Luiz Eduardo Ricon de Freitas
O Role Playing Game e a Escola: Múltiplas Linguagens e
Competências em Jogo
Um estudo de caso sobre a inserção dos jogos de RPG dentro do
currículo escolar
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Orientador(a): profª Maria Aparecida Campos Mamede Neves
Rio de Janeiro, setembro de 2006
Luiz Eduardo Ricon de Freitas
O ROLE PLAYING GAME E A ESCOLA: MÚLTIPLAS LINGUAGENS E
COMPETÊNCIAS EM JOGO Um estudo de caso sobre a inserção dos jogos de
RPG dentro do currículo escolar
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada
Profª Maria Aparecida Campos Mamede Neves Orientador(a)
PUC-Rio
Profª Rosália Maria Duarte Presidente
PUC-Rio
Profª Maria Luiza Magalhães Bastos Oswald UERJ
Profº PAULO FERNANDO CARNEIRO DE ANDRADE Coordenador Setorial do Centro
de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio
Rio de Janeiro, 01 de setembro de 2006
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e da orientadora.
Luiz Eduardo Ricon de Freitas Graduado em Comunicação Social pela PUC-Rio em 1992. É escritor, redator, roteirista e pesquisador da Multirio – Empresa de Multimeios da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Ficha Catalográfica
CDD: 370
Ricon, Luiz Eduardo
O Role Playing Game e a escola : múltiplas
linguagens e competências em jogo / Luiz Eduardo
Ricon ; orientador: Maria Aparecida Campos Mamede
Neves. – 2006.
176 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Educação)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2006.
Inclui bibliografia
1. Educação – Teses. 2. RPG. 3. Role Playing
Games. 4. Jogos Educativos. 5. Múltiplas Linguagens.
6. Competências. I. Neves, Maria Aparecida Campos
Mamede. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Educação. III. Título.
À minha querida Maya, aos meus filhos David
e Pedro e também a todos aqueles que, direta ou indiretamente, inspiraram, guiaram,
apoiaram ou acompanharam esta jornada
E a todos os meus alunos, os verdadeiros heróis desta aventura
Agradeço
à minha Orientadora, Aparecida Mamede, pelo carinho, dedicação e paciência; e
por estar lá nos momentos mais difíceis.
à minha querida Maya, que tanto sacrificou e que esteve sempre ao meu lado e
aos meus filhos maravilhosos, David e Pedro, pelo amor e confiança
incondicionais.
ao CNPQ e à FAPERJ (Programa “Bolsa Nota 10”) pelo apoio a este projeto.
aos Professores do Departamento de Educação da PUC-Rio com quem tive a
sorte de estudar: Isabel Lélis, Aparecida Mamede, José Carmelo, Maria Inês
Marcondes, Rosália Duarte e Zaia Brandão.
à Profª Alícia Bonamino e Sônia Kramer, coordenadoras do programa de Pós-
Graduação.
às Professoras Solange Jobim e Maria Luiza Oswald pelo apoio inicial.
a todos os colegas do Mestrado e Doutorado da PUC-Rio, por dividirem comigo
essa jornada.
à escola que abriu generosamente os seus espaços para esta pesquisa, acreditando
no novo e buscando sempre o melhor para seus alunos.
a todos os meninos e meninas que participaram das oficinas: com quem aprendi
muito mais do que ensinei e com quem me diverti muito mais do que entretive
ao Prof. Marcos Ozório e à Professora Regina de Assis, pelo apoio e confiança
em todos os momentos.
Resumo
Ricon, Luiz Eduardo; Neves, Maria Aparecida Campos Mamede. O Role
Playing Game e a Escola: Múltiplas Linguagens e Competências em Jogo -- Um estudo de caso sobre a inserção dos jogos de RPG dentro do currículo escolar. Rio de Janeiro, 2006. 176 p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Este trabalho registra e analisa criticamente uma experiência de inserção
dos jogos de RPG (Role Playing Game) como parte integrante do currículo de
uma escola particular da zona sul do Rio de Janeiro, com o objetivo de se
trabalhar a expressividade e a criatividade dos alunos por meio do uso de
múltiplas linguagens e também como meio de se promover o desenvolvimento
de variadas competências dentro de sala de aula. Ao todo, 69 crianças e jovens
dos 9 aos 17 anos, alunos da 5ª série do Ensino Fundamental ao 2º ano do Ensino
Médio, participaram das oficinas focalizadas nesta pesquisa. A metodologia
utilizada no trabalho de campo incluiu tanto a observação, apoiada em cadernos
de campo e fotografias, quanto a análise dos artefatos produzidos pelos alunos
durante (e para) as sessões de jogo, sob a forma de descrições dos personagens,
histórias, textos diversos, desenhos, mapas, maquetes etc, além da participação
na montagem de mostras dos trabalhos, visitadas por pais, professores, familiares
e demais membros da comunidade escolar. Ao lado do teatro, da música, da
dança, do vídeo, dos desenhos animados e de outras linguagens e meios de
expressão artística e cultural, a prática de jogos como o RPG, que reúnem
ludicidade e criatividade, pode servir como forma de se aproximar o ambiente da
escola do mundo complexo, múltiplo e multi-midiático no qual as crianças e os
jovens das grandes cidades se encontram imersos em seu dia-a-dia.
Palavras-chave RPG; Role Playing Games; Jogos Educativos; Múltiplas Linguagens;
Desenvolvimento de Competências
Abstract
Ricon Luiz Eduardo; Neves, Maria Aparecida Campos Mamede. Role
Playing Games and School: a game of multiple languages and competencies. A case study of Role Playing Games as part of the school's curriculum. Rio de Janeiro, 2006. 176 p. M Sc.Dissertation - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This work documents an experiment in which Role Playing Games were
part of the curriculum in a private school in Rio de Janeiro. The game was used
as a tool to promote expression and creativity among the students and also the
development of several competencies inside the classroom. Sixty-nine children
and adolescents (ages 9 to 17, from the 5th to the 10th grade) took part in the
workshops studied here. The filedwork methodology included observation,
supported by field notes and photos, along with the analysis of artifacts produced
by the students during (and for) the game sessions, such as character profiles,
stories, assorted texts, drawings, maps, schetches, mock ups and others, and also
their engajement in the preparation of a show, visited by parents, teachers, family
membres and other members of the school community. As with theater, music,
dace, video-production, animation and other forms of artistic and cultural
expression, games like RPGs, that unite creativity and fun, might serve as a way
to straighten the ties between the school and the complex, multiple and multi-
midiatic world where children and adolescents in major cities are imersed in
day-to-day basis.
Keywords RPG; Role Playing Games; Educational Games; Multiple Languages;
Competencies
Sumário
1. Introdução 13
2. Cenário e personagens 23
2.1 A Escola 23
2.1.1 Organização em ciclos 26
2.1.2 Pedagogia por projetos 27
2.1.3 Histórico da instituição 27
2.1.4 O projeto das oficinas de artes 30
2.2 Os Atores 32
2.2.1 Divisão por idade 32
2.2.2 Divisão por sexo 33
2.2.3 Divisão por série 34
2.2.4 Divisão por oficina 34
2.2.5 A relação com o RPG 35
2.2.6 Casos especiais 37
2.3 As Regras do jogo – A Metodologia de Pesquisa 38
3. RPG, ludicidade e escola 44
3.1 – Jogo ou brincadeira? 46
3.2 – RPG e Educação 51
3.2.1 – O que é RPG? 52
3.2.2 – Como se joga RPG? 55
3.2.3 – E o que não é RPG? 56
3.3 – O RPG e a Escola 61
4. RPG, conteúdos e competências 70
4.1 RPG e educação 70
4.2 A competência de Perrenoud 77
4.3 Competências... quais competências? 87
5. As oficinas 94
5.1 – As oficinas de artes 95
5.1.1 As Oficinas de RPG 96
6. As Turmas: Descrição e discussão 108
6.1 Análise das categorias 108
6.2 A turma 5601 99
6.2.1 – Expressividade múltipla 126
6.3 – A turma 5602 128
6.3.1 – Pilhagem Narrativa 134
6.4 – A turma 7801 137
6.4.1 – Autonomia 144
6.5 – A turma EM01 148
6.5.1 Subjetividade contemportânea 151
7. Considerações Finais 153
8. Referências Bibliográficas 159
9. Apêndices 166
Lista de Figuras
Figura 1: mestre e jogadores... 13
Figura 2: jogando com o conhecimento... 14
Figura 3: criando e recriando personagens e histórias 15
Figura 4: livros viram textos e desenhos 16
Figura 5: livros, dados, textos, desenhos, números... 18
Figura 6: mestre e jogadores em plena aventura 19
Figura 7: comemoração! 21
Figura 8: um jogo de crianças e livros... 22
Figura 9: brincadeira ou estudo? 33
Figura 10: Uma das mostras Amiúde 31
Figura 11: Múltiplas competências... 70
Figura 12: professor, mestre de jogo e pesquisador... 94
Figura 13: A Biblioteca do Ensino Fundamental 101
Figura 14: A Biblioteca do Ensino Médio 102
Figura 15: almofadas e mesas 104
Figura 16: Capa do livreto apresentado ... 106
Figura 17: Flagrante do pós guerra... 111
Figura 18: Referências ao cinema (Harry Potter... 114
Figura 19: Do esporte radical ao reino medieval... 114
Figura 20: Aleijadinha 116
Figura 21: O Papa 116
Figura 22: Magrão 117
Figura 23: João, o feto 117
Figura 24: Planejando o Stadium 119
Figura 25: A maquete do Stadium 120
Figura 26: O castelo 2D e 3D 121
Figura 27: Desenhos de G. 122
Figura 28: Trabalhos da mostra Amiúde 124
Figura 29: jovens mestres Jedi em ação! 126
Figura 30: Pilhando ou criando? 129
Figura 31: Aconteceu...virou piada! 130
Figura 32: As muitas vozes de um elfo 137
Figura 33: grandes aventuras, cadeiras pequenas... 138
Figura 34: Superlotação na sala de jogos... 139
Figura 35: o RPG rompe os limites da sala de aula 147
Figura 36: Aventuras inclusivas no Ensino Médio 149
Figura 37: A Mostra de trabalhos do fim do ano 151
Lista de Gráficos
Gráfico 1 – Divisão por idade 33
Gráfico 2 – Divisão por sexo 33
Gráfico 3 – Divisão por série 34
Gráfico 4 – Divisão por oficina 35
Gráfico 5 – Conheciam o RPG 36
Gráfico 6 – Jogavam RPG 36
Mais do que um conjunto de regras a ser obedecido, ou
burlado, a LDB é uma convocação que oferece à criatividade
e ao empenho dos sistemas e suas escolas a possibilidade de
múltiplos arranjos institucionais e curriculares inovadores.
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. O filósofo irlandês Richard Kearney fala da necessidade
urgente de que recuperemos um tipo de Imaginação que
inclua o Outro. Ao trazer essa noção para uma abordagem
cultural das mídias, a interpretamos como uma necessidade
da criação imaginativa coletiva, em que as crianças se
apropriem das histórias e imagens que encontram na TV, no
cinema, no computador, de tanto brincar com elas, ao mesmo
tempo em que se apropriam das histórias e formas artísticas
produzidas pelas pessoas que vivem a seu redor.
Giradello e Tuyama
1. Introdução
Figura 1: mestre e jogadores, professor e alunos, aula e brincadeira
Este trabalho registra e analisa criticamente uma experiência de
utilização dos jogos de RPG (Role Playing Game)1 dentro do ambiente de
uma escola particular da zona sul do Rio de Janeiro, como forma de se
trabalhar com múltiplas linguagens e o desenvolvimento de
competências2, na perspectiva dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs), considerando-se sua inspiração no movimento teórico que
procura contrapor uma educação mais tradicional – centrada na
transmissão de conteúdos, compartimentalizados em saberes
disciplinares – a uma nova concepção pedagógica, fundada em princípios
originários do construtivismo, e que focaliza seus esforços no
desenvolvimento pelos estudantes de competências versáteis, verificáveis
em situações concretas e específicas da vida cotidiana.
1Role Playing Game, RPG ou Jogo de Interpretação, é uma brincadeira de criar e contar histórias
coletivamente, e que coloca os participantes em contato com um ambiente ficcional, dentro do qual eles
criam e interpretam personagens, descrevendo verbalmente as ações e reações dos seus personagens,
utilizando regras e dados numéricos para determinar as chances dos personagens realizarem ou não uma
determinada ação. Um dos jogadores é o Mestre do Jogo, e atua como narrador, descrevendo as situações
nas quais os personagens se envolvem, interpretando todos os demais personagens da história que não são
controlados pelos demais jogadores e também exercendo o papel de juiz da partida, determinando,
esclarecendo e julgando a aplicação das regras. Os jogos de RPG são descritos em mais detalhes no
Capítulo 2.
2 A idéia do desenvolvimento de competências, contraposta à mera transmissão de conhecimentos é um
debate ainda em andamento dentro do campo da Educação. Adota-se, aqui, uma noção de competências
bastante particular e bem delimitada, que nasce do confronto das idéias de vários teóricos, dentre eles
Perrenoud, Delors Ramos, Martín-Barbero, entre outros, e que é alvo de discussão mais detalhada no
Capítulo 3.
1. Introdução 14
Figura 2: jogando com o conhecimento, brincando com textos e desenhos
Por lidarem com múltiplas linguagens e diferentes suportes
midiáticos, articulando referências variadas com criatividade e imaginação
e ainda devido ao caráter lúdico envolvido em sua prática, os jogos de
RPG oferecem aos educadores a oportunidade de se trabalhar, de uma
só vez, com um rol de diferentes competências lógicas, linguísticas, inter-
pessoais e cognitivas, além de afetivas e criativas. Integrados a um
projeto pedagógico, no âmbito do Ensino Fundamental e Médio, que
privilegia algo mais do que a preparação para o mundo do trabalho ou o
bom desempenho no exame vestibular, a prática dos jogos de RPG, ao
lado do teatro, da música, da dança, do vídeo e de outras linguagens e
meios de expressão artística e cultural podem servir como forma de
aproximar o ambiente da escola do mundo complexo, múltiplo e multi-
midiático no qual os jovens das grandes cidades se encontram imersos
em seu dia-a-dia.
A metodologia utilizada no trabalho de campo aqui relatado se apóia
tanto na observação de oficinas, quanto na análise dos artefatos
produzidos pelos alunos durante (e para) as sessões de jogo, sob a forma
de personagens, histórias, textos, desenhos, mapas, maquetes etc, além
da análise de fotografias, muitas delas tomadas pelos próprios alunos,
durante o trabalho nas oficinas.
1. Introdução 15
Figura 3: criando e recriando personagens e histórias
Os achados do campo sugerem uma grande potencialidade na
utilização dos jogos de RPG como um elemento disparador da utilização
(e possivelmente também do desenvolvimento) de diversas e variadas
competências por parte dos jogadores. Competências essas que podem
(e devem) estar a serviço de um projeto de escola e de mundo voltado
para a constituição de conhecimentos e valores que garantam não só o
sucesso individual mas (muito mais importante) a criação de uma cultura
de cooperação, autonomia, criatividade e de uma relação lúdica com a
escola, o conhecimento e a informação.
A motivação para este trabalho surgiu com a oportunidade de se
trabalhar com os jogos de RPG dentro do ambiente e da própria grade
curricular da escola analisada, integrando um projeto (já existente) no
qual, a partir da 5a série do Ensino Fundamental, os alunos participam de
diversas “oficinas de artes”3, abrangendo diferentes linguagens e
expressões estéticas, tais como o Teatro, a Dança, as Artes Plásticas, a
Música, a Produção em Vídeo, o Desenho Animado e (a partir do ano de
2005) também os jogos de RPG.
Prática de lazer conhecida e apreciada por crianças e jovens das
grandes cidades brasileiras desde o início da década de 1990, o RPG é
frequentemente apresentado como “uma atividade positiva que
desenvolve uma série de habilidades no campo da escrita, leitura,
3As oficinas foram realizadas com alunos de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental e com alunos das duas
séries iniciais do Ensino Médio. A organização e a dinâmica das oficinas e discutida no Capítulo 04.
1. Introdução 16
pesquisa, matemática e comportamento entre outras.” (BRAGA, 2000) ou
percebido por autores, jornalistas, pais e educadores como um possível
meio de se incentivar o hábito da leitura e da escrita em crianças e
jovens,. A suposta4 capacidade de desenvolver a criatividade e o
raciocínio, incentivar a leitura e a escrita e promover a integração social
entre os seus praticantes, que formam grupos coesos muitas vezes
integrados em verdadeiras redes sociais, por si só, já colocariam os jogos
de RPG numa intersecção direta com o campo da Educação, e não são
raras as experiências nas quais se vem buscando ou propondo a
utilização dos jogos de RPG dentro do ambiente educacional.
Figura 4: livros viram textos e desenhos
Além disso, ao longo dos últimos anos, diversos trabalhos
acadêmicos vêm sendo elaborados tendo como tema os jogos de RPG,
originados das áreas de pesquisa em Educação, Design, Letras,
Computação, entre outras, seja nos níveis da Graduação ou da Pós-
Graduação -- tanto no Mestrado como no Doutorado -- de forma que o
presente trabalho se insere numa discussão já em andamento, que se
apresenta de forma dinâmica e multi-disciplinar, através da publicação de
livros e artigos, da realização de encontros, simpósios e eventos dos mais
diversos além da existência de sites, fóruns e listas de discussão sobre
RPG na internet, muitos deles dedicados a discutir as possíveis relações
entre RPG e Educação.
4 Utilizo o termo “suposta” pelo fato desse discurso “a favor” do RPG ser construído, em grande parte,
pelos próprios jogadores, mestres, autores e editores que atuam no ramo, além de professores e educadores
que já se utilizam do RPG em sua prática. Esse “discurso construído” é muito bem analisado por Fairchild
(2004).
1. Introdução 17
Entretanto, apesar disso tudo, este ainda é um campo que, em
muitos aspectos, parece carente de uma maior consistência e rigor
científico em suas discussões. Como aponta FAIRCHILD (2004) este
discurso é construído em grande parte sob premissas originadas do
senso comum, influenciadas em alguma medida pelos interesses
pessoais dos autores/pesquisadores/editores e demais profissionais
envolvidos e que, portanto, ainda carecem em muitos casos de efetiva
comprovação empírica.
Desse modo, com o intuito claro de contribuir com este campo de
reflexões ainda em constituição, e contrapondo-se de imediato à
percepção de PAVÃO (1999) e de muitos outros autores, de que, ao
inserir-se o RPG no currículo das escolas, “ele seria escolarizado e
perderia seu caráter lúdico, sua espontaneidade e o prazer de produzir
histórias” (BRAGA, 2000), o presente trabalho documenta uma
experiência de aplicação dos jogos de RPG dentro do currículo de uma
escola, dentro do ambiente de sala de aula, mas promovendo essa
inserção através de uma metodologia de trabalho consistente com um
projeto pedagógico que, através da utilização dos jogos, visa contemplar
não apenas a transmissão de conteúdos, mas sim trabalhar a
multiplicidade de linguagens e expressões trazidas para a escola pelos
alunos, entendendo que o trabalho com múltiplas linguagens deve
considerar as formas próprias através das quais cada sujeito se apropria
e se utiliza destas linguagens de maneira articulada, considerando-se
ainda que a utilização de múltiplas linguagens na escola "favorece
múltiplas formas de ser, dizer e sentir, de expressar-se e de representar o
mundo à sua forma." (MULTIEDUCAÇÃO, 1996) e, mais, que este
trabalho deve abrir espaço para "as diferentes formas de entender, de
explicar, de interpretar e de simbolizar na sala de aula, através de gestos,
sinais, símbolos e signos e em diferentes situações de interlocução
possíveis." (idem)
1. Introdução 18
Figura 5: livros, dados, textos, desenhos, números...
Este trabalho, portanto, vem ao encontro de muitas discussões e
reflexões travadas atualmente sobre as potencialidades dos jogos de
RPG para o campo da Educação, mas acaba também indo de encontro a
muitas das suposições e crenças difundidas pelo que FAIRCHILD (op.cit.)
chama de "discurso da escolarização do RPG". A intenção aqui não é
polemizar, mas sim fazer avançar a discussão sobre as possíveis
relações entre o RPG e a escola. Mas também é vislumbrar algo mais
amplo do que isso, que é o modo pelo qual vem se dando a inserção, no
ambiente e nos espaços escolares, de práticas sociais e estéticas outras,
mais próprias das culturas infantis e juvenis contemporâneas, além de
refletir sobre as potencialidades que surgem a partir da utilização, pelos
professores e pela escola, de um leque de múltiplas linguagens, suportes
e expressões dentro de sua prática pedagógica -- o que acaba
envolvendo questões ainda mais amplas (apenas tangenciadas neste
trabalho), como a relação entre escola e sub-culturas juvenis urbanas; a
interação entre os campos da Mídia e da Educação; a apropriação, por
parte de crianças e jovens dos conteúdos e mensagens que circulam na
chamada “cultura de massa” e a inserção, no espaço e na cultura escolar,
dos novos modos de conhecer e de se expressar, especialmente através
do domínio crítico das novas tecnologias de informação, entretenimento e
comunicação, entre muitas outras.
Claro que não se pretende esgotar ou mesmo encampar todas
essas questões neste trabalho. Pretende-se, isso sim, discutir o RPG
dentro desse universo de práticas e produtos, de linguagens e suportes
1. Introdução 19
por meio dos quais as crianças e jovens das grandes cidades do Brasil (e
do mundo) vêm constituindo conhecimentos e valores, construindo suas
identidades e formando redes, lidando com o conhecimento, a informação
e a linguagem de forma lúdica e múltipla. Entender o RPG dentro do
multiverso das histórias em quadrinhos (sobretudo o mangá5, quadrinhos
japoneses), desenhos animados, cinema, moda, música, videogames,
DVDs (oficiais ou “alternativos”6), internet, telefones celulares etc. etc.etc.
Figura 6: mestre e jogadores em plena aventura
Este trabalho também é, em grande parte, fruto de uma experiência
pessoal de mais de 13 anos com os jogos de RPG, incluindo-se o
trabalho como autor e a realização de diversos cursos, palestras e
oficinas para professores e educadores, sobre o tema, além de uma
atuação como profissional e pesquisador, transitando no espaço
compreendido entre os campos da Mídia e da Educação.
Como autor de um dos primeiros RPGs publicados no Brasil (o
primeiro RPG a lidar com temas da cultura nacional), pude acompanhar
de perto o movimento de intensa aproximação entre o RPG e a Escola,
surgido seja a partir das demandas de professores e educadores,
interessados em utilizar os jogos de RPG num contexto pedagógico ou
por deliberados movimentos comerciais por parte das editoras
especializadas, que vislumbravam a oportunidade de adoção pelas
5 O estudo sobre os mangás e os animes (desenhos animados japoneses) têm motivado diversos trabalhos
interessantíssmos tanto no Brasil quanto em outros paìses. Recomenda-se inicialmente o trabalho de Sonia
Luyten, bastasnte esclarecedor acerca do universo dos quadrinhos japoneses, mas também os artigos de ITO
(2003) e SOUZA. e SALGADO (2004).
6 leia-se “piratas”...
1. Introdução 20
escolas de seus livros de RPG.
Além disso, ao longo desses 13 anos de atuação como autor7 de
livros de RPG, pude travar contato com muitos dos pesquisadores que se
dedicaram a estudar o RPG de forma mais consistente, tendo
acompanhado (com maior ou menor proximidade) muitos dos seus
trabalhos, seja como curioso, interessado ou até mesmo como
entrevistado em algumas de suas pesquisas (por conta do meu trabalho
como autor/profissional da área). Sendo uma espécie de “pioneiro” nesse
campo, e diante da crescente aproximação do RPG com o campo da
Educação, era natural que minha trajetória profissional me levasse a
tangenciar essas questões. Porém, esse interesse foi crescendo e se
tornou um movimento consciente, a partir da participação nos primeiros
Simpósios de RPG e Educação, realizados em São Paulo e da
apresentação de um trabalho no Simpósio Histórias Abertas, realizado na
PUC-Rio, em 2003.
Com o título de “Construindo Competências através da Imaginação
Criativa”, este primeiro artigo buscava uma aproximação entre as idéias
de Phillipe Perrenoud (especialmente seus estudos sobre a aplicação da
noção de competências dentro do campo da Educação) e a prática dos
jogos de RPG, articulando-as com alguns dos trabalhos acadêmicos
realizados sobre o RPG, levantando a possibilidade de se utilizar o RPG
na escola não para a mera transmissão dos conteúdos, mas com uma
visão mais ampla e mais profunda, que contemplasse as possibilidades
do desenvolvimento, pelos alunos, de competências e habilidades
trabalhadas naturalmente pelo RPG, por serem quase que “parte do jogo”.
7 Meus trabalhos nesta área incluem os livros “O Desafio dos Bandeirantes – Aventuras na Terra de Santa
Cruz” (1992), “Os Quilombos da Lua” (1994) e os títulos da sèrie mini GURPS,:“O Descobrimento do
Brasil” (1999), “Quilombo dos Palmares” (1999), Entradas e Bandeiras (2000), “No Coração dos Deuses”
(2000) e “As Cruzadas” (2002).
1. Introdução 21
Figura 7: comemoração!
Após a elaboração do artigo, recebi o convite para realizar oficinas
de RPG (que constituem o objeto de estudo deste trabalho) numa escola
particular da zona sul do Rio de Janeiro. As oficinas aconteceram de
março a novembro de 2005, o escopo desta pesquisa. Em maio deste
mesmo ano, um artigo inspirado pelas oficinas foi premiado no concurso
“Panorama do Ensino Médio”, realizado por uma universidade particular
do Rio de Janeiro, e publicado em livro8.
Enfocando somente o trabalho com a oficina de Ensino Médio, este
segundo artigo foi como que uma ampliação daquela discussão inicial a
respeito da relação entre o RPG e o desenvolvimento de competências,
realizando agora uma reflexão crítica sobre a própria noção de
competências aplicada à Educação e sobre os desafios que se colocam
diante do Ensino Médio.
Em grande medida, ambos os artigos formam a base teórica na qual
este trabalho está apoiado, e suas discussões serão retomadas mais à
frente, ao longo deste texto e mais especificamente no Capítulo 04.
Para a consecussão dos objetivos traçados, este trabalho se
estrutura da seguinte forma:
No Capítulo Dois são descritos a escola onde foram realizadas as
oficinas e o universo de crianças e jovens pesquisados, além da
8 O livro se chama “Panorama Atual do Ensino Médio: Virtudes, Problemas e Sugestões” e foi publicado
pela Editora Rio, em novembro de 2005.
1. Introdução 22
metodologia traçada para esta pesquisa.
No Capítulo Três discute-se alguns conceitos básicos sobre a
relação entre Ludicidade, Escola e o RPG, além de se trazer à luz vários
conceitos básicos sobre o jogo, além de se traçar um panorama do que
há de mais relevante para este trabalho dentro da produção teórica e
acadêmica que explora as múltiplas relações entre o RPG e a Educação.
No Capítulo Quatro trava-se uma importante discussão a respeito
da noção de competências aplicadas à Educação e é realizada uma breve
reflexão teórica que busca definir e delimitar conceitualmente a noção de
competências com a qual este trabalho opera, ou busca operar. Não
como dogma, mas como norte.
No Capítulo Cinco são descritas as oficinas realizadas na escola
pesquisada, separadas pelas quatro turmas analisadas. Neste momento
também se discutem as categorias de análise e os dados colhidos no
campo, além dos achados mais importantes.
No Capítulo Seis toda a discussão travada nos demais capítulos
leva a algumas Conclusões e a novos encaminhamentos para o futuro.
Os Apêndices trazem amostras dos trabalhos desenvolvidos pelos
alunos, a matéria-prima desta pesquisa., além de documentos,
formulários, cartas e tudo o mais que possa dar uma noção mais clara e
vívida do percurso de pesquisa seguido neste trabalho.
Figura 8: um jogo de crianças e livros...
2. Cenário e Personagens
Figura 9: brincadeira ou estudo?
A Educação foi o nosso caminho para mudar o mundo (...). Nós não pegamos em armas, nós criamos uma escola.
do site da escola PARAÍSO
2.1 A Escola
O local escolhido para a realização desta pesquisa foi uma escola
particular, localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro e que atende alunos
da Educação Infantil ao Ensino Médio. Caracterizada por um projeto
educacional bastante diferenciado, que se reconhece como sendo
influenciado pela experiência da escola inglesa Summerhill1, a escola
PARAÍSO2 integra um seleto grupo de escolas particulares cariocas que
poderiam ser consideradas como “de elite”3 e que reúne também diversas
escolas religiosas e colégios de aplicação.
1 criada em 1921, por A. S. Neill a escola Summerhill tornou-se mundialmente famosa nos anos 60, com a publicação de "Summerhill (A Liberdade sem Medo): Transformação na Teoria e na Prática", um livro que relata a experiência revolucionária de uma escola-comunidade gestionada democraticamente por crianças, jovens e adultos (diretor, professores e funcionários).
2 o nome é fictício
3 Em pesquisa da Revista Veja, em 2004, a PARAÍSO aparece entre as 5 melhores escolas do Rio de Janeiro.
2. Cenário e Personagens 24
Atualmente, a PARAÍSO conta com 3 sedes, localizadas nos bairros
de Botafogo e Laranjeiras, em casarões adaptados para abrigar salas de
aula e outras instalações da escola. As sedes são divididas de acordo
com os diversos segmentos/ciclos de escolaridade. Desse modo, numa
das casas funciona a Educação Infantil, em outra o Ensino Fundamental I
(pela manhã) e o Ensino Fundamental II (à tarde), enquanto a terceira
sede abriga o Ensino Médio (além de um projeto de Educação de Jovens
e Adultos, oriundos de comunidades populares circunvizinhas). A
PARAÍSO atende hoje mais de 600 alunos, oferecendo ainda a opção de
Horário Extensivo para crianças do Grupo 1 da Educação Infantil (a partir
de 2 anos) até a 4ª série do Ensino Fundamental.
Segundo LELIS (2005)4, existe uma percepção muito clara de que a
PARAÍSO se diferencia das demais escolas que atendem às camadas
médias na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ao falar sobre os pais dos seus
alunos, uma das suas entrevistadas comenta:
...comparando com a escola PARAÍSO, os pais
desse colégio não se caracterizam por serem da elite
intelectual; são pais que se caracterizam pela relação
custo-benefício (...) São pessoas mais individualistas e
competitivas. (...) São pessoas com menos
comprometimento social e político. (...) A grande maioria
não percebe a riqueza do trabalho que a escola realiza.
LELIS, 2005: p.11
Por contraste, será que poderíamos inferir que a imagem da
PARAÍSO é de uma escola que se propõe a atender os filhos da “elite
intelectual”, buscando formar pessoas solidárias e participativas e com
“grande comprometimento social e político”?
Aparentemente, essa visão reflete em grande parte o projeto
4 Na PUC-Rio, Isabel Lélis, juntamente com Zaia Brandão, vem se dedicando a estudar a escolarização das camadas médias.
2. Cenário e Personagens 25
pedagógico da PARAÍSO, descrito em detalhes no site da escola na
internet, do qual destaco o seguinte trecho:
Na PARAÍSO, privilegia-se, da Educação Infantil ao
Ensino Médio, o conhecimento crítico, ou seja, o
conhecimento sobre os processos históricos, culturais e
políticos que marcam as formas e os conteúdos do que se
apresentam como objetos do conhecimento, ao longo do
processo de escolaridade.
Também do site da escola na internet, retiro um trecho onde se
enumeram os princípios basilares do projeto pedagógico da PARAÍSO, e
que sintetizam, de forma bastante eficiente, muito da proposta
educacional que se pretende para a escola. Chamados de “Os Sete
Princípios”, eles são:
1. Conhecimento Significativo: Motivar o desejo de aprender sempre, estimular o gosto pelo conhecimento, a descoberta e a compreensão do mundo fornecendo critérios para a pesquisa e a busca de informações.
2. Convivência Social: Ensinar a respeitar limites e regras e a trabalhar conflitos para poder transformar, criar novas formas de convivência, propor novas bases para se relacionar com o outro e a coletividade.
3. Subjetividade Contemporânea: Interagir com o aluno como um ser inteiro, íntegro, constituído tanto pelo aspecto cognitivo quanto pelo afetivo e emocional, fortalecer sua auto-estima e oferecer-lhe a segurança de que precisa para construir sua subjetividade a partir de novos paradigmas.
4. Expressividade Múltipla: Propiciar a vivência e a experimentação de diferentes linguagens, artes plásticas, cinema, vídeo, teatro, visando ao auto-conhecimento, à auto-expressão, abrindo a possibilidade da emergência do novo.
5. Autonomia: Incentivar a autonomia para pensar, escolher, decidir, para não se deixar manipular, enganar quanto a seus propósitos e desejos.
6. Leitura Textual e Leitura de Mundo: Apresentar a diversidade de textos e suas múltiplas funções sociais com o objetivo de propiciar o desenvolvimento de aptidões relacionadas ao escrever e ao entendimento do mundo.
2. Cenário e Personagens 26
7. Participação Social: Estimular a participação em projetos, atividades, trabalhos voltados para o benefício do outro, levando a perceber a relevância da atuação de cada um no contexto social.
2.1.1 Organização em ciclos
Desde 1996, a PARAÍSO organizou sua escolaridade em ciclos,
definidos pela própria escola em seu site na internet como:
“períodos de 2, 3 ou 4 anos, definidos a partir da
observação das etapas do desenvolvimento sócio-
afetivo e cognitivo, que separam o longo período de
formação previsto pela escola, concretizando em
objetivos parciais as intenções educativas gerais”.
