UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO E INFORMAO
Dbora Thayane de Oliveira Lapa Gadret
OS ENQUADRAMENTOS DE DILMA ROUSSEFF NO JORNAL NACIONAL:
Suspeio, Humanizao e Competncia
Porto Alegre
2011
Dbora Thayane de Oliveira Lapa Gadret
OS ENQUADRAMENTOS DE DILMA ROUSSEFF NO JORNAL NACIONAL:
Suspeio, Humanizao e Competncia
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Comunicao e Informao da
Faculdade de Biblioteconomia e Comunicao da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para a obteno do ttulo de
mestre em Comunicao e Informao.
Orientador: Prof. Dr. Flvio Antonio Camargo
Porcello
Porto Alegre
2011
CIP - Catalogao na Publicao
Elaborada pelo Sistema de Gerao Automtica de Ficha Catalogrfica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).
Gadret, Dbora Thayane de Oliveira Lapa Os enquadramentos de Dilma Rousseff no JornalNacional: Suspeio, Humanizao e Competncia /Dbora Thayane de Oliveira Lapa Gadret. -- 2011. 157 f.
Orientador: Flvio Antonio Camargo Porcello.
Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal doRio Grande do Sul, Faculdade de Biblioteconomia eComunicao, Programa de Ps-Graduao em Comunicao eInformao, Porto Alegre, BR-RS, 2011.
1. Comunicao. 2. Jornalismo. 3. Poltica. 4.Enquadramento. I. Porcello, Flvio Antonio Camargo,orient. II. Ttulo.
Dbora Thayane de Oliveira Lapa Gadret
OS ENQUADRAMENTOS DE DILMA ROUSSEFF NO JORNAL NACIONAL:
Suspeio, Humanizao e Competncia
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Comunicao e Informao da
Faculdade de Biblioteconomia e Comunicao da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para a obteno do ttulo de
mestre em Comunicao e Informao.
Aprovado em 29 de maro de 2011.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________________
Prof. Dr. Flvio Antonio Camargo Porcello (orientador) PPGCOM/UFRGS
________________________________________________________________
Prof. Dr. Alfredo Eurico Vizeu Pereira Jnior PPGCOM/UFPE
________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcia Benetti Machado PPGCOM/UFRGS
________________________________________________________________
Prof. Dr.Virginia Pradelina da Silveira Fonseca PPGCOM/UFRGS
Para Jane, minha me e primeira mestre, pelos ensinamentos sobre cidadania,
por sua constante dedicao minha formao e pelo incentivo incansvel que
me motiva a enfrentar novos desafios e perseguir sonhos.
Para Marcelo, meu amor, pela pacincia, compreenso e segurana nos
momentos de dvida, pelos questionamentos nos momentos de certeza e pelos
debates estimulantes sobre jornalismo e poltica.
AGRADECIMENTOS
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPQ), pelo
investimento em minha formao, com o desejo de que esta dissertao colabore para a
construo do conhecimento na rea da comunicao e informao no pas. Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, que me oportunizou, da graduao ao mestrado, o privilegiado
acesso ao ensino pblico, gratuito e de qualidade. Mais do que isso, possibilitou o encontro
com excelentes mestres e colegas inquietos, que me motivaram em todas as etapas a pensar
criticamente a atividade jornalstica. Em especial, ao Programa de Ps-Graduao em
Comunicao e Informao da UFRGS, seus professores, funcionrios e alunos.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Flvio Antonio Camargo Porcello, que me acompanha
desde a conquista do ttulo de Bacharel em Jornalismo. Pelos ensinamentos sobre
telejornalismo, pela curiosidade e olhar crtico sobre a produo de notcias para a televiso,
pela acolhida na vida acadmica e pelas oportunidades proporcionadas durante a graduao e
o mestrado. Prof. Dr. Marcia Benetti Machado, professora apaixonada e pesquisadora
diligente, pelos caminhos apontados, as observaes na disciplina de metodologia, a
apresentao de instigantes leituras nas aulas de teorias do jornalismo e o olhar apurado no
exame de qualificao. Agradeo ainda a Prof. Dr. Maria Helena Weber pela contribuio na
qualificao. Prof. Dr. Virginia Fonseca, pelos ensinamentos sobre comunicao e
jornalismo. Ao Prof. Dr. Alfredo Vizeu, pelas leituras e conversas sobre telejornalismo.
A todos da turma de 2010 do PPGCOM, cuja amizade ajudou a dar leveza ao
desafiante processo de construir e escrever a dissertao. Aos amigos Ana Laura Colombo,
Basilio Sartor, Ivan Bomfim, Karine Moura Vieira, Laura Storch, Sabrina Franzoni, Silvia
Lisboa e Thas Furtado. Mrcia Veiga e Angelo Adami, amigos jornalistas que fazem parte
da minha histria na UFRGS, pelos conselhos, leituras e conversas, pela ajuda e o incentivo
desde o processo de seleo para o mestrado at o depsito da dissertao.
Agradeo ao Marcelo Allgayer, jornalista perspicaz que me desafia a pensar o mundo
em minha volta, companheiro que me d o carinho e o incentivo necessrios para atingir meus
objetivos. Jane, minha me, por todos os dias e noites de trabalho para que eu pudesse ter a
melhor educao possvel, por me ensinar o valor e o respeito devidos aos nossos professores.
Ao Paulinho, meu segundo pai, artista sensvel que tomou para si a tarefa de cuidar de mim
mesmo depois de grande. Ao meu pai Mima, meu anjo da guarda.
