LOPES, Célia Regina dos Santos; RUMEU, Márcia Cristina de Brito. “O quadro de pronomes pessoais do português: as mudanças na especificação dos traços intrínsecos” In: Descrição, história e aquisição do português brasileiro . 1 ed.São Paulo/Campinas : FAPESP/Pontes Editores, 2007, v.1, p. 419-436.
O QUADRO DE PRONOMES PESSOAIS DO PORTUGUÊS:
AS MUDANÇAS NA ESPECIFICAÇÃO DOS TRAÇOS INTRÍNSECOS.
Célia Regina dos Santos Lopes (UFRJ)
Márcia Cristina de Brito Rumeu (UFRJ) Resumo
O objetivo deste artigo é discutir, com base em Rooryck (1994), um sistema de traços
para a identificação das propriedades formais (φ-features) e semântico-discursivas perdidas e
adquiridas pelas formas nominais gente e vossa mercê até originar as formas pronominais a
gente e você na língua portuguesa, respectivamente. Consideram-se os traços primitivos de
gênero, número e pessoa, discutindo a aparente incompatibilidade entre as propriedades formais
e semânticas. Propõe-se, com este artigo, analisar alguns reflexos estruturais causados pela
entrada de a gente e você no quadro de pronomes do português.
1. Introdução
A inserção, principalmente no português do Brasil, de você e a gente no sistema
pronominal criou uma série de repercussões gramaticais em diferentes níveis da língua. Por
derivar de uma forma nominal que leva o verbo para a terceira pessoa do singular, o
emprego de você na interlocução acarretou, por exemplo, um rearranjo no sistema
pronominal1 com a fusão do paradigma de 2ª com o de 3ª pessoa do singular e com a
eliminação do paradigma de 2ª pessoa do plural. Novas possibilidades combinatórias
tornaram-se usuais: você com te~lhe, teu~seu/tua~sua, etc e vocês com lhes~vocês, seu(s)~teu(s),
de você(s) etc. As alterações afetaram outras sub-categorias pronominais (possessivos e
1 Cf. Faraco (1996), Menon (1995). Ver a discussão proposta pelos autores.
pronomes-complemento) como ilustram os exemplos a seguir: “Vocêi disse que eu tei acharia
na faculdade e que vocêi me emprestaria o teui/seui livro. Vocêi arranjou aquele que eu tei/lhei pedi?”
Além de diferenças regionais quanto à variação entre te~lhe, alguns autores discutem como
um dos condicionantes para o emprego dessas formas, o caráter mais íntimo do primeiro e
não-íntimo ou mais formal do segundo2. Os rearranjos não terminam aí. Com a migração
do possessivo de terceira seu (e variantes) para o paradigma de segunda pessoa, ocasionada
também pela inserção de você no sistema, a forma dele tem se tornado cada vez mais
freqüente como estratégia “possessiva” de 3ª pessoa para evitar a ambigüidade do
possessivo seu que atende às duas pessoas (segunda e terceira)3.
Embora ainda condenada pela gramática, a famigerada “mistura de tratamento”
atingiu também o imperativo com o crescimento do seu uso referente ao sujeito tu, mesmo
quando o tratamento do ouvinte se faz com você4. Em propagandas oficiais veiculadas pela
mídia ou em programas de televisão, encontram-se exemplos dessa natureza: “Vem para
Caixa, você também”5.
Outra reestruturação ocorreu no paradigma verbal que perde sua riqueza em termos
flexionais passando de seis para três formas básicas (“eu falo”, “tu/você/ele/a gente fala”,
“vocês/eles falam”). Estudos lingüísticos6 mostram que o português do Brasil estaria
passando de uma língua de sujeito nulo para uma língua de sujeito pleno. A perda da desinência
verbal dá aos novos pronomes o status de únicos indicadores da categoria de pessoa, daí sua
presença ter se tornado cada vez mais obrigatória. Constatam-se, dessa forma, várias
2 Cf. Menon (1995).
3 Cf. Silva (1982), Abraçado (2000); Menon (1996), Negrão & Müller (1996), entre outros.
4 Cf. Paredes Silva (2000:116), Scherre et al (2000).
5 Combinação de imperativo de 2ª pessoa com a forma você.
6 Cf. Duarte (1993, 1995).
alterações morfossintáticas: introdução de novas formas pronominais, simplificação do
paradigma verbal, preenchimento obrigatório do sujeito e ordem mais rígida na sentença.
Há ainda a acepção indeterminadora dessas novas formas você/a gente. Além da referência
definida, o uso de você (e também de tu) se expandiu para os contextos de referência
indeterminada (também em concorrência com tu em várias regiões do país) e já aparece em
construções existenciais7, do tipo “Você tem uma loja lá no Shopping que só vive em liquidação”,
com o sentido de “Existe/Há uma loja (...)”. No plural, pode-se dizer que vocês acabou por
substituir a forma pronominal vós. O pronome a gente8 apresenta também um caráter
indeterminador em oposição a uma nuança mais específica de nós. O falante se
descompromete com o discurso, tornando-o mais vago e genérico, pois tal forma pode
englobar as demais pessoas (“eu + você(s) + ele(s) + todo mundo ou qualquer um”).
Apesar dos diversos estudos lingüísticos realizados, com base em amostras de fala ou
de textos de sincronias passadas, não há ainda um completo mapeamento descritivo da
atual situação do sistema pronominal e das repercussões gramaticais ocasionadas pela
inserção de você e a gente e pelo desuso de vós. Com relação à substituição de nós por a gente,
permanece a convivência das duas estratégias de referência à primeira pessoa do plural no
português falado do Brasil, embora a forma inovadora venha ganhando espaço nas últimas
décadas. Levando-se em consideração os fluxos e contra fluxos da variação você/tu, alguns
estudos demonstraram9 que o uso majoritário de tu – forma recorrente no século XIX – só
será suplantado por você por volta dos anos 20-30 do século XX. No último quartel do
século XX, no entanto, há um retorno do pronome tu à fala carioca sem a marca flexional
7 Cf. Duarte (1995, 1999, 2003) e Avelar (2003).
8 Cf. Lopes (1993, 1999), Omena (1986), Machado (1995), entre outros.
9 Cf. Duarte (1993) Lopes e Duarte (2003) em análise feita com base em peças teatrais e Rumeu (2004) em
uma análise realizada a partir de cartas setecentistas e oitocentistas.
de segunda pessoa10. Pesquisas realizadas11 nas três capitais do sul indicam a ausência de tu
em Curitiba, sua concorrência com você em Florianópolis e Porto Alegre, com uma
interessante particularidade: em Florianópolis, tu é menos freqüente que você, mas tende a
aparecer mais com a flexão verbal marcada, enquanto em Porto Alegre, tu é mais freqüente,
mas a flexão verbal é mais rara. Falta-nos uma descrição mais detalhada dessa variação nas
regiões norte e nordeste12.
