1. Sinopse Judith Dunbar jamais conheceu efetivamente a
segurana e o bem- estar de uma vida em famlia. Natural de Colombo,
onde o pai trabalha numa empresa de navegao, ela passa a
adolescncia num internato s para meninas, enquanto a me e a irm
mais nova vivem no exterior Sem dvida, no uma vida feliz mas,
certamente, a nica que pode ter At o dia em que sua nova colega de
escola, Loveday Carev-Lewis,
2. convida-a para passar o fim de semana em sua manso.
Completamente encantada e arrebatada pela beleza de Nancherrow seus
jardins luxuriantes, o aconchegante conforto da casa, o magnfico
mobilirio antigo Judith mergulha de corpo e alma numa espcie de
luxria mgica E, claro, apaixona-se pela famlia Carev-Lewis. A
comear pela elegante e glamurosa Diana, que oferece-lhe para sempre
o quarto rosa da casa. O reservado e amvel Coronel, que a acolhe
como se fosse sua "prpria filha". E Athena e Edward, irmos de
3. Loveday, com quem Judith se identifica primeira vista. Como
num verdadeiro conto de fadas, Judith passa de uma simples garota
solitria a uma jovem bem educada e generosa, embalada em meio a
chamas de amor e afeio. Mas logo elas se extinguiro com a ecloso da
Segunda Guerra Mundial, e uma tempestade de privaes e perdas
assolar os dias deslumbrantes e calmos da Cornualha. E a prpria
Judith, que se alistarpara trabalhar como voluntria na guerra que
lhe levar
4. muitos entes queridos, se ver cada dia mais distante de...
regressar ao lar O mais novo romance de Rosamunde Pilcher um
exemplo lapidar de sua competncia e talento como contadora de
histrias. O Regresso vibrante, rico de ternura e sensibilidade, e
oferece-nos mais uma vez, assim como nos Catadores de Conchas, uma
trama fascinante e um elenco de personagens que permanecero por
longo tempo em nossa memria... e corao. ROSAMUNDE PILCHER
5. consagrada autora de Os Catadores de Conchas. Reconhecida
internacionalmente como uma das melhores escritoras de histrias de
amor da atualidade, j publicou diversos livros de contos e
romances, dentre os quais Setembro, Flores na Chuva, Vozes no Vero,
O Dia da Tempestade, O Quarto Azul e O Tigre Adormecido. Atualmente
vive prximo a Dundee. Tem quatro filhos e nove netos. O
Regresso
6. Da mesma autora: O Carrossel A Casa Vazia Os Catadores de
Conchas Com Todo Amor O Dia da Tempestade O Fim do Vero Flores na
Chuva O Quarto Azul
7. Setembro Sob o Signo de Gmeos Solstcio de Inverno O Tigre
Adormecido Victoria Vozes no Vero Rosamunde Pilcher O Regresso 83
EDIO
8. Traduo: Luisa Ibanes BERTRAND BRASIL Agradecimentos s
autorizaes para impresso das obras abaixo relacionadas: "Deep
Purple", letra de MITCHELL PARISH 1934, 1939 (Renovado para 1962,
1967) EM1 ROBBINS CATALOG INC. Todos os direitos reservados.
Reimpresso com permisso da Warner Bros. Publications US Inc.
9. "I Can't Give You Anything But Love", de DOROTHY FIELDS e
JIMMI McHUGH 1928 EMI MILLS MUSIC INC. (Renovado o copyright
mundial). Direitos da prorrogao do termo de renovao nos Estados
Unidos controlados por ALDI MUSIC CO. e IRENEADELE PUBLISHIN
COMPANY. Todos os direitos reservados. Reimpresso com permisso da
Warner Bros. Publications US Inc.
10. "I Get a Kick Out of You", de COLE PORTER 1934 WARNER BROS
I N C .(Renovado) Usado com permisso. Reimpresso com permisso da
Warner Bros. Publications US Inc. Tf Love Were AH", de NOEL COWARD
1929 CHAPPELL & CO. LTD.Copyright renovado e atribudo WARNER
BROS INC., para os Estados Unidos e Canad. Todos os direitos
reservados. Reimpresso com a permisso da Warner Bros, Publications
US Inc.Tt's De-Lovey", de COLE
11. PORTER 1936, de CHAPPELL & CO. Copyright renovado e
atribudo a Robert H. Montgomery, Jr., curador de COLE PORTER MUSIC
& LITERARY PROPERTY TRUSTS. Todos os direitos reservados.
Reimpresso com permisso da Warner Bros. Publications US Inc. "My
Hearth Stood Still", de LORENZ HART e RICHARD RODGERS 1927 WARNER
BROS. INC. (Renovado) Direito da prorrogao do termo de renovao nos
Estados
12. Unidos controlados por THE STATE OF LORENZ HART (WB MUSIC
CORP., Administradora) e WILLIAMSON MUSIC (ASCAP Todos os direitos
reservados. Reimpresso com permisso da Warner Bros, Publications US
Inc. e Williamson Music. Trechos da letra deTve Got My Love To Keep
Me Warm", de Irving Berlin Copyright de 1936 e 1937, de Irving
Berlin. Copyright renovado. Assegurado o copyright internacional.
Usado com
13. permisso. Todos os direitos reservados. Trechos da letra de
"Puttin, on The Ritz", de Irving Berlin Copyright de 1928 e 1929,
de Irving Berlin. Copyright renovado. Assegurado o copyright
internacional. Usado com permisso, Todos os direitos reservados.
"La Mer", de Charles Trenet Copyright 1945 PolyGram International
Publishing, Inc. e France Music Corp.
14. Copyright renovado. Usado com permisso. Todos os direitos
reservados. "Ali The Things You Are", de Oscar Hammerstein e Jerome
Kern. Copyright 1939 PolyGram International Publishing Inc.
Copyright renovado. Usado com permisso. Todos os direitos
reservados. "A carta das pginas 682-684 grandemente baseada em uma
existente em The Highland Division, escrita por Eric Linklater.
(Londres.
15. His Majesty's Stationery Office, 1942). Meus agradecimentos
a seus filhos Andro e Magnus, por sua gentil permisso para us-la."
Copyright 1995 by Robin Pilcher, Fiona Pilcher, Mark Pilcher e os
curadores do Testamento de 1988 de Rosamunde Pilcher Ttulo
original: Corning Home Capa: projeto grfico de Leonardo Carvalho,
utilizando detalhe da tela Cleeve Prior, de George Samuel Elgood,
1901.
16. Editorao eletrnica: Imagem Virtual Editorao Ltda. 2003
Impresso no Brasil/Printed in Brazil C I P - B r asi l
.Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Pilcher, Rosamunde, 1924- P686r O regresso Rosamunde Pilcher;
traduo Lusa Ibanez - - ed. - Rio de Janeiro:
17. 8 ed. Bertrand Brasil, 2003, 1.092p. Traduo de: Corning
Home ISBN 85-286-0595-7 1. Romance escocs. I. Ibanez, Lusa. II.
Ttulo. CDD-828.99113 97-1660 CDU-820(4 ll)-3 Todos os direitos
reservados pela: EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 -
- So
18. Cristvo 20921-380 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (0XX21)
2585-2070 Fax: (0XX21) 2585-2087 No permitida a reproduo total ou
parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prvia autorizao por
escrito da Editora. Atendemos pelo Reembolso Postal. Este livro
para o meu marido Graham, que serviu com a Highland Division.
19. E para Gordon, Judith e todos ns que fomos jovens na mesma
poca. Parte 1 1935 A Escola do Conselho de Porthkerris situava-se
no meio da subida da escarpada colina, que se erguia do corao da
cidadezinha at as charnecas vazias que jaziam alm. Era um slido
edifcio vitoriano, construdo de blocos de granito, e tinha trs
entradas, marcadas Meninos, Meninas e
20. Crianas, um legado dos dias da obrigatoriedade de segregao
dos sexos. Era contornada por um ptio de recreio com piso
alcatroado e uma alta grade de ferro forjado, oferecendo ao mundo
uma fachada francamente proibitiva. Entretanto, naquele fim de
tarde de dezembro, a escola se mostrava inteiramente inundada de
luz e, de suas portas abertas, flua uma torrente de crianas
excitadas, carregadas de sacolas para botas, sacolas para livros,
bales de gs presos em cordes e pequenos sacos de papel cheios de
doces. Elas emergiam em pequenos grupos, empurrando-se,
21. rindo tolamente e proferindo gritos agudos de alegres
insultos entre si, antes de finalmente se dispersarem e tomarem o
rumo de casa. O motivo daquele excitamento era duplo. Estavam no
final do termo letivo de inverno e houvera uma festa de Natal na
escola. A festa consistira de jogos cantados e de corridas de
revezamento, com os participantes subindo e descendo o corredor do
salo de festas, carregando sacos de gros que deviam ser agarrados e
entregues pessoa seguinte da equipe. As crianas tinham danado Sir
Roger
22. de Cover-ley, msica martelada no pequenino e antigo piano
da escola, e tomado um ch com sanduches de presunto, bolinhos de
aafro e limonada gasosa. Por fim, em fila indiana, uma por uma
havia apertado a mo do sr. Thomas, o diretor, desejara a ele um
Feliz Natal e ganhara um saquinho de doces. Era uma rotina cumprida
todos os anos, porm sempre alegremente esperada e muitssimo
apreciada. Nota de rodap: Nome de determinada msica e
23. dana rural inglesa. (N. da T.) Fim da nota de rodap. 9 Aos
poucos, a ruidosa torrente de crianas ficou reduzida a um regato:
as que vinham embora por ltimo, retidas l dentro procura de luvas
perdidas ou de um sapato abandonado. No fim de tudo, quando o
relgio da escola tocou um quarto para as cinco da tarde, pela porta
aberta surgiram duas adolescentes, Judith Dunbar e Heather Warren,
ambas com quatorze anos de idade,
24. ambas com casaco azul-marinho e botas de borracha, os
gorros de l bem puxados sobre as orelhas. A semelhana entre as
duas, entretanto, parava a, porque Judith era loura, com dois
hirsutos rabos-de-cavalo, sardas e olhos azul-claros; Heather, por
sua vez, herdara do pai o seu tom de pele e, atravs dele,
percorrendo geraes de ancestrais, de algum marinheiro espanhol,
lanado costa da Cornualha aps a destruio da Armada. Desta maneira,
ela possua uma tez cor de oliva, cabelos negrssimos e olhos
escuros, brilhantes como dois sumarentos bagos de uva.
25. Elas eram as ltimas participantes da festa a sair, porque
Judith estava deixando a Escola de Porthkerris para sempre e tivera
que despedir- se, no apenas do sr. Thomas, mas tambm de todos os
demais professores, alm da sra. Trewartha, cozinheira da escola, e
do velho Jimmy Richards, cujos humildes encargos incluam o
abastecimento do boiler da escola e a limpeza dos lavatrios
externos ao prdio. Finalmente, no havendo mais ningum de quem se
despedirem, elas seguiram seu caminho, atravessando o ptio de
recreio e
26. depois cruzando os portes. O dia nublado escurecera
prematuramente e caa uma leve garoa, tremeluzindo contra o claro
dos postes de iluminao. A rua serpenteava colina abaixo, negra e
molhada, com poas onde a luz se refletia. Elas comearam a caminhar,
descendo para a cidade. Por um momento, nenhuma das duas falou.
Ento, Judith suspirou. Bem disse ela, em um tom de finalidade ,
isso a! um tanto esquisito, saber que voc no volta mais.
