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o POETA DA REVOLUCÃO,POR RICARDO LISIAS

Apesar de ser conhecido, com justiça, como grande poeta,Vladimir Maiakóvski (1893-1930) escreveu, além de ver-sos, textos críticos, manifestos, cartazes de propaganda,peças de teatro e a curiosíssima autobiografia Eu mesmo.A versão final da autobiografia é de 1928 e mostra um ar-tista convencido da importância do seu ofício: "Sou poeta.Éjustamente por isso que sou interessante".

Pode-se dizer que a urgência de demonstrar a im-portância da poesia - e da arte em geral - no contextoda revolução comunista soviética foi uma das preocu-pações centrais de Maiakóvski e, dizem alguns críticos,talvez um dos motivos principais de seu suicídio. Váriospoemas, sobretudo os realizados depois da revolução,falam da necessidade do cultivo de uma arte sofistica-da, imperativo para o desenvolvimento da população.

Maiakóvski nasceu em uma família muito pobre,no interior da Geórgia. Cedo perde o pai e, com a mãe,muda-se para Moscou, onde divide o tempo entre a ne-cessidade precoce de ganhar a vida e o interesse poreducar-se. Também quando muito jovem surge o inte-resse pela política e logo Maiakóvski se enturma comos comunistas, o que lhe renderia, de cara, problemascom ajustiça e algumas passagens pela cadeia.

O entusiasmo pela revolução caminha junto comoutro, o estético, que faz Maiakóvski mergulhar nasvanguardas e trazer para a Rússia o futurismo que já seespalhara pela Europa. Começa então uma atividadeque o acompanharia até a morte: a declamação de poesia

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em espaços públicos, que muitas vezes era seguida de de-bates, às vezes muito acalorados.

A multidão era uma preocupação constante paraMaiakóvski. Em Como fazer versos, uma espécie de te-oria estética, ele afirma que "é preciso ter sempre dian-te dos olhos o auditório para o qual o poema se dirige.Isto adquire particular importância agora, quando omeio principal de comunicação com a massa é o palco,a voz, o discurso direto".

ARTISTA EM AÇÃORecitando em lugares públicos, fazendo leituras paracamponeses e operários, intervindo na imprensa e via-jando pelo país, Maiakóvski transforma em ação o tra-balho do artista, o que deixa evidente ~ concepç~? de~e çomo instrumento de intervenção e, falando das'~anifestações artísticas de alto nível, enriquecimentocultural da população.

Em um de seus poemas mais famosos, "A plenospulmões", ele chega a, de fato, revestir a poesia de umpoder bélico: "Poemas-canhões, rígida coorte/ apon-tando/ as maiúsculas/abertas'; Ei-la/ a cavalaria dosarcasmo'; minha arma favorita/ alerta para a luta./Rimas em riste/ sofreando o entusiasmo'; eriça/ suaslanças agudas. E todo/ este exército aguerrido'; vinteanos de combates'; não batido,/ eu vos doo,/ proletá-rios do planeta,/ cada folha/ até a última letra" (trad.de Haroldo de Campos).

Se lembrarmos que é esse o último poema escritopor Maiakóvski, que traduz seu pensamento maduro,fica evidente que ele estava disposto, como um soldado,a doar sua poesia para a revolução.

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REVOLUCIONÁRIOVários de seus poemas foram escritos para, basicamente,animar os revolucionários. Em 1918, ano decisivo para arevolução, o poema "Ordem aos Exércitos da Arte n. 1"clamava: "Camaradas, às barricadas!j Eu digo:/ Barri-cadas da alma e do coração!j Eu digo./ Só é comunistaverdadeiro/ aquele que queima as pontes de retirada"(tradução de E. Carrera Guerra).

Ainda assim, o que causaria enorme desgosto aopoeta, Maiakóvski não foi bem assimilado pelos revo-lucionários de primeira hora: eram constantes as acu-sações de "elitismo".

Simplesmente, as pessoas diziam que ele não eraum poeta compreensível para o público em geral. A issoele sempre respondia que jamais poderia baixar o nível:as massas é que precisavam se educar. No entanto, esseparadoxo sempre foi um problema para ele, homempolítico por excelência.

TRÊS .fASESA obra poética de Maiakóvski, grosso modo, se divide emtrês fases, sempre considerando o gigantismo da produ-ção e a diversidade de temas e formas. A primeira delasse estende dos priI:rwjLOjL~tn9s_atéa_~.P9Sadarevolução e__ ------ ._c:.......-contém os poemas mais marcados pela vanguarda.--É a época dõsmãilifesfos futuristás:<!ãSPOIê-micas

com os clássicos e das leituras nos cafés. Alguns poe-mas dessa época têm alta voltagem lírica, como ~gun;dia você poderia?", aliás magistralmente traduzido porHaroIãoaeCãillpos: "Manchei o mapa quotidiano/ jo-gando-lhe a tinta de um frasco/ e mostrei oblíquas numprato/ as maçãs do rosto do oceano.// Nas escamas de

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um peixe de estanho/ li lábios novos chamando.// Evocê? Poderia/ algum dia/ por seu turno tocar um no-turno/ louco na flauta dos esgotos?".

Deºg!~.)~eIl1pre sem serestanque, o po~ta Y2!ta:,~~__,p-ªra-t~xtQs~~itas- veie;: grandiloquentes, verdadeirosbrados em que saúdaos revolucionários. Édo ano de 1917o famoso e inspirado dístico - que teria sido repetido aosbrados durante uma invasão: "Come ananás, mastigaperdiz./ Teu dia está prestes, burguês" . Na mesma épocaMaiakóvski está preocupado em consolidar o futurismo,recomendando-o aos leitores jovens e àqueles que seformariam com os novos tempos revolucionários.