A todos os professores que me fazem uma apaixonada pela construo conhecimento e
pela docncia.
Cada um de ns uma sociedade inteira.
(Bernardo Soares, Livro do Desassossego)
RESUMO
Esta pesquisa est inserida em uma linha de estudos que se preocupa com a construo
de significados nas notcias sobre os participantes do campo poltico. Acredita-se que
atravs do contedo produzido pelos jornalistas, percebidos como uma comunidade
interpretativa que partilha saberes especficos e mapas culturais, que se d a construo da
realidade social. O objetivo compreender os enquadramentos construdos sobre Dilma
Rousseff nas notcias do Jornal Nacional em seu ltimo ano como ministra da Casa Civil.
Foram analisadas 47 matrias do telejornal, exibidas entre abril de 2009 e maro de 2010. O
referencial terico est baseado nos estudos sobre visibilidade dos atores polticos, nas noes
sobre enquadramento e nas teorias construcionistas da notcia. Como mtodo de investigao,
utilizou-se a anlise de contedo de cunho qualitativo de forma a completar os trs objetivos
especficos propostos: mapear as temticas e os acontecimentos em que Dilma Rousseff
aparece como figura central das notcias; identificar os quadros de significado e interpretao
construdos sobre a ministra e relacionar a formao dos enquadramentos jornalsticos s
funes do campo e ao saberes especficos de seus profissionais. Concluiu-se que trs ideias
organizadoras centrais so construdas sobre esta figura poltica nos notcias do Jornal
Nacional: a suspeio, a humanizao e a competncia.
Palavras-chave: Comunicao. Jornalismo. Poltica. Enquadramento. Jornal Nacional. Dilma
Rousseff.
ABSTRACT
This research is located in a line of studies which is concerned with the construction of
meanings in news related to participants of the political field. We perceive that it is through
the content written by journalists, seen as an interpretative community that shares specific
knowledge as well as cultural maps, that construction of social reality takes place. The
objective is to comprehend frames constructed about Dilma Rousseff in the news of Jornal
Nacional during her last year as Brazils Chief of Staff. We analyzed 47 news pieces
produced by the TV news program, aired between April 2009 and March 2010. We present as
theoretical reference studies on the visibility of political actors, notions about framework and
the constructivism theories of news. As research method, a qualitative content analysis was
conducted in order to attain the specific objectives outlined: to map the themes and events in
which Dilma Rousseff is presented as central character, to identify in the news meanings and
interpretations about the chief of staff and to relate the arrangement of journalistic frames to
the fields social functions and to the specific knowledge of those professionals. We
concluded that three central organizing ideas are constructed about this political actor in the
news of Jornal Nacional: suspicion, humanization and competence.
Keywords: Communication. Journalism. Politics. Frame analysis. Jornal Nacional. Dilma
Rousseff.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Cid Moreira e Hilton Gomes na primeira transmisso do Jornal Nacional...... 49
FIGURA 2 Edio do debate de 1989 transmitida pelo Jornal Nacional............................ 53
FIGURA 3 Dilma (em p) entre o irmo Igor e Zana, e os pais Dilma Jane e Pedro......... 56
FIGURA 4 Foto de identificao feita pelo Dops............................................................... 58
FIGURA 5 Dilma quando tomou posse da Casa Civil, no lugar de Jos Dirceu................ 60
FIGURA 6 Lina Vieira afirma ao JN que houve o encontro............................................... 85
FIGURA 7 Dilma Rousseff nega o encontro em coletiva de imprensa............................... 85
FIGURA 8 Lula desafia Lina a provar o encontro com Dilma........................................ 94
FIGURA 9 Dilma Rousseff assiste a defesa do presidente................................................. 94
FIGURA 10 JN solicita prova auxiliares ao GSI................................................................ 96
FIGURA 11 JN obtm contrato de compra de equipamentos............................................. 96
FIGURA 12 Texto escrito sugere vitimizao de Lina Vieira............................................ 99
FIGURA 13 Dilma d declarao autorizada em programada da EBC............................. 103
FIGURA 14 Dilma explica o que quis dizer anteriormente............................................... 103
FIGURA 15 Dilma na divulgao das obras de transposio do rio So Francisco.......... 104
FIGURA 16 Dilma mostra a localizao do linfoma......................................................... 114
FIGURA 17 Dilma mantm os compromissos.................................................................. 114
FIGURA 18 Dilma fala sobre a peruca.............................................................................. 116
FIGURA 19 Boletim mdico indica normalidade do estado de sade de Dilma.............. 116
FIGURA 20 Dilma Rousseff est recuperada do cncer................................................... 118
FIGURA 21 Funo Pedaggica (1).................................................................................. 122
FIGURA 22 Funo Pedaggica (2).................................................................................. 122
FIGURA 23 Dilma voz autorizada para dar declaraes sobre o PAC.......................... 127
FIGURA 24 Carlos Minc e Dilma Rousseff em coletiva de imprensa em Copenhague... 131
FIGURA 25 Dilma identificada como pr-candidata presidncia................................ 133
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 Exemplo de Transcrio do Material............................................................... 69
TABELA 2 Temas e Acontecimentos................................................................................. 72
TABELA 3 Frequncia Inconfiabilidade sobre Dilma e o Governo (Denncia Lina)........ 84
TABELA 4 Frequncia das sonoras (Denncia Lina)......................................................... 87
TABELA 5 Frequncia Inconfiabilidade sobre Lina e a oposio (Denncia Lina).......... 89
