Os caminhos da libertação da Vontade a partir da filosofia de Schopenhauer: a metafísica do belo e os ideais ascéticos
Marcos Ramon Gomes Ferreira1
A filosofia de Schopenhauer, apresentada quase sempre como
sendo apenas uma filosofia do pessimismo, aponta para dois caminhos de
libertação do sofrimento do mundo: a contemplação artística e a ascese. Estes
dois momentos não são, contudo, opostos ou excludentes, mas participam de
um projeto de aniquilação da Vontade, em que ética e metafísica do belo2
devem estar, necessariamente, juntas. Neste texto o objetivo é apresentar o
caminho desenhado por Schopenhauer em sua obra principal, O mundo como
vontade e como representação, uma obra que, de acordo com
Schopenhauer, foi escrita para aqueles que procuram um vislumbre de
esperança em um mundo onde a dor e o sofrimento prevalecem. Quero
demonstrar que, para além do pessimismo, a filosofia de Schopenhauer pode
ser compreendida como uma tentativa de apresentar um possível caminho para
uma boa vida. Esse tema, aliás, é explorado pelo autor em diversos momentos
de suas obras, mas principalmente nos Aforismos para a sabedoria de vida,
que fazem parte do livro Parerga e Paralipomena, onde o filósofo alemão
discute a possibilidade de uma vida tranquila e agradável, dado que uma vida
completamente feliz é algo impossível. Aqui, porém, vou me ater mais
especificamente à relação entre ética e metafísica do belo e a identificar o lugar
destes dois campos do conhecimento dentro desse projeto de aniquilação da
Vontade.
O papel da filosofia
Schopenhauer escreveu que “toda filosofia é sempre teórica, já que
lhe é sempre essencial manter uma atitude puramente contemplativa (...) e
sempre inquirir, em vez de prescrever regras” (SCHOPENHAUER, 2005, p.
353). Portanto, no campo da ética, Schopenhauer exclui a possibilidade de se
1 Professor de Filosofia do Instituto Federal de Brasília - IFB, doutorando em Comunicação pela
Universidade de Brasília - UnB. [email protected] 2 Schopenhauer rejeita o uso da palavra estética, por entender que este termo implicaria em
prescrições sobre as regras e técnicas das diversas artes.
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prescrever regras de conduta, tal como se apresentaria o problema da ética
para Kant, a partir do imperativo categórico.
A virtude é tão pouco ensinada quanto o gênio; sim, para ela o conceito é tão infrutífero quanto para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como instrumento. Por conseguinte, seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos, nobres e santos, quanto que nossas estéticas produzissem poetas, artistas plásticos e músicos. (SCHOPENHAUER, 2005, p.353-354)
Sendo assim, a filosofia não pode ter pretensões maiores do que
“interpretar e explicitar o existente, a essência do mundo” (SCHOPENHAUER,
2005, p. 354). O que já é, de acordo com a proposta de Schopenhauer, muito.
Essa essência do mundo, de que fala Schopenhauer, está conectada
diretamente com o que o autor chama de Vontade, que nesse contexto não se
iguala ao simples querer. A Vontade é uma força cega, um ímpeto para a vida,
que determina tudo o que procuramos realizar, ainda que de forma
inconsciente. A Vontade age em tudo que existe, não apenas nos seres
humanos, mas em toda a natureza, em todo o universo. A Vontade não tem
fundamento, ou seja, não age para realizar algum propósito. O que a Vontade
de vida procura é simplesmente a própria vida, sem mais. É, portanto, um
ímpeto cego e irracional, como um monstro, que crava os dentes na própria
carne. O curioso, ou dramático, nisso tudo, é que é essa Vontade que comanda
e determina a maior parte de nossas ações. Ao contrário do que imaginamos,
não é a razão que está à frente em nossas decisões mais imediatas, mas o
ímpeto pela vida. Cada passo e decisão nossa é, na verdade, um passo em
direção à manutenção da vida. A Vontade, esse movimento visceral e
destruidor, não nos permite facilmente identificar sua origem, mas existem
possibilidades.