É esse o conteúdo, por exemplo, da "Carta aber-ta aos operários", redigida em 1918: "A revolução doconteúdo - socialisrno-anarquismo - é inconcebívelsem a revolução da forma: o futurismo. Disputemcom avidez os pedaços da arte sadia, jovem e rudeque lhes entregamos".

A última fase, que corresponderia aproximada-mente aosU1iTm'~-;~~i~~~_ano~de -~id~do poeta.jnos-

'tia u~;;ti;ta turbulento, preoc~p-;a:ocõJ;~~;~ lugarem um ambiente em franca construção - e bastan-te nebuloso. É a época dos poemas longos, às vezesexaltados, às vezes irônico, caso do curioso "çon~~.I_-sa sobre poesia com o fiscalde rendas": "Ao lado/ dosdonos/ de terras e de vendas/ estou também/ citado/por débitos fiscais'; Você me exige/ 500 rublos/ por6 meses e mais/ 25 por falta/ de declaração de ren-das". Os poemas são bem ritmados, procuram ocuparo espaço da página de maneira marcante e, mesmoindiretamente, continuam a reflexão de Maiakóvskicom a forma poética.

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CANSAÇO E MORTENos últimos anos, mesmo sem ter sido completamenteaceito pelas massas, Maiakóvski já é um poeta impor-tante e conhecido em todos os meios, oficiais ou não, danascente União Soviética. O poeta, no entanto, parececansado e desgastado depois de anos de contínuos em-bates públicos. ~ 1930 el~_

O ato imediatamente causa comoção e espantojustamente devido à enorme vitalidade que a figurade Maiakóvski costumava transpirar. Testemunhosdão conta que a cidade de Moscou praticamente pa-rou diante do velório do poeta, coisa que talvez ele nãoimaginasse por conta dos ataques à inacessibilidadede sua poesia.

Oito décadas depois, ele ainda é um dos grandesícones da cultura da antiga União Soviética e, também,um dos principais artistas da modernidade ocidental.

NO BRASILO leitor brasileiro, ainda que não tenha acesso a gran-de parte dos textos de Maiakóvski, pode se considerarum privilegiado. Além de estudos profundos (caso dode Ângela Maria Ripellino), o poeta está presente emportuguês em uma antologia organizada por Augusto eHaroldo de Campos, com Boris Schnaiderman, em que,junto com alguns poemas muito bem traduzidos, pode-mos encontrar uma pequena mas interessante coleçãode trabalhos gráficos do poeta e algumas fotografias.

Quanto à poesia, há uma antologia realizada porE. Carrera Guerra e publicada pela antiga editora MaxLimonad. Entre outros livros, ainda, a Editora Globalpublicou, em volume independente, o opúsculo "Como

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fazer versos", também traduzido no livro de Boris Sch-naiderman. No mercado de livros usados não é difícilencontrar a biografia literária que Fernando Peixotoescreveu para o poeta. O livro entrelaça vida e obra eapresenta um bom panorama do momento históricoextremamente convulsivo que Maiakóvski viveu.

Por fim, vale a pena destacar dois livros muito inte-ressantes que são de fácil alcance para o público em ge-ral: Mistério bufo e A geração que esbanjou seus poetas.Os dois têm produção editorial muito cuidadosa e vãoalém da mera curiosidade, mergulhando em aspectosde Maiakóvski ainda pouco discutidos.

Mistério bufo é a peça de teatro que o poeta escre-veu em 1918 e levou aos palcos três anos depois sob di-reção do famoso dramaturgo V. Meyerhold. No mesmoano, conforme conta com orgulho o próprio poeta nasua autobiografia, a peça foi também representada, emtradução para o alemão, no Hl Congresso do Cornin-tern, o que significa que o núcleo de dirigentes do mo-vimento comunista aceitou o texto.

Maiakóvski tinha apenas 25 anos quando escreveua peça; e o texto traz todas as suas preocupações àque-la altura: em linguagem popular, personagens comnomes genéricos como "criado", "sapateiro" e, entreoutros, até uma "dama-histeria" compõem um dramaépico cujo centro parece ser de fato a preocupação comos acontecimentos políticos recentes. Em determina-do momento, por exemplo, o "Francês" adverte: "Vocêsestão esquentando demais./ Prometemos e dividimosem partes iguais:/ para um - a rosca, para outro - oburaco dela'; A república democrática é por aí que serevela" (tradução de Dmitri Beliaev): ao que outra per-

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sonagem, de sintomático nome "Mercador", responde:"Então precisa alguém ficar com as sementes/ - não é amelancia para todos os dentes".

O pequenino ensaio de Roman Jakobson, A geração "\que esbanjou seus poetas, ~{imperdível. Abatido com 0-]\"

'suicídio doamigo, o fáiiicso linguista tenta entender osmotivos que o levaram a cometer tal ato e encontra naobra do poeta diversos sinais de que a morte sempre es- Iteve presente em suas preocupações. Jakobson, ainda, 1\,

observa como o contexto, profundamente desfavorávela um poeta com as ideias de Maiakóvski, ajudou-o a se \decidir por terminar com a própria vida. Exemplo de I

crítica literária aguda e veemente, o livro é quase umcomplemento à própria obra de Maiakóvski que, curio-samente, sobreviveu à sociedade e à revolução que eletão apaixonadamente tentou construir e defender.

RICARDO LISIAS é escritor e tradutor. É autor de, entre outros, Duaspraças, Anna o. e outras novelas, O livro dos manda rins. É mestre em letras(Unicamp) e doutor na mesma área (USP).

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