A idéia dos ciclos de aprendizagem, presente na obra de teóricos
como Wallon, e cujas experiências pioneiras surgiram na década de 60
em vários estados brasileiros, representa uma alteração radical na
organização escolar estruturada em séries, numa busca por combater,
entre outras coisas, também a evasão e a reprovação, que seriam a
expressão mais cruel do chamado fracasso escolar. A discussão sobre a
validade dessa nova organização da escolaridade mobilizou e mobiliza
muitos educadores e pensadores da área da Educação, com argumentos
contrários e favoráveis quase que na mesma quantidade. E no Brasil,
muitos sistemas públicos de ensino (entre eles o da cidade do Rio de
Janeiro), já adotam a organização por ciclos, pelo menos em algum nível.
A própria LDB (Lei no. 9394/96), a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação já indica a possibilidade de se organizar o Ensino Fundamental
em ciclos, o que (ainda segundo o site da escola PARAÍSO) :
“confere maior amplitude à visão do processo de aprendizagem,
possibilitando uma compreensão mais profunda da atuação pedagógica, a
avaliação processual e a análise adequada das condições de
conhecimento a serem oferecidas a cada etapa”.
2. Cenário e Personagens 27
Na PARAÍSO, a divisão em ciclos se organiza da seguinte forma:
CICLO I - Grupos 1, 2 , 3, 4, 5 e 6 - Educação Infantil CICLO II - 1ª e 2ª séries - Ensino Fundamental I CICLO III - 3ª e 4ª séries - Ensino Fundamental I CICLO IV - 5ª e 6ª séries - Ensino Fundamental II CICLO V - 7ª e 8ª séries - Ensino Fundamental II CICLO VI - 1º, 2º e 3º anos- Ensino Médio
Vale ressaltar que, para efeitos desta pesquisa, nos interessam
apenas os ciclos IV, V e VI, com os quais foram realizadas as oficinas de
RPG aqui estudadas.
2.1.2 Pedagogia por Projetos
A Pedagogia por Projetos está na base da organização didática da
PARAÍSO e seus fundamentos podem ser encontrados nas obras de
Celestin Freinet, no movimento da Escola Nova (especialmente John
Dewey) e, aqui no Brasil, a partir das idéias de Anísio Teixeira,
principalmente.
Para ESTEBAN (2003), como a Pedagogia de projetos “estimula a
introdução de atividades mais dinâmicas na relação ensino-
aprendizagem” (p.81), ela abre espaço no currículo das escolas para a
realização de atividades cooperativas, baseadas no diálogo, nas quais
professores e alunos interagem no processo de construção de
conhecimentos.
Se nos remetermos novamente aos “Sete Princípios” da PARAÍSO,
perceberemos facilmente a influência desses fundamentos da pedagogia
por projetos sobre os princípios escolhidos pela escola para orientar sua
proposta pedagógico.
2.1.3 Histórico da Instituição
Para que se torne mais fácil a compreensão das representações, do
discurso e dos pressupostos teóricos e ideológicos que norteiam a
2. Cenário e Personagens 28
proposta de trabalho da escola PARAÍSO, e que, em última instância,
criaram o ambiente onde as oficinas com os jogos de RPG -- objeto desta
pesquisa -- foram realizadas, talvez seja fundamental conhecer um pouco
mais a fundo a trajetória e o histórico dessa instituição de ensino, até
porque ambas parecem ocupar um lugar de grande destaque nos textos
que apresentam a escola em seu site na internet, e também no discurso
dos seus representantes, ouvidos durante eventos como a festa junina, as
mostras dos trabalhos das oficinas e outros, o que já sinaliza de imediato
o quanto este histórico é revelador das representações e da imagem que
a escola tem de si mesma e do mundo no qual está inserida.
Sem esquecermos que as instituições de ensino são “pessoas
jurídicas”, ou seja, são fruto de movimentos sociais e coletivos, também
devemos reconhecer o quanto elas são moldadas por sonhos, projetos,
idéias, intenções e sentimentos, todos bastante humanos, muitas vezes
até mesmo contraditórios.
A PARAÍSO foi fundada em 1969, iniciando suas atividades em
1970, com a Educação Infantil (crianças de 2 anos de idade), ampliando
seu trabalho nos anos seguintes com as classes de Fundamental I e
formando sua primeira oitava série em 1979. Concebida por estudantes
de Psicologia e professoras primárias da Rede Pública de Ensino, a
PARAÍSO nasceu do interesse pelas teorias psicológicas do
desenvolvimento afetivo e cognitivo, marcas desses tempos iniciais da
escola e representativas do pensamento pedagógico da época.
O site da escola na internet faz questão de conferir um viés político à
sua atuação, ressaltando que a escola foi criada em plena ditadura militar:
“O país vivia o AI-5, a tortura e a censura. Era
difícil falar, criar, discutir e mesmo pensar. Mas foi
também o tempo de grandes mudanças, trazidas por
movimentos de rebeldia, contestação e renovação.
Criar uma escola, naquele momento, era resistir, era
apostar no futuro.”
2. Cenário e Personagens 29
Dessa forma, A PARAÍSO parece querer reafirmar-se como “um
espaço de liberdade, participação e confiança nas possibilidades do
homem”. A esse respeito, alguns depoimentos colhidos pela escola em
comemoração aos seus 35 anos (e reproduzidos no site da escola) nos
interessam por serem bastante expressivos em captar e transmitir um
pouco das idéias e sentimentos por detrás da criação da PARAÍSO:5
"A necessidade de liberdade foi o elã que levou à
criação e que mantém a PARAÍSO até hoje. Essa
liberdade de criar uma nova linguagem, uma nova
abordagem. A idéia era fazer uma escola livre, onde as
crianças circulariam por um centro de interesses. A
abordagem era a da expressão. Era uma coisa nova,
mas a PARAÍSO se tornou uma das melhores escolas
e solidificou isso." (...)
"O momento social era opressivo. O movimento
estudantil (e nós éramos estudantes) puxava a
sociedade, era nele que estava localizado o maior
protesto. Nós estávamos imbuídos do espírito
revolucionário e de muita utopia." (...)
"A estrutura e o funcionamento da escola teve
inspiração em Sumerhill, na prática de fazer
assembléias com os alunos. Do método Montessori, a
gente aproveitou a experimentação.” (...)
A proposta da Escola Nova também estimulava a
experimentação e levava a gente a pensar desafios
sobre os quais a criança deveria criar em cima." (...)
5 O intuito aqui é o de “dar voz” à instituição, deixando que a mesma se expresse e se mostre “em suas
próprias palavras”. A idéia é mostrar o mais claramente possível como a escola PARAÍSO se enxerga, se
entende e se apresenta ao mundo. Entenda-se que isso não reflete a opinião ou as conclusões do
trabalho, sendo apenas o ponto de partida da pesquisa.
2. Cenário e Personagens 30
Além da influência das idéias da Escola Nova, e como a própria
escola propagandeia em seu site, a PARAÍSO se diz também influenciada
pela experiência da escola Summerhill6, na Inglaterra. Não cabe aqui nos
determos demais na descrição da escola Summerhill, até porque
Summerhill e a PARAÍSO são escolas bastante diferentes, mas fica
ressaltado aqui, uma vez mais, o fato da experiência de Summerhill ter
sido citada como inspiração inicial para a criação da PARAÍSO, o que
novamente é bastante revelador das concepções éticas, estéticas e
políticas que subsidiam as propostas pedagógicas da escola PARAÍSO.
2.1.4 O Projeto das Oficinas de Artes
Uma preocupação muito clara no dia-a-dia da escola PARAÍSO
parece ser demonstrar a importância dada às diferentes linguagens e
expressões artísticas. Ao lado de disciplinas como Língua Portuguesa ou
Matemática, os alunos também têm aulas de Artes (Artes Plásticas e
Comunicação Visual) e Música, desde os primeiros ciclos.
Porém, a partir do Ensino Fundamental II (5ª à 8ª séries, ou ciclos IV
e V) e também no Ensino Médio (ciclo VI), os alunos participam do
programa de Oficinas de Artes, que integram a grade curricular da escola,
não como atividades “extra-classe”, mas como disciplinas regulares.
São oferecidas aos alunos oficinas de Teatro, Música, Dança, Artes
Plásticas, Vídeo, Cinema de Animação e RPG (a partir de 2005).
Para os alunos de 5ª e 6ª séries, as oficinas são trimestrais e, no
decorrer das duas séries que compõem o ciclo IV, os alunos devem
passar por todas as oficinas. Essas são, portanto, oficinas introdutórias,
6 Criada nos anos 20 pelo escritor e professor A. S. Neil, a escola Summerhill buscava ser uma
comunidade totalmente democrática e libertária, onde alunos, professores, funcionários e diretores decidem
juntos, deliberando em assembléias sobre toda e qualquer matéria concernente à vida escolar.
2. Cenário e Personagens 31
de curta duração, que servem mais como uma apresentação às diferentes
linguagens e expressões.
Já para os alunos de 7ª e 8ª séries (ciclo V) e de Ensino Médio
(somente no 1º e 2º anos), as oficinas são anuais e a escolha de qual
oficina o aluno vai cursar é livre (mas a formação das turmas obedece
alguns critérios, que serão descritos mais adiante, quando se tratar mais
especificamente das oficinas, no Capítulo Quatro).
Figura 10: Uma das mostras Amiúde
Todas as oficinas ocupam dois tempos de aula semanais, sendo que
ao final do período letivo (trimestral ou anual) é realizada uma mostra de
trabalhos, que reúne pais, alunos e familiares. As mostras das oficinas
trimestrais são chamadas de “Amiúdes” e são mais modestas, enquanto
as mostras de fim de ano são eventos tradicionais no calendário da
escola, prestigiados e preparados com muito esmero.
2. Cenário e Personagens 32
2.2 Os Atores
Esta pesquisa foi realizada com a participação de 69 crianças e
jovens, todos alunos de escola PARAÍSO, que integravam diferentes
turmas, distribuídas entre a 5ª série do Ensino Fundamental e a 2ª série
do Ensino Médio.
Pela própria natureza da escola e da clientela que atende, esses
alunos podem ser considerados quase que na sua totalidade como
provenientes de famílias das camadas médias, com pais e familiares que
possuem alto grau de instrução e acesso a bens materiais e culturais
como filmes, livros, TV, computadores, internet, videogames, viagens,
cursos de língua, esportes etc.7 Vamos acompanhar, a seguir, uma
descrição mais detalhada do universo de crianças e jovens focalizados
por esta pesquisa.
2.2.1 Divisão por Idade
Distribuídos entre os 9 e os 17 anos, estes 69 alunos representavam
um universo bastante variado em termos de idade. No total, as oficinas
contaram com um aluno de 9 anos (1%), 6 alunos de 10 anos (9%), 14
alunos de 11 anos (20%), 8 alunos de 12 anos (19%), 13 alunos de 13
anos (19%), 11 alunos de 14 anos (16%), 8 alunos de 15 anos (12%), 3
alunos de 16 anos (4%) e finalmente 5 alunos de 17 anos (7%). No
gráfico 1 podemos ver a distribuição dos alunos por idade.
7 Parece seguro considerar o universo de alunos pesquisados aqui como sendo bastante similar ao das pesquisas sobre a escolarização das elites, realizadas na PUC-Rio por Zaia Brandão e Isabel Lélis, entre outros.
2. Cenário e Personagens 33
Divisão por idade
91%
109%
1120%
1212%13
19%
1416%
1512%
164%
177%
9
10
11
12
13
14
15
16
17
Gráfico 1 – Divisão por idade
2.2.2 Divisão por Sexo
No cômputo geral, houve um claro predomínio numérico dos
meninos (77%) em relação às meninas (23%), sendo que algumas turmas
estavam mais equilibradas do que outras neste sentido. Enquanto uma
das turmas contava com 15 meninos e apenas 1 menina (94% contra
6%), uma outra contava com 7 meninos e 5 meninas (58% contra 42%).
As duas turmas restantes contavam com 12 meninos e 3 meninas (80%
contra 20%) e com 19 meninos e 7 meninas, sendo esta última a que
mais se aproximou da proporção geral das oficinas (73% de meninos
contra 27% de meninas).
No gráfico 2 podemos ver a divisão geral por sexo.
Gráfico 2 – Divisão por sexo
Divisão por Sexo
meninos
77%
meninas
23%
meninos
meninas
2. Cenário e Personagens 34
2.2.3 Divisão por Série
Como as oficinas direcionadas à 5ª e à 6ª séries renovavam suas
turmas trimestralmente, enquanto as demais séries mantinham-se com
uma mesma turma ao longo de todo o ano letivo, e também devido aos
critérios de escolha dos alunos que integrariam cada turma (e que serão
explicados detalhadamente na descrição das oficinas, mais adiante)
houve uma maior concentração de alunos de determinadas séries em
detrimento de outras.
No total, as oficinas contaram com 13 alunos de 5ª série (19%), 18
alunos de 6ª série (26%), apenas 3 alunos de 7ª série (4%), 23 alunos de
8ª série (33%) e ainda com 6 alunos do 1º ano do Ensino Médio (9%) e
com também 6 alunos do 2º ano do Ensino Médio (9%).
No Gráfico 3 podemos ver a distribuição dos alunos por série:
Divisão por Série
5ª19%
6ª26%
7ª4%
8ª33%
EM 1º9%
EM 2º9%
5ª
6ª
7ª
8ª
EM 1º
EM 2º
Gráfico 3 – Divisão por série
2.2.4 Divisão por Oficina
Ao longo do ano, foram realizadas cinco oficinas, sendo 3 trimestrais
com alunos da 5ª e 6ª séries e duas anuais, uma para alunos de 7ª e 8ª
séries e outra para alunos do 1º e do 2º anos do Ensino Médio. Devido ao
cronograma traçado para a coleta de dados, e por julgar que estes dados
seriam redundantes, escolhi desprezar a terceira oficina de 5ª e 6ª séries
para efeitos desta pesquisa.
2. Cenário e Personagens 35
Dessa forma, este trabalho cobre 4 das 5 oficinas: duas oficinas
trimestrais de 5ª e 6ª séries (tratadas daqui por diante como 5601 e 5602),
uma oficina anual de 7ª e 8ª séries (tratada daqui por diante como 7801)
e por último uma oficina anual de 1º e 2º anos do Ensino Médio (tratada
daqui por diante como EM01).
A distribuição dos alunos pelas oficinas também variou muito. As
duas turmas trimestrais (5601 e 5602) contaram com 15 e 16 alunos
respectivamente (22% e 23% do total), enquanto a turma 7801 foi a mais
populosa, com 26 alunos (38% do total), em contraste com a EM01, que
contou com apenas 12 alunos (17% do total). Em média, tivemos
aproximadamente 17 (17,25) alunos por turma.
No Gráfico 4 podemos ver a distribuição dos alunos pelas oficinas.
Divisão por Oficina
560122%
560223%7801
38%
EM0117%
5601
5602
7801
EM01
Gráfico 4 – Divisão por oficina
2.2.5 A relação com o RPG
É necessário ainda descrever os alunos pesquisados em sua
relação com o objeto dessa pesquisa, ou seja, com os jogos de RPG.
Segundo o que foi declarado pelos próprios alunos no início das
oficinas, a grande maioria deles já conhecia os jogos de RPG, seja de
ouvir falar ou de já ter jogado uma ou duas vezes. Dos 69 alunos, 45 já
conheciam o RPG (65%), ao passo que para 24 alunos (35%) o RPG era
uma novidade. Porém, mesmo os que desconheciam o jogo já tinham
2. Cenário e Personagens 36
“ouvido falar” de RPG, sendo raros os casos de algum aluno que “nunca
tinha ouvido falar” desses jogos, o que pode sugerir tanto que o RPG
alcançou uma divulgação maior nos últimos anos e deixou de ser algo
desconhecido para a maioria das crianças e jovens ou que os jovens das
camadas médias têm mais acesso à informação sobre esse tipo de
atividade de lazer/cultural. Infelizmente não houve como apurar isso (e
nem era esse o intuito do trabalho...)
No entanto, nem todos os 45 alunos que já conheciam o RPG eram
praticantes desses jogos. Apenas 15 alunos (22% do total) costumavam
jogar RPG como atividade de lazer, geralmente com amigos e conhecidos
(“no meu prédio”, “no condomínio do meu pai”) ou com familiares (“com
meu tio”, “com meu irmão”).
Nos Gráficos 5 e 6 vemos todas essas informações.
Gráfico 5 – Conheciam RPG
Gráfico 6 – Jogavam RPG
Conheciam RPG
Sim 65%
Não
35% Sim
Jogavam RPG
Sim22%
Não 78%
SimNão
Não
2. Cenário e Personagens 37
2.2.6 Casos Especiais
Pelo fato de ser uma escola inclusiva8, a PARAÍSO atende famílias e
alunos portadores de necessidades especiais. As oficinas de RPG
focalizadas neste trabalho, contaram com a presença de alunos com
necessidades especiais ou distúrbios de aprendizagem, o que tornou a
pesquisa potencialmente muito mais interessante.
Mesmo não sendo um dos meus objetivos mergulhar a fundo no
campo da Educação Especial e de suas relações com os jogos de RPG,
uma seara que mereceria tempo e dedicação muito além do escopo desta
pesquisa, a presença destes alunos dirigiu o trabalho no sentido abarcar
também minimamente este universo de estudos, até porque esta foi uma
rara oportunidade de se observar a relação de alunos com necessidades
especiais e a prática do RPG, o que, até onde se apurou, foi assunto
tratado apenas por KLIMICK (2003), em sua pesquisa sobre o uso do
RPG na educação de alunos surdos.
Durante as oficinas realizadas na PARAÍSO, surgiu a oportunidade
de trabalhar com o RPG junto a alunos autistas, portadores de dislexia e
cadeirantes (portadores de paralisia cerebral)9 e também alguns alunos
com variados distúrbios de aprendizagem.
No total, as oficinas de RPG contaram com 07 alunos com
necessidades educativas especiais ou distúrbios de aprendizagem, o que
representa pouco mais de 10% do número de alunos, um percentual
pequeno mas ainda assim expressivo, já que, em média, 10% da
8 “Por educação inclusiva se entende o processo de inclusão dos portadores de necessidades especiais ou de distúrbios de aprendizagem na rede comum de ensino em todos os seus graus.(...) Na escola inclusiva o processo educativo é entendido como um processo social, onde todas as crianças portadoras de necessidades especiais e de distúrbios de aprendizagem têm o direito à escolarização o mais próximo possível do normal. O alvo a ser alcançado é a integração da criança portadora de deficiência na comunidade.”
MRECH, L. M. O que é Educação Inclusiva? http://www.inclusao.com.br/projeto_textos_23.htm (acesso em 03/2005)
9 Os diagnósticos baseiam-se em informações recebidas de outros professores, funcionários da escola, além da declaração de alguns dos próprios alunos.
2. Cenário e Personagens 38
população mundial e 14,5% da população brasileira10, possuem algum
tipo de necessidade especial.
Nas oficinas focalizadas neste trabalho, havia 02 alunos com
necessidades especiais na turma 5601 (29%), 01 aluno na turma 5602
(14%), 03 alunos na turma 7801 (43%) e 01 aluno na turma EM01 (14%).
2.3 As Regras do Jogo: A Metodologia da Pesquisa
No caso da pesquisa aqui relatada, o trabalho de campo
apresentava alguns grandes desafios. O primeiro deles era o de garantir o
rigor diante da proximidade e da familiaridade do pesquisador com o
objeto da pesquisa.
Como seria possível garantir que aquilo que estava sendo visto
estava mesmo ali diante dos olhos, e não era apenas um mero reflexo de
experiências passadas, como as miragens de outras paisagens já vistas
ao longo da estrada mas que se fixam na retina dos olhos cansados,
ofuscando a visão durante um tempo?
Como saber se o que se ouvia era realmente aquilo que se dizia e
não aquilo que se queria ouvir, aquilo que já se esperava ouvir, como o
eco de nossa própria voz, ouvida no interior de uma enorme caverna
diante das sombras lançadas nas paredes pela luz da fogueira?
Como garantir que os papéis de professor, autor, jogador e mestre
de RPG não se misturassem ao personagem do pesquisador, na hora
deste último entrar em cena e partir na aventura da pesquisa?
Como aproximar o meu olhar e a minha atenção o máximo possível
do que seria a real expressão da voz das crianças e jovens pesquisados,
sem com isso comprometer o vínculo que deveria existir entre professor e
alunos e entre mestre do jogo e jogadores de RPG?
10 segundo os dados estatísticos da ONU e o censo 2000 do IBGE
2. Cenário e Personagens 39
Ou, de modo sintético, como seria possível impedir que a pesquisa
interferisse no desenrolar do jogo e vice-versa?
Para atacar todas essas questões de uma só vez, seria preciso
traçar uma estratégia metodológica própria e única, tendo sempre em
vista os objetivos principais do trabalho.
A primeira decisão importante foi a de se construir uma proposta de
trabalho que, inserida no domínio da pesquisa qualitativa, pudesse se
caracterizar como um tipo de estudo que me permitisse “compreender a
trama intrincada do que ocorre numa situação microssocial” (Lüdke e
André, 1986, p.7), segundo “uma nova atitude de pesquisa, que coloca o
pesquisador no meio da cena investigada, participando dela e tomando
partido na trama da peça.” (idem) Entendendo, a partir de Bogdan e
Biklen (1982, apud Lüdke e André, op.cit.), que a pesquisa qualitativa
caracteriza-se pela “obtenção de dados descritivos, no contato direto do
pesquisador com a situação estudada, enfatizando mais o processo do
que o produto e se preocupando em retratar a perspectiva dos
participantes” (p.13)
Pela própria natureza incomum do trabalho focalizado nessa
pesquisa (a utilização da prática dos jogos de RPG como uma disciplina
dentro do currículo escolar), decidi que o mais correto seria construir uma
proposta de pesquisa dentro do modelo dos Estudos de Caso, indicados
exatamente quando “queremos estudar algo singular, que tenha um valor
em si mesmo” (Lüdke e André, op. cit., p.17).
Dentro dessa concepção, e compreendendo que o estudo de caso
se fundamenta na idéia do conhecimento como algo que não está
acabado, mas que se encontra em constante construção, que precisa
levar em conta o contexto no qual o objeto se situa, com a intenção de
revelar a multiplicidade de dimensões de um determinado problema,
utilizando uma variedade de fontes de informação, apresentando os
dados de modo a permitir generalizações naturalísticas a partir do
confronto dos dados da pesquisa com as experiências próprias dos
2. Cenário e Personagens 40
leitores, abrindo ainda espaço para que os diferentes pontos de vista
presentes possam se manifestar e, por fim, utilizando-se de uma forma
narrativa ricamente ilustrada e acessível quando da apresentação dos
resultados, procurei traçar as linhas mestras da minha estratégia
metodológica.
O primeiro passo foi trabalhar primordialmente dentro do espaço das
próprias oficinas, concebidas aqui como grupos operativos11,
documentando-as o máximo possível através da observação participante,
apoiada em relatórios de campo e em registros visuais, por meio de
fotografias, muitas delas tomadas pelos próprios alunos com o intuito de
serem exibidas nas mostras dos trabalhos, realizadas ao fim de cada
período letivo.
A difícil decisão de não me utilizar de registros em vídeo ou
gravações de áudio veio da experiência com os jogos de RPG e da
percepção de que essas técnicas de registro não são capazes de captar
as sutilezas presentes na interação criativa e intensa entre os
participantes de uma partida de RPG, além do fato desses equipamentos
se apresentarem como elementos invasivos dentro do espaço das
oficinas. É preciso ressaltar que, quando chegou a hora de me utilizar da
máquina fotográfica dentro do contexto de sala de aula, tomei antes o
cuidado de apresentá-la como uma parte integrante da oficina, dizendo
aos alunos que muitas das fotos poderiam ser apresentadas nas mostras
de encerramento dos trabalhos. Com isso, as turmas não se sentiram
invadidas ou ameaçadas por aquele elemento externo, na medida em que
ele se tornou parte do trabalho.
A partir dessas concepções, procurei centrar meu olhar naquilo que
acontece entre os jogadores dentro das (e durante as) rodas de jogo,
11 Pichon RIVIÈRE (1998) define o grupo operativo como um conjunto de pessoas com um objetivo em comum. Para ele, o grupo operativo consiste em uma técnica de trabalho coletivo, cujo objetivo é promover um processo de aprendizagem. Nos grupos operativos, os integrantes precisam realizar um trabalho ou tarefa a fim de alcançarem um objetivo em comum, acionando esquemas mentais que organizam os processos de pensamento, comunicação e ação que se instalam entre os membros do grupo. Trabalhando na dialética ensino-aprendizagem, o grupo operativo permite um nível de interação entre as pessoas no qual elas tanto aprendem quanto tornam-se sujeitos do saber.
2. Cenário e Personagens 41
participando delas como mestre, apoiando-me em minha experiência
anterior com os jogos de RPG, mas também (e sobretudo) na análise
daqueles textos e materiais produzidos pelos próprios alunos para (e
durante) as sessões de jogo, seja através de fichas de personagens,
textos descritivos, desenhos, mapas, pesquisas de imagens, maquetes e
até mesmo em sua participação nas mostras dos trabalhos, realizadas ao
final dos períodos letivos.
Outra decisão difícil foi a de prescindir do recurso de entrevistas com
os alunos e com os demais representantes da comunidade escolar, por
entender que o foco do meu olhar não deveria estar dirigido àquilo que os
alunos queriam dizer, mas sim no que diziam sem querer.
Uma rápida passagem por diversos textos que problematizam essas
questões dentro do universo da pesquisa em Educação apontou
claramente que qualquer trabalho nesse campo levado a cabo com
crianças possui características próprias, que devem ser observadas.
Piaget é um dos mais célebres defensores da idéia de que dever-se-
ia ouvir as crianças, numa atitude diante da metodologia que, mais
recentemente, vem ganhando força em campos como o da Sociologia da
Infância, por exemplo, com sua percepção clara de que torna-se cada vez
mais necessário “dar voz” às crianças e aos jovens pesquisados. Mas
será que, no caso específico desta pesquisa, por todas as suas
peculiaridades, isso se daria de forma mais espontânea e “verdadeira” por
meio do uso das entrevistas? Ou será que as entrevistas não acabariam
criariando a possibilidade de um “outro discurso”, um “discurso falacioso”,
nas palavras de Jodelet (2001)?
Sarmento (2003) é um dos autores que defende esse ponto de vista,
considerando que, no trabalho com crianças, as entrevistas formais não
seriam as mais indicadas, devendo o pesquisador, ao contrário, dar mais
atenção à coleta de informação decorrente da observação e da análise do
que ele chama de "documentos reais", ou seja, de materiais produzidos
com uma determinada finalidade, além das conversas informais, pelas
2. Cenário e Personagens 42
quais perpassa o que este autor chama de "uma voz autónoma e livre, tão
difícil de captar na forma estruturada da entrevista formal." (SARMENTO,
2003: p. 163)
Além disso, por mais que fosse buscado um distanciamento entre os
papéis de professor, mestre de jogo e pesquisador, essa interseção de
personagens fatalmente enviesaria as respostas, seja dos alunos ou dos
demais professores, funcionários ou diretores da escola, além dos
próprios familiares dos alunos.
Por isso, ainda que com certo receio, também no caso dos
informantes adultos, optei por buscar somente o que se caracterizasse
como a “fala espontânea”, o discurso não-provocado, não-instigado e
sobre o qual não recaíssem as expectativas e representações que
poderiam mascarar as respostas, pintando quadros com as cores que o
informante achasse mais interessante ao pesquisador.
Desse modo, decidi buscar essa “fala espontânea” naqueles textos
nos quais a escola, enquanto instituição, expõe-se ao público em geral,
por meio de documentos, textos retirados do site da escola na internet e
demais materiais impressos, que inevitavelmente carregam toda sorte de
representações e imagens de como a escola estudada se enxerga, se
compreende e se apresenta perante a comunidade e o mundo. Algo que
me parecia muito mais rico e verdadeiro, legítimo e fiel do que qualquer
entrevista que o professor/mestre de jogo/pai de alunos/pesquisador
pudesse realizar com integrantes da comunidade pesquisada.
No fim das contas, acredito que essa pequena “análise documental”
tenha sido muito proveitosa para a minha compreensão do histórico e da
trajetória da instituição, do perfil das famílias e dos alunos que ela atende
e, sobretudo de como a escola estudada “se vê”. E isso também
possibilitou uma visão de conjunto, uma visão “macro”, que, contraposta à
visão “micro”, nascida da interação em sala de aula entre professor e
alunos, entre mestre do jogo e jogadores e entre pesquisador e objeto, foi
bastante enriquecedora para o trabalho como um todo.
2. Cenário e Personagens 43
Mais tarde, os dados colhidos durante as oficinas foram analisados
em dois momentos distintos. O primeiro deles consistiu na tabulação dos
dados quantitativos em planilhas eletrônicas (com a utilização do software
Microsfot Xcell), para melhor caratcterizar o universo de alunos,
explictando algumas diferenças e aproximações.
Num segundo momento, os gráficos gerados a partir dessas
planilhas (e que ilustram este capítulo) serviram como apoio para a
interpretação dos demais dados, colhidos nos relatórios de observação,
nas fotos e nos materiais produzidos pelos alunos, como desenhos,
textos, maquetes, além da própria mostra dos trabalhos.
Como costumeiramente acontece nesse modo de investigação, a
análise desse material foi feita através do método indutivo, com as
categorias e hipóteses nascendo do confronto das teorias e estudos
prévios com os achados e indicações que emergiram do próprio campo,
da própria natureza singular do fenômeno estudado, num movimento de
ida e vinda, ou de espiral, onde nem a teoria e nem a empiria assumem a
prevalência, mas, pelo contrário, dialogam e se fecundam mutuamente.
Sem partir da teoria para a empiria e nem o oposto, mas buscando o
diálogo constante entre esses dois momentos da pesquisa, fui pouco a
pouco juntando os achados, comparando-os, procurando entendê-los
tanto no contexto do campo quanto em contraponto com outros trabalhos
e reflexões já elaboradas tendo como objeto a interação dos jogos de
RPG com o campo da Educação.
3. RPG, Ludicidade e Escola
Na brincadeira, temos uma licença para explorar a nós mesmos e a nossa sociedade. Na brincadeira, investigamos a cultura mas também a criamos.
SILVERSTONE, 2002: pp.124-125
A reflexão sobre o papel da ludicidade e do jogo na experiência
humana perpassa muitos campos de estudo, desde a Filosofia à
Psicologia, passando pela Semiótica, a Sociologia etc. Nomes como
Piaget, Vygotsky, Winnicott, Huizinga e muitos outros construíram a base
do que se discute hoje em relação ao papel do brinquedo e do jogo dentro
do universo da Educação, uma discussão que já figura com destaque
(inclusive) nas propostas governamentais de Ensino, como é o caso dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e do Multieducação (1996), o
Núcleo Curricular Básico da Secretaria Municipal de Educação do Rio de
Janeiro, do qual destaco o seguinte trecho:
"Jogo, sonho, fantasia sempre estiveram
associados a coisas pouco sérias ou sem importância.
Nossa sociedade insiste na divisão em dois mundos
opostos onde, de um lado, estariam a brincadeira, os
sonhos, a imaginação e, de outro, o mundo sério da
razão, do trabalho.(...) Esta idéia justifica o descaso,
tão freqüente na cultura adulta, pelo ato de brincar, não
levando em conta que adulto também brinca. (...)
Podemos afirmar que, independente das diferenças
individuais, todo adulto precisa de brincadeira e de
alguma forma de jogo para viver. (...) Por outro lado, o
jogo e a brincadeira não devem ser entendidos apenas
como situações em que se envolvam as crianças
menores. Qualquer aula se torna mais interessante,
3. RPG, Ludicidade e Escola
45
quando se conhece através do jogo, quando se reúnem
jogo e trabalho."
(Multieducação, cap. 6)
Huizinga, em seu livro “Homo Ludens” (1999), uma referência quase
obrigatória no estudo da ludicidade e dos jogos, propõe que “a cultura
surge sob a forma de jogo”, e é por meio dele que “a sociedade exprime
sua interpretação da vida e do mundo” (p.59). Para este autor, o jogo é
um elemento básico na constituição da cultura humana, que, em seu
nascedouro, seria dotada de “um caráter lúdico, que ela processa
segundo as formas e no ambiente do jogo” (idem).
Para Huizinga, portanto, jogo e cultura são duas faces de uma
mesma moeda. Buscando caracterizar melhor o que chama de jogo,
Huizinga delimita suas características formais, definindo o jogo como:
“uma atividade livre, consciente, tomada como
‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo
tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa
e total.” (p.16)
Para ele, o jogo ainda se caracteriza por não estar ligado a nenhum
interesse material imediato e por ser praticado dentro de limites espaciais
e temporais próprios, segundo ordens e regras bem estabelecidas.
Criticando Huizinga, Roger Caillois também caracteriza o jogo como
uma atividade livre, delimitada (espacial e temporalmente), incerta,
improdutiva, regulamentada e fictícia. Todavia, em seu livro “Os jogos e
os homens” (1990), ele estuda o jogo segundo quatro princípios básicos:
agôn, alea, ilinx, mímica.