A questão, como se percebe, é complexa e determinada pela própria origem dos
elementos que participaram desse processo de mudança categorial de nome (ou expressão
nominal) para pronome. Defende-se, neste estudo, a necessidade de explicitar as causas
das alterações ocorridas no nosso sistema pronominal, a partir da identificação dos traços
formais e semânticos intrínsecos às formas nominais que se pronominalizaram. Durante a
evolução diacrônica de a gente e você, não houve perda completa e imediata dos traços
nominais e, muito menos, a adoção definitiva das propriedades pronominais. Parece
pertinente sistematizar, nesse sentido, a distinção entre as duas classes, tendo em vista a
identificação dos traços primitivos de gênero, número e pessoa. Desse modo, no final da
análise, poder-se-á referendar a posição de que realmente houve uma mudança no sistema,
no momento em que o substantivo gente ou expressão nominal vossa mercê, ao assumirem,
em certos contextos, determinadas propriedades, passaram a fazer parte de outra classe
(perderam características lexicais, tornando-se mais gramaticais). Os corpora de escrita que
servirão como base, neste artigo, para a discussão e análise dos traços intrínsecos são
constituídos por textos do século XIII ao XX, incluindo-se as cartas setecentistas e
10 Cf. Paredes Silva (2000, 2003).
11 Cf. trabalhos de Menon (1997) e Menon & Loregian-Penkal (2002).
12 Ver Lemos Monteiro (1994).
oitocentistas oficiais e não-oficiais editadas por Rumeu (2004). Já os corpora de fala
utilizados são formados por entrevistas do século XX que fazem parte do Projeto NURC.
2. Uma tentativa de formalização dos traços intrínsecos.
Rooryck (1994:209) estabelece que, para cada atributo, ou seja, para cada traço, há um
determinado valor que pode ser positivo [+X], negativo [−X], ausente (não ser especificado)
ou pode ter uma atribuição específica [pessoa: 1ª]. O autor discute as noções de
“subespecificação α”, “traços não-variáveis” ou “[φ traço]” que serão resgatadas aqui.
Há dois tipos de traços subespecificados discutidos em Rooryck, (1994): os variáveis
(α-traço) e os não-variáveis (φ traço). Os primeiros não representam um valor neles
próprios, ou melhor, a notação ‘α atributo’ deve ser entendida como a possibilidade de um
item poder assumir valor “+” ou “−”, sendo sintaticamente subespecificado. A raiz “alun-
”, por exemplo, seria marcada formalmente como [α fem], uma vez que tanto é compatível
sintaticamente com o feminino, quanto com o masculino. (“o aluno está aborrecido” ou “a
aluna está aborrecida”). Uma raiz como “janel-” seria, ao contrário, marcada como [+ fem],
porque formalmente só ocorre em construções do tipo: “a janela está quebrada” e nunca “*o
janelo está quebrado”. Quanto ao número, tanto “alun-”, quanto “janel-” seriam codificados
como [α pl], porque são compatíveis com “singular” e com o “plural”. O pronome de 3ª
pessoa ele/ela seria subespecificado para “gênero” e para “número” [α fem, α pl], por conta
das suas possibilidades formais: “ele/ela/eles/elas”. Rooryck (1994:209) conclui que, se um
determinado elemento “x” apresenta os valores [α pessoa, α gênero, α número], quer dizer
que “x” é sensível a qualquer valor de pessoa, gênero, número.
Os traços subespecificados não-variáveis (φ traço) são considerados como ‘traços
neutros, pois não têm valor positivo ou negativo para um dado traço, mas simplesmente
marcam a ausência de um valor específico’. Concretamente, isso significa, em termos de
sistema de traços, que um traço dado tem uma especificação sem um valor. Rooryck (1994:
230) defende que os valores default podem ser representados como um [φ traço] e chega a
postular que o masculino e o singular podem ser considerados como traço φ, por ter
interpretação default (genérica) ou por um determinado traço poder ser interpretado tanto
como masculino quanto feminino, tanto singular quanto plural. Tal postura simplifica a
descrição dos traços, principalmente no caso da terceira pessoa, a qual, em geral, é atribuída
a especificação [−eu,−tu]. Como se trata da “não-pessoa” (Benveniste, 1988), e por
funcionar, nas línguas românicas, como “pessoa default”, concordando com sujeitos não-
referenciais, pode-se postular a subespecificação de traço neutro: [φ eu].
Procurando uma representação econômica em termos de sistema de traços, propõe-
se, no caso do gênero, a distinção binária, partindo do traço “fem(inino)” como forma
marcada e representando o “masculino” – forma não-marcada por excelência em português
– por [− fem]. Os itens lexicais teriam como representação do gênero formal as indicações:
[+fem] ou [− fem]. Com relação aos traços de número, optou-se pela oposição: [+ pl] (=
plural) ou [− pl] (=singular). Para o atributo “pessoa”, propõe-se a utilização do traço [eu]
que seria mais ou menos marcado: [+ eu] e [− eu]. Embora, à primeira vista, pareça que tal
oposição não dá conta do sistema, porque tanto “tu” quanto “ele” seriam eventuais
candidatos ao traço [−eu], defende-se que a noção de pessoa remete à situação lingüística, à
enunciação, ao intercâmbio verbal, que pressupõe duas pessoas: o locutor e o interlocutor
(ou alocutário). A dita terceira pessoa está fora deste eixo dialógico: é o que Benveniste
(1988) chamou de “não-pessoa”, pois pode ser o próprio objeto da enunciação, o
enunciado. Por essa razão, codifica-se [+eu] para 1ª pessoa, [−eu] para a 2a pessoa
(pronomes pessoais “legítimos”) e [φ eu] para a “não-pessoa” (a dita 3a pessoa).