TABELA 6 Frequncia nomeao (Denncia Lina)........................................................... 91
TABELA 7 Frequncia da Fiabilidade sobre Dilma e o Governo (Denncia Lina)........... 91
TABELA 8 Frequncia da Fiabilidade sobre Lina e a Oposio (Denncia Lina)............. 92
TABELA 9 Significados Denncia Lina (Escalada, Chamada e Cabea).......................... 97
TABELA 10 Significados Denncia Lina (Off, Passagem)................................................ 98
TABELA 11 Significados Denncia Lina (Sonoras Favorveis)...................................... 100
TABELA 12 Significados Denncia Lina (Sonoras em Oposio)................................... 100
TABELA 13 Frequncia do quadro de significados Fora................................................ 111
TABELA 14 Frequncia do quadro de significados Fragilidade....................................... 113
TABELA 15 Frequncia do quadro de significados Franqueza........................................ 113
TABELA 16 Frequncia das sonoras (Linfoma)............................................................... 119
TABELA 17 Frequncia nomeao (Linfoma)................................................................. 119
TABELA 18 Significados do Linfoma (Escalada, Chamada e Cabea)............................ 121
TABELA 19 Significados do Linfoma (Passagem, Off) .................................................. 121
TABELA 20 Significados do Linfoma (Sonoras).............................................................. 121
LISTA DE SIGLAS
Abin Agncia Brasileira de Inteligncia
AC Anlise de Contedo
BH Belo Horizonte
CCJ Comisso de Constituio e Justia
Colina Comando de Libertao Nacional
CPI Comisso Parlamentar de Inqurito
DEM Democratas
DNIT Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes
Dops Departamento de Ordem e Poltica Social
FEE Fundao de Economia e Estatstica
FHC Fernando Henrique Cardoso
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
JN Jornal Nacional
Oban Operao Bandeirantes
PAC Programa de Acelerao do Crescimento
PCB Partido Comunista Brasileiro
PDT Partido Democrtico Trabalhista
PF Polcia Federal
PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro
Polop Poltica Democrtica
PPS Partido Popular Socialista
PRN Partido da Reconstruo Nacional
PDS Partido Democrtico Social
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
Serpro Servio Federal de Processamento de Dados
STF Superior Tribunal Federal
TSE Tribunal Superior Eleitoral
Var-Palmares Vanguarda Armada Revolucionria Palmares
VPR Vanguarda Popular Revolucionria
SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................... 12
1 REFERENCIAL TERICO................................................................................... 19
1.1 A televiso e a visibilidade poltica....................................................................... 20
1.2 Enquadramento e jornalismo................................................................................ 25
1.3 Os jornalistas e suas rotinas sociais e profissionais............................................. 33
2 O JORNAL NACIONAL E DILMA ROUSSEFF................................................. 46
2.1 Jornal Nacional: poltica e histria....................................................................... 47
2.2 Dilma Rousseff: de Minas Gerais ao Palcio do Planalto................................... 56
3 METODOLOGIA................................................................................................... 63
3.1 Anlise de Contedo............................................................................................ 63
3.2 A consolidao e a descrio do corpus............................................................. 66
3.3 A explorao do material..................................................................................... 73
4 SUSPEIO, O ENQUADRAMENTO PREDOMINANTE............................ 82
4.1 Denncia Lina...................................................................................................... 83
4.2 Apago e Campanha Antecipada....................................................................... 102
5 HUMANIZAO E COMPETNCIA, DOIS FRAMES RELEVANTES..... 109
5.1 Humanizao........................................................................................................ 109
5.2 Competncia......................................................................................................... 123
CONSIDERAES FINAIS.................................................................................... 136
REFERNCIAS........................................................................................................ 141
APNDICE................................................................................................................. 149
APNDICE I Tabela descritiva do corpus consolidado....................................... 150
APNDICE II Ficha de Classificao: Questes Pessoais................................... 151
APNDICE III Ficha de Classificao: Questes de Governo e Eleitorais....... 153
ANEXO DVD: Matrias do corpus consolidado
12
INTRODUO
No dia 31 de outubro de 2010, os cidados brasileiros foram s urnas e elegeram, em
segundo turno, a petista Dilma Rousseff presidncia da Repblica. A ex-ministra da Casa
Civil recebeu 56,05% dos votos vlidos, contra 43,95% do tucano Jos Serra. Os nmeros
podem no parecer muito expressivos quando se calcula a diferena de votos recebidos por
cada candidato. Porm, essa foi uma eleio significativa, marcada pelo ineditismo. Dilma
tomou posse no dia 1 de janeiro de 2011 como a primeira mulher presidente do Brasil.
Quando se considera outra percentagem, essa eleio parece ainda mais importante,
principalmente no que diz respeito mdia e aos meios de comunicao. Em maro de 2009,
Dilma Rousseff era desconhecida por 47% da populao, segundo pesquisa Datafolha (20
mar. 2009). Apenas 53% dos entrevistados afirmavam saber quem ela era. Um ano depois, em
maro de 2010, a mesma pesquisa informou que 87% dos entrevistados conheciam Dilma
Rousseff (29 mar. 2010b). neste perodo, entre o desconhecimento e a apresentao da
ministra da Casa Civil populao, que se concentra esta pesquisa.