27. Tambm acho. Entretanto, a parte mais esquisita eu me sentir
triste. Nunca pensei que ficaria triste por deixar qualquer escola,
mas agora estou. No vai ser a mesma coisa sem voc. E sem voc, tambm
no ser a mesma coisa. Voc, no entanto, est com sorte, porque ao
menos ainda tem Elaine e Christine como amigas. Quanto a mim, vou
comear tudo outra vez, da estaca zero, 10
28. tentando encontrar algum de quem goste no Santa rsula. E
odeio usar aquele uniforme! O silncio de Heather foi solidrio. O
uniforme era quase o pior de tudo. Na Porthkerris, todos usavam as
prprias roupas e, alm disso, ofereciam uma viso bastante agradvel,
graas s suteres de cores diferentes, e s fitas de tons vivos nos
cabelos das meninas. O Santa rsula, contudo, era uma escola
particular e arcaicamente antiquada. As alunas usavam capotes de
tweed verde-escuro, grossas meias marrons e chapus verde-
29. escuros, peas to destoantes, que garantiam a transformao da
aluna mais bonita em absolutamente horrvel. O Santa rsula aceitava
alunas externas, assim como internas, e essas infelizes criaturas
eram francamente desprezadas por Judith, Heather e suas
contemporneas na Porthkerris, que as consideravam vtimas ideais
para implicncias e deboches, se tivessem a m sorte de tomar o mesmo
nibus que elas. Era deprimente, para Judith, imaginar-se formando
fileiras com aquelas criaturas insuportveis e dengosas, que se
davam ares to importantes.
30. O pior de tudo, no entanto, era a perspectiva do internato.
Os Warrens eram uma famlia profundamente unida, e Heather no podia
imaginar um destino pior do que ser separada do convvio dos pais e
dos dois irmos mais velhos, ambos atraentes e de cabelos to negros
como o de seu pai. Na Escola de Porthkerris, eles haviam ficado
conhecidos por suas diabruras e travessuras, porm desde que tinham
sido transferidos para a Escola do Condado, em Penzance, de certo
modo acabaram domados por um aterrorizante diretor, sendo forados a
prestar mais ateno aos livros e a
31. melhorar o comportamento. Ainda assim, os dois eram as
criaturas mais divertidas do mundo. Eles que tinham ensinado
Heather a nadar, andar de bicicleta e pescar cavalinha com rede de
arrasto, de seu atarracado barco de madeira. E que divertimento
algum conseguiria ter, na companhia de apenas garotas. Pouco
importava o Santa rsula ficar em Penzance e, portanto, a somente
quinze quilmetros de distncia. Quinze quilmetros eram uma
eternidade para algum que tivesse de viver longe de mame, de papai,
de Paddy e Joe.
32. De qualquer modo, parecia que a pobre Judith no tinha
escolha. Seu pai trabalhava em Colombo, no Ceilo, e durante quatro
anos ela, sua me e a irmzinha caula tinham ficado separadas dele.
Agora, a 11 sra. Dunbar e Jess iam voltar para o Ceilo, e Judith
ficaria para trs, sem a menor idia de quando tornaria a ver a me
outra vez. Entretanto, como a sra. Warren costumava dizer, no
adiantava chorar sobre o leite derramado.
33. Heather procurou algo alegre para dizer. Haver os feriados.
Com a tia Louise. Oh, vamos, no fique to deprimida! Pelo menos, voc
ainda estar aqui. Vivendo em Penmarron. Pense s que sua tia poderia
morar em algum lugar terrvel, bem no interior do pas, ou em alguma
cidade qualquer. Voc no conheceria ningum. Do jeito como vai ficar,
poderemos continuar nos vendo. Voc vir para c, ns
34. desceremos at a praia. Ou iremos ao cinema. Tem certeza?
Heather estava perplexa. Certeza de qu? Bem, quero dizer... certeza
de que continuar querendo ver-me, de ser minha amiga. Indo para o
Santa Ursula, e tudo o mais... Voc no ir pensar que fiquei esnobe e
horrvel? Ora, francamente! Heather deu uma batida amorosa no
traseiro da
35. amiga, com sua sacola de botas. Quem est pensando que sou?
Seria uma espcie de fuga. Voc faz a coisa parecer como ir para a
priso. Sabe o que quero dizer. Como a casa da sua tia? bastante
grande e fica bem no alto do campo de golfe. E cheia de bandejas de
lato, de peles de tigre e patas de elefante.
36. Patas de elefante? Pelo amor de Deus, o que sua tia faz com
elas? So um porta-guarda-chuvas. Eu no gostaria disso. Enfim,
suponho que voc no ter de olhar muito para semelhante coisa. Ter
seu prprio quarto, no? Sim, vou ter meu quarto. Era o melhor quarto
extra de minha tia. Tem sua prpria pia e espao para minha
secretria. Parece excelente. No sei por que voc se lamenta tanto a
respeito.
37. No que me lamente. Apenas, simplesmente, aquela no a 12
minha casa. Alm do que, l no alto faz muito frio, o lugar
totalmente desabrigado e exposto aos ventos. A casa chama-se
Windyridge, o que no de admirar. Mesmo quando tudo est calmo em
todos os lugares, parece sempre haver uma ventania sacudindo as
janelas de tia Louise. Fantasmagrico. H mais uma coisa. Aquela
casa
38. longe de tudo. No vou mais poder pegar o trem, e a parada
de nibus mais prxima fica a trs quilmetros de distncia. Para piorar
a situao, tia Louise no ter tempo de me levar de carro por a,
porque est sempre jogando golfe. Talvez ela lhe ensine a dirigir.
Oh, ha, ha, ha! Est me parecendo que voc precisa de uma bicicleta.
Ento, poderia ir aonde quisesse e quando quisesse. Pela estrada do
alto, so apenas uns cinco quilmetros at
39. Porthkerris. Voc formidvel! Eu nunca pensei em uma
bicicleta! No sei por que ainda no teve uma. Papai me deu a minha
quando eu tinha dez anos. No que ela seja muito boa neste maldito
lugar, com tantas ladeiras, mas no lugar para onde voc vai, uma
bicicleta seria simplesmente o ideal. Bicicletas so muito caras?
Uma nova deve custar umas cinco libras. De qualquer modo,
40. possvel que consiga uma de segunda mo. Minha me no muito
boa nesse tipo de coisa. Se quer saber, acho que me nenhuma .
Entretanto, no muito difcil ir a uma loja de bicicletas. Faa com
que ela lhe d uma no Natal. J pedi uma blusa de malha para o Natal.
Com gola plo. Pois pea tambm uma bicicleta!
41. Eu no poderia. claro que pode. Dificilmente ela recusaria.
Indo embora e sem saber quando tornar a v-la, sua me lhe dar tudo o
que voc quiser. Basta malhar enquanto o ferro est quente. Este era
outro dos ditos da sra. Warren. Judith respondeu apenas: Veremos.
As duas caminharam algum tempo em silncio, seus passos retinin-do
na calada mida. Passaram pela
42. loja de peixe-e-fritas, animada por alegre iluminao, e o
cheiro clido de gordura quente e vinagre que emanava pela porta
aberta era de dar gua na boca. Nota de rodap: Cume ventoso. (N. da
T.) Fim da nota de rodap. 13 Essa sua tia, a sra. Forrester. irm de
sua me, no?
43. No, de meu pai. muito mais velha do que ele. Tem uns
cinqenta anos. Morou na ndia. Foi de onde trouxe a pata de
elefante. E quanto a seu tio? J morreu. Ela viva. Tem filhos? No.
Acho que eles nunca tiveram filhos. Curioso isso, no ? Ser porque
eles no quiseram ou porque... alguma coisa... no aconteceu?
44. Minha tia May tambm no tem filhos, e ouvi papai dizer que
era porque o tio Fred no tinha aquilo nele. O que ele quereria
dizer com isso? No fao a menor idia. Teria alguma coisa a ver com o
que Norah Elliot nos contou? Voc sabe, aquele dia, atrs do galpo de
bicicletas. Ela apenas inventou tudo o que disse. Como que voc
sabe?
45. Porque era nojento demais para ser verdade. Somente Norah
Elliot pensaria em uma coisa to repugnante. E se... Era um tema
fascinante, cujo teor as duas adolescentes haviam discutido de
quando em quando, sem nunca chegarem a qualquer concluso til,
exceto o fato de que Norah Elliot cheirava mal e suas blusas da
escola estavam sempre sujas. De qualquer modo, aquele no era o
momento para desfazerem as dvidas, porque a conversa as fizera
descer a colina,
46. chegar ao centro da cidade e biblioteca pblica, onde cada
uma tomaria seu rumo. Heather seguiria na direo do porto, descendo
por ruas estreitas e frustrantes alamedas caladas de lajes, at a
casa quadrada de granito onde morava a famlia Warren, em cima da
mercearia do sr. Warren. Quanto a Judith, ainda subiria outra
ladeira e se encaminharia para a estao do trem. As duas pararam sob
o chuvisco impertinente, abaixo do poste de iluminao, e
entreolharam-se.
47. Bem, acho que agora adeus disse Heather. Sim, tambm acho.
Voc pode escrever para mim. Tem o meu endereo. E se quiser 14
deixar algum recado, telefone para a mercearia. Quero dizer... se
quiser vir l em casa, nos feriados. Farei isso. No creio que a
escola v ser to
48. ruim. Tem razo. Tambm acho que no ser. Ento, adeus. Adeus.
Contudo, nenhuma delas se moveu, nenhuma deu meia-volta. Haviam
sido amigas durante quatro anos. Aquele era um momento doloroso.
Tenha um bom Natal disse Heather.
49. Outra pausa. De repente, Heather inclinou-se para diante e
plantou um beijo na face molhada de chuva de Judith. Ento, sem mais
uma palavra, ela se virou e comeou a descer a rua correndo, o som
de seus passos ficando cada vez mais distantes, at no serem mais
ouvidos. S depois disso, sentindo-se algo desolada, Judith
prosseguiu em sua caminhada solitria, subindo a calada estreita
entre pequenas lojas vivamente iluminadas, suas vitrines decoradas
para o Natal com ouropis envoltos em caixas de tangerinas, e fitas
escarlates amarrando potes de sais para banho. At o ferragista dera
sua
50. contribuio. PRESENTES TEIS E BEM-VINDOS, dizia um cartaz
escrito a mo, reclinado em brutal martelo de unhas que exibia um
ramo artificial de azevinho. Ela deixou para trs a ltima loja
situada bem no topo da ladeira, que era a filial local da W. H.
Smith, onde sua me comprava a revista Vogue todos os meses e, a
cada sbado, vinha trocar seu livro da biblioteca. Dali em diante, a
rua nivelava-se, as casas rareavam e, sem seu abrigo, o vento
assenhoreava-se do espao. Chegava em rajadas suaves, carregadas de
umidade, jogando-lhe
51. no rosto uma bruma encharcante. No escuro, este vento
provocava uma sensao toda sua e trazia consigo o som das ondas
quebrando-se na praia, muito abaixo dali. Aps alguns momentos, ela
parou e pousou os cotovelos sobre um muro baixo de granito;
precisava descansar aps a ngreme subida e tambm recuperar o flego.
Judith viu o difuso amontoado de casas descendo para a taa escura
do porto, assim como a rua do porto, delineada por um encurvado
colar de postes de luz. Nos barcos de pesca, suas luzes de navegar
verdes
52. e vermelhas afundavam nas ondas 15 e enviavam tremeluzentes
reflexos para a gua escura. O horizonte distante estava perdido na
escurido, porm o palpitante e incansvel oceano continuava para
sempre. Muito alm, a luz do farol piscava seu aviso. Um facho
curto, depois dois longos. Judith imaginou os vagalhes eternos,
lanando-se contra as rochas cruis em sua base. Ela estremeceu.
Estava escuro e frio demais para ficar parada naquele
53. vento molhado. O trem estaria chegando em cinco minutos.
Judith comeou a correr, a sacola das botas batendo contra o lado do
corpo; chegou ao comprido lance de degraus de granito que desciam
para a estao ferroviria e disparou por eles abaixo, com a
descuidada confiana gerada por anos de familiaridade. O trem do
pequeno ramal esperava junto plataforma. A locomotiva, dois vages
de terceira classe, um de primeira classe e o bagageiro do guarda.
