século, e de imprensa estrangeira,
como Avanti!, Combattiamo, La Dinamite, Révolté, Eguaglianza e Vanguarda.Ao longo dos vinte e três capítulos de Amanhã, o narrador referencia ainda um
vasto número de autores, dado que, ao longo dos anos, muitas das suas obras teóricas
foram sendo acumuladas na “rica biblioteca profissional” de Mateus, um autodidacta
amante de livros e ávido de conhecimentos destes novos princípios políticos, sociais e
económicos:
[...] em suma, um curso perfeito de iniciação, o foral completo da doutrina comunista-anarquista, trazida desde a origem na sua evolução vertiginosa – estremecido tesouro
que o Mateus, durante anos, sistematicamente amontoara, com uma paciência, umaisenção e uma porfia inarráveis, tirando muitas vezes ao vestuário e ao sustento para poder acrescentá-lo. (Botelho 1982, 194)
É, na verdade, colossal o elenco de livros e autores subversivos que moldam o
pensamento do protagonista: O Capital , de Karl Marx; A Sociedade Futura, de Jean
Grave; Páginas Rubras, de Sévérine; Os Bastidores do Anarquismo, de Flor O’Squarr;
Filosofia da Anarquia e Da Comuna à Anarquia, de Carlo Malato; A Moral Anarquista
e Um Sonho de Ansiedade, de Piotr Kropotkine; A Rússia Subterrânea, de Kravtchinski
(publicado em 1882, sob o pseudónimo de Stepniak); O Socialismo Integral , de BenoitMalon (1891); a Psicologia do Anarquista Socialista, de Augustin Hamon (1893); O
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Anarquismo, de António de Serpa Pimentel (1894); ou, entre outros, A Conquista do
Pão, de Paul Reclus (publicada em 1895, esta obra é da autoria de Kropotkine).
Como refere Abel Botelho na Dedicatória, em Amanhã “bacilam e fermentam
os mais tragicamente desoladores aspectos da Miséria”; assim, o enredo desta narrativa
decorre numa Lisboa pobre, envolvendo essencialmente a zona oriental junto ao Tejo: o
estreito vale de Chelas, o Poço do Bispo e o Cabo Ruivo; a fábrica de cartuchame e o
apeadeiro de Braço de Prata, onde, vindos no expresso de Madrid, são recebidos os
delegados da AIT; a Rua de Marvila com os seus raros candeeiros de petróleo; ou a Vila
Dias e a “ilha” do Grilo, espaços
onde os operários da fábrica têxtil de
Almargem residem.
É ainda descrita, com toda a
minudência naturalista, a cidade no
seu quotidiano finissecular, tendo
como pano de fundo principal os
bairros populares de Alfama,
Alcântara, Mouraria, Benfica,
Xabregas e Marvila: o lausperene comprado em Santa Justa; o santeiro da Rua Augusta
e a mulher que vende tintura no Rossio; Santa Apolónia e o Terreiro do Paço, por onde
passam os carros da Lusitana; a Escola Politécnica, onde Mateus se tinha matriculado;
as igrejas de S. Vicente de Fora e de S. Domingos, aonde as famílias iam à missa; a
Feira da Ladra; e os centros de propaganda anárquica, como o Largo da Páscoa, o Pátio
do Fiúza (Alcântara), as ruas do Bem-Formoso e do Arsenal, e a Junqueira, em frente à
Cordoaria.
Ao nível do associativismo, um pilar fundamental na união dos povos e do
proletariado, a obra menciona diversas Organizações, tais como, para além da járeferida Associação Internacional dos
Trabalhadores, a Liga das Artes Gráficas, a
Associação Fraternal dos Fabricantes de
Tecidos e Artes Correlativas, ou a Voz do
Operário, editora de um periódico muito
elogiado pelo narrador : “A benemérita Voz
do Operário, sempre firme e inalterável na prossecução do seu programa – a união pela vida – chamava com insistência às armas
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os correligionários pela voz tão autorizada como difusa do seu jornal;” (Botelho 1982,
251).