Defende-se que sem a mdia esse rpido conhecimento de Dilma por grande parte da
sociedade brasileira seria improvvel. Nas sociedades democrticas de massa, atravs dos
meios de comunicao que os representantes polticos so apresentados aos cidados. O
contato face a face com possveis eleitores, apesar de prtica rotineira no campo poltico,
localiza a comunicao no espao e no tempo, tornando o acesso aos atores restrito a um
pequeno grupo de pessoas. preciso que essas aes sejam promovidas ao contexto no
localizado da comunicao de massa para que eles se dem a conhecer por um grande nmero
de cidados (THOMPSOM, 2009). a forma em que se d esta visibilidade proporcionada
pela mdia que interessa a esta pesquisa.
No entanto, os termos mdia e comunicao de massa so imprecisos para o que
pretende este estudo, pois abrangem mensagens das mais variadas disciplinas e esto atrelados
a diversos suportes. O foco est na visibilidade proporcionada pelos contedos produzidos
pelo jornalismo, pois neste mbito do processo de comunicao que os atores do campo
poltico perdem o controle das aes que sero reportadas ao pblico, bem como dos
significados construdos sobre estas atravs do texto noticioso (WEBER, 2009).
Isso porque tarefa do campo jornalstico fornecer aos cidados as informaes
necessrias para o desempenho das suas responsabilidades cvicas, alm de vigiar o poder
poltico e proteger os cidados dos eventuais abusos dos governantes (TRAQUINA, 2002, p.
13
35). Essas funes, construdas ao longo da formao e consolidao das sociedades
democrticas, tornam a atividade de administrao das imagens pblicas dos atores polticos
tarefa complexa. Mas tambm do legitimidade ao campo e credibilidade aos contedos
produzidos por ele.
Com o intuito de tentar administrar sua prpria visibilidade dentro desses espaos que
gozam de credibilidade junto aos cidados, os atores polticos visam permanentemente s
notcias produzidas pelo jornalismo. preciso controlar e tentar impor s notcias significados
favorveis formao de suas imagens pblicas, atravs de estratgias que permitam
programar e suscitar eventos que provoquem interesse dos jornalistas. No Brasil, h um
espao dentro do jornalismo que especialmente disputado pelos representantes polticos por
seu alcance social: a televiso.
A tev, alm de ser capaz de atingir uma audincia expressiva, conquistou uma
posio hegemnica que s agora comea a ser desafiada pela internet, mas que ainda est
longe de ser suplantada. Em uma sociedade na qual h mais televises do que geladeiras1,
natural que este seja o veculo de comunicao ao qual a maior parte da populao tem acesso
e ao qual as pessoas se voltam para obter informaes sobre os acontecimentos polticos.
De acordo com pesquisa encomendada pelo Tribunal Superior Eleitoral (SENSUS,
2010), 81% dos indivduos declararam que a televiso um meio de comunicao ao qual
sempre tm acesso, seguido em um distante segundo lugar pelo rdio (57,7%). Alm disso, a
tev o meio mais utilizado para se informar sobre poltica e eleies para 56,6% dos
entrevistados. Depois, em segundo e terceiro lugares, esto a conversa com amigos e parentes
(18,4%) e a internet (9,9%).
Neste contexto de centralidade social da televiso, a Rede Globo lidera os ndices de
audincia, apesar do crescimento da concorrncia nos ltimos anos. apresentada como
emissora preferida de 69,8% dos entrevistados da pesquisa sobre hbitos de informao e
formao de opinio encomendada pelo Governo Federal (META, 2010). O mesmo estudo
aponta que o Jornal Nacional (JN) o telejornal mais assistido no Brasil (56,4%) e o seu casal
de apresentadores so indicados como os jornalistas mais confiveis do pas. William Bonner
ficou em primeiro lugar (33,7%) e Ftima Bernardes em segundo (18,1%) 2.
1 De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio do IBGE (2009), 95,1% das residncias
possuem aparelho de televiso, enquanto 92,1% possuem geladeira. Esse nmero fica atrs apenas da iluminao
eltrica (98,6%) e do fogo (98,2%). 2 Sobre a fidelizao do telespectador ao Jornal Nacional, a tese de Sean Hagen (2009) aponta como estratgia
do telejornal a criao de um lao emocional entre a imagem mtica da perfeio do casal de apresentadores e a
audincia.
14
reconhecido que o JN no desfruta nas ltimas dcadas dos 70% de audincia que
costumava alcanar at os anos 1980. Com o advento da televiso a cabo e da internet e o
crescimento das emissoras concorrentes em canais abertos, atingiu em 2009, ano de seu
quadragsimo aniversrio, o pior ndice da sua histria: sua mdia anual ficou em 31 pontos,
quase 20% a menos do que o telejornal registrava em 20003. Porm, apesar da constante
queda de audincia, no perdeu a liderana no seu segmento. Nenhum outro telejornal
consegue sequer a metade de sua pontuao no Ibope (FELTRIN, 2009).
Portanto, pelo alcance expressivo da televiso no Brasil atrelado ao papel de
legitimidade do jornalismo em contextos democrticos que se optou por estudar a forma que o
telejornalismo confere visibilidade aos atores polticos atravs das notcias, neste caso
Dilma Rousseff. No jornalismo produzido para a tev, os contedos noticiosos do Jornal
Nacional foram escolhidos pela sua importncia na sociedade brasileira ao longo de mais de
quarenta anos de histria.
preciso nesta introduo elaborar de forma mais clara a maneira que se compreende
o jornalismo e as notcias produzidas pelos profissionais deste campo. Esta pesquisa filia-se s
teorias construcionistas, que apreendem a notcia como uma construo da realidade social
por uma comunidade interpretativa (ZELIZER, 2000) que possui saberes especializados
(ERICSON; BARANEK; CHAN, 1987). Os jornalistas so, sob este paradigma, participantes
ativos desta construo. Isso porque se entende que a linguagem no transmissora direta de
significados inerentes aos acontecimentos (TRAQUINA, 2005). As notcias estruturam uma
representao destes acontecimentos e tambm dos atores polticos envolvidos neles
atravs de processos de seleo e salincia de significados sobre eles (ENTMAN, 1993).
