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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE PSICOLOGIA
OS CAPS E A CRONIFICAÇÃO: O QUE A PSICANÁLISE TEM A DIZER?
Autora: Clarice Furtado de Oliveira Orientadora: Doris Luz Rinaldi Banca examinadora: Rita Manso e Luciano Elia
Rio de Janeiro Outubro/2006
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Os Caps e a Cronificação:
O que a psicanálise tem a dizer?
Resumo
Nesta monografia procuro refletir sobre a possibilidade de cronificação dos pacientes nos
Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que são os principais serviços substitutivos ao
manicômio, a partir da reforma psiquiátrica brasileira. Primeiramente faço uma leitura geral
da história da reforma psiquiátrica no Brasil, da construção dos paradigmas que nos ajudam
a entender a clínica que vemos operando hoje nos Caps e do lugar da psicanálise no campo
da saúde mental. Num segundo momento, investigo a clínica que se observa hoje nos Caps,
tendo em vista as questões clínico-institucionais que atravessam o seu cotidiano. Analiso
mais profundamente dois dispositivos supostos pela reforma para o funcionamento dos
Caps: o projeto terapêutico e o técnico de referência. Estes seriam os dispositivos pensados
para garantir o tratamento dos pacientes no Caps, mas nem sempre se encontram operando
no cotidiano da instituição, ao ainda, operaram, mas de maneira burocrática e normativa.
Desta forma, observa-se uma prática na qual o usuário deve estar sempre produzindo,
realizando atividades, freqüentando as oficinas e grupos, mas, muitas vezes, não se tem
clareza de qual é o tratamento daquele sujeito. Desta forma, ele passa a freqüentar o Caps,
em alguns casos diariamente, sem que exista uma motivação clínica para isso. Para que isto
não ocorra, é preciso que haja um acompanhamento constante que valorize a fala do sujeito
em sua singularidade. Neste viés, finalizo o trabalho discutindo as possíveis contribuições
da psicanálise, através da clínica do sujeito, para a não cronificação de pacientes nos Caps.
Palavras-chave: cronificação, clínica, Caps.
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A Associação Brasileira de Ensino de Psicologia
O trabalho de conclusão do Curso de Psicologia do Instituto de Psicologia da UERJ
intitulado O CAPS e a cronificação: o que a psicanálise tem a dizer? de autoria de Clarice
Furtado de Oliveira, discute um tema de grande relevância no campo da reestruturação dos
serviços públicos de saúde mental em nosso País, qual seja, a clínica que se desenvolve nos
novos serviços que, a partir da reforma psiquiátrica brasileira, vieram substituir os antigos
manicômios. Focalizando sua análise na assistência prestada atualmente pelos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), a autora levanta a importante questão do risco da
burocratização dos serviços a partir da sua institucionalização e o conseqüente risco de
cronificação dos pacientes atendidos pelo CAPS. Reconhecendo o papel fundamental da
reforma psiquiátrica brasileira, que a partir de uma crítica ao velho tratamento manicomial
e excludente, viabilizou o surgimento de novas maneiras de abordar o sofrimento psíquico
nos novos serviços como o CAPS, ela chama a atenção para a necessidade de uma reflexão
permanente sobre a clínica que se desenvolve nesses serviços, apresentando as
contribuições que a psicanálise pode dar a esta clínica, ao valorizar o sujeito e sua palavra,
em um tratamento que não se reduza a aplicação de modelos pré-estabelecidos e
normativos.
Seu trabalho baseou-se em experiência de estágio no campo da saúde mental e em
pesquisa realizada em diversos CAPS do município do município do Rio de Janeiro, em
que participou como bolsista, junto a outros bolsistas, de um trabalho que venho
desenvolvendo no Instituto de Psicologia com o apoio do CNPq. Clarice permaneceu
durante 7 meses em um desses serviços realizando trabalho de campo. A análise do
material levantado, aliado à pesquisa bibliográfica e a sua sensibilidade no tratamento das
informações que pode colher e das experiências de que participou, resultaram em um belo
trabalho de conclusão de curso.
Rio de Janeiro 26 de março de 2007.
Doris Luz Rinaldi
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Sumário
Introdução..................................................................................................... 05
1. A reforma psiquiátrica brasileira e o lugar do analista
nos novos dispositivos de cuidado em saúde mental....................................08
2. Que cronificação é essa?............................................................................17
3. A clínica nos Caps – contribuições da psicanálise.....................................31
Referência Bibliográficas..............................................................................40
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→ Introdução
Foi a partir da minha experiência de um ano e meio como estagiária1 no “Espaço
Aberto ao Tempo” (EAT), hospital-dia do Instituto Nise da Silveira, que iniciei as reflexões
que trabalho nesta monografia. Percebi no cotidiano do EAT como aquele tratamento já
havia perdido o sentido para alguns usuários do serviço, mas estes continuavam a
freqüentá-lo. Era comum, inclusive, a presença cotidiana de pacientes que claramente não
necessitavam de um serviço de atenção diária.
Foram as falas dos pacientes do Espaço Aberto ao Tempo as primeiras a me
mobilizarem, reproduzo uma delas:
“Passo todos os dias aqui...às vezes eu até queria ver outras coisas, mas parece que não consigo, alguma coisa me puxa pra cá, acho que é o hospital, o hospital me puxa pra dentro, não tenho coragem de sair.”
Quando ainda estagiava no EAT iniciei a minha participação na pesquisa “Clínica
do Sujeito e Atenção Psicossocial: novos dispositivos para o cuidado em saúde mental”,
orientada pela professora Doris Rinaldi no Instituto de Psicologia da Uerj.2 Foi com a
participação na pesquisa que pude dar forma aos questionamentos que, até então, se
apresentavam como “idéias soltas”.
Iniciei minha participação na pesquisa quando esta se encontrava em uma segunda
fase. Em sua primeira fase, procurou-se analisar a configuração de saberes e práticas que
compõem atualmente o campo da saúde mental. Para isso tomou-se como objeto de
pesquisa as categorias discursivas Cuidado, Clínica, Acolhimento, Escuta, Cidadania e
Sujeito, investigadas principalmente através de entrevistas feitas com profissionais de
diversos serviços de saúde mental do município do Rio de Janeiro.
Ao ler estas entrevistas pude verificar o que alguns profissionais já pensavam a
respeito de uma cronificação dos pacientes nos Caps e que, em geral, relacionam isto com o
não acompanhamento do projeto terapêutico destes. No início deste ano tive a oportunidade 1 Este estágio diz respeito ao programa de acadêmico-bolsista da Prefeitura do Rio de Janeiro para Estágio Integrado em Saúde Mental. 2 Participei da pesquisa como bolsista Pibic-Uerj de março de 2005 a agosto de 2006 e como participante voluntária desde então.
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de participar da nova etapa de trabalho de campo desenvolvido na pesquisa, através do qual
pude aprofundar a investigação desta questão.
O novo trabalho de campo objetivou a continuidade do estudo da clínica nos
Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e foi realizado em três Caps da cidade do Rio de
Janeiro, selecionados por nós3, são eles: Caps Clarice Lispector, no Engenho de Dentro;
Caps Profeta Gentileza, em Inhoaíba; e Capsi Pequeno Hans, em Sulacape4. Elaboramos
nas reuniões semanais da pesquisa um roteiro de entrevistas para ser utilizado nos três
Caps. Além do roteiro para a entrevista com profissionais, elaboramos também roteiros
para entrevistas com os usuários dos Caps e familiares de usuários. Estas foram entrevistas
extremamente abertas sendo o roteiro apenas uma linha de pensamento para os temas
abordados.
Além das entrevistas, notamos a necessidade de que se fizesse uma observação
participante nesses serviços. O objetivo era que não tivéssemos notícias da clínica somente
através das falas, mas que vivenciássemos a clínica, tal qual acontece no dia a dia da
instituição. Para isso, os participantes da pesquisa foram divididos entre os três Caps. Eu e
a mestranda Daniela Oliveira estivemos no Profeta Gentileza, Caps que freqüentei duas
vezes na semana durante 7 meses.
Como observadora participante me inseri no cotidiano do serviço, assumindo, até
certo ponto, papel de membro da equipe. Pude, desta forma, conhecer o funcionamento do
Caps e a maneira como sua clínica opera participando desta. Fui recebida pela equipe como
mais uma pessoa para auxiliar no trabalho, o que foi bastante produtivo, pois facilitou a
receptividade dos funcionários à minha presença como pesquisadora. Além disso, sem a
participação, a experiência clínica não é possível.
Durante a pesquisa de campo no Profeta Gentileza, realizei entrevistas com
profissionais, usuários e familiares de usuários do Caps. Com relação à observação
participante, pude participar de diversas oficinas e grupos e das reuniões de equipe
semanais, que ocorrem de forma simultânea as supervisões, não havendo separação entre
elas. Outro ponto importante na observação participante foram as conversas informais com
3 Além da orientadora Doris Rinaldi, participavam da pesquisa neste momento as mestrandas: Daniela Oliveira e Daniela Bezerra; os graduandos em psicologia: Leonardo Cabral e Gabriela Sulaiman e a aluna do curso de especialização em psicanálise e saúde mental da Uerj: Ghabriela Almas. 4 No Capsi Pequeno Hans a pesquisa de campo ainda está em andamento por ter começado alguns meses depois.
7
técnicos, usuários e familiares e as observações do cotidiano da instituição fora das
oficinas.
Neste trabalho utilizo não somente a minha experiência como observadora
participante no Caps Profeta Gentileza e as entrevistas que fiz neste serviço, mas também
algumas das entrevistas que foram feitas nos outros Caps pesquisados. Além, é claro, das
reflexões baseadas nas discussões em reuniões semanais da pesquisa.
Nestas reuniões, os pesquisadores falam de suas experiências nos Caps onde estão
ou estiveram inseridos, discutimos os relatórios de campo que começam a ser produzidos e
as entrevistas que vão sendo transcritas. Desta forma, procuramos investigar as orientações
teóricas que fundamentam a clínica, assim como a sua prática efetiva, fazendo uma
interface desta nos três Caps em questão. Foi fundamental para a reflexão sobre a questão
da cronificação, que realizo neste trabalho, a oportunidade de entrar em contato com a
clínica realizada em três Caps com características bastante diferentes5.