Ao descrever as reuniões clandestinas de propaganda anarquista, o autor
procura transmitir essa mesma ligação extremosa entre a classe trabalhadora, cujos
membros e ramos profissionais se misturavam ordeiramente:
Viam-se ali, numa cordial promiscuidade indistintamente baralhados, os mais prestigiosos chefes socialistas, e representantes das classes dos torneiros, serralheiros,fundidores, tipógrafos, litógrafos, canteiros, jardineiros, tanoeiros, mecânicos emmadeira, calceteiros, marceneiros, sapateiros, tecelões, condutores de carroças,cocheiros, cigarreiros, manipuladores de farinha, refinadores de açúcar, corticeiros,oleiros, carpinteiros de carros, pintores, carregadores, fabricantes de carruagens,latoeiros, varinos e outros mais. Eram todos os baixos misteres e profissões. Toda amiuçalha, toda a escória. (Botelho 1982, 351-352)
O romance Amanhã é protagonizado por Mateus, um contramestre de uma
tecelagem em Lisboa que irá convocar greves, preparar manifestações, organizar
reuniões com dirigentes estrangeiros, e planear uma revolução para destruir o regime, a
ser iniciada durante o préstito das Celebrações Antonianas. Solidamente consolidado na
mais genuína ideologia libertária, todo o discurso deste líder operário é proferido contra
a entidade estatal:
[...] o Estado é uma pura excrescência que vive à custa de todos nós. Dispensa-se... Elenada nos faz, nada nos traz de bom...[...]- É uma organização artificial, violenta, contrária às leis naturais... a qual nãoaproveita senão a um limitadíssimo número de indivíduos, com prejuízo de todos osoutros... que não tem outro fim senão explorar o mísero trabalhador! (Botelho 1982,46)
Dois delegados da Internacional deslocam-se a Portugal para doutrinar os
operários em reuniões clandestinas, durante as quais os incentivam à união em
Associações de classe para ganharem força as suas reivindicações. O pensamento de um
destes dirigentes confirma a mesma ideia de Mateus quando associa a decadência social
ao regime monárquico e, sobretudo, à estrutura estatal:O Estado, nascido da divisão da sociedade em castas, atingiu o seu período áureo,quando? Com a centralização monárquica absoluta. Depois, pela adopção do sistemarepresentativo e a consequente democratização social, começou do Estado, comoinstituição, a inevitável decadência. (Botelho 1982, 322-323)
Para além do Estado, os anarquistas opõem-se ainda ao patriotismo e à religião,
dois instrumentos usados pelo poder para tiranizar os povos ao longo dos séculos.
Mateus, o líder revolucionário cujo nome coincide ironicamente com o do primeiro
evangelista do Novo Testamento, dirige-se aos seus colegas num discurso panfletário,
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onde culpa a religião pelo atraso do país e considera o amor à pátria um sentimento
egoísta da burguesia:
O patriotismo é uma das muitas e habilidosas formas de opressão que, paraimpunemente nos esmagarem, têm inventado os ricos e poderosos. Durante séculos,
vocês sabem, o seu meio de dominação foi outro: foi a religião. Quanto tempo asclasses privilegiadas não exploraram e cavalgaram a seu bel-prazer o povo,ameaçando-o, fanatizado e embrutecido, com o temor dum Deus de açougue,vingativo, cruel... com os tétricos horrores das penas do inferno! E depois, quandoessa formidável criação de hipocrisia e de embuste caiu, quando o espectro religiosose esvaiu na sombra e o poder de Roma se afundou no ridículo, substituíram-no então pela ideia de pátria. (Botelho 1982, 57-58)
[...] em Portugal o jesuitismo arrastara a nação ao último grau de abjecçãomoral e fizera muito de propósito estagnar as ciências, as letras e as artes, no maisesterilizante marasmo de que há notícia em toda a história pátria. (idem, 182)
Ao longo do século XIX, desde o liberalismo romântico da monarquia
constitucional ao positivismo realista da Regeneração fontista, a hegemonia da Igreja
Católica vai perdendo a sua influência tentacular; contudo, esta instituição ganha um
novo alento na década de 90, após a publicação das encíclicas Rerum Novarum, onde é
estabelecida a participação dos católicos na actividade política.