Ela no precisava comprar passagem, porque tinha os passes do
54. Perodo Escolar e, por outro lado, o sr. William o guarda a
conhecia to bem como sua prpria filha. Charlie, o maquinista, tambm
conhecia Judith e, quando ela estava atrasada para a escola, ele
aguardava bondosamente com o trem na Parada de Penmarron, tocando
seu apito, enquanto ela descia a toda pressa pelo jardim de
Riverview House. Ir para a escola e voltar todos os dias, viajando
naquele trenzinho, era uma das coisas de que realmente iria sentir
falta, porque durante cinco quilmetros a linha corria ao longo
55. da borda de um trecho espetacular do litoral, abrangendo
tudo que uma pessoa possivelmente desejasse contemplar. Como estava
escuro, ela agora no podia ver nada l fora, enquanto as rodas
chocalhavam ao longo da via frrea, porm sabia que a paisagem seria
a mesma de sempre. Penhascos e cortes profundos, baas e praias,
chals encantadores, pequenas trilhas e campos diminutos que, na
primavera, ficavam amarelados de narcisos. Depois vinham as dunas
de areia e a praia, vasta e solitria, que ela chegara a considerar
sua propriedade.
56. s vezes, quando as pessoas sabiam que Judith no tinha pai,
uma vez que ele se encontrava no outro lado do mundo, trabalhando
para uma importante companhia de navegao chamada Wilson-McKin-non,
sentiam pena dela. Como devia ser terrvel viver sem um pai ao lado!
Ela no sentia falta dele? Qual era a sensao de no t-lo em 16 casa,
nem mesmo nos fins de semana? Quando que tornaria a v- lo? Quando
ele voltaria para casa?
57. Ela sempre respondia de maneira vaga, em parte por no
querer discutir o assunto, e tambm porque no sabia exatamente como
se sentia. Judith apenas sempre soubera que a vida seria desta
maneira, porque assim era para toda famlia na ndia Britnica e,
desde a mais tenra idade, as crianas absorviam e aceitavam o fato
de que as longas separaes e despedidas eventualmente seriam
inevitveis. Judith havia nascido em Colombo e l vivera at os dez
anos, dois a mais do que o permitido maioria das crianas inglesas
para
58. permanncia nos trpicos. Durante esse perodo, os Dunbars
tinham retornado ptria uma vez, para Frias Prolongadas, porm Judith
tinha somente quatro anos na poca, de maneira que as lembranas
daquele tempo na Inglaterra tinham sido apagadas pela passagem dos
anos. Ela nunca sentiu que a Inglaterra era a ptria, o lar.
Colombo, sim, naquele espaoso bangal na Rua Galle, com um jardim
verdejante, separado do Oceano ndico pela estrada de ferro de uma s
via que vinha do sul at Galle. Devido proximidade do mar, nunca
parecia importar se o
59. calor era demasiado, pois sempre havia uma brisa fresca
soprando com as ondas e, dentro da casa, o ar era movimentado pelas
ps de madeira dos ventiladores de teto. Entretanto, inevitavelmente
chegou o dia em que tiveram de deixar tudo aquilo para trs. O dia
de dizerem adeus casa, ama e ao mordomo Joseph, ao velho Tamil que
cuidava do jardim. De dizerem adeus a papai. Por que temos de ir,
perguntava Judith, ainda quando ele as levava de carro para o
porto, onde o barco P c O estava ancorado, mas j com as
mquinas
60. em funcionamento. Porque chegou a hora de irem, havia
respondido ele; porque h um momento para tudo. Nenhum dos pais lhe
contara que sua me estava grvida, e somente aps cumpridas as trs
semanas de viagem, quando j estavam de volta cinzenta Inglaterra,
com a chuva e o frio, Judith foi posta a par do segredo de que
havia um novo beb a caminho. Uma vez que no tinham casa prpria para
onde voltar, tia Louise, industriada por seu irmo Bruce, havia
tomado as rdeas do assunto, localizando Riverview House e
61. alugando-a mobiliada. Pouco depois delas tomarem posse da
casa, Jess nascia no Porthkerris Cottage Hospital. E agora, chegava
o momento de Molly Dunbar voltar a 17 Colombo. Jess iria com ela, e
Judith ficaria para trs, sentindo uma terrvel inveja da me e da
irm. Tinham vivido quatro anos na Cornualha. Quase um tero de sua
vida. E, de uma maneira geral, aqueles anos tinham sido bons. A
casa era confortvel, havia espao
62. para todas elas, e possua um jardim, extenso e irregular,
que descia morro abaixo em uma srie de terraos, relvados, degraus
de pedra e um pomar de mas. O melhor de tudo, no entanto, havia
sido a liberdade de que Judith sempre desfrutara. O motivo para
isto era duplo. Tendo que cuidar do beb, Molly dispunha de pouco
tempo para vigiar a filha mais velha, e ficava satisfeita por ela
procurar entreter-se sozinha. Alm disso, embora sendo por natureza
extremamente ansiosa e protetora de suas filhas, Molly em
pouco
63. percebeu que a sonolenta aldeiazinha e seus pacatos
arredores nenhum perigo representavam para qualquer criana.
Explorando o terreno, Judith aventurara-se alm dos limites do
jardim, de maneira que a linha do trem, a fazenda de violetas nas
vizinhanas e as margens do esturio se tornaram seu local de
brinquedos. Ao ficar mais velha, ela descobriu a alameda que levava
igreja do sculo XI, com sua quadrada torre normanda e um cemitrio
devastado pelo vento, cheio de lpides antigas cobertas de lquenes.
Em um dia de
64. tempo excelente, quando ela se agachava para tentar
decifrar a inscrio entalhada em uma lousa, havia sido surpreendida
pelo vigrio que, encantado por seu interesse, a levara ao interior
da igreja, contara- lhe parte da histria do templo e apontara suas
caractersticas salientes, seus singelos tesouros. Ento, haviam
subido torre e, parados l no alto, suportando as rajadas de vento,
ele mostrara menina interessantes pontos de referncia. Era como ter
o mundo todo revelado, um mapa imenso e maravilhosamente colorido:
propriedades rurais, divididas em
65. pequenos campos como uma colcha de retalhos, o
verde-aveludado das pastagens e o canelado veludo castanho das
terras aradas; montes distantes coroados por marcos de pedra que
recuavam no tempo, um tempo to distante, que ficava alm da
compreenso; o esturio, com seu fluxo de guas azuis que refletiam o
cu, semelhante a um imenso lago cercado pela terra, mas sem ser um
lago em absoluto, porque se enchia e esvaziava com as mars,
correndo para o mar atravs da passagem de guas profundas, conhecida
18
66. como o Canal. Nesse dia, o movimento da mar no Canal era
azul-ndigo, porm o oceano era turquesa, com ondas que rolavam para
a praia vazia. Ela avistou a comprida linha costeira de dunas
encurvando-se para o norte, at a rocha em que se erguia o farol, e
havia barcos pesqueiros no mar, e o cu estava cheio de gaivotas
grasnando. O vigrio explicou que a igreja tinha sido construda
sobre este outeiro, acima da praia, para que sua torre fosse como
um farol, um sinalizador para os navios em busca de guas
67. seguras e da primeira terra vista de bordo. A ela no fora
difcil imaginar aqueles galees de eras passadas, as velas enfunadas
ao vento, vindo de alto-mar e subindo a correnteza com a mar cheia.
Alm de descobrir lugares, Judith tambm ficou conhecendo os
moradores locais. Os habitantes da Cornualha adoram crianas e, para
onde quer que ela fosse, era recebida com tal prazer, que sua inata
timidez rapidamente desapareceu. A aldeia parecia fervilhar de
personagens interessantes. A sra. Berry, que
68. dirigia a loja da aldeia e fabricava os prprios sorvetes
com ovos e creme de leite em p; o velho Herbie, que conduzia sua
carroa de carvo, e a sra. Southey, da agncia do correio, que
instalara uma grade de lareira sobre o balco, a fim de manter os
bandidos distncia, e mal conseguia vender um selo sem dar o troco
errado. Havia outros ainda mais fascinantes, residindo a uma
distncia maior. O sr. Willis, que passara uma boa parte da vida
trabalhando nas minas de estanho do Chile, mas finalmente voltara
sua nativa Cornualha. Aps
69. toda uma existncia aventureira, ele fincara razes em uma
cabana de madeira, pendurada acima das dunas arenosas, com vista
para a margem do Canal. A estreita praia frente de sua cabana se
enchia de todas as interessantes espcies de destroos trazidos pelo
mar: pedaos de corda e de caixotes de peixes, garrafas e
encharcadas botas de borracha. Um dia, o sr. Willis se deparou com
Judith catando conchas, comeou a conversar e a convidou para uma
xcara de ch em sua cabana. Depois disso, ela sempre fazia questo de
procur-lo para conversarem.
70. O sr. Willis, no entanto, de maneira alguma era um ocioso
vasculhador de praia, porque tinha dois empregos. Um deles era
vigiar as mars e erguer um sinal, quando a gua subisse o suficiente
para que 19 os barcos de carvo pudessem passar sem risco por cima
dos bancos de areia. O outro emprego era de barqueiro. No lado de
fora de sua casa ele instalara um velho sino de navio, que era
tocado por qualquer pessoa desejando cruzar o Canal. Ao ouvi-lo, o
sr. Willis
71. emergia de sua cabana, arrastava seu birrento barco a remos
pela areia e levava seus passageiros para a outra margem. Por este
servio, bastante desconfortvel e at perigoso quando de uma forte
mar-vazante, ele cobrava dois pence. O sr. Willis vivia com a sra.
Willis, que tirava leite das vacas do fazendeiro da aldeia e, em
geral, nunca estava em casa. Corria um rumor de que ela no era a
sra. Willis, mas uma senhorita qualquer, de modo que ningum lhe
dava muita conversa. O mistrio da sra. Willis tinha muito a ver com
o mistrio do
72. tio Fred de Heather, o que "no tinha aquilo nele", porm
sempre que Judith tocava no assunto com a me, era recebida com
lbios apertados e uma mudana de assunto. Judith nunca comentava com
a me a sua amizade com o sr. Willis. O instinto lhe dizia que
talvez fosse advertida a no procurar a companhia dele e certamente
proibida de entrar em sua cabana e beber ch. Isso seria
simplesmente ridculo. Que mal o sr. Willis faria a algum? s vezes,
mame era terrivelmente obtusa.
73. De qualquer modo, sua me podia ser terrivelmente obtusa em
inmeras coisas, uma delas a de trat-la da mesma forma como tratava
Jess. E Jess s tinha quatro anos! Aos quatorze, Judith
reconhecia-se madura o suficiente para partilhar e discutir decises
realmente importantes, que diriam respeito a ela. S que no
adiantava. Mame nunca discutia. Ela simplesmente comunicava. Recebi
uma carta de seu pai, e eu vou voltar para Colombo com Jess.
74. Uma notcia que tivera mais ou menos o efeito de uma bomba,
para dizer-se o mnimo a respeito. Havia piores. - Decidimos que voc
dever ir para o Santa Ursula, como interna. A diretora chama-se
srta. Catto, eu j fui procur-la e est tudo arranjado. O perodo
letivo da Pscoa comear a quinze de janeiro. Como se ela fosse uma
espcie de embrulho ou de um co sendo colocado em um canil.
75. 20 Oh, mas... e quanto aos feriados? Ir pass-los com a tia
Louise. Ela se ofereceu gentilmente para tomar conta de voc e ser
sua responsvel, enquanto todos estivermos no estrangeiro.
