O Sonho do João
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Texto e Ilustrações de
José Morais
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Mais um dia terminou e o silêncio desceu, sobre a pequena aldeia.
Agora, tratados e acomodados os animais, importa cear e deitar
cedo, pois que muito cedo, também, o novo dia, os obrigada a sair da cama,
em que bem desejariam repousar um bocadinho mais.
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Estamos em pleno Verão e os lavradores, sentindo bem o sacrifício
que fazem debaixo do Sol escaldante, aproveitam, tanto quanto possível, a
frescura das madrugadas, pelo que, a sua faina, começa muitas vezes,
nomeadamente no tempo da ceifa dos cereais, com o nascimento da Estrela
da Manhã.
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À parte essas
madrugadas em que, devido
ao escuro, da madrugada
mal se vêem os pés do
cereal que se ceifa, o
despertar dos lavradores é,
normalmente, ao cantar do
galo - um verdadeiro relógio
despertador – mas também
o seu despertar se deve ao ―luzir do buraco‖ que vem de uma telha mais
desajustada, ou à luz difusa que entra pela trapeira. Não abundam os quartos
com janela nas casas dos camponeses.
Na altura em que a história se passa, é o tempo da ceifa, das malhadas
e desfolhadas, por toda a parte.
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Tempo de colheitas dos mais variados frutos, tudo resultado de um
trabalho árduo e penoso das gentes que mourejam nos campos, pode dizer-
se, noite e dia durante o Verão.
Diria que não há nada mais belo que os campos, desde a Primavera,
até ao fim das colheitas. São regalo para o nosso espírito, as mais variadas
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cores dos frutos o verde dos prados, sem falar nos montes multicores que
nos rodeiam, exibindo deslumbrantes mimosas, giestas em flor, fetos, verdes
pinhais, urze carqueja florida medronheiros e muitas outras variedades de
arbustos nascidos espontaneamente, por todos os lados. Como é bom,
também, descobrir os frutos entre folhagem e comê-los directamente das
árvores, ainda orvalhados; maçãs, peras, cerejas, figos de S.João – os figos
ditos de S. João, no Alto-Douro são algo de indescritível pelo sabor, pela
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novidade, pela frescura como se comem pela manhã.
Maravilhosa é, também, a imensa folhagem das parreiras ou de
milhares e milhares de videiras, carregadas de enormes e dulcíssimos cachos
de uvas.
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A juntar a tanta beleza sente-se o marulhar das ribeiras, ruído de fundo
ao canto dos passarinhos na sua azáfama anual - a construção e a instrução
cuidadosa dos seus filhotes.
Isto mesmo nos dizem algumas das canções do nosso cancioneiro, as
quais, muitos de nós aprendemos na nossa escola; entre outras lembro estas:
Canta a calhandra na serra
Ai lá no ar a cotovia
E à beira do regato
Canta o melro ao vir o dia...
Ai tirolé haja alegria
Ai tirolé viva a folia
Canta no monte o pastor
Quando vigia o seu gado
E no campo o lavrador
Ao romper do sol doirado...
Ai tirolé haja alegria
Ai tirolé viva a folia
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Pois é; tudo isto acontecia na Quinta da Rosa, uma propriedade que
os pais do João cultivavam de arrendamento.
Para o pequeno João, os animais e tudo o que povoava aquele mundo
colorido e calmo, eram motivos de grande prazer e muita alegria, ainda mais
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porque dada a sua pouca idade, pouco tinha ainda a ver com as canseiras e as
fadigas que os pais e outros trabalhadores, naturalmente enfrentavam no dia-
a-dia.
Assim, o João dificilmente se apercebia do cantar dos galos, do
mugido das vacas, nem mesmo o acordava aquele ladrar, grave e forte, do
cão de guarda de que o João tanto gostava.
Contudo também chegava a altura do seu despertar mais ou menos
forçado, principalmente na Primavera e no Verão quando o Sol, entrando,
sem mais nem menos, pela janela, lhe batia em cheio na cara; ou então
quando acordava com o barulho dos tachos e panelas que a mãe utilizava,
ali bem perto, na grande cozinha, enquanto fazia o almoço para os
trabalhadores .
Muito gostava o João daquela sopa de feijão com abóbora arroz
cebola e couves que a sua mãe tão bem fazia.