Mas essa perspectiva vai alm. Percebe tambm que, ao mesmo tempo em as notcias
constroem a realidade social, so tambm construdas por essa. Ou seja, valores e normas
supostamente consensuais de uma cultura so reproduzidos e reforados no texto jornalstico.
Estes conhecimentos compartilhados por uma sociedade Hall et al. (1993) chamam de mapas
culturais. Acredita-se que so nesses mapas que se fundam os enquadramentos jornalsticos,
entendidos aqui como a ideia organizadora central que permeia as notcias. Composta pela
imbricao de quadros de significados e interpretao sobre os acontecimentos reportados e
os atores envolvidos neles, o enquadramento jornalstico reconstri e reafirma esses mapas
culturais.
3 Parte dessa queda tambm se deve mudana de metodologia na medio de audincia do Ibope. Antes de
2005, cada ponto de audincia equivalia a aproximadamente 50.000 residncias na Grande So Paulo
(BARTOLOMEI, abr. 2005). Em 2010, cada ponto j equivalia a cerca de 60.000 residncias (MATTOS, jun.
2010).
15
Tendo em vista que a visibilidade dos atores polticos e que a formao de suas
imagens pblicas esto atreladas aos enquadramentos jornalsticos presentes sobre eles nas
notcias, particularmente na televiso, este estudo apresenta o seguinte problema de pesquisa:
de que forma so construdos os enquadramentos sobre Dilma Rousseff nas notcias do Jornal
Nacional em seu ltimo ano como ministra da Casa Civil? Para responder essa pergunta,
propem-se os objetivos abaixo:
OBJETIVO GERAL: Compreender os enquadramentos construdos sobre Dilma
Rousseff nas notcias do Jornal Nacional em seu ltimo ano como ministra da
Casa Civil.
OBJETIVOS ESPECFICOS:
a) Mapear as temticas e os acontecimentos em que Dilma Rousseff aparece
como figura central das notcias;
b) Estabelecer quais so os enquadramentos jornalsticos construdos sobre a
ministra atravs da definio da situao no texto noticioso e da seleo e
salincia dos quadros de significado presentes sobre ela;
c) Relacionar a formao dos enquadramentos jornalsticos s funes do
jornalismo e aos saberes dos jornalistas enquanto comunidade interpretativa.
Para entender a localizao deste estudo, ser apresentado um breve panorama da
anlise de enquadramento no Brasil, no que tange as investigaes em nvel de mestrado e
doutorado. Esta reviso resultado de pesquisa no banco de teses e dissertaes da Capes. O
primeiro passo foi localizar as pesquisas sobre enquadramento e comunicao. O sistema de
busca dessas duas palavras resultou em 208 trabalhos, muitos relacionados a contedos de
entretenimento e publicidade ou a temas que fugiam do foco dessa dissertao, como
economia, meio ambiente, infncia, formao do self, entre outros.
Quando se inseriu a palavra poltica junto aos termos comunicao e
enquadramento, 55 teses e dissertaes foram localizadas. Em geral, estes trabalhos
costumam referir-se ao estudo da mdia, mesmo quando os contedos pesquisados so
estritamente jornalsticos. Percebeu-se, desta forma, que grande parte ignora as
especificidades das teorias das notcias e foca-se na rea da comunicao, em especial da
comunicao poltica. Os estudos veem o enquadramento apenas como um suporte para a
16
conduo de pesquisas de agendamento, principalmente sobre as relaes entre agenda
poltica e agenda miditica.
A tese de Paulo Fernando Liedtke (2006), desenvolvida no Programa de Sociologia
Poltica, da Universidade Federal de Santa Catarina, uma exceo, pois apresenta um
referencial terico extenso sobre as teorias construcionistas do jornalismo. Porm, o interesse
principal a analise a influncia do Estado na mdia e a ao da prpria mdia na constituio
da agenda poltica brasileira. Esse e outros estudos similares, apesar de servirem como
premissa para este trabalho, no dialogam diretamente com os objetivos apresentados aqui.
Outras pesquisas se focam em acontecimentos que se tornaram escndalos polticos,
vendo na visibilidade proporcionada pela mdia um espao de disputa por construo de
imagens de eventos polticos. o caso da dissertao de Fbio Souza Vasconcellos (2007),
realizada no Programa de Comunicao da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Apesar
de compartilhar um referencial terico similar, baseado no enquadramento e na visibilidade, o
foco daquela pesquisa na maneira em que as notcias construram o escndalo poltico,
enquanto o objetivo desta est relacionado forma como as notcias construram significados
sobre determinado ator poltico.
Estes dois trabalhos, bem como os prximos que sero apresentados aqui, foram
escolhidos como exemplo, pois tm como objeto de estudo as notcias do Jornal Nacional.