Reservou-lhe seu melhor quarto disponvel, e voc poder levar todas
as suas coisas, deixando-as l. Isto era, talvez, o mais
atemorizante de tudo. No que ela no gostasse da tia Louise. Durante
o tempo de moradia em Penmarron elas tinham
76. visitado Louise com freqncia, e esta sempre se mostrara
gentil. Acontecia apenas que era toda errada. Velha teria pelo
menos cinqenta anos e um tanto intimidante, no encorajava qualquer
familiaridade. E Windyridge era a casa de uma pessoa velha, uma
casa disciplinada e quieta. As duas irms Edna e Hilda que
trabalhavam para Louise como cozinheira e copeira, eram igualmente
idosas e inacessveis, muito diferentes da querida Phyllis, que
fazia tudo para elas em Riverview House, mas ainda encontrava tempo
para jogar "corrida-de-demnio" na mesa da
77. cozinha e ler a sorte nas folhas de ch. Provavelmente
passariam o dia de Natal com a tia Louise. Iriam igreja, quando
voltassem teriam pato assado para o almoo, e depois, antes de
escurecer, dariam uma rpida caminhada pelo campo de golfe, at o
porto branco que se situava bem alto, acima do mar. Nada muito
excitante, mas, aos quatorze anos, Judith havia perdido algumas de
suas iluses sobre o Natal. A data deveria ser como era mostrada nos
livros e cartes
78. natalinos, porm nunca acontecia assim; sua me no tinha
muito jeito para coisas de Natal e invariavelmente mostrava bem
pouca inclinao para fazer enfeites com azevinho ou decorar uma
rvore. Nos dois ltimos anos, vinha dizendo para Judith que, em
realidade, ela j estava crescida demais para ter uma meia
pendurada, espera de presentes. De fato, quando pensava no assunto,
Judith conclua que sua me realmente no sentia a menor inclinao para
coisas semelhantes. Molly no gostava de piqueniques
79. na praia e faria qualquer coisa para no promover uma festa
de aniversrio. Chegava a ter medo de dirigir. Elas tinham um carro,
claro, um Austin muito pequenino e em mau estado, porm sua me
arranjava qualquer desculpa para no tir-lo da garagem, certa de que
acabaria colidindo com outro veculo, perderia 21 o controle dos
freios ou seria incapaz de fazer a mudana, quando chegassem a uma
ladeira.
80. Voltando ao Natal, pouco importava a maneira como o
passassem, e Judith sabia que nada seria pior do que o Natal de
dois anos atrs, quando sua me insistira em ficarem algum tempo com
os pais dela, o Reverendo e a sra. Evans. Seu av era o encarregado
de uma diminuta parquia em Devon, e sua av uma velha e derrotada
dama que lutara a vida inteira contra uma fidalga pobreza e
vicariatos construdos para enormes famlias de filhos vitorianos. L,
haviam passado um tempo incrvel indo e vindo da igreja, e vov lhe
dera um
81. livro de oraes como presente de Natal. Oh, muito obrigada,
vov, havia dito Judith polidamente, eu sempre quis ter um livro de
oraes. E Jess, que costumava estragar tudo, cara doente com crupe,
ocupando todo o tempo e ateno de sua me. E, dia sim, dia no, havia
compota de figo e manjar-branco de sobremesa. No, nada podia ser
pior do que isso. Contudo, ainda assim (como um co preocupado com
um osso, os pensamentos de Judith retornavam
82. ao seu ressentimento original), a questo do Santa Ursula
continuava amargurando. Ela nem ao menos tinha visto a escola, no
ficara conhecendo a provavelmente aterrori-zante srta. Catto.
Talvez sua me receasse uma exploso de rebeldia e escolhera o
caminho mais fcil, porm mesmo isso no fazia sentido, pois Judith
jamais, em toda a sua vida, se rebelara contra o que quer que
fosse. Ocorreu-lhe que talvez, aos quatorze anos, devesse
experimentar. Durante anos, Heather Warren soubera como conseguir o
que queria e trazia o pai lindamente enrolado em torno de seu
mindinho.
83. Enfim, os pais eram diferentes. E, por falar nisso, Judith
no tinha um. O trem diminua a velocidade. Passava debaixo da ponte
(a gente sempre tinha certeza, devido ao som diferente produzido
pelas rodas) e fez uma sibilante parada. Ela recolheu suas sacolas
e saiu para a plataforma diante da estao, pequenina e parecendo um
pavilho de madeira para crquete, com uma profuso de arabescos
ornamentais. O sr. Jackson, o chefe da estao, silhuetava-se contra
a luz que brotava da porta aberta.
84. Ol, Judith. Chegou tarde esta noite. Tivemos a festa da
escola. Que formidvel! 22 O ltimo trecho da jornada era a caminhada
mais curta possvel, uma vez que a estao ficava exatamente oposta ao
porto dos fundos da horta de Riverview House. Ela cruzou a sala de
espera, que sempre tinha um desagradvel cheiro de banheiros, e
emergiu na alameda no iluminada
85. que jazia alm. Parou um instante para os olhos se adaptarem
escurido, e ento reparou que a chuva havia cessado, enquanto ouvia
o vento passando pelos galhos mais altos do pequeno bosque de
pinheiros, que funcionavam como proteo para a estao, no tempo mais
inclemente. Era um som espectral, mas no amedrontador. Ela cruzou a
estrada, tateou pelo ferrolho do porto, abriu-o e entrou na horta.
Dali, comeou a subir a trilha sinuosa e ngreme, que se elevava por
lances de degraus e terraos. No alto, a casa assomava obscuramente
diante dela, com
86. janelas encortinadas e brilhando amigavelmente. A lanterna
ornamental que pendia acima da porta da frente fora acesa e, ao seu
claro, Judith viu um carro estranho, parado na alameda de cascalho.
Sem dvida, tia Louise viera para o ch. Era um enorme Rover negro.
Parado ali, tinha uma aparncia suficientemente inocente, incua,
slida e confivel. Entretanto, qualquer pessoa que se aventurasse
pelas estreitas ruas e alamedas de West Penwith teria motivos para
precaver-se contra sua aparncia, pois o veculo era dotado de
um
87. potente motor, e tia Louise, uma pacata cidad que era,
freqentadora regular da igreja e um dos pilares do clube de golfe,
experimentava uma espcie de mudana de personalidade, to logo se
sentava ao volante. Ento, seu carro passava rugindo em curvas
fechadas a oitenta quilmetros por hora, ela tendo plena confiana de
que, se mantivesse a palma da mo sobre a buzina, a lei estaria do
seu lado. Em vista disso, caso seu pra-choque se chocasse com o
pra-lama de outra pessoa, ou se atropelasse uma galinha, jamais ela
consideraria, por um momento que fosse, a
88. possibilidade de que a culpa pudesse ser sua. Alm disso, to
vigorosas eram as suas acusaes e censuras, que as partes
prejudicadas geralmente perdiam a coragem de enfrent-la e
desapareciam sem ousar exigir reparao pelos danos sofridos. Judith
no queria enfrentar imediatamente a tia Louise. Por causa disso, em
vez de entrar pela porta da frente, deu a volta pelos fundos,
cruzando o ptio e a copa, antes de chegar cozinha. Ali, encontrou
Jess sentada na mesa esfregada, com seus lpis de cor e o
89. caderno de 23 desenhos, alm de Phyllis, vestida no uniforme
verde com avental de musselina que usava tarde, passando a ferro
uma pilha de roupas. Depois do frio l fora e da umidade, a cozinha
estava maravilhosamente quente. De fato, era o aposento mais quente
da casa, porque o fogo naquele fogo da Cornualha, negro e muito
pesado, com maanetas de bronze, nunca era apagado. Agora
90. estava brando, fazendo cantar a chaleira na trempe. Do lado
oposto ao fogo havia um aparador sustentando pratos variados de
carne, verduras e uma tigela de sopa. Ao lado do fogo estava a
cadeira de vime de Phyllis, na qual ela se deixava cair para tirar
o peso das pernas, sempre que tinha um momento de folga o que no
era freqente. O aposento cheirava agradavelmente a roupa limpa e
bem passada. Junto ao teto pendia uma roldana, carregada de roupa
lavada. Phyllis ergueu os olhos.
91. Ol. O que est fazendo, esgueirando-se pelos fundos da casa?
Ela sorria, mostrando os dentes no muito bons. Era uma jovem ossuda
e de peito achatado, pele plida e cabelos lisos, acinzentados, mas
a criatura de mais doce temperamento que Judith j conhecera. Vi o
carro de tia Louise. Isso no nenhum motivo. E ento, teve uma boa
festa? Tive. Ela enfiou a mo no bolso do casaco. Tome aqui,
Jess
92. e entregou irm um saquinho de doces. Jess olhou para eles.
O que eles so? Era uma linda criana, rechonchuda e de cabelos
louros-prateados, mas terrivelmente infantil, o que deixava Judith
constantemente exasperada. claro que so doces, sua boba. Eu gosto
de goma de frutas. Pois ento, olhe e veja se
93. encontra alguma. Ela tirou o casaco, o gorro de l e os
jogou em uma cadeira. Phyllis no diria "Pendure-os". Mais tarde,
provavelmente ela mesma os penduraria para Judith. Eu no sabia que
tia Louise vinha para o ch. Eu telefonei e ela aceitou, l pelas
duas horas. Sobre o que elas esto falando? No seja curiosa.
94. 24 Suponho que deva ser sobre mim. Bem, sobre voc e essa
escola, advogados e honorrios, perodos letivos e telefonemas. E,
por falar em telefonemas, sua tia Biddy ligou esta manh. Falou uns
dez minutos ou mais com sua me. Judith surpreendeu-se. Tia Biddy? A
tia Biddy era irm de sua me e a favorita de Judith. O que ela
queria?
95. Eu no fiquei ouvindo atrs da porta, fiquei? Vai ter de
perguntar para sua me. Ela largou o ferro de passar e comeou a
abotoar os botes da melhor blusa de Molly. melhor voc ir andando.
Coloquei uma xcara para voc, e h bolinhos e bolo de limo, se
estiver com fome. Estou faminta. Como sempre. No lhe deram nada
para comer na festa? Deram. Bolinhos de aafro, mas continuo com
fome.
96. Pois ento, apresse-se, ou sua me vai comear a se preocupar.
Preocupar-se com o qu? Em vez de responder, Phyllis disse apenas:
Primeiro v trocar seus sapatos e lavar as mos Foi o que ela fez.
Lavou as mos na copa, usando o sabo "Califrnia Poppy" de Phyllis, e
depois, com certa relutncia, abandonou a aconchegante camaradagem
da cozinha e cruzou o corredor. De
97. alm da porta da sala de estar chegava o baixo murmrio de
vozes femininas. Ela abriu a porta, silenciosamente, de modo que,
por um momento, as duas mulheres no perceberam sua presena. Molly
Dunbar e sua cunhada Louise Forrester estavam sentadas prximo da
lareira, tendo entre elas uma mesa dobrvel para ch. Esta havia sido
coberta com uma toalha bordada de linho e exibia a melhor
porcelana, assim como pratos contendo sanduches, um bolo glaado de
limo, bolinhos quentes, besuntados de creme e gelia de
98. morangos, e duas espcies de biscoitos amanteigados e de
chocolate. As duas mulheres estavam bastante confortveis, com as
cortinas de veludo ocultando as janelas e o fogo de carvo
crepitando na lareira. A sala de estar no era grande nem luxuosa e,
como Riverview House fora alugada com mveis, tampouco era muito bem
servida. Chintz desbotados forravam as poltronas, um tapete turco
cobria o assoalho, e ocasionais mesas e estantes para livros eram
mais funcionais do que
99. 25 decorativas. No obstante, luz suave da lmpada, o
aposento parecia bastante feminino e agradvel, porque Molly
trouxera do Ceilo vrios objetos favoritos que, dispostos ali
dentro, aliviavam bastante a imper-sonalidade da sala. Ornamentos
em jade e marfim; uma caixa para cigarros em laca vermelha; um vaso
azul e branco plantado com jacintos, e fotografias da famlia em
molduras de prata. ... voc ter muita coisa a fazer estava dizendo
tia Louise. Se eu
100. puder ajudar... Ao inclinar-se para colocar a xcara vazia
com o pires em cima da mesa, ela ergueu os olhos e viu Judith em p
na porta aberta. Bem, veja quem est aqui... Molly virou-se. Judith!
Pensei que talvez tivesse perdido o trem. No. Eu estava conversando
com Phyllis. Ela fechou a porta e cruzou a sala. Ol, tia Louise.