5 Ainda que a pesquisa no Capsi Pequeno Hans esteja em fase mais inicial.
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→ 1. A reforma psiquiátrica brasileira e o lugar do analista nos novos
dispositivos de cuidado em saúde mental
Movimentos criticando o aparato psiquiátrico tradicional passam a existir no
cenário mundial a partir da década de 40, no contexto do pós-guerra. É o início da reforma
psiquiátrica, que neste momento visava uma transformação nos dispositivos psiquiátricos
tradicionais. Estas transformações se davam no sentido de uma humanização do tratamento,
da democratização da dinâmica institucional e o deslocamento do tratamento apenas
institucional para serviços comunitários. Dentre estes movimentos temos a Psicoterapia
Institucional Francesa, a Comunidade Terapêutica na Grã-Bretanha e a Psiquiatria
Comunitária norte-americana.
Tais movimentos não pretendiam o fim das instituições psiquiátricas e o objetivo
era recuperar o potencial terapêutico desse dispositivo através da sua transformação.
Seguindo uma mesma influência, mas, de certa forma, rompendo com este pensamento
surgem a Antipsiquiatria Inglesa e a Psiquiatria Democrática Italiana, que propunham a
negação da lógica psiquiátrica, como redutora da questão da loucura à doença mental. A
idéia seria a de superação dos dispositivos psiquiátricos tradicionais, objetivando o fim
gradual das internações manicomiais.
O modelo da reforma brasileira teve a influência de todos os movimentos
internacionais já citados, mas principalmente da Psiquiatria Democrática Italiana. Esta traz
o conceito de desinstitucionalização6 como sinônimo de desconstrução. Não se trata apenas
da saída da instituição, mas da negação da própria psiquiatria como a instituição que
aprisionou a loucura no conceito de doença mental e fundamentou cientificamente as
práticas excludentes que conhecemos. Em A Instituição Negada (1985), Basaglia afirma
que a instituição a ser negada não era nem a doença mental, nem a psiquiatria, mas o
mandato social outorgado à psiquiatria para isolar os sujeitos.
6 Este termo foi criado pelo movimento da Psiquiatria Preventiva norte-americana, nos anos 60. Neste contexto ele era utilizado como sinônimo de desospitalização, diferentemente da maneira como é empregado pela Psiquiatria Democrática Italiana.
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Para Basaglia o problema não era a doença em si, mas o tipo de relação que se
instaura com o doente. A idéia não era, portanto, a de suspensão do tratamento psiquiátrico,
mas a de construção de novas possibilidades de entender e tratar a loucura. Assim, o fim do
aparato psiquiátrico tradicional deveria acontecer concomitantemente à construção de um
circuito de atendimento que oferecesse e produzisse cuidados e novas formas de
sociabilidade.
O processo de desisntituionalização propõe, portanto a criação de dispositivos
terapêuticos a partir de uma nova lógica de assistência, que romperia com toda a lógica da
psiquiatria e sua clínica. Isto se tornaria possível através da criação de serviços na
comunidade, do deslocamento da internação terapêutica para o contexto social, a
prevenção, a reabilitação, etc. Com relação à reabilitação, ela ocorreria fundamentalmente
através do trabalho, tendo grande destaque na Itália, em especial na experiência de Trieste,
as cooperativas de usuários. Este tipo de trabalho protegido operaria como caminho para a
reinserção social do portador de sofrimento psíquico.
No Brasil, os movimentos criticando a cultura manicomial excludente se iniciam na
segunda metade da década de 70, em meio a lutas pela redemocratização do país. Nesta
época já começam a surgir denúncias contra o abandono e a violência sofrida pelos internos
dos hospitais psiquiátricos. O Ministério Público já se vê pressionado pelas péssimas
condições de funcionamento dos hospitais e contrata novos técnicos.
Este foi um momento importante porque entram nos hospitais psiquiátricos
profissionais com fortes críticas teóricas ao modelo asilar, tocados por um lado pelos
movimentos internacionais de reforma psiquiátrica e por outro pela psicanálise, que se
consolidava definitivamente no país7.
No início da década de 80, tiveram visibilidade a ‘luta antimanicomial’8 e o
Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), denunciando a situação vivida
pelos internados nos hospitais psiquiátricos e reivindicando a humanização destes. Este
movimento deu voz também a denúncias sobre a mercantilização da loucura, através da
privatização da assistência nos hospitais conveniados.
7 Nesta época a psicanálise estava entrando num momento de grande difusão no território brasileiro, ampliando a diversidade de modelos teóricos e de práticas clínicas, inclusive com a chegada do movimento lacaniano ao país. 8 Movimento composto por usuários, familiares e trabalhadores de saúde mental.
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A reforma psiquiátrica brasileira caminha, portanto, até se consolidar nos anos 90
quando foi apresentado o projeto de lei Paulo Delgado. Este projeto só foi aprovado em
2001, mas já intensificou as discussões, reunindo em texto legal as reivindicações feitas até
o momento. Estava incluída no projeto a regulamentação dos direitos dos doentes mentais e
a substituição gradativa do aparato manicomial por novos dispositivos de acolhimento e
tratamento.
Sendo assim, neste momento a proposta não é mais apenas de humanização do
aparto psiquiátrico tradicional, mas de substituição deste. Tendo como influencia principal
a reforma italiana, a reforma psiquiátrica no Brasil passa a defender também a cidadania
dos portadores de sofrimento psíquico. Entendendo-se a cidadania como algo além da
possibilidade de participar de atos jurídicos legais, ligada a noção de autonomia dentro da
comunidade e responsabilidade por seus atos. A reforma brasileira constitui-se, então,
como um movimento mais amplo que abarca as relações sociais, culturais, políticas e
jurídicas com a loucura.
Este movimento proporcionou grandes transformações na assistência psiquiátrica,
ainda que os asilos continuem existindo em número considerável. Foram criados serviços
com o objetivo de serem substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, são as chamadas
instituições de novo tipo, como os hospitais-dia, moradias terapêuticas e Centros de
Atenção Psicossocial (Caps).
Os Caps são os principais dispositivos da reforma psiquiátrica no Brasil, serviços de
atenção diária, direcionados para uma clientela de psicóticos e neuróticos graves, tal como
definidos na reforma. O principal objetivo deste tipo de serviço é de ser substitutivo aos
dispositivos psiquiátricos tradicionais, em especial da internação. Eles se apresentam
também como organizadores da rede de assistência à saúde mental, fazendo a articulação
com as demais instituições. Como afirma Fernando Tenório :
“a reforma psiquiátrica é a tentativa de dar ao problema da
loucura uma outra resposta social. Na expressão consagrada, uma resposta não asilar. [...] trata-se de evitar a internação como destino e reduzi-la a um recurso eventualmente necessário no contexto de um tratamento que permite ao paciente não ser alijado do corpo social e dos atos da sociabilidade.” (TENÓRIO, 2003: 120)
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Desta forma, nestes novos dispositivos, que foram chamados “de atenção
psicossocial”, a clínica invade o campo do bem estar social. Passa a haver o entendimento
de que não se pode separar a “doença” como objeto fictício, da existência global do
paciente e sua dinâmica com o corpo social. Neste contexto, ajudar o usuário a ter uma vida
melhor auxiliando em problemas da vida cotidiana está previsto no paradigma da reforma,
fazendo parte do trabalho do profissional do Caps. Neste trabalho estão incluídos,
atendimentos individuais, realização de grupos terapêuticos, oficinas terapêuticas, oficinas
de geração de renda, atividades de lazer, visitas domiciliares e hospitalares e
acompanhamentos externos (ao banco, ao supermercado, etc.).
A partir destes novos pressupostos a hegemonia do saber médico foi colocada em
cheque abrindo o campo para profissionais de outras formações. Hoje o campo da saúde
mental no Brasil é constituído por uma pluralidade de saberes e práticas, principalmente
nos Caps. Nestes, as equipes são compostas, em geral, por psicólogo, psiquiatra, assistente
social, terapeuta ocupacional e enfermeiro, podendo ser incluídas outras áreas, como a
musicoterapia, por exemplo.
Em meio aos profissionais de várias formações também está o psicanalista9. Em São
Paulo, o Caps Prof. Luiz Cerqueira é uma experiência pioneira, funcionando desde 1987,
onde a psicanálise se incluiu em meio a outros referenciais teóricos para trabalhar e discutir
teoricamente a experiência clínica com psicóticos.
De um modo geral, na última década verificou-se um crescente interesse dos
psicanalistas, em especial os de orientação lacaniana, pelo campo da saúde mental. Estes
estão atuando em serviços públicos que se dedicam à saúde mental, publicando trabalhos e
desenvolvendo pesquisas sobre o tema.
No estado de Minas, por exemplo, é reconhecida a participação dos analistas
lacanianos no movimento da reforma, sendo muito forte a presença dos psicanalistas nos
serviços públicos da rede de saúde mental. No Rio de Janeiro também podemos verificar a
participação dos psicanalistas neste campo; um bom exemplo é o Capsi10 Pequeno Hans,
criado sob a égide da orientação psicanalítica. Além disso, há o importante trabalho de
supervisão realizado por psicanalistas em diversos Caps da rede.
9 Não existe concurso para a categoria profissional psicanalista, estes estão inseridos na rede pública fundamentalmente como psicólogos. 10 Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil.
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A presença da psicanálise neste novo campo, não se dá, no entanto, sem
dificuldades. A psicanálise tem sua história muito atrelada ao setting do consultório privado
onde o psicanalista desenvolve uma prática solitária, junto a um sujeito. Sustentar a prática
psicanalítica no espaço público, numa instituição com vários profissionais e vários
pacientes, como é o caso dos Caps, é um desafio. Como afirmou MIRA (2003) muitos
profissionais dizem que o que fazem na instituição não é a verdadeira psicanálise, mas
uma terapia de base analítica. Isto é, que nesta prática, pode-se ter efeitos psicanalíticos,
uma orientação psicanalítica, mas que não é a psicanálise propriamente dita.