Em Portugal, a fé católica ganha novo alento a partir de 1895, o ano do
Congresso Católico Internacional e das celebrações de Santo António. O romance de
Abel Botelho retrata precisamente a questão religiosa no seu auge:
Andava ao tempo em Lisboa um pouco acesa a questão religiosa. Durante osúltimos oito anos que o partido ultramontano, cobrando progressivos alentos, vinhaestadeando um crescente aparato de forças e promovendo a aliciação de influênciasnovas. (Botelho 1982, 249)
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Após as medidas legislativas sobre a saúde pública e a construção de
cemitérios, que vêm dessacralizar a morte e retirar ao seu cerimonial o rentável
monopólio da Igreja Católica, a sociedade adquire um espírito mais laico. A narrativa
dá-nos uma perspectiva do cemitério do Alto de São João, um “jardim de pedra”
inaugurado em 1835 na zona oriental para sepultar sobretudo a população mais pobre:
“[...] o encastelamento sepulcral do Alto de S. João, todo riscado a arestas de mármore e
agulhas de cipreste.” (Botelho 1982, 108).
As alusões do Padre Sebastião aos funerais realizados pela classe operária
também confirmam, por sua vez, a crescente laicização da morte: “Eles não querem
saber de nós para nada, eles não concorrem à igreja, não conservam as mulheres, não
legitimam os filhos… nem sequer os mortos respeitam, porque os levam civilmente ao
cemitério!” (Botelho 1982, 93).
Esta “cidade dos mortos” serve para Abel Botelho denunciar não só a desgraça
extrema ou o forte anticlericalismo da classe operária, mas também para registar alguns
casos trágicos de violência doméstica, a incidir usualmente sobre os mais desprotegidos
em termos sociais – mulheres e crianças:
No Domingo Gordo, duas vezes fez o passeio lúgubre da “ilha” do Grilo aoAlto de S. João, a singela carreta negra da Voz do Operário. Para levar, primeiro, aChica, da qual era voz corrente entre o povo que as brutalidades do pai tinhamabreviado a existência; e depois, vitimada pela discrasia galopante do desgosto, ahéctica e inconsolável Ana, com a filha mais nova, mortinha de inanição. (Botelho1982, 408-409)
Segundo Mikhail Bakounine, o regime anárquico só
é possível através do recurso a uma revolução violenta, a
partir da qual desaparecerão todas as instituições para dar
lugar a uma nova sociedade. Seguindo esta linha de
raciocínio, alguns estrategas libertários passam à acção
directa; o terrorismo individual, nascido com o firme
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propósito de desencadear uma revolução para destruir o aparelho estatal, ocorre em
países como França, Alemanha, Itália, Espanha, Rússia e Portugal, sendo praticados
diversos actos e atentados violentos entre os anos 70 do século XIX e a primeira década
do século XX.
Para provocar a mudança desejável em Portugal, os adeptos mais radicais
rejeitam a via eleitoral ou a mediação político-partidária, e optam por recorrer à
sabotagem ou por dedicar-se inclusive ao fabrico de bombas artesanais, que cederão
mais tarde à Carbonária e ao PRP, no apoio à luta pela implantação da República: em
1892, uma bomba explode no Consulado de Espanha e há um atentado na casa do
Conde de Folgosa.