Para Caillois, o primeiro princípio (agôn) caracteriza os jogos
competitivos (lutas, disputas e confrontos). Alea, o segundo princípio,
designa os jogos aleatórios, dependentes da sorte, nos quais existe um
contexto externo que conduz o jogo (como nos jogos de cartas, dados
etc.). Mímica (o terceiro princípio) englobaria os jogos imaginários, de
3. RPG, Ludicidade e Escola
46
fantasia, faz-de-conta, simulação e imitação. E por último, o quarto
princípio, Ilinx, compreende os jogos corporais vertiginosos, cujo objetivo
é provocar a instabilidade da percepção, brincando com o desequilíbrio, a
vertigem, a tontura, a velocidade etc.
Além desses princípios, Caillois ainda nos fala de mais duas
categorias importantes, sempre em tensão entre si e com os quatro
princípios: paideía (a brincadeira livre e descompromissada) e ludus (o
limite, as regras).
Vale destacar que, para Caillois, essas não são categorias
excludentes, já que os jogos geralmente se encaixariam em mais de uma
delas. No caso dos jogos de RPG, então, poderíamos dizer que estamos
lidando com um jogo de ludus, alea e mímica, por exemplo.
Ao se reportar a essas caracterizações propostas por Caillois e
Huizinga, PEREIRA (2005) vai falar de um dito “estado de brinquedo”, que
caracteriza a atitude dos participantes dos jogos durante sua execução, e
que, além de englobar as características de “atividade voluntária,
delimitada no espaço e no tempo, incerta, improdutiva, com regras
acordadas e imbuídas de conteúdo fictício (ou imaginário)” (p. 20) teria
também outras características próprias, como a intencionalidade (o
sentido que o jogador dá ao jogo), a significação (perceptível nas ações
dos jogadores em seus gestos, falas ou nas relações estabelecidas
durante o jogo), a consciência (o “saber-se jogando”, que ondularia num
contínuo “entrar” e “sair” do jogo) e o rito (o encadeamento de gestos e
ações que caracterizam o “estado de brinquedo”).
3.1 Jogo ou Brincadeira?
A dificuldade que encontram alguns pesquisadores (como KLIMICK,
por exemplo) em definir o RPG como jogo ou brincadeira nos remete à
própria análise desses dois conceitos seja na Sociologia, História,
Filosofia, Psicologia ou na Educação.
3. RPG, Ludicidade e Escola
47
No campo da História, Huizinga aponta o jogo como elemento
fundante da cultura, o que é criticado por autores como Brougère, que
estuda as relações entre o brinquedo e a cultura contemporânea e
também entre o jogo e a Educação ao longo dos tempos. Ariès (1981), em
seu trabalho amplamente conhecido sobre o desenvolvimento do conceito
de infância no decurso da História do ocidente, vai mostrar como o jogo
foi um importante fator de coesão na sociedade medieval, apontando a
crescente diminuição do lúdico na vida adulta, dividida mais
contemporaneamente entre os universos do trabalho, da vida doméstica,
da mídia etc. Mas será que, a partir da leitura de Silverstone (2002),
poderíamos nos arriscar a dizer que nesse mundo moderno tardio (ou até
pós-moderno) o universo do lúdico vem ficando cada vez mais circunscrito
ou mediado pela nossa relação com a Mídia e as novas tecnologias, seja
na transmissão de eventos esportivos, nos programas no estilo “Reality-
show”, ou cada vez mais por meio da interatividade, do hipertexto ou do
“roleplaying” (interpretação de personagens) caracterísitcas básicas da
Internet, dos videogames, dos chats, blogs e orkuts da vida?
Avançando um pouco mais, lembraríamos de Barthes ou Benjamin,
por exemplo, que vão trazer importantes reflexões sobre as mensagens
que o brinquedo transmite enquanto objeto e do lugar do brinquedo, do
jogo e da brincadeira na modernidade. Adorno e Horkheimer, por outro
lado, vão estudar o brinquedo e os jogos a partir do seu papel dentro da
indústria cultural, que seria o de promover a submissão através da
subversão “instituicionalizada”, limitada e contida, pelo fato dos jogos da
cultura de massa nos privarem do senso crítico, representando uma fuga,
não da realidade que nos oprime, mas antes de nossa própria capacidade
de questionar e resistir a essa opressão.
Indo mais adiante, poderíamos nos remeter ainda às visões sobre
brinquedo e jogo do ponto de vista da Psicologia e da Psicanálise, seja
com Freud, Winnicott, Piaget ou Vygotsky.
Segundo a Psicanálise, tanto desejos insatisfeitos quanto
experiências dolorosas ou traumáticas, medos e angústias podem surgir,
3. RPG, Ludicidade e Escola
48
de forma simbólica, por meio das brincadeiras e dos jogos. Freud, em seu
famoso relato sobre o bebê brincando com o carretel, postula que o
brinquedo (ou o jogo) permite à criança lidar com a realidade da dor ou da
perda, favorecendo seu desenvolvimento psíquico. Mais tarde, tanto Anna
Freud quanto Melanie Klein inauguram práticas psicológicas mediadas
pelo brincar, a partir da Psicanálise, seja na área educativa ou clínica.
Mas é Winnicott quem vai trazer uma dimensão bem mais
interessante a este trabalho, quando aproxima o jogo e a cultura e coloca
o brincar no centro da sua psicologia infantil. Para ele, a partir do
momento em que o bebê começa a se individualizar, “separando-se” da
mãe, cria-se aí uma zona intermediária, a chamada zona “potencial” ou
“transacional”, fronteira entre o mundo subjetivo e a realidade objetiva, e
que não é um espaço vazio, mas sim preenchido de diferentes maneiras
ao longo do tempo, primeiro pelos objetos transacionais, depois pelo jogo
e, mais tarde, pelas experiências culturais, definidas pelo próprio
Winnicott como: “algo que pertence ao fundo comum da humanidade,
para o qual indivíduos e grupos podem contribuir e do qual todos nós
podemos fruir (p. 138)”.
Assim, esta dimensão intermediária entre o subjetivo e o objetivo
ajudaria o homem a separar essas duas esferas. E, mais ainda, Winnicott
vai enxergar a brincadeira e o jogo como uma forma de comunicação, e,
portanto, de grande importância tanto na psicoterapia quanto na
Educação. Através da brincadeira, a criança se torna adulto e o adulto
criança, os limites se esgarçam, se comprimem, as experiências com o
novo, o diferente, o diverso tornam-se possíveis. Durante o jogo, a vida
“real” é abandonada, através do princípio da “suspensão da descrença”,
mas o jogo continua inscrito no mundo, ainda que numa zona “livre”. Por
isso, tudo o que se vive, se aprende, se descobre ou se constrói durante o
jogo ou a brincadeira sobrevive ao momento de sua experiência. Ou seja,
nunca se volta ao mundo “normal” sem que se traga alguma bagagem da
“jornada” empreendida. A brincadeira é fuga, mas também é encontro,
conexão.
3. RPG, Ludicidade e Escola
49
Desse modo, por ser um dos processos por meio dos quais
estabelecem-se as relações afetivas ao longo do desenvolvimento
psíquico do indivíduo, o brincar deveria manter este mesmo caráter de
afetividade e segurança, pois, para brincar precisamos nos sentir seguros
e relaxados, sendo ainda necessário, em situações educativas, que se
preserve o caráter criativo da brincadeira, sendo fundamental que a
participação do adulto (dinamizador, mestre, professor) não represente
uma imposição sobre o brincar da criança, que deve ser sempre livre e
espontâneo.
Dentro das teorias construtivistas, a partir, especialmente, dos
trabalhos de Piaget, também existe um espaço importante dedicado ao
jogo e à brincadeira. Piaget propõe a existência de quatro estágios no
desenvolvimento psíquico: o estágio sensório-motor (0 a 2 anos), o
estágio pré-operatório (2 a 6 anos), o estágio das operações concretas (7
a 11 anos) e o estágio das operações formais (a partir dos 12 anos) e
entende que o jogo acompanha este desenvolvimento, percorrendo três
fases distintas, que seriam a passagem do Exercício para o Símbolo e,
mais tarde, deste para as Regras, o que o próprio Piaget aponta como:
“as três fases sucessivas que caracterizam as
grandes classes de jogos, do ponto de vista de suas
estruturas mentais (1971: apud Pereira, 2005).
Assim sendo, segundo esta concepção, seria condenável para o
educador adotar uma conduta intrusiva e desorganizadora do jogo infantil,
devendo-se, isso sim, investir no jogo compartilhado, respeitando a
capacidade das crianças de tomarem suas decisões e iniciativas, já que a
educação teria como objetivo sempre a constituição da autonomia,
inclusive no brincar.
Para a Psicologia histórico-cultural (especialmente no pensamento
de Leontiev e Vygotsky), a bricadeira se origina da contradição entre o
“querer ser” e o “não poder ser” como os adultos. E seria através da
interação com o outro, em situações sociais concretas, mediadas pela
3. RPG, Ludicidade e Escola
50
linguagem, que as funções psíquicas como a memória, a percepção e a
atenção estariam sendo constituídas e desenvolvidas. Nessa concepção
da construção das funções superiores (pensamento, linguagem,
criatividade e imaginação), o brincar impulsionaria vários processos
psicológicos relevantes no sentido da formação de competências
importantes para as crianças.
Através do brincar, a criança substitui um objeto pelo outro e,
através desse exercício imaginário, explora suas possibilidades e
descobre suas funções. É através do faz-de-conta e da interpretação de
papéis (ou “role-playing” ?) que a criança experimenta esse sentimento de
alteridade, colocando-se no lugar do outro, para definir-se a si mesma.
Nesse processo, ela acaba trazendo para o momento do jogo aquilo
que já conhece e experimenta, o que ainda não pode ser, o que é
socialmente vedado ou o que deseja tornar-se. E dessa forma, a
brincadeira cria novas possibilidades para a criança compreender e
explorar o universo de relações sociais que a cerca, dando origem a uma
“zona de desenvolvimento proximal”, que Vygotsky define como a
distância entre o nível de desenvolvimento real (aquilo que a criança é
capaz de realizar sozinha) e o nível de desenvolvimento potencial
(aquilo que ela é capaz de realizar com apoio externo, como a ajuda de
um companheiro mais experiente, ou “par mais capaz”).
Vygotsky diferencia ainda o “jogo com regras” da “brincadeira de faz-
de-conta” (a mesma tensão entre ludus e paideía, de Caillois?), pois num,
as regras predominam sobre o imaginário, delimitando e comandando as
ações dos jogadores, e, na outra, ocorre o inverso, com o imaginário
comandando as ações diante de algumas regras simples.
Para Vygotsky, tanto a brincadeira (faz-de-conta) quanto o jogo (com
regras) se caracterizam por um estado de abstração, de suspensão da
realidade concreta, pela instauração de uma nova realidade: a realidade
“do jogo”, uma realidade distinta e delimitada no tempo e no espaço, e
além disso, ambos (brincadeira e jogo) favoreceriam o desenvolvimento
3. RPG, Ludicidade e Escola
51
da noção do auto-controle e da disciplina, pois, para os jogadores, a
fruição do jogo depende da obediência e da observância estrita às regras,
já que o desejo de participar da brincadeira ou do jogo se sobrepõe ao
desejo de burlar as regras em proveito próprio.
Vygotsky aponta ainda que a brincadeira não é imaginação pura,
mas sim “memória em ação”. Para ele, é somente na adolescência que a
imaginação, em conjunto com a abstração, é capaz de ser
verdadeiramente criadora e original, aproximando intelecto e imaginação.
A imaginação do adolescente, para ele, não se apóia mais em objetos
reais e concretos, mas em imagens, representações visuais e simbólicas.
Finalmente, para este trabalho, interessa sobretudo ressaltar o
caráter voluntário da brincadeira, do jogo... do lúdico, enfim. Afinal, todo
jogo, toda brincadeira nasce a partir de uma vontade. “Ninguém brinca por
obrigação”, resume Pereira (2005, p. 21). E devemos guardar bem essa
idéia ao pensarmos na utilização de jogos como o RPG (bem como outras
práticas lúdicas) dentro do ambiente escolar.
3.2 RPG e Educação
Este trabalho se insere num campo de discussões em plena
constituição, onde se ampliam e se aprofundam cada vez mais as
reflexões sobre o potencial, as formas e os possíveis reflexos da
utilização dos jogos de RPG dentro do campo da Educação, seja dentro
das salas de aula, dos espaços e tempos escolares (como atividade extra-
classe) ou mesmo em empresas ou outros ambientes e momentos de
aprendizado, seja em sua modalidade “de mesa” (com livros, papéis e
dados) ou na versão eletrônica (os chamados RPG “de computador”).
Porém, para melhor situarmos a discussão dentro deste campo de
reflexão em pleno crescimento, precisamos primeiro definir e discutir
alguns conceitos básicos sobre o RPG.
A primeira pergunta, obviamente, é “O Que é RPG?”
3. RPG, Ludicidade e Escola
52
3.2.1 O Que é RPG?
RPG, Role-Playing Game, ou "Jogo de Interpretação" (numa
tradução bastante literal) pode ser descrito como
“um jogo de criar e contar histórias, no qual cada
ouvinte faz o papel de um personagem. O narrador
desta história (chamado de Mestre do Jogo) descreve
as situações, mas são os ouvintes que decidem o que
seus personagens vão fazer” (RICON, 1999, p.6).
Bastante popular entre crianças e jovens dos grandes centros
urbanos, e de forma semelhante aos desenhos animados japoneses, aos
videogames e jogos de computador ou aos jogos de cards colecionáveis,
o RPG possui fãs bastante atuantes, muitos dos quais participam de
fóruns e listas de discussão na Internet, criam e editam fanzines, netbooks
(livros em formato digital), sites e portais, transitando num mercado que
comporta quase uma dezena de editoras especializadas (muitas delas
criadas e administradas por ex-jogadores de RPG) que publicam livros,
revistas e demais materiais, com excelente qualidade gráfica e muitas
vezes distribuídos em todo o território nacional, em bancas de jornal ou
grandes cadeias de livrarias.
Os RPGistas (como são conhecidos) frequentam lojas
especializadas, congregam-se em eventos periódicos, que chegam a
reunir mais de 15.000 participantes num único fim de semana e
mobilizam-se em intensas discussões virtuais que podem dar origem até
mesmo a ações políticas concretas, como nos recentes casos nos quais
as investigações sobre homicídios ocorridos em Teresópolis (RJ), Ouro
Preto (MG), Vila Velha e Guarapari (ES) ou Brasília (DF) apontaram para
a possibilidade da prática do RPG ter influenciado esses atos criminosos1.
1 Há diversos sites na internet com material sobre esses casos. Muitos são marcados por um discurso “pró-
RPG” diante do que FAIRCHILD chamou de “campanha de difamação do RPG”(na percepção dos
jogadores de RPG), mas são uma boa referência inicial para qualquer pesquisa d esses casos. Indica-se:
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=311FDS002 (acesso em maio,2005) e
www.rederpg.com.br (acesso em maio, 2005)
3. RPG, Ludicidade e Escola
53
Criando movimentos virtuais em defesa do seu hobby, organizando-
se em listas de discussão e até mesmo tomando a iniciativa de intervir
junto ao Poder Público, reunindo documentos, testemunhos e pareceres
favoráveis ao jogo, vindos de professores, psicólogos e outros
profissionais, com o intuito de se contrapor a um projeto de lei que
propunha a proibição da venda dos livros de RPG na cidade de Vila Velha
(ES), os jogadores de RPG demonstram na prática a sua capacidade de
integração e coesão enquanto rede social muito bem articulada.
Porém, muitas vezes, ao se tenar definir o RPG, já se pretende, na
sua caracterização, um afastamento do conceito de “jogo” e aproximação
bastante clara com o conceito de “brincadeira” e, mais ainda, com a idéia
de “narrativa”, de “criação de histórias”, o que levaria o RPG a tangenciar
os campos da Educação e da Literatura.
Do site da ONG Ludus Culturalis na Internet, entidade que organiza
os Simpósios de RPG e Educação, retiramos o seguinte texto:
“RPG (...) é uma atividade lúdica na qual os
participantes contam histórias e nelas têm um papel
ativo ao interpretar personagens. É um ato coletivo de
criação de narrativas orais; é a arte de contar histórias,
recuperada, revisitada e adaptada ao gosto moderno. É
o resgate da tradição oral e da troca espontânea de
experiências.”
Para BRAGA, que estudou os hábitos de leitura e escrita entre os
jogadores de RPG, o Role Playing Game é:
“um jogo de interpretação grupal desenvolvendo-
se no plano da imaginação. (...) Surgiu na década de
70 nos EUA e no Brasil por volta da década de 90. Um
grupo de jovens se reúne para se divertirem sem os
aparatos da atual tecnologia, como instrumentos têm
livros, blocos de anotações, lápis, canetas e sobretudo
imaginação. (2000b)
3. RPG, Ludicidade e Escola
54
Para Sonia Rodrigues, autora de uma tese pioneira no Brasil ao
tomar o RPG como objeto de estudos, pelo fato de ser um estilo de
“literatura de massa”, o RPG tem como estímulo de sua produção, o
mercado. Para ela, o RPG:
“existe e se espalha como coqueluche porque
existe uma necessidade, cada vez maior, de retorno à
ficção. A ficção é o objeto principal do desejo, o
objetivo a ser alcançado, o triunfo da partida. (...) O
RPG se constitui, assim, numa resposta a um contexto
social que nega cada vez mais os ritos de passagem, a
fantasia e a participação. O jogo constitui, por isso
mesmo, uma iniciação, com uma nova roupagem, à
contação de histórias e ao faz-de-conta.” (site)
Buscando resolver essa tensão entre “jogo” e “brincadeira” e
tentando definir mais claramente a natureza dos jogos de RPG, KLIMICK,
após uma breve reflexão a respeito da diferença entre “jogo” e
“brincadeira”, apoiado nas idéias de Huizinga, propõe que o RPG
“é, ao mesmo tempo, um método e uma
brincadeira em que os participantes, controlando as
ações de suas personagens e cooperando entre si,
criam histórias coletivamente.” (KLIMICK, 2003)
A idéia de classificar o RPG não como jogo, mas como brincadeira
de contar histórias reaparece em Jackson e Reis, quando apontam que:
"A principal diferença que existe entre o contar
histórias tradicional e o RPG é que no primeiro caso o
narrador conta uma história que ele já conhece e
praticamente nunca altera (...). Num RPG, por outro
lado, cada um dos ouvintes representa um personagem
que faz parte da história que está sendo contada pelo
narrador e interfere no seu desenvolvimento,
transformando-a em uma criação coletiva.” (1999)
3. RPG, Ludicidade e Escola
55
No site da escola PARAÍSO, ao registrar uma das mostras das
oficinas de artes, a escola, foco desta pesquisa, revela um pouco de sua
visão e das representações que tem sobre os jogos de RPG, ao descrever
o jogo da seguinte forma:
“O RPG – sigla que significa Role Playing Game
ou "Jogo da Interpretação" – é uma atividade que
depende sobretudo da criatividade de seus
participantes, o Mestre e os demais jogadores. O
Mestre é o responsável pela construção e articulação
da aventura. Ele é o narrador onisciente da trama que
envolverá os personagens, desempenhados pelos
demais jogadores. Contudo, diferentemente de um
contador de histórias comum, que pode montar as
peripécias como lhe convém, o Mestre não possui total
onipotência sobre os rumos da aventura, já que os
personagens podem agir arbitrariamente dentro da
situação narrada, por isso, cabe a ele ser astuto e
ardiloso para lidar com situações imprevisíveis”
3.2.2 Como se joga RPG?
Jackson e Reis descrevem o processo narrativo/lúdico do RPG da
seguinte maneira:
“O narrador expõe uma situação e diz aos
ouvintes o que seus personagens vêem e ouvem. Em
seguida, os ouvintes descrevem o que seus
personagens fazem naquela situação e o narrador,
então, diz qual o resultado das ações dos personagens
dos ouvintes... e assim por diante. A história vai sendo
criada pelo narrador e pelos ouvintes à medida que ela
é contada e vivenciada como uma aventura." (1999)
3. RPG, Ludicidade e Escola
56
Enquanto Braga (2000) ressalta que:
“de uma sessão ou encontro de RPG participam o
mestre (também chamado narrador) e os jogadores.
Aquele, mais experiente, tem a função de apresentar
ao grupo uma história, uma aventura contendo
enigmas, situações e conflitos que exigirão escolhas
por partes dos jogadores. Os jogadores, geralmente em
número de 4 ou 5, não são meros espectadores, mas
participantes ativos, que como atores representam um
papel e, como roteiristas, escolhem caminhos e tomam
decisões nem sempre previstas pelo Mestre,
contribuindo na recriação da aventura.”
Já para Rodrigues, o jogo acontece da seguinte forma:
“ Crianças, adolescentes e adultos reúnem-se em
torno de um “mestre” que prepara uma aventura com o
auxílio de um livro de regras. Os jogadores são autores
e, ao mesmo tempo, roteiristas da ficção produzida em
grupo. É um jogo onde não existem vencedores entre
os que participam. Os derrotados, quando existem, são
uma necessidade do enredo. O jogador assume a
identidade de uma personagem e finge sê-la durante o
desenrolar da aventura. Esta personagem é construída,
elaborada numa ficha de forma detalhada, trabalhosa,
como detalhado e trabalhoso é o caminho da criação.
Estas fichas são decisivas para o desenvolvimento da
narrativa.” (RODRIGUES – site)
3.2.3 E o que não é RPG?
É muito frequente a inclusão de uma vasta gama de diferentes tipos
de jogos sob a classificação genérica de “jogo de RPG”, o que muitas
3. RPG, Ludicidade e Escola
57
vezes confunde aqueles menos familiarizados com o tema. Entre esses
outros tipos, incluem-se os livros-jogos2 (ou Aventuras-solo), os jogos de
cards colecionáveis3, os jogos de miniaturas4, alguns jogos de tabuleiro,
jogos de ação ao vivo (live-action), além de muitos videogames e jogos de
computador, incluindo games jogados via Internet -- desde os jogos mais
“simples”, oferecidos por sites especializados no público infanto-juvenil
(como o do Cartoon Network) até os complexos MMORPG5, jogos onde
milhares de jogadores interagem em tempo real via Internet, seja em casa
ou nas cada vez mais populares LAN-houses6.
Tentando esclarecer esse aspecto, FAIRCHILD (2004) aponta
alguns dos diferentes “tipos” de RPG, considerando que o universo do
RPG está dividido “em pelo menos três grandes modalidades” que seriam:
“RPG de mesa, Live Action Roleplaying (LARP7) e aventura-solo.”
KLIMICK partilha de visão semelhante, apontando que os jogos de RPG
teriam 4 caracterísitcas principais que os diferenciariam de outros jogos, e
que seriam: “socialização, interatividade, narrativa e ‘hipermídia’”,.
Existe uma clara posição desses autores no sentido considerarem
alguns jogos (especialmente os videogames e os jogos de computador)
como não sendo RPGs “de verdade”, numa atitude que parece refletir
concepções encontradas também em textos retirados de diversos sites
2 Histórias de aventura e mistério escritas no estilo “hipertexto”, onde pequenos trechos se interligam por
meio de opções de caminhos diferentes para a continuação da trama. Ver RICON, L. E. mini GURPS No
Coração dos Deuses, São Paulo, Devir: 2000.
3 Mistura de jogo de cartas com coleção de figurinhas, onde os jogadores colecionam cartas, vendidas em
envelopes e com elas montam um baralho individualizado para enfrentar outros jogadores numa disputa de
estratégia.
4 Jogos de estratégia onde se simulam batalhas utilizando figuras de chumbo ou plástico
5 Sigla inglesa para a expressão Massive Multiplayer Online Role Playing Game Games (Jogos de
Interpretação via rede, para múltiplos jogadores simultâneos), um tipo de jogo bastante popular onde os
jogadores se conectam a um servidor via internet e comandam personagens em cenários, missões e aventuras
coletivas, interagindo tanto com o cenário “pronto” quanto com os milhares de outros jogadores de todo o
mundo, que estiverem concetados no momento. Dentre os MMORPGs mais populares no momento dessa
pesquisa destacam-se: Ragnarok, Tibia, Mu Online e outros. 6Estabelecimentos comerciais onde os jogadores alugam tempo de uso em computadores ligados
em rede, jogando coletivamente o mesmo jogo, mas cada um num computador diferente.
7No Brasil, o LARP é mais conhecido como “live”. Note que não se trata do verbo to live <tú líve>, que
significa viver, morar, mas sim o adjetivo live <láive>, que significa “ao vivo”. em inglês.
3. RPG, Ludicidade e Escola
58
relacionados ao RPG e que sugere, de início, tratar-se mais de
“preconceito” ou de uma espécie de necessidade de demarcar claramente
o território do RPG, evitando confusões e contribuindo para que o jogo, e
por extensão toda a grande comunidade de aficcionados por RPG tenham
uma identidade mais clara e definida, sem que seja confundidos com os
entusiastas dos jogos de computador ou dos videogames, por exemplo.
Mas essa me parece, cada vez mais, uma divisão sem sentido.
Afinal, hoje em dia não podemos ignorar a enorme disseminação dos
jogos eletrônicos8 e dos jogos online, nos quais milhares de jogadores se
conectam simultaneamente via Internet ou em redes locais (nas Lan-
houses), para partilharem aventuras geradas em ambientes eletrônicos
(ao invés de apenas na imaginação dos jogadores), interagindo entre si
de diversas formas, seja através da ação de suas personagens no
ambiente do jogo, seja através de mensagens trocadas por janelas de
texto ou por programas de mensagens instantâneas, como o popular
MSN, da Microsoft, ou ainda através das comunidades virtuais e fóruns
nos quais se reúnem, encontram-se e debatem, interagem, criam...
Confesso que, pelo menos para mim, fica muito difícil olhar para esses
jogos e ver neles alguma terrível limitação que os torne “reativos” e não
“interativos” (para usar a mesma caracterização proposta por Klimick a
partir de Arlindo Machado e Raymond Williams).
Logicamente, nenhum computador jamais vai ser capaz de substituir
a criatividade e a expressividade da mente humana. Porém, já começa a
ser difícil não enxergar a profunda e quase essencial interatividade que
esses jogos (especialmente os MMORPGs) permitem aos jogadores. E
mais, não se pode esquecer que esses jogos “habitam” o mesmo universo
e “falam a mesma língua” que o Orkut, o MSN, o e-Mule e todos os outros
sites e softwares de uso corrente entre os jovens, e que, de certa forma,
se apresentam a eles como algo bem mais próximo, inteligível, amigável e
“interativo” do que muitos dos extensos livros de regras dos RPGs.
8 Como ilustração, vale a informação de que o mercado de videogames e jogos de computador já movimenta
somas maiores do que a indústria do cinema, por exemplo.
3. RPG, Ludicidade e Escola
59
Portanto, mais do que o grau de liberdade ou interatividade no
desenvolvimento/interpretação das personagens durante o jogo (o que
inclusive pode variar enormemente, já que cada sistema de RPG possui
regras diferentes e, além disso, cada jogador, cada mestre e cada grupo
pode interpretar essas regras de maneira bastante diversa), parece muito
mais seguro que essa concepção procure apoiar-se muito mais no
aspecto de criação coletiva de uma história ou narrativa como marca
distintiva daquilo que seria (e do que não seria) um RPG.
Assim, um card-game colecionável como YU-Gi-Oh!9, por exemplo,
não seria um RPG, na medida em que ali o que está em jogo é uma mera
disputa, uma partida entre dois (ou mais) competidores. E, ademais, ali
não se está criando nenhuma espécie de narrativa que se sustente por si
só, como acontece nos RPGs -- ainda que as histórias, no RPG, não
sejam registradas em nenhum suporte. Mesmo assim, mesmo sem estar
escrita ou registrada em lugar algum, a narrativa criada durante uma
sessão de RPG é vivenciada de forma profunda e intensa pelos jogadores
e, com isso, é praticamente incorporada às suas memórias, como se
todos a tivessem lido num livro ou assistido no teatro, cinema ou TV, ou
como se realmente a tivessem vivido. Por isso, não é raro ouvir os
jogadores de RPG se referindo a “fatos” ou “pessoas” que fazem parte
apenas do universo do jogo, mas que eles parecem tratar como parte de
seu repertório pessoal/coletivo de experiências/vivências.
Porque realmente assim o são.
Através da interface criada pelo RPG, seja através do computador
ou de sua imaginação, os jogadores “realmente” viveram aquelas
aventuras virtuais, realmente enfrentaram os dragões, conquistaram os
tesouros, perderam companheiros em batalhas etc.
Por isso, após analisar muitas e diferentes definições para o RPG
(presentes em quase todos os trabalhos sobre o tema), e seguindo o
indicado por KLIMICK (2003) é possível enumerar alguns pontos que, em
3. RPG, Ludicidade e Escola
60
princípio, seriam suficientes para definir o que seria (ou não seria) um
RPG. Esses elementos são:
1. É uma atividade de grupo, ainda que o grupo se resuma à
relação mestre/narrador e jogador/ouvinte;
2. É organizada numa sequência encadeada de "sessões de jogo",
que compõem “aventuras” (histórias completas) e por sua vez
integram “campanhas” (conjuntos de histórias fechadas), e não
em uma série de “partidas” estanques;
3. É uma atividade cooperativa e não competitiva;
4. Há personagens sendo interpretadas em maior ou menor grau
pelos jogadores, sendo que estes decidem livremente as ações
dessas personagens na história;
5. As personagens “evoluem” ao longo do jogo, seja “passando de
nível” ou através da melhora gradativa de suas características
através de algum sistema de recompensa que relaciona a
experiência nas aventuras com a evolução das personagens.
6. O enredo da história vai sendo continuamente alterado pelo
Mestre/Narrador, a partir do confronto entre as ações das
personagens dos jogadores e as regras do jogo, incluindo muitas
vezes o rolamento dos dados;
7. Existe um ambiente ficcional que serve de cenário para as
histórias;
8. Há um claro compromisso com a diversão;
Refletindo mais ainda, poderíamos chegar a uma caracterização
mais resumida, e que me parece mais adequada, que seria a de que, num
jogo de RPG, qualquer que seja ele:
9 Para um estudo sobre esses jogos, ver os trabalhos de Raquel Salgado e Solange Jobim e Souza
3. RPG, Ludicidade e Escola
61
1. Existe uma clara relação entre um narrador/mestre e um ou mais
ouvintes/leitores/jogadores. Mesmo numa aventura-solo ou livro-jogo,
o texto “faz o papel” de Mestre do Jogo, apresentando e descrevendo
as situações através da narrativa. E em determinados jogos de
computador ou videogames, o computador incorpora essa função do
mestre/narrador/juiz, construindo a interface dos jogadores com o
ambiente ficional no qual transcorre o jogo.
2. É uma atividade cooperativa e não competitiva. O Mestre/narrador não
compete com os jogadores e tampouco os jogadores competem entre
si. Ainda que seus personagens possam se antagonizar, não existe
uma disputa em jogo, na qual uma vez que seja declarado o vencedor,
encerra-se a disputa, como em muitos outros jogos. E, em última
instância, ainda que surjam conflitos e competitividade entre eles,
mestre e jogadores colaboram, cooperam na criação daquela história,
na realização daquele jogo.
3. É interativo, no sentido de que a ação livre e autônoma (até certo
ponto, já que sempre existem os limites impostos pelas regras) das
personagens controladas pelos jogadores muda o cenário e o
desenrolar da história.
Portanto, será a partir desses referenciais, que evoluiremos em
nossa reflexão examinando agora as relações que existem entre o RPG e
a Educação.
3.3 O RPG e a Escola
Como apontam Rodrigues (1993), Pavão (1999), Braga (2000),
Bettocchi (2002), Firchild (2004) e Klimick (2003), entre outros, as
reflexões sobre as possibilidades de utilização pedagógica do RPG se
iniciaram no Brasil logo após a chegada dos primeiros títulos traduzidos
ao mercado brasileiro, no início dos anos 90, quando surgiam também as
primeiras incursões de autores nacionais no gênero dos RPGs.
3. RPG, Ludicidade e Escola
62
Um desses RPGs nacionais era "O Desafio dos Bandeirantes"
publicado pela editora GSA em 1992. Miscigenando a fantasia medieval
européia (bastante popular no universo dos RPGs e presente em livros
como “O Senhor dos Anéis” ou em jogos como “Dungeons & Dragons”)
com o folclore e a História do Brasil, “O Desafio dos Bandeirantes” foi
muito provavelmente o primeiro livro de RPG a demonstrar, de forma
bastante clara, o potencial educacional dos jogos de RPG no mercado
brasileiro, indo além da idéia do "incentivo à leitura e pesquisa".
Sem esquecer que, desde o lançamento da versão em português do
RPG GURPS (em 1991), sempre houve uma clara intenção de seus
editores em divulgar o RPG não apenas como um jogo, mas sim como um
processo de criar histórias e personagens, em grande parte devido à
flexibilidade trazida pelo GURPS (no qual um mesmo conjunto de regras é
usado para criar personagens e histórias em qualquer cenário realista,
histórico ou imaginário), poderíamos dizer com alguma propriedade que
muito foi no contato com o jogo “O Desafio dos Bandeirantes” em livrarias
e eventos dedicados aos fãs de RPG e histórias em quadrinhos (como a
Bienal do Livro, por exemplo) que foram surgindo muitos dos primeiros
questionamentos, por parte dos professores e educadores, sobre a
possibilidade de utilização do RPG em sala de aula.