Luciano Elia, explica que esta alegação baseia-se:
“na exigência de que psicanálise é o que se passa entre psicanalista e psicanalisante, a dois, e com independência quanto a critérios que lhe sejam exteriores, estranhos, tais como invariavelmente ocorre com as exigências institucional” (ELIA, 2004:3).
O que corre é que, para que haja análise, é necessário, sim, que existam duas
funções fazendo um laço, a função analista e a função analisante. Não é relevante, porém,
que estas funções estejam isoladas num setting terapêutico, mas que sejam verificáveis
através do laço analítico que se estabelece entre elas.
O que está em jogo na psicanálise possível na instituição é, portanto, a sustentação
do dispositivo analítico, que é um lugar estrutural, não coincidindo com o consultório
privado. ELIA (2000) refere-se à introdução feita por Jacques Lacan, a partir de sua
releitura dos textos freudianos, desse lugar estrutural. É deste lugar que o analista se
relaciona com o sujeito de uma forma peculiar, que é definida pelo que a psicanálise tem de
específico, o discurso do analista. Ele acrescenta:
“(...) Lacan (...) deu a esse lugar o nome de dispositivo analítico, que tem, sobre seu antecessor setting, a imensa vantagem de discernir o plano imaginário (...) da situação analítica do plano estrutural, que, como tal, não depende de uma configuração particular e circunstancial que se queira analítica: consultório, ambulatório, enfermaria ou qualquer outra configuração institucional.” (ELIA, 2000:29)
Assim, o analista relaciona-se com o analisante a partir desse lugar estrutural,
através do discurso analítico, comparecendo a partir de uma certa falta, sempre orientado
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pela ética da psicanálise e pelo desejo do analista. É este lugar que possibilita a entrada
efetiva da psicanálise na instituição, mas para isso o analista tem de se manter no lugar do
não-saber, não se portando como mestre. Ele tem que estar sempre aberto ao imprevisível e
não protegido pelo saber, para que se possa produzir o ato analítico.
Uma outra dificuldade encontrada pelos psicanalistas no trabalho nos dispositivos
da reforma diz respeito justamente à ética da psicanálise, que visa à clínica do sujeito e não
se coloca a serviço dos ideais sociais. A clínica na reforma muitas vezes é chamada de
clínica do sujeito, mas esta noção de sujeito costuma estar ligada a de cidadania, é o sujeito
de direitos e necessidades e não o sujeito do inconsciente, como é entendido pela
psicanálise. Como colocou Fernando Tenório:
“A psicanálise (...) não visa nem a cidadania nem o cidadão. Na verdade, pode estar em desacordo com essas duas referencias, quando assumem as seguintes acepções: a cidadania tomada como universal a ser atingido por todos os sujeitos e o cidadão resumido àquele dos “direitos”, que reivindica do Outro aquilo que lhe sonegado. Para a psicanálise, o “lugar social” do sujeito é um trabalho do sujeito, não um bem que ele reclama.” (TENÓRIO, 2001: 129)
Do ponto de vista da reforma, o social está ligado a noção de cidadania, sendo
referencia para esta. Para a psicanálise lacaniana, o Outro antecede o sujeito e lhe fornece
os significantes para sua constituição, assim, o “psico” é o “social”, pois é a posição que o
sujeito assume diante do Outro, o sujeito é necessariamente social, já que se inscreve no
campo do Outro. Desta forma, neurose e psicose são formas de resposta a esse Outro, uma
escolha sobre a qual o sujeito tem responsabilidade.
Assim, o sujeito é entendido sempre como social e sempre como singular; esta é a
grande diferenciação que a clínica psicanalítica traz. O sujeito surge na fala desde que haja
uma escuta. Ele advém nos fenômenos da linguagem, na descontinuidade do discurso e na
maneira como este se configura. Desta forma, o sujeito do inconsciente advém da fala, que
pode ser uma fala psicótica. É nos delírios e nas alucinações que está a verdade do sujeito e
que precisa ser escutada. Esta é uma escuta diferenciada, porque está voltada para a
articulação de significantes e não para a produção de sentido.
Desta forma, a escuta da fala do psicótico é a via da produção do sujeito. Esta
colocação se baseia na formulação freudiana de que o delírio é uma tentativa de cura, sendo
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a maneira como o sujeito se endereça ao Outro. Este sujeito é radicalmente responsável
pela sua condição e ao analista cabe acompanhá-lo em seu trabalho. As intervenções
podem amenizar a invasão alucinatória, mas ainda é o sujeito que buscará a sua maneira de
encontrar uma estabilização.
A reforma sustenta um discurso que visa encontrar o caminho de estabilização para
o sujeito, mas, do ponto de vista da psicanálise, este caminho só pode ser encontrado por
ele mesmo e é necessário que tenha espaço para isso. A psicanálise chama a atenção,
portanto, para o perigo de se lançar um olhar antecipatório, buscando os efeitos de
“estabilizadores”, pensando em “cura” e em “bem estar psicossocial”, o que leva a
imposição de uma lógica de saúde mental que é nossa e acabamos nos fechando para a
lógica da loucura.
O analista está menos interessado na terapêutica imediata, para qual existe o
suporte, tanto de fármacos, quanto do aparato sócio-insitucional e mais em ser testemunha
da produção psicótica. Desse lugar de testemunha o analista é também destinatário de uma
produção e não deve tentar enquadrá-la em esquemas de: “melhora”, “estabilização”, etc. O
psicótico encontra a possibilidade de sujeito na própria psicose e não na aproximação da
realidade.
Para a psicanálise o sujeito se produz cada vez que para a sua palavra há uma escuta
e uma intervenção que faça o sujeito advir em seu sintoma. Por isso a psicanálise sustenta
que o psicótico nem sempre pode responder como sujeito por características de sua
estrutura. Isto coloca a psicanálise em choque com alguns ideais da reforma. O trabalho
clínico psicanalítico consiste em criar a possibilidade de emergência do sujeito e não em
apelar para uma resposta que se apresenta como impossível para ele naquele momento.
Uma questão já levantada por ZENONI (2000), em conferencia no Brasil, é que no
centro da instituição está o que Lacan chamou de discurso do mestre, que é o avesso do
discurso do analista11. A instituição funciona a partir de um caráter normativo e o discurso
do analista questiona esta condição normativa e universalizante a partir da escuta do sujeito
em sua singularidade. O analista não parte de um saber prévio, está voltado para o que
emerge do inconsciente na fala de cada sujeito.
11 Podemos deduzir esta afirmação da leitura do Seminário 17, O Avesso da psicanálise, de Jacques Lacan, onde ele apresenta sua teoria dos quatro discursos: discurso do mestre, discurso da histérica, discurso do analista e discurso universitário.
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Zenoni nos chama a atenção, desta forma, para esta aparente
incompatibilidade entre o discurso do analista e os objetivos no campo da saúde mental.
“A instituição visa reduzir a pregnância do sintoma, enquanto o analista tenta fazer emergir o significante inconsciente. A instituição quer o bem e a saúde do individuo, enquanto o analista não visa nenhum bem mas somente a emergência do desejo, que pode comportar o mal-estar e a angústia. A instituição responde a demanda, enquanto o analista, por sua escuta radical, visa a raiz mesma da demanda. A instituição tenta construir a unidade do sujeito, enquanto o analista visa a divisão do sujeito.” (ZENONI, 2000:13)
Estas posições poderiam nos levar a pensar que o psicanalista só poderia ter críticas
a instituição e que, se estivesse inserido nela, só seria na condição de agir contra esta
prática institucional. Mas é o próprio Zenoni que nos coloca esta questão de uma outra
forma, quando nos diz que são duas práticas simplesmente diferentes.
Para alguns sujeitos pode ser que a resposta seja de fato a institucional, voltada para
o âmbito social. A instituição acolhe casos clínicos graves, que exigem uma resposta social
inviável para o psicanalista em seu consultório. Esta oferece respostas, portanto, que não se
restringem a uma prática clínica como entendida pela psicanálise. Como ressaltou Zenoni:
“Mais ainda que fenômenos de linguagem ou delírio, trata-se, nessa clínica, daquilo que do gozo, como diz Lacan, faz retorno no corpo e no agir: passagem ao ato suicida ou perigosa, auto-mutilação, errância, imobilidade catatônica, perda de qualquer interesse, uso exclusivo de drogas.” (ZENONI, 2000:15)
Estas são situações extremas que necessitam muitas vezes de uma resposta
institucional, pautada no discurso do mestre. Diante desta necessidade, o analista não pode
recuar reclamando uma outra prática. O que quero, com Zenoni, ressaltar, é que o trabalho
institucional tem seu papel no tratamento da psicose e, algumas vezes, o psicanalista terá
que agir no sentido deste trabalho, mesmo que se paute no discurso do mestre para isso.
Quando a clínica permitir a entrada da experiência analítica ele agirá nesta prática, que é
extremamente relevante e, aí sim, estará pautado pelo discurso do analista.
Neste sentido, como Freud enfatizou em “Linhas de progresso na terapia
psicanalítica” (1919 [1918]), a psicanálise tem que sofrer algumas adaptações para o trabalho
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na instituição, mas o psicanalista não deixará de estar tomado pelos princípios indicativos
presentes na psicanálise estrita. Cabe destacar, portanto, que na instituição haverá uma
prática analítica diferenciada, pois esta não pode ser tomada como mera “sala de espera”
para uma análise de consultório, pois não é disso que se trata. O trabalho não se dará
apenas dentro de uma instituição, mas sim em instituição, juntamente com vários
profissionais e vários pacientes, não se restringindo a uma prática a dois no consultório.
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→ 2. Que cronificação é essa?
Uma das grandes críticas ao modelo manicomial feitas pela Reforma Psiquiátrica
centrou-se nas suas características iatrogênicas. O hospital psiquiátrico caracterizou-se por
não ser um lugar de tratamento, mas um produtor de cronificação, principalmente através
do paradigma da exclusão social do louco. Tivemos, assim, uma grande quantidade de
pacientes crônicos produzidos pela própria situação de internamento nos asilos
psiquiátricos. Estes apresentam características que não se encaixam necessariamente na sua
evolução clínica, podendo ser pensadas como efeitos da iatrogenia institucional.
