O PAPEL DO FEMININO NA OBRA CARMINA BURANA
Flávio Rodrigues de Oliveira (Universidade Estadual de Maringá)
Jaime Estevão dos Reis (Universidade Estadual de Maringá)
Resumo
A presente análise tem como foco abordar o papel do feminino em alguns poemas da obra Carmina Burana construída pelos goliardos no mundo medieval. A partir da História Cultural, podemos perceber que, fruto do renascimento urbano do século XII, esse grupo de clérigos errantes, muitas vezes chamados de vagabundos, teve um papel fundamental na disseminação da cultura durante ao longo dos séculos XII e XIII. E, ao analisarem o papel da mulher em uma sociedade de olhares patriarcalistas, esses estudantes errantes, abordavam em seus poemas o desejo feminino com a mesma naturalidade que o masculino, algo que traz a nós uma reflexão sobre o papel da mulher nesse contexto. Desse modo, ainda que de maneira cômica e/ou muitas vezes românticas, vamos descobrindo um olhar para a cultura que até então nos foi apagado por uma série de fatores. Palavras-chave: Goliardos. Feminino. Carmina Burana.
Introdução
Os goliardos, clérigos errantes, são expressão do renascimento do século
XII1. Um período de efervescência em vários aspectos da sociedade como cultura,
comércio, urbanismo, religião. As condições físicas, materiais e espirituais trazem ao
contexto do medievo uma nova forma de encarar o mundo e consequentemente, as 1 De acordo com Bloch, in Apologia da História ou o Ofício do Historiador, “a história é, a ciência dos homens tempo” (2001, p. 21).
relações sociais. O declínio do modo de viver feudal em detrimento do citadino faz
com que novos grupos surjam, numa configuração heterogênea. Entre clérigos,
mercadores, jograis, burgueses, artesãos, peregrinos, estudantes universitários,
viajantes, mendigos existe algo em comum, a saber, todos, frutos do urbanismo.
Não podemos precisar dados, todavia, as estruturas sociais demonstram a
mudança latente que perpassou esse período, evidenciando uma dinâmica diferente
da anterior, trazendo novos integrantes na conjuntura espacial da Alta Idade Média.
Foram, dessa forma, aparecendo novos quadros, com a urbanidade recente,
funções ligadas à indústria e ao comércio (artesanal) ganharam cena nesse
panorama.
Novamente é Le Goff (2011) quem precisa esse contexto de alterações. De
acordo com o autor, a sociedade feudal, estruturalmente considerada tripartite, a
saber, oratores, bellatorese laboratores, passa por profundas transformações,
surgindo, então, o profissional, professor. Antes do século XII, qualquer um,
principalmente, o grupo dos clérigos, que quisesse assumir a docência a fazia
paralelamente à outra função. Nas palavras do historiador:
Antes, apenas as classes sociais estabelecidas por Adalbéron de Laon – aquele que reza, os clérigos; aquele que protege, os nobres; aquele que trabalha, os servos – é que correspondiam a uma verdadeira especialização entre os homens. O servo, se cultivasse a terra, além de camponês também era artesão. O nobre, soldado, era também proprietário, juiz, administrador. Os clérigos – sobretudo monges – eram frequentemente tudo isso ao mesmo tempo. [...] Ao acaso de sua existência monástica, eles podiam assumir momentaneamente a figura de professores, de eruditos, de escritores (LE GOFF, 2011, p. 29)
Foi no afã do século XII que as transformações no ensino ganharam peso,
surgindo, dessa forma, a figura do intelectual, paralela a outras figuras do momento
citadino. Dentre as várias personagens que transitaram entre os períodos áureos da
medievalidade europeia, cabe a nós destacar os goliardos, grupo de estudantes
vistos como transgressores da ordem.
E quando analisamos o feminino podemos perceber como os goliardos
apresentaram um olhar que até então não era comum para a sociedade da época,
como, por exemplo, o verso 70 dos Carmina Burana em que esses poetas
apresentam a figura do feminino como também passível de amor e desejos:
Balança meu coração, hesito em fazer opção: amor casto ou paixão. Amor à primeira vista, teu jugo me conquista: não há quem lhe resista. Doce amigo, meu coração está contigo (Carmina Burana, vv.70).
Nesse poema em específico, notamos que a mulher, embora, ainda marcada
como submissa às ordens dos pais e/ou dos maridos, pode aqui desejar e sonhar.
Lhe é permitido por meio do seu coração continuar na sua castidade (imagina-se
uma jovem apaixonada) ou abrir-se aos desejos do seu amor a primeira vista. Assim,
ainda que as fontes sobreviventes sejam quase que inteiramente resultado do
trabalho de homens, elas podem ser vistas sob a ótica contrária. Ao apresentarmos,
por exemplo, o olhar dos goliardos sobre o feminino, podemos, a partir de outras
referências, também direcionadas para esse grupo, tecer algumas ideias sobre o
papel social desempenhado por elas e, em que ponto seus desejos, anseios,
frustrações e relações se perfazem dentro da totalidade da sociedade medieval.
Considerações finais
Embora traçar estudos sobre grupos sejam sempre generalizações,
preferindo, muitos autores a utilização de pluralidades femininas, ou subculturas
femininas, buscamos por meio dessa análise apresentar como o feminino se
apresentava na obra dos poetas goliardos em um momento histórico em que
dificilmente se veria a voz feminina em outros meios. Mesmo sob visão ocular
contrária, os poemas apresentam algumas considerações que podem nos fazer
refletir sobre os pontos de vistas femininos sobre o sexo e/ou outros assuntos
relacionados a esse grupo. Referências
CARMINA BURANA: canções de Beuern. SPINA, Segismundo (Apresentação). Introdução e apresentação de Maurice van Woensel. São Paulo: ArsPoetica, 1994. BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.
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