Como era bom, também, saborear o leite fresquinho, mugido todas as
manhãs, das tetas da vaca: a ―Amarela‖!
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Brinquedos, o João tinha poucos. Um peão, um carro de quatro rodas
feito duma caixa da sardinha. Era carripana mal feita, sim, mas bem capaz de
dar “cinco à hora‖ aos solavancos, pelas pequenas encostas da Quinta. Lá ia
ele por caminhos ladeados de roseiras, grandes medas de palha aqui e ali.
Mas, tivesse o João poucos ou muitos brinquedos, nada significaria,
porque, o rapazito, tinha uma ideia fixa de há muito, coisa que nem de noite
lhe saía do sentido
Exactamente. O seu grande desejo era ter uma bicicleta!
Uma bicicleta vermelha e cromada, com uma campainha em que se
imaginava montado, a andar velozmente pelos caminhos da quinta, à luz
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Sol!
Acontecia até que, ultimamente não falava de outra coisa,
principalmente à volta da mãe, ou sentado, junto dela, nos bancos da
cozinha.
Ora aconteceu que, certa noite, uma noite de lua cheia, e depois de
beber o copo de leite do costume, o João encaminhou-se, já muito sonolento,
para a sua cama.
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Ajudado pela mãe a despir-se e a fazer a habitual oração, que muitas
vezes não chegava ao ―amen‖, em breve se deixou dormir a sono solto.
Ora, se a luz do Sol lhe batia na cara pela manhã e o acordava, era
agora a vez da lua fazer o mesmo, atravessando a janela. Mas será que o seu
brilho contribuiu para espicaçar a ideia fixa que o João trazia sempre
consigo? ―Oh quem lhe dera ter uma bicicleta‖ !
Pois fosse ou não devido à lua abater-lhe em cheio na carita, o certo é
que o João teve, naquela noite, o sonho mais belo da sua vida!
Na verdade era uma lua enorme! Um ―disco de prata‖ brilhando num
céu límpido, capaz de transformar casas, campos, árvores e tudo o mais, num
reino de magia e densos mistérios.
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E se lá fora tudo parecia ter-se transformado em prata fina, o seu
quarto, era de cristal, ouro e prata fina.
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Maravilha das maravilhas! Mas o melhor do sonho estava para vir.
Pois não é que no meio de tanta beleza aparece a sua mãe – mais parecia
uma fada –, trazendo pela mão, a mais linda bicicleta do mundo!?
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O João, admirado por ver a mãe vestida com aquelas lindíssimas
vestes, que nada tinham a ver com as habituais roupas de lavradeira, pensou
lá para consigo:- A minha mãe é uma fada.!... Que linda é a minha mãe!
Depois olhou para a bicicleta, encantado, contemplando aquela maravilha.
Entretanto a mãe, feliz, ao ver tanta alegria, disse ao filho:
— João, esta bicicleta é tua; toma-a e vai por esses caminhos,
correndo até ao fim do mundo!
Admirado, o João perguntou:
- Ó mãe, como foi que a bicicleta aqui veio parar, assim tão de
repente...Quem ma deu!?
Foi o teu pai - disse a mãe :- foi o teu pai que a comprou na cidade e
me disse que ta desse, logo que acordasses.
E como nos sonhos tudo é possível, o João dá por si, desde logo,
montado, pedalando com toda a força pelos caminhos da Quinta, enquanto
os passarinhos fugiam amedrontados com o trim trim da sua capinha.
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Pois é; mas, como na Natureza nada pára, a terra girou, segundo a
ordem do Universo.
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E se o João avançava velozmente pelos caminhos do seu sonho,
também a luz do sol avançava rapidamente, substituindo assim a luz da lua -
lua que tanto brilhou nessa noite, na Quinta da Rosa.
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NOVO DIA
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Desde os primeiros alvores do novo dia, e como era costume, o Nero
ladrava, em resposta, ao latir dos cães de outras quintas; as galinhas
cacarejavam em coro no quinteiro e os patos grasnavam com grande
alvoroço, enquanto comiam farelos amassados com folhas de couve. Os
passarinhos chilreavam por toda a parte e lá de longe vinha o chiar agudo
dum carro de bois carregado, numa cantilena de duas notas apenas:- Chiô...