Outros tantos foram omitidos de nomeao por no dialogarem diretamente com o suporte e
telejornal de nosso interesse, ao focarem-se nos estudos de enquadramento sobre contedos da
mdia impressa ou do rdio. H ainda aqueles que fogem totalmente dos objetivos dessa
pesquisa ao centrarem-se em estudos de recepo, que buscam entender como os indivduos
resignificam os contedos produzidos pelo jornalismo. Apesar de considerar esta perspectiva
extremamente relevante para o entendimento do processo de formao da opinio pblica a
partir das notcias, a objetivo aqui se relaciona compreenso da construo do
enquadramento pelos jornalistas no texto noticioso.
As dissertaes de Vitor Fraga (2005), do Programa de Comunicao, Imagem e
Informao da Universidade Federal Fluminense, e de Karenine Rocha da Cunha (2005),
desenvolvida no programa de Comunicao da Universidade Estadual Paulista, dialogam em
certa medida com esta pesquisa ao focarem-se nos enquadramentos presentes nas notcias do
Jornal Nacional sobre o governo de Lula. Ambos chegam a concluses similares a deste
estudo no que se refere a uma parte das notcias analisadas. Porm, partem de um conceito de
enquadramento bastante diverso (e talvez conflitante) daquele desenvolvido aqui. O primeiro
est baseado na hegemonia gramsciana e o segundo trabalha com noes de parcialidade.
17
Esta reviso das teses e dissertaes sobre o tema do enquadramento das notcias sobre
poltica chega s mesmas concluses de Mauro Porto (2004), em um artigo que busca fazer
um estado da arte das pesquisas em enquadramento sobre mdia e poltica no Brasil e no
exterior. O enquadramento sofre de um forte indeterminismo conceitual e muitas pesquisas
utilizam a palavra sem especificar o nvel de anlise com o qual esto trabalhando. Algumas
veem o enquadramento como um referencial terico, outros como um mtodo de pesquisa. H
aquelas que trabalham com enquadramentos positivos/negativos, outras relacionam a noo
de frame a ideologias partidrias, outras ainda buscam um enquadramento cognitivo (e
talvez a essa viso que esta pesquisa aproxime-se mais).
natural na atividade acadmica que uma mesma palavra seja utilizada para designar
diversos conceitos. A reviso de Scheufele (1999) sobre os estudos de enquadramento
produzidos em lngua inglesa tambm revela essa multiplicidade. Robert Entman (1993)
chama o enquadramento de paradigma fraturado. O essencial, que se busca fazer no primeiro
captulo desta dissertao, especificar a forma com que o termo enquadramento est sendo
utilizado.
Dado esse breve panorama sobre a anlise de enquadramento e delineados o problema
e os objetivos da pesquisa, parte-se para a apresentao da estrutura da dissertao. No
primeiro captulo, ser desenvolvido o referencial terico deste estudo, que se desdobra em
trs eixos. Inicialmente, trata-se das alteraes da visibilidade poltica com o advento dos
meios de comunicao de massa e, em especial, da televiso. Articula-se s caractersticas
dessa visibilidade a formao das imagens pblicas dos atores polticos, principalmente no
que tange a construo da reputao dos representantes associada a um regime de confiana
estabelecido atravs da mdia, mais especificamente do jornalismo. Esta seo, alm de
apresentar as premissas com que a pesquisa trabalha ser fundamental para formar as
categorias de anlise.
Na segunda parte do referencial terico, ser trabalhado o conceito do enquadramento
a partir de seu surgimento dentro das teorias construcionistas e da hiptese do agendamento.
Ser retomado o conceito inaugural de frame desenvolvido por Erving Goffman (1986) para
ento associ-lo s contribuies feitas pelos pesquisadores em jornalismo, como Todd Gitlin
(1980), Gaye Tuchmam (1983), Hall et al. (1993), Robert Entman (1993) e Dietram Scheufele
(1999). Na terceira e ltima parte, sero associados os preceitos do enquadramento aos
saberes articulados pelos jornalistas na produo das notcias (ERICSON; BARANEK;
CHAN, 1987) enquanto comunidade interpretativa (ZELIZER, 2000).
18
O segundo captulo trata do objeto de pesquisa e divide-se em duas sees. Na
primeira, o foco a apresentao de um breve histrico do Jornal Nacional, o modelo de
telejornalismo desenvolvido por ele e as mudanas na cobertura poltica realizada pelo
programa. Servem de base pesquisas anteriores que tiveram a Rede Globo, o JN e a poltica
como tema (BORELLI; PRIOLLI, 2000; BUCCI, 2004; NEVES, 2008; HERZ, 2009;
PORTO, 2010). Na segunda seo, debrua-se sobre uma breve biografia de Dilma Rousseff,
desde sua infncia em Minas Gerais, passando por sua participao em movimentos de
resistncia Ditadura e pelo estabelecimento de sua carreira poltica no Rio Grande do Sul,
at o perodo em que exerceu os cargos de ministra de Minas e Energia e ministra-chefe da
Casa Civil no primeiro e segundo mandatos de Lula, respectivamente.
O terceiro captulo concentra-se na metodologia utilizada para conduzir este estudo.
Apresenta-se a Anlise de Contedo (AC) como mtodo de investigao que possibilita
atingir os objetivos delineados nesta introduo. Elucida-se de que forma foi definido o
corpus da pesquisa, como se deu o processo de recolha e seleo das notcias e apresenta-se
uma descrio geral do material estudado, resultado das primeiras exploraes das unidades
de anlise. Por ltimo, explica-se como foi aplicada a anlise categorial atravs de fichas de
classificao que permitissem a observao do material no apenas de um ponto de vista
quantitativo, mas principalmente de forma qualitativa.