Caracterizado como estilo de ficção, como movimento cultural e
social e como linguagem e discurso, o RPG também é estudado, dentro
do ambiente acadêmico, a partir de suas potencialidades didáticas ou
pedagógicas. Sem a pretensão de re-inventar a roda ou fazer uma
pesquisa do “estado do conhecimento” da área, o que fugiria ao escopo
deste trabalho, limito-me a recomendar algumas das pesquisas aqui
citadas, e que trazem, em seu bojo, boas revisões bibliográficas sobre as
relações entre o RPG e o campo educacional.
Mesmo assim, alguns desses trabalhos são dignos de nota, diante
dos objetivos traçados para a minha pesquisa. E, dentro do ambiente
acadêmico, devemos destacar o trabalho pioneiro de Sônia Rodrigues
Mota (1993), que dedicou sua tese de doutorado em Letras à discussão
3. RPG, Ludicidade e Escola
63
sobre os jogos de RPG enquanto criação ficcional. Relacionando o seu
duplo caráter de ficção e jogo às tradições do conto maravilhoso e da
cultura oral, a tese de Mota identificava algumas características básicas
da prática dos mestres e jogadores de RPG, dentre as quais, aquilo que
ela chamou de "pilhagem narrativa", e que seria o movimento pelo qual os
jogadores e mestres de RPG "pegam emprestadas'" referências das mais
variadas fontes, omitindo sua autoria e transmutando-as em matéria-prima
para sua brincadeira de ficcionar.
Fazendo um paralelo com a obra de Monteiro Lobato, ela defende a
idéia do RPG como mais uma das “narrativas sem-dono”, presentes cada
vez mais na cultura de massa e que seriam revisitações das tradições dos
contos maravilhosos e da cultura oral.
A partir desse encontro com o universo do RPG, Mota dedicou-se a
organização de eventos nos quais o RPG era apresentado junto a outras
manifestações estéticas e artísticas, sempre em ambientes de
reconhecida relevância cultural, como o Centro Cultural Banco do Brasil
ou o Museu Histórico Nacional, ambos no Rio de janeiro. Assim, foi
realizado, em 1995, o ciclo RPG e Arte, uma série de palestras e debates
sobre a relação entre o RPG e o cinema, o teatro, literatura, o cinema e a
mídia em geral, que ocupou o CCBB, dando origem mais tarde a um Cd-
Rom e um livro, que reunia a transcrição das palestras e debates
realizados durante o evento.
Na apresentação deste livro, Sônia Rodrigues Mota define mais
claramente essa processo da “pilhagem narrativa”, quando diz que no
RPG “se produz, mas também se toma emprestado. (...) Tudo é possível
no RPG, porque o mosaico narrativo é feito por nós”. (MOTA, 1996: p.7)
Mais adiante, no mesmo livro, encontramos a transcrição de sua
palestra dentro do evento, que se encerra com uma frase que resume o
pensamento dela a respeito dos conceitos de narrativa-sem-dono e
“pilhagem narrativa” e que transcrevo a seguir:
“A narrativa, realmente, não tem dono. O que
3. RPG, Ludicidade e Escola
64
existem são formas novas, mais interativas de lidar
com a arte da ficção, que é um patrimônio e uma
necessidade de todos nós.” (MOTA, 1996: p.144)
Porém, a partir da reflexão, da pesquisa e da análise do material
colhido neste trabalho passei a questionar cada vez mais esta idéia de
“pilhagem narrativa” pela qual os jogadores de RPG vão reunindo
elementos das mais diversas fontes, das mais diversas origens e, com
eles, passam a criar seus personagens e suas histórias.
Sendo uma prática referencial por excelência, a criação de
personagens e histórias no RPG é sempre muito mais uma “recriação”,
uma colagem de diferentes elementos, uma “salada” de aproximações e
associações de idéias do que uma criação genuína e plena de ineditismo,
lógico. Nesse sentido, a “pilhagem narrativa” pode ser entendida quase
que como o “sistema operacional” sobre o qual o jogo de RPG se
estabelece.
No entanto, apesar deste ser um dos conceitos mais sólidos dentro
do campo de estudos dos RPGs, e que de certa forma pude identificar na
prática a todo momento, seja como jogador, mestre, autor e, mais
recentemente , também como professor, sempre me pareceu impreciso (e
até mesmo injusto!) chamar de “pilhagem” o processo pelo qual mestres e
jogadores de RPG articulam criativamente tantas referências e links,
operando com maestria essas redes de intensas e quase vertiginosas
referências cruzadas.
Consultando qualquer dicionário, descobriremos, com certeza, que
pilhagem significa: “ato de pilhar. O que resulta do que se pilhou. Saque
praticado por soldados que conquistam uma cidade ou por multidões
amotinadas”
No decorrer desta pesquisa, foi ficando cada vez mais claro para
mim que apesar do conceito ser correto, ele não era preciso, não dava
conta de uma parte importante do processo criativo de mestres e
jogadores de RPG. Que o buscar referências em diversas fontes sem dar
3. RPG, Ludicidade e Escola
65
o devido crédito era parte essencial da diversão. A brincadeira do RPG é,
entre outras coisas, exatamente essa: jogar com as referências, misturar
histórias, personagens, fatos e mitos e brincar de ficcionar.
Por isso, na hora de refletir sobre os dados colhidos durante as
oficinas na escola PARAÍSO, percebi uma boa oportunidade para buscar
um outro conceito para fundamentar minha reflexão. Mas agora não é o
momento para trata disso ainda. Mais à frente, no Capítulo 5, que trata
especificamente das oficinas de RPG, voltaremos a essa discussão. Por
ora, basta ficarmos com a clareza de que, apesar de correto e importante
para o estudo do RPG como fenômeno cultural, o conceito de “pilhagem
narrativa” proposto por Sônia Rodrigues não será aplicado neste trabalho.
De todo modo, alguns anos após o trabalho pioneiro de Sõnia
Rodrigues, um segundo trabalho acadêmico de muita relevância no
estudo do RPG e do seu impacto no campo da Educação foi a
dissertação de Mestrado de Andréa Pavão, publicada mais tarde em livro
pela editora Devir (1999), na qual, por meio de um mergulho etnográfico
profundo e sensível no universo dos mestres e jogadores de RPG, a
autora procurou mapear suas práticas de leitura e escrita, desenhando,
com rara maestria, um perfil acurado e fiel do RPG como fenômeno social
e dos seus praticantes como parte de uma das muitas sub-culturas
juvenis urbanas, ligando o RPG ao rock, ao punk e a outros movimentos
estéticos e políticos típicos da juventude contemporânea.
Porém, devido à sua escolha metodológica de manter-se “de fora”
das mesas de jogo e também, em certa medida, pela pouca familiaridade
da autora (honestamente assumida por ela, aliás) com muitos dos
personagens, histórias, universos ficionais etc. que fazem parte do
“caldeirão” no qual os mestres e jogadores de RPG vão buscar as
referências para suas aventuras e personagens, o seu trabalho acaba
mostrando um grande distanciamento entre a pesquisadora e o objeto,
tratado por ela com muita propriedade através do conceito das “janelas”,
quando reconhece que enxerga o RPG do seu lugar de pesquisadora e
professora, e não do lugar de jogadora ou mestre de jogo, ou mesmo do
3. RPG, Ludicidade e Escola
66
lugar de conhecedora ou apreciadora de quadrinhos, desenhos animados
japoneses ou videogames, o que, quem sabe, poderia ter acrescentado
novos pontos de vista ao seu trabalho.
Trabalhando com um referencial teórico apoiado principalmente em
Bakhtin, Pavão opera com o conceito de exotopia e registra de forma
eloquente as tensões de ordem histórica e social que se mostram
presentes entre os mestres de RPG ao longo do tempo, materializadas no
conceito de “gerações” de jogadores e mestres, onde mostra, inclusive,
uma visão mais aproximada do conceito de “pilhagem narrativa”, aplicado
por Mota ao RPG, ao registrar empiricamente a presença entre os
mestres de RPG de muitas e várias influências, vindas não só da
literatura, mas também das histórias em quadrinhos, dos filmes de
cinema, dos videogames e de outras linguagens e suportes próprios da
cultura de massa.
Na Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Jane Maria
Braga (2000) realizou uma pesquisa que guarda certos paralelismos com
o trabalho de Pavão, ao analisar similarmente os hábitos de leitura e
escrita entre jogadores e mestres de RPG. Porém, ao acompanhar as
mesas de jogo, a autora buscou relacionar o RPG e sua prática aos
referenciais mais contemporâneos no universo da Educação,
especialmente a idéia dos quatro pilares10, de Jacques Delors, elaborada
para a UNESCO como propostas para a Educação no Século XXI.
Segundo ela,
“o RPGista aprende a conhecer além do que lhe
é oferecido. Através do imaginário, da confortabilidade
de uma cadeira, ele se envereda por leituras diversas,
viaja para mundos distantes combinando sua realidade
com a cultura geral. Ele aprende a fazer, ensaia
10 Aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver, aprender a ser.
3. RPG, Ludicidade e Escola
67
situações reais no nível imaginário e que podem ajudá-
lo a enfrentar situações de vida, de trabalho, de
relacionamentos, entre outros. Sobretudo, esses
sujeitos aprendem a viver em grupo, respeitando-se,
ajudando-se e formando-se nas interações com o outro
necessário para o jogo e para a vida. Enfim o jogador
de RPG aprende a ser, através da interpretação
diversos personagens, coloca-se em papéis diferentes
sabendo agir com autonomia e responsabilidade já que
cultiva o seu personagem como alguém bem próximo e
dependente de suas atitudes. (BRAGA, 2000)
A pesquisa de Braga serviu de modelo metodológico inicial para a
minha pesquisa, pelo fato da sua estratégia metodológica se aproximar
bastante da que tracei para minha pesquisa (observação participante,
análise dos materiais produzidos pelos jogadores e mestres, análise de
fotografias etc) e, apesar de não ser tão citada quanto os trabalhos de
Sônia Rodrigues ou Andréa Pavão é, no meu entender, uma pesquisa
muito bem elaborada e fundamentada dentro do universo de pesquisa das
relações entre o RPG e a escola.
Um terceiro trabalho na PUC-Rio, dessa vez uma dissertação de
mestrado na área do Design, realizada por Eliane Bettocchi, jogadora,
mestre de jogo e ilustradora de livros de RPG, veio enriquecer as
reflexões sobre o jogo, ao relacionar sua prática e estrutura à cultura
cibernética, ou ciber-cultura, através do seu caráter de hiper-texto, de
multimídia e trazendo também um importante questionamento crítico
acerca da estética e do discurso de gênero implícito nos livros de RPG,
manifesto tanto no texto quanto nas ilustrações que os adornam.
Lido em conjunto com o trabalho de KLIMICK (2003), outro
conhecedor do RPG “na prática” que se aventurou a estudar o tema, e
que aplica muito da base teórica e dos pressupostos de BETTOCCHI em
seu trabalho com o RPG junto a alunos do Instituto Nacional de Educação
de Surdos, no Rio de Janeiro, têm-se um percurso interessante, que vai
3. RPG, Ludicidade e Escola
68
da reflexão teórica à prática, através da utilização do RPG como uma
ferramenta didática per se, sem a intenção de ser uma mera estratégia de
transmissão de conteúdos, mas antes entendendo o jogo como uma
linguagem a mais da qual pode se lançar mão na mediação professor-
aluno, para colaborar com a constituição de conhecimentos e valores.
Outro trabalho de grande influência em minha pesquisa foi a
dissertação de mestrado de Thomas Fairchild, apresentada no
departamento de Educação da USP, em São Paulo, no ano de 2004. Ao
analisar criticamente o que chama de “discurso da escolarização do
RPG”, ele traz um olhar profundamente crítico ao campo, desvendando
alguns dos processos através do qual veio se construindo, ao longo do
tempo, um discurso no Brasil que entende o RPG como uma ferramenta
poderosa para o ensino e a Escola.
Mostrando o quanto existe de interesse comercial por detrás desse
discurso, FAIRCHILD questiona os enunciados mais recorrentes a
respeito da relação entre os jogos de RPG e a Educação e chama a
nossa atenção para o fato de muitas das conclusões sobre as quais se
ergue esse discurso carecem de comprovação empírica ou nascem de
pesquisas e reflexões sem o devido rigor e, por conseguinte, sem a
necessária credibilidade.
Para ele:
“o discurso sobre a escolarização do RPG não
produz novos significados, mas, antes, insere-se em
uma formação discursiva cristalizada, reproduzindo
lugares-comuns aplicáveis à escolarização de qualquer
objeto(...) o interesse das editoras por uma reserva de
mercado do RPG escolar, a captação de um discurso já
existente da insuficiência da escola, a necessidade de
responder a um discurso que difama o RPG a partir de
um caso específico e o desejo dos jogadores pelo
reconhecimento de sua prática.”
3. RPG, Ludicidade e Escola
69
Seu alerta, ainda que, no meu entender, seja carregado demais nas
cores, é uma sinalização importante para qualquer um que pretenda
desenvolver pesquisas nessa área, no sentido de questionar as fontes e
os referenciais sobre os quais pretende trabalhar, sob pena de ameaçar a
validade do trabalho ou, mais tarde, a credibilidade do mesmo.
Por essa razão, decidi tomar como referenciais principais para a
minha pesquisa apenas trabalhos apresentados como dissertações de
mestrado ou teses de doutorado, ou ainda artigos publicados em
periódicos reconhecidos, ou livros de editoras atuantes no âmbito
acadêmico ou de autoria de pesquisadores com alguma trajetória de
pesquisa e publicação, para evitar a contaminação da minha
argumentação pelos discursos francamente “pró-RPG”.
4. RPG, Conteúdos e Competências
O objetivo da escola não deve ser passar conteúdos, mas preparar todos para a vida numa sociedade moderna
Philippe PERRENOUD
Figura 15: múltiplas competências, múltiplas linguagens em ação
4.1 RPG e Educação
Pelo simples fato de ser travada num campo em plena constituição,
a discussão a sobre as possibilidades e potencialidades da utilização
pedagógica dos jogos de RPG está sempre sujeita à tensão que advém
do embate das idéias que se vão cristalizando e tomando corpo, à medida
que avançam as reflexões e os trabalhos exploratórios nesta área.
Porém, mesmo num cenário onde ainda há tanto por se desbravar, e
que se constrói e modifica à nossa volta a cada novo passo, já é possível
identificar pelo menos uma grande cisão que se faz visível nessa
paisagem em constante mutação.
De um lado, coloca-se claramente um movimento de idéias, ações e
projetos no sentido de se pensar o RPG como uma “revolucionária
ferramenta pedagógica para uso em sala de aula” (MARCATTO),
propondo aos professores e educadores que se apropriem e se utilizem
4. RPG, Conteúdos e Competências
71
do jogo como forma de tornar suas aulas mais cativantes e interessantes,
baseando-se no argumento de que, através do uso do RPG em sala de
aula, e, por conseguinte, ao “transformar uma aula em jogo, facilita-se o
envolvimento do aluno com o tema, tornando a aula mais agradável,
divertida e produtiva.” (MARCATTO, 1996)
Esta corrente, que tem sua origem mais provável nas próprias
demandas de professores e educadores que travaram contato com o RPG
logo no início da década de 90 e que vislumbraram nesses jogos alguma
potencialidade que, em sua maioria, ainda não sabiam como introduzir em
sua prática pedagógica, teve um grande impulso com o lançamento do
livro “Saindo do Quadro”.
Psicólogo e psicoterapeuta, Alfeu Marcatto publicou em 1996, de
forma independente, um pequeno manual no qual descreve o que é o
RPG, delineia os principais títulos presentes no mercado brasileiro (à
época do seu lançamento) e sugere uma metodologia bem simples que,
segundo o autor, “derruba alguns mitos da educação acadêmica e foge
completamente da monotonia dos manuais pedagógicos.” Para Marcatto,
esta técnica, baseada nos jogos de RPG:
“oferece subsídios para que professores de
qualquer grau e disciplina transformem suas aulas em
atividades animadas, interativas e, principalmente,
muito produtivas.” (MARCATTO, 1996)
Segundo esse raciocínio, mais tarde endossado por muitos
educadores e profissionais (editores, autores e outros) ou amadores
(jogadores e mestres de RPG) que até hoje defendem o uso do RPG em
sala de aula, um dos maiores problemas da Educação atualmente seria o
de “demonstrar a importância de conteúdos que não tenham aplicação
prática imediata”, mesmo que estes contribuam para formação geral do
aluno, tornando-o mais capacitado e competente em outras áreas da sua
própria vida.
4. RPG, Conteúdos e Competências
72
Marcatto sugere ainda que, por meio de “uma simulação como o
RPG, podemos demonstrar mais facilmente o que será útil na aplicação
do conteúdo”, já que o RPG “possibilita a vivência do conteúdo.” E essa
vivência garantiria o interesse do aluno.
Porém, deve-se ressaltar que, apesar de toda essa argumentação, o
autor pondera sensatamente que o RPG é somente mais um dos
inúmeros recursos à disposição de professores e alunos, sugerindo que o
RPG não deveria ser “tomado como o mais importante e, muito menos,
como o único recurso a ser usado em aula.”
Mas o fato é que, ao longo dos anos, especialmente em São Paulo,
esta corrente acabou se consolidando cada vez mais. Ao lado de outras
iniciativas, a publicação, a partir de 1999, da série de livros mini GURPS,
RPGs para iniciantes inspirados na História do Brasil (tendo como meta
clara o uso em sala de aula) acabou dando origem a projetos e produtos
que ilustram muito bem essa concepção de trabalho pedagógico
utilizando-se dos jogos de RPG para “dinamizar” ou “potencializar” a
transmissão dos conteúdos.
Um desses projetos foi o livro “Resgate dos Retirantes”, uma
aventura de RPG publicada pela mesma editora (embora escrito por um
autor diferente) dos demais títulos de RPGs didáticos, e que se destina a
ser quase que uma “aula” de História da Arte, usando uma aventura de
RPG como “ferramenta didática” para transmitir conceitos e informações
sobre a vida e a obra do artista plástico Cândido Portinari.
E mais recentemente, essa corrente tem se consolidade em torno do
trabalho da ONG Ludus Culturalis e dos Simpósios de RPG e Educação,
realizados em São Paulo pela própria LUDUS (uma organização não-
governamental ligada com muita estreiteza à editora Devir, especializada
em livros de RPG do Brasil, que publica títulos de RPG destinados ao
mercado didático).
Ilustrativamente, num dos Simpósios de RPG e Educação, quando
do lançamento do livro “Resgate dos Retirantes”, pedia-se aos
4. RPG, Conteúdos e Competências
73
participantes (em sua maioria professores e educadores) que
respondessem a um pequeno questionário sobre a vida de Portinari, para
que, em seguida, após jogarem uma partida de RPG, na qual era usada a
aventura “Resgate dos Retirantes”, refizessem o mesmo questionário.
De posse das informações transmitidas durante a brincadeira, os
participantes conseguiam responder ao questionário de forma muito mais
“fácil”, demostrando assim (pelo menos segundo a argumentação dos
organizadores) a potencialidade do RPG como ferramenta de ensino.
A esse respeito, escreve FAIRCHILD:
“Tomemos por exemplo a atividade realizada no
II Simpósio RPG & Educação sobre O Resgate de
"Retirantes" (...) Promoveu-se a democratização de um
saber: tornando-se dono de informações tais como o
nome de algumas obras de Portinari, o sujeito investe-
se de um pequeno poder, uma vez que não ser capaz
de citar o nome de uma obra de Portinari é uma forma
de exclusão cultural.
Não obstante, algo permanece inacessível. A
experiência de conhecer Portinari através de O
Resgate de "Retirantes" não passa pelo contato direto
com a própria obra do pintor ou com a bibliografia a seu
respeito. Ela leva ao domínio de alguns enunciados
autorizados sobre o tema, mas não leva à possibilidade
de autoria.” (2004)
Como fica claro, existe todo um outro lado subjacente a esta
questão, o qual me parece legítimo questionar e, acima de tudo,
necessário de se ressaltar, e que se refere à própria concepção de
Educação e de prática pedagógica que se decide seguir.
A visão da escola como lugar da mera transmissão de conteúdos já
foi suficientemente criticada por um número suficiente de autores, entre
4. RPG, Conteúdos e Competências
74
eles Paulo Freire, que comparava essa concepção de Educação a um
sistema “bancário”, propondo que a Educação, ao contrário, deveria ser
uma prática de diálogo e de libertação: o lugar da formação do indivíduo
crítico e não de um simples repositório de informações, conteúdos e
saberes estanques.
Ao mesmo tempo, essa idéia de que existe uma necessidade, por
parte dos professores, de buscar alguma espécie de fórmula “mágica”,
“inventiva”, “criativa”, “lúdica”, “interessante” (e um sem-número de outros
adjetivos) para motivar seus alunos ao “aprendizado” também não é nova.
Partilho da convicção de que essa abordagem, centrada na
transmissão dos conteúdos e na proposta de uma utilização “instrumental”
do RPG na escola, considerando o jogo como mera “ferramenta didática”
é exatamente o que leva Braga (2000), Pavão (1999) e Fairchild (2004),
entre outros, a questionarem a validade de se propor a introdução dos
jogos de RPG na escola, já que isso, segundo eles, retiraria do RPG toda
a sua espontaneidade, esvaziando o seu caráter lúdico e de prática
legítima das culturas juvenis contemporâneas, para, ao contrário,
"institucionalizá-lo", num visível contra-senso, onde se pretenderia tornar
compulsória uma prática de liberdade, como se fosse realmente possível
obrigar alguém a se divertir.
Por isso, para o meu trabalho com os jogos de RPG dentro do
campo educacional, preferi trilhar um outro caminho, percorrer uma rota
alternativa, que acabou motivando a presente pesquisa.
Mais do que usar o RPG como uma “ferramenta” para a transmissão
de conteúdos, sempre me pareceu muito mais adequado trabalhar a partir
daquilo que parece ter despertado, naturalmente, o interesse dos pais,
professores, psicólogos e educadores para o RPG, e que, a julgar pelo
que registram várias pesquisas sobre os RPGs, nasceu da observação de
seus filhos, sobrinhos ou alunos jogando RPG nos fins de semana, em
evrntos ou em outras ocasiões, de forma livre e descompromissada, por
puro lazer... e prazer. E também, é claro, pela observação do que se
4. RPG, Conteúdos e Competências
75
modificava no comportamento e na relação dos jogadores de RPG com o
conhecimento, os livros, a leitura etc.
A esse respeito, Braga vai dizer, de forma bastante sintética, que
dentre as muitas mudanças que o RPG produz nos jogadores estão:
“desenvolvimento da criatividade (imaginação),
estímulo à leitura e à convivência em grupo,
desenvolvimento do raciocínio, desenvolvimento da
habilidade na área da escrita (redação) e da própria
fala”. (2000)
Portanto, partindo de uma discordância veemente da concepção e
da proposta de utilização do RPG dentro das escolas como uma mera
ferramenta pedagógica, que centra seus esforços na demonstração de
como o RPG pode tornar as aulas mais “dinâmicas e interessantes” e os
conteúdos mais “úteis e aplicáveis” (numa grave simplificação do conceito
de conhecimento significativo), comecei a ser levado a um
questionamento cada vez maior sobre se seria possível pensar numa
alternativa a essa visão limitante do RPG e da Escola. Comecei a me
perguntar se seria possível utilizar os jogos de RPG, exatamente como
eles existem, em forma e conteúdo, como atividade livre e prazerosa, só
que dentro do ambiente da escola, tomando o cuidado de não macular o
que o jogo tem de mais precioso (no meu entender), que é justamente a
“mudança de atitude” que o RPG provoca e promove nos participantes
naturalmente.
Com o tempo, o que era apenas um questionamento foi evoluindo
para tomar a forma de reflexões e propostas mais concretas, que
desenvolvi e apresentei em cursos, palestras e oficinas ministradas a
professores, educadores, bibliotecários, pais e alunos em várias ocasiões.
O meu raciocínio era simples: já que a prática do RPG não se encaixava
com os tempos e nem com a rotina escolar, qualquer utilização do RPG
na escola deveria tratar o jogo, obrigatoriamente, como uma atividade
4. RPG, Conteúdos e Competências
76
“extra-classe” ou “extra-curricular”, preservando as especificidades tanto
do trabalho em sala de aula quanto da prática do RPG.
Porém, muito embora tivesse confiança na validade dessas
propostas, construídas a partir de vários anos de contato com os jogos de
RPG, seja como jogador, mestre de jogo ou autor de diversos livros de
RPG, ainda me angustiava a falta de uma maior solidez teórica para
balizar minhas concepções. E algo ainda me dizia que tinha de ser
possível uma “terceira via”, que fizesse a ponte entre o RPG e a sala de
aula sem sacrificar nenhum dos dois.
A resposta às minhas indagações, ainda que de forma incipiente,
começou a tomar corpo a partir do meu contato com os textos de Phillipe
Perrenoud1, o que me motivou a escrever um artigo2 apresentado no
simpósio Histórias Abertas, realizado na PUC-Rio, em 2003.
Um dos inspiradores dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),
estudioso das desigualdades sociais e da evasão escolar, do ofício dos
alunos, das práticas pedagógicas e do currículo escolar, Perrenoud é um
dos defensores da idéia da organização do ensino em ciclos de
aprendizagem de três anos, ao invés do ensino seriado, dividido em
“ciclos anuais”, o que já é adotado em diversas cidades brasileiras, tanto
em escolas públicas quanto privadas3, sendo alvo tanto de elogios quanto
de críticas.
Perrenoud é um pensador polêmico mais bastante atual, cujas
propostas, ainda que contestadas, encontram-se em pleno vigor,
influenciando em grande medida a base conceitual do ordenamento
1 Sociólogo suíço, professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, autor de vários livros e artigos, Perrenoud é um autor em muita evidência atualmente, por suas idéias sobre a avaliação dos alunos, a formação dos professores, a prática pedagógica, mas sobretudo por sua defesa firme e persistente da idéia da escola como lugar do desenvolvimento de competências, e não apenas da mera transmissão de conteúdos.
2 “RPG e Educação: construindo competências através da imaginação criativa”, disponível em www.multirio.rj.gov.br/seculo21/generico.asp?id_tipo=4&id_tbl_gen=1720
3 inclusive na escola PARAÍSO, local escolhido para minha pesquisa.
4. RPG, Conteúdos e Competências
77
jurídico da Educação Brasileira, instituído a partir das reformas realizadas
na década de 90, com a LDB, os PCNs e outras.
4.2 A competência de Perrenoud
Em inúmeros livros e artigos, Perrenoud explora o tema das
competências, que ele define como:
“a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos
cognitivos (saberes, capacidades, informações etc)
para solucionar com pertinência uma série de
situações” (2000).
Dessa forma, saber orientar-se numa cidade desconhecida, por
exemplo, mobilizaria as capacidades (ou competências) de se ler mapas4,
de se localizar no espaço, de pedir informações ou conselhos; além de
saberes como: ter noção de escala, conhecer os elementos de topografia
ou algumas referências geográficas etc. As competências não são os
saberes, nem as capacidades e nem as informações em si, mas sim a
capacidade de selecionar, combinar e aplicar todos eles de acordo com
situações inesperadas.
A noção de competências dentro do campo da Educação vem
como uma resposta à constatação de que, muitas vezes, os alunos
armazenam uma série de informações e saberes que não conseguem
relacionar ou aplicar em situações concretas ou mesmo hipotéticas onde
se mostrem necessários. É uma crìtica à visão da escola como lugar da
transmissão de conteúdos e a afirmação dela como local da construção
de conhecimentos e valores.
Para Perrenoud, o desenvolvimento das competências está
intimamente relacionado às experiências e vivências, condicionadas pelo
meio e os contextos culturais, profissionais e condições sociais. E como
4 Coincidentemente (ou não), muitas aventuras de RPG envolvem mapas, cidades desconhecidas e outras situações onde múltiplos talentos, múltiplas capacidades e múltiplos saberes são exigidos. Além disso, no RPG, o próprio personagem é criado e descrito pelos jogadores através de suas capacidades físicas, mentais
4. RPG, Conteúdos e Competências
78
os seres humanos não vivenciam todos as mesmas situações, acabam
desenvolvendo competências adaptadas a seu mundo, à sua vida. Ou
seja:
“A selva das cidades exige competências
diferentes da floresta virgem, os pobres têm problemas
diferentes dos ricos para resolver. Algumas
competências desenvolvem-se em grande parte na
escola. Outras não.” (Perrenoud, op. cit.)
Perrenoud argumenta que, segundo o paradigma educacional
centrado na mera transmissão de conteúdos “os alunos acumulam
saberes, passam nos exames, mas não conseguem mobilizar o que
aprenderam em situações reais, no trabalho e fora dele.” Para ele,
“formulando-se mais explicitamente os objetivos
da formação em termos de competência, luta-se
abertamente contra a tentação da escola de ensinar
por ensinar, de marginalizar as referências às situações
da vida e de não perder tempo treinando a mobilização
dos saberes para situações complexas.” (Perrenoud,
op. cit.)
Apesar da produção de Perrenoud sobre o tema das competências
ser vasta e extensa, pelo menos neste momento, nosso interesse vai se
voltar para uma pequena lista de oito grandes categorias de
competências, que ele acredita serem fundamentais para a autonomia
das pessoas e que deveriam ser trabalhadas pela escola. Para
Perrenoud, essas 8 competências seriam:
1. Saber identificar, avaliar e valorizar as suas possibilidades,
os seus direitos, os seus limites e as suas necessidades;
2. Saber formar e conduzir projetos e desenvolver estratégias,
individualmente ou em grupo;
e espirituais, numa planilha que é um verdadeiros rol de suas "competências".
4. RPG, Conteúdos e Competências
79
3. Saber analisar situações, relações e campos de força de
forma sistêmica;
4. Saber cooperar, agir em sinergia, participar de uma atividade
coletiva e partilhar liderança;
5. Saber construir e estimular organizações e sistemas de ação
coletiva do tipo democrático;
6. Saber gerir e superar conflitos;
7. Saber conviver com regras, servir-se delas e elaborá-las;
8. Saber construir normas negociadas de convivência que
superem diferenças culturais.
(Perrenoud, op. cit.)
Diante dessa lista, será que poderíamos vislumbrar algumas dessas
(ou todas essas) oito competências sugeridas por Perrenoud sendo
contempladas na prática do RPG?
Vamos tentar?
“Saber identificar, avaliar e valorizar as suas possibilidades, os seus
direitos, os seus limites e as suas necessidades”.
A prática do RPG começa com a “criação do personagem”, quando o
jogador avalia as possibilidades oferecidas pelo jogo (habilidades,
poderes, magias, raças, equipamentos, tipos de personagem etc) à luz de
seus anseios, desejos e aspirações, colocadas em prática através do
personagem, que funciona como o “alter-ego” do jogador. No decorrer das
partidas, o jogador vai percebendo quais de suas escolhas para o
personagem foram adequadas e quais não foram, na medida em que o
personagem se mostra ou não capaz de realizar as ações que ele (o
jogador) deseja empreender durante o jogo. Confrontado com os limites
impostos pelas regras e pela “sorte” (os rolamentos de dados), o jogador
vai equalizando o desejado e o possível, a aspiração e a frustração,
dentro do universo simbólico de representação do RPG.
“Saber formar e conduzir projetos e desenvolver estratégias,
individualmente ou em grupo”
4. RPG, Conteúdos e Competências
80
O RPG é originário dos jogos de estratégia e de guerra (war games)
e, por ser jogado em grupo, de forma cooperativa, faz parte da própria
natureza dessa atividade o desenvolvimento de estratégias individuais e
grupais para a superação dos desafios apresentados pelo Mestre do Jogo
aos seus jogadores durante as partidas. A diversidade de personagens
dentro dos cenários propostos (magos, guerreiros, cavaleiros etc. nos
cenários de “fantasia medieval”, por exemplo) também coloca os
jogadores diante da necessidade da cooperação estratégica para que,
juntos, unindo suas capacidades e combinando suas competências
individuais, possam chegar coletivamente ao objetivo comum da história.
“Juntos resistimos, divididos caímos”5, como diz o ditado.
Ao planejar a invasão do covil dos bandidos ou a melhor maneira de
se enfrentar um dragão, os jogadores pensam estrategicamente, medindo
e avaliando quais das competências individuais de seus personagens
podem ser usadas para o atingimento dos objetivos ansiados pelo grupo.
A partir da experimentação “em campo” com essas competências, os
jogadores avaliam e re-avaliam constantemente suas estratégias, diante
do sucesso ou fracasso de suas tentativas. Assim refazem planos, criam
padrões de atuação, rotinas de trabalho etc.
“Saber analisar situações, relações e campos de força de forma
sistêmica”
O universo dos RPGs é construído em cima de um sistema de
regras, de números e probabilidades matemáticas. Ao criar seu
personagem, o jogador é levado a “traduzir” este personagem nos termos
propostos pelas regras do jogo, ou seja, precisa quantificar e relativizar as
competências de seu personagem diante dos outros personagens do
grupo e dos NPCs, (os personagens coadjuvantes, controlados pelo
Mestre do Jogo). Depois, a cada passo de sua jornada, o jogador vai
travando contato com as possibilidades concretas de ação que aquelas
competências garantem ao seu personagem. Com o tempo, passa a ser
5 “Together we stand, divided we fall”
4. RPG, Conteúdos e Competências
81
natural para os jogadores a capacidade de avaliar, em termos numéricos
e probabilísticos, as possibilidades de sucesso diante dos desafios do
jogo e com isso são capazes de pautar sua interpretação do personagem
e suas decisões a partir dessa nova visão da realidade do jogo. Dominar
um sistema de regras complexo, onde muitas variáveis estão em ação ao
mesmo tempo é parte da rotina nos jogos de RPG, é o “feijão com arroz”
dos RPGistas...