Na concepção dos movimentos reformistas a existência de pacientes crônicos estava
ligada exclusivamente as condições institucionais. Isto criou uma ilusão de que, com o fim
da exclusão proporcionada pelo asilo, teriam fim os pacientes crônicos. Como pontuou
BEZERRA (1994), a figura do crônico advém de um “otimismo terapêutico” da psiquiatria.
Quando o sofrimento psíquico passa a ser entendido como uma doença ele está
imediatamente anexado a um ideal normativo de cura, de retorno a normalidade. Nas
palavras do autor, o crônico é:
“(...) testemunha da limitação e inadequação de qualquer vocabulário, de qualquer rede conceitual que pretenda reduzir o poliformismo da experiência subjetiva a um modelo normativo absoluto”. (BEZERRA, 1994: 187)
Não podemos incluir o psicótico no modo de funcionamento que julgamos
“normal”, acreditando que assim estariam curados. Sempre haverá os que não se encaixam
nesta estrutura social, que possui mecanismos de exclusão que são muito mais complexos
do que os muros dos manicômios.
Entende-se aqui, no entanto, que a cronicidade não é o mesmo que incurabilidade,
assim como pontuou VIGANÓ (1999). O autor diz que “a cronicidade é uma adesão a um
programa de vida imposto, decidido fora de qualquer expressão subjetiva.”(VIAGNÓ,
1999: 50) Sendo assim, podemos excluir e cronificar um sujeito quando impomos a ele um
“tratamento” que não inclui um trabalho subjetivo de construção.
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A reforma psiquiátrica propôs a criação de serviços substitutivos ao manicômio. O
primeiro passo foi fazer com que a demanda de atendimento chegasse ao Caps. A aceitação
deste dispositivo pela clientela que visa atender tem sido muito boa e tem tido sucesso no
sentido da diminuição das internações psiquiátricas. Podemos dizer, portanto, que o Caps
tem conseguido atender ao que seria o seu principal objetivo, ser um serviço substitutivo ao
circuito internação-ambulatório-internação.
Já existe, no entanto, como levantou Viganó, a preocupação que tenhamos aqui o
que na Itália chamamos de nova cronicidade. Na tentativa da eliminação do significante
doença propõe-se um tratamento para o usuário por toda a vida, num modelo de assistência
social. O autor supõe uma condição para que isso não ocorra, a saber: o reencontro com a
clínica.
Estes questionamentos nos fazem lembrar que a reforma psiquiátrica não é algo
acabado, um modelo pronto a ser reproduzido simplesmente; a reforma e seus dispositivos
devem ser repensados sempre. Já existe, de fato, entre os profissionais inseridos no campo
da saúde mental no Brasil, uma preocupação com o modo como os Caps funcionam; de que
forma estes serviços vem substituindo o circuito de internações, qual é o diferencial da
clínica do Caps e de que forma este trabalho vem sendo feito.
Aparece, a partir daí também a preocupação de que este novo dispositivo, apesar de
ter as portas abertas, poderia criar, de outra forma, o mesmo efeito verificado e criticado no
hospital psiquiátrico, a cronificação. Esta preocupação aparece na fala desta profissional:
“(...) eu acho que a cronificação, ela pode se dar também num
Caps,... Ela não se dá só num asilo, num hospital, eu acho que dependendo da maneira como a gente trabalha, a gente pode cronificar uma pessoa aqui, se a gente acha que aquela pessoa tem que vir aqui, necessariamente, sem pensar muito, todo dia da semana, participar de todas as oficinas, a gente está cronificando uma pessoa (...)” (psicóloga)
Foi não só na fala dos profissionais, mas também através da minha observação do
cotidiano de um Caps, que pude perceber que muitos pacientes passam a freqüentar
indefinidamente o serviço, sem que isso implique num tratamento que resulte em alguma
modificação para ele. Como disse a psicóloga no trecho acima, o paciente pode passar a
19
freqüentar o Caps constantemente, sem que os profissionais pensem no sentido disso no
tratamento e sem que o próprio sujeito pense sobre o seu tratamento. É a partir daí que
podemos levantar a possibilidade de cronificação nesses novos serviços, como podemos ver
apontado na fala dessa psicóloga de outro Caps:
“(...) eu acho que muitas vezes, mais do que deveria, ficam aqueles pacientes que vão ficando no Caps e que não precisam mais do Caps. Eu acho que isso o Caps faz muito mal, entendeu... não é de pessoas que ficam como referência [isto é, que ficam com o Caps como referência] e aparecem de quinze em quinze dias e você sabe da vida do seu paciente, seu paciente recorre ao Caps quando precisa. Não. É paciente que está em atividade diária, entendeu, que está lá...” (psicóloga)
Esta fala nos remete também ao ideal do Caps como referência, uma proposta
pautada na lógica da reforma. O Caps deveria ficar como um lugar de referência, mesmo
que o paciente não estivesse mais freqüentando efetivamente o serviço.
Essa lógica assistencial é possibilitada também pela noção de tomada de
responsabilidade, segundo a qual o serviço não é responsável apenas pelo momento de
crise, mas por todas as questões que envolvem a vida cotidiana dos usuários, no sentido de
uma sustentação do laço social. Desta forma, o Caps apresenta-se como um local que está
sempre aberto para que o sujeito recorra quando estiver com qualquer problema, já que o
serviço assume um lugar de responsabilidade em relação a vida destes sujeitos.
Contudo, para que o sujeito possa construir um lugar social independente da
instituição, tendo-a apenas como referência, há a necessidade de um trabalho clínico efetivo
e não apenas de uma acolhida assistencial ou de um trabalho de reabilitação social. É
preciso que se leve em consideração as especificidades daquele sujeito através de uma
escuta, até para que se perceba se pode haver, ou não, possibilidade de inclusão social para
aquele sujeito naquele momento.
O problema da cronificação não é simples de ser avaliado, pois envolve a dimensão
clínico-institucional. Não se trata apenas da condução do tratamento destes sujeitos do
ponto de vista clínico, mas também de problemas institucionais, como a demanda
20
excessiva, dificuldades no trabalho em equipe e na relação com a rede de saúde do
território. Devemos considerar, entretanto, que estas não são questões separadas, mas
profundamente entrelaçadas.
O que se vê no Caps atualmente são serviços superlotados, sem capacidade para
acolher mais pacientes. Existe um problema institucional a ser destacado nesse ponto que é
a dificuldade de se fazer parcerias com a rede de saúde do território ou a própria
precariedade desta rede12. Inclui-se aí a existência e articulação com a unidade psiquiátrica
em hospital geral, serviço ambulatorial especializado, os serviços residenciais terapêuticos,
o PSF (Programa de Saúde da Família) e Pac (Programa de agentes comunitários).
Muitas vezes o técnico tem a intenção de encaminhar o paciente para um outro
serviço, mas não consegue, por problemas que não dizem respeito a clínica propriamente,
mas a falta de vagas ou a dificuldade de se fazer uma boa parceira, com o ambulatório, por
exemplo.
Por outro lado, o problema dos encaminhamentos também está longe de ser uma
questão apenas institucional. Muitas vezes é o paciente que não aceita se tratar em outro
espaço. Entende-se a partir do discurso da reforma psiquiátrica brasileira que o Caps
deveria ser um ponto de ligação entre o sujeito psicótico e a sociedade. Entretanto, acaba se
desenvolvendo uma vida comunitária tão estruturada dentro dele, que este se torna uma
parte do resto da sociedade e uma parte na qual o psicótico consegue se inserir e se sente
seguro. Quando pergunto sobre o tratamento no Caps, uma usuária me diz:
“É maravilhoso. Aqui eu tenho meus amigos. Aqui me ouvem, mesmo que seja loucura. Não é como no Belizário Pena (um ambulatório), lá não é tratamento, é só remédio!” (usuária)
Dentro dos Caps os sujeitos são bem tratados, são ouvidos em seus delírios, em suas
angústias, lá tem amigos, trocam cigarros, afagos e também alguns tapas, lá não são tão
diferentes, lá são “cuidados” pelos técnicos. Quando pergunto para uma psicóloga porque
ela acha que alguns pacientes insistem em freqüentar o Caps diariamente, mesmo não
precisando, ela diz:
12 Quantidade insuficiente de profissionais, como psicólogos e psiquiatras nos ambulatórios, o que leva o paciente a ficar meses numa fila de espera; Programas como o se Saúde da Família e o de agentes comunitários, muitas vezes não existem no território ou não conseguem atender a demanda; etc.
21
“(...) o Caps é um lugar protegido onde o cara faz horta [se referindo a uma oficina]... é um lugar protegido, é lazer protegido é trabalho protegido, é protegido mesmo...a gente num deixa ninguém bater em ninguém...(...) a gente não deixa eles brigarem, por exemplo (...) Quer dizer, é um espaço de uma qualidade de relação muito maior do que na praça, do que na vizinhança, do que no supermercado.” (psicóloga)
Assim, o Caps oferece um ambiente protetor. Este lugar onde o psicótico é ouvido e
aceito se torna muito diferente da realidade de uma sociedade que o segrega historicamente.
Existe também um outro fator que pode levar o próprio paciente a não aceitar o tratamento
em outro serviço, o vínculo transferencial que fez com determinado profissional, ou com a
própria instituição.
A transferência é um fenômeno universal da vida humana, mas este dispositivo pode
ser levado em conta na clínica quando está operando o dispositivo analítico, a partir do
saber da psicanálise.
Sobre a transferência, em “Recordar, Repetir e Elaborar”, Freud diz que “antes de
tudo o paciente começará o tratamento com uma repetição”. (FREUD, 1914: 150) Esta
compulsão em repetir está diretamente relacionada com a transferência, pois esta é um
clichê que se repete. Na transferência há uma repetição de protótipos infantis que são
vividos de maneira atual e que conduzem o modo daquele sujeito lidar com a vida.