Os captulos quatro e cinco apresentam o tratamento dos resultados e a inferncia
controlada que levaram identificao da formao de trs enquadramentos jornalsticos
sobre Dilma Rousseff: a suspeio, a humanizao e a competncia. Definem-se cada um dos
enquadramentos, apresentam-se as situaes e quadros de significado que resultaram nestes
enquadramentos atravs de exemplos que se manifestam no texto, discute-se de que forma
esses enquadramentos fundam-se em mapas culturais supostamente consensuais e quais so as
funes e os sabes dos jornalistas que podem ter auxiliado na seleo e na salincia desses
significados.
Por ltimo, apresentam-se as consideraes finais do trabalho articulando os trs
enquadramentos resultantes da anlise e trazendo avaliaes da cobertura jornalstica sobre
Dilma Rousseff no Jornal Nacional, bem como inferncias sobre as estratgias narrativas
acionadas pelos jornalistas na construo dessas notcias.
19
1 REFERENCIAL TERICO
A fim de atingir o objetivo de pesquisa proposto na introduo, procura-se, neste
captulo, apresentar um rpido panorama da visibilidade proporcionada pela televiso e, em
especial, pelo telejornalismo aos atores polticos e o papel dessa visibilidade para a construo
de suas imagens pblicas e suas reputaes. A partir disso, busca-se relacionar o paradigma
do enquadramento aos aspectos de construo da notcia atravs de trabalhos de socilogos e
pesquisadores da comunicao e do jornalismo que entendem a realidade como uma
construo social e o jornalismo como atividade que, ao mesmo tempo em que produz
esquemas que orientam a compreenso do mundo atravs de seus textos, tambm constri
notcias com base neste mundo dado a priori.
Na primeira parte, sero destacados aspectos relevantes acerca da transformao da
visibilidade dos atores polticos com o advento da mdia de massa, em especial da televiso e
de seus contedos jornalsticos. O aporte terico encontra-se fundamentalmente em
Thompson (2002, 2009) e em suas consideraes acerca dos regimes de visibilidade poltica
na contemporaneidade. A forma como estes atores se comunicam com os cidados atravs da
televiso e do jornalismo ser relacionada formao de imagem pblica desses
representantes polticos (GOMES, 2004; WEBER, 2006, 2009), incluindo situaes em que
os contedos noticiosos podem ser prejudiciais para suas reputaes.
Na segunda parte, ser apresentado o enquadramento enquanto perspectiva terica
inserida dentro dos estudos relacionados ao jornalismo a saber, ao agenda-setting e s
teorias construcionistas. Uma reviso terica acerca da origem deste conceito (GOFFMAN,
1986) relacionada ao seu desenvolvimento dentro das pesquisas em jornalismo (TUCHMAN,
1983; HALL et al., 1993; GITLIN, 1980; GAMSON et al., 1992; ENTMAN, 1993;
SCHEUFELE, 1999; PORTO, 2004) ser elaborada para, ao final, apresentar a definio de
enquadramento jornalstico a ser operada neste estudo conectada muito mais a esquemas de
significado e interpretao fundados em mapas culturais do que a orientaes polticas
presentes no texto.
Por ltimo, defende-se que a formao de frames est relacionada viso dos
jornalistas enquanto comunidade interpretativa (ZELIZER, 2000) que compartilha padres de
avaliao sobre acontecimentos relevantes, e que os processos de seleo e salincia
(ENTMAN, 1993) que originam os enquadramentos jornalsticos esto ligados,
essencialmente, a dois saberes acionados na atividade de produzir a notcia: o saber de
20
procedimento e o saber de narrao (ERICSON, BARANEK, CHAN, 1987). Buscar-se-
explicitar algumas das operaes realizadas de forma consciente ou inconsciente pelos
jornalistas nesse processo de construo da notcia tendo como referncia autores como
Galtung e Ruge (1965), Molotoch e Lester (1974), Gaye Tuchman (1993), entre outros que
revisaram e atualizaram seus conceitos.
1.1 A televiso e a visibilidade poltica
Para entender a visibilidade dos atores polticos na atualidade, preciso partir da
transformao da natureza do que se pode chamar de publicidade, ligada s maneiras como
as pessoas e acontecimentos so tornados visveis a outros (THOMPSON, 2002). A distino
entre pblico e privado tem origens na Grcia Clssica e no incio do desenvolvimento do
direito romano, porm o importante entender como essa dicotomia assumiu novos contornos
na sociedade ocidental contempornea.
O que pblico, no sentido tomado aqui, o que visvel ou observvel, o
que desempenhado diante de espectadores, o que aberto para que todos, ou
muitos, possam ver, ouvir, ou ouvir falar a respeito. O que privado, em
contraste, o que escondido da vista, o que dito ou feito em segredo ou
entre um crculo restrito de pessoas. Nesse sentido, a dicotomia pblico-
privado tem a ver com publicidade versus privacidade, com abertura versus
sigilo, com visibilidade versus invisibilidade (THOMPSON, 2002, p. 64-65).
As transformaes sociais que moldaram a sociedade moderna, principalmente o que
diz respeito aos meios de comunicao, redefiniram as relaes entre vida pblica e privada e
criaram novos regimes de visibilidade, inexistentes anteriormente. Para entender as mudanas
na publicidade dos atores polticos preciso voltar-se aos desenvolvimentos ligados
inveno e explorao dos meios de comunicao e de difuso da informao.