Em 1895, ocorre um atentado contra os manifestantes do centenário de Santo
António de Lisboa, cuja bomba, segundo narra Abel Botelho, é fabricada por Mateus. A
propósito deste episódio violento, um excerto do romance poderá ajudar a entender o
motivo pelo qual o ataque bombista nunca chegou a ser uma actividade benquista dos
revolucionários portugueses, mais favorecidos de “ brandos costumes” – durante uma
sessão de demonstração de fabrico de engenhos explosivos, os operários sentem-se
pouco confortáveis ao tomarem consciência dos efeitos devastadores da dinamite, que
havia sido inventada por Alfred Nobel em 1868:
A sessão havia tomado assim uma feição carniceira e odienta que repugnavaa uma parte da assembleia. Cheirava-lhe a sangueira e a carne derretida... já nãoestavam bem ali! Ante os seus alarmados corações, ante as suas sensitivas almas,formadas na severidade e na obediência, o grosso e imperioso belga revestia o aspectodum carrasco, o italiano era positivamente um demónio. (Botelho 1982, 335-336)
Para resolver este inconveniente, os operários optam então por utilizar uma
composição mais fraca, substituindo a dinamite por picrato de chumbo, e Mateus acaba
por delinear o plano da revolução, distribuindo os revoltosos por cinco áreas urbanas
nucleares:
Ele tinha com efeito concebido, de colaboração com o Azinhal, um vasto ehábil plano estratégico. – O assalto, é claro, seria dado alta noite, e tinha de sersimultâneo, cingindo e afogando no mesmo decisivo instante, dentro da suagargalheira implacável, a desprevenida inacção de toda a cidade. Caminharia o ataque,ao mesmo tempo, por cinco zonas ou sectores. O primeiro, mais oriental, ao longo dorio, teria por guarnição o formigueiro enorme de operários que labutavam entre Braçode Prata e o Beato, e a sua missão consistiria em apoderarem-se de todos osestabelecimentos oficiais que por ali marginam o Tejo, o quartel de artilharia, oArsenal, a Alfândega, o Terreiro do Paço. O segundo sector teria a sua concentraçãoem Chelas, para marchar daí, pelo Alto de S. João, a tomar o Castelo de S. Jorge. Oterceiro sector, reunindo os revoltosos do Areeiro para o sul, por Sete Castelos, até ao
Alto do Pina, entraria simultaneamente pelas portas do Poço dos Mouros e da Penha,ocupando esta altura, o Monte, a Graça e toda a linha de contrafortes que limitam por
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este lado a cidade. Uma quarta zona conglobaria, junto ao Arco do Cego, toda a população fabril do Campo Grande, para marchar sobre Vale do Pereiro e a Baixa.Finalmente, a quinta zona, abrangendo Campolide, Terras do Seabra e Fonte Santa,estava a cargo dos revoltosos de Alcântara, e incumbia-lhes, entre outras ciosas,arrasar o Colégio de Campolide e opor uma barreira aos socorros que tentassem vir deBelém e da Ajuda. (Botelho 1982, 477-478)
A procissão católica organizada por altura do Congresso Católico Internacional
e das comemorações do Centenário de Santo António, deveria ser, segundo Mateus, o
ponto de partida para a revolução desencadeada pelos operários.
Pela enumeração exaustiva de eventos ocorridos em Lisboa em meados da
década de 90, Amanhã possui indubitavelmente um imenso e diversificado valor
documental: a progressiva implantação do movimento anarquista no seio da classe
operária, através da publicação de periódicos ou da organização em rede de movimentos
associativos e centros de propaganda; a presença de dois delegados da Internacional; o
elevado número de greves associadas à indústria têxtil (cf. Fonseca 1976, 150-157); a
realização do Congresso Católico Internacional, em Maio de 1895; o cortejo religioso
do centenário de Santo António, a 29 de Junho, em cujo percurso são lançados panfletos
subversivos a criticar o regime (cf. Valente 1976, 48); e a preparação de um atentado
bombista, que levará Hintze Ribeiro a promulgar a “lei celerada” de 13 de Fevereiro de
1896.