Em outro texto sobre a técnica da psicanálise, “Observações Sobre o Amor
Transferencial”, Freud comenta o fato dos principiantes em psicanálise ficarem temerosos
com as dificuldades que encontrarão para interpretar as associações do analisando, mas que
logo percebem que “as únicas dificuldades realmente sérias que tem de enfrentar residem
no manejo da transferência”. ( FREUD, 1915: 208)
Antes disso, em 1912, ele já havia abordado o assunto em “A Dinâmica da
Transferência”, quando disse que o manejo da transferência é sim uma grande dificuldade
encontrada pelos psicanalistas, ela está a serviço da resistência, mas são também os
fenômenos transferenciais “que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e
manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente.” (FREUD, 1912: 143)
22
No campo da saúde mental, verificamos o uso da palavra vínculo, que pode ou não
ser utilizada com um significado próximo ao de transferência, como é entendida pela
psicanálise. O que está em jogo na utilização deste termo é a manutenção da relação
terapêutica. No caso dos Caps, pudemos perceber através das falas dos profissionais
entrevistados por nós, que o vínculo, de um modo geral, diz respeito ao que mantém a
relação do paciente com os técnicos e com a própria instituição.
Este vínculo pode se tornar muito significativo e é colocado como de grande
importância pelos profissionais. Em algumas entrevistas pudemos perceber, inclusive, que
o vínculo dos profissionais com o paciente e com a família, aparece como sendo importante
para evitar a internação. A questão que surge é como trabalhar este vínculo para que seja
um caminho de tratamento e não se torne um elemento para manter o sujeito na instituição
indefinidamente.
No texto já citado, “A Dinâmica da Transferência”, Freud afirma que, sendo um
fenômeno espontâneo na relação do sujeito ao outro, a transferência aparece em qualquer
forma de tratamento, inclusive nas instituições, mas nestas precisa ser identificada. Nas
instituições de saúde ela pode, inclusive, se apresentar nas formas mais indignas, como
servidão mental. Tanto a transferência negativa como a de fontes eróticas estão presentes; a
transferência negativa pode levar o paciente a abandonar a instituição, já a erótica produz
outro tipo de efeito. Este tipo de transferência, assim como na vida real, não aparece de
maneira revelada e sim sob a forma de sentimentos amistosos e, nas palavras de Freud:
“(...) se manifesta muito claramente como resistência ao restabelecimento, não, é verdade, por levar o paciente a sair da instituição – pelo contrário – retêm-no aí – mas por mantê-lo a certa distância da vida. Pois, do ponto de vista do restabelecimento, é completamente indiferente que o paciente supere essa ou aquela ansiedade ou inibição na instituição; o que importa é que ele fique livre dela também na vida real.” (FREUD, 1912a: 141)
A colocação de Freud pode nos remeter a situação que vivenciamos hoje no campo
da saúde mental. O vínculo é muito importante para que o sujeito se mantenha em
tratamento e para que o profissional possa se autorizar a fazer intervenções. Ele é, portanto,
indispensável para que haja tratamento. Por outro lado, pode se tornar um elemento de
manutenção do paciente no Caps indefinidamente.
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Até este momento ainda estamos partindo de casos que, de alguma forma, estão
sendo acompanhados no Caps. São pacientes que estão sendo acompanhados e escutados
por técnicos que tem clareza de que o momento de estarem se tratando no Caps já passou,
mesmo que encontrem dificuldades em fazer os encaminhamentos.
Entretanto, existem também os pacientes que não estão recebendo este olhar no
serviço, que não estão sendo efetivamente acompanhados, estão apenas freqüentando o
Caps. Estes não são os pacientes que só vão ao Caps uma vez por mês para pegar a
medicação, mesmo tendo indicação para participar das atividades desenvolvidas no serviço.
Também não se trata daqueles que desapareceram do serviço por meses e ninguém sabe
como estão. Estes pacientes também existem nos Caps e isso é visto como um problema
para os profissionais. Sem dúvida é um problema, mas um problema facilmente observável,
mesmo que de difícil resolução.
O problema da cronificação é algo muito mais difícil de se observar, porque
estamos falando do paciente que vai ao Caps, que participa das atividades, mas não há uma
motivação clínica para isso. É o que observa esta psicóloga:
“Tem psicóticos que tem completa condição, tem uma rede familiar, tem uma rede social e que podem ter uma consulta pontual em um ambulatório, não precisam necessariamente estar aqui. Então a gente está tendo muito esse cuidado, pra não cronificar... Porque eu acho que a cronificação é uma coisa que se dá sem a gente perceber...” (psicóloga)
A profissional no trecho acima levanta que a cronificação se dá sem que os técnicos
percebam. De fato isso pode ocorrer nos Caps, porque a cronificação só pode ser percebida
e talvez evitada, se houver um acompanhamento desses pacientes em seu percurso pelo
serviço, o que nem sempre ocorre. Existem dois dispositivos, criados dentro da lógica da
reforma, que visam garantir o tratamento dos pacientes nos Caps. São eles o técnico de
referência e o projeto terapêutico. O que pudemos verificar em nossa pesquisa, é que não
existe muita clareza entre os profissionais sobre o que são e como operam estes
dispositivos.
O técnico de referência seria o profissional que acompanha o paciente ao longo do
seu tratamento, como nos disse uma auxiliar de enfermagem:
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“(...) eu acredito que ele seja o técnico que está mais presente no caso, acompanhando, acho que lhe cabe esta regularidade de atenção, de saber que atividade o usuário está freqüentando...como anda a participação, acho que acompanhar o tratamento dele em si, né....” (auxiliar de enfermagem)
Na prática, muitas vezes este técnico existe de maneira apenas burocrática, ou seja,
consta apenas o seu nome como técnico de referência no prontuário do paciente, mas este
não opera como tal. Um fato que pode contribuir pra isso é que, muitas vezes, o técnico de
referência passa, automaticamente, a ser o profissional que faz o primeiro atendimento do
sujeito que procura o serviço.
“Eu entendo técnico de referência, inicialmente como um elemento importante no acolhimento daquele que chega... É essa pessoa, que vai estar próxima em primeiro lugar dessa história. Vai ter mais elementos para construir os primeiros contratos, né... e vai se ocupar também de começar ou de dar início a uma certa trajetória no tratamento..” (terapeuta ocupacional)
Quando o técnico é definido dessa forma burocrática, simplesmente por ser o
profissional que acolhe, pode acontecer dele mesmo não exercer esta função. A função de
referência acaba ficando a cargo de outro profissional, com quem o paciente estabeleceu
uma transferência. De fato, para que o técnico de referência possa acompanhar o caso de
forma efetiva, é preciso que haja uma transferência em relação a este, caso contrário este
trabalho pode se tornar burocrático e ineficaz. A mesma profissional admite a possibilidade
de troca de técnico de referência:
“Essa forma de organizar ela não é imutável... acontece de o usuário de repente, pela proximidade, eleger uma outra referência (...). Um outro técnico que não aquele que fez a recepção, começa a se aproximar do caso e de repente essa referência se dá espontaneamente, por parte do paciente que passa a remeter ao técnico as suas questões, que passa a buscar o técnico, entendeu?” (terapeuta ocupacional)
Verificamos em nossa observação participante nos Caps, entretanto, que esta
mudança nem sempre é identificada. Muitas vezes, outro técnico passa a atuar como
técnico de referencia sem que isso seja discutido em equipe e sem que haja uma mudança
25
oficial. Isto leva a alguns problemas na equipe, como sobrecarga de alguns profissionais e
desentendimentos por não se saber quem é o técnico responsável pelo caso.
O técnico de referência precisa ter clareza do caso, para avaliar o que fazer quando o
paciente tiver deixado de ir ao serviço, conversar com a família se julgar necessário, saber
quais atividades ele vem freqüentando e por que estas são atividades interessantes para o
seu tratamento, entre outras coisas. Ele está, portanto, a frente do tratamento e é preciso que
haja uma transferência para que ele possa se autorizar a fazer estas intervenções. Isto não
significa, no entanto, que este seja o único técnico a lidar com o paciente, pois ele é o
responsável mais direto pelo caso, mas todos da equipe devem estar envolvidos.
Um momento importante para que haja esta circulação do caso no serviço é a
reunião de equipe. O técnico de referência leva as questões do paciente para a reunião de
equipe, que seria o local privilegiado para a construção do caso clínico. A construção do
caso clínico é de extrema importância, porque somente quando há esta construção,
atravessada pelos diversos profissionais, pode-se ter clareza do direcionamento do
tratamento do paciente no Caps. Viganó faz uma distinção entre o que chama de caso
clínico e caso social, ele diz:
“Enquanto o caso social é conduzido pelos operadores, o caso clínico é resolvido pelo sujeito, que é o verdadeiro operador, desde que nós o coloquemos em condição de sê-lo.” (VIGANÓ, 1999: 53)
Para o autor o caso social diz respeito aos encaminhamentos de ordem jurídica e
assistencial. Ele não tira a importância desta instância, mas afirma que o caso clínico é,
justamente, a condição para que haja o caso social, um não faz sentido sem o outro. Nos
Caps estas duas instâncias aparecem misturadas, caso clínico e caso social aparecem como
uma coisa só, nas reuniões costumam ser levantados “os casos”. Muitas vezes, ainda, o caso
social é o único que aparece, sendo discutidas questões muito mais assistenciais do que
clínicas durante as reuniões.
Voltando a questão do técnico de referencia, em alguns casos, pode haver mais de
um técnico envolvido diretamente com o paciente. É o caso de pacientes que têm mais de
uma referência no serviço, em geral uma dupla de profissionais. Pode ocorrer também, de
o paciente ter uma referência oficial, mas estar muito ligado a uma oficina e ao técnico que
a coordena, assim, acaba por ter dois técnicos como referência. Existem também os casos
26
de pacientes que fazem atendimentos individuais com um profissional, mas este não exerce
o papel oficial de técnico de referência, apesar de haver uma transferência em relação a ele.
