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Teatro
ÓPERA DOS VIVOS. OU NÃOO novo espetáculo da Cia. do Latão traça um amplo painel crítico sobre a história da produção artística nacional, iluminando o eixo de sua afirmação de mercado, mas desconsidera as tensões internas dessa hegemonia
por Leandro Saraiva
APESAR DO JÁ costumeiro rigor
estético, intelectual e político de seus
espetáculos, basta uma rápida olhada na
estrutura básica da nova peça do Latão
para perceber que se trata de um esforço
especialmente ousado e ambicioso.
O ato I, “Sociedade Mortuária”, re-
encena a história da Liga Camponesa de
Sapé, surgida a partir de uma associação
entre os trabalhadores para o rateio das
despesas de enterro de seus mortos,
numa aproximação à produção do CPC
(Centro Popular de Cultura).
!"#$%&'$&()&*'+',$'-)&./0$#'1,#'retoma, com brilho estilístico, a matriz
cinemanovista utilizando-se de trama e
personagens de Terra em transe (Glauber
2&34-5'6789:5';,<0=>4->?&'&;'3&>@=)&;'de classe e as ambiguidades pessoais e
culturais do momento de vitória golpista
e de realinhamento reacionário da bur-
guesia nacional.
“Privilégio dos mortos”, o ato III,é
um show de música – de ótima música
- no qual se confrontam Miranda, uma
cantora engajada que, no Golpe, entrou
em coma e agora reencontra um cenário
muito transformado, e um grupo clara-
mente tropicalista, que se apresenta já
plenamente adaptado às demandas do
espetáculo de massa.
O ato IV, “Morrer de Pé”, é contem-
porâneo e narra um episódio de uma pro-
dução televisiva que evidencia o processo
industrial subjugando a criação artística.
A recapitulação CPC-Cinema Novo-
Tropicalismo-TV onipresente é acom-
panhada dos estágios históricos corres-
pondentes, fazendo o quadro avançar
do período pré-Golpe para o imediato
pós-Golpe, seguido dos rearranjos
implicados na “adaptação” ao período
militar e da formação da nossa sociedade
de consumo (ou de consumo vicário),
saltando, numa teleologia irônica, direta-
mente para os estúdios imperiais da “TV
Tudo”, para a qual toda a história parece
convergir (e se anular).
Mas será que se trata, propriamente,
de uma recapitulação expositiva, de uma
aula empirista de história da cultura?
Basta atentar um pouco para os rear-
ranjos formais de cada ato, em relação
aos “originais”, para perceber que não
é bem disso que se trata. O diálogo de
fundo é com o clássico ensaio de Roberto
Schwarz, “Cultura e política 1964-1969”
(em O pai de família e outros ensaios), já
em si mesmo sintetizante e interpretativo,
sob um ponto de vista marcado pelo
interesse político de esquerda. Ópera
dos vivos desdobra, e traz para o pre-
sente, esta visão interessada e uma sutil
e permanente “distorção criativa” das
referências sumarizadas em cena.
No ato cepecista, a moldura é meta-
linguística, com a ação sendo interrom-
pida por comentários épicos dos atores
sobre o caráter de estudo da montagem.
Essa atualização – que deixa entrever
o recorrente diálogo do Latão com o
Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) – implica ainda em mu-
danças de estilo na encenação do drama
camponês, com motivações mais indivi-
duais dos personagens do que aquelas
utilizadas pelo CPC, que trabalhou num
clima de época altamente politizado,
implicando “uma certa abstração e velo-
cidade do novo teatro e cinema, em que
as opções mundiais aparecem de dez em
dez linhas, a propósito de tudo”, como
diz Schwarz sobre o período.
CINEMA NOVO, DE NOVOA&'-)&'BB5'3=>#$-)&C(D/3&5'&'3&>)#E)&5'e algo do estilo – câmera na mão, cortes
descontínuos, planos curtos, alternados
com acúmulos de tempo, –, é o da urgên-
cia de Terra em transe. Mas em Tempo
Morto o protagonista é o jovem empre-
sário. Quem oscila é o burguês, versão
do Fuentes de Glauber, aqui trazida ao
centro: sua linguagem, tensionada pelo
furacão da história, não é a da poesia,
como a de Paulo Martins, mas a dos
negócios. O que o arrasta para o círculo
?-' -()#' #;1,#(?=;)-' F&' )#-)(&' #' &'/0$#'1,#'#0#'1,#('/>->3=-(:'+'&'#>G&0G=$#>)&'com Júlia, uma atriz engajada e, no lugar
do embate trágico, tudo se desfaz como
uma aventura. O transe do Golpe é então
representado pela perspectiva burguesa,
desde o nosso presente, no qual “venceu
o sistema de Babilônia e o garção de
costeleta”, como aponta com triste graça
a frase de Oswald de Andrade citada por
Schwarz no prefácio a O ornitorrinco, de
Francisco de Oliveira. Deste ângulo da
burguesia nacional, a produção artística
esquerdista – e, mais amplamente, as
reformas de modernização democrática
– foi, literalmente, uma aventura com a
1,-0';#'@#()&,'%&(',$'$&$#>)&H'No debate que acompanhou este
ato, Ismail Xavier ampliou o leque de
pontos de atualização das referências
expostas e discutidas na peça-filme.