O corpo como manifestação da Vontade
A forma mais direta de termos acesso à Vontade é através do nosso
corpo:
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(...) o conhecimento que tenho da minha vontade, embora imediato, não se separa do conhecimento do meu corpo. Conheço minha vontade não no todo, como unidade, não perfeitamente conforme sua essência, mas só em seus atos isolados, portanto no tempo, que é a forma do fenômeno de meu corpo e de qualquer objeto. (SCHOPENHAUER, 2005, p.159)
Mas apesar de conhecermos a Vontade de forma imediata através
de nossos atos corporais, nem todos têm consciência disso. Schopenhauer faz,
por exemplo, uma crítica grave à filosofia de Kant no que se refere à
impossibilidade de conhecermos o ser-em-si a partir do objeto de
representação. Para Kant, apenas aquilo que está no mundo sensível pode ser
conhecido, ou seja, só podemos conhecer enquanto podemos trabalhar com
conceitos, só podemos conhecer o fenômeno. Schopenhauer, no entanto,
acreditava que a coisa-em-si era a própria Vontade. E esta se apresenta aos
indivíduos através da intuição, ou seja, sem qualquer mediação conceitual, sem
necessidade de abstração. O caminho para essa intuição é o corpo, que sente
cada impulso da Vontade de forma intensa e necessária. Se possuímos um
corpo e se esse corpo é atacado pela Vontade, então podemos conhecer a
essência do mundo através de nós mesmos, sem necessidade de conceitos.
Este lugar central do corpo é colocado aqui como um todo negativo. O meu
corpo sofre a pressão da Vontade e, por isso, posso reconhecer em mim
mesmo a essência do universo inteiro. Eu sou um microcosmo do que existe
em todo e qualquer lugar: o impulso, a força motora da existência está presente
em mim assim como em tudo o mais que existe. A diferença é que o ser
humano, pelo uso da razão, pode se voltar para análise do seu próprio corpo,
para o local onde a Vontade se manifesta, algo impossível para os outros
animais e coisas existentes. Essa vantagem, contudo, nos traz também
problemas. Como compreendemos o impulso da Vontade em nós – e mesmo
as pessoas mais inconscientes irão eventualmente ter um vislumbre disso, de
como a Vontade age sobre elas – nós sofremos mais e temos dificuldade de
encarar a realidade e sua inevitabilidade.
Ser consciente de nosso sofrimento e da nossa incapacidade de fugir
das garras do ímpeto de vida não é fácil. É como eu conhecer o meu torturador
e as dores que vou sofrer, sem poder evitar que aconteçam. Não por acaso a
maior parte das pessoas se afoga na ignorância, na inconsciência e nos
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disfarces que encontramos para tentar justificar tudo que existe, pois encarar a
dor de frente é algo que a maior parte das pessoas não tem coragem de fazer.
O otimismo extremo, o “tudo vai melhorar” e o “isso aconteceu por um bom
motivo”, ajuda as pessoas fracas a suportarem melhor a vida, a se enganarem
acreditando que a vida tem um propósito e que faz sentido. Mas na verdade –
se alguém quiser a verdade – é que não tem. Nossa vida é um erro, os
acontecimentos são puro acaso e o nosso destino é o sofrimento. Em resumo:
seria melhor que não tivéssemos existido.
A metafísica do belo e a contemplação pura do mundo
De acordo com Schopenhauer, essa situação desesperadora não
deve nos levar ao desespero. Conviver com pessoas que fingem que a
realidade não é o que é já é desesperador o suficiente. É preciso buscar
alternativas. Uma delas, a mais viável, é a libertação da Vontade por meio da
arte.