Com relação a isto, é importante notar que, em uma instituição com vários técnicos
e vários pacientes, as transferências são cruzadas. O paciente não fará transferência só com
um técnico, ele pode fazer transferências múltiplas, podendo existir, inclusive, o caso do
técnico de referência não ser o mesmo que faz a escuta. Um profissional pontuou este caso
na seguinte fala:
“(...) na minha maneira de pensar esta questão do técnico de referência, eu acho que é o técnico da transferência. Mas talvez não seja o técnico que faz o atendimento individual, por exemplo, a escuta.” (psicólogo)
Em um dos Caps em que fizemos a pesquisa esta é uma alternativa utilizada em
alguns casos. O técnico que faz o atendimento individual não é necessariamente o que
assume o papel de técnico de referência. Isto permite que o técnico que faz o atendimento
individual se mantenha em um outro lugar, preservando-se de um maior contato com a
família, de estar presente em questões da vida prática como passe-livre, ou
encaminhamento para um médico clínico.
Como pudemos perceber, a maneira como o técnico de referência é definido não
fica muito clara entre os profissionais, mas a maioria dos técnicos dos Caps em que fizemos
a pesquisa acreditam que a figura do técnico de referência seria apontada pelo paciente,
estando ligado a idéia de vínculo. No entanto, no cotidiano da instituição isso parece não se
tornar possível e, em muitos casos, o técnico de referência acaba sendo definido de forma
burocrática. Sobre o que é o técnico de referência, um profissional tenta esclarecer:
“Eu acho que é aquele técnico que vai acompanhar o movimento do paciente na instituição, o tal projeto terapêutico, ele vai se responsabilizar por aquele paciente. Na prática tudo é muito confuso, as coisas se misturam na prática. Mas...não só neste Caps mas em outros Caps, o técnico de referência teria esta função de se responsabilizar pelo caso (...)” (psicólogo)
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De fato, apesar da forma como o técnico de referencia é definido e a maneira como
opera na clínica ainda não estarem muito claras entre os profissionais, em seus traços mais
gerais sua principal função parece estar bem clara. Este técnico é o responsável pelo
acompanhamento do tratamento do paciente, do seu percurso na instituição, ou seja, pelo
acompanhamento do que é conhecido na reforma como projeto terapêutico.
O projeto terapêutico seria uma espécie de indicação do tratamento que o sujeito
está tendo no Caps. Encontramos em nossa pesquisa uma diferenciação entre projeto
terapêutico e contrato terapêutico.
“No projeto terapêutico você vai traçar as atividades que ele participa, quais são as referências...o contrato seria os dias em que estas atividades estão inseridas no projeto dele. (...) Ele tem o contrato terapêutico de vir três vezes na semana em tais oficinas, isso está dentro do projeto terapêutico (...)” (auxiliar de enfermagem)
O contrato terapêutico está, portanto, relacionado a freqüência do paciente no Caps,
em que dias e em que horários ele está no serviço. O projeto terapêutico trata de algo mais
amplo, o que ele fará no Caps nesses dias, que oficinas freqüenta, quem é seu técnico de
referência, faz ou não atendimento individual, etc. Este projeto não pode, no entanto, se
tornar uma mera descrição de atividades.
O próprio termo, projeto terapêutico já traz algumas questões, pois nos passa a idéia
de algo planejado a priori e que deve ser cumprido para que haja uma “terapêutica”. Isto
contradiz a perspectiva psicanalítica de que o tratamento precisa se dar numa construção
diária e a partir do próprio sujeito. Entretanto, do ponto de vista da organização
institucional, a formulação de um projeto para cada paciente aparece como necessária para
a própria organização do serviço.
O que verificamos ocorrer muitas vezes é que o profissional que recebe o paciente
no Caps, que faz o primeiro atendimento, faz um esboço de projeto terapêutico, mas não dá
continuidade ao acompanhamento. Pode até ser que o paciente venha a cumprir este
projeto, mas não é isso que dirá se está havendo um tratamento. Isto só pode ser
reconhecido a partir do momento que opera uma clínica. E para isso não há projeto, há
acompanhamento, escuta e construção.
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Nesta direção, o projeto terapêutico deve estar ligado ao técnico de referência e
também a construção do caso clínico, não se reduzindo a um projeto burocrático. Não há
como se pensar em um projeto terapêutico se não houver um técnico acompanhando, mais
próximo, que levante o caso para ser construído em equipe. Para isso é necessário que o
técnico de referência esteja de fato na clínica e não somente no papel (com seu nome no
prontuário do paciente), é preciso que haja uma relação transferencial. A clínica não se dá a
partir do universal do saber, mas do particular do sujeito. O momento clínico não pode ser
comprimido pelo projeto terapêutico da equipe.
O projeto terapêutico envolve um processo de criação conjunta entre paciente,
técnico de referência e equipe. Não é algo estático, ao contrário, tende a se modificar ao
longo do tratamento. Se o paciente apenas repete o projeto, no sentido de ir às oficinas e
grupos, este projeto pode deixar de ser terapêutico. O paciente acaba indo a estas atividades
sem que isso faça mais sentido pra ele e para o tratamento.
Este é o paciente que pode acabar cronificado no Caps. Não está cronificado
necessariamente aquele que vai ao Caps e fica dormindo nos sofás, não participa das
atividades, não fala com ninguém. Pode ser que ir ao Caps, nem que seja só para dormir,
faça sentido dentro do seu tratamento, pode ser que isso seja tudo o que é possível para ele
naquele momento. Só se pode ter clareza disso no caso a caso e a partir da existência de
uma clínica operando ali.
O projeto terapêutico, muitas vezes, aparece marcado pela questão da reabilitação
psicossocial, da conquista da cidadania. A partir dessa proposta de reabilitação psicossocial
os Caps tem a máxima de “levar para fora”, mas é preciso que se veja cada sujeito, isso não
é obrigação para todos. Procuro enfatizar, portanto, que a questão da cronificação que
levanto neste trabalho não está ligada a uma obrigação de pacientes ficarem “curados”,
“reabilitados” e ganharem alta do serviço.
A questão levantada é que as idas diárias ao Caps não asseguram um tratamento
para esses sujeitos. Não é porque o sujeito vai ao Caps e faz várias oficinas que ele está em
tratamento. Que função tem estas oficinas? Qual a necessidade de continuar freqüentando
estas oficinas, de estar indo ao Caps com tanta freqüência? A oficina acaba sendo vista
como uma distração, um passa-tempo, entretenimento. Existe um momento em que a
oficina deve perder o sentido para o paciente. Como afirmou Eduardo Vasconcelos:
29
“(...) é necessário fazer alguns reparos críticos a uma relativa supervalorização de dispositivos ‘prontos’, cuja escolha é negociada com os clientes em seu projeto terapêutico, mas que no dia a dia constituem um cronograma ‘cheio’ no qual os clientes se enquadram ocupando todo o seu tempo. Apesar disso funcionar como forma de contenção para usuários mais ‘desorganizados’, acaba gerando dependência em relação ao serviço dificultando o cliente buscar atividades, vínculos, e trocas sociais no ambiente externo ao serviço”. (VASCONCELOS, 1997: 33)
O esvaziamento de uma oficina pode ser sinal de um fracasso ou sucesso do
trabalho. Normalmente o fim da oficina é visto pelos técnicos como uma coisa ruim, se os
pacientes começam a não ir mais na oficina, é como se estivesse dando errado, mas pode
ser justamente o contrário. Se o paciente foi para um outro local, fez outros laços, isso é
positivo. Entretanto, em alguns casos, os profissionais tendem a querer resgatar os
pacientes para a oficina, porque isso seria “bom” pra ele, sem se ter clareza do que se passa
com aquele sujeito naquele momento. É o que podemos perceber através da fala desta
profissional:
“Eu acho que tem situações em que a instituição tem que dar o
corte e acho que isso é uma das coisas difíceis, acho que a instituição raramente consegue. Às vezes o que eu vejo acontecer é o próprio paciente começar a sair, entendeu, apesar da instituição. Porque o paciente chega na instituição o profissional diz assim: ‘ah, você não veio na oficina tal dia.’ Cobrando do paciente como de fosse uma escola, que o paciente tivesse que ter aula todo dia.” (psicóloga)
As demandas dos técnicos podem acabar conduzindo as ações, sendo deixadas de
lado as demandas dos pacientes. Se a oficina não faz mais sentido para eles, isto pode
indicar que o trabalho está sendo eficiente, que aqueles sujeitos fizeram outros laços, por
exemplo. Entretanto, para se ter essa clareza, é preciso que haja um acompanhamento
efetivo de cada caso.
Isto ocorre também com relação a criação de oficinas, que, às vezes são criadas em
função de um modelo a seguir. Estas acabam acontecendo sem que se saiba qual sua função
clínica, qual o seu sentido. Acabam se tornando meros entretenimentos ou espaços de
convivência. A função da oficina está ligada ao projeto terapêutico dos pacientes que a
freqüentam.
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Se existe um projeto que não se restringe a dizer que aquele determinado paciente
deve ir a oficina, mas que se baseia numa clínica e num acompanhamento efetivo, estará
mais clara a função que a oficina tem em seu tratamento. Caso contrário, o paciente
freqüenta a oficina simplesmente porque está em seu projeto e este se extingue em si
mesmo.
Durante a pesquisa, observamos a existência de oficinas que se remetem tão
somente à reabilitação psicossocial, mas as oficinas não precisam funcionar,
necessariamente, sob este viés. Para uma oficina ser terapêutica, é importante que não
esteja voltada para uma atividade em si, mas para aquela produção coletiva que envolve
outras coisas, como relações transferenciais, falas e trocas.
Caso contrário torna-se uma laborterapia, a prática antiga de organização pelo
trabalho, ou estratégias baseadas na pedagogia e na ocupação, como na terapêutica
ocupacional e no tratamento moral que vemos em Pinel e Esquirol. Quando se estabelece
um vínculo na oficina, o encontro é mais importante que o material desenvolvido lá.
Podemos dizer o mesmo dos espaços de convivência no Caps. Um dos Caps onde
estivemos fazendo a pesquisa considerou que tinham um problema no espaço de convívio,
este não estaria recebendo a devida atenção dos técnicos. Na tentativa de resolver este
problema a equipe criou uma escala para os técnicos poderem dar conta dos usuários que
não participam das oficinas, ficam dispersos e não recebem cuidados nos dois turnos.