Lembrou que o Cinema Novo não se
fez à margem, e sim por meio da busca
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do sucesso no mercado regular das salas
de cinema, retirando rendimento estético
da tensão entre a vanguarda modernista
e o desejo de intervenção no presente,
com uma utopia política que era também
empenho na conquista de hegemonia no
$#(3-?&'3=>#$-)&C(D/3&5'3-$%&'%(=G=-legiado – justamente por ser industrial
e ter mercado mundial – de combate
anticolonialista.
Essas considerações não contra-
dizem a leitura feita pelo Latão, mas
podem servir para um “deslocamento
do deslocamento” que Tempo Morto
&%#(-H'A&'/0$#'I#=)&'%#0&'J-)K&5'&'I&3&'se transfere do poeta engajado para o
burguês, produzindo uma versão da obra
glauberiana que sublinha as contradições
de classe com as tintas do pragmatismo
burguês. O comentário de Ismail chama
a atenção para as dimensões também
pragmáticas, que se misturavam ao
projeto político e estético, das relações
entre artistas e mercado, que iam além
de uma miopia informada por uma má
0#=),(-'?&;'3&>@=)&;'?#'30-;;#'F=?#=-'1,#'Schwarz associa à arte e à política do PC
pré-Golpe, e que o Latão reencena aqui
-)(-G+;' ?&'@#()#' #>)(#' &' %(&)-C&>=;)-'burguês e a atriz engajada). Ou seja, havia
um projeto de mercado, enunciado, aliás,
muito claramente já em 1966, no artigo
“Cinema Novo e estruturas econômicas
tradicionais”, de Gustavo Dahl, que
G=(=-' -' ;#(' ?=(#)&(' ?-'L$<(-/0$#5' ?#M'anos depois.
Obviamente, o Latão sabe disso, e se
prefere preservar Júlia das jogadas ambí-
guas de Paulo Martins (e dos cinemano-
vistas, que sentaram em todas as mesas
militares necessárias à consolidação da
L$<(-/0$#'#5'>&'/$'?&;'->&;'9N5'-)(--G+;'?#0-'3&>1,=;)-(-$',$-';=C>=/3-)=G-'fatia do público consumidor, ), o faz
para melhor construir, dentro da peça,
a progressão da mercantilização da arte,
que é o tema explícito do ato seguinte.
O ”Privilégio dos mortos” tem a
forma de um show tropicalista, que
tem como convidada especial, e foco de
3&>@=)&5'O=(->?-5' -' 3->)&(-' #>C-P-?-H'As performances e as músicas são mui-
to irônicas: “Borboleta Predestinada”,
com sua dança de parangolés, anuncia o
“desabrochar” dos astros tropicalistas,
se adaptando às demandas do show
Sociedade mortuária: os vivos e os mortos se encontram no palco
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business; “As Entranhas do Monstro”,
$-=;'-=>?-5'#>I(#>)-5'#'G#>3#5'&'?#;-/&'de fazer uma paródia da paródia pop
tropicalista: consegue ser divertida e
#/3=#>)#5'$-;' >#$' )->)&5' PD' 1,#5' %#0-'estranheza forçada da imagem, expõe
&'-()=IQ3=&'-0#C&(=M->)#'R'1,#'$=F;:)=/3-'a Indústria Cultural como o monstro (a
música da cena choca, diverte, mas diz
pouco – o compositor do Latão, Martin
Eckerman, consegue dar uma volta a
mais no avesso do avesso do avesso). E
há as falas do intelectual-cantor Cao (evi-
dentemente, Caetano), que alternam evo-
cações irracionais e inversões brilhantes
das diretrizes da cultura do engajamento,
espetacularizando a estética da fome.
PARANGOLÉS AO VENTOAqui o ponto de vista atualizante faz ca-
ricatura do tropicalismo, a partir de suas
versões mais vendáveis e desdentadas.