“Saber cooperar, agir em sinergia, participar de uma atividade
coletiva e partilhar liderança”
Todos os estudos sobre o RPG ressaltam como positiva a natureza
cooperativa, interativa, negociada e coletiva dessa atividade. E pelo fato
do personagem só “agir” através da verbalização, do discurso e da
narração do jogador, que descreve em detalhes a ação e as “falas” de seu
personagem, a condução de uma aventura de RPG é, na verdade, uma
grande experiência narrativa dialógica, onde a liderança (centralizada na
forma da “palavra”, do direito ao controle da narrativa através do discurso)
é passada de um para o outro durante todo o decorrer do jogo, estando
sempre sob a “batuta” do Mestre do Jogo.
Na verdade, o RPG é, em sua essência, um exercício de criação
compartilhada e coletiva: uma história que vai se construindo aos
pedacinhos, com a participação de cada jogador, mas sob a “direção” do
Mestre do Jogo, que cumpre a função de “narrador principal”. Dentro de
uma partida de RPG, o personagem de um jogador só age quando ele (o
jogador) declara isso, descrevendo as ações e reações de seu
personagem diante dos elementos da história que se apresentam a cada
nova “cena”. Se o jogador se omite, ou se cala, seu personagem deixa de
agir, congela-se, cessa sua existência ativa na história. Passa a ser mais
um coadjuvante. Acaba aí o prazer do jogo, cessa a diversão...
Para jogar e para agir, é preciso verbalizar, é preciso que o jogador
se afirme e se coloque diante dos companheiros, tomando decisões,
4. RPG, Conteúdos e Competências
82
assumindo suas posições, argumentando, defendendo seus pontos de
vista (os do personagem, claro!) etc.
“Saber construir e estimular organizações e sistemas de ação
coletiva do tipo democrático”
O grupo de jogadores é uma célula social bastante democrática,
onde qualquer tentativa de “desequilíbrio” de uma ou outra parte acaba
sendo percebida e rejeitada pelos demais. Se o Mestre é injusto,
favorecendo demais ou prejudicando intencionalmente algum(ns) dos
personagens, esse fato logo gera um movimento de discussão e
reavaliação dentro do grupo, em busca do equilíbrio e da “justiça” que
garanta a “igualdade de oportunidades” durante o desenrolar do jogo.
Como todo jogo, o RPG é governado pelo princípio do prazer e pela
suspensão da descrença, por um contrato tácito que os jogadores e o
mestre firmam entre si, sacrificando interesses pessoais em prol da
manutenção da diversão.
Além disso, as regras do jogo estão sempre em julgamento, não
sendo raros (pelo contrário, sendo até bastante freqüentes) os casos em
que o grupo discute e, consensualmente, muda as regras sugeridas nos
livros, adequando-as à sua visão particular do que seria mais justo e
interessante, ou mais divertido para o jogo e para o grupo. Os próprios
livros de RPG incentivam esse comportamento, muitas vezes dizendo que
a regra mais importante do jogo è que não existe regra mais importante
do que a diversão. Não é de se estranhar que um movimento natural seja
aquele que leva muitos grupos de jogadores a criarem do nada as suas
próprias regras, os seus próprios “sistemas de RPG”, num exercício em
que se apropriam do código gerador do jogo e da sua prática, re-
inventando e “customizando-os” em benefício próprio.
Além disso, o próprio caráter gregário da atividade do RPG favorece
a criação de verdadeiros e profundos laços de comunidade entre seus
membros, sendo muito comum a existência de clubes, associações,
grupos e redes de contatos entre os adeptos. Os eventos de RPG
4. RPG, Conteúdos e Competências
83
(chamados de “convenções” ou “encontros”), muitas vezes organizados e
geridos pelos próprios grupos e associações de jogadores, chegam a
reunir em alguns casos milhares de participantes, que têm em comum
apenas o gosto pela prática do RPG, vindo muitas vezes de bairros,
cidades e estados (e até países!) diferentes e distantes. A internet, outro
meio marcado pela existência dessa prática das “comunidades”, acabou
tornando-se um habitat natural para os adeptos do RPG, que exercitam
por toda a “rede” essa vocação gregária do seu hobby através de sites,
listas de discussão, portais e fóruns de idéias espalhados pelos quatro (ou
mais?) cantos do ciberespaço.
“Saber gerir e superar conflitos”
O conflito é a base de qualquer narrativa e, por consequência,
também das aventuras de RPG. Sem o conflito entre os personagens,
seus desejos e aspirações e os desafios, situações e inimigos criados e
narrados pelo Mestre do Jogo, não haveria graça nenhuma no RPG. Além
disso, como o grupo geralmente é formado por personagens com
diferentes habilidades e poderes (ou competências...), isso vai levar a
diferentes objetivos individuais dentro do mesmo grupo, que surgem e se
expressam durante as partidas. Na hora do grupo decidir que rumo a
história deve tomar, cada jogador é chamado a se colocar diante do
dilema que se apresenta, desafiando sua capacidade argumentativa e
aprendendo a conviver com os conflitos internos no grupo, assim como
com os conflitos entre o grupo e as situações de jogo. Por último, o maior
conflito dentro de uma mesa de RPG acontece exatamente entre os
jogadores e o Mestre de Jogo. Representando a autoridade, o juiz, mas
também o “outro lado”, “os inimigos”, o Mestre toma para si a difícil tarefa
de gerir os conflitos entre jogadores e regras, entre jogador e jogador e
entre jogadores e “cenário”, num eterno papel de conciliador, que mantém
a narrativa em movimento e em relativa harmonia.
Não é uma tarefa fácil ser mestre do jogo. Saber harmonizar todos
os vetores criados pelos desejos e aspirações em conflito durante o jogo
4. RPG, Conteúdos e Competências
84
requer uma capacidade argumentativa, organizacional e uma entrega que
parece irrealizável quando se percebe a idade e a experiência de vida dos
jogadores de RPG. Aliás, um trabalho que estudasse mais a fundo o ofício
do Mestre do Jogo, confrontando-o com outras atividades gerenciais e de
monitoria ou mesmo com o ofício do professor pode trazer revelações e
apontamentos muito interessantes no campo da Educação, mas também
na Psicologia ou mesmo na Administração de Empresas. Fica lançado o
desafio a novos aventureiros...
“Saber conviver com regras, servir-se delas e elaborá-las”
O RPG é basicamente uma ferramenta de simulação de realidade,
apoiada sobre um grupo organizado e estruturado (um “sistema”) de
regras de representação e probabilidade. Ao criar seu personagem
segundo as regras de um determinado “sistema”, o jogador vai
apreendendo as relações numéricas e probabilísticas que permitem que
ele represente o que imagina de seu personagem dentro daquele cenário
e segundo aquelas regras. Com o tempo, o jogador vai experimentando
com os limites do sistema, conhecendo até onde pode ir com seu
personagem, o que pode e não pode realizar dentro do jogo, o que é fácil,
difícil ou mesmo impossível. Esse uso estratégico das regras é parte
integrante da prática do RPG, e mais cedo ou mais tarde, a discussão
acerca das regras do jogo passa a ser um elemento constante dentro do
grupo. E, como já foi dito, com grande freqüência os grupos de jogadores
desenvolvem novas regras, aprimorando as já existentes ou partindo do
zero e construindo seus próprios “sistemas de RPG”. Além disso, como
toda atividade de grupo, o RPG se apóia numa “etiqueta” própria do jogo,
que inclui o saber falar e silenciar, permitindo que a narrativa flua, o
aguardar a sua vez na rodada e o exercício contínuo da cooperação entre
personagens (dentro da história) e entre os jogadores (na mesa de jogo)
para que a fruição do jogo seja a mais completa possível.
Saber “jogar” com as regras, forçando seus limites, descobrindo e
elaborando combinações interessantes entre características, poderes,
4. RPG, Conteúdos e Competências
85
capacidades e competências variadas na hora de criar o personagem e
até mesmo encontrando “brechas” nas regras que beneficiem o seu
personagem acabam sendo quase que necessidades de sobrevivência
para os jogadores, num jogo constante de avaliação e re-avaliação de
limites e possibilidades.
“Saber construir normas negociadas de convivência que superem
diferenças culturais”
Tudo numa mesa de RPG é resolvido através da conversa e da
negociação. O jogo acontece a partir da narrativa inicial do Mestre e das
intervenções verbais dos jogadores, descrevendo as decisões, as ações e
as falas dos seus personagens. E se desenvolve nessa narrativa
compartilhada, onde cada um contribui para o todo com sua parte. Além
disso, por seu caráter social, gregário, uma partida de RPG se constrói a
partir da interação real entre os jogadores, de sua convivência em torno
de uma mesa por horas a fio. A etiqueta “fora do jogo” é tão (ou mais)
importante que dentro dele. As diferenças entre os jogadores às vezes
precisam ser mais trabalhadas do que as que existem entre seus
personagens. Ou seja, a harmonia de um grupo de RPG deve ser
conquistada e mantida pelos próprios jogadores e pelo mestre, rodada a
rodada. As regras sociais de boas maneiras são tão importantes quanto a
habilidade de se tornar parte do grupo. Os desrespeitos às normas
aceitas pelo grupo durante o jogo são facilmente detectados e devem ser
resolvidos rapidamente, sob pena do jogo ser paralizado e da diversão se
esvair. A busca da fruição do jogo dirige inexoravelmente o grupo em
direção à resolução dos conflitos.
Além disso, os cenários e universos ficcionais descritos nos jogos de
RPG são via de regra constituídos por sociedades multiraciais e
multiculturais, onde convivem (harmoniosamente ou não) personagens de
diferentes raças, origens, capacidades e características. Raças e
nacionalidades separadas por ódios e inimizades, colonizadores e
colonizados, escravos e escravizadores muitas vezes dividem a cena nas
partidas de RPG.
4. RPG, Conteúdos e Competências
86
Este exercício multicultural expõe os jogadores de RPG a toda sorte
de situações geradas pelo choque de culturas e civilizações durante as
histórias. Num ambiente de diversidade, gerido pela regra do equilíbrio e
da igualdade entre os personagens, os jogadores de RPG exercitam a
capacidade de tolerância diante da diversidade, ou experimentam
situações de intolerância de ordem racial, religiosa ou de outras origens,
que se colocam como dilemas a serem resolvidos pelos personagens. No
ambiente virtual, na simulação de realidade e sociedade onde seus
personagens ganham vida, os jogadores aprendem (muitas vezes na
“própria pele”, ou seja, através de seus personagens) a conviver com a
diversidade e a discriminação.
Em suma, como é possível notar facilmente, numa análise rápida
como esta, todas as oito competências consideradas por Perrenoud como
fundamentais para a vida num ambiente democrático parecem estar
sendo totalmente contempladas pela simples prática “normal” do RPG,
sem nenhuma pretensão ou planejamento “didático” ou “pedagógico” por
trás do jogo. Isso me levou a ver, se não uma certeza, pelo menos um
indício claro de que, dentro de uma proposta de pedagogia que contemple
a questão do desenvolvimento dessas (e de outras) competências, o RPG
poderia ser usado com grande potencial sucesso, sem que se precisasse
com isso submeter a prática do RPG à posição instrumental de
“ferramenta didática” para a transmissão de conteúdos ou saberes.
Mas qual será a opinião (e as conclusões) dos pesquisadores que se
debruçaram sobre o tema do RPG? Como as pesquisas acadêmicas e
teóricas realizadas no Brasil acerca da relação entre os Role Playing
Games e a Educação têm visto o jogo e sua prática entre os jovens
brasileiros? Estariam as competências listadas por Perrenoud (e outras
mais) realmente sendo desenvolvidas e trabalhadas de alguma forma
pelos jogadores através da prática RPG?
Braga (2000) lista algumas competências que o RPG ajudaria a
desenvolver nos participantes, concluindo que, “o RPG pode ajudar na
4. RPG, Conteúdos e Competências
87
construção de conhecimento socialmente estruturado e no conhecimento
pessoal.”
Parece bem seguro afirmar-se então que, por seu caráter
multidisciplinar, por seu desenvolvimento com características de
multimídia (narração oral, escrita, desenhos etc.) e de hipertexto (v.
Bettochi, 2002), os RPGs movimentam, em sua realização, diversos
saberes e trabalham diversas competências em seus praticantes.
Isso me trouxe a convicção de que o tema do RPG e das
competências merecia ser pesquisado e estudado com mais
detalhamento, já que, à primeira vista, parecia haver uma confluência
muito frutífera entre os apontamentos dos pesquisadores que se
debruçaram sobre o uso pedagógico do RPG e as teorias e propostas de
Perrenoud acerca da construção das competências.
Ou seja, o RPG, encarado como mais uma ferramenta possível na
mediação cultural dentro da prática escolar, assumindo a forma de espaço
de representação onde os participantes investem um grande potencial
criativo e afetivo, poderia desempenhar um papel de destaque em
qualquer estratégia ou projeto pedagógico que trabalhasse não apenas os
conteúdos, mas também a constituição e o desenvolvimento de
competências pelos alunos.
Porém, antes de seguir em frente, não havia como me esquivar das
profundas e intensas discussões que envolvem o tema das competências
aplicadas à Educação.
4.3 Competências... Quais Competências?
A proposta de se organizar o currículo escolar a partir de um modelo
orientado ao desenvolvimento de competências ao invés da transmissão
de conteúdos, compartimentalizados em saberes disciplinares, nasce da
constatação, que hoje já é praticamente um consenso, de que as
mudanças ocorridas no mundo, trazidas e potencializadas pelo
4. RPG, Conteúdos e Competências
88
desenvolvimento e a disseminação das novas tecnologias de informação
e comunicação, transformaram profundamente o papel da escola, da
família e do saber.
A idéia de organização curricular para o desenvolvimento de
competências repousa na base das grandes e profundas reformas
educacionais implementadas em muitos países europeus e latino-
americanos durante a década de 1990 e que visavam adequar a
educação às demandas do mundo contemporâneo, partindo de
pressupostos e teorias psicológicas originadas do Construtivismo, para o
qual são de grande importância as idéias de funcionalidade do
conhecimento e de aprendizagem significativa, entre outras.
Pensando o problema não a partir (simplesmente) da Escola mas
também (e especialmente) dos meios de comunicação, MARTIN-
BARBERO (2003b) vai falar do "embaçamento das fronteiras" entre as
diversas instâncias sociais, operando com os conceitos de
descentralização, deslocalização/destemporalização e disseminação
do conhecimento.
Para MARTIN-BARBERO, outrora localizada, contida e concentrada
em locais e papéis sociais bem claros e definidos (os templos, os
mosteiros, a escola, a universidade) ou em artefatos e códigos fixos (a
escrita, o livro, a leitura), a informação se dissemina com tamanha
velocidade e abrangência no mundo atual que torna-se instantânea,
avassaladora, vertiginosa e praticamente onipresente.
Num mundo no qual a TV ou a internet oferecem o acesso imediato
e remoto a um volume de informações virtualmente inesgotável, o papel e
o local social da leitura, do livro, do professor e da escola devem ser
necessariamente repensados. Além disso, no plano da constituição das
identidades, MARTIN-BARBERO (op.cit.) vai sinalizar para o fato de que
estamos hoje diante de um modelo de indivíduo:
"cuja auto-consciência é muito problemática, porque
o mapa de referência de sua identidade já não é um só,
4. RPG, Conteúdos e Competências
89
pois as referências de seus modos de pertencimento são
múltiplos e, portanto, trata-se de um sujeito que se
identifica a partir de diferentes âmbitos, com diferentes
espaços, ofícios e papéis" (op.cit.: p.21).
Ou seja, num mundo onde as identidades tornam-se múltiplas e
multifacetadas, construídas como um mosaico de infinitas inter-conexões
estabelecidas nas redes sociais, culturais e informacionais pelas quais os
sujeitos transitam, o papel formativo da escola também precisa ser
redimensionado.
Hoje, poderia-se dizer com relativa segurança que a TV ensina e
educa tanto (ou mais) do que a escola ou até mesmo a família6. Num
multiverso de comunidades virtuais, globais e interativas, unidas por
interesses e padrões de consumo e comportamento, fragmentado numa
miríade de sub-culturas bastante próprias e distintas, a escola e os
educadores não poderiam se furtar ao desafio de incorporarem
criativamente essas novas identidades e práticas culturais, trazendo para
dentro dos muros da escola o tremendo potencial de diversidade que
circula nas ruas e nos guetos, fervilhando no meio cultural e social dos
jovens.
Só que, antes disso, talvez fosse imprescindível que se repensasse
a noção de competências, cada vez mais recorrente no discurso oficial da
Educação no Brasil e em muitos países da Europa e da América Latina.
Pois pode ser que as novas configurações sociais – originadas nas
mudanças efetuadas nos modos de produção e circulação da informação
e do conhecimento – estejam recriando um tipo de competências culturais
e cognitivas que não parecem apontar no sentido das competências para
a geração de rentabilidade e competitividade, predominantes no campo
empresarial. Para MARTÍN-BARBERO, a superação desta situação passa
6 Várias pesquisas realizadas noBrasil e em outras partes do mundo vem apontando que as criançs e jovens passam uma quantidade muito maior de horas por dia expostos aos conteúdos e mensagens da mídia (TV, rádio, cinema, internet etc.) do que nos bancos das escolas.
4. RPG, Conteúdos e Competências
90
"pela incorporação de uma transversalidade que
termine com o preconceito que separa as ciências das
humanidades, e por resgatar aquele tipo de saberes que,
não sendo diretamente funcionais são, no entanto,
socialmente úteis, os saberes lógico-simbólicos, históricos
e estéticos. Os saberes indispensáveis" (2003b: p.18).
O caminho, portanto, passaria pela redefinição da noção de
competências a ser aplicada à educação. E esta re-contextualização pode
começar, como aponta RAMOS (2001) por reconhecer que esta proposta
pedagógica
"confere excessiva ênfase aos aspectos subjetivos
dos alunos, em especial àqueles relacionados à
aprendizagem, negligenciando o conjunto das
determinações históricas e sociais que incidem sobre a
educação, promovendo uma certa despolitização de todo
o processo formativo e de inserção social."
Vendidas como uma das possíveis soluções para a chamada "crise
da Educação", na qual se acentuam cada vez mais o descompasso e o
contraste entre o mundo da escola e o mundo "da rua", "do trabalho", "da
mídia" etc, as propostas educaionais baseadas na noção de
competências são alvo de pesadas críticas e questionamentos, dirigidos
inicialmente à falta de clareza conceitual na definição, pelos diversos
autores ou defensores dessas propostas, da expressão "Pedagogia das
Competências".
Como aponta BURNIER, as posições diante dessa questão polêmica
"variam desde a adoção quase religiosa dessa terminologia, passando por
uma visão crítica dela mas que resgata seus aspectos positivos até a
recusa total de qualquer abordagem ou proposta onde apareça o termo
‘competências’ "(BURNIER, 2001)..
RAMOS (2001) aponta ainda para o fato da noção de competências
ter sua origem numa corrente de pensamento voltada para uma
4. RPG, Conteúdos e Competências
91
concepção quase behaviourista da educação, apoiada na modelagem de
comportamentos, dirigidos à ação concreta e a objetivos pontuais e muito
bem definidos.
Ou seja, utilizada dessa forma, a noção de competência acabaria
muito associada à "ação", ao campo da inteligência prática. E com essa
redução do seu escopo, ela se tornaria bastante vulnerável a uma
aplicação instrumental ou condutivista, já que essa visão identifica
competência com desempenho, numa indesejável confusão entre
comportamento e conhecimento.
Para superar o perigo dessa redução condutivista, a noção de
competências precisa primeiramente incorporar a idéia da construtividade
do conhecimento, com base na teoria da equilibração de Piaget, que fala
do desequilíbrio que o indivíduo experimenta diante de uma situação nova
ou desafiadora, que leva à busca pela re-equilibração, por meio da
reorganização do pensamento num nível mais elevado que o anterior,
numa espiral ascendente.
Nessa visão, as competências seriam, "as estruturas ou os
esquemas mentais responsáveis pela interação dinâmica entre os
saberes prévios do indivíduo – construídos mediante as experiências – e
os saberes formalizados" (RAMOS, 2001). Assim, torna-se possível se
deslocar o foco do processo educativo dos conteúdos disciplinares para o
próprio sujeito que aprende e, como conseqüência, ganha importância a
idéia de aprendizagem significativa.
Ou seja, a idéia de um currículo orientado ao desenvolvimento de
competências nasce de uma crítica à compartimentalização disciplinar do
conhecimento e da busca por um currículo que ressalte a experiência
concreta dos sujeitos, criando situações significativas de aprendizagem a
partir de princípios curriculares tais como integração, globalização ou
interdisciplinaridade.
E mais, pelo fato da pedagogia das competências trabalhar a
resolução de problemas, ela traria a oportunidade de se transformar um
4. RPG, Conteúdos e Competências
92
currículo fragmentado em muitos domínios disciplinares numa proposta de
ensino integral, unindo conhecimentos gerais, específicos, profissionais,
além de experiências de vida, culturais e de trabalho que, normalmente,
seriam tratadas isoladamente, ou jamais contempladas.
É justamente sobre essa base teórica que as reformas educacionais
implantadas no Brasil vão operar com a seguinte definição de
competências:
"Competências são as modalidades estruturais da
inteligência, ou melhor, ações e operações que
utilizamos para estabelecer relações com e entre
objetos, situações, fenômenos e pessoas que
desejamos conhecer. As habilidades decorrem das
competências adquiridas e referem-se ao plano
imediato do ‘saber fazer’. Por meio das ações e
operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-
se, possibilitando nova reorganização das
competências." (ENEM, 1999: p.7)
Mas como despertar no processo de constituição de competências o
seu verdadeiro potencial de emancipação? Para RAMOS (2003a), a
solução passa por um movimento de re-significação da noção de
competências num sentido contra-hegemônico, concebendo a realidade
como totalidade e o homem como sujeito histórico-social, disposto não
apenas à conformidade, mas à transformação, e que constrói sua
identidade na síntese das relações sociais.
Um outro caminho possível nos é indicado novamente por MARTIN-
BARBERO (2003b), para quem, se quisermos recuperar a noção de
competência em seu sentido cognitivo, deveríamos associá-lo a outros
dois conceitos:
O primeiro seria o conceito de habitus, de Bourdieu. Definido como
um "sistema de disposições duráveis que, integrando às experiências
passadas, funciona como matriz das percepções e das ações
4. RPG, Conteúdos e Competências
93
possibilitando tarefas infinitamente diferenciadas", BARBERO diz que o
habitus tem a ver com a forma pela qual adquirimos os saberes, as
destrezas e as técnicas artísticas, sendo que o modo de aquisição se
perpetua nos modos de uso.
Já o conceito de prática, BARBERO vai buscar em DE CERTEAU, e
empregado na compreensão da cultura cotidiana do povo, centrando seu
olhar sobre aqueles "saberes que contêm e possibilitam novos fazeres"
(p.26) e que vão sendo redesenhados, reconquistando sua utilidade
social.
Portanto, para BARBERO, somente um conceito de competência
despojado da "obsessão competitiva da sociedade de mercado" (p.26),
resignificado a partir das competências culturais do habitus e da prática
poderá nos ajudar "a transformar nossos modelos de ensino pondo-os
em uma densa relação com as competências de aprendizagem que os
novos sujeitos levam para a escola" (p.26)
Portanto, o que está em jogo aqui, e que reflete os ideais e as
práticas pedagógicas da escola PARAÍSO é um projeto pedagógico
pautado em princípios éticos, estéticos e políticos dirigidos não à
conformidade com o mercado, ou à competição pelo emprego, ou muito
menos a preparação para o exame Vestibular, mas sim um trabalho
direcionado a um compromisso claro com a liberdade, a transformação, a
criatividade e a diversidade.
5. As Oficinas
Figura 12: professor, mestre de jogo e pesquisador... que aventura!
As oficinas de RPG na PARAÍSO nasceram quase que por puro acaso. A
partir da decisão de matricular meus filhos na escola e de uma conversa com a
coordenação da escola, foi aventada a possibilidade de haver algum tipo de
aproveitamento, por parte da escola, da minha experiência com os jogos de RPG
dada a intersecção do meu trabalho com o universo educacional. Depois de
algumas conversas, surgiu a proposta mais concreta de desenvolver um trabalho
com o RPG integrado ao projeto de oficinas de artes. Convite feito, convite
aceito...
O contato com o coordenador do projeto das oficinas de artes foi muito
estimulante. Depois de uma descrição rápida mas detalhada de como
funcionavam as oficinas, ele me disse o que esperava da oficina de RPG,
ressaltando que o estímulo à criação e ao estabelecimento de uma relação mais
lúdica com o texto eram os pontos mais desejados pela escola nesse trabalho.
Afora esse direcionamento geral, ele me deu total liberdade para apresentar uma
proposta de trabalho à escola, o que fiz, por meio de um projeto bem conciso.
5. As Oficinas 95
5.1 As oficinas de artes
Oferecidas aos alunos da escola PARAÍSO desde a 5ª série do Ensino
Fundamental, as oficinas de artes ganharam, a partir de 2005, a companhia dos
jogos de RPG, através da oferta de oficinas específicas sobre o tema.
Organizadas em 3 ciclos diferentes - um reunindo a 5ª e 6ª séries, outro a 7ª e 8ª
e um terceiro direcionado ao Ensino Médio - as oficinas de RPG contaram com
uma média de aproximadamente 17 alunos por turma, sendo seus trabalhos
realizados em dois tempos de aula, totalizando 100 minutos por semana para
cada turma.
No início do ano letivo, os alunos optaram pela oficina que desejavam cursar,
manifestando sua ordem de preferência entre os temas disponíveis. Depois, de
acordo com regras pré-estabelecidas, destinadas a dar equilíbrio e justiça na
escolha dos alunos que integrariam cada oficina, as turmas foram formadas, em
parte pela escolha dos alunos e em parte pelos arranjos necessários feitos pela
coordenação.
As aulas consistiam inicialmente em sessões de jogo, coordenadas por mim
e por um ou dois alunos, que já conheciam os jogos de RPG e se declaravam
dispostos a atuar como narradores. Não houve nenhuma pretensão de uso
"didático" do RPG e nenhum conteúdo deveria ser transmitido através do jogo, a
não ser as regras e o funcionamento do próprio jogo. A idéia era tomar o RPG
enquanto linguagem em si mesma, ao invés de dar a ele a dimensão instrumental
de estratégia ou ferramenta de transmissão de conteúdos. Em suma, a idéia era
simplesmente trabalhar o jogo, a brincadeira, a criatividade, enfim, a ludicidade no
currículo da PARAISO, dentro de uma proposta pedagógica organizada por
projetos e orientada segundo princípios bem claros e definidos (v. os sete
princípios, no capítulo Um).
5. As Oficinas 96
5.1.1 As Oficinas de RPG
No currículo da PARAÍSO, dividindo espaço com Matemática, História ou
outras disciplinas “tradicionais”, os alunos participam, ao longo do ano letivo, de
diversas “oficinas de artes”, especializadas em linguagens estéticas e artísticas
diversas. Atualmente, são oferecidas as oficinas (já bastante tradicionais na
escola) de Teatro, Música, Dança, Vídeo e Artes Plásticas, além das oficinas de
RPG e Desenho Animado. Essas duas últimas foram planejadas, em 2005, como
forma de suprir um problema operacional que envolvia a duração das oficinas de
5ª e 6ª séries e o número de alunos por turma no ano de 2005. E, enquanto a
oficina de RPG era uma novidade completa, a de Desenho Animado já tinha sido
oferecida em outros anos, sendo ministrada pelo coordenador das oficinas de arte
da PARAÍSO.
No ano de 2005, os alunos de 5ª e 6ª séries participaram de oficinas
trimestrais, sendo vedado a eles repetirem as mesmas oficinas no ano seguinte.
Assim, ao final dos dois anos, os alunos deveriam ter passado por todas as
oficinas oferecidas, travando contato com cada uma das temáticas e linguagens
abordadas. Já para os alunos de 7ª e 8ª séries, as oficinas foram anuais, assim
como para os de Ensino Médio.
No encerramento de cada uma das oficinas, foram realizadas mostras dos
trabalhos, sendo as mostras das oficinas trimestrais chamadas de “AMIUDES” e
de natureza mais modesta do que a mostra de encerramento das oficinas anuais.
Nessas mostras, os pais, professores e familiares dos alunos se reuniam na sede
do Ensino Médio, onde assistiam apresentações de dança, teatro, exibições de
vídeos e animações feitas pelos alunos e também uma exposição com os
trabalhos das oficinas de artes visuais. No caso das oficinas de RPG, o
planejamento das mostras de trabalhos foi um dos tópicos interessantes do
trabalho, e será relatado mais adiante.
No início do ano letivo, as turmas receberam a visita dos professores de cada
oficina, que expuseram em linhas gerais o trabalho que pretendiam realizar. Após
5. As Oficinas 97
essas mini-palestras, os alunos decidiram de qual(is) oficina(s) desejavam
participar, preenchendo um formulário onde elegeram suas preferências,
justificando a escolha.
De posse desses formulários, a coordenação da escola dividiu e distribuiu os
alunos entre as oficinas, procurando atender suas preferências mas fazendo-o
segundo alguns critérios estabelecidos e explicados previamente. Os principais
critérios de escolha foram: a preferência para os alunos da série mais alta (que
não teriam a chance de participar daquela oficina no ano seguinte), a justificativa
apresentada pelos alunos em suas argumentações e a necessidade de se manter
um número semelhante de alunos em cada turma (por volta de 15 alunos por
oficina).
A semana que antecedeu a escolha das oficinas foi bastante concorrida. O
coordenador lembrou aos professores que deviam “vender” bem suas oficinas,
fazendo alusões a “marketing” e “propaganda”. Durante uma manhã, os
professores das oficinas percorreram as salas, revezando-se e cruzando-se nos
corredores. Havia um clima de camaradagem mas podia-se sentir um leve tom de
competição entre os professores mais antigos, que aparentavam ser bastante
entrosados. Durante as mini-palestras, os alunos mostraram-se interessados ou
procuraram demonstrar seu desinteresse em cada oficina de modo bem claro.
Fizeram perguntas, aplaudiram, cumprimentaram, ou claramente ignoraram as
explicações. Os alunos também procuravam os professores pelos corredores,
pedindo informações, como se buscassem fundamentar melhor a sua decisão.
Afastando-se em seguida, claramente satisfeitos, levemente decepcionados ou
totalmente desinteressados.
Por diversas vezes, os alunos manifestaram-se publicamente, dentro da sala
ou nos corredores, declarando sua preferência por determinado professor/oficina,
ou mesmo virando as costas, desinteressados no tema ou oficina que estava
sendo apresentada (mas sempre de modo bem "natural", nunca em clima de
desrespeito ou agressividade).
5. As Oficinas 98
Parecia haver uma certa rivalidade natural no ar, uma velada competição
pela preferência dos alunos, mas tudo num clima de brincadeira e camaradagem.
Mesmo assim, um dos professores confessou logo de início que os alunos "não
gostavam muito” da sua oficina, indicando que existia o que identificava como uma
certa “hierarquia” entre as oficinas e os professores, pelo menos na preferência
dos alunos. Preferência esta que, segundo este relato, seria motivada, em grande
parte, pelo carisma pessoal dos professores e por sua relação com os alunos, mas
também, é claro pela atração natural inspirada pelo tema de cada oficina.
Assim, segundo este professor, “as oficinas de teatro e música eram as
preferidas”. Pude observar que aqueles dois professores (de teatro e música)
eram realmente bem próximos dos alunos, brincando e tratando a todos com um
misto de camaradagem e afetividade que era visível nos corredores e nos espaços
comuns da escola, como na hora do recreio, por exemplo. Naturalmente, as
preferências dos alunos eram variadas e sempre havia algum aluno procurando
determinado professor para declarar sua preferência: “vou escolher a sua oficina,
tá bom?” foi uma frase bastante ouvida, ou “cara, adoro a sua aula!”, inclusive em
relação à oficina do professor que apontou a existência da tal “hierarquia de
preferências”. Eram muito freqüentes os cumprimentos efusivos, abraços e demais
manifestações de carinho entre professores e alunos, deixando bem clara a
relação de afeto que muitos alunos mantinham com os professores e, por
conseguinte, com as oficinas e, por extensão, com a sua escola.
Como a oficina de RPG era uma novidade, parecia haver uma expectativa
natural no ar. Todos queriam saber como seria a procura pela nova oficina. Nos
corredores, os alunos dividiam-se entre os que demonstravam total desinteresse
pelo RPG, os que tinham uma curiosidade superficial (seja por uma questão de
cortesia com o “novo professor” ou por uma curiosidade genuína) e finalmente os
que estavam muito animados e excitados com a possibilidade de “jogar RPG na
escola” -- mostrando-se até mesmo incrédulos de que fosse o RPG que já
conheciam.
Para quebrar o gelo, o coordenador do projeto de oficinas de artes, em tom
5. As Oficinas 99
de brincadeira, chegou a apresentar a oficina de RPG como sendo um “tipo de
ginástica” (Reeducação Postural Global), o que causou uma divertida confusão em
algumas turmas. Foi possível perceber nesse momento que muitos alunos se
mostraram decepcionados quando o coordenador brincou dizendo que não se
tratava do RPG jogo e sim da técnica de fisioterapia. Felizmente, tudo logo se
esclareceu e os alunos deram risada.
