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o PROXIMO LUGARUm bar de praia na fronteira de Moçambique com a África do Sul lança um apelosurpreendente a um obscuro casal português

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Euma pergunta recorrente na mi-nha vida: «Qual o lugar que gostas-te mais?»Fazem-na os outros e fa-

ço-a eu a mim próprio. Por vezes, confun-do a resposta. «Depende. Que gosteimais para quê? Para namorar? Para enve-lhecer? Para ficar muito tempo, para versó de passagem, para imaginar-me a criaruma família?»Há muitas respostas para olugar que gostei mais de visitar. Mas, fre-quentemente, em tom de brincadeira,respondo: «O próximo».

É uma resposta-talismã, um voto deprosseguimento desta volta ao mundo

72 tlnlCCl 15 Agosto 2008 IExpcesso

em espiral que tem sido a minha idadeadulta. O meu interlocutor, apanhadode surpresa, geralmente acha graça enão insiste. Acontece de novo o mesmo

diálogo, agora com a Tita, num restau-rante português do Maputo, duranteum jantar em que um grupo de compa-triotas expatriados festeja o regresso de-finitivo de um dos comensais a Lisboa.

«O próximo», respondo à Tita.O próximo «lugar que gostei mais» é

difícil de alcançar. Saímos às 2 da tardedo dia seguinte de Maputo. Temos sorte,conseguimos lugar no ferry decrépito edesorganizado que atravessa a baía. A es-trada piora rapidamente, sem um to-do-o-terreno não teríamos qualquer hipó-tese de passar aqui. Três polícias sem au-toridade para isso armam-se em brigada

de trânsito e insistem que estamos bêba-dos. Não sei onde se foram lembrar des-

sa, mas o corolário da afirmação é ma-quiavélico: temos que voltar a Maputopara fazer o teste do álcool. Discutimos,não cedemos, vêem que não conseguemsacar-nos dinheiro, acabam por conten-tar-se em humilhar-nos: «Desculpe, se-nhor guarda, desculpe, eu agi mal, nãovolto a beber. Posso prosseguir, agora?»

A estrada piora sempre, depois passa apicada no mato, depois a trilho na areia.Se o Henrique não conhecesse bem o ca-minho, esta noite dormíamos ao relento.Ao fim de seis horas concluímos a cente-

na e meia de quilómetros que separamMaputo da Ponta do Ouro, uma dessaspraias moçambicanas semi-abandonadaspor causa da guerra que provavelmente

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A ESTRADA para a Ponta do Ouro; o mercado, lugar de encontro da população eFernando ao balcão do seu bar. Ao lado, conseguindo vez no ferry para a Catembe

um dia permitirão ao país viver dos rendi-mentos do turismo. Um dia, talvez. Porenquanto nenhum turista se sujeita a. .uma VIagem aSSim.

Alguns turistas, sim, mas vêm da Áfri-ca do Sul.A fronteira está a oito quilóme-tros, é um pulo. Hoje é sábado e o paísvizinho está em férias escolares. Começamal o meu encontro com o «próximo» lu-gar que gostei mais. O pior da África doSul reúne-se em férias na Ponta do Ouro

e aproveita a desleixada legislação am-biental de Moçambique para fazer aqui oque lhe é proibido do lado de lá da fron-teira: casas de praia na reserva ecológica,motas de areia pelas dunas e motas deágua pelas ondas.

Reviver O racismo

É fácil tipificar os sul-africanos em fé-rias aqui: brancos, louros, maciços e barri-gudos do excesso de carne e de álcool,falam apenas africaans, a língua da mino-ria bóer que conduziu os destinos da na-ção durante as décadas do «apartheid». É,

portanto, a ala saudosista e racista daÁfrica do Sul que gosta tanto da Ponta:os empregados moçambicanos negrosdos restaurantes desfazem-se em salama-

leques quando são humilhados, a moedasul-africana é a única forma de pagamen-to aceite, as rádios estão sintonizadas nasemissoras além fronteira, os únicos ne-

gros que frequentam a praia são os vende-dores de refrigerantes e de «souvenirs».

26° 50"5 : 32° 53"E~. '0',

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Reviver o passado racista da África doSul em Moçambique.

«Por mim, Henrique, podemos ir embo-ra, estou farto disto», digo, no sábado ànoite. «Espera até amanhã», respon-de-me. O próximo lugar que gostei maisentra na minha lista a partir das IOh damanhã: os bóeres regressam às suas casasemJoanesburgo e Pretória, com as suasmotas de areia e motas de água atreladasaos Mitsubishi e aos Land Cruiser. A cal-

ma regressa à Ponta. Ao princípio da ma-nhã passeio pela linha da maré sem o ba-rulho dos motores, ao fim da tarde sen-to-me a olhar o pôr-do-sol no bar do Fer-nando, uma cabana com vista sobre o

mercado. Posso pagar a minha imperialoutra vez com meticais. E posso falar ou-tra vez em português.

«Você pode ajudar-me?»,pergunta o Fer-nando. Já sabe que sou um jornalista. NaPonta, os bares da praia são para os turis-tas e os bares do mercado são para os lo-cais. O do Fernando situa-se na orla do

mercado à saída da praia - talvez por is-so, consegue saltar por cima de raças e na-cionalidades e servir uma clientela trans-

cultural. Ou então, é porque é a melhorcerveja de pressão da localidade. «Eu fuicriado por uma família de portugueses»,explica-me o Fernando. «O meu tio entre-gou eu para eles. Esses brancos é como osmeus pais. Vivi com eles até aos 17anos».

Depois chegou a independência e depoisa guerra. A família portuguesa fugiu paraLisboa e deixou o Fernando a tomar conta

da casa de Maputo, esperando poder re-gressar em breve e manter a posse do imó-vel. Nunca mais voltaram. «Escrevepor fa-vor no seu jornal que eu estou esperandoeles, eu quero ajudar eles,posso dar dinhei-ro para virem até Moçambique». Passaramtrinta anos, Fernando. Sabes o nome deles,a morada? «Não sei onde estão. Cha-mam-se António Gomes e Célia Faria Lei-

tão, a casa deles era na Avenida 24 Julho,tinham uma oficina de bate-chapas na Ave-nida Fernão de Magalhães, ao lado da anti-ga cervejaria Coimbra».

Ainda estarão vivos os teus segundospais, Fernando? E será que lêem o «Ex-presso»? Se lêem, podem telefonar-te:00258827381565. Não sei qual é o lugarque gosto mais do mundo, depende pa-ra quê, mas se os teus segundos pais meperguntarem, hei-de responder-lhes,«O lugar que gosto mais para reencon-tros é este, aqui». .

""",sso I, 5Agosto2008 tInICCI 73