S34T-(M5' #$'67875' @-C(-G-' -' =$-C#$'tropicalista como um instantâneo dos
arcaísmos do subdesenvolvimento,
iluminados pela “luz fria” de formas
ultramodernas – um “achado”, dizia o
autor, que introjetava, na forma estética,
as ambiguidades entre lucidez crítica e
comercialismo, mimetizando (e também
expondo ao sol) o congelamento im-
posto pelo Golpe à dinâmica democrá-
tica que prometia superar a contradição
entre os setores pobres e atrasados e os
ricos e atualizados do país. A versão do
tropicalismo apresentada na peça nada
tem dessas ambiguidades, mas apresenta
apenas o cinismo bem informado pseu-
domoderno.
No debate sobre este ato, Francisco
Alambert, ao contrário de Ismail, não
apresentou contrapontos, mas explicitou
e sublinhou uma tese que está na peça: o
tropicalismo, entendido como submissão
da arte crítica nacional à forma-merca-
doria, tornou-se tão hegemônico que se
confunde, hoje, com o próprio campo
da produção artística nacional. Para ele,
a vitória absoluta do tropicalismo tem
3&$&'$-(3&' &' ->&' ?#' UNNV5' 1,->?&'
Caetano cantou no Oscar e Gil assumiu
o Ministério da Cultura. A apreciação
?#;)-'=>)#(%(#)-WK&'?&')(&%=3-0=;$&'/3-'mais clara se considerarmos o retrato
deste mundo-mercadoria, pintado na
parte seguinte da peça.
X'-)&'/>-0'>-((-',$-' ;=),-WK&'#$'1,#'-'@,=?#M'#/3=#>)#'?-'=>?Y;)(=-'3,0-tural se interrompe: durante a realização
de um melodrama televisivo sobre “os
tempos da ditadura”, um ator que os vi-
veu se rebela contra seu papel – mais por
motivos de verossimilhança psicológica
do personagem torturador do que por
resistência política. E por um breve mo-
mento a indústria pára, até conseguir de
novo se impor - não por uma visão ideo-
0ZC=3-5''PD'?#;>#3#;;D(=-'3&$&'P,;)=/3-)=G-'–, mas apenas por fazer valer a força das
engrenagens da produção e das relações
?#')(-<-04&'(#=/3-?-;H'[,(->)#'#;)#'!<,C'?&';=;)#$-*'?#;/0-$'/-%&;'?#'3(=;#'?#'consciência dos trabalhadores culturais,
desimportantes frente ao mastodôntico
poderio industrial.
O TRABALHO NA TELAComo disse Maria Rita Kehl, o tema
central é o trabalho da representação e a
alienação do trabalhador deste processo,
o artista. Frente a tal fechamento de hori-
zontes, segundo a analista, e como narra
também o Latão, a memória se torna
nostálgica e lírica, como acontece com
a canção de Miranda, tão viva no início
da peça, e reduzida a repertório antigo,
no circo da mercadoria contemporâneo.
Este rigoroso “teorema”, como cha-
mou Alambert, tem o mérito de colocar
em foco a questão central das relações de
trabalho da produção cultural, as histori-
cizando através de ensaios com formas
do passado, produzidas dentro de outro
quadro de relações. A operação, bastante
inteligente, obtém a façanha brechtiana
?#'?#;>-),(-0=M-('&'!%(&/;;=&>-0=;$&*'R'que, aliás, Nelson Xaiver e João das Ne-
Tempo morto: a Cia. do Latão refaz Terra em transe como arqueologia encenada do presente
As predestinadas borboletas tropicalistas caminhando e cantando as entranhas do monstro
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ves, artistas que viveram intensamente o
período do engajamento e mantêm suas
posições políticas até hoje, fazem ques-
tão de reivindicar em seus depoimentos
(sobre este importante ponto, vale a
pena ler as observações de Ismail no
livro Cinema brasileiro contemporâneo,
1,#'I-0-';&<(#'&'/0$#.$-(3&'?&'/$'?&'período moderno no cinema brasileiro,
Cabra marcado para morrer, que se inicia
como uma produção cooperativada entre
estudantes e camponeses e se conclui
15 anos depois do Golpe, como obra
(#@#E=G-'?#',$'?=(#)&('1,#5'3&$&')&?&;5')&(>-(-.;#',$'%(&/;;=&>-0:H'
O CENTRO E AS CONTRADIÇÕESDe fato, a atividade artística já foi outra
coisa, e a evidência disso, posta em
cena, nos permite interrogar, em termos
materialistas, o que é “fazer arte” hoje.