- Da necessidade dos traços semânticos na configuração duas classes.
Antes de especificar sistematicamente os traços referentes aos nomes e aos pronomes
pessoais, faz-se necessário justificar a necessidade de postular a existência de traços
semânticos para cada um dos atributos formais propostos (gênero, número e pessoa), levando-
se em conta a não-correspondência obrigatória entre forma e sentido.
Reconhecer a existência de uma relação entre forma e significado e tentar explicitá-la
é um dos principais objetivos da lingüística. Estudos anteriores, que já discutem o ‘não-
isomorfismo total entre forma e interpretação nas línguas naturais’ (Pereira 1987:08),
chegam as seguintes conclusões: a) a leitura atribuída a um item isolado não é sempre a
mesma em todas as estruturas sentenciais de ocorrência – dependendo inclusive da sua
relação com determinadas predicações – e b) certas regras sintáticas corroboram a
interpretação semântica dos fenômenos lingüísticos.
Pode-se discutir melhor a falta de correlação total entre os dois planos através da
análise, por exemplo, do gênero em português. O gênero formal pode estar presente na
estrutura sintática, embora a informação do gênero semântico possa estar ausente. Em “a
mesa limpa” ou “o prato sujo”, apesar dos traços formais de gênero, não há informação de
sexo (gênero semântico). Quando se diz “A cobra foi capturada” ou “as pessoas estão atrasadas”,
tem-se a concordância com o feminino, apesar de não se ter necessariamente “cobra
fêmea” ou “pessoa do sexo feminino”. Nos substantivos em que há certa correlação entre
forma-sentido, como é o caso dos variáveis (aqueles que admitem os dois gêneros) com o
traço [+ animado], do tipo “o(a) aluno(a), o(a) pato(a)” o gênero semântico faria parte do
significado lexical dos itens.
Com relação aos atributos de pessoa e número, também se pode dizer que há
incompatibilidade entre os dois planos. Numa frase como “a gente andava de bicicleta, era o
esporte predileto nosso” (NURC-PoA, inq. 045), verifica-se que, embora o verbo esteja na
terceira pessoa do singular [φ eu, − pl], a interpretação semântica para a gente seria primeira
pessoa do plural [+EU, +PL].
Considera-se, pois, em princípio, que os traços deverão ser desmembrados em dois
atributos, um formal e um semântico. Para facilitar a distinção entre os dois planos,
representam-se sempre as notações da interpretação semântica em maiúsculas, [FEM],
[EU], [PL], com os possíveis valores (+), (−), (α) ou (φ).
3. O sistema de traços proposto: pessoa, número e gênero.
3.1 Quem é a terceira pessoa ? Revisitando o conceito.
A noção de pessoa remete à situação lingüística, à enunciação, ao intercâmbio verbal,
que pressupõe duas pessoas: o locutor (o eu) e o interlocutor (o tu). A dita terceira pessoa
está fora deste eixo dialógico, caracteriza-se como a “não-pessoa”13 em oposição às
verdadeiras pessoas do discurso (quem fala eu versus quem ouve tu). A “não-pessoa” é o
próprio objeto da enunciação, o enunciado. O pronome de terceira pessoa ele originou-se
do pronome demonstrativo latino ille e ainda mantém a propriedade de flexão de gênero
(“ele/ela”) e número (“ele/eles”) dos demonstrativos. Os pronomes pessoais “legítimos”
não sofrem flexão de gênero/número (“eu/nós, tu/vós”), pois são itens lexicais diferentes
e não há a variação de um mesmo item. A dita “não-pessoa” combina-se a verbos que, nas
línguas do mundo, em geral, levam desinência zero, confirmando a sua impessoalidade.
Considera-se que as formas de primeira e segunda pessoas teriam uma maior dimensão
pragmática, no sentido de serem os verdadeiros vocábulos dêiticos situacionais. As formas
de terceira pessoa são, em geral, menos situacionais e mais textuais, ou seja, anafóricos.
13 Designação de Benveniste (1988).
Tanto os pronomes de terceira, quanto os nomes compartilham o traço neutro para pessoa
(P3)14. Os nomes têm essencialmente, no plano semântico, um caráter representativo ou
simbólico, ao passo que os pronomes se caracterizam como formas indicativas que situam
os seres ou/coisas no mundo biossocial.
Segundo essa proposta, o substantivo gente teria os traços [∅ eu, ∅ EU], ao passo que
a forma pronominal a gente teria mantido o traço formal de 3a pessoa, porque continuou a
se combinar com verbos em P3 (“a gente tem uma paisagem bonita no Rio”), mas a
interpretação semântico-discursiva se alterou para [+ EU], uma vez que passou a incluir o
falante. Tal postulação pode ser referendada por dois indícios sintáticos. O primeiro seria a
concordância verbal com a primeira pessoa do plural (P4), freqüente no português não-
padrão e o segundo seria a co-indexação pronominal com “nosso(s)/nossa(s)”. Em síntese
o processo evolutivo seria: gente [∅ eu, ∅ EU] > a gente [∅ eu, + EU]. Observem-se os
exemplos abaixo:
(i) A gentei (aquela gente) pegou a comida delai/j/ a suai/j comida. (a gente = nome)
(ii) A gentei pegou a comida delai*/j/ a suai*/j comida. (a gente = pronome)
(iii) A gentei (aquela gente) pegou a nossa*i/j comida. (a gente = nome)
(iv) A gentei pegou a nossai/*j comida. (a gente = pronome)
14 Adota-se a subdivisão de Câmara Jr. (1970), pois não se considera que nós e vós são verdadeiros plurais de eu
e tu, respectivamente, mas sim pessoas diferentes. Nós não é a soma de eu+eu, nem vós/você é a soma de
tu+tu/você + você. Teríamos então: P1 = primeira pessoa do singular, P2 = segunda pessoa do singular, P3 =
terceira pessoa do singular, P4 = primeira pessoa do plural ou o “eu-ampliado”, (eu + alguém), P5 = segunda
pessoa do plural (você/vós + alguém) e P6 = terceira pessoa do plural.