Inclinou-se para beijar o rosto da
101. tia; esta aceitou o beijo, porm no fez qualquer movimento
para retribu-lo. Ela no era das que demonstram emoo. Ali estava uma
mulher corpulenta de cinqenta e poucos anos, com pernas
surpreendentemente delgadas e elegantes, e ps compridos, afilados,
em sapatos fortes, engraxados de castanho. Usava um casaco de tweed
e blusa por dentro. Seus cabelos grisalhos exibiam uma ondulao
permanente e eram mantidos firmes por uma redinha invisvel. A voz
dela era grave e rouca devido ao
102. cigarro, mas mesmo quando noite usava uma indumentria mais
feminina, como vestidos de veludo e casacos bordados de bridge,
havia algo de desconcertantemente masculino sobre ela; dava a
impresso de um homem que, por brincadeira ou para um baile
fantasia, houvesse vestido as roupas da esposa, desta maneira
proporcionando divertidos momentos aos amigos reunidos. Era uma
mulher atraente, mas no bonita. E, a dar-se crdito a antigas fotos
de spia, nunca o fora, nem mesmo quando jovem. De fato, aos
103. vinte e trs anos, ainda no comprometidae sem qualquer
perspectiva de s-lo seus pais no tiveram outra alternativa seno
embarc-la para a ndia, onde ficaria com parentes do Exrcito,
aquartelados em Delhi. Chegando a poca do calor, todos que viviam
na casa transferiram-se para o norte, para Poona e as frescas
montanhas onde se situava, e foi l que Louise conheceu Jack
Forrester. Jack era major dos Rifles de Bengala, tendo acabado de
passar doze meses 26
104. enfurnado em um remoto forte de montanha, de quando em
quando enfrentando escaramuas com belicosos afegos. Ele estava de
folga em Poona, aps meses de isolamento, e desesperado por
companhia feminina. Louise jovem, de faces rosadas,
descompromissada e atltica vista de relance em uma quadra de tnis,
pareceu uma criatura imensamente desejvel aos seus olhos famintos e
deslumbrados. Com enorme determinao, mas pouca finurano havia tempo
para sutilezas ele a perseguiu e, antes de saber o que acontecia,
descobriu-
105. se noivo e prestes a casar-se. Curiosamente, foi um
casamento slido, embora... ou talvez por isso mesmo... eles nunca
fossem abenoados com filhos. Ao invs disso, partilharam um amor
pela vida ao ar livre e a todas as gloriosas oportunidades para o
esporte e a caa que a ndia oferecia. Havia caadas e expedies ao
seio de macios montanhosos; cavalos para montar e jogar plo, alm de
inumerveis oportunidades para jogar tnis e golfe, nos quais Louise
era incomparvel. Quando Jack
106. finalmente desligou-se do Exrcito e eles voltaram para a
Inglaterra, instalaram-se em Penmarron, simplesmente devido
proximidade do campo de golfe. Assim, o clube se tornou o seu lar
fora do lar. Se o tempo ficava inclemente, jogavam bridge, mas a
maioria dos dias agradveis os via fora de casa, entre os buracos do
campo de golfe. Alm disso, uma certa parte do tempo era passada no
bar, onde Jack conquistara a duvidosa reputao de ser capaz de,
clandestinamente, derrotar qualquer homem na quantidade de bebida
ingerida. Ele se gabava de possuir um estmago
107. como um balde, no que todos os seus amigos concordavam, at
uma radiosa manh de sbado, quando caiu morto no dcimo quarto green.
Depois disso, eles no tiveram mais tanta certeza. Molly
encontrava-se no Ceilo, quando da ocorrncia dessa triste notcia.
Escreveu para a cunhada uma carta de profunda solidariedade, no
conseguindo imaginar como Louise se arranjaria sem Jack. Os dois
tinham sido to amigos, to companheiros! No entanto, quando as duas
finalmente voltaram a encontrar-se, Molly no
108. descobriu a menor mudana em Louise. Ela parecia a mesma
pessoa de antes, continuava morando na mesma casa, desfrutava do
mesmo estilo de vida. Ia diariamente para o campo de golfe e, como
dona de excelente handicap, 27 alm de poder lanar uma bola com a
mesma fora de qualquer homem, nunca lhe faltavam parceiros
masculinos. Agora, ela estendeu a mo para sua cigarreira, abriu-a e
encaixou um
109. cigarro turco em uma piteira de marfim. Acendeu-o com um
isqueiro de ouro que outrora havia pertencido ao falecido marido.
Como foi a festa de Natal? perguntou para Judith, atravs de uma
nuvem de fumaa. Correu tudo bem. Tivemos a dana Sir Roger de
Coverley, e havia bolinhos de aafro respondeu Judith, com os olhos
postos na mesa do ch. S que ainda estou com fome. Bem, aqui temos
de sobra para
110. que voc se sirva disse Molly. Judith puxou uma banqueta
baixa e sentou-se entre as duas mulheres, o nariz situado no mesmo
nvel que os petiscos de Phyllis. Quer leite ou ch? Prefiro leite,
obrigada. Ela pegou um prato e um bolinho quente. Comeou a comer
com cautela, porque o creme espesso e a gelia de morango tinham
sido espalhados to generosamente, que podiam escorrer para fora e
cair em qualquer lugar.
111. Despediu-se de todos os seus amigos e amigas? Sim. Do sr.
Thomas e de todos os demais. Ganhamos um saquinho de doces, mas dei
o meu para Jess. Depois desci a ladeira com Heather e... Quem
Heather? perguntou tia Louise. Heather Warren. minha melhor amiga.
Voc os conhece disse Molly. Filha do sr. Warren, o merceeiro
112. da Praa do Mercado. Oh! tia Louise ergueu as sobrancelhas
e mostrou uma expresso maliciosa. O vistoso espanhol. Um homem
muito atraente. Mesmo se ele no vender minha gelia favorita
"Tiptrees", penso que deveria tornar-me sua freguesa.
Evidentemente, ela estava de bom humor. Judith decidiu que aquele
era o momento oportuno para abordar o tema da bicicleta. Malhar o
ferro enquanto ainda est quente, como costumava dizer a sra.
Warren. Agarrar o touro pelos chifres.
113. Na realidade, Heather teve a idia mais formidvel. Que eu
devia ter uma bicicleta. 28 Uma bicicleta! Mame, voc d a impresso
de que estou pedindo um carro de corridas ou um pnei. Alis, tambm
acho que uma idia muito boa. Windyridge no como esta casa, ao lado
da estao do trem fica a quilmetros da parada do nibus. Se tiver uma
bicicleta, ento eu mesma posso ir at l e tia Louise no teria
114. que me levar em seu carro. Assim acrescentou Judith,
astutamente , ela pode continuar com seu golfe. Tia Louise riu com
vontade. Certamente, voc pensou em tudo. A senhora no se
importaria, no , tia Louise? Por que eu deveria importar-me? Seria
um prazer ficar livre de voc respondeu a tia Louise, no que
considerava o seu jeito de ser
115. engraada. Molly recuperou a voz. Bem, Judith, mas... uma
bicicleta no muito cara? Heather falou em cerca de cinco libras.
Foi o que pensei. Terrivelmente cara, quando temos tantas coisas
para comprar. Ainda nem ao menos comeamos com o seu uniforme e a
lista de roupas para o Santa Ursula tem metros de comprimento.
116. Pensei que voc podia me dar a bicicleta no Natal. Oh, mas
eu j comprei o seu presente de Natal! O que voc me pediu foi...
Bem, uma bicicleta poderia ser meu presente de aniversrio. Voc no
estar aqui quando eu fizer anos, estar em Colombo, e assim no ter a
despesa de me mandar uma encomenda pelo correio. Sim, mas voc teria
que pedalar pelas ruas principais. Poderia sofrer um
acidente...
117. Aqui, tia Louise interveio. Voc sabe andar de bicicleta?
Sei, claro, mas nunca pedi uma antes porque no estava mesmo
precisando. Entretanto, tia Louise, admito que seria muitssimo til
para mim. Mas, Judith... Oh, Molly, no seja to preocupada! Que mal
pode acontecer menina? Se ela se meter debaixo de um nibus com a
bicicleta, ento, a culpa ser dela
118. prpria. Eu lhe prometo uma bicicleta, Judith, mas 29 sendo
to cara, valer tambm como presente de aniversrio. O que me poupar
tambm a despesa de mandar-lhe uma encomenda pelo correio. mesmo?
Judith mal podia acreditar que sua argumentao funcionara, que
acabara vencendo ao insistir em seu ponto de vista, que realmente
conseguira o que queria. Tia Louise, a senhora tima!
119. Farei qualquer coisa para no ter voc em meus calcanhares.
E quando iremos compr-la? O que acha na vspera de Natal? Oh, no!
exclamou Molly fracamente. Ela parecia perturbada, e Louise franziu
o cenho. O que foi agora perguntou. Judith achou que no havia
motivo para sua tia falar to desabridamente, mas a verdade que com
freqncia ela ficava impaciente com Molly, tratando-a
120. mais como uma garota retardada do que como uma cunhada.
Pensou em mais objees? No... no nada disso. Um leve rubor deixou
rosadas as faces de Molly. Acontece apenas que no estaremos aqui.
Ainda no lhe contei, Louise, mas eu queria dizer antes para Judith.
Ela se virou para a filha. Tia Biddy ligou. Eu sei. Phyllis me
contou. Ela nos convidou para passarmos o Natal e Ano Novo com
eles, em Plymouth. Eu, voc e Jess.
121. Judith, com a boca cheia de bolinho com creme, por um
momento, pensou que fosse sufocar, mas conseguiu engolir tudo,
antes que alguma coisa terrvel pudesse acontecer. O Natal com tia
Biddy. E o que voc respondeu Eu disse que iramos. Era uma notcia to
incrivelmente excitante, que todos os demais pensamentos, inclusive
o da nova bicicleta, evaporaram-se da cabea de Judith.
122. Quando que vamos? Eu pensei em um dia antes da vspera do
Natal, porque os trens no estaro to apinhados. Biddy ficou de
encontrar-nos em Plymouth. Ela disse que lamentava ter deixado para
to tarde o convite, quero 30 dizer mas acontece apenas que foi uma
idia impulsiva. Ao pensar que este vai ser o nosso ltimo Natal
durante algum tempo, achou que seria uma boa idia pass-lo todos
juntos.
123. Se tia Louise no estivesse presente, Judith teria dado
saltos de alegria, agitado os braos e danado em volta da sala.
Entretanto, pareceu- lhe um pouco rude mostrar-se to eufrica, uma
vez que ela no fora convidada tambm. Contendo o excitamento,
virou-se para a tia. Nesse caso, tia Louise, ser que poderamos
comprar a bicicleta depois do Natal? Parece que no temos
alternativa, no mesmo? Alis, eu ia convid- las para passarem o
Natal comigo, porm agora parece que Biddy me
124. poupou o trabalho. Oh, Louise, eu sinto muito. Agora,
comeo a pensar que a desapontei. Tolice. Para todos ns, melhor
termos um pouco de variao. O filho de Biddy estar l? Ned?
Infelizmente, no. Ele vai esquiar em Zermatt, com alguns colegas do
colgio em Dartmouth. Tia Louise ergueu as sobrancelhas, no
aprovando vagabundagens caras e extravagantes. De qualquer
modo,
125. Biddy sempre fizera as vontades de seu nico filho, e no
lhe negaria nenhum divertimento neste mundo. uma pena foi tudo o
que ela disse. Ele seria um companheiro para Judith. Ned tem
dezesseis anos, tia Louise! Posso garantir que nem perceberia a
minha presena. Alis, acho que me divertirei muito mais sem ele por
l... possvel que tenha razo. E, conhecendo Biddy, vocs tero
momentos muitssimo agradveis.
126. H sculos no a vejo. Quando foi a ltima vez que ela esteve
aqui, Molly, hospedada em sua casa? No comeo do vero passado. Voc
deve lembrar-se. Tivemos aquela maravilhosa onda de calor... Foi no
vero em que ela jantou comigo, usando aqueles extraordinrios
pijamas de praia? Sim, isso mesmo. E eu a encontrei em seu jardim
tomando banho de sol com um
127. 31 mai de duas peas. De tecido cor de carne. Quase como se
estivesse nua! Biddy sempre foi muito avanada. Molly sentiu-se no
dever de defender a irm, mesmo fracamente. Acho que, dentro de bem
pouco tempo, todas ns estaremos usando pijamas de praia. Deus nos
livre! O que far no Natal, Louise? Espero que no se sinta
abandonada.