O passo seguinte foi o preenchimento do formulário e a formação das
turmas. A ansiedade foi grande entre os alunos, que procuravam os professores,
pedindo que intercedessem a seu favor quando da escolha das turmas. “Me
escolhe aí, vai?” ou “Não esqueça que eu quero fazer a sua oficina, tá?” foram
frases muito ouvidas por todos os professores.
Nas justificativas dadas pelos alunos para suas preferências, havia de tudo:
desde alunos que declaram objetivamente gostarem mais de determinados temas,
até outros que procuraram estratégias mais “criativas”, como frases de efeito ou
defesas muito bem fundamentadas de por que deveriam ser escolhidos para cada
oficina. Esse caráter de jogo, de estratégia, de suspense e de vitória/derrota (com
a presença ou não na oficina escolhida) foi algo que marcou muito essa etapa do
trabalho, ampliando o caráter lúdico presente no programa das oficinas de artes
da PARAÍSO.
A distribuição final dos alunos foi feita pelo coordenador, com a presença e
auxílio dos professores. Sobre uma mesa grande, foram sendo separados os
formulários, reunidos de acordo com a primeira opção declarada pelos alunos.
Foi uma grande surpresa a procura pela oficina de RPG. O número de
alunos que elegeu a oficina de RPG como sua primeira opção foi claramente bem
maior do que o esperado pelo coordenador e pelos demais professores, chegando
a um terço do número total dos alunos, no caso da 5ª e 6ª séries. Um leve
desconforto se instalou entre os professores durante a "apuração". "É porque é
novidade...", disse o coordenador, explicando dessa forma a procura expressiva
pela oficina de RPG. Os demais professores pareceram surpresos, mas logo
5. As Oficinas 100
relaxaram, tratando tudo com uma boa dose de humor.
De fato, como imaginado a partir da observação da reação dos alunos diante
da exposição em sala de aula, as turmas de RPG de 5a e 6a e de 7a e 8a séries
tiveram grande procura, iniciando seus trabalhos com mais de 15 alunos
(chegando a 26 alunos no caso da turma de 7a e 8a), enquanto a de Ensino Médio
teve uma procura bem abaixo do número padrão de 15 alunos, iniciando suas
atividades com apenas 12 alunos.
Feita a apuração inicial, o trabalho do coordenador foi o de equalizar as
turmas, montando as listas de alunos que foram mais tarde afixadas nos murais
da escola. Como num exame vestibular, os alunos amontoavam-se diante dos
murais e das listas de nomes. As reações também foram as mesmas do
vestibular: alegria de quem conseguiu o que queria, decepção de quem foi
preterido.
É necessário registrar a reação explosiva de um aluno de 8a série, que,
quando percebeu que não conseguira sua vaga na oficina de RPG, saiu chutando
cadeiras e mesas na área da cantina da escola. Classificado imediatamente por
um dos professores como um "aluno problemático", (uma expressão que não
condiz em nada com o projeto pedagógico exposto pela escola em seu site), ele
foi abordado pela coordenação. Depois de uma rápida conversa, o aluno recebeu
uma advertência, mas acabou conseguindo o que queria, ou seja, mais tarde, veio
o pedido para que ele fosse aceito na turma de RPG, o que foi feito sem
problemas. A “estratégia” do aluno surtiu efeito? Aparentemente sim... Aliás, cabe
ressaltar que esse mesmo aluno viria a ter uma trajetória bastante interessante
durante a oficina, e que será relatada mais à frente.
Como local para a realização das aulas de RPG foi oferecido o espaço da
biblioteca, o que, de imediato, já sugeria muitas coisas sobre a representação que
a escola e os professores possuíam sobre os jogos de RPG, associando-os
claramente a livros, leitura, literatura etc. Mas como esse não é o foco do presente
trabalho, fica aqui a indicação de um aspecto a mais ainda por se pesquisar nesse
5. As Oficinas 101
campo, no tocante às representações do RPG e da sua relação com a escola e a
educação entre pais, alunos e professores, além de jogadores e mestres de RPG.
A biblioteca do Ensino Fundamental era uma sala grande, com as paredes
cobertas de estantes cheias de livros dos mais diversos, todos destinados ao
público infanto-juvenil. Uma rápida olhada no acervo indicou uma grande e variada
coleção de autores e títulos conhecidos e reconhecidos, além de clássicos em
diversas versões diferentes e mesmo os últimos lançamentos do mercado de
literatura infanto-juvenil. Ou seja, aquela era uma biblioteca que poderia ser
classificada como excelente, e que demostrava claramente a preocupação da
escola com um projeto de formação de leitores desde as séries e ciclos iniciais.
Figura 13: A Biblioteca do Ensino Fundamental
Numa das metades desta sala existiam três mesas -- uma mais alta e duas
mais baixas, com diversas cadeiras. Na outra metade, um grande espaço com
muitas e muitas almofadas coloridas, utilizadas pelos alunos quando precisavam
sentar-se em círculo, para discussões e dinâmicas diversas. A mesma sala foi
usada para as aulas de 5a e 6a e de 7a e 8a séries.
5. As Oficinas 102
O Ensino Médio ocupava uma outra casa, em outra sede da escola, onde
existia uma outra biblioteca, dedicada exclusivamente a esse segmento. A
biblioteca do Ensino Médio contava com sensivelmente menos livros que a do
Ensino Fundamental. O acervo não era nem de longe tão vasto ou variado,
consistindo majoritariamente de enciclopédias e obras de referência. A presença
de jornais e revistas era uma constante, o que sugeria um perfil um pouco
diferente no trabalho com relação à leitura para esse segmento. Na biblioteca do
Ensino Médio, existiam ainda 5 computadores (um deles de uso exclusivo da
bibliotecária) e três mesas redondas com várias cadeiras, para estudo e trabalhos
em grupo. Durante as aulas, foi observado que várias vezes alunos e alunas de
outras turmas procuravam a biblioteca para utilizarem os computadores, seja para
trabalhos de pesquisa ou simplesmente para o lazer, usando a internet para visitar
sites de relacionamento, fotologs, blogs e outros.
Figura 14: A Biblioteca do Ensino Médio
5. As Oficinas 103
A falta de um quadro negro ou quadro branco (utilizado com canetas
hidrocor) em ambas as bibliotecas saltou logo aos olhos, representando uma
dificuldade clara para que as oficinas se organizassem no esquema de "aulas"
normais. Isso em si já indicou que seria necessário um caminho "não-
convencional" para a organização do espaço, do tempo e das atividades durante
as oficinas de RPG.
As demais oficinas de artes ocupavam espaços já definidos para elas, sendo
uma sala de música com instrumentos e equipamentos, uma sala de dança com
espelho e barras e uma sala de artes plásticas, preparada para o trabalho com
tintas e materiais os mais diversos, que ocupava um espaço que já foi claramente
dedicado a um laboratório de ciências. As oficinas de teatro e vídeo ocupavam
salas "normais", assim como a de desenho animado, que contava também com
equipamento para visionamento de vídeo.
As aulas de todas as oficinas aconteciam no mesmo dia e horário. As de 5a
e 6a séries ocupando os dois primeiros tempos de aula e as de 7a e 8a durante os
dois últimos, ambas na quarta-feira e na mesma unidade da escola. Já as oficinas
do Ensino Médio também aconteciam nos dois primeiros tempos de aula, mas às
quintas-feiras, em outra unidade.
Para esta pesquisa, foram observados e documentados os trabalhos de
quatro oficinas: as duas primeiras oficinas (trimestrais) de 5a e 6a séries e as
oficinas anuais de 7a e 8a séries e de Ensino Médio.
Os trabalhos se estenderam de março até fins de novembro, e os relatórios
foram divididos por turma, sendo assim organizados:
• 1ª Turma de 5a e 6a séries (ou 5601) - de março a maio
• 2ª Turma de 5a e 6a séries (ou 5602) - maio a setembro
• Turma de 7a e 8a séries (ou 7801) - março a novembro
• Turma de Ensino Médio (ou EM01) - março a novembro
5. As Oficinas 104
As primeiras turmas sofreram o ônus (e receberam o bônus) da novidade. O
trabalho com RPG na PARAÍSO era uma novidade para os alunos, para a escola
e também para o próprio professor. Assim, apoiado em experiências anteriores de
aplicações do RPG em escolas, coordenadas por mim, por amigos e por outros
pesquisadores conhecidos meus, além de experiências relatadas em textos na
internet e/ou pesquisas acadêmicas sobre o tema do RPG na Educação, comecei
a planejar como seriam os trabalhos com a turma.
A primeira grande dificuldade foi o espaço. A biblioteca do Ensino
Fundamental não oferecia mesas e cadeiras em número suficientes para todos os
alunos. Ficou claro que seria necessário dividir as turmas entre os que ocupariam
as mesas e os que se sentariam em almofadas, num grande círculo no chão.
Figura 15: almofadas e mesas
Isso impedia a utilização confortável de atividades escritas ou de trabalhos
com textos mais extensos, tanto de leitura como de escrita, durante as aulas.
Também não havia quadro negro (ou branco), o que não permitia a utilização do
recurso de passar instruções para toda a turma de uma vez, por escrito, com giz
ou canetas hidrográficas.
Diante disso, a primeira estratégia utilizada foi tentar dividir a turma entre os
que já conheciam RPG e os que ainda não conheciam o jogo. Após uma conversa
de "aquecimento", onde me apresentei e expus, em linhas gerais, o que pretendia
realizar, pedi que os alunos de todas as turmas escrevessem numa folha de papel
o que sabiam sobre RPG, se já jogavam (ou não) e o que esperavam da oficina.
5. As Oficinas 105
Essas "folhinhas" foram meu primeiro "guia" para planejar o trabalho. A partir do
que os alunos escreveram e disseram, percebi que, apesar de muitos deles
saberem o que era o RPG, havia nitidamente uma diferença entre os que já
jogavam e os que não jogavam (e que eram a maior parte das turmas).
Como as oficinas trimestrais tinham curta duração (apenas 11 aulas) e havia
a necessidade de se gerar material para ser exibido nas mostras de
encerramento, paralelamente ao trabalho de ensinar as regras do jogo e realizar
as partidas, tracei logo de início as seguintes estratégias gerais para o trabalho:
1. concentrar os esforços em apresentar o RPG para os alunos em linhas bem gerais, sem usar regras detalhadas ou complexas demais;
2. trabalhar majoritariamente com o registro oral (sem anotações no quadros, sem cadernos, materiais impressos, apostilas ou outros), pela falta de mesas e quadro;
3. realizar jogos de curta duração, utilizando regras e histórias bem simples, procurando adequar o RPG aos tempos da escola;
4. trabalhar a criação dos personagens com pouquíssimos detalhes de regras, deixando muito espaço para a interferência criativa dos jogadores;
5. incentivar, a todo momento, a produção de textos e desenhos pelo alunos, relacionados sempre ao que acontecia nas aventuras;
6. estar aberto a modificar o curso das atividades de acordo com os interesses manifestados pelos alunos;
7. estar pronto e flexível para atender demandas variadas diante do caráter de diversidade no perfil dos alunos (meninos x meninas, jogadores x não-jogadores, mestres x não-mestres, entusiastas x novatos no RPG, jogadores de RPGs de livro x jogadores de RPGs de computador, etc).
Além, disso, havia ainda um eixo condutor na minha proposta, que tomou a
forma de uma espécie de "filosofia" que decidi aplicar ao trabalho: “dar liberdade
aos alunos”. Liberdade para ir e vir, liberdade para sair da sala (para ir ao banheiro
ou beber água), liberdade para se engajar ou não nas atividades. Nada disso foi
dito aos alunos, claro.
Essa filosofia nasceu do desejo de não estabelecer nenhuma forma de
coerção ou "obrigação" no trabalho com o RPG. Esse foi sempre um dos
pressupostos básicos do trabalho, que intencionava criar um claro diferencial com
5. As Oficinas 106
relação às atividades escolares "tradicionais" e marcar a oficina de RPG como um
espaço onde a liberdade e o interesse dos alunos fossem os reais motivadores
dos trabalhos.
Coincidentemente (ou não?), o que nasceu ao longo dos anos, fruto das
minhas reflexões sobre o uso do RPG nas escolas, a partir da pesquisa e da
experiência de muitos anos com o jogo, acabou refletindo os princípios básicos da
proposta pedagógica da PARAISO, o que foi uma surpresa muito positiva.
Ao final do período letivo (seja trimestral ou anual), foram realizadas as
mostras com os trabalhos das oficinas, contando com exposições e apresentações
dos alunos. As mostras dos trabalhos das oficinas de RPG, consistiram em
exposições com desenhos, textos, mapas, personagens etc. desenvolvidos pelos
jogadores para seus jogos, ao longo das partidas, além da confecção de livretos
temáticos para algumas das oficinas. Havendo espaço também para projetos
individuais ou em grupo, realizados pelos próprios jogadores, que desenvolveram
seus próprios jogos de RPG, seja em formato padrão (RPG “de mesa”) ou
eletrônico (utilizando um software de domínio público para desenvolver pequenos
videogames inspirados no RPG).
Figura 16: capa do livreto apresentado numa das mostras
5. As Oficinas 107
Outro traço de relevante interesse no projeto das oficinas de RPG veio do
fato das turmas contarem com alunos portadores de necessidades especiais ou
com dificuldade de aprendizagem, já que a PARAÍSO possui uma proposta
pedagógica de trabalhar no sentido de uma política clara de inclusão.
Pelo fato de articular múltiplas linguagens e formas de expressão diversas,
tanto verbais quanto escritas, pictóricas, gráficas, de representação,
argumentativas e relacionais, os jogos de RPG ofereciam uma gama muito rica e
flexível de possibilidades de atuação para os integrantes da oficina,
especialmente aqueles com alguma dificuldade específica em se expressar
segundo os códigos mais comumentes trabalhados na escola, ou seja, os da
leitura e escrita. Isso ficou claro desde o início dos trabalhos, mas foi mais
pungente em determinados momentos e casos que estão relatados mais à frente.
A afetividade foi outro elemento que se mostrou presente e necessário ao
trabalho desde o início. A todo momento, os alunos buscavam construir comigo
uma relação marcada pelo afeto, sendo comuns as manifestações de carinho
(como acenos, sorrisos e abraços) nos corredores e em momentos como o recreio
ou a hora da saída. Essa afetividade contribuiu muito para o trabalho,
aproximando professor e alunos também através da dimensão lúdica do jogo e da
brincadeira, criando uma relação de amizade e companheirismo, muito parecida
com aquelas que surgem naturalmente nas mesas de RPG entre o mestre de jogo
e os jogadores.
Claramente, ainda que a afetividade parecesse ser um traço marcante da
escola PARAÍSO como um todo, algo como a “personalidade”, o “estilo” da escola,
em muitos momentos foi como se o jogo potencializasse essa relação de afeto
que os alunos buscavam construir com o professor (e a escola), na medida em
que, como professor, eu me colocava muito mais como “mestre de jogo”, jamais
me posicionando como uma figura cuja autoridade era “imposta” por sua posição,
mas sim como alguém cuja autoridade era um elemento necessário para a fruição
do jogo e o desenrolar produtivo dos trabalhos.
6. As Turmas: Descrição e discussão
Numa tentativa de delimitar melhor a análise dos dados colhidos para este
trabalho, optei por dividir a apresentação de acordo com as quatro turmas com as
quais o trabalho foi desenvolvido ao longo do ano. Assim, além de uma descrição
mais ou menos cronológica dos eventos, tornou-se possível passar ao leitor uma
visão mais global de como se deu o trabalho com cada uma das quatro turmas e
abriu-se a oportundade para a discussão de alguns dos temas e fatos mais
marcantes a partir do momento onde eles se manifestaram de forma mais
cristalina ou pungente.
Dessa forma, após a descrição do trabalho com cada uma das turmas, trava-
se uma rápida discussão de um único aspecto, aquele que se mostrou mais
relevante no confronto entre os objetivos da pesquisa e os dados colhidos no
campo com aquele grupo, naquele momento da pesquisa. Obviamente, um
mesmo fato ou fenômeno poderia muito bem ter se manifestado e ter sido
observado em muitos outros momentos, em outras turmas. Porém, em prol de
uma proposta de organização das idéias e pelo fato de algumas turmas terem se
notabilizado mais por um ou outro aspecto dentro do escop dete trabalho, escolhi
manter a discussão dos dados o mais próxima possível da descrição dos mesmos.
6.1 Análise das categorias
Na busca por delimitar e recortar melhor as categorias que orientariam o meu
olhar nesta pesquisa, parti do que foi discutido inicialmente sobre Competências, e
busquei contrapor o modelo das “8 competências essenciais para a vida
moderna” proposto por Perrenoud, aos “quatro pilares para a educação no
século XXI”, do relatório elaborado por Jacques Delors para a Unesco e também
aos “8 Códigos da Modernidade”, propostos por Bernardo Toro como sendo “as
capacidades mínimas para participação produtiva no Século XXI” (TORO, 1996).
6. As Turmas: Descrição e discussão
109
Ao fazer isso, percebi de imediato algumas recorrências no trabalho desses
autores, o que poderia ser um indício de onde os seus pensamentos e propostas
mais se aproximam e onde eles começam a se afastar. Mas algo ainda mais útil
para esta pesquisa me pareceu ser o contraponto entre estas três concepções de
autores tão distintos (Perrenoud, Delors e Toro) e os “Sete Princípios” da escola
PARAISO (v. cap. Dois). Ao fazer isso, pude perceber que, de um jeito ou de
outro, cada um dos sete princípios da escola PARAÍSO contém (ou contempla)
uma ou mais das competências de Perrenoud, ou reflete um ou mais dos pilares
de Delors ou expressa uma ou mais dos códigos de Toro...
Reuni todas essas informações e, em seguida, por meio de uma tabela,
procurei determinar em qual(is) dos 7 princípios da PARAÍSO os modelos de
Perrenoud, Delors e Toro se expressam mais claramente.
AS 8 “COMPETÊNCIAS ESSENCIAIS” DE PERRENOUD: 1. Saber identificar, avaliar e valorizar as suas possibilidades, os seus direitos,
os seus limites e as suas necessidades; 2. Saber formar e conduzir projetos e desenvolver estratégias, individualmente
ou em grupo; 3. Saber analisar situações, relações e campos de força de forma sistêmica; 4. Saber cooperar, agir em sinergia, participar de uma atividade coletiva e
partilhar liderança; 5. Saber construir e estimular organizações e sistemas de ação coletiva do tipo
democrático; 6. Saber gerir e superar conflitos; 7. Saber conviver com regras, servir-se delas e elaborá-las; 8. Saber construir normas negociadas de convivência que superem diferenças
culturais. OS 8 “CÓDIGOS DA MODERNINDADE” DE TORO:
1. Domínio da leitura e da escrita; 2. Capacidade de fazer cálculos e resolver problemas; 3. Capacidade de analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situações; 4. Capacidade de compreender e atuar em seu entorno social; 5. Receber criticamente os meios de comunicação; 6. Capacidade de localizar, acessar e usar melhor a informação acumulada; 7. Capacidade de planejar, trabalhar e decidir em grupo. 8. Capacidade de desenvolver uma mentalidade internacional
OS “4 PILARES” DO RELATÓRIO DELORS E DA UNESCO:
1. Aprender a conhecer 2. Aprender a fazer 3. Aprender a conviver
6. As Turmas: Descrição e discussão
110
4. Aprender a ser
OS 7 PRINCÍPIOS DA PARAISO PERRENOUD TORO DELORS
Conhecimento Significativo 1,2,3 3,5,6, 1, 4
Convivência Social 3,4,5,6,7,8 4,7,8 3, 4
Subjetividade Contemporânea 1 4,5, 4
Expressividade Múltipla 2 1,2,5 1,2
Autonomia 1,2,4,7 3,6 1,2,4
Leitura Textual e Leitura de Mundo 3 1,3,5,6 1,4
Participação Social 4,5,6,7,8 4,7,8 2,3
A partir de uma rápida análise da tabela, parece seguro considerar que as “8
competências” com as quais se (pre)ocupa Perrenoud estão mais claramente no
campo da convivência e da participação social, da formação da autonomia e de
uma noção do viver democrático, podendo-se até mesmo dizer que seriam
competências muito mais “polìticas” do que “educacionais”, no sentido estreito
desses termos, o que é o oposto de como se apresentam os “8 códigos” de Toro,
aparentemente muito mais ligados à relação do indivíduo com a informação e o
conhecimento do que a proposta de Perrenoud, muito mais preocupado com a
formação para a convivência dos indivíduos entre si, dentro de uma sociedade
democrática.
Já os “4 pilares” propostos por Delors, até pelo simples fato de serem
apenas 4 e não 8 como os outros, apresentam-se como uma proposta mais
“enxuta” e abrangente, podendo ser identificados mais facilmente em vários dos 7
princípios da escola Paraíso, o que me pareceu também um indício de uma maior
aproximação do projeto pedagógico da escola com aquilo que é preconizado pelo
documento da UNESCO com vistas à Educação no século XXI.
E, lembrando o Capítulo Dois, a partir do que foi apontado por uma das
entrevistadas de Lélis (2005), a escola PARAÍSO parece manter mesmo (pelo
menos até onde se apurou) essa imagem de uma escola que busca formar
pessoas solidárias, participativas e com “grande comprometimento social e
6. As Turmas: Descrição e discussão
111
político”, sobretudo a julgar pelo modo como a escola expõe suas propostas
pedagógicas e pelo discurso da instituição e de seus representantes colhidos ao
longo desta pesquisa.
6.2 A Turma 5601
A primeira turma de 5a e 6a séries contou com 15 alunos (12 meninos e 3
meninas). A maioria deles não conhecia e nem jogava RPG, sendo que os poucos
que conheciam o jogo, mencionavam muitos RPGs “de computador” e jogos
online, como Tibia, Mu ou Ragnarok.
Não foram poucas as dificuldades no trabalho com essa turma. A primeira e
maior delas veio no quesito "disciplina". Minha inexperiência como professor
aliada à crença na construção de um espaço de liberdade total no trabalho com o
RPG em sala de aula colocavam-se como grandes desafios ao trabalho.
O fato de não haver inicialmente nenhum aluno que pudesse atuar como
mestre e dividir comigo a condução dos grupos de jogo apenas agravava a
situação. A solução encontrada foi dividir a turma em três grupos diferentes e
cuidar de cada um deles separadamente.
Muitas vezes, foi necessário cuidar de três mesas de jogo simultâneas,
narrando três histórias diferentes ao mesmo tempo. Algo que nunca tinha feito
como “mestre de jogo”... E nessas horas, a solução foi apresentar um desafio a
um grupo e pedir que pensassem na resposta enquanto me dirigia ao grupo
seguinte para retomar a narrativa.
O problema era que, enquanto o primeiro grupo ouvia a narração e o
segundo grupo pensava no problema, ainda havia o terceiro grupo, no qual alguns
alunos já tinham se deconcentrado do jogo e preferiam se dedicar a intermináveis
“guerras de almofadas”.
6. As Turmas: Descrição e discussão
112
Figura 17: Flagrante do pós guerra...
Depois de várias tentativas infrutíferas de controlar essa situação, parecia
inevitável a tomada de uma atitude disciplinar mais drástica, o que contrariava
frontalmente o objetivo traçado para o trabalho.
Foi então que tentei uma abordagem diferente. Usando a experiência como
mestre de jogo, apelei para a “etiqueta de jogo” e para outros elementos típicos da
prática do RPG. A todo momento, passei a lembrar aos alunos que seus
personagens só poderiam ter sucesso se eles se concentrassem na história,
tentando motivá-los a se integrarem ao jogo. Ao mesmo tempo, fui apostando na
formação de novos mestres de jogo entre aqueles alunos, mesmo sabendo que
ainda não conheciam o RPG. Adotando um sistema de regras mínimas, facilmente
entendido por todos, identifiquei alguns alunos mais aplicados e interessados e
passei a incentivá-los a atuarem como mestres.
O resultado foi que dois desses alunos realmente se interessaram e
passaram a atuar como mestres, mesmo sem saber as regras ou sem ter
experiência prévia com o RPG. Abordando o RPG como uma brincadeira de
contar histórias, numa mistura interessante com muitos elementos dos
videogames, desenhos animados, mangás (histórias em quadrinhos japonesas) e
filmes de cinema inspirados em livros (como O Senhor dos Anéis ou Harry Potter),
os alunos começaram a criar suas próprias histórias, comandando seus próprios
jogos, tomando para si a tarefa de manter seus colegas em silêncio ou
participando do jogo.
6. As Turmas: Descrição e discussão
113
Em alguns momentos, alguns alunos recusaram-se a participar dos jogos,
preferindo deitar sobre as almofadas, ler revistas ou livros ou até mesmo terminar
algum dever de uma outra disciplina. Recorrendo novamente à filosofia de
“liberdade total”, deixei claro a eles que, enquanto não atrapalhassem os colegas
ou a aula, podiam fazer o que quisessem.
Surpreendentemente, foram poucos os que recorreram a esse tipo de
comportamento, e mesmo os que o fizeram, não fizeram disso algo recorrente,
sendo mais uma insatisfação eventual, vinda de um dia onde declaravam estar
com sono, ou irritados por algum motivo, ou alguma frustração vinda da má-sorte
de seus personagens no jogo.
O fato de haver alunos de 5a e 6a séries misturados criou alguns problemas
de entrosamento entre eles. Como esperado, os alunos se dividiram em grupos
formados entre aqueles que já se conheciam ou já eram amigos. Nas ocasiões em
que houve a necessidade de “misturar” os alunos, alguns atritos surgiram.
Num desses casos, um aluno de 6a série foi eliminado do seu jogo (seu
personagem foi morto num combate) e ele pediu para ser encaixado em outro
grupo, pois se dizia “perseguido pelo mestre”. Quando tentei introduzi-lo como
personagem num outro grupo, cuja história já estava bem avançada, houve uma
reação de recusa veemente. “Sai daqui, seu mala!”, gritou uma das alunas,
recusando-se a aceitar o novo companheiro de jogo.
Recorrendo a uma estratégia muito comum nos RPGs (tomada emprestada
de muitas narrativas), que consiste em introduzir na história um novo personagem
que chega trazendo consigo a solução do problema, seja na forma de uma
informação essencial ou como portador de um poder (mágico ou não) necessário
à consecussão dos objetivos dos protagonistas, disse aos jogadores que aquele
novo personagem era um mago, e dei a ele algumas magias que facilitariam a
missão dos personagens.
Na história, eles precisavam invadir um navio pirata, onde o príncipe herdeiro
6. As Turmas: Descrição e discussão
114
do trono estava aprisionado. Mas havia muitos guardas de prontidão. Quando
disse que o novo personagem era um mago e possuía a magia de sono, os
demais jogadores finalmente concordaram em aceitá-lo na mesa e o novo jogador
conseguiu se entrosar no novo grupo, usando seus poderes para adormecer os
guardas, permitindo que seus novos companheiros tivessem sucesso em sua
missão.
Conforme as aventuras foram acontecendo, passei a dirigir os trabalhos dos
alunos, pedindo que descrevessem em palavras ou com desenhos os locais onde
aconteciam as histórias. E propus que reuníssemos todo o material que fosse
gerado até o fim da oficina, criando assim uma cidade. Os alunos concordaram e,
na prática, a abertura proporcionada pelo tema da cidade dava liberdade a eles
para produzirem materiais dos mais diversos, descrevendo locais, casas, regiões,
personagens, monstros, equipamentos etc.
Em alguns dos desenhos foi possível identificar aquilo que Sônia Mota
chamou de “pilhagem narrativa” e que defendo que passemos a chamar de
heteroglossia e que se refere ao processo pelo qual os jogadores e mestres de
RPG recorrem às mais diversas vozes, fontes e referências, tomando
emprestados os muitos e mais variados elementos ao seu dispor para construírem
seus personagens e suas histórias.
Foi possível observar também o que Pavão registrou, com uma grande
preponderância de produtos e linguagens próprias da cultura de massa
contemporânea em relação à literatura, os clássicos ou à mitologia entre as
referências dos mestres e jogadores. Muitos dos desenhos e descrições feitos
pelos alunos mostravam uma interessante e rica mistura de elementos retirados
de livros de RPG, desenhos animados, histórias em quadrinhos, filmes e, acima
de tudo, videogames e jogos eletrônicos em geral.
6. As Turmas: Descrição e discussão
115
Figura 18: Referências ao cinema (Harry Potter), mangá e aos videogames presentes no jogo
Outro ponto muito interessante foi observar como os jogadores “trocam”
referências entre si, construindo seus personagens e desenhos a partir dos
desenhos dos colegas, reciclando e resignificando referências. Num desses
casos, um dos alunos desenhou um castelo e, ao criar uma bandeira, utilizou um
símbolo que foi rapidamente adotado por outro aluno quando este desenhou a
casa da guarda. Mais tarde, ao conversar com o pai do primeiro aluno, vim a
descobrir que aquele símbolo usado na bandeira era na verdade o logotipo de
uma griffe de roupas e materiais relacionados à prática do skate. Retirado do
contexto dos esportes radicais e resignificado como brasão medieval, o desenho
foi imediatamente passado adiante em uma nova forma, com novo significado.
Figura 19: Do esporte radical ao reino medieval: mesmo símbolo, diferentes encarnações
6. As Turmas: Descrição e discussão
116
Outra forma de heteroglossia foi apresentada por um aluno quando este
criou vários personagens utilizando fotos de revistas e jogando doses generosas
de ironia e humor, interagindo de forma muito criativa com as fotos em suas
descrições.
Seus personagens representam uma crítica ácida ao que os colegas
estavam fazendo durante as aulas, buscando criar (como quase todos os
jogadores de RPG, aliás...) personagens cheios de poderes e capacidades,
enquanto ele trazia personagens com limitações físicas, de idade, etc. mas que
ainda assim conseguiam um jeito ou outro de terem sucesso. A crítica social
presente em alguns momentos também me chamou a atenção e, me arriscaria a
dizer que é sua forma de interagir criticamente com o posicionamento da escola
como um todo, que, como já dissemos, goza de uma reputação e se enxerga a
partir de um viés de participação política e social de orientação bastante
progressista.
Suas interferências criativas junto às fotos também representam um aspecto
muito interessante na prática da heteroglossia, numa interação consciente e lúdica
com as vozes presentes nas referências e nas fontes, através de releituras,
resignificações, paródias, jogos de palavras (ou de idéias, conceitos) etc. A
“narrativa sem-dono” descrita por Mota acaba não sendo uma “narrativa tão sem-
dono assim”, na medida em que o jogador de RPG elabora, dialoga, critica, brinca
e antropofagicamente digere a referência transmutando-a em algo seu, próprio,
original. Veja os exemplos:
6. As Turmas: Descrição e discussão
117
Figura 20 - Aleijadinha: Ela corre mais rápido que uma preguiça, ela é a... Aleijadinha!!! Ela é mais
lerda que a minhha avó, mas minha avó não é ladra. (...)
Figura 21 - O Papa: Papa é um bandido que deve ter sessenta anos. Ele é meio lento porque ele é
zen. Por exemplo: quando vai assaltar um banco ele diz: - ô moço, leia a bíblia que faz bem e
deixa eu roubar só mil dólares? E o moço deixa.
6. As Turmas: Descrição e discussão
118
Figura 22 - Magrão - Ele é um pouco desastrado porque está só um pouquinho fora do peso. Deve
ter mais um menos seus quarenta anos. (...)
Figura 23 - João, o feto - Ele é inteligente, parece até o Jimy Neutron, ele assalta assim, vai se
ajoelhando até chegar no cofre, porque aí quando alguém abrir o cofre ele vai ver o segredo.
6. As Turmas: Descrição e discussão
119
Nesta primeira turma, houve dois casos muito especiais. O primeiro foi o
aluno G, que passou as primeiras aulas numa grande apatia. Não se integrava às
histórias, não se manifestava como personagem e não interagia muito com os
colegas. Participando de uma das mesas onde um dos alunos atuava como
mestre, G passava a maior parte do tempo folheando livros e revistas, totalmente
alheio ao que acontecia no jogo.
Ao final da terceira aula, ao ser interpelado, G manifestou sua insatisfação e
declarou sua vontade de trocar de oficina. Perguntado sobre o motivo, ele disse
que não estava gostando porque não conseguia entender direito o que estava
acontecendo durante o jogo. O próprio aluno declarou então que tinha muita
dificuldade de ler e escrever: “É que eu tenho dislexia”, disse ele.
De imediato, pedi que desse outra chance ao RPG e que, juntos, tentaríamos
encontrar uma solução. Prometi a ele que, se ao final da próxima aula ele ainda
estivesse insatisfeito, iríamos juntos ao coordenador pedir a troca de turma (algo
que está previsto no regulamento das oficinas, inclusive).
Na aula seguinte, G trouxe uma pequena carta onde descrevia seus
principais descontentamentos com a oficina, e que incluí nos Anexos deste
trabalho (v. Anexos - Relatório da Oficina).
Conversando com G, disse-lhe que o objetivo da oficina de RPG era que
todos se divertissem e que, se ele não estava se divertindo com o jogo,
poderíamos encontrar outra forma dele se integrar ao grupo. Perguntei então se
ele gostava de desenhar, e ele disse que sim.
Como um dos trabalhos que sugeri à turma era o de desenvolver uma
cidade, descrevendo e desenhando os locais mais importantes onde as aventuras
estavam acontecendo, G me disse que poderia desenhar “um estádio”.
Tomando da estante um livro sobre a Antiguidade, com várias ilustrações de
teatros e estádios gregos e romanos, sugeri a G que se inspirasse naquelas
imagens. “Ah, é como o Coliseu, né? Minha tia já foi lá. Eu vi as fotos.”