Neste romance, merece ainda nota de realce o capítulo XIX, cujas páginas
descrevem minuciosamente a grandiosa manifestação de trabalhadores no 1º de Maio de
1895, começando na Praça dos Restauradores, seguindo ao longo da Avenida e da Rua
Barata Salgueiro, e terminando no Largo do Rato. Algumas palavras de ordem
proclamadas nesta altura são expostas no desfile de carros alegóricos de cada profissão:
Na frente do carro, entre cestos vindimos, pás e encinhos, lia-se em grandes
letras de fogo: QUEREMOS 8 HORAS DE TRABALHO; e na cauda: A JOSÉFONTANA, O POVO, FARTO DE SOFRER. Aos lados baloiçavam-se escudetescom os dísticos: PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNAMO-NOS! e BREVE
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CHEGA A NOSSA HORA! […] – Mas eram por igual interessantes todos os carrosque na estatuída ordem iam seguindo, às dezenas, infindavelmente, desde as carretasdos pedreiros, dos serralheiros, dos curtidores e dos tipógrafos, até à fábrica emminiatura dos saboneteiros, o tonel monstro dos tanoeiros e o chalet dos ceramistas,até à grande máquina Singer com a legenda: MATA SEM RUÍDO, levada num grupode costureiras. (Botelho 1982, 466)
Numa representação nua e crua, Abel Botelho aborda em Amanhã a
reivindicação dos direitos do operariado num dos momentos de maior conflito com o
patronato em Portugal, e faz deste romance um retrato fidedigno da sórdida condição
social dessas “vítimas da fome”, que, à semelhança do restante movimento internacional
e tendo como lema a unidade do Trabalho contra o Capital, lutam pela sua emancipação,
sem perder a esperança em conquistar melhores condições no dia de amanhã, uma
palavra iniciada com a primeira letra do alfabeto e curiosamente contida no conhecido
símbolo anarquista: “[...] haviam de partir agora, formidavelmente aprestados para a
luta, os míseros e mesquinhos servos de ontem, transformados nos homens imperantes
de amanhã!” (Botelho 1982, 500)
Para adensar a história deste antagonismo político-social entre classes cujos
interesses colidem necessariamente, germina uma relação amorosa entre o protagonista
e Adriana, filha do dono da fábrica têxtil do Almargem, onde trabalha como
contramestre. No fim deste enredo maniqueísta, Adriana vai a casa de Mateus para
tentar dissuadi-lo dos seus propósitos violentos; contudo, o protagonista, dividido entre
os sólidos ideais utópicos e o vacilante sentimento amoroso, não encontra outra
alternativa senão cometer - aparentemente - o suicídio, fazendo detonar a bomba que
tinha preparado para explodir durante a manifestação comemorativa do Centenário de
Santo António.
É, na verdade, um final pouco edificante para um herói revolucionário que
ambicionava destruir todos os alicerces político-económicos mas sem nunca apresentar
uma solução viável para a construção de uma sociedade utópica. Por sua vez, Mateus éuma personagem complexa, com a qual não simpatizamos totalmente se nos
recordarmos que são sempre os sentimentos negativos do ódio e da vingança que o
impelem à acção: o protagonista era filho de um grande proprietário duriense, arruinado
após a abolição dos morgadios e as confiscações miguelistas. Nesta perspectiva, a sua
revolta não deriva de razões altruístas, sendo apenas por motivos pessoais que vai
ganhando um desprezo por toda a espécie de autoridade.
O socialismo utópico é criticado subtilmente em determinados momentos danarrativa, como exemplifica o relato da refeição opípara de dois representantes da
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Associação Internacional dos Trabalhadores, vindos a Lisboa a convite de Mateus. Vítor
Neto, num ensaio onde utiliza a obra abeliana como fonte histórica, diz o seguinte a
propósito do terceiro volume da série “Patologia Social”:
Abel Botelho, ao usar a ironia e a sátira em relação ao socialismo utópico e
ao anarquismo, procura desacreditar estas ideologias que funcionavam como sistemas
de representação das consciências dos revolucionários sobre o futuro, mas
irrealizáveis na prática. (Neto 2000: 300)
Neste sentido, e ao contrário de Próspero Fortuna, onde é feita a apologia
inequívoca do regime republicano, Amanhã não se apresenta como um romance de tese
libertária: Abel Botelho foi sempre um patriota, uma peculiaridade desenquadrada da
índole anarquista ou internacionalista, motivo que nos faz regressar à nossa epígrafe
inicial, extraída de um artigo de 1895, onde Raul Brandão reflecte sobre a ineficáciadesta ideologia: “Porque o anarchismo pode mudar as coisas, mas não pode raspar a
lepra da alma humana.”
Bibliografia
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