Defende-se aqui que os pronomes/formas seu/dele podem, ou não, ser co-referentes
da forma nominal (a) gente. É possível interpretá-los referindo-se ao SN, embora a leitura “a
comida é de outra(s) pessoa(s)” também seja gramaticalmente possível. Em (iii), a única
possibilidade interpretativa é a não co-referenciabilidade para que a forma (a) gente tenha
uma leitura nominal e não pronominal. É nesse ponto específico que se insere a mudança
lingüística categorial: para entender a gente como pronome, as formas seu/dele não podem
ser seus co-referentes, como evidencia o exemplo (ii), ao passo que com a forma nosso
apenas a co-referência é gramaticalmente correta, como se vê em (iv).
A interpretação semântica [+EU] está cada vez mais presente em termos formais,
mesmo entre falantes cultos que não costumam estabelecer a concordância de a gente com
P4. Isso ocorre, principalmente, em estruturas paralelas. O falante inicia um enunciado com
a gente e encadeia uma série de estruturas com a presença de P4, seja no verbo, seja em
formas pronominais correlatas. Os exemplos extraídos de entrevistas e reportagens de
jornais evidenciam como tal comportamento tem se instaurado até mesmo na escrita:
(1) “O objetivo era preparar tudo para a chegada da Regina. A gente trabalhou à beça e pesquisamos um monte de coisa. Para parecer que tudo foi feito de improviso, conta Alberto.
(Jornal do Brasil, 19/08/1997.)
(2) Maria Bartolomeu Silva (dona-de-casa): “Nunca vi a cidade tão desorganizada como agora. A gente não se sente seguro nas ruas. Mesmo sabendo que refrescaria um pouco, torcemos para não chover, porque temos medo que as águas inundem a cidade. Resultado: morremos de calor (...)”
(Revista de Domingo do Jornal do Brasil, 08/02/1998.)
(3) “(...) por isso, vamos conversar. Entre em contato com a gente, para nos contar o que aconteceu. Queremos saber os motivos que levaram a essa decisão.”
(Extraído de uma carta comercial da Diretoria da Editora Globo, maio/1998.)
No caso da evolução de vossa mercê > você, o item lexical mercê apresentava os mesmos
traços de gente sem um valor específico que possa determiná-lo formal e semanticamente
quanto à noção de pessoa – [∅ eu, ∅ EU], como se verifica em (4).
(4) “(...) A outra cartinha he para a Cunhada do Bonifacio em Respeito a que me escreveo, e como mefallava em Vossa Senhoria e não sei outro modo de lha Receber, e Vossa Senhoria sabera onde ella mora, ou ella aparecera, por isso vou a pedir-lhe a mercê de lhe fazer ir amão a Carta. (...)”
(Carta não-oficial. Inocêncio A. das Neves. RJ, 08.05.1816.)
Ao ser utilizado como expressão de tratamento em vossa mercê, observa-se a
conservação da pessoa formal [∅ eu] típica do nome, com alteração da pessoa semântica, uma
vez que passa com o possessivo vossa a ser utilizada como estratégia de referência à segunda
pessoa do discurso, embora o verbo se mantenha na 3a pessoa, como pode ser evidenciado
em (5).
(5) “(...) Domesmo Continente medarâ Vossa mercê Conta daquillo que for enCarregado, doqueSetiver posto empratica a este Respeito, edetudo que tiver aContecido naz partez emque Vossa mercê seachar: esta Conta bastará, queseja por hum Diario muito simplez a fim denão estar embaraçando aVossa mercê Comescriptaz, que lhetomem otempo, esejão inuteiz(...)”
(Carta oficial. Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.)
A forma você mantém a especificação formal e semântica de vossa mercê [- EU], peculiar
à forma nominal de tratamento que a originou, como se observa em (6):
(6) “(...) As novidades que aqui há euasdou na Carta daminha Maria, epormenão fazer importuno aVocê por hiço lhenão repito. Você desculpe opouco extenço que sou, porem otrabalho, comque meacho, eograndissimo defluxo, comque fico menão permitte demorarmecomodezejava. Você aseite afielamizade, comque sempre metem prompto para emtudo lhedar gozto. Eu lhedeito aminha benção, ea Deus peço oGuarde muitos anos como muito dezejo eheymister(...)”
(Carta não-oficial. Marquês do Lavradio. RJ, 06.05.1774.)
Como ocorreu com a gente, a forma você mantém a especificação original de 3a pessoa
[φeu] na concordância verbal, apesar da alteração ocorrida em termos semântico-
discursivos [-EU]. Aos poucos tal interpretação semântico-discursiva passa a figurar
formalmente, apesar de ainda ser condenada pelo ensino tradicional. Estudos mostram que
a combinação de você com formas de 2ª pessoa já era comum no início do seu processo de
mudança categorial em fins do século XIX. Em cartas do Paraná escritas em 1888 e no Rio
de Janeiro, também no século XIX (1880-1881), indícios da “mistura de tratamento”, ainda
repudiada no século XX pelos manuais escolares, são localizadas. Verificou-se a
possibilidade de co-referência ou combinação de você com formas pronominais de 2ª pessoa
(te/teu), exemplificada em (7), ou ainda a variação entre formas pronominais de 2ª pessoa e
de 3ª pessoa numa mesma carta em (8):
(7) “Voce e Juvelina recebão lembranças de todos e um apertado abraço d´esta tua irmã que muito te estima”.
(Carta de Julieta F. L. Ascencao à sua irmã Josephina. Curitiba, 26/08/1888-PR.)
(8) “Meo Querido Neto Mizael. Recebi a sua cartinha, que me-deo muito prazer, ver que voce se-tem adiantado muito. Fiquei muito contente quando sua Mae me-disse que em principio de Maio estarão cá, pois estou com muitas saudades de voces todos. Vóvó te-manda muitas lembranças.a menina de Zulmira está muito engraçadinha ja tem 2 dentinhos. Com muitas saudades te abraça Sua Dindinha e Amiga.”
(Carta de Bárbara ao neto Misael, carta 28, RJ, 1883.)
