O SER BANDIDO: FACES E VIRTUALIDADES DA EXCLUSÃO
Igor de Souza Rodrigues1
RESUMO
Este trabalho aborda a gênese social do controle penal como mecanismo de poder,
inclusive simbólico, a partir do que chamamos de “caso Taquaral”. Mostra como o
controle penal é seletivo em uma dimensão que reproduz as assimetrias e as
desigualdades sociais, principalmente em relação à classe e raça. Desconstrói a lógica
liberal que o preconceito, nestes termos, é algo meramente do indivíduo e que,
inclusive, ele próprio o constrói. Recorre aos estudos da criminologia do Século XIX
para demonstrar, genealogicamente, como havia uma negociação e uma disputa da
seletividade do controle penal, no qual, o negro e o mulato eram postos como
degenerados, criminosos e bandidos.
Palavras-chave: controle penal; desigualdade social; crime;
ABSTRACT
This work addresses the social genesis of criminal control as engine power, even
symbolic, from what we call "case Taquaral". Shows how criminal control is selective
in a dimension that reproduces the asymmetries and social inequalities, particularly in
relation to class and race. Deconstructs the logic that liberal bias in these terms, is
something merely of the individual and even the building itself. It will draw on studies
of criminology nineteenth century to demonstrate, genealogically, as there was a
negotiation and dispute the selectivity of penal control, in which the black and mulatto
were placed as degenerates, criminals and thugs.
Keywords: criminal control, social inequality; crime.
1 Mestrando e bolsista Capes - DS pelo Programa da Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal de Juiz de Fora; Advogado, graduado em Direito pelo Instituto Vianna Júnior; Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Este trabalho opera na interface sociologia e direito. Como tal, atesta para a vital
necessidade de interdisciplinaridade na produção do conhecimento na
contemporaneidade. Foi concebido ao longo do convívio com as teorias sobre a
desigualdade social de nosso orientador Professor Jessé Souza, do departamento de
sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Inicia-se discutindo o convencionamos chamar de “caso Taquaral”, que se trata
de uma ordem de serviço dada pelo capitão Ubiratan Beneducci, comandante da 2ª
Companhia do 8º Batalhão da Polícia Militar, em Campinas, no dia 21 de dezembro de
2012. Segundo a ordem, denominada “intensificação do policiamento” a polícia deveria
focar “abordagens a transeuntes e em veículos em atitude suspeita, especialmente
indivíduos de cor parda e negra com idade aparentemente de 18 a 25 anos, os quais
sempre estão em grupo de 3 a 5 indivíduos na prática de roubo a residência naquela
localidade".
A pergunta não é “por que alguém pratica um crime?” Torna-se mais relevante
identificar e analisar como a sociedade, ao longo do tempo, escolhe e define um tipo de
indivíduo a ser criminalizado. Por que, embora o crime não seja algo específico de uma
classe e de uma raça, a prisão é uma “senzala”? Por que os rótulos, tal como de suspeito,
criminoso, delinquente, perigoso, marginal, meliante, menor, como no “caso Taquaral”,
tem ligação com a forma que o individuo é representado e não com que ele fez? Por que
é recorrente a associação da noção de criminoso à pobreza, o “negro” e o “mulato” e
não qualquer outro traço? Por que a polícia faz essa ligação? Por qual motivo tais
questões são principais para se classificar e se (des)classificar as pessoas no Brasil?
Essas são algumas das perguntas que buscaremos discutir durante o trabalho.
A abordagem que se pretende deste caso não está focada nele mesmo, ou seja,
não se intenciona demonstrar se o capitão Ubiratan Beneducci foi preconceituoso ou
não, tampouco fazer uma avaliação da operação policial no “caso Taquaral”. Mas
demonstrar como a ordem de serviço reflete algo que não só passa pelo capitão e pela
polícia, mas está dentro e fora deles. Isso significa dizer que o preconceito não está
genealogicamente “dentro da polícia”, embora muitos pensem assim2.
2 Cf. Michel Misse (2010: p.17.): “O mais conhecido desses tipos é o sujeito que, no Brasil, é rotulado
como “bandido”, o sujeito criminal que é produzido pela interpelação da polícia, da moralidade pública e
das leis penais”.
A forma como a polícia identifica o suspeito, como pretendemos demonstrar,
mais que o preconceito do capitão Ubiratan Beneducci, expressa a construção do
controle social e um mecanismo de poder, no qual está em causa muito mais do que
meros “desvios individuais” ou uma reação baseada na interação “face a face”, como
propôs Howard Saul Becker, em Outsiders (1963). Essa leitura liberal, que põe a lógica
subjetiva da ação como gênese dos preconceitos sociais, é a defesa de que é por meio
das interações que nós estabelecemos uns com os outros que criamos e recriamos o
mundo, transformando o preconceito em um confronto situacional de indivíduos.
O “tipo criminoso” não é algo dado, mas construído, é preciso observar essa
construção, sob pena de recairmos em um liberalismo de consequências conservadoras.
O crime não é algo específico de uma classe. Se o indivíduo pratica crime isso não é o
que determina no seu processo de criminalização e de punição, isto é, criminoso não
estabelece uma sinônima perfeita com autor de crime.
Fizemos o exercício de pensar a criminologia do século XIX e a interpretação
brasileira como parte do controle social e da construção histórica de sua seletividade,
isso foi imprescindível para desconstruir essa ótica de que o preconceito é algo
meramente do indivíduo e que, inclusive, ele próprio o constrói. Percebemos que o
fator raça esteve no centro da discussão da criminologia no Brasil e, ainda que alguns
defendessem o mestiço, outra raça (exceto a branca) era apontada como degenerada
(como fez Silvio Romero). A teoria de Lombroso sobressaiu sobre as demais
evolucionistas da época; autores como Morgan, Tylor, Heackel, Spencer, até aparecem
nas discussões, mas é Lombroso quem figura no núcleo da discussão intelectual,
principalmente, pelo fato de que a criminologia se funde ao próprio controle social. A
readaptação de sua teoria lombrosiana segue, sobretudo, o prisma racial, sendo que, é
Nina Rodrigues que dá contornos mais conservadores e compatíveis com os interesses
dominantes.
O controle não está apartado do mundo social, todavia essa seja uma ideologia
necessária ao seu próprio funcionamento – incluindo sua legitimidade – sua parcialidade
não reside simplesmente no fato de que seus operadores estão pré-dispostos a julgar a
causa, mas justamente o oposto, a causa está predisposta ao julgamento: a polícia, por
exemplo, naturaliza o controle e, mais do que isso, é impelida a “garantir” a ordem
social contra os considerados perigosos, violentos, criminosos, etc., assim, atua como
instrumento reprodutor e garantidor desse processo, esquecendo-se de sua gênese, como
se todos fossem igualmente alvos do controle. Nesse sentido, é um engano dizer que a
polícia tende criminalizar determinados indivíduos, como muitos afirmam, daí porque
seria como considerá-la como o próprio fator de criminalização, enquanto na verdade,
ela atua como garantidora desse processo.
A importância deste trabalho se justifica na medida em que busca discutir e
desconstruir algumas lógicas de interpretação do criminoso e dos preconceitos no
Brasil, sobretudo a partir de uma interpretação invariável do controle penal, isto é,
desprovida de qualquer relação assimétrica de poder e independente a variáveis como
classe e gênero. O problema é, portanto, além de desconhecido, distorcido, assim, a
contribuição dessa inversão, uma reflexão crítica, reside na ideia de que é conhecendo
que se pode combater.
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