6. As Turmas: Descrição e discussão
120
A partir daí, quase que imediatamente, G iniciou uma série de estudos
detalhados sobre o estádio, desenhando várias tentativas de representar as
arquibancadas, estádios vistos de cima e estruturas das mais diversas.
Figura 24: Planejando o Stadium
Ao final de uma única aula, G tinha produzido mais de uma dezena de
pequenos desenhos a caneta, que me entregou com orgulho. Mais tarde, após
outros estudos, G me surpreendeu com uma pergunta: “Posso fazer uma
maquete? É que não estou conseguindo fazer as arquibancadas direito e vai ficar
melhor na maquete.”
Com a minha permissão, G pediu a ajuda de uma tia que era arquiteta e,
junto com ela, construiu uma enorme maquete do seu estádio, feita de isopor,
arame e papel colorido. No momento em que ele entrou na sala de aula
carregando sua maquete (que mal passava pela porta, de tão grande!) todos os
alunos da turma ficaram em silêncio.
Depois de alguns segundos, alguns me perguntaram: “a gente também pode
fazer maquete?” Trabalhando essa nova possibilidade, alguns alunos se reuniram
e decidiram fazer a maquete de um castelo.
6. As Turmas: Descrição e discussão
121
Figura 25: A maquete do Stadium
Recorrendo novamente à biblioteca, ofereci a eles um pequeno livro ilustrado
onde havia um desenho detalhado de um castelo. Durante as próximas aulas, o
grupo passou a experimentar com materiais e sucata até chegar a uma versão do
castelo, que, por falta de tempo, não pode ser finalizada para a mostra.
Assim, a contribuição de um aluno que não encontrava seu espaço na aula
para se expressar e que, a partir da possibilidade de utilizar outros códigos e
linguagens, deu asas à sua criatividade, incentivou outros alunos a usarem novas
formas de expressão e trabalho dentro da oficina.
Figura 26: O Castelo 2D e 3D
6. As Turmas: Descrição e discussão
122
Outro caso digno de nota foi o da aluna G. A princípio tímida e de
comportamento “difícil” (segundo a avaliação de outros professores), G não
participava muito das histórias e, quando o fazia, adotava sempre atitudes meio
“caóticas”, com o intuito claro de “bagunçar” o jogo. Os companheiros a
censuravam e com a minha orientação como mestre do jogo, as coisas acabaram
indo bem.
Desse modo, G começou aos poucos a estabelecer comigo uma relação
marcada inicialmente por brincadeiras. Expressando-se sempre com um jeito
“infantilizado”, durante uma das aulas, G me perguntou: “posso te chamar de
‘coisinha’?” Em seguida, perguntou: “coisinha, posso te chamar de ‘psiu’?” E mais
tarde: “coisinha, quer dizer, psiu... posso te chamar de ‘mamãe’?”
Entrando na brincadeira, respondi: “Olha... ‘coisinha’, tudo bem... ‘psiu’ eu
até aguento, agora ‘mamãe’ já é demais!”
A partir daí, G começou a se “soltar” mais comigo e com os colegas. E algo
mais incrível aconteceu quando descobri um lindo desenho em seu caderno.
Quando perguntei quem tinha feito aquele desenho, ele me respondeu meio tímida
que tinha sido ela mesma. A partir daí, passei a incentivá-la a desenhar os
personagens da aventura, o que ela começou a fazer meio reticente.
G realmente demonstrava um inegável talento e uma grande habilidade de
desenho, expressando-se na linguagem típica dos mangás (quadrinhos
japoneses) com muita competência. Mas seu comportamento continuou marcado
pelas brincadeiras, pelo jeito “caótico” e por uma voz infantilizada, que insistia em
manter. Aliados às roupas pretas e meias compridas e aos cabelos desarrumados,
sua atitude parecia compor um personagem como os que desenhava no caderno.
Até que um dia, numa de nossas últimas aulas, ao elogiar mais uma vez
seus desenhos, disse que ela deveria procurar um curso ou professor particular de
desenho, pois seu talento era claro e não devia ser desperdiçado. Mudando
6. As Turmas: Descrição e discussão
123
totalmente o tom de voz e até mesmo a expressão e a fisionomia, G me disse:
“Sabe o que é, é que eu acho um saco esse lance de aula...”
Surpreso pela súbita mudança de atitude, disse a ela que prosseguisse
estudando sozinha, procurando livros, histórias em quadrinhos, pinturas e
ilustrações famosas e que poderia mandar seus desenhos para editoras pois eram
quase profissionais. Talvez aquela tenha sido a única vez em que consegui
conversar com a “verdadeira” G , e não com a personagem “esquisita” que ela
parecia interpretar no jogo da vida real.
Mais tarde, observando seus desenhos, pude notar algo interessante. Ao
caracterizar seus personagens, G colocou num deles os tênis de cano longo que
sempre calçava e em outro as meias altas e listradas, que eram outra marca
registrada do seu guarda-roupa.
Figura 27: Desenhos de G. mostrando os tênis e as meias listadas
Será que isso poderia ser tomado como uma indicação de que, através dos
desenhos e do ambiente de “liberdade” e “não-escolaridade” representado pela
oficina de RPG, G conseguiu sentir-se segura e à vontade a ponto de mostrar uma
outra faceta que os professores, os colegas e a escola ainda não conheciam?
Parece que sim.
6. As Turmas: Descrição e discussão
124
Ao final do primeiro trimestre, realizou-se a mostra “Amiúde”, apresentando
os trabalhos das oficinas de artes. Como era a primeira vez que a oficina de RPG
participaria dessa mostra, houve um momento de dúvida na própria coordenação
sobre o que deveria ser apresentado. Como apresentar o jogo de RPG aos pais?
Como apresentar o trabalho realizado pelos alunos? Que espaço e que materiais
e equipamentos seriam necessários? Além disso, pelo fato de também ser “novo”
na escola, eu também não sabia muito bem como eram as mostras,
desconhecendo o que acontecia e como deveria formatar o trabalho da oficina
para a “Amiúde”.
Aos poucos, por meio de muitas conversas com o coordenador das oficinas,
com os demais professores e ainda depois de observar muitos materiais
produzidos pelos próprios alunos na forma de murais, textos, jornaizinhos e
livretos que se encontram no acervo da biblioteca da escola, comecei a elaborar
um formato mais claro para essa apresentação.
Primeiro, planejei um livreto onde apresentava a oficina e explicava em
linhas gerais o que é o RPG, reunindo os desenhos e trabalhos feitos pelos
alunos. Além disso, a partir de cópias ampliadas das páginas do livro e de muitos
trabalhos dos alunos, fizemos cartazes com cartolinas coloridas.
No dia da mostra, muitos dos alunos fizeram questão de chegar antes da
hora para me ajudar na montagem da exposição. Alguns o faziam com nítido
interesse no conceito (“isso vale para a nota?”, perguntavam). Outros tinham uma
vontade sincera de contribuir, participar, de ver seus trabalhos exibidos na escola.
Ocupando um dos cantos do pátio da escola, numa área delimitada por
colunas, grades e muretas, os alunos e eu reunimos algumas mesas onde foram
dispostas as maquetes, vários livros de RPG e uma pilha com cópìas dos livretos
produzidos para o evento. Em cavaletes e suportes, ou colados pelas paredes e
nas grades, os cartazes produzidos pelos alunos decoravam o ambiente.
6. As Turmas: Descrição e discussão
125
Enquanto esperavam pelo início das apresentações de teatro, dança, vídeo e
animação, realizadas num palco e em telões instalados na quadra da escola, os
pais e alunos passeavam pela exposição de artes visuais (nos corredores e no
pátio) e visitavam a área, reservada ao RPG. Muitos pais de alunos da oficina de
RPG me cumprimentaram, relatando o entusiasmo de seus filhos com o jogo e os
trabalhos, procurando maiores informações sobre as atividades e o desempenho
de seus filhos ou simplesmente como uma espécie de cortesia com o professor.
Figura 28: Trabalhos da mostra Amiúde
Os livretos, que deveriam ser distribuídos para os alunos, acabaram sendo
levados por pais de outros alunos, curiosos com o trabalho, ou por outros alunos,
interessados em conhecer o RPG. As 20 cópias produzidas para o evento foram
sumindo rapidamente, e acabaram se esgotando ao fim da noite.
6. As Turmas: Descrição e discussão
126
O site da PARAÍSO na internet registrou da seguinte forma o evento:
“O 1o Amiúde 2005 aconteceu no dia 11 de maio. Às 19 horas, horário marcado para o início do evento, pais, estudantes, professores e demais espectadores já lotavam o local marcado. O espaço foi dividido em dois ambientes: no pátio externo, foram exibidas as exposições de artes plásticas e RPG; na quadra de esportes, foi montado o palco para o show de música e os espetáculos de teatro e dança. Foi também colocado o telão, para as projeções da Oficina de Vídeo.
Enquanto a equipe de professores e alunos combinava os últimos detalhes na quadra, os convidados observavam as produções de artes plásticas e RPG.
(...) A Oficina de RPG, "Primeiros Jogos - Uma Aventura",
trouxe aos alunos uma oportunidade singular de entrar em contato com o universo do imaginário. (...) A exposição dessa oficina tratou de apresentar aos leigos os elementos que compõem o universo onírico do jogo. O público observou a reconstituição do espaço imaginário através de maquetes de castelos, arenas e casas feitas pelos alunos. Havia também inúmeros desenhos que retratavam personagens fantásticos, como elfos, anões, semi-elfos, dragões e guerreiros medievais.
6.2.1 Expressividade Múltipla
Vivenciar e experimentar novas e diferentes linguagens e formas de
expressão é o principal objetivo por trás do projeto das oficinas de artes da
PARAISO, no qual se inserem as oficinas de RPG enfocadas neste trabalho.
Partindo da compreensão de que o mundo de hoje não é mais capaz de ser
verdadeiramente compreendido por poucos ou estáticos códigos de expressão,
mas antes se apresenta como uma realidade multifacetada e fragmentada, onde a
percepção e a consciência de tempo, lugar, identidade, laços de pertencimento e
modos de conhecer, ser e fazer, passam obrigatoriamente pela esfera dos meios
de comunicação de massa e das novas tecnologias da informação, vem a noção
de que nos fala MARTIN-BARBERO (op. cit.) de que as fronteiras entre as
instâncias da vida social vêm se tornando mais permeáveis e menos perceptíveis.
Esse “embaçamento” das fronteiras passa pela resignificação da idéia e do papel
da família, da religião, da nacionalidade, mas também pelo questionamento
quanto ao lugar do saber, do conhecimento estruturado, da escola e do professor
6. As Turmas: Descrição e discussão
127
nessa nova paisagem difusa.
E a possibilidade de expressão em diferentes linguagens é uma das
características definidoras do RPG. Unindo textos escritos, interpretação de
papéis, criação de personagens apoiados em imagens, desenhos, miniaturas,
cenários e articulando referências vindas do cinema, dos quadrinhos e da
literatura, o RPG possibilita aos jogadores e mestres, uma gama tão grande de
possibilidades de expressão que era mais do que natural que isso fosse
trabalhado nas oficinas de RPG da escola PARAISO. E os resultados (muitos dos
quais já comentados anteriormente) demonstram o acerto dessa escolha.
Encontrando no jogo a possibilidade de se expressarem de múltiplas formas,
por meio de múltiplas linguagens, jogadores e mestres puderam fazer da oficina
um lugar de criação e expressão livre, prazerosa, com o compromisso único da
diversão. Ao contrário das aulas de artes, onde a linguagem é objeto, aqui, na
oficina de RPG ela é instrumento, é meio. É o caminho pelo qual os jogadores se
comunicam, criam, representam, apreendem as informações do jogo e seguem
em frente. As múltiplas linguagens estão sempre a serviço do lúdico, da diversão.
Abrindo muitos e variados canais de comunicação e expressão entre os
jogadores, O RPG na PARAISO se apresentou sempre como possibilidade,
abertura, escolha, e nunca como imposição, exigência, limitação. Quem quer
escrever, escreve; quem quer desenhar, desenha; quem quer construir, constrói. E
todos criam, se expressam, participam e contribuem com o trabalho.
Seja por textos, desenhos, maquetes, criando jogos eletrônicos ou novos
RPGs, os alunos da PARAISO acabaram experimentando, na oficina de RPG um
pouco do que poderiam experimentar em cada uma das outras oficinas, em cada
uma das outras linguagens, exatamente por esse caráter multimidiático dos jogos
de RPG.
6. As Turmas: Descrição e discussão
128
6.3 A Turma 5602
A segunda turma de 5a e 6a séries contou com 16 alunos (15 meninos e
apenas uma menina). Logo de início, notei algumas diferenças com relação à
primeira turma. Havia uma clara divisão entre os alunos que já conheciam e
jogavam RPG e os que estavam na oficina para aprender o jogo. A rivalidade
entre esses dois grupos se mostrou presente desde o início das aulas. Além disso,
como muitos dos alunos tinham sido preteridos na escolha da turma do primeiro
trimestre, eles estavam chegando à oficina de RPG com muita expectativa e
desejo, o que deixaram claro em suas palavras iniciais de apresentação.
Dois alunos que já jogavam RPG se apresentaram como possíveis mestres
de jogo e rapidamente formaram dois grupos entre seus amigos, deixando o
restante da turma, que consistia no grupo dos que desconheciam o jogo, para
integrarem uma grande mesa de jogo coordenada por mim.
Um dos mestres utilizava regras próprias, criando aventuras inspiradas no
universo dos filmes de Star Wars, a saga cinematográfica dos cavaleiros Jedi,
criada por George Lucas, e que deu origem a muitos e muitos títulos de
quadrinhos, brinquedos e videogames. Tirando suas informações para o jogo de
uma enorme quantidade de revistas e livros sobre o universo de Star Wars,
comprados em bancas e livrarias, além de citar sempre cenas de filmes, desenhos
animados e videogames inspirados naquele ambiente ficcional, o aluno-mestre
reunia informações das mais diversas para compor seus personagens e histórias.
Os jogadores em sua mesa partilhavam do seu entusiasmo e demonstravam muito
conhecimento daquele universo e dos seus personagens, descrevendo
equipamentos, veículos, poderes e demais características.
6. As Turmas: Descrição e discussão
129
Figura 29: jovens mestres Jedi em ação!
Pela própria motivação dos alunos, aliada à experiência vinda do trabalho
com a primeira turma, nesta segunda oficina não houve tantos problemas com a
disciplina e a concentração. Os dois grupos de jogadores “experientes”,
coordenados por dois alunos, engajaram-se de imediato em suas aventuras,
enquanto o grupo de “novatos”, formado pela maior parte da turma, jogava comigo
como mestre.
Por diversas vezes, a rivalidade entre os dois grupos ficou patente,
especialmente entre alguns alunos, que manifestavam sua insatisfação quando a
atenção do professor era dirigida ao grupo dos “experientes”, que solicitavam
eventualmente algum esclarecimento.
Em determinado momento,a exemplo do que ocorreu em outras turmas, o
jogo extrapolou os limites físicos da oficina, com os jogadores pedindo para ficar
com as fichas dos personagens para poderem jogar durante o recreio ou no fim de
semana. Além disso, devido ao problema de acomodação enfrentado na
6. As Turmas: Descrição e discussão
130
biblioteca, um dos grupos de alunos pediu minha autorização para usar uma mesa
fora da área da biblioteca, numa das salas desocupadas da escola.
Mesmo resistindo a princípio, decidi atender o pedido dos jogadores por
acreditar que esse impulso de autonomia que manifestaram deveria ser
incentivado. Consultando a coordenação, os próprios alunos conseguiram um
espaço para o jogo e, atuando de forma completamente independente, os alunos
jogaram algumas partidas em uma outra sala, elaborando relatórios individuais ao
final da aventura.
Com o correr das aulas, os grupos de jogadores “experientes” acabaram
desejando se integrar à aventura jogada pelos “novatos”. As razões para esse fato
foram várias: o término das aventuras propostas pelos alunos-mestres, a vontade
desses alunos-mestres de atuarem também como jogadores e a curiosidade
despertada neles pela atuação do professor como mestre de jogo, além do desejo
manifestado muitas vezes pelos alunos “experientes” de afirmar seu conhecimento
das regras e do RPG em geral diante dos “novatos”.
Apesar da resistência de alguns alunos, os três grupos acabaram se
juntando, formando um grande grupo de jogo com todos os alunos da turma. Foi
uma oportunidade de perceber diversas dificuldades e potencialidades no trabalho
com o RPG diante de um grupo tão grande de jogadores (16, no total).
A primeira dificuldade era a de acomodação. Depois de tentar utilizar as
mesas, ficou claro que a melhor forma era reunir toda a turma num grande círculo,
com os alunos sentados no chão, sobre almofadas. Atuando como mestre do jogo,
eu me sentava ora em uma das cadeiras e ora no chão, junto aos alunos. Algumas
vezes, os alunos pediram que eu me sentasse na cadeira, para que todos
pudessem me ver.
Ao longo das aulas, a rivalidade entre “novatos” e “experientes” foi
crescendo, com alguns jogadores assumindo atitudes bastante antagônicas,
reclamando contra a atenção dada a um ou outro grupo ou jogador
6. As Turmas: Descrição e discussão
131
individualmente. Alguns jogadores dentre os “experientes” criaram perfis de
personagens marcados pela hostilidade e individualismo, escolhendo interpretar
guerreiros, mercenários e outros personagens bélicos, de tendëncias hostis.
Nesta turma foi possível observar mais uma vez o quanto os jogadores de
RPG recorrem a um amplo e variado espectro de referências na hora de criar seus
personagens e histórias. Unindo elementos oriundos de fontes diversas como
livros, romances, encicliopédias, histórias em quadrinhos, filmes, seriados de TV,
desenhos animados e videogames, entre outros, os jogadores e mestres de RPG
vão tecendo suas tramas e moldando seus personagens por meio de um processo
semelhante à feitura de uma colcha de retalhos, ou de um trabalho de sucessivos
recortes e colagens.
No caso da turma 5602, quando pedi que criassem seus personagens para a
aventura que uniria toda a turma num grande grupo de jogo, foi possível observar
mais de perto como se dá esse processo de entrelaçar de referências, na medida
em que muitos dos personagens foram descritos, desenhados, representados
visualmente e até mesmo interpretados de forma muito semelhante a diversos
personagens das mais variadas origens.
Desde os personagens dos filmes da trilogia “O Senhor dos Anéis” ou da
série “Guerra nas Estrelas” até referências a desenhos animados e quadrinhos
japoneses (animês e mangás), além de muitas e muitas referências aos RPGs
eletrônicos, especialmente aos jogos no estilo MMORPG, como Mu Online, Tibia
ou Ragnarock, os personagens criados pelos alunos demonstravam de modo
muito claro aquilo muito daquilo que eles lêem, assistem e consomem dentro do
cardápio variado de meios de comunicação disponíveis às crianças e jovens das
camadas médias urbanas.
6. As Turmas: Descrição e discussão
132
Figura 30: Pilhando ou criando?
Este processo de leituras e releituras sucessivas se manifestou de modo
muito interessante nesta turma, seja no momento em que vários jogadores
recorreram a livros da biblioteca ou aos livros de RPG para “copiarem” os
desenhos que mais interessavam ou então na ocasião em que um dos jogadores
teve uma tremenda má sorte nos dados e, ao tentar acertar um golpe no inimigo,
acabou acertando um dos colegas do grupo (no jogo apenas, não na “vida real”...).
Depois de darem boas gargalhadas com o acontencimento infeliz e de citarem o
fato diversas vezes nas aulas seguintes, um dos alunos decidiu, ao fim da oficina,
registrar num desenho aquele momento da aventura.
De imediato, outros alunos decidiram fazer suas próprias versões da cena,
criando charges e caricaturas que acrescentavam novos elementos ao episódio ou
procuravam retratá-lo da forma que seus autores achavam mais engraçado. O
aluno que tinha cometido a falha reagiu com um pouco de irritação, mas logo
percebeu que seria inútil o confronto e decidiu “entrar no jogo”, fazendo ele
mesmo desenhos nos quais ridicularizava os personagens dos colegas.
6. As Turmas: Descrição e discussão
133
Figura 31: Aconteceu...virou piada!
Nesta turma havia um aluno com necessidades especiais, que apresentava
muita dificuldade na fala e na escrita. Assim que identifiquei essas dificuldades,
passei a trabalhar no sentido de dar ao aluno um apoio no sentido de permitir que
suas dificuldades não impedissem sua participação. Adotei para todos os alunos
uma descrição de personagens bem básica, e orientei o aluno na criação de um
personagem que se caracterizava por ser fisicamente o mais forte de todos. Além
disso, descrevi seu personagem como sendo do tamanho de uma das estantes da
sala, e a todo momento indicava visualmente a estante, para que os jogadores
imaginassem o personagem dele com seu tamanho “real”. E, a exemplo do que
fizera com um dos alunos da turma 5601, coloquei este personagem numa
posição-chave na história, como um elemento decisivo na aventura. Empoderado
com esse diferencial, e contando sempre com a ajuda de colegas que o apoiavam,
explicando as regras e orientando sua atuação, como verdadeiros parceiros, ele
foi se integrando cada vez mais ao jogo.
Ao final dos trabalhos, chegou novamente a hora de preparar a mostra das
oficinas. Adotando a mesma estratégia e metodologia usada na primeira turma,
decidi reunir, num livreto ilustrado, os trabalhos realizados pelos alunos ao longo
das aulas e percebi que eles consistiam basicamente de descrições de
6. As Turmas: Descrição e discussão
134
personagens. Trabalhei então o conceito de uma coletânea de personagens,
descritos e desenhados pelos próprios alunos, incentivando-os a escreverem
sobre seus personagens ou sobre as aventuras que vivemos durante as aulas.
Com o uso de fotocópias ampliadas das páginas do livreto e de diversos
desenhos dos alunos, montamos uma nova exposição, no mesmo local da
anterior, dessa vez ocupando os espaços de forma mais consistente.
No site da escola PARAÍSO na internet, a mostra de trabalhos da segunda
leva de oficinas trimestrais foi descrita da seguinte forma:
“O segundo Amiúde de 2005 foi tão bom quanto o
primeiro. Antes do início das apresentações de Teatro, Dança e
Música, os pais, alunos e professores presentes puderam
conferir os trabalhos expostos das oficinas de RPG e Artes
Plásticas. (...) Na exposição da oficina de RPG - Role Playing
Game, desenhos de personagens oníricos - anões, elfos e
dragões - que fazem parte das histórias fantásticas
desenvolvidas pelos alunos. Ao lado dos desenhos, textos
breves, redigidos pelas próprias crianças, que descreviam o
caráter e outras informações pessoais da criatura. Em cartazes
distribuídos pelas pilastras, lia-se uma curta introdução à trama
da aventura.”
6.3.1 Pilhagem narrativa
Conforme o exposto no capítulo 3, aquilo que o termo “pilhagem narrativa”1
sugere como sendo quase que um plágio, sempre me pareceu muito mais como
um grande jogo intertextual, uma brincadeira quase “borgeana” de criar
hipertextos, escondendo links dentro de links dentro de links, em histórias
construídas não como labirintos, sólidos, enigmáticos e insondáveis, mas muito
mais como mosaicos, como tramas que percorrem caminhos tortuosos e que
1 proposto por Sônia Rodrigues para representar o processo pelo qual os jogadores de RPG recorrem às mais variadas
6. As Turmas: Descrição e discussão
135
sempre se bifurcam, muitas vezes podendo nos dar a impressão de que estamos
andando em círculos, por termos quase certeza de já ter passado por aquele lugar
antes, de já ter visto aquela paisagem no passado.
O clichê, no universo do RPG, não é o plágio, a cópia pura e simples.
Bendito fruto da cultura de massa, produto e prática pop por excelência, o RPG é
como um liquidificador no qual toda a cultura pulp, os filmes B, as histórias em
quadrinhos, os desenhos animados, as notícias do jornal, os apreentadores de TV
e outros incontáveis elementos são processados, resignificados e incorporados.
É como na literatura de cordel, na qual o repentista usa regras consolidadas
e cristalizadas pela tradição para então, utilizando elementos das mais diversas
fontes e origens, exercitar sua criação, brincando de versejar, jogando com a
métrica e a rima, o ritmo e o som.
De modo semelhante ao cordel, onde a forma e a métrica rígida e os temas
retirados de muitas e diversas fontes não impede a criação, o lugar-comum no
RPG é muitas vezes isso mesmo, um lugar em comum, onde os caminhos se
cruzam, os links convergem, os fios da trama se adensam e se transformam num
nó. É como um território neutro, que o mestre e os jogadores usam como
plataforma ou ponto de partida para “brincar de ficcionar”.
Portanto, por se tratar o RPG de um jogo de referências cruzadas, para o
qual cada jogador contribui com seu repertório particular de referências, juntando
sua voz única e inimitável à multitude de vozes presentes nos personagens e
histórias sendo contadas pelo mestre, não acho adequado chamar essa prática de
“pilhagem”.
Será que não é a hora de aplicar ao RPG um outro conceito, que dê conta
dessa multitude de vozes, discursos e elementos entrelaçados na prática dos
jogadores e mestres de RPG?
Uma opção interessante me parece ser a idéia de heteroglossia.
fontes e referências para montar seus personagens e histórias,
6. As Turmas: Descrição e discussão
136
O conceito de heteroglossia foi usado originalmente por Bakhtin no início do
século XX para descrever os aspectos polifônicos do romance, assim como a
pluralidade de vozes na democracia grega ou no carnaval. Na teoria dialógica de
Bakhtin, a heteroglossia é a presença das inúmeras vozes contidas num discurso
ou texto, relacionadas dialogicamente, como se realmente conversassem entre si.
Para Bakhtin, o diálogo era mais do que mera comunicação, era parte integral da
natureza da consciência e da trama da vida humana. Atualmente, podemos
seguramente afirmar que essa “trama da vida humana” é composta, em grande
parte, pela esfera da mídia e da cultura de massa, da qual o RPG é parte
integrante e na qual jogadores e mestres vão buscar os elementos para criarem
suas histórias e personagens.
Naturalmente, o conceito de heteroglossia vem assumindo uma grande
importância, especialmente dentro do campo dos estudos culturais, especialmente
a partir da lógica do “cortar-colar”, presente nos computadores e na lógica da
internet ou na música pop ou hip-hop, nas quais se montam canções com
pedaços, frases e sons retirados de outras gravações. E ainda que a heteroglossia
permita o uso distorcido do texto citado, ela também permite a apropriação cultural
e estética desses “pedaços” de textos, seja na montagem e edição frenética dos
vídeo-clipes, nos loops repetitivos da música eletrônica ou por meio da lógica do
hipertexto, cada vez mais presente no nosso dia-a-dia.
Se enxergarmos a prática de jogadores e mestres de RPG sob a ótica da
heteroglossia, e não mais da “pilhagem narrativa”, talvez fique mais claro o quanto
de criação, processamento, resignificação, interferência, intertextualidade e, acima
de tudo, diálogo existe entre os RPGistas e as fontes de onde retiram sua
inspiração.
Afinal, quando um jogador de RPG escolhe uma ilustração do elfo Legolas,
personagem do filme “O Senhor dos Anéis” para representar o seu personagem
no jogo, ele não está pilhando, não está roubando ou plagiando. Mas está
tomando emprestada uma multitude de vozes contidas naquela imagem: a voz de
J. R. R. Tolkien, que criou o personagem, a voz dos muitos artistas que retrataram
6. As Turmas: Descrição e discussão
137
o personagem ao longo das décadas, a voz do diretor de arte, dos roteiristas e do
próprio diretor do filme “O Senhor dos Anéis”, que criaram sua própria versão de
Legolas e, sem esquecer, a voz do ator que desempenhou o papel, emprestando
seu corpo ao personagem de Tolkien. E, por fim, a voz do desenhista que criou
aquela ilustração.
Figura 32: as muitas vozes de um elfo
Porém, mesmo trazendo outras vozes, mesmo carregando a marca de outros
autores e de outras fontes, os jogadores e mestres de RPG não deixam de somar
a sua voz às demais. Não são como os soldados inimigos saqueando entoando
brados de guerra sobre os espólios das batalhas, nem são como os piratas,
cantando canções do mar sobre o caixão do morto, enquanto bebem uma garrafa
de rum, mas talvez sejam muito mais como os menestréis medievais, cantando
odes a outras terras, dando notícias de outros reinos, contando contos de outros
tempos, mas sempre com a sua própria voz e o seu próprio canto.
6.4 A Turma 7801
A turma que reunia alunos de 7a e 8a séries foi bem diferente das duas
descritas até aqui. A começar pela duração dos trabalhos, que se estenderam por
6. As Turmas: Descrição e discussão
138
todo o ano letivo. Essa também foi a turma mais populosa, contando com 26
alunos (19 meninos e 7 meninas). Como os trabalhos com essa turma se iniciaram
ao mesmo tempo que a turma 5601 e se estenderam até bem depois do
encerramento da turma 5602, foi possível aplicar aqui muito do que foi sendo
observado de acertos nas duas turmas citadas, e vice-versa.
Figura 33: grandes aventureiros, cadeiras pequenas...
De início, a dificuldade maior foi o grande número de alunos e a falta de
espaço na biblioteca para que todos se sentassem em mesas. Adotando uma
solução que mais tarde apliquei à turma 5602, procurei identificar entre os alunos
alguns que pudessem atuar como mestres de jogo. Dentre os 26, somente 3
alunos se apresentaram voluntariamente para atuar como mestres, mas isso era
mais do que o suficiente para dividir a turma em 4 grupos, sendo um deles
formado pelos alunos que pouco ou nada conheciam sobre o RPG, do qual eu me
encarregaria e os três restantes coordenados por alunos atuando como mestres
de jogo.
6. As Turmas: Descrição e discussão
139
Figura 34: Superlotação na sala de jogos
Dois desses alunos decidiram usar o mesmo sistema de regras, conhecido
como GURPS, um RPG que parte de regras genéricas para possibilitar a criação
de personagens e histórias em qualquer ambiente ou cenário desejado (medieval
fantástico, ficção científica, super-heróis etc.), enquanto o terceiro mestre optou
pelo jogo Dungeons & Dragons, já conhecido pelos jogadores e pelo mestre.
Utilizando o livro “mini GURPS As Cruzadas”, incentivei os alunos-mestres a
criarem personagens e histórias ambientadas neste período histórico, mas dei a
eles a liberdade para incluírem poderes mágicos e criaturas fantásticas, que não
existiriam num cenário rigorosamente histórico, aproximando a proposta dos
RPGs de fantasia medieval que eles estavam acostumados a jogar.
Ambos os mestres (E. e I.) optaram por fazer aventuras bem ao estilo das
campanhas de fantasia medieval, ignorando inicialmente o cenário das cruzadas.
O terceiro mestre (Y.) criou uma história bem no estilo do jogo Dungeons &
Dragons, que inclusive reproduzia o enredo de um dos videogames inspirados
neste RPG, e que era um dos games preferidos pelos alunos daquele grupo. Aos
mestres foi pedido que colocassem suas idéias no papel, escrevendo um pequeno
roteiro da aventura, para que eu pudesse acompanhar o trabalho dos seus grupos.
O mestre E. pareceu bastante incomodado com o pedido, perguntando se
aquilo era “realmente necessário”, se era “para a nota” etc., o que indicou uma
possível resistência de sua parte ao fato do RPG estar sendo “escolarizado”. Já o
segundo mestre (o aluno I.), parecia motivado a descrever a aventura, o que fez
6. As Turmas: Descrição e discussão
140
num texto rápido, que me enviou pr email, e que reproduzido a seguir:
“Aventura: Todos os jogadores são mercenários. A aventura se passa no mundo de Yrth, um mundo de fantasia, magia e etc. Os jogadores estão em uma taverna a noite na cidade de Drift Abbey que fica numa ilha. Todos já se conhecem. Quando eles saem de lá, eles desmaiam (pois uma pessoa havia dado a eles uma poção do sono). Ao acordarem, descobrem que nada foi roubado, então vêem um homem que diz: -Vocês desmaiaram por causa de um homem que está a minha procura. Agora já esta tudo bem. Depois da conversa ele continua: - Já que os salvei, vocês me devem um favor e eu irei recompensá-los se o fizerem. Este homem está atrás de mim porque só eu sei a localização de um grimório único e muito poderoso , seu nome é necronomicom e ensina magias de conjuração de demônios. Ele está em uma caverna nas montanhas dos picos nevados e eu preciso que vocês o peguem para mim. Se os jogadores aceitarem, terão que ir até a montanha dos picos nevados que fica bem ao norte. Para sair da ilha eles precisarão pegar um barco e ir à cidade de Minder, uma cidade que fica na província de Cardiel. Depois, terão que passar por uma floresta e atravessar a fronteira chegando a província de Alhaz. Em seguida irão para o deserto, para Cathness e para Megalos (onde passarão pela floresta Blackwoods). Após atravessar a muralha do imperador, chegarão às montanhas dos picos nevados e entrarão numa caverna, onde lutarão para poder chegar ao livro . Quando saírem da caverna com o livro na mão, o mesmo homem que o havia pedido no início, fala que só fez isso para que ele não “sujasse as mãos”, o que detona uma batalha épica onde ele usa muito habilmente sua espada encantada. Porém, quando está quase ganhando, os guardas de Megalos chegam e tentam capturá-lo. O que o faz usar a magia de teletransporte e fugir. Ao final, os guardas de megalos levam o livro e dão uma grande recompensa aos jogadores. Ao longo da aventura poderão ser inseridas novas missões.