Chiô.
Para além de tudo isso, e como não podia deixar de ser, lá estava o
ruído dos tachos e das panelas que diariamente chegavam da cozinha aos
ouvidos do João.
O sol despontou lá no horizonte e, como normalmente acontecia, os
seus raios logo bateram em cheio na carita do João.
Contrariado torceu o nariz, fez uns trejeitos com os lábios, levou a
mão aos olhos e de seguida virou se para o outro lado.
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Só que a lembrança do seu sonho foi tanto ou mais implicante que a
luz do sol, e outro remédio não teve senão despertar à força, ao que se
associou uma enorme euforia.
Olhou por instantes à sua volta como que a certificar-se do lugar onde
estava, e por fim balbuciou:
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– Oh!... foi apenas um sonho!...!
Mesmo assim, atraído por aqueles barulhos que a mãe fazia na
cozinha o João deu um salto da cama como se molas tivesse, chamando em
alta voz: - Mãe... ó mãe!...
A senhora Helena , surpreendida por aquele alvoroço, correu logo em
―socorro‖, do filho:
— Que foi João!?...
Bom; o que foi já nós
sabemos; mas o sonho foi contado,
tim tim por tim tim: Que a mãe lhe
parecera uma fada, que as casas da
aldeia se transformaram em prata,
falou da beleza do seu quarto, etc
etc, mas o seu maior entusiasmo ia
para a cor vermelha e cromados
brilhantes da tão desejada bicicleta.
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Depois, com uma enorme satisfação estampada no rosto, descrevia a
sensação de prazer com que percorrera os caminhos da quinta pedalando!
– Oh mãe – dizia o João – acho que voava!
A senhora Helena fazia o almoço a toda a pressa que, de modo algum
poderia chegar atrasado ao campo. Ouvia o filho é dizia lá para consigo: Que
pena não nos ser possível comprar semelhante prenda! Contudo foi
dizendo:
– Pois é João; nos sonhos tudo é possível, e o sonho faz parte da vida;
mas, na vida real as coisas tornam-se por vezes difíceis de conseguir; por
exemplo essa bicicleta que tanto desejas tem de ser comprada e para isso é
preciso ganhar o dinheiro. Às vezes os pais não ganham o suficiente para dar
aos filhos as coisas lindas que gostariam de dar.
Mas enfim João, pode ser que um dia o teu pai e eu possamos
comprar-te esse brinquedo que tanto desejas..
Pois é – diz o João – pode ser que um dia...
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Ó mãe; mas que linda era aquela bicicleta!
Palavras não eram ditas quando se ouve relinchar a mula ao fundo da
escada e logo de seguida a voz do senhor Horácio:
– Aí mula, estás co`a mosca!...
Era o pai que chegava do campo acompanhado por dois moços
encarregados de transportar o comer dos trabalhadores.
O João foi logo ao encontro do pai. Naturalmente a conversa não
poderia ser outra:
Oh pai, sonhei que me deste uma bicicleta!... tão linda... era vermelha,
o guiador e as rodas, brilhavam tanto... e tinha uma campainha.
O senhor Horário, que acabava de tirar a albarda do lombo da mula,
pegou no filho ao colo, apertou para si, dizendo:- Conta lá, conta lá; mas
vamos lá para dentro que aqui está muito calor. E subiram depois de
acomodar o animal.
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Agora sentados à mesa o pai ouviu e sentiu aquele enorme
entusiasmo do João, por fim acabou, dizendo:
Que lindo sonho João!
Depois, como quem faz contas à vida e cruzando o olhar com a
senhora Helena, disse:
— Sonho lindo! Quem sabe. Helena. Quem sabe se este sonho se
poderá tornar uma realidade...
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A Senhora Helena interveio logo:— Vê lá Horário, não te ponhas a
prometer o que agora não podemos comprar. E mais solenemente disse
ainda:
— Tu sabes como essas coisas são caras e que estamos à espera do
resultado das colheitas para comprar as alfaias de que precisas e além disso
algumas roupas...
Seja como for o senhor Horácio não pressentiu uma grande resistência
da parte da mulher, e disse:
– Deixa lá, tudo se há-de arranjar; de resto este ano é francamente
bom.
FIM
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