128. Cus, no! Fique certa de que me divertirei, mesmo sozinha.
Talvez convide Billy Fawcett para um drinque, e depois iremos
almoar no clube. Eles costumam esmerar-se nos preparativos para a
data. Judith elaborou um retrato mental de todos os golfistas, em
suas calas presas altura dos joelhos e sapatos robustos, soltando
bombinhas e usando chapus de papel. Ento, talvez tenha uma ou duas
partidas decisivas de bridge. Molly franziu a testa. Billy Fawcett?
Acho que no o
129. conheo. No. Nem poderia. Trata-se de um velho amigo, dos
tempos em Quetta. Agora est reformado e decidiu experimentar uma
temporada na Cornualha. Alugou um daqueles novos bangals que foram
construdos na minha rua, mais abaixo. Vou apresent-lo ao nosso
grupo. Voc precisa conhec-lo, antes de viajar. Tambm bom jogador de
golfe, de modo que o indiquei para membro do clube. muito bom para
voc, Louise.
130. O que bom para mim? Bem... ter um velho amigo morando to
perto. E tambm golfista. No que lhe faltem parceiros para jogar...
Louise, entretanto, no procurava comprometer-se. Jogava somente com
a nata. Depende de que tipo o handicap dele replicou ela
vigorosamente, apagando o cigarro. Olhou para o relgio de pulso.
Cus, j to tarde? Preciso ir andando. Pegando sua bolsa,
131. levantou-se da poltrona. Molly e Judith levantaram-se
tambm. Diga a Phyllis que o ch estava delicioso. Voc sentir falta
dessa moa. Ela j encontrou outro emprego? No creio que Phyllis
tenha se esforado muito. Ela um tesouro para uma pessoa de sorte.
No, no toque a 32 sineta para cham-la. Judith pode acompanhar-me. E
caso no a veja
132. antes do Natal, Molly, desejo que tenha momentos muito
felizes. Ligue para mim quando voltar. Diga-me quando quer levar os
pertences de Judith para Windybridge. E, Judith, ns compraremos a
bicicleta no incio dos feriados da Pscoa. De qualquer modo, no ir
precisar dela antes disso... 33 1936 Amanh escura como breu estava
to fria que, acordando aos poucos,
133. Judith ficou cnscia de seu nariz como uma entidade
separada, congelada e presa ao seu rosto. Na noite anterior, ao ir
para a cama, o quarto estivera gelado demais para permitir que
abrisse a janela, porm havia puxado as cortinas um pouco para trs,
e agora, alm da vidraa embaada, podia vislumbrar o brilho amarelado
da lmpada do poste de iluminao na rua abaixo. No havia nenhum som.
Talvez a noite ainda estivesse na metade. Ento, ouviu o rudo de
patas de cavalos e da carroa de entrega de leite, deixando-a
perceber que no estava no meio da noite, mas que o
134. dia j amanhecera. Agora, era preciso um esforo imenso de
coragem fsica. Um, dois, trs! Puxou a mo para fora do calor das
cobertas da cama e a esticou para ligar o abajur na mesa-de-
cabeceira. Seu relgio novo ganho do tio Bob, e um dos melhores
presentes j recebidos anunciava sete e quarenta e cinco. Judith
voltou rapidamente a mo para debaixo das cobertas e a aqueceu entre
os joelhos. Um novo dia. O ltimo dia. Sentia-se um pouco deprimida.
Os feriados de
135. Natal tinham chegado ao fim e iam voltar para casa. O
quarto em que dormia ficava no sto da casa da tia Biddy e era o
segundo melhor dormitrio disponvel da casa. Molly e Jess haviam
ficado com o melhor dos dois, porm Judith preferira este, com seu
teto inclinado e uma gua- furtada, de cortinas em cretone florido.
O frio tinha sido a pior coisa a enfrentar, porque o parco
aquecimento dos aposentos abaixo dela no se esgueirava pelo ltimo
lance de escadas. No entanto, tia Biddy a deixara ter uma
pequena
136. estufa eltrica e, com a ajuda de duas garrafas de gua
quente, Judith conseguira manter-se aconchegada. 35 Isto porque a
temperatura descera alarmantemente, pouco antes do Natal. Havia uma
frente fria a caminho, conforme avisara o meteorologista pelo rdio,
mas ele no prevenira ningum para as condies rticas que tinham
prevalecido desde ento. Enquanto as Dunbars viajavam pas acima,
pela Riviera da Cornualha, a neve que caa cobrira de branco a
137. Charneca Bodmin. O desembarque em Plymouth tinha sido mais
ou menos como uma chegada Sibria, com ventos amargos despejando
neve misturada chuva, sobre a plataforma da estao. Isso era uma
falta de sorte, porque tia Biddy e tio Bob moravam na que tinha de
ser a casa mais fria do mundo. No eram eles os culpados disso,
porque a residncia era resultante do trabalho do tio Bob,
capito-engenheiro, encarregado do Real Colgio de Engenharia Naval,
em Keyham. A casa ficava em um terrapleno de frente para o norte,
era
138. alta e estreita, com correntes de vento que assobiavam por
todo canto. O lugar mais quente era a cozinha no poro, porm aquele
era o territrio da sra. Cleese, a cozinheira, e de Hobbs, o msico
de banda reformado da Marinha Real, que vinha todos os dias para
polir botas e amontoar carvo. Hobbs era uma personalidade, com
cabelos brancos alisados sobre a parte calva da cabea, e olhos to
brilhantes, to sagazes como os de um melro. Tinha dedos manchados
de tabaco, o rosto franzido, castigado e bronzeado, como uma velha
pea de bagagem. Se houvesse alguma reunio ou festa
139. noite, ele se ataviava, calava luvas brancas e passava
bebidas aos convidados. Houvera um bom nmero de festas porque, a
despeito do frio enregelante, aquele havia sido um Natal
verdadeiramente mgico, exatamente da maneira como Judith sempre
imaginara que devia ser um Natal, mas j comeando a pensar que
jamais o experimentaria. Biddy, no entanto, que nunca fazia as
coisas pela metade, havia decorado a casa inteira como um
encouraado, comentara tio Bob e sua rvore de Natal, erguida no
vestbulo e
140. enchendo o poo da escada de luzes, brilhos, ouropis
agitados pelo vento e do cheiro de abeto, era a mais magnfica que
Judith j vira. Outros aposentos tambm se mostravam festivos, com
centenas de cartes de Natal pendendo de fitas vermelhas, ramos de
azevinho e de hera emoldurando as lareiras e, nas salas de refeies
e de visitas, enormes fogos a carvo nunca eram apagados, como
fornalhas de navio, estocados por 36 Hobbs e abafados a cada noite
com
141. carvo mido, a fim de que nunca se extinguissem. E, o tempo
todo, houvera muita coisa a fazer, muita coisa acontecendo. Almoos
e jantares festivos, aps os quais danava-se ao som do gramofone.
Amigos chegavam a todo instante para o ch ou para um drinque, mas
se surgisse uma calmaria ou uma tarde vazia, tia Biddy jamais
sucumbia a um perodo de paz, imediatamente sugerindo uma ida ao
cinema ou uma expedio ao rinque coberto de patinao.
142. Judith sabia que sua me havia ficado absolutamente
exausta, de quando em quando esgueirando-se para um descanso em sua
cama no andar de cima, aps entregar Jess aos cuidados de Hobbs.
Jess gostava de Hobbs e muito mais da sra. Cleese, de maneira que
passava a maior parte de seu tempo na cozinha do poro,
empanturrando-se de petiscos inadequados sua idade. Isso constitua
um certo alvio para Judith, que se divertia muito mais sem a irm
menor em seus calcanhares. Naturalmente, de vez em quando
143. Jess era includa. Tio Bob adquirira entradas para a
pantomima e todos eles haviam comparecido, juntamente com outra
famlia. Tinham ocupado toda uma fileira de poltronas na primeira
fila, e tio Bob comprara programas para todos, alm de uma enorme
caixa de chocolates. Entretanto, quando aDame aparecera, com sua
peruca vermelha, espartilhos e volumosos cales escarlates, presos
com elsticos abaixo dos joelhos, Jess se portara da maneira mais
embaraosa, soltando gritos de pavor e tendo que ser levada rpida e
definitivamente para fora dali pela
144. me. Por sorte isso acontecera bem no incio, de modo que
todos os demais puderam acomodar-se e apreciar o restante do
espetculo. Tio Bob havia sido a melhor parte. Estar com ele, chegar
a conhec-lo, sem dvida fora o ponto alto dos feriados. Judith nunca
imaginara que pais pudessem ser to agradveis, to pacientes, to
interessantes, to divertidos. Uma vez que aqueles eram dias
feriados, ele no tinha que comparecer diariamente ao Colgio, desta
maneira ficando com tempo de folga. Com o tio, Judith passara
muitos desses momentos no
145. santurio que era o estdio dele, onde Bob lhe mostrara seus
lbuns de retratos, deixara que ela tocasse discos em seu gramofone
de corda manual e lhe ensinara a usar sua castigada mquina de
escrever porttil. Nota de rodap: Mulher idosa, personagem cmico da
pantomina. O papel geralmente desempenhado por um homem. (N. da T.)
Fim da nota de rodap.
146. 37 E quando foram patinar, ele que a tinha ajudado nas
voltas pelo rinque de patinao, at ela poder controlar o que tio Bob
chamava de suas pernas de "marinheiro de primeira viagem"; alm
disso, nas festas ele sempre se preocupava em no deix- la isolada,
apresentando-a aos convidados justamente como se fosse uma adulta.
Seu pai, embora amado e fazendo falta, nunca tinha sido to
divertido. Ao admitir isto para si mesma, Judith sentia-se um pouco
culpada
147. porque, durante as duas ltimas semanas, tinha vivido dias
to maravilhosos, que mal dedicara um pensamento a ele. Procurando
compensar-se disto, agora pensava no pai, com firmeza. Entretanto,
tinha primeiro que pensar em Colombo, pois era onde ele se
encontrava, e por ser aquele o nico lugar onde conseguia uma imagem
viva dele. Era difcil. Colombo havia acontecido muito tempo atrs.
Agente imaginava poder recordar todos os detalhes, porm o tempo
esfumava a nitidez da recordao, da mesma forma como a claridade
desbota fotos antigas. Judith
148. procurou uma ocasio na qual pudesse fixar a memria. O
Natal. Claro, o Natal em Colombo era inesquecvel, ao menos por ser
to absurdo, com os cus brilhantes dos trpicos, o calor sufocante,
as guas inconstantes do Oceano ndico e a brisa que agitava as
folhas das palmeiras. Na casa da Rua Galle, no Natal, ela abria
seus presentes na varanda ventilada, ouvindo as ondas que se
quebravam na praia. Alm disso, o jantar de Natal no tivera peru, em
vez disso sendo um tradicional almoo de curry no Galle Face Hotel.
Muitas outras pessoas
149. tambm comemoravam desta maneira, de modo que aquilo
parecia uma enorme festa de crianas, com todos usando chapus de
papel e soprando apitos. Ela pensou no refeitrio apinhado de
famlias, todos comendo e bebendo demais, com a fresca brisa marinha
soprando do mar e os ventiladores girando lentamente no teto.
Funcionou. Agora, Judith tinha um ntido retrato do pai. Podia v-lo
sentado cabeceira da mesa, com uma coroa de papel azul salpicada de
dourado. Perguntou-se como ele teria passado seu Natal
solitrio.
150. Quando o tinham deixado, quatro anos atrs, um amigo
solteiro havia ido morar com ele, a fim de fazer- lhe companhia.