A integração da forma você no quadro de pronomes pessoais ocasionou a
reestruturação do sistema pronominal em termos das variadas possibilidades combinatórias
ou de correspondência que você passou a assumir, seja em relação aos pronomes possessivos
você – teu~seu, seja no rearranjo causado também nos pronomes oblíquos (dativos ou
acusativos ((de) você – te ~ lhe ~ o/a)).
3.2. Quem é a gente ? Quem são vocês ? O traço de número.
Os nomes podem ocorrer tanto no singular, quanto no plural, o que leva à seguinte
oposição semântica: “um elemento” versus “mais de um elemento” (o livro “um elemento” x
três livros “+ de um elemento”).
Com os pronomes a correlação não é tão automática. Existe um aspecto a ser
considerado por divergir da descrição gramatical. Trata-se da oposição entre singular e
plural nos pronomes pessoais. Ora, a noção de número implica o grupamento de elementos
de mesma natureza e não é isso que ocorre, por exemplo, com a forma nós, apresentada
tradicionalmente como plural de eu, e vós/vocês como plural de tu/você. No primeiro caso, é
inconcebível a junção de elementos iguais (eu+eu), havendo, na verdade, várias
possibilidades de compreensão: eu+você, eu+ele, eu+ vocês, eu+ eles, eu+ todos. No segundo
caso, do mesmo modo, a forma plural refere-se a um conjunto indeterminado, abrangente,
genérico e até difuso. Quando o falante diz “Havia uma tradição, desde a copa do mundo de
cinqüenta, pelo menos aquele pessoal que assistiu e se lembra daquilo. Ah, até nós sairmos perdendo. O
Brasil estava jogando mal.”15 pode estar se referindo a ele pessoalmente associado ao
interlocutor, aos jogadores que participaram da partida, aos torcedores, enfim, a todos os
brasileiros em geral.
O substantivo gente apresentava, na história do português, comportamento similar ao
que ocorre com “povo”, “grupo”, “multidão” e com os substantivos coletivos: podia ser
usado tanto no singular (“esta gente”) quanto no plural (“estas gentes”). A agramaticalidade
da subespecificação para a gente em (d) e (e) e gramaticalidade para gente no português
arcaico em (a) e (b) comprovam isso:
Português arcaico:
15 NURC-Porto Alegre, inquérito 18.
1a fase: [αpl, +PL] (substantivo gente) a) “Sobre as armas e caualos que tem as gentes dos conçelhos são feitas tantas e tam boas ordennações que não saberia hy al diujsar.”
(Séc. XV, Livro da Cartuxa, Dias 1982). b) “[...] a geral gente sera ysto proueytosso çerto non mas antes non proueytosso.” (idem).
2a fase: [φpl, +PL] (substantivo gente) c) Muita gente gosta de fazer isso. d) *Muitas gentes gostam de fazer isso.
3a fase: [φpl, φPL] (pronome a gente) e) *As gentes comem mal. f) A gente come mal.
Em Lopes (2003), evidencia-se que a perda do traço de número plural é acelerada a
partir do século XVI, atingindo 100% no século XX e o uso de gente apenas no singular
ganha terreno, firmando-se como uso categórico no século XX. A forma cristalizada a gente,
cuja referência conceptual é uma massa indeterminada de pessoas disseminada na
coletividade – com o eu necessariamente incluído – herdou, justamente, a possibilidade
combinatória com o singular, e não com o plural. Manteve-se uma interpretação semântica
pluralizada, ao mesmo tempo em que designa um todo abstrato, indeterminado e genérico,
representando o conjunto base “ser–pessoa”.
O substantivo mercê(s)16, assim como gente, apresentava-se subespecificado com
relação ao atributo número – [α pl]. O pronome de tratamento vossa(s) mercê(s) assumiu esse
valor subespecificado, que, por sua vez, foi transferido à forma pronominal você(s).
Formalmente, tem-se um quadro de estabilidade com relação ao atributo número, uma vez
que a mudança categorial de nome para pronome não acarretou transformações com
relação ao atributo em questão, como já foi apontado por Menon (1996). Quando 16 A descrição de mercê > vossa mercê > você foi feita por Rumeu (2004).
analisado independentemente do traço de pessoa, atribui-se um valor neutro – [∅ PL] – ao
traço de número semântico do item lexical mercê, em virtude de a pluralização da forma
nominal não acionar um valor específico à sua interpretação. O item lexical mercê,
flexionado em número ou não – mercê(s) – possui uma interpretação genérica – como se
observa em (9) e em (10) –, não estabelecendo, pois, oposição entre uma ou mais de uma
graça.
(9) “(...) Na occazião prezente não posso deixar de considerar a Vossa Excelência occupado do maior jubilo, e alegria pelas Mercez das novas patentes, com que Sua Magestade foi servido premiar os serviços dos Officiaes, que se distinguirão nas occazioens de honra (...)”
(Carta oficial. J. Be. do Rio de Janeiro. RJ, 22.10.1776.)
(10) “(...) A proporção eu me encho de prazer, e consolação; e congratulandome com Vossa Excelência lhe dou mil parabens pela grande parte que lhe toca; pois que estas mesmas Mercez são evidentes demonstraçoens que Sua Magestade dá do merecimento de quem dirigio toda a acção (...)”
(Carta oficial. J. Be. do Rio de Janeiro. RJ, 22.10.1776.)
A forma nominal de tratamento vossa mercê também apresenta-se com uma
interpretação subespecificada em relação ao atributo número – [α PL] –, pois pode assumir
ou não uma interpretação pluralizada, conforme a presença ou a ausência do traço de
número formal, como é possível observar em (11), ocorrência em que se interpreta que a
forma vossas mercês evoque mais de um sujeito de 2a pessoa do discurso.
(11) “(...) eque adita entrega deveria ser por huma escriptura em que eu o izentasse de todas as circunstancias comerciaes ejuros que vossas mercês lhe quizessem acumular (...)”
(Carta não-oficial. José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.)
A forma você conserva a subespecificação – [α PL] – atribuída ao número da forma de
tratamento que a motivou, o que pode ser observado nas ocorrências 12 e 13. O pronome
você, assim como a forma nominal de tratamento vossa mercê, mostraram-se isomórficos com
relação ao atributo número nas suas especificidades formal e semântica, uma vez que a
existência ou não do morfe flexional -s será o fator a determinar a sua interpretação
pluralizada ou singularizada. Pode-se considerar que essa isomorfia entre vossa mercê e você, no
que se refere ao atributo número, deve ter sido motivada pelo fato de vossa mercê ter surgido
em substituição à forma pronominal de 2a pessoa do plural – vós.