Apesar de podermos conhecer a Vontade por meio do nosso corpo,
esse conhecimento não pode ser claramente exposto, dado que não há a
mediação conceitual, apenas a experiência da Vontade em nós. Mas a arte
apresenta um caminho diferente. Para Schopenhauer a obra de arte é trabalho
do gênio, que é aquele capaz de vislumbrar a Vontade diretamente por meio da
contemplação. A arte surge da pura contemplação do mundo e a objetivação
da Vontade, ou seja, a entrada da Vontade no mundo como representação,
possui diversos graus, que Schopenhauer denomina de Ideias. Enquanto o
homem comum não consegue fugir da Vontade, o gênio dribla o ímpeto de
viver e se encontra num momento de liberdade extrema:
O homem comum, esse produto de fábrica da natureza, que ela produz aos milhares todos os dias, é, como dito, completamente incapaz de deter-se numa consideração plenamente desinteressada, a qual constitui a contemplação propriamente dita. (...) O homem genial, ao contrário, cuja faculdade de conhecimento, pelo seu excedente, furta-se por instantes ao serviço da vontade, detém-se na consideração da vida mesma e em cada coisa à sua frente esforça-se por apreender a sua Ideia, não as suas relações com as outras coisas. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 257)
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A genialidade, portanto, é uma capacidade de proceder de maneira
puramente intuitiva (SCHOPENHAUER, 2003, p. 61) e o gênio é aquele que
nos empresta seus olhos para que possamos também contemplar o mundo
como Vontade. Segundo Schopenhauer, todos os homens são capazes de fruir
uma obra de arte. Neste sentido, todos nós possuímos algo do gênio. Mas a
capacidade criativa, a condição de ser o olho puro do mundo, isto é para
poucos.
A questão do gênio e do belo é o tema da terceira parte de O mundo
como vontade e como representação. Nesta parte Schopenhauer
desenvolve os conceitos essenciais à sua Metafísica do Belo (Ideia, gênio,
satisfação estética, sublime) e apresenta uma hierarquia das artes, daquela
que apresenta os graus mais baixos da Vontade, a arquitetura, até a arte mais
completa, aquela que pode ser vista como um análogo do mundo, já que
reproduz todos graus de objetivação da Vontade: a música. Nesse caminho
Schopenhauer analisa também a hidráulica, a jardinagem, a pintura de
paisagem, a pintura de animais, a pintura histórica, a escultura e a poesia,
especialmente a poesia trágica, esta sendo bem próxima da música. Assim,
contemplando cada uma dessas artes podemos nos aproximar da essência do
mundo, libertando-nos da dor, do sofrimento, da angústia de viver.
É importante insistir na tese schopenhaueriana de que toda vida é,
essencialmente, sofrimento, sendo este e a dor aquilo que existe de positivo no
mundo, ou seja, aquilo que é mais constante e inevitável. A beleza nos faz
esquecer disso, nos anulando como indivíduos, nos integrando no todo
cósmico do universo. Mas existe um problema em relação à contemplação da
arte: a sua libertação é apenas momentânea. Esse momento de pura
contemplação irá necessariamente passar e voltaremos onde estávamos antes:
dor, sofrimento, angústia, vida, enfim.
A vida sem sofrimento é impossível, mas isso não implica em adotar
uma atitude de resignação à Vontade. Para Schopenhauer, é tarefa do
indivíduo consciente lutar pela eliminação do desejo, esse impulso negativo
que nos lança em direção à Vontade de viver. A vida é uma ilusão, assim como
o prazer da satisfação dos desejos, pois o nosso confronto com estes nos traz
apenas duas possibilidades:
1. Quando não realizamos o desejo, vem a dor;
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2. Quando realizamos o desejo, vem o tédio. E o desejo se
renova ou ressignifica.