Em seu texto, I. traçava um roteiro rápido e seguro do que pretendia realizar
na aventura, demonstrando grande capacidade de roteirização e utilizando
referências tanto do próprio RPG GURPS (o mundo de Yrth, as cidades e locais
citados) quanto de outras fontes, como o livro místico Necronomicon, criado pelo
escritor norte-americano H. P. Lovecraft e que é citado em muitos de seus contos,
além de muitos filmes de cinema influenciados pela literatura de terror, como os
filmes da série “Evil Dead” (Uma Noite Alucinante), onde o Necronomicon aparece
com destaque.
6. As Turmas: Descrição e discussão
141
Depois de algumas aulas, nas quais os alunos-mestres jogaram livremente,
percebi que suas histórias estavam chegando ao fim e eles começavam a ficar
ansiosos pelo que viria depois. Criando uma aventura ambientada no cenário do
livro mini GURPS As Cruzadas, mantive a divisão em quatro grupos. Enquanto Y
decidiu desfazer o seu grupo e os alunos se dividiram entre os demais grupos, E.
prosseguiu com sua aventura de fantasia medieval e I. decidiu criar uma nova
aventura dentro do cenário proposto (As Cruzadas), pedindo o meu livro
emprestado para que pudesse ler e se preparar melhor. Com isso, nas duas aulas
(duas semanas) que levei para explicar as regras e criar os personagens, I.
Dedicou-se a criar uma nova aventura, trocando mensagens e comigo pela
internet, nas quais me enviava suas idéias e textos e recebia de mim orientações
e sugestões para a aventura. Seu interesse foi tanto e sua relação com o livro
emprestado tão intensa que ele decidiu ampliar o escopo do livro e, além dos tipos
de personagem ali propostos, dedicou-se a criar um novo tipo de personagem, o
arqueiro-templário, que unia as capacidades do arqueiro com as do cavaleiro
templário, utilizando-se do mesmo modelo e estilo de textos para descrever sua
criação.
Porém, aos poucos, os alunos mestres começaram a manifestar o desejo de
atuarem também como jogadores, que decidi atender, tentando reunir todos os
grupos num só, o que fui fazendo em etapas.
Depois de criar personagens para todos, iniciei as aventuras com uma
narração para todos os grupos, que colocava todos os personagens dos alunos
como integrantes de uma mesma Cruzada, sob o comando de personagens
históricos. Porèm, aos poucos, fui trabalhando situações narrativas que envolviam
a interação somente entre os personagens dos jogadores dentro de um mesmo
grupo e, a seguir, comecei a estabelecer relações entre as situações vividas entre
os diferentes grupos.
Dessa forma, fui tentando reunir os personagens de todos os grupos numa
mesma situação-problema, na qual, para cada grupo era apresentado um dos
lados de um mesmo acontecimento.
6. As Turmas: Descrição e discussão
142
Aproveitando a saída inesperada de um dos alunos, que transferiu-se para
uma outra escola, e que interpretava um personagem árabe em meio a vários
cruzados europeus, decidi transformar aquele personagem num espião infiltrado,
criando um elemento dramático para unir todos os grupos.
Assim, a cada aula eu reunia mais um grupo à narrativa principal,
conduzindo as narrativas paralelas para um mesmo ponto de convergência. Ao fim
de três aulas, havia somente um grande grupo, reunido num grande círculo de
alunos sentados no chão da biblioteca, todos integrados pelo final da história.
O passo seguinte foi novamente investir na liberdade e autonomia dos
mestres-alunos, que voltaram à carga, coordenando novas aventuras que os
ocuparam pelo restante do ano letivo.
A mim coube a coordenação de um grande grupo formado pelos iniciantes e
pelos jogadores que iam se dispersando dos demais grupos, seja por
desinteresse, por curiosidade de se juntar ao grupo maior ou simplesmente
enquanto esperavam a chance de voltar à aventura com um novo personagem em
seu(s) antigo(s) grupo(s).
Com um trabalho de mais longo prazo, foi possível criar histórias e
personagens mais próximos do que ocorre normalmente nos jogos de RPG, onde
jogadores e mestres desenvolvem longas sagas nas quais os personagens
evoluem, criando verdadeiras “histórias de vida”.
Foi possível, com isso, observar o modo pelo qual, através das memórias
dos feitos de seus personagens, os jogadores criavam laços de lealdade,
amizade, inimizades, rivalidades entre eles, gerando muitas lembranças em
comum, ainda que virtuais, nascidas na mesa de jogo.
Nessa turma houve uma grande oscilação em relação ao desenvolvimento
das atividades e trabalhos propostos para a mostra de final de ano. Enquanto
alguns alunos se esquivavam da obrigação, outros recusavam-se clara ou
veladamente a desenvolver qualquer tipo de trabalho proposto. Havia uma
6. As Turmas: Descrição e discussão
143
diferença clara entre aqueles alunos que tentavam “dar um jeitinho”, adiar a
entrega das tarefas propostas ou então, por meio da lábia, encontrar uma
atividade “mais fácil” do que produzir textos ou desenhos e aqueles que (como o
aluno-mestre E.) pareciam francamente avessos a desenvolver qualquer tipo de
trabalho a partir dos jogos de RPG. O conflito entre o RPG “de lazer” e o RPG
“escolarizado”, antecipado por Pavão, entre outros, mostrou-se aqui de forma
muito nítida.
Ao mesmo tempo, outros alunos viram na oficina uma oportunidade de
lançarem mão de um rol de variadas linguagens de expressão. O aluno I.,
juntando-se a outro companheiro, chegou a desenvolver um RPG eletrônico. A
partir de ferramentas de programação gratuitas disponíveis na internet, os dois
criaram um jogo eletrônico inédito, baseado numa história criada por eles, e que
possuía uma boa dose de humor, além dos sempre presentes combates e
poderes comumente encontrados nos videogames.
Outro aluno, que colecionava livros de RPG e demonstrava passar muitas
horas na internet por semana pesquisando sobre o tema, entregou como trabalho
final um CD contendo uma grande coleção de imagens relativas aos RPGs, além
de páginas impressas com artigos, contos, fichas de personagem etc.
Mas um dos mais interessantes casos foi o do aluno Y., o mesmo aluno que,
por meio de sua reação explosiva e intempestiva ao fato de não ter conseguido
vaga na turma de RPG, acabou advertido mas entrou na turma, depois da
intervenção da coordenação da escola.
Apontado por alguns professores e funcionários como um “aluno
problemático”, Y. se juntou à oficina com um misto de timidez e desconfiança. Era
visível o seu incômodo com qualquer toque, olhar ou fala dirigida diretamente a
ele, e ele evitava claramente o contato visual, olho-no-olho. Respeitando essas
fronteiras muito bem delimitadas por ele mesmo, procurei mesmo assim, dedicar
uma atenção um pouco maior aos seus personagens, tentando trazê-lo mais para
dentro do grupo de jogo, o que acabou acontecendo.
6. As Turmas: Descrição e discussão
144
Ao longo do ano, Y. foi se sentindo mais seguro e já no segundo trimestre,
propôs-se a criar seu próprio RPG, com regras, cenário e personagens próprios.
Dedicando-se com afinco à tarefa e trocando muitos emails comigo, Y. foi
lapidando seu trabalho, reunindo um grupo de alunos para jogar seu jogo,
passando a atuar como mestre e, por fim, decidindo-se a apresentar sua criação
na mostra de fim de ano, jogando uma aventura com seu grupo. Durante o tempo
que duraram as apresentações das outras oficinas no evento, Y. e seu grupo,
acompanhados de algumas meninas que se mostraram curiosas, não arredaram o
pé da biblioteca, jogando o RPG que ele mesmo criou, saindo todos muito
satisfeitos ao final.
Alguns dos materiais criados por Y para o seu RPG estão nos anexos deste
trabalho.
As mostras dos trabalhos das oficinas de 7a e 8a séries e do Ensino Médio
acabaram sendo reunias num só evento, por decisão da coordenação e dos
professores das oficinas, por isso, esse evento estará descrito em mais detalhes
ao final da descrição da próxima turma.
6.4.1 Autonomia
O conceito de autonomia dentro do âmbito da Educação vem se tornando
cada vez mais importante. Articulado à noção de competências, a idéia do
desenvolvimento da autonomia dos alunos figura com destaque nos PCNEM
(Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio), onde se indica que a
construção de uma competência não se limita à situação de aprendizagem. Ela
“continua até o final do período de escolarização e, posteriormente, por toda a
vida. Por isso, deve-se garantir que o aluno adquira a autonomia necessária para
aprender a aprender.” (p.38)
Essa idéia do “aprender a aprender”, que se aproxima muito do primeiro dos
quatro pilares da proposta da UNESCO para a Educação no século XXI (aprender
a conhecer), e que, à primeira vista, parece caminhar no sentido de empoderar o
6. As Turmas: Descrição e discussão
145
aluno, pode ser vista também de forma mais crítica como um desequilíbrio na
relação de ensino-aprendizagem, que poderia levar a um esvaziamento do lugar
do professor e da escola, colocando toda a carga de responsabilidade pela
aprendizagem apenas sobre os ombros do aluno. Algo muito semelhante ao que
ocorre com a noção de empregabilidade, sobre a qual também se travam intensas
discussões.
Por isso, antes de mais nada, é necessário deixar bem claro o que se
entende por autonomia para este trabalho.
Piaget é um dos autores que discutem a questão da autonomia e do seu
desenvolvimento. Para ele, autonomia não significa isolamento e ser autônomo
significa ser capaz de construir cooperativamente o sistema de regras morais e
operatórias necessárias à manutenção de relações permeadas pelo respeito
mútuo.
Na teoria de Piaget a autonomia se constrói em conjunto com o
desenvolvimento da autoconsciência, numa passagem da relação egocêntrica
com o mundo, travada de si para si mesmo, onde limites e regras são apenas
aqueles impostos pelo outro, para um estado de verdadeira autonomia, no qual as
leis e as regras são opções que o sujeito faz com vistas à sua convivência social,
através da auto-determinação.
Para Piaget, autonomia significa ser capaz de tomar decisões por si mesmo.
Mas autonomia não implica em liberdade completa. A verdadeira autonomia
significa considerar os fatores envolvidos para, aí sim, seguir o melhor rumo,
apoiado sempre na idéia do respeito mútuo.
Ao contrário de Piaget, cujas teorias centram seu olhar sobre o indivíduo,
Vygotsky acredita que todo conhecimento é construído socialmente, por meio da
interação. E embora a autonomia seja um conceito importante também em suas
idéias, o conceito de zona de desenvolvimento proximal nos indica que a
autonomia também é algo que tem que ser construído no contato e na interação
com o meio social.
Outro conceito importante de Vygotsky, que se articula ao de autonomia, é o
6. As Turmas: Descrição e discussão
146
de mediação. Para ele, a aprendizagem não necessita da presença do professor;
ela pode se dar através da mediação de um artefato cultural, socialmente situado.
Não só o professor ensina, mas também os objetos, a organização do espaço, os
significados presentes nos elementos do mundo cultural. Ou seja, este "outro" que
me ensina pode se manifestar em eventos, situações, modos de organização e
também na linguagem, que cumpre um papel fundamental neste processo.
A autonomia, para Vygotsky, é um estágio para o qual o indivíduo caminha
pouco a pouco. Por isso, para construir a autonomia, não basta dar liberdade ao
indivíduo. É preciso que ele seja capaz de aprender a fiscalizar e orientar sua
própria atividade.
Já para Paulo Freire, a autonomia de ser e de saber do educando deve ser
sempre encorajada pelo professor em suas práticas pedagógicas, sendo vital,
para isso, que se respeite os conhecimentos que o aluno traz para a escola, por
ser ele um sujeito social e histórico.
Pela própria natureza de sua prática, o RPG já trabalha a autonomia dos
jogadores e mestres, que tomam para si a tarefa de gerar e gerir novos universos
ficcionais, criando e contando suas próprias histórias, com seus próprios
personagens. Porém, no trabalho com o RPG na escola PARAÍSO, mais do que
um pressuposto, trabalhar a autonomia dos alunos foi desde o começo uma
absoluta necessidade, pelo fato de ser um só professor (e mestre do jogo) para
cerca de 15 ou 20 alunos,
Além de investir na autonomia dos alunos que já conheciam o RPG no
sentido de que se tornassem mestres, foi preciso também incentivar a autonomia
dos grupos de mestres e jogadores para que jogassem entre si, sem a
necessidade da presença ou supervisão constante do professor. Em determinado
momento, por conta da falta de mesas para abrigar todos os grupos de jogo na
biblioteca, dois grupos pediram minha autorização para jogarem em outro local.
Rompendo os limites da sala de aula (a biblioteca), esses grupos ocuparam uma
grande mesa no hall da escola, e uma sala de reuniões que se encontrava
atualmente sem uso.
6. As Turmas: Descrição e discussão
147
Figura 35: o RPG rompe os limites da sala de aula
Mas além dos limites físicos da sala de aula, o trablho com o RPG na escola
PARAISO possibilitou outras expressões de autonomia entre os alunos.
Desde a criação de personagens e aventuras até o desenvolvimento de
jogos de computador, os alunos puderam experimentar com a autonomia criativa
fomentada pelo RPG. Um dos alunos2, depois de experimentar um semestre
inteiro como jogador, teve a iniciativa de criar seu prórprio RPG.
Orientado por mim, através de conversas durante as aulas e também por
email, o aluno criou, desenvolveu, testou e apresentou seu RPG a um grupo de
colegas. Uma parte desse material (uma explicação das regras e a ficha de
personagem) estão entre os Anexos a este trabalho, para consulta.
2O mesmo aluno que depois de dar uma “cena”, chutando mesas e cadeiras foi repreendido mas conseguiu sua vaga na oficina...
6. As Turmas: Descrição e discussão
148
6.5 Turma EM01
O Ensino Médio representava um universo totalmente diferente para a oficina
de RPG. Além de se localizar em outra casa, ocupando um outro espaço de
trabalho, os alunos do Ensino Médio reagiram de forma bem fria à proposta da
oficina de RPG. A maioria dos alunos se mostraram completa e visivelmente
entediados durante as apresentações de propostas, a não ser por alguns poucos
alunos que se identificaram logo como jogadores e mestres de RPG, para quem a
oficina parecia muito bem vinda.
Como era de se esperar, portanto, a turma de RPG do Ensino Médio foi a
menos numerosa, contando com apenas 12 alunos. Houve uma pequena
flutuação ao longo do ano, com três alunos matriculados pedindo para se retirarem
e um outro aluno que pediu para se integrar ao grupo, onde estavam alguns dos
seus amigos.
A divisão entre meninos e meninas foi de 7 para 5, sendo que havia uma
aluna cadeirante, que, por causa de suas necessidades especiais, precisava da
ajuda de funcionários da escola para chegar e se ausentar da biblioteca.
Totalmente integrada à escola, esta aluna, apesar de suas limitações físicas,
pareceu ter encontrado no RPG uma atividade na qual podia se expressar e se
integrar, muito mais do que nas oficinas de dança, música ou teatro, por exemplo.
Por ser uma atividade verbal, intelectual e apoiada na imaginação, o jogo de
RPG permitiu que a aluna se integrasse totalmente ao grupo, exercendo total
domínio dos mesmos recursos e possibilidades que os demais jogadores,
demonstrando um caráter inclusivo na prática do RPG que poucos autores
(excetuando-se, logicamente, KLIMICK, com sua pesquisa no INES) parecem ter
vislumbrado, e que, com toda certeza, mereceria um estudo mais detalhado.
6. As Turmas: Descrição e discussão
149
Figura 36: Aventuras inclusivas no Ensino Médio
Desde o início, a exemplo do que ocorreu na turma 5602, houve na turma de
Ensino Médio um contraste claro entre um grupo que já conhecia e jogava RPG
(formado por meninos da 2a série) e outro formado por iniciantes
(majoritariamente formado por meninas da 1a série).
No primeiro semestre, os dois grupos se mantiveram separados, com os
jogadores experientes conduzindo aventuras durante as aulas e também em seu
tempo livre, reunindo-se nos fins de semana. As aventuras eram relatadas pelo
mestre e pelos jogadores toda semana, com ocorre normalmente entre
companheiros de jogo, em conversas nas quais os casos mais engraçados, as
jogadas de sorte ou azar extremo, os aspectos mais interessantes das histórias e
dos personagens eram trazidos por eles naturalmente.
Enquanto isso, o grupo dos jogadores iniciantes participava de aventuras sob
a minha coordenação, onde integravam-se animadamente à história. Porém, a
partir do segundo semestre, o aluno-mestre declarou que queria atuar como
jogador e foi necessário unir os dois grupos. De imediato surgiu uma grande
rivalidade entre eles, com atitudes de desconfiança e rejeição vindas dos dois
lados. Em muitos momentos, foi difícil equacionar os anseios de todos.
Por fim, depois de algumas sessões de jogo, os jogadores experientes
decidiram se separar mais uma vez, quando outro aluno se ofereceu para ser
mestre de jogo. Com essa turma foi possível trabalhar com livros de RPG como os
6. As Turmas: Descrição e discussão
150
da linha “Vampiro: A Máscara”, destinados a um público mais maduro, e que
envolvem temas mais adultos e caracterizam-se por uma ênfase no
desenvolvimento das histórias e perfis psicológicos dos personagens.
Assim, utilizando as regras e o cenário desse RPG de grande sucesso junto
ao público adolescente, foi possível reunir toda a turma num só grupo, o que
possibilitou também um trabalho mais profundo de produção de textos e
desenhos, ligados à história e aos personagens interpretados por eles.
Ao final do ano, por motivos operacionais, as mostras de trabalho das turmas
de 7a e 8a séries foram reunidas às do Ensino Médio. Com isso, foi possível
construir um panorama bem variado de trabalhos com as oficinas de RPG.
Ocupando a biblioteca, a mostra foi concebida e realizada por ambas as
turmas, reunindo livros, cartazes, pesquisas e trabalhos realizados por alunos das
duas turmas indiscriminadamente. Utilizando os computadores da biblioteca e a
pesquisa de imagens feita por um dos alunos da turma 7801, foi montada uma
apresentação de “slides”, onde as mais variadas imagens (desenhos, ilustrações,
fotos de filmes, capas de livros etc.) se alternavam na tela de todos os
computadores, sendo que um deles, virado de frente para a porta de entrada,
exibia somente fotos tiradas durante as aulas, mostrando aos pais e professores
um pouco do trabalho realizado no ano todo.
Nas paredes, cartazes contavam um pouco da história do RPG, falavam dos
principais títulos e sistemas de regras mais famosos, falando ainda sobre os RPGs
eletrônicos, sendo que num dos computadores era demonstrado o jogo criado por
dois alunos da turma 7801, que podia ser testado pelos presentes.
As paredes também eram enfeitadas por ilustrações feitas por uma das
alunas, que utilizando o estilo dos mangás, retratava diferentes personagens,
alguns dos quais tinham sido interpretados por ela e suas amigas ao longo dos
trabalhos da oficina.
Numa das mesas foi montada uma pequena maquete demonstrando um jogo
6. As Turmas: Descrição e discussão
151
de miniaturas e em outra foi montada uma pequena exposição com livros de RPG
diversos. A mesa restante foi ocupada por um dos alunos, que tinha desenvolvido
seu próprio RPG, e realizou uma divertida partida de demonstração, da qual
participaram alguns dos seus companheiros de oficina e mais algumas meninas,
que se mostraram curiosas para conhecer o jogo.
Como encerramento do ano e ponto final da coleta de dados para esta
pesquisa, esta mostra de trabalhos foi, acima de tudo, uma mostra bastante
eloquente da variedade e da multiplicidade de desdobramentos possíveis no
trabalho com os jogos de RPG dentro do ambiente escolar.
Figura 37: A Mostra de trabalhos do fim do ano
6.5.1 Subjetividade Contemporânea
Legítimos representantes de uma geração que processa a informação em
modo multi-tarefa e convivendo desde muito cedo num ambiente multimidiático,
marcado pela presença crescente das modernas tecnologias de informação e
comunicação, as crianças e jovens de hoje são absolutamente capazes de
navegar na internet enquanto ouvem música, falam no celular, assistem TV e
trocam torpedos ou mensagens em chats ou via programas de correio
instantâneo: tudo ao mesmo tempo, agora! E num mundo assim tão vertiginoso,
qual seria o lugar da escola? Qual o lugar do professor?
Essas e outras questões relativas à constituição da subjetividade
6. As Turmas: Descrição e discussão
152
contemporânea, as marcas da adolescência e o momento de vida pelo qual
passam os jovens no Ensino Médio, sintonizado com uma época de tremendas
incertezas e mudanças e, ao mesmo tempo, um momento onde grandes decisões
e definições para futuro precisam ser feitas, apareceram com muita força no
trablaho com turma EM01.
No seu lado mais drástico, uma das alunas, que inicialmente tinha
demonstrado um grande interesse na oficina, por conta de possuir um grupo de
amigos fora da escola que eram praticantes de RPG, o que segundo ela tinha
despertado sua curiosidade sobre o jogo, foi se distanciando cada vez mais do
restante da turma, alheia ao que se passava no jogo, passando grande parte do
tempo das aulas desenhando incessantemente em seu caderno. Mais tarde, esta
aluna começou a faltar diversas aulas seguidas, o que me levou consultar os
outros alunos, que relataram que “ela é assim mesmo. Falta muita aula. Não é só
a sua não. Não tem mais saco para a escola...”
Seria esta mais um indício de que, com o passar dos anos, a clivagem entre
o mundo “lá fora” e o mundo encerrado para dentro dos muros da escola vai se
tornando cada vez maior, ficando a escola cada vez mais distante dos anseios e
aspirações dos jovens? E em que medida a abertura da escola para aquelas
práticas e linguagens expressivas próprias das culturas juvenis contemporâneas
poderia (ou não) contribuir para criar pontes entre esses dois mundos tão
díspares? Ao incorporar a música e a dança, os jogos e o cinema, a informática e
as novas tecnologias à sua prática pedagógica, estariam professores e escola
abrindo-se para um diálogo mais franco e direto com as culturas infantis e juvenis
contemporâneas?
7. Considerações Finais
Por meio da observação de uma experiência real com a prática dos
jogos de RPG, dentro das premissas e pressupostos traçados para este
trabalho, acredito ter sido possível demonstrar o quanto essa prática
lúdica e criativa pode oferecer aos educadores uma nova forma de
exercitar e desenvolver as mais diversas competências lógicas,
linguísticas, inter-pessoais e cognitivas, além de afetivas e criativas.
Integrado a uma proposta pedagógica voltada para mais do que a
preparação para o “mundo do trabalho” ou o “sucesso no vestibular”, o
projeto realizado na escola PARAÍSO utilizando os jogos de RPG dentro
do currículo, ao lado de outras linguagens estéticas como o teatro, a
música, a dança, as artes plásticas e outros meios de expressão artística
e cultural podem servir como uma forma de aproximar com sucesso o
ambiente da escola do mundo complexo, múltiplo e multi-midiático no qual
os jovens das grandes cidades se encontram imersos em seu dia-a-dia.
Por meio das oficinas e do contato direto em sala de aula com
alunos de diversas idades, indo da 5ª série do Ensino Fundamental à 2ª
série do Ensino Médio, pude perceber o quanto o RPG pode permitir a
expressão dos alunos em múltiplas linguagens, integrando alunos que
podem se sentir à margem do processo educativo por limitações de
ordem física, mental ou emocional. Por abrir espaço para o trabalho com
múltiplas linguagens, o RPG permite a expressão múltipla dos alunos, a
experimentação com outros códigos, outras formas de conhecer e
comunicar, com possibilidade de ampliar e facilitar o trabalho em sala de
aula.
Também foi possível perceber que o RPG não precisa entrar na
escola apenas como uma mera ferramenta para a transmissão de
determinados conteúdos, como uma “novidade” que o professor utilize
para “tornar sua aula mais interessante”.
7. Considerações Finais 154
A prática do RPG pode e deveria ser entendida cada vez mais como
uma atividade educativa em si mesma, uma atividade que pode ser usada
com estratégias e objetivos claros, segundo um projeto e uma proposta
pedagógica apoiada no desenvolvimento de competências consideradas
por muitos autores como cada vez mais fundamentais para a Educação.
Acredito que este trabalho me permitiu também refletir sobre o
quanto o processo por meio do qual os mestres e jogadores de RPG
buscam e resignificam as mais variadas referências para criar sua ficção
pode ser entendido como algo além da “pilhagem narrativa”. Que existe
intenção estética, significado, consistência no uso das referências, que
elas cumprem as mais variadas funções, desde comunicativas até sociais,
e que essas referências continuam vivas, que as muitas vozes contidas
nelas continuam falando, comunicando.
Além disso, acredito que o trabalho com o RPG dentro da escola
PARAÍSO, demostrou também uma nova forma de vislumbrar um pouco
mais de perto as complexas e profundas relações que as crianças e
jovens de hoje travam com os meios de comunicação, com os conteúdos
e mensagens que circulam e são difundidos por eles na chamada “cultura
de massa” e também sobre o modo pelo qual essas mesmas crianças e
jovens processam e se apropriam de muitas dessas mensagens e
conteúdos.
Como indicam os textos de autores tão diversos (em termos teóricos
ou geográficos) quanto KELNER, OROZCO-GOMES, GIROUX, JENKINS,
BUCKINGHAM e ITO, a relação dos jovens com todo esse caldeirão de
cultura e entretenimento é sempre marcada por tensões, embates, mas
também por alguns processos muito objetivos, por meio dos quais as
mensagens e conteúdos da cultura de massa vão sendo ativa e
coletivamente resignificados e renegociados socialmente entre os pares.
Usados como passaporte ou garantia de pertencimento a determinado
grupo, como forma ou espaço de socialização ou tendo sua recepção
mediada exatamente por essas relações de pertencimento e inte(g)ração
social, muitas das vezes essas referências e informações são
7. Considerações Finais 155
consideradas pelo grupo em seu valor de ineditismo e raridade, trocadas
como “figurinhas difíceis”.
Assim, conhecer a nova canção de um artista ou banda (ou seu
último videoclipe), saber o segredo para “passar de fase” no jogo ou
dominar o dialeto próprio da Internet ou os “atalhos” no teclado para se
utilizar dos mais interessantes e diferentes emoticons1 garante o acesso,
estabelece o contato, mantém abertos os canais de comunicação e gera
uma noção de pertencimento e inserção em determinado grupo ou sub-
cultura.
No caso das oficinas de RPG aqui estudadas, foi possível estudar de
perto os modos pelos quais este jogo, pelo fato de articular diversas e
variadas referências culturais e linguagens estéticas, pode servir como
“plataforma” ou “suporte” para o favorecimento e a observação mais
próxima desses fenômenos sociais e culturais tão atuais.
Afinal, durante os jogos, os participantes vão apresentando suas
referências, trazendo suas contribuições, suas citações e criando
hiperlinks com outros textos, outros personagens, outros universos
ficiconais. Comparando e negociando socialmente esses elementos, eles
vão identificando afinidades, atribuindo “valores”, estabelecendo as mais
diversas e complexas redes e relações.
Na verdade, os conteúdos e produtos veiculados atualmente no
âmbito da chamada “cultura de massa”, parecem cada vez mais
marcados por um intenso e ativo traço de intertextualidade, onde os
mesmos personagens e histórias são retratados pelos mais diferentes
meios e mensagens, inclusive dependendo uns dos outros para a
verdadeira apreensão dos enredos.
Mas o mais interessante disso tudo, no caso do presente trabalho, é
que os processos de multimídia, hipertexto e meta-linguagem (ou meta-
narrativa) trazidos pelos jogos de RPG parecem se integrar
1 Combinações de caracteres que indicam o estado emocional do emissor de uma mensagem na internet,
7. Considerações Finais 156
harmonicamente às atuais conformações dos universos e produtos
destinados ao público infanto-juvenil.
Apoiada em Bakhtin, PAVÃO (1999) aponta, em sua pesquisa, a
existência de uma grande interpenetração de textos e referências na
formação dos mestres de RPG enquanto leitores, indicando a presença
marcante do cinema, dos quadrinhos, dos desenhos animados e dos
videogames entre esses jovens leitores e criadores de textos e
personagens.
No trabalho com o RPG dentro da escola PARAÍSO, muito mais do
que o mestre (ou o professor), os jogadores (ou alunos) traziam e
ofereciam ao grupo muitos e muitos textos, imagens, citações, hiperlinks,
apropriações, resignificações, paródias, paráfrases etc., num jogo de
referências cruzadas, tecidas como uma verdadeira colcha de retalhos,
uma trama de histórias, urdida com engenho e arte, humor e ironia,
estabelecendo relações bem mais profundas e intensas com os textos do
que uma mera “pilhagem”.
Mais do que piratas, assaltando ou saqueando o baú de histórias e
personagens da tradição, dos mitos, da literatura ou da cultura de massa
para montar suas sagas, os jogadores e mestres de RPG me parecem
muito mais bardos, repentistas e menestréis medievais, jogando com
palavras, textos e imagens, brincando com personagens e histórias,
fazendo da ficção a sua diversão e da cultura de massa o seu playground.
Criando com suas palavras e sua imaginação os seus universos
particulares, não com espaços privados, exclusivos, mas sim específicos,
únicos e, ainda que paradoxalmente, coletivos.
No trabalho com o RPG dentro do currículo da escola PARAÍSO, foi
possível perceber o quanto esse multiverso de práticas, linguagens,
suportes e referências presentes na cultura de massa contemporânea faz
parte quase que indissociável do processo de constituição das
identidades dos jovens das camadas médias urbanas. Foi possível
simulando “carinhas” felizes, tristes, animadas, surpresas etc. E que fazem parte da “cultura” da internet.
7. Considerações Finais 157
observar também o quanto o trabalho dentro da sala de aula pode se
enriquecer e tornar-se mais significativo se a prática do professor
contemplar a expressão dos alunos em diferentes e diversas linguagens.
A fala, a escrita, as leituras, os desenhos, as colagens, as pesquisas, os
jogos, as maquetes, as interpretações, enfim, tudo o que os alunos
trouxeram para sala enquanto jogadores e mestres de RPG, poderiam
trazer também nas aulas de História, Língua Portuguesa, Matemática etc.
Abrir a sala de aula para os modos específicos de expressão das
culturas e sub-culturas infantis e juvenis urbanas e contemporâneas, mais
do que um movimento meio desesperado da escola e dos professores em
para tornar suas aulas mais atraentes, interessantes, provocativas e
“lúdicas”, deve ser, isso sim, uma tomada de consciência do professor (e
dos educadores) para o fato de que é cada vez mais necessário tornar a
sala de aula um espaço de troca e não de mera transmissão, lugar do
diálogo, apontado por Paulo Freire como o caminho para a verdadeira
liberdade. Investir na parceria com os alunos, abrir espaço para que eles
se manifestem e interfiram criativamente no processo de construção do
conhecimento e das situações, projetos e problemas discutidos em sala
de aula pode ser um caminho muito promissor para resignificar o lugar da
escola e do professor diante das mudanças profundas nos modos de
apreensão e relação com o conhecimento e a informação trazidos e
mediados pelas novas tecnologias.
Deixar para trás o lugar de “mestre-escola” e assumir o papel de
“mestre-do-jogo”, pode ser uma experiência interessante e desafiadora,
uma tentativa de trazer para o ambiente da escola essa relação lúdica e
prazerosa que a prática do RPG estabelece com textos e imagens. Mas
sem sacrificar o que a escola ou o RPG têm de particular, específico e
precioso, ou seja, sem submeter um ao outro: sem “escolarizar” o RPG e
nem adulterar o lugar e o papel que ocupam a escola, o pofessor, os
saberes e a relação ensino-aprendizagem.
Mesmo sendo uma escola que se poderia considerar como de “elite”,
que atende a segmentos muito particulares da população, e que, em tese,
7. Considerações Finais 158
estaria muito distante da porção majotirária das escolas, especialmente as
da rede pública de ensino, acredito que o trabalho com o RPG na escola
PARAÍSO possa servir como indicação de um fenômeno que me parece
disseminado mais ou menos “democraticamente” entre crianças e jovens,
superando até mesmo profundas distorções de origem ou acesso a bens
materiais ou culturais que se expressam o meio social.
Afinal, se trocarmos uma referência por outra, se trocarmos o rock
pelo funk ou o pagode, a TV por assinatura pela TV aberta, os
videogames e filmes originais por cópias “alternativas” e as roupas e tênis
“de marca” pelos artigos “genéricos”, comprados nos vendedores
ambulantes, veremos com certeza que as diferenças, embora grandes e
profundas, não geram neste aspecto contrastes de matizes muito
intensos, sendo percebidas muito mais como variações de tom dentro de
um mesmo espectro cromático, ou diferentes notas dentro de uma mesma
escala ou campo harmônico.
Portanto, guardadas as devidas proporções e distorções, e desde
que tomados sob a perspectiva apropriada, acredito que os apontamentos
deste trabalho possam servir de guia para o aproveitamento dos jogos de
RPG em outras e diferentes escolas, em outros e diferentes contextos
educacionais, sociais e culturais.
Minha sugestão final é que o leitor (ou leitora!) faça com este
trabalho o mesmo que todos os mestres e jogadores de RPG fazem
constantemente com todos os textos, imagens, palavras, personagens,
histórias e universos ficionais que encontram pela frente: transformem,
resignifiquem, recriem, adaptem, interajam e tornem suas as idéias aqui
discutidas.
Porque, na verdade, as idéias e os textos não têm dono. E por isso
mesmo são (e sempre serão) nossas... de todos nós.
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