(12) “(...) Meo quirido Filho, meo Senhor domeo Coração, são passados ja muitos mezez, em que estamoz na sensadoria de não termos navio de Lixboa faltandome por esta cauza o gosto denovaz de Voce, edemas dar taobem dobom suceso de Francisca ahum Pay que os ama aVocez tão cheyo deternura, considere Você quam Tormentuoza meterá sido essa demora: (...)”
(Carta não-oficial. Marquês do Lavradio. RJ, 11.06.1773.)
(13) “(...) Novaz doPays, que eu possa dar não há por hora nenhumas, e quando Vossez asnão achão emLisboa nãopodera fazer admiração, que haja muito menoz na América: a donde Você terá Sempre aminha Vontade com omayor gosto para emtudo lhe servir. (...)”
(Carta não-oficial. Marquês do Lavradio. RJ, 11.06.1773.)
Ao comparar a matriz de traços da forma pronominal você – [α pl ,α PL] – com a
matriz de traços dos pronomes pessoais, percebe-se que o pronome você apresenta, em relação
ao atributo número nas suas bifurcações formal e semântica, os mesmos traços que o pronome
de 3a pessoa – ele(s), ela(s). Aparentemente, ao se pronominalizar, o item lexical perdeu
algumas características nominais – a interpretação genérica atribuída ao substantivo mercê no
plural [∅ PL] – e assumiu a subespecificação de número plural – [α PL] – atribuída à forma
de tratamento vossa mercê e ao pronome você.
3.3 A perda do gênero formal: assumindo comportamento de pronome pessoal.
Consoante a concepção de Lyons (1979:299) ‘o termo gênero (...) deriva de uma
palavra extremamente geral que significa ‘classe’ ou ‘tipo’ (lat. genus): os três gêneros do
grego e do latim eram as três grandes classes nominais que a gramática reconhecia. Do
ponto de vista gramatical, os substantivos gregos e latinos eram classificados em três
gêneros para dar conta de dois fenômenos distintos: 1) a referência pronominal; 2) a
concordância do adjetivo.’ Considerando que Lyons (1979) aponta a referência pronominal
e a relação de concordância dos substantivos com o adjetivo como duas informações
gramaticais detectadas a partir do gênero dos substantivos, discute-se, a partir dos dados a
seguir apresentados, o comportamento de gente, a gente, mercê, vossa mercê e você em relação ao
atributo gênero em português.
Como discutido em 2.2, a questão do gênero talvez seja a mais complexa por não
haver obrigatoriamente correlação entre o gênero formal e o semântico. Nos substantivos
variáveis com o traço [+animado], há, em geral, uma correspondência entre o traço formal
e o semântico, como é o caso de menin-, estudant-, garot-, pat-, gat-, etc., em que se pode
caracterizar [α fem] o traço formal, porque é compatível tanto com o masculino, quanto
com o feminino. Em termos semânticos, seria também [α FEM]. Entre os substantivos
animados invariáveis, há casos de isomorfismo entre os traços formais e os semânticos,
como é o caso de vaca [+fem], rei [–fem], pai [–fem]. Em outros, o gênero semântico é
“neutro”, isto é, refere-se genericamente aos dois sexos. Incluem-se, nesse último grupo,
formas como pessoa [+fem] e [∅ FEM], vítima [+fem] e [∅ FEM], povo [–fem] e [∅ FEM],
multidão [+fem] e [∅ FEM]. Os outros substantivos do tipo cadeira [+fem], árvore [+fem],
vida [+fem], céu [–fem] não são codificados quanto ao gênero semântico, porque os traços
[–humano] e [–animado] bloqueiam tal especificação.
Observe-se como se comporta o substantivo gente, dentro desse quadro, analisando
o exemplo abaixo:
“(...) quem governava, e mandava era elle Epifanio e Manoel Congo, e que todos os dias de manhã mandava reunir a gente e contava o número della (...)”
(Séc. XIX, Insurreição Negra e Justiça, 1987:48-49, fala de Miguel Crioulo).
Esse exemplo evidencia a não-correlação obrigatória entre o traço formal e o semântico. O
fato de a gente, substantivo, ser [+fem], co-ocorrendo com o pronome della, também
[+fem], não implica que o seu significado seja [+FEM], pois a gente, no exemplo, se refere a
um agrupamento de pessoas de ambos os sexos; no caso, o réu e seus companheiros
escravos.
Percebe-se que, apesar de o substantivo gente ter o traço formal [+ fem], o gênero
semântico não é especificado, porque a sua combinação com formas sintáticas de feminino
não esclarece o sexo do seu referente, ou seja, a única predicação possível [+fem] não
aciona interpretação de gênero, não impondo restrição no que diz respeito ao sexo dos
referentes. O zero, nesse caso, marca a falta de um valor específico (default) para o gênero
semântico. Logo, a matriz lexical do substantivo gente seria [+fem, φ FEM].
Nos pronomes pessoais, as formas de terceira pessoa ele/ela; eles/elas são
subespecificados formal e semanticamente quanto ao gênero. No que se refere às outras
formas pronominais pessoais legítimas, o gênero formal é neutro [φ]. Semanticamente, no
entanto, pode-se considerar que há uma dupla possibilidade interpretativa, porque formas
pronominais como eu, tu/você, nós/a gente podem combinar-se com adjetivos no masculino
e/ou no feminino em estruturas predicativas, acionando uma interpretação de gênero.
Quando se diz “eu estou velha”, sabe-se que o eu é uma mulher, porque o adjetivo “velha”
está no feminino, é seu co-referente. Postula-se que a variação de gênero assumida pelos
adjetivos em co-ocorrência com o pronome de 1a pessoa acionaria uma interpretação
semântica, embora o gênero formal do pronome eu em si seja nulo.