O prazer que surge da Vontade é sempre momentâneo, pois a
Vontade, como impulso brutal e constante, se renova a cada instante. A arte,
contudo, rompe o ciclo comum do sofrimento: desejo = dor ou prazer = novo
desejo. Através da arte nos desprendemos da Vontade e experienciamos uma
liberdade autêntica e emancipadora. Ainda que proporcione uma liberdade
breve, esse contato com arte é essencial para estabelecer uma significação à
vida. A arte nos coloca diante de um prazer desinteressado, do ponto de vista
imediato, ou seja, não sendo um mero processo de imitação da realidade, e
garante à vida humana uma dignidade e sobriedade necessárias para que
possamos suportar melhor a inevitabilidade do sofrimento. É importante
ressaltar que Schopenhauer traduz a teoria do belo desinteressado de Kant à
sua maneira. Para Schopenhauer esse desinteresse está justamente na
possibilidade do belo artístico se manifestar sem dependência da Vontade. Por
isso, a arte histórica ou a arte que depende excessivamente do contexto falha,
já que a sua apreciação depende muito mais do vínculo com algum interesse
do que com sua capacidade de nos libertar da Vontade, através do elemento
intuitivo.
Essa é, aliás, a mesma justificativa do autor para ainda insistir em
uma pretensa hierarquia das artes. A grande questão é a correlação com a
Vontade e seus impulsos. Como a Vontade é manifesta no corpo é
compreensível que Schopenhauer decrete a música como a arte suprema e
diminua toda e qualquer arte que gere vínculos com o corpo, como a dança,
por exemplo. Todo e qualquer elemento que distraia a contemplação e force o
vínculo com a Vontade é negativo. Na dança, pelos movimentos dos corpos, o
impulso sexual é desperto e a Vontade se manifesta. A contemplação intuitiva
fica comprometida pelo vínculo físico e pela ausência do desinteresse. A arte
aliada à experiência corpórea visceral é, na verdade, mais um objeto de
domínio da Vontade do que uma libertação desta. Dessa maneira
Schopenhauer presta a sua homenagem à tradição platônica, que tanto
admirava.
Da mesma forma a associação de outras artes com a música implica
em uma série de prejuízos. Na conexão entre música e dança, o essencial da
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música é perdido pelo encantamento manifesto da Vontade presente no corpo
em movimento; a canção nos força a interpretar o sentido da música pelo que é
dito e não pela música em si; até mesmo a voz humana pode ser encarada
como uma distração.
Schopenhauer encarava a música – a música instrumental, falando
claramente – como um análogo do universo. A música não representa a
tristeza ou a alegria, como uma pintura pode fazer, mas ela é a tristeza e a
alegria. A música não é cópia das coisas do mundo, mas a linguagem universal
da coisa-em-si. Se enunciássemos em conceitos o que a música exprime a seu
modo teríamos uma exposição fiel do mundo. Essa seria a verdadeira filosofia.
Foi essa filosofia impossível que Nietzsche que buscou criar em sua obra. A
sua eterna extemporaneidade talvez signifique que Schopenhauer estava certo:
o que pode ser expresso pela arte não pode ser comunicado pela linguagem.
A ética da compaixão e o ascetismo
Mas existe uma possibilidade de libertação permanente, e esta se
encontra no campo da ética, tema da quarta parte de O mundo como
vontade e como representação e coroamento do sistema de Schopenhauer.
No início da quarta parte da referida obra, Schopenhauer afirma que quando a
Vontade chega ao conhecimento de si ela tem a possibilidade de afirmar-se ou
negar-se. É conhecida a crítica de Schopenhauer à afirmação da vida, por
meio daquelas pessoas que, segundo ele, vivem como animais, eternamente
entregues aos seus prazeres, e nunca capazes de se ocupar de algo mais
importante do que a realização de um desejo. Talvez venha justamente dessa
crítica a alcunha de eterno pessimista. Mas se não é de todo errado
apontarmos o pessimismo de Schopenhauer, também não é coerente ver nele
apenas uma tendência à negação da vontade, como atesta o trecho a seguir:
Um homem que assimilasse firmemente em seu modo de pensar as verdades até agora referidas, e, ao mesmo tempo, não tivesse chegado a conhecer por experiência própria ou por uma intelecção mais ampla que o sofrimento contínuo é essencial a toda vida; e na vida encontrasse satisfação e de bom grado nela se deleitasse, e, ainda, por calma ponderação, desejasse que o decurso de sua vida, tal qual até então foi experienciado, devesse ser de duração infinda ou de retorno
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sempre novo; cujo ânimo vital fosse tão grande que, no retorno dos gozos da vida, de boa vontade e com prazer assumisse as suas deficiências e tormentos aos quais está submetido; um tal homem, ia dizer, se situaria “com firmes, resistentes ossos sobre o arredondado e duradouro solo da terra” e nada teria a temer. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 368)
A proposta de Schopenhauer é valorizar aquele que
conscientemente afirma a Vontade de viver, diferente daquele que afirma sua
vida sem saber o porquê, apenas obedecendo ao comando da Vontade.