O técnico escalado teria que providenciar uma espécie de atividade ou
entretenimento para esses usuários. É importante pensar o sentido das oficinas e desses
dispositivos que seriam criados para ocupar os usuários que não aderem as oficinas.
A oficina deve visar os interesses dos pacientes em primeiro lugar e não a
manutenção e o bom funcionamento da instituição, assim a oficina acaba sendo “inventada”
de forma diretiva, apenas para ocupar os que não estão “fazendo nada”, perdendo o
propósito da clínica e do projeto terapêutico.
Com relação aos pacientes que não aderem as oficinas e grupos, o caminho não
pode ser ocupá-los e sim acompanhá-los e escutá-los, com atenção para as singularidades
de cada um desses sujeitos. Algo terapêutico para ele pode não ser freqüentar a oficina, mas
uma outra coisa.
31
→ 3. A clínica nos Caps - contribuições da psicanálise
As questões teórico-clínicas nunca tiveram a mesma importância para todos
os profissionais engajados na reforma psiquiátrica brasileira. Pode-se perceber ao longo do
processo de implementação da reforma uma separação entre os profissionais mais
engajados numa dimensão política e outros numa dimensão mais clínica. A dimensão
política aparece como herança da Psiquiatria Democrática Italiana, compreendendo que a
luta pela reforma precisava ser travada através da intervenção social, visando “rediscutir e
redefinir as relações sociais e civis em termos de cidadania, direitos humanos e sociais”.
(AMARANTE, 2001:105). Desta forma, a dimensão política tem uma importância histórica
a partir da luta pela cidadania do louco, que havia sido segregado e tido seus direitos
abolidos, sendo condenado a verdadeira morte civil.
A partir daí as questões clínicas caíram para segundo plano, chegando a ser proposta
a superação do paradigma clínico que, por si só, colocaria a loucura num lugar de
negatividade, como algo patológico, frente a uma suposta normalidade. Esta colocação
parte do próprio paradigma da desinstitucionalização, que critica não só a cultura
manicomial, mas também a clínica psiquiátrica que fundamentou cientificamente a
instituição asilar. Esta crítica, que se voltava originalmente para a clínica psiquiátrica
tradicional, recaiu também sobre a clínica psicanalítica.
Ao longo da implantação da reforma esta tensão tendeu para uma
complementariedade de iniciativas, mas ainda hoje, pode-se perceber uma tensão entre
clínica e política no trabalho no Caps. Como pontuou RINALDI (2003), esta é uma
oposição que faz referência à oposição clássica entre o privado, individual, singular e o
público, coletivo, universal. A clínica, a princípio diz respeito ao privado, a um tratamento
oferecido a cada sujeito de forma singular, enquanto a política trata do público, do que diz
respeito à transformação institucional e da inclusão do psicótico nos padrões sociais.
As duas dimensões, clínica e política foram fundamentais na constituição do campo
da saúde mental, mas acabaram sendo tomadas como opostas, o que leva ao privilégio de
uma em detrimento da outra. Existem diversas tentativas de articular estas duas dimensões,
32
como é o caso da ressignificação da clínica, que ganha uma adjetivação, se tornando a
clínica ampliada. É desta clínica que fala Paulo Amarante:
“(...) é preciso reinventar a clínica como construção de subjetividades, como possibilidade de ocupar-se de sujeitos com sofrimentos e de efetivamente responsabilizar-se com esse sofrimento, através de paradigmas centrados no cuidado, na tomada de responsabilidade e na cidadania(...)”. (AMARANTE, 2001: 109)
A clínica ampliada não se confunde, portanto, com a clínica psiquiátrica tradicional
e incorpora a dimensão do sujeito. Mas esta não se confunde também com a clínica do
sujeito, pois o sujeito trazido na clínica ampliada está articulado com o cidadão. Este é o
sujeito, portanto que precisa ser reconhecido na sociedade, tornar-se membro efetivo da
comunidade, tendo autonomia e poder de contratualidade, mas também é aquele que
necessita do cuidado.
É ao redor do cuidado que se configura esta clínica, sempre sob o paradigma da
tomada de responsabilidade. Este paradigma, que surge na reforma psiquiátrica italiana, diz
respeito, por um lado, ao acolhimento das demandas que aparecem em determinado
território, absorvendo-as ou fazendo o encaminhamento. Por outro lado, esta noção se
expande para a própria atuação do profissional no seu “cuidar”, ele toma a responsabilidade
por todas as questões da vida do paciente.
Essa dicotomia entre clínica e política se desdobra na dicotomia entre sujeito e
cidadão. No cerne da reforma está a luta contra a anulação do sujeito, até então silenciado e
confinado nos manicômios. É também Paulo Amarante que afirma, “o sujeito da
experiência da loucura, antes excluído do mundo da cidadania, incapaz de obra ou de voz,
torna-se sujeito e não objeto de saber” (AMARANTE, 2001: 104)
Assim, a noção de sujeito na reforma não é necessariamente a daquele que advém
de uma clínica, pois, como já foi dito, o sujeito referido pela reforma está articulado ao
sujeito cidadão, o sujeito da ação social. Em contraposição, como foi colocado por Doris
Rinaldi:
“Para a psicanálise lacaniana, o sujeito é descentrado em relação ao eu, surgindo nos fenômenos da linguagem, nas descontinuidades do discurso e na maneira particular como esse discurso se articula para cada um” (RINALDI, 2003: 175)
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Esta contraposição pode ser entendida, no entanto, apenas como aparente, já que
pode haver uma articulação entre as duas concepções, pois a psicanálise, de certa forma,
não exclui a lógica da cidadania. Do ponto de vista da psicanálise o sujeito é radicalmente
(radical no sentido de raiz, origem) responsável pelo seu sintoma; ele é chamado, portanto,
a se implicar no seu sofrimento e no seu tratamento. Este sujeito que tem de se
responsabilizar pelo seu sintoma e pela própria condição de sujeito não pode ser um
alienado social.
No campo da saúde mental, é verdade, a responsabilidade assume também outros
significados. Ela tem em vista, por exemplo, a noção de tomada de responsabilidade
territorial, sendo o serviço responsável pela demanda de atendimento de determinado
território. Esta é uma noção que se expande para o próprio “cuidar”, uma vez que os
profissionais assumem uma postura de responsabilidade pelo paciente, envolvendo neste
“cuidado” todas as questões de sua vida cotidiana.
Esta noção de cuidado, tem em vista uma clínica que visa a recuperação da
autonomia e do poder de contratualidade dos usuários do Caps. A clínica que visa a
cidadania se dá no sentido de uma reabilitação psicossocial. Sendo assim, a clínica do Caps
tem o diferencial de atravessar as questões do cotidiano dos pacientes sempre objetivando
habilitá-lo, ou reabilitá-lo, para a vida em sociedade, apresentando respostas para questões
como moradia, lazer, trabalho e cultura.
No entanto, uma clínica pautada tão somente no paradigma da reabilitação pode
levar ao efeito contrário, ou seja, a uma dependência em relação ao próprio Caps. Essa
proposta de recuperação de elementos fundamentais para a construção da cidadania, que
implica a inserção do indivíduo na vida social, esbarra em diversas dificuldades enfrentadas
por cada sujeito em responder a essa demanda, que se apresenta muito mais como uma
demanda dos técnicos e dos ideais da reforma do que dos próprios sujeitos.
As atividades de reabilitação não interferem na subjetividade dos pacientes, que
precisariam estar comprometidos com seus sintomas. A psicanálise propõe o resgate do
sujeito como verdadeiro operador do tratamento, atuando na construção de um espaço
clínico destinado à escuta do sujeito que, como um ser de linguagem, está submetido à
lógica do desejo.
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Como coloca VIGANÒ (1999) as propostas de reabilitação não trabalham com o
sintoma, renunciam a este tratamento através da exclusão da clínica. A defesa dos direitos
do paciente psiquiátrico, tão necessária em determinado momento, pode acabar perdendo o
sentido quando não se escuta o que este sujeito tem a dizer sobre si. O paradigma da
desinstitucionalização, que viria para a desconstrução da ordem psiquiátrica, pode acabar
reproduzindo-a de outra forma, quando fala pelo paciente, supondo que o saber está do lado
do médico e o doente é um ignorante de si mesmo.
A reforma psiquiátrica traz uma crítica a desconsideração da fala do louco por parte
da psiquiatria tradicional, que o silenciou através da internação asilar e do uso abusivo de
psicofármacos. Como assinalou MIRA (2003), no contexto da reforma surge uma frase que
marca o início do processo de transformação na assistência psiquiátrica: “É preciso dar voz
ao paciente”.
A partir daí, valoriza-se no campo da saúde mental o dispositivo de escuta, mas que
na prática é um dispositivo que, muitas vezes não está claro para os profissionais e, então, o
que se faz com o que se escuta? Como disse Karine Mira:
“Não se sabe muito bem o que fazer com o que se escuta, muito
menos a diferença entre escutar o sujeito e simplesmente dar voz ao paciente, como se daria voz as minorias marginalizadas da sociedade. Falar e ser escutado entra na série dos direitos do cidadão, sendo a defesa da fala dos pacientes um requisito na conquista da cidadania.” (MIRA, 2003: 133)
Desta forma, o discurso do psicótico ainda é um excedente nesta nova prática, que
pode acabar excluindo-o. Como afirmou Viganò, “A segregação, que se pode criar com a
abertura dos manicômios, é criar outros lugares onde se faz barulho sem falar”
(VIGANÒ, 1999: 50).
Podemos perceber esta questão na formulação de um projeto terapêutico. Este só
pode ser construído junto com o sujeito, nunca apresentado simplesmente a ele. Esta é uma
construção que se dá entre técnico e paciente numa relação transferencial, tendo como base
a escuta da fala do sujeito. Esta escuta não precisa ser feita em um atendimento individual,
em algo parecido com um setting psicanalítico, ela acontece nas oficinas, nos grupos, num
encontro com o técnico no cotidiano do serviço.