Com a entrada no sistema pronominal da forma gramaticalizada a gente, a
especificação positiva de gênero formal [+ fem] do substantivo gente teria se perdido,
tornando-se neutra, como ocorre com as outras formas pronominais de primeira e segunda
pessoas (eu/nós, tu/você(s)/vós) que não têm gênero formal. No processo de
pronominalização, a forma a gente pronominal, apesar não ter gênero formal, apresenta
subespecificação semântica quanto ao gênero, uma vez que a gente pode combinar-se com
adjetivos no masculino e/ou no feminino dependendo do gênero semântico (“a gente ficou
arrasada” – referência exclusiva a mulheres – ou “a gente ficou arrasado” – referência
mista ou exclusiva a homens). A partir dessa mudança de propriedade, a combinação
formal no predicativo com formas no masculino e no feminino aciona um tipo de
interpretação semântica quanto ao gênero, como mostram os exemplos a seguir:
(15) “nesse ponto lá em casa a gente é muito cuidadoso” [referente misto] (NURC-RJ, AC.014, H2).
(16) “que geralmente a gente é obrigado a ver” [referente genérico]
(NURC-RJ, inq. 052, H2). (17) “na época a gente era...era...novo” [referente masculino exclusivo]
(NURC-RJ, AC.01, H1). (18) “na hora a gente fica revoltada” [referente feminino exclusivo]
(NURC-RJ, AC.020, M2).
No que se refere ao processo de gramaticalização de gente > a gente, propõe-se a
seguinte matriz morfo-semântica no que se refere aos seus traços de gênero, número e pessoa.
(inserir Quadro 1: Matriz morfo-semântica de gente e a gente pensada por Lopes (1999,2003).)
Com vossa mercê > você17 ocorre processo semelhante. O item lexical mercê é
positivamente marcado quanto ao traço de gênero formal – [+ fem] –, uma vez que só pode
ser especificado por determinantes cujo gênero formal é feminino. Semanticamente, no
entanto, a forma nominal mercê com o sentido original de favor, graça não aciona um valor
específico de gênero, pois não faz referência a pessoas do sexo feminino – [∅ FEM]. O
vocábulo mercê se constitui como um substantivo abstrato [- animado, - humano] como
beleza, graça, diferenciando-se do substantivo gente, que por si só já evoca a noção de um
‘conjunto de pessoas’. Os exemplos (19) e (20) mostram que o mecanismo morfossintático da
concordância com o feminino não aciona interpretação quanto ao gênero semântico do nome
mercê.
(19) “(...) A outra cartinha he para a Cunhada do Bonifacio em Respeito a que me escreveo, e como mefallava em Vossa Senhoria e não sei outro modo de lha fazer Receber, e Vossa Senhoria sabera onde ella mora, ou ella aparecera, por isso vou a pedir-lhe a mercê de lhe fazer ir amão a Carta. (...)”
(Carta não-oficial. Inocêncio A. das Neves. RJ, 08.05.1816.) (20) “(...) Apezar doque, eu lhefiz ver as razoens emque estava demerecer esta graça, que [[tinha]] lugar, enão era contraria adisciplina cannonica ávista do conssentimento epostulação do Vigário Collado e Postulação do meu bispo aSua Magestade eque havião muitos exemplos de [i]guaes mercês. (...)”
(Carta não-oficial. João Crysostomo de Oliveira Salgado Brandão. RJ, 06.03.1820.)
O pronome de tratamento vossa mercê conserva o traço de gênero [+ fem] peculiar ao
item lexical que lhe originou – mercê – dada a presença do determinante, o pronome
possessivo Vossa, no feminino. Em termos semânticos, entretanto, passa a assumir uma
interpretação subespecificada – [α FEM] –, uma vez que, nesse caso, é possível a
ocorrência de estruturas predicativas no masculino ou feminino, resgatando o gênero do
referente, conforme se verifica em (21), (22) e (23).
17 Para mais detalhes ver Rumeu (2004).
(21) “(...) Este bonito Navio afazer-se com elle mais interessante Comercio em que vossa mercê está contemplado cujas vantagens não só aos Proprietarios como a vossa mercê eu muito lhe dezejo (...)”
(Carta não-oficial. José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.)
(22) “(...) e no S. Thiago que chegou no 1o doCorrente heide remeter-lhe o resto da sua Conta nodito genero no que vossa mercê pode ficar certo (...)”
(Carta não-oficial. José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.)
(23) “(...) Dezejarei queVossamercê esteja mais convalecido, eque tenha todas aquellaz felicidades, queeu muito verdadeiramente lhedezejo. (...)”
(Carta não-oficial. Marquês do Lavradio. RJ, 12.12.1772.)
Divergindo de mercê e de vossa mercê, a forma pronominal você deixa de ter gênero formal
intrínseco, assumindo a especificação default – [∅ fem] – como ocorre com as formas
pronominais legítimas – eu, tu, nós, vós – em português. Em relação ao gênero semântico, a
forma pronominal você conserva a interpretação subespecificada da forma de tratamento
vossa mercê, visto que o predicativo que cerca vossa mercê, assim como o que circunda o
pronome você, é capaz de resgatar a interpretação do gênero do referente. É possível analisar
de (24) a (25) que a concordância predicativa com o masculino licencia a interpretação do
destinatário como uma pessoa do sexo masculino.
(24) “(...) dando por prova disto as suas mesmas cautelas na remessa do dito dizendo que se você não tivesse insiumado o contrario do que dezia os seus officios (...)”
(Carta não-oficial. J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.)
(25) “(...) Você tem sido batido na Camera pelos Hollandezes, e na sessão de 13 deste o Padre Pinto estudou hum sermão acusatorio (...)”
(Carta não-oficial. J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.)
Ao relacionar a evolução da forma de tratamento vossa mercê para o pronome você com
os traços atribuídos aos pronomes pessoais em português, constata-se que, o pronome você
assume comportamento semelhante à legítima forma pronominal da 2a pessoa do discurso
– tu –, pois perde a especificação de gênero formal, mas mantém-se semanticamente
subespecificada – de [+ fem, α FEM] a [∅ fem, α FEM] – como se verifica nas seguintes
sentenças: “Tu estás enciumado/enciumada” – “Você está enciumado/enciumada”.
Em relação ao processo evolutivo de vossa mercê > você, expõe-se a seguinte matriz
morfo-semântica no que diz respeito aos seus traços de gênero, número e pessoa.