Entretanto, de algum modo era impossvel imaginar eles dois
entregando-se s alegrias da temporada natalina. Provavelmente
tinham ido 38 para o clube, com todos os demais solteiros e
separados das esposas. Judith suspirou. Achava que sentia falta do
pai, porm no era fcil sentir saudades de uma pessoa que tinha
vivido tanto tempo longe dela.
151. O nico contato eram as cartas mensais dele, que quando
chegavam j tinham trs semanas de atraso e, mesmo assim, pouco
tinham de inspiradoras. O relgio novo agora marcava oito horas.
Hora de levantar-se. J. Um, dois, trs! Ela jogou as cobertas para o
lado, saltou da cama e correu para ligar a estufa eltrica. Ento, a
toda pressa, envolveu-se em seu robe e enfiou os ps descalos nos
chinelos de plo de carneiro. Seus presentes de Natal estavam
perfeitamente alinhados no cho.
152. Pegando sua maleta chinesa e feita de vime, com ala e
pequenas tranquetas que mantinham a tampa fechada ela a abriu, a
fim de ali guardar os presentes. Colocou na maleta o relgio e os
dois livros que ganhara da tia Biddy. O recm- publicado Frias de
Inverno, de Arthur Ransome, e um exemplar de Jane Eyre, belamente
encadernado em couro. Parecia um livro muito extenso, de letras
midas, mas possua numerosas ilustraes, lminas coloridas protegidas
por folhas de papel de seda, e to cativantes, que Judith mal podia
esperar para comear a l-lo. Em
153. seguida foi a vez das luvas de l, presente dos avs, e a
bolha de vidro que, quando sacudida, explodia em uma tempestade de
neve. Presente de Jess. Mame lhe dera um pulver, mas no o que
pedira, porque tinha gola redonda e ela quisera de plo. De qualquer
modo, tia Louise a compensara e, a despeito da prometida bicicleta,
debaixo da rvore e envolto em papel de presente, estava um pacote
destinado a ela. Continha um dirio para cinco anos, grosso e de
capa dura como uma Bblia. O presente de papai ainda no chegara. Ele
no era muito bom em enviar coisas
154. dentro do prazo, e o correio levava sculos para fazer uma
entrega. Ainda assim, era algo pelo que ansiar. O melhor presente
quase se podia dizer que era o de Phyllis, e exatamente aquilo de
que Judith precisava um pote de cola, com seu prprio pincelzinho, e
uma tesoura. Ela os guardaria na gaveta trancada de sua secretria,
longe dos dedos buliosos de Jess. Ento, quando se sentisse com nimo
criativo e quisesse fazer alguma coisa, ou recortar o que quer que
fosse, ou colar um postal em seu livro de recortes, no precisaria
pedir a tesoura para sua me (que
155. dificilmente era localizada) ou ver- se na contingncia de
preparar a prpria cola, 39 com gua e farinha de trigo. Era um grude
que nunca funcionava a contento, alm de desprender um cheiro
nauseante. A posse destes dois humildes objetos deixava Judith com
uma agradvel sensao de auto-suficincia. Ela arrumou tudo
cuidadosamente dentro da maleta, mal havendo espao para todos os
objetos sem
156. que o ferrolho se recusasse a fechar. Judith pressionou as
pequenas tranquetas e colocou a maleta sobre a cama. Depois, o mais
rpido que pde, vestiu suas roupas. O desjejum j estaria esperando e
ela estava faminta. Esperava que houvesse salsichas, em vez de ovos
pochs. Biddy Somerville sentou-se extremidade de sua mesa da sala
de refeies, bebeu caf puro e tentou ignorar o fato de que estava
com uma leve ressaca. Na vspera, depois do jantar, dois jovens
tenentes-engenheiros tinham feito
157. uma visita de cortesia, e Bob aparecera com uma garrafa de
brandy. Na comemorao, Biddy tinha ingerido um pouco alm da conta.
Agora, um ligeiro latejamento nas tmporas recordava-lhe que devia
ter parado na segunda dose. No comentara com Bob que se sentia um
pouco tonta, pois do contrrio ele prontamente lhe diria a mesma
coisa. Na opinio de seu marido, ressacas ajustavam-se mesma
categoria de queimaduras do sol: uma infrao merecendo castigo.
Estava tudo muito bem para ele, que
158. nunca sofrera uma ressaca na vida. Neste momento,
sentava-se outra extremidade da mesa, escondido dela pelas pginas
abertas do The Times. Estava uniformizado, porque sua temporada de
folga terminara, e hoje voltaria ao trabalho. Dentro de um momento,
Bob fecharia e dobraria o jornal, depositan-do-o em cima da mesa
enquanto anunciava que era hora de sua partida. Os outros
participantes dos feriados natalinos naquela pequena casa ainda no
tinham aparecido. Isto era timo para Biddy, porque quando
aparecessem, com um pouco de sorte ela estaria em sua segunda
159. xcara de caf e sentindo-se mais revigorada. Suas visitas
iriam embora hoje, e Biddy lamentava imensamente a aproximao da
hora das despedidas. Convidara-as para ficarem em sua casa por
vrios motivos. Aquele seria o ltimo Natal de Molly antes 40 de seu
retorno ao Extremo Oriente, ela era sua nica irm e, em vista do
estado em que se encontrava o mundo, ningum podia saber quando
160. tornariam a ver-se. Ao mesmo tempo, Biddy sentia-se um
pouco culpada, achando que no fizera o suficiente pelos Dunbars
durante os ltimos quatro anos; no estivera vezes suficientes com a
irm e as sobrinhas, alm de no ter-se esforado muito para isso. Por
fim, convidara-as porque Ned estava ausente, esquiando, e a idia de
um Natal sem pessoas jovens por perto era terrvel, insuportvel. O
fato de pouco ter em comum com a irm e de mal conhecer as sobrinhas
no a deixara muito esperanosa quanto ao desfecho do
161. arranjo. No entanto, fora tudo um surpreendente sucesso.
Era verdade que Molly murchara de quando em quando, derrotada pelo
ritmo turbilhonante da vida social da irm, indo ento para a cama,
para ficar com os ps levantados. No tocante a Jess, Biddy era
forada a admitir que se tratava de uma criana demasiado mimada e
cheia de vontades, cujos caprichos eram prontamente satisfeitos a
cada vez que chorava. Judith, no entanto, havia sido uma tremenda
revelao, mostran-do-se o tipo de menina que ela gostaria de
162. ter como filha, caso houvesse tido alguma. Ela se divertia
sozinha, havendo necessidade, nunca se intrometendo em conversas
adultas, e ficando entusiasmada, at agradecida, caso fosse sugerida
alguma coisa para seu prprio entretenimento. Biddy refletiu que sua
sobrinha era tambm extraordinariamente bonita... ou pelo menos
ficaria, dentro de uns poucos anos. De maneira alguma Judith se
importara com o fato de na casa no haver ningum da sua idade e, nas
festas da tia, soubera tornar-se til, servindo os visitantes com
nozes e biscoitos, alm de responder a todos
163. que faziam uma pausa para dirigir- lhe a palavra. O
perfeito entendimento que surgira entre sua sobrinha e Bob era um
prmio extra, sendo bvio que Judith dera tanto prazer ao tio quanto
este a ela. Bob a apreciara por motivos antiquados: ela possua boas
maneiras, e quando falava com algum, fitava o interlocutor dentro
dos olhos. Alm disso, entre eles houvera uma atrao natural, o
estmulo de estar com um membro do sexo oposto, um relacionamento de
pai-filha, algo de q u e ambos sentiam falta, de um modo ou de
outro.
164. Talvez devessem ter tido filhas. Talvez devessem ter tido
muitos filhos. Entretanto, houvera apenas Ned, despachado para a
escola 41 preparatria aos oito anos, e em seguida para Dartmouth.
Os anos corriam velozes, e era como se o tempo no tivesse passado
desde que ele era pequenino e adorado, com bochechas de beb e
cabelos dourados, joelhos sujos e speros, mos quentes e pequeninas.
Agora, aos dezesseis anos, era quase to alto quanto o pai. E,
praticamente
165. antes que se pudesse piscar um olho, terminaria os estudos
e iria para o mar. Seria adulto. Casar-se-ia. Teria sua prpria
famlia. A imaginao de Biddy corria solta. Ela suspirou. Ser av no
lhe seduzia muito. Ela era jovem. Sentia-se jovem. A maturidade
devia ser mantida ao largo, a qualquer preo. A porta se abriu e
Hobbs entrou na sala em passos rangentes, trazendo a correspondncia
matinal e um bule de caf fresco. Ele pousou o bule sobre a chapa
quente no aparador e aproximou-se para deixar as cartas na mesa, ao
lado de Biddy. Ela
166. desejou que Hobbs tomasse alguma providncia com suas botas
chiantes. Faz um frio terrvel esta manh observou ele, com alvio.
Todas as calhas esto entupidas de gelo. Despejei sal na escada da
frente. Obrigada, Hobbs Biddy respondeu, lacnica. Sabia que, se
comentasse aquela observao, ele ficaria ali tagarelando
eternamente. Frustrado por aquele prolongado silncio,
167. Hobbs cerrou os dentes com certa rabugice, ajeitou um
garfo em cima da mesa a fim de justificar sua presena, mas,
finalmente derrotado, bateu em retirada. Bob continuou lendo o
jornal. Biddy folheou sua correspondncia. Nada importante como um
carto de Ned, mas havia uma carta de sua me, provavelmente
agradecendo a manta tricotada para os joelhos, que ela lhe enviara
como presente de Natal. Biddy pegou uma faca, para abrir o
envelope. Ao fazer isso, Bob baixou o jornal, dobrou-o e bateu com
ele na mesa, mostrando certa violncia.
168. O que h de errado? perguntou Biddy, erguendo os olhos para
ele. O desarmamento. A Liga das Naes. E eu no estou gostando do
cheiro do que est acontecendo na Alemanha. Oh, meu bem! Biddy
odiava v-lo deprimido ou preocupado. Para si mesma, lia apenas as
notcias alegres, virando a folha apressadamente, se as manchetes
parecessem sombrias. Ele consultou o relgio de pulso.
169. 42 Est na hora de ir andando. Empurrou a pesada cadeira
para trs e levantou-se. Era um homem alto e forte, sua corpulncia
tornada mais impressionante pela tnica escura e trespassada, com
botes dourados. O rosto inteiramente bar-beado e de feies
marcantes, era sombreado por espessas sobrancelhas. Os bastos
cabelos cinza-escuros jaziam lisos sobre a cabea, de corte rente,
controlados firmemente por leo para cabelos Royal Yacht e duas
escovas de cerdas duras.
170. Tenha um bom dia desejou Biddy. Ele olhou para a mesa
vazia. Onde est todo mundo? Elas ainda no desceram. A que horas
parte o seu trem? Esta tarde. o Riviera. No creio que possa
lev-las. Voc faria isso? Naturalmente. Despea-se delas por mim.
Diga adeus a Judith.
171. Voc sentir falta dela. Eu... Sendo um homem pouco emotivo,
ou melhor, um homem que no demonstrava suas emoes, ele procurou
palavras. No gosto de pensar que ela ficar abandonada. Sozinha, por
conta prpria. Judith no ficar sozinha. Louise a acolher. Ela
precisa de mais do que Louise tem para oferecer. Eu sei. Sempre
achei que os Dunbars eram as pessoas mais
172. secarronas deste mundo. Enfim, o que se pode fazer? Molly
casou com um deles e parece ter sido absorvida pela famlia do
marido. No h muito o que eu ou voc possamos fazer. Ele pensou a
respeito, em p, olhando pela janela a manh gelada e escura,
enquanto fazia tilintar as moedas que tinha no bolso da cala. - Voc
sempre poderia convid-la por alguns dias. Eu me refiro a Judith.
Durante as frias. Ou isso seria muito tedioso para voc?
173. De maneira alguma. Entretanto, duvido muito que Molly
concorde com a idia. Tenho certeza de que dar qualquer desculpa,
como a de no querer ofender Louise. Voc sabe muito bem que minha
irm terrivelmente dominada pela cunhada. Louise a trata como se
fosse uma tola, porm ela nunca se rebela. 43 Bem, sejamos francos;
sua irm um pouco pateta. De qualquer forma, fale com ela a respeito
de Judith.