Podemos ver aqui um prenúncio do que viria surgir depois, através de
Nietzsche: o eterno retorno, o amor fati. Schopenhauer identifica esse homem
que afirma conscientemente a sua vida com o herói, a mesma identificação que
Nietzsche faz com o além-homem. Neste sentido Nietzsche ainda nos parece
muito próximo daquele de quem teria se separado completamente.
Apesar desta consideração sobre a afirmação da Vontade,
Schopenhauer detêm-se na negação da Vontade de vida. No campo da ética,
esta se dá em dois passos, sendo o primeiro deles a compaixão.
Schopenhauer, na obra Sobre o fundamento da moral, afirma que
as ações humanas possuem três motivações fundamentais: o egoísmo, que
visa o bem próprio e é ilimitado; a maldade, que visa o mal alheio e pode
chegar à crueldade; e a compaixão, que visa o bem-estar alheio e pode
chegar à nobreza moral (SCHOPENHAUER, 2001, p. 137). Destas três
motivações apenas a compaixão pode servir de motivação para a ética.
Schopenhauer, apesar de manter um respeito extremo ao seu mestre
intelectual, Kant, recusa assim a concepção de ética por dever, dado que se
pode ensinar a virtude.
Schopenhauer apresenta assim a questão da compaixão como
princípio da ética:
O primeiro grau do efeito da compaixão é o fato de que ela se opõe ao sofrimento que eu próprio posso causar aos outros, por inibir as potências antimorais que habitam em mim. Ela me grita “pare!” e se coloca como arma defensiva diante do outro, protegendo-o da ofensa a que, não fora isso, meu egoísmo ou minha maldade me teriam impelido. Desta forma, deste primeiro grau da compaixão surge a máxima “neminem laede”, isto é, o princípio da justiça, virtude que só aqui e em mais nenhum outro lugar tem sua origem mais pura, meramente moral e livre de qualquer mistura, pois, do contrário, teria de repousar no egoísmo (SCHOPENHAUER, 2001, p. 142-143)
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Na compaixão, portanto, desaparece a diferença entre o eu e o não-
eu. O egoísmo e o individualismo são destruídos, restando um sujeito
consciente de que o sofrimento pode ser aliviado quando padecemos pelos
outros. No entanto, a solução através da compaixão oferece um problema,
como lembra Jair Barboza em Infinitude subjetiva e estética:
Mas essa argumentação de Schopenhauer deságua numa contradição. A compaixão, ao salvar uma vida, torna-se indiretamente uma sua afirmação, de outra vontade particular, do eu de outrem. A tentativa de evitar os sofrimentos alheios pode no limite renovar a vida que se extingue, logo também seus sofrimentos, de modo que o problema da existência não é resolvido. Daí Schopenhauer, em vista da consumação da teoria da negação do querer, ter de buscar o grau máximo desta, ou seja, a negação em sentido estrito. (BARBOZA, 2005, p. 267)
A única maneira de resolver esta contradição é dar um passo adiante
em direção da aniquilação total da Vontade de vida. Este passo se encontra no
ascetismo, que é a supressão total dos desejos. O asceta ou o santo não tem
mais um interesse pela vontade de vida, e enquanto o gênio e o virtuoso
conseguem negar a vontade num nível mais baixo, o asceta atinge um
conhecimento do todo, que o possibilita negar a essência mesma da Vontade,
ainda que esta se manifeste em seu corpo.