(Inserir Quadro 2: Matriz morfo-semântica de mercê, de vossa mercê e de você pensada por Rumeu (2004).)
Em síntese, quais traços morfo-semânticos devem ser levados em conta para distinguir a
forma nominal de tratamento vossa mercê da forma pronominal pessoal você? Constata-se que
vossa mercê e você se distinguem concretamente em relação às noções de gênero formal e de
pessoa semântica. Enquanto a forma nominal de tratamento vossa mercê é marcada
positivamente em relação ao seu gênero formal [+ fem], a forma pronominal pessoal você
assume representação neutra – [∅ fem]. É interessante constatar que a interpretação
neutra assumida pela forma pronominal você no que se refere ao seu gênero formal a aproxima
das legítimas formas pronominais de 1a pessoa – eu, nós, a gente – e de 2a pessoa – tu e vós.
No que diz respeito ao traço de pessoa semântica, observa-se que a forma nominal de
tratamento vossa mercê admite a especificação [- EU], o que a assemelha a forma pronominal
você que, por sua vez, faz referência ao ouvinte – [- EU] –, assim como evocam as legítimas
formas pronominais de referência à 2a pessoa do discurso – tu e vós.
4. Considerações Finais
Em suma, ter-se-ia a seguinte matriz morfo-semântica dos pronomes pessoais18 em
relação aos traços de gênero, número e pessoa:
(Inserir Quadro 3: Matriz morfo-semântica dos pronomes pessoais do português com base em Lopes (1999, 2003) e adaptado de Rumeu (2004).)
Com base na análise do quadro 3, torna-se possível sistematizar os seguintes
comentários finais:
a) Os pronomes pessoais – os legítimos dêiticos – que se referem às pessoas do discurso
(eu/tu/você/nós/a gente/vós/vocês) não apresentam gênero formal, embora possam acionar
interpretação de gênero semântico (eu estou cansada – uma mulher falando).
b) Os pronomes de terceira pessoa (não-pessoa), mais anafóricos que dêiticos, são os únicos
que apresentam correlação entre o gênero formal e semântico (ele está cansado/ela está
cansada; eles(as) estão cansado(a)s).
c) Os pronomes pessoais apresentam, no geral, correlação entre os traços formais e
semântico-discursivos de número e pessoa. No que se refere às formas pronominalizadas a
gente e você não há tal correlação pelo fato de tais formas terem herdado propriedades
nominais (a concordância verbal com a terceira pessoa “não-pessoa”). Em relação ao item
você, entende-se tal forma como um pronome um tanto quanto “camaleônico” no que diz
respeito aos atributos de número e pessoa. No que concerne ao traço de número, constata-se
que você se assemelha aos pronomes de 3a pessoa do discurso – ele(s), ela(s) –, uma vez que
estes pronomes também podem ter seus valores detectados a partir da presença ou
18 Quadro adaptado de Rumeu (2004) e Lopes (1999, 2003).
ausência formal do traço de número (morfe -s). No que se refere à pessoa, ao contrário dos
outros pronomes legítimos, você faz referência à 2ª pessoa do discurso (ganho de uma
propriedade pronominal), embora estabeleça concordância com a 3ª pessoa gramatical
(manutenção de um traço original).
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Apresentação de Quadros prontos para a editoração eletrônica. No texto, há a
indicação de sua localização precisa.
FORMA
NOMINAL
FORMA
PRONOMINAL
TRAÇOS
RELAÇÃO
FORMA/CONTEÚDO GENTE
A GENTE
FORMAL
[+ fem]
[∅ fem]
GÊNERO
SEMÂNTICO
[∅ FEM]
[α FEM]
FORMAL
[α pl]
[∅ pl]
NÚMERO
SEMÂNTICO
[+ PL]
[∅ PL]
FORMAL
[∅ eu]
[∅ eu]
PESSOA
SEMÂNTICO
[∅ EU]
[+ EU]
Quadro 1: Matriz morfo-semântica de gente e a gente pensada por Lopes (1999,2003).
FORMA
NOMINAL
FORMA NOMINAL
DE TRATAMENTO
FORMA
PRONOMINAL
TRAÇOS
RELAÇÃO
FORMA/CONTEÚDO MERCÊ
VOSSA MERCÊ
VOCÊ/VOCÊS
FORMAL
[+ fem]
[+ fem]
[∅ fem]
GÊNERO
SEMÂNTICO
[∅ FEM]
[α FEM]
[α FEM]
FORMAL
[α pl]
[α pl]
[α pl]
NÚMERO
SEMÂNTICO
[∅ PL]
[α PL]
[α PL]
FORMAL
[∅ eu]
[∅ eu]
[ ∅ eu]
PESSOA
SEMÂNTICO
[∅ EU]
[- EU]
[- EU]
Quadro 2: Matriz morfo-semântica de mercê, de vossa mercê e de você pensada por Rumeu (2004).
FORMAS PRONOMINAIS
TRAÇOS
RELAÇÃO
FORMA/ CONTEÚDO
EU
TU
VOCÊ/ VOCÊS
ELE/ELA ELES/ELAS
NÓS
A GENTE
VÓS
FORMAL
[∅ fem]
[∅ fem]
[∅ fem]
[α fem]
[∅ fem]
[∅ fem]
[∅ fem]
GÊNERO
SEMÂNTICO
[α FEM]
[α FEM]
[α FEM]
[α FEM]
[α FEM]
[α FEM]
[α FEM]
FORMAL
[- pl]
[- pl]
[α pl]
[α pl]
[+ pl]
[- pl]
[+ pl]
NÚMERO
SEMÂNTICO
[- PL]
[- PL]
[α PL]
[α PL]
[+ PL]
[+ PL]
[+ PL]
FORMAL
[+ eu]
[- eu]
[ ∅ eu]
[ ∅ eu]
[+ eu]
[∅ eu]
[- eu]
PESSOA
SEMÂNTICO
[+EU]
[- EU]
[- EU]
[ ∅ EU]
[+EU]
[+ EU]
[- EU]
Quadro 3: Matriz morfo-semântica dos pronomes pessoais do português com base em Lopes (1999, 2003) e adaptado de Rumeu (2004).
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