174. Farei uma sugesto. Aproximando-se, ele beijou os cabelos
desordenados da esposa, no alto da cabea. Vejo voc logo mais noite
disse. Bob nunca vinha em casa no meio do dia, preferindo almoar no
salo para oficiais. At logo mais, meu bem. Ele saiu. Biddy ficou
sozinha. Ela terminou o caf e foi encher outra
175. xcara no aparador. Depois voltou para a mesa, a fim de ler
a carta de sua me. A caligrafia era vacilante, trmula, parecendo
ter sado da mo de uma mulher muito idosa. Minha querida Biddy,
Escrevo apenas uma linha para agradecer pela manta. Foi a lembrana
exata para as noites geladas e, com a atual onda de frio, o
reumatismo atacou-me novamente. Tivemos um Natal quieto. Pequenas
congregaes, com a organista ficando gripada e precisando ser
substituda pela sra. Fell que, como
176. voc sabe, no muito boa. Papai sofreu uma terrvel
derrapagem com o carro, quando subia a Rua Woolscombe. O carro est
amassado e ele bateu com a testa no pra-brisa. Foi uma contuso
feia. Recebi um carto da pobre Edith. A me dela tem piorado... Me
Ainda era muito cedo para digerir notcias to sombrias. Biddy largou
a carta e voltou ao seu caf, sentada com os cotovelos fincados na
mesa e os dedos compridos encurvados em torno da bem-vinda
177. 44 quentura da xcara. Pensou naquele triste casal formado
por seus pais e encontrou tempo para, uma vez mais, surpreender-se
ante o fato de que eles realmente haviam desempenhado inimaginveis
atos de paixo sexual, atravs dos quais tinham produzido suas duas
filhas, Biddy Molly. Contudo, ainda mais miraculoso era o fato de
essas duas filhas, de uma forma ou de outra, terem conseguido
escapar do Vicariato, encontrado homens com quem se casaram e
ficado livres para sempre do sufocante tdio e da
178. envergonhada pobreza em que tinham sido criadas. Isto
porque nenhuma delas havia sido preparada para a vida. Nenhuma se
especializara em enfermagem, freqentara uma universidade ou
aprendera datilografia. Molly ansiara pelo palco, sonhara ser
danarina, uma bailarina. Na escola, sempre tinha sido a estrela das
aulas de dana, desejosa de seguir os passos de Irina Baronova e
Alicia Markova. Entretanto, desde o incio, suas dbeis ambies haviam
sido minimizadas pela desaprovao dos
179. pais, pela falta de dinheiro e pela no declarada convico
do Reverendo Evans de que pisar o palco era o primeiro passo para
tornar-se uma meretriz. Se Molly no tivesse sido convidada para
aquela partida de tnis com os Luscombes, e l conhecido Bruce
Dunbar, pela primeira vez desfrutando longas frias de Colombo e
procurando desesperadamente uma esposa, s Deus saberia o que teria
acontecido pobre jovem. Uma existncia de solteirona, provavelmente
ajudando a me a enfeitar a igreja com flores.
180. Biddy era diferente. Sempre soubera o que queria, e se
disps a consegui- lo. Desde bem nova, pudera ver distintamente que,
se pretendia ter qualquer espcie de vida, teria que se arranjar
sozinha. Com isso decidido, tornou-se astuta e, no colgio, fez
amizades somente com colegas que, no devido tempo, poderiam ajud-la
a realizar suas ambies. A que se tornou sua melhor amiga era filha
de um Comandante Naval e morava em uma grande casa, perto de
Dartmouth. Alm disso, essa jovem tinha irmos. Biddy decidiu
que
181. aquele era um solo frtil e, aps algumas insinuaes casuais,
conseguiu ser convidada para l passar um fim de semana. Ento, como
era o seu propsito, tornou-se um verdadeiro sucesso social.
Atraente, com longas pernas e inteligentes olhos escuros, bastos e
anelados cabelos castanhos, era jovem o bastante Para que suas
roupas inadequadas no fizessem diferena. Por outro lado, Biddy
possua um seguro instinto para o que devia fazer; quando ser
45
182. polida e quando ser agradvel ou como flertar com os homens
mais velhos, que a consideravam atrevida e davam-lhe palmadas no
traseiro. Entretanto, os irmos eram o melhor; eles tinham amigos, e
esses amigos tinham outros amigos. O crculo de conhecidos de Biddy
expandiu-se com maravilhosa facilidade e, no demorou muito, ela se
tornava um membro aceito desta famlia substituta, passando mais
tempo com eles do que em sua casa, e dando me no s e menos
importncia s admoestaes e lgubres conselhos dos ansiosos pais.
183. Seu descuidado estilo de vida mereceu-lhe uma espcie de
reputao, porm ela no se incomodava. Aos dezenove anos, desfrutava
da duvidosa fama de estar comprometida com dois jovens subtenentes
ao mesmo tempo, trocando de anis quando os diferentes navios deles
chegavam ao porto. Por fim, quando estava com vinte e um anos,
casou-se com o srio Bob Somerville, e nunca se arrependera de sua
deciso. Porque Bob no era apenas seu marido e pai de Ned, mas seu
amigo, fechando os olhos para uma srie de associaes passageiras,
porm sempre ao
184. alcance quando Biddy precisava dele ao seu lado. Eles
tinham vivido perodos de grande felicidade, porque ela adorava
viajar e nunca se recusava a fazer as malas para seguir Bob, para
onde quer que o enviassem. Dois anos em Malta haviam sido a glria,
porm a vida dos dois nunca enfrentara momentos adversos. No, quanto
a isso no havia dvidas. Ela realmente tivera muita sorte. O relgio
acima da lareira na sala de refeies bateu sua meia hora. Oito e
meia da manh, e Molly ainda
185. no tinha aparecido. Biddy agora j se sentia ligeiramente
menos nauseada e decidiu que estava pronta para seu primeiro
cigarro. Levantou-se para apanhar um na cigarreira de prata em cima
do aparador e, ao voltar para a mesa, esbarrou no jornal de Bob,
que caiu aberto, mostrando as manchetes. Evidentemente no era uma
leitura agradvel, e ela compreendeu por que seu marido se mostrara
to anormalmente aborrecido. A Espanha parecia rumar para uma
sangrenta guerra civil. Herr Hitler fazia ruidosos discursos sobre
a remilitarizao da Rennia e, na
186. Itlia, Mussolini vangloriava-se de seu crescente poderio
naval no Mediterrneo. No era de admirar que Bob rangesse os dentes.
Ele no suportava Mussolini, a quem se referia como o Gordo
Fascista, e no tinha dvidas de que, para silenciar to bombsticas
declaraes, bastariam duas salvas do convs de um encouraado
britnico. 46 Tudo aquilo era um tanto amedrontador. Ela deixou o
jornal cair no cho e procurou no pensar
187. em Ned, com dezesseis anos, destinado Marinha Real e to
maduro para o combate como uma fruta doce. A porta se abriu, e
Molly entrou na sala de refeies. Biddy no se preparava
especialmente para o desjejum. Ela possua uma til pea denominada
chambre, que todas as manhs vestia sobre a camisola. Por esse
motivo, a aparncia de Molly, perfeitamente arrumada e vestida, com
os cabelos cuidadosamente afofados e uma discreta maquiagem no
rosto, provocou nela uma pontada de fraterna irritao.
188. Sinto muito o atraso. No est atrasada, em absoluto. Enfim,
no importa. Dormiu demais? No foi bem o caso. Fiquei me levantando
a noite inteira. A pobre Jess teve pesadelos horrveis e acordava a
todo instante. Sonhou que a Dame da pantomima estava no quarto e
queria beij-la. O qu? Com espartilhos e tudo? No consigo imaginar
nada pior. Ela ainda est dormindo, a coitadinha. Judith tambm ainda
no
189. desceu? Provavelmente est arrumando as malas. No se
preocupe com ela. Aparecer em um momento. EBob? J se levantou e se
foi. O dever chama. Os feriados terminaram. Pediu que eu me
despedisse de voc por ele. Vou lev-la de carro estao. Coma alguma
coisa, a sra. Cleese cozinhou salsichas. Molly foi at o aparador,
levantou a tampa da frigideira, hesitou e tornou
190. a baix-la. Despejou caf na xcara e voltou para junto da
irm. Biddy ergueu as sobrancelhas. No est com fome? Na verdade, no.
Vou comer uma torrada. As pretenses de Molly sobre beleza jaziam em
sua aparncia extraordinariamente jovem, nos fofos cabelos claros,
nas faces redondas e nos olhos, que refletiam somente uma espcie de
aturdida inocncia. Ela no era uma mulher inteligente, e sempre
lenta em
191. perceber a graa de uma piada, alm de aceitar qualquer
observao por seu manifesto significado, ainda que estando carregada
de duplo sentido. 47 Os homens pareciam achar isso cativante,
porque fazia com que se sentissem protetores, mas a patente
transparncia da irm era uma causa de irritao para Biddy. Agora,
contudo, ela experimentava certa preocupao. Via que, por baixo da
delicada aplicao de p-de-arroz, o rosto de Molly mostrava sombras
escuras sob os olhos, e suas faces
192. estavam incomumente plidas. Est se sentindo bem? Sim.
Apenas no tenho fome. E sofro com a falta de sono.----- Ela bebeu
caf. Odeio ficar sem dormir no meio da noite. como estar em um
mundo diferente, e tudo se torna muito mais terrvel. Antes de mais
nada, o que to terrvel?
193. Oh, eu no sei. Apenas todas as coisas que precisam ser
feitas, quando eu voltar para casa. Comprar roupas escolares para
Judith, e organizar tudo. Fechar a casa. Tentar ajudar Phyllis a
encontrar outro emprego. Depois, ir at Londres, tomar o navio,
voltar a Colombo. Tudo. Afastei todas essas coisas da mente
enquanto estive aqui com voc; procurei no pensar em nada. Agora,
tenho que voltar a ser sensata novamente. E acho que uma coisa que
terei de fazer , simplesmente, passar alguns dias com papai e mame.
Isso significa outra complicao.
194. Voc tem que ir? Eu acho que devo. Voc uma gulosa por
castigo. Acabei de receber uma carta de mame. Est tudo bem por l?
No. Como sempre, tudo errado. Chego a sentir-me culpada, por eles
terem passado o Natal sozinhos. Pois eu, no respondeu Biddy
prontamente. claro que os
195. convidei. Sempre convido, rezando para que no aceitem. E,
graas a Deus, arranjaram as desculpas costumeiras. Papai sem tempo
disponvel; neve nas estradas; o carro fazendo um barulho esquisito;
as pontadas de reumatismo de mame. Aqueles dois so impossveis. Vem
tudo pelo lado mais sombrio. No adianta a gente querer mostrar-lhes
que a vida pode ser melhor, porque aproveitam qualquer pretexto
para uma lamentao. Eles esto velhos.
196. 48 - No no esto. Simplesmente aliaram-se decrepitude. Em
seu lugar no me preocuparia tanto com eles, j que tem tanta coisa
para resolver. - No est em mim pensar diferente. Molly vacilou,
depois disse, com certa violncia: O terrvel que, neste exato
momento, daria qualquer coisa para no ir v-los. Odeio deixar
Judith. Odeio o fato de estarmos sendo separadas. Isso me d a
sensao de que no perteno a lugar algum. Compreenda, s vezes
197. tenho essa sensao curiosa... como se estivesse em uma
espcie de limbo, sem qualquer espcie de identidade. algo que
acontece quando menos espero. Posso estar no topo de um nibus em
Londres ou debruada na amurada de algum barco da P&O, espiando
a esteira do navio dissolver-se no passado. Ento penso: o que estou
fazendo aqui?, para onde estou indo?, quem sou eu? Sua voz falhou.
Por um terrvel momento, Biddy receou que ela fosse se debulhar em
lgrimas.