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O importante é saber o que o sujeito traz, qual é a sua questão. Se não se parte desta
simples pergunta e se espera a resposta, mesmo que não venha por anos, o profissional
pode cair na armadilha de seus próprios anseios e expectativas. O técnico, na tentativa de
dar uma melhor qualidade de vida para o sujeito pode acabar impondo o que ele deve fazer.
Pode ser que aquele sujeito só queira ficar em casa naquele momento de sua vida e está
bem com isso. Assim, o projeto tem que se guiar pela fala do sujeito, caso contrário, o que
seria um tratamento pode tornar-se uma invasão para um sujeito que já é tão invadido como
o psicótico.
Quando se está guiado pela clínica do sujeito, pode-se ter a clareza de qual é o
limite daquele sujeito, onde ele estabelece uma fronteira. É este reconhecimento que vai
permitir que haja uma verdadeira aproximação deste paciente e, a partir daí, um tratamento.
É fundamental, portanto, que exista uma transferência entre técnico e sujeito em
tratamento, o que muitas vezes é reconhecido como um vínculo para os profissionais que
atuam nos Caps.
Este vínculo, no sentido de uma transferência, é muito importante para que seja
realizado um trabalho subjetivo (no qual o paciente é ativo) e não meramente educativo. A
psicanálise, portanto, através da clínica do sujeito pode contribuir para que o psicótico
encontre os seus meios para estar mais próximo do laço social, se essa for a sua escolha.
Meios estes que não seriam impostos por uma política de cidadania, como é a idéia da
reforma, mas descobertos a partir da emergência do sujeito. O sujeito estaria se
responsabilizando por seus sintomas e por sua vida.
Há a necessidade de uma escuta atenta as singularidades do sujeito a cada caso para
que uma demanda que inicialmente é farmacológica, por exemplo, se transforme numa
demanda de tratamento. O tratamento só pode ser do sujeito que se compromete com seu
sintoma e se responsabiliza pelo seu gozo, sendo ele mesmo quem opera seu tratamento.
A posição que percebemos nos Caps é de tentar evitar a cronificação de pacientes, a
de querer que o sujeito deixe de freqüentar o serviço, que se lance na vida, mas acaba não
oferecendo um trabalho que faça com que ele possa encontrar os instrumentos para isso.
Um psicólogo, ao ser perguntado sobre o tempo de permanência do usuário no Caps, nos
diz:
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“(...)um cuidado que nós temos é com a não cronificação do Caps, que o Caps não se transforme num serviço de crônicos. Que o paciente saia...é uma proposta para não cronificar(...). [O Caps] é um local de acolhida, mas também de estar...tentando trabalhar este sujeito para que ele se lance novamente na vida dele, mas tendo o Caps como suporte. (...) a gente também não pode negar que ele esteja precisando de suporte, então é esse cuidar, esse se responsabilizar sobre esse sujeito que talvez seja a proposta principal do Caps.” (psicólogo)
A idéia de se ter o Caps como referencia pode ser muito eficaz, um ponto de
segurança num momento de fragilidade, mas como querer que o paciente se lance na vida
social se se está responsabilizando por ele? Como ele vai viver fora do Caps se ele não se
responsabiliza por si mesmo? É preciso que o sujeito se responsabilize não só por seu
sintoma, mas por sua vida, que possa se ver como sujeito para que possa enfrentar os
percalços de uma vida não tutelada.
Tenório defende uma articulação possível entre a reabilitação psicossocial e a
clínica do sujeito, ressaltando, contudo, os limites e as especificidades de cada uma:
“Atenção psicossocial e clínica do sujeito não são a mesma coisa. Mas uma pode tornar a outra possível – desde que a primeira evite dois riscos: impor ao psicótico ideais de funcionamento que são nossos e aos quais ele muitas vezes não pode corresponder, e o de acreditar que o bem estar psicossocial torna menos relevante o trabalho subjetivo na palavra; e que a segunda reconheça os limites de qualquer prática ligada à palavra e a necessidade, em certos casos prioridade, na psicose grave, de uma ajuda concreta e cotidiana ao viver” (TENÓRIO, 2001a:87).
Existe no Caps um trabalho que não pode ser desconsiderado e que é da ordem
institucional, como o auxílio em questões cotidianas de alimentação, moradia, retirada do
passe-livre, etc. Entretanto, este trabalho não pode deixar de estar atravessado pela clínica,
que está mais ligada às questões do sujeito.
A instituição se apresenta como necessária, também, por ser um lugar para onde o
sujeito pode ir quando se encontra em uma situação-limite de exposição ao insuportável.
Chegam aos Caps sujeitos em situações clínicas graves, com riscos de passagem ao ato e
um sofrimento extremo, quadros que demandam uma resposta social que se dá pela via
institucional.
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O Caps tem, portanto, essa função institucional de responder a casos clínicos graves,
mas esta função tem que estar articulada a uma função clínica, ainda que nunca se
resumindo a ela, como colocou ZENONI (2000). O autor chama a atenção para a
importância da distinção dessas duas funções e, ao mesmo tempo, da necessidade das duas:
“Não é porque a instituição cura que ela deve ser mantida, nem porque ela não cura que
ela deve ser suprimida”(ZENONI, 2000:16). A instituição não pode ser eliminada, porque
tem a sua função social, mas não podemos confundir esta com a função terapêutica, que
pode levar a manutenção do sujeito na instituição indefinidamente, porque há uma
expectativa de cura presente.
Está sempre colocada a questão se o discurso do analista pode orientar uma prática
que é de um arranjo clínico-institucional e que é feita por muitos profissionais, de diversas
formações, e muitos pacientes também. Uma grande dificuldade encontrada nos Caps está
justamente no trabalho em equipe.
Nos dias de hoje há a tentativa de inserção do discurso do analista, com toda sua
especificidade, neste dispositivo coletivo, o que leva a uma série de reflexões e
questionamentos. Como já foi colocado, Zenoni propõe que não pensemos a
compatibilidade ou incompatibilidade da psicanálise e a instituição, mas que saibamos que
são duas práticas distintas. A partir daí, pensaríamos numa terceira via, sabendo que a
prática do analista poderá ser múltipla e sempre lembrando que existe sim uma motivação
clínica para a instituição. Uma forma de pensar esta terceira via poderia ser através de um
dispositivo nomeado de “prática entre muitos” (pratique à plusiers).
Todas as tentativas de se oferecer um bom tratamento institucional para os
pacientes que procuram estes serviços se tornará inviável se não houver um grupo de
profissionais que funcione numa equipe afinada. São muitas as dificuldades encontradas
numa instituição onde os profissionais são muitos, os pacientes são muitos e as relações
entre eles estão se cruzando a todo momento.
A “prática entre muitos” foi pensada principalmente a partir da experiência de
Antonio Di Ciaccia numa instituição para crianças autistas e psicóticas (Antenne 110), na
Bélgica. Di Ciaccia contrapõe a “prática entre muitos” ao funcionamento tradicional da
instituição. Nesta as articulações sempre são remetidas ao Um do mestre, que ocupa uma
posição de liderança pautada no discurso do mestre. Já o discurso do analista é justamente
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sustentado na falta desse Um, ou seja, no vazio. Na “prática entre muitos” a articulação não
se dá, portanto, com o um do mestre, mas com o Um do vazio, fundado no desejo de
analista.
O Um do mestre ainda é, no entanto, necessário a sustentação da instituição, mas
esta pode sustentar-se também no Um do vazio. Este não está encarnado em uma pessoa,
mas é o resultado do vazio que atravessa cada um, ou seja, do desejo de cada profissional.
Trata-se, portanto, de um esvaziamento de saber, que é importantíssimo na
condução do trabalho com o psicótico, pois, para este, o Outro pode se apresentar como
extremamente invasivo. É nesse esvaziamento de saber e de poder que o analista pode se
colocar na posição de secretário, seguindo, na clínica, os caminhos escolhidos pelo próprio
sujeito em tratamento.
Em relação ao trabalho em equipe a posição de não-saber também é muito benéfica,
pois coloca todos os profissionais igualmente dispostos a aprender com a clínica, evitando
os efeitos das competições entre membros. A clínica coloca desafios a todos e isso deve ser
explorado nas reuniões de equipe, pelos profissionais das diferentes formações. Como
afirmou Doris Rinaldi:
“Esta pode ser uma oportunidade ímpar de transmissão da operação freudiana na clínica, através da sustentação do desejo do analista, pois é este vazio de saber que possibilita que cada um se responsabilize pelos atos que o trabalho com porta, na solidão de cada intervenção que não é, contudo, ‘sem os demais’”. (RINALDI, 2005: 7)
Para que o lugar do não-saber seja sustentado dentro da equipe, Di Ciaccia destaca a
função do “ao-menos-um”, um guardião que garantiria o espaço para o não-saber na
clínica, possibilitando a pesquisa diante desta para a elaboração de um saber não-todo em
cada caso.
Este lugar poderia ser encarnado pelo supervisor de equipe, mas sem que este
assuma a posição de sujeito-suposto-saber. Na experiência da “prática entre muitos”, é a
clínica que está no lugar de significante mestre.
É justamente a partir do discurso do analista, sustentando um lugar de não saber que
o psicanalista consegue uma entrada efetiva na instituição e contribui para o trabalho. É
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principalmente na importância dada a clínica, como matriz de todo funcionamento
institucional que a psicanálise expressa sua maior contribuição ao campo da saúde mental.
A dimensão clínica nos Caps é fundamental para que não pensemos num bem estar
social normativo para os usuários do serviço e nos esqueçamos de ouvir o sujeito em sua
singularidade. A clínica do sujeito, sustentada pela psicanálise, não se confunde com a
chamada clínica ampliada, que tem como objetivo direto a reabilitação social do usuário.
Esta clínica está mais voltada para a produção, a realização de atividades como caminho
para a reabilitação.
Para que exista um tratamento efetivo dentro da instituição, é preciso que haja um
acompanhamento constante e que não se restrinja a um trabalho objetivo de reabilitação,
mas que valorize a fala do sujeito. É necessário que se entre em contato com a
singularidade do sujeito através de uma escuta, pois é na sua fala que está inserido o desejo.
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