A peça nos faz ver com mais clareza,
inclusive, que muitos artistas têm tema-
tizado a condição de produção da arte:
-'(#@#E=G=?-?#')&(>&,.;#'-)+',$'3-3&#)#'no documentário; o incrível sucesso mar-
ginal dos Racionais leva Mano Brown a
(#@#)=(';&<(#'&;'?=0#$-;'?#';,-'3(=-WK&'na genial “Negro Drama”; e até quem
trabalha na Globo, com Guel Arraes e
Jorge Furtado, faz repetidos trabalhos
sobre o trabalho e a condição do artista
(Romance, O homem que copiava, An-
chietanos, Clandestinos – só para citar
os mais evidentes).
À parte considerações de tema e de
(#@#E=G=?-?#'I&($-05'&')(-<-04&'-()Q;)=3&'surge hoje de maneira nova e renovada,
em experiências que, ainda que não
devam suscitar ufanismos emancipáo-
rios, merecem consideração: pontos de
cultura, organizações em rede (como o
crucial Fora do Eixo, dos roqueiros, ou
o Circuitos Compartilhados, nas artes
plásticas), artistas de várias frentes que
lançam mão dos recursos digitais para
produzir e fazer circular o que produzem
fora do contexto industrial – uma gama
de formas de produção com as quais
a gestão de Gilberto Gil, no MinC, se
relacionou aberta e criativamente.
O teorema de Ópera dos Vivos tem,
portanto, o mérito depor a nu a questão
das relações de produção das artes, mas
não aponta sua luz para as forças em
contradição com o eixo do poder e do
capital.
Claro, pode-se facilmente argumentar
1,#'&')#&(#$-'?-'%#W-'<,;3-'?#/>=('&'G#-tor dominante do sistema cultural – o da
sociedade do espetáculo, em suma – e não
estas tensões periféricas. Esse entendi-
mento foi defendido por Maria Rita Kehl
e Eugênio Bucci no debate sobre a TV,
que engrossaram o caldo frankfurtiano
ao caracterizarem a TV como uma forma
de satisfação de desejos inconscientes,
inconfessáveis e com simulacro oligopo-
lizado do espaço público – e tudo o que
estivesse fora desta caracterização seria
=>;=C>=/3->)#5'%&(1,#'$-(C=>-0HNão fosse o Latão um grupo marxis-
)-5'&')#&(#$-'4=;)Z(=3&'?-'-/($-WK&'?-'
Luz sobre a
mercantilização
da arte, e alguma
penumbra sobre
as contradições
mercantilização da arte nacional seria um
resultado e tanto. Mas uma parte, mesmo
que central, não vale pelo todo dinâmico.
Como lembrou Marcos Napolitano no
debate com Alambert, se tudo é contra-
ditório, é preciso considerar o conjunto
de forças contrárias à mercantilização,
inclusive no âmago da indústria cultural.
Não é preciso muito marxismo para
compreender que o mesmo processo
que concentra poder e capital na “TV
",?&*'F#'-/>;:'%(&?,M')#>;\#;'R'3&$&'as vividas inclusive por artistas inovado-
res que nela trabalham –, e, como na era
?&' ?=C=)-0' /3-'$-=;' #G=?#>)#5' 3(#;3#$'as forças produtivas, de um modo que
o capital tenta controlar, mas que lhe
escapa por todos os dedos.
]=%#()(&/-(' !-'"^*' #' !&' )(&%=3--lismo” até torná-los um DNA de toda
a vasta fauna e flora cultural talvez
seja construir uma imagem congelada,
incapaz de reconhecer o que há, ainda,
senão de subversivo, pelo menos de
instigante, por exemplo, nos arranjos de
Caetano para clássicos da música norte-
americana (em A foreing sound), ou no
trabalho de Furtado, ou, em outra ponta
do espectro social dos produtores, em
,$'/0$#'3&$&'_;'G&0)-;'?&'`#>#5'?&'cineasta huni kui Zezinho Yube, que
@-C(-' -' )#>;K&' #>)(#' )(-?=WK&' #'$#(-3->)=0=M-WK&'?&;'%-?(\#;'C(D/3&;'R'&;'kene – de sua cultura.
As contradições continuam vibrando
e tensionando a indústria cultural por to-
dos os lados, neste mundo feito – refeito
– pelos vivos e pelos mortos.
Eu vi um Brasil na tevê: no ato final assistir sentado a Morrer de pé
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