O acontecimento, pelo qual isso se anuncia [a negação da Vontade], é a transição da virtude à ASCESE. Por outros termos, não mais adianta amar os outros como a si mesmo, por eles fazer tanto, como se fosse por si, mas nasce uma repulsa pela essência da qual seu fenômeno é expressão, vale dizer, uma repulsa pela Vontade de vida, núcleo e essência de um mundo reconhecido como povoado de penúrias. Renega, por conseguinte, precisamente essa essência que nele aparece expressa já em seu corpo. Seus atos desmentem agora o fenômeno dessa essência, entram em contradição flagrante com ele. Essencialmente fenômeno da Vontade, ele cessa de querer algo, evita atar sua vontade a alguma coisa, procura estabelecer em si a grande indiferença por tudo. (SCHOPENHAUER, 2005, p.482-483)
A ascese pode se manifestar na castidade, na pobreza voluntária, no
jejum, no auto-flagelo, enfim, na mortificação da Vontade de vida em todos os
seus níveis. É possível, portanto, abandonar o sofrimento cotidiano e atingir um
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estado de purificação em vida. E esse estado é tão puro que a morte, neste
caso, não finda apenas o fenômeno, mas a própria essência, pois “para quem
assim finda, findou o mundo ao mesmo tempo” (SCHOPENHAUER, 2005, p.
483). O indivíduo se encontra com o Nada, anula-se em vida e após a morte.
(...) para todos aqueles que ainda estão cheios de Vontade, o que resta após a completa supressão da Vontade é, de fato, o nada. Mas, inversamente, para aqueles nos quais a Vontade virou e se negou, este nosso mundo tão real com todos os seus sóis e vias lácteas é – Nada. (SCHOPENHAUER, 2005, p.519)
É justamente nesta viragem de que fala Schopenhauer nas últimas
linhas de O mundo como vontade e como representação que encontramos
o parentesco entre a ética e a metafísica do belo. O belo, a virtude e o
ascetismo conseguem neutralizar o mundo real nos trazendo a impressão do
Nada. O indivíduo tira diante de si o véu de Maya que obscurece o mundo e
pode encarar com clareza a própria Vontade de vida. Neste sentido não é de
todo errado afirmar que para Schopenhauer a ética e a metafísica do belo
almejam o mesmo propósito, ainda que por caminhos diferentes. Enquanto a
arte trabalha com a intuição e a compaixão com o sentimento, a ascese age
com a razão que, apesar de ter um caráter secundário na filosofia de
Schopenhauer, é aqui a responsável por essa aniquilação total da Vontade.
Pessimismo prático-otimista
Apesar de ter criado uma filosofia pessimista, apoiada no Romantismo
do século XVIII, Schopenhauer tem, no dizer de Jair Barboza, uma proposta
prático-otimista (BARBOZA, 2005, p.264, nota 9), ou seja, uma filosofia do
consolo, que busca apresentar um caminho de esperança e paz num mundo
em que prevalece o sofrimento. Neste sentido a ética e a metafísica do belo
têm um papel importantíssimo: o de serem condutores do ser humano na
direção de um mundo menos violento e mais digno. Essas diferentes formas de
acessar a verdade se encontram para mostrar aquilo que não vemos, mas que
está diante de nós, escondido pelos nossos desejos, pelos nossos impulsos: o
Nada tranquilizador, a aniquilação do querer, a felicidade possível.
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REFERÊNCIAS:
BARBOZA, Jair. Infinitude subjetiva e estética: natureza e arte em Schelling e Schopenhauer. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. LEFRANC, Jean. Compreender Schopenhauer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. São Paulo: Martins Fontes, 2002. _______________. Metafísica do Belo. São Paulo: Ed. UNESP, 2003. _______________. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. _______________. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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