Considerado um marco para a era moderna, o desenvolvimento dos tipos mveis em
metal fundido e da prensa por Johannes Gutenberg em torno de 1440 permitiram no apenas o
crescimento do mercado de livros no sculo XIV, mas tambm o surgimento dos primeiros
jornais regulares de notcias (ou corantos, como eram chamados) no sculo XVII. A
circulao destas formas primitivas de jornal ajudou a criar a percepo de um mundo de
acontecimentos muito distantes do ambiente imediato dos indivduos, mas que tinha alguma
21
relevncia potencial para suas vidas (THOMPSON, 2009, p. 65).
O advento da imprensa, portanto, alterou a noo de publicidade de um indivduo ou
de um evento. Antes, este conceito estava ligado partilha de um local comum. Tornava-se
pblico aquilo que acontecia diante de uma pluralidade de indivduos fisicamente presentes
no momento de sua ocorrncia. A essa publicidade tradicional de co-presena, relacionada
interao face a face, somou-se a publicidade miditica, no mais conectada a um lugar e
tempo comuns compartilhados por um determinado nmero de indivduos (THOMPSON,
2002, 2009).
Surge, ento, um novo tipo de relao entre representantes polticos e os cidados, a
quase-interao mediada. Inicialmente, alm de possibilitar a separao dos contextos
espaciais e temporais entre produo e recepo, uma de suas caractersticas a limitao das
possibilidades de deixas simblicas, visto que aqueles que produzem a mensagem no
conseguem aferir as reaes daqueles que as recebem. Entretanto, o seu carter monolgico
(que impossibilita o dilogo entre produtor e receptor) e a sua orientao para uma gama
indefinida de receptores em potencial que a distinguem da interao mediada realizada atravs
da troca de cartas e das chamadas telefnicos, por exemplo.
Esse novo regime de publicidade, possibilitado pelo desenvolvimento dos jornais e
que descolado do olhar (no sentido de ver alguma coisa em um tempo e lugar partilhados),
altera tambm a noo de formao de imagem pblica dos atores polticos. Entende-se a
imagem pblica como uma representao cognitiva universalizada acerca de um sujeito,
construda de forma ametdica (GOMES, 2004). De acordo com Wilson Gomes, ela seria um
complexo de informaes, noes e conceitos, partilhados por uma coletividade qualquer que
caracterizam o ator poltico por sua identidade moral e personalidade.
Os governantes, que at o advento dos meios de comunicao de massa eram visveis
apenas para aqueles com quem interagiam rotineiramente em um contexto face a face e que
ocasionalmente apareciam para seus sditos em cerimnias nas quais era reservada certa
distncia, puderam construir uma auto-imagem que poderia ser levada a outros em locais
distantes (THOMPSON, 2002, p. 67). Os desenvolvimentos do telgrafo e do telefone
representaram um grande avano tecnolgico e deram maior velocidade rede de informao
numa perspectiva transnacional. Porm, foi o advento do rdio e da televiso na primeira
metade do sculo XX em escala comercial que levou a publicidade dos atores polticos a
novos patamares.
A pouca ou nenhuma demora com que esses meios eletrnicos transmitiam
22
informao criou o que Thompson (2002) chamou de simultaneidade desespacializada, onde
eventos distantes podiam ser reportados ao mesmo tempo em que ocorriam. Mas talvez a
maior riqueza do rdio e da televiso seja sua possibilidade de inspiraes simblicas, que
permitem a reproduo de algumas caractersticas da interao face a face. O rdio, por
exemplo, possibilitou que a sonoridade da voz humana fosse transmitida a contextos
longnquos.
Foi a tev, no entanto, com a sua combinao de profuso visual e deixas auditivas,
que estabeleceu uma nova e distinta relao entre publicidade e visibilidade. Na era da
televiso, publicidade miditica crescentemente definida pela visibilidade no sentido restrito
de viso (a capacidade de algo ser visto com os olhos), embora esse novo campo de viso seja
completamente diferente do campo de viso que as pessoas tm em seus encontros cotidianos
com os outros (THOMPSON, 2002, p. 68).
No regime de publicidade permitido pela televiso, as aes so visveis a um grande
nmero de indivduos, situados em diferentes e distantes contextos, alterando as condies
sob as quais os atores polticos se apresentam e administram sua visibilidade. Ao mesmo
tempo em que o lder se dirige a essa audincia sem lugar, cria-se um novo tipo de
intimidade na esfera pblica, um local onde ele pode se comunicar com diferentes sujeitos
como se fossem pessoas da famlia ou amigos, como descreve Thompson (2002). Os
telespectadores, apesar de no poderem escolher o ngulo de viso, podem observar os gestos
e falas de seus lderes, o que antes era reservado s relaes ntimas dos atores polticos.
Esta sociedade, que tornou cada vez mais comum aos lderes polticos revelarem
aspectos de si mesmos ou de sua vida pessoal, Thompson (2002) chamou de sociedade da
automanifestao. Tal intimidade possibilitada pelas novas tecnologias miditicas permite (e
at exige) que os atores polticos se mostrem no apenas como lderes e representantes de uma
nao, mas tambm como seres humanos, pessoas comuns que revelam seletivamente o que
antes era considerado privado.
O que se perdeu nesse processo foi algo da aura, da majestade, que circundava
no passado os lderes polticos e as instituies, uma aura que era garantida em
parte pelo isolamento dos lderes e a distncia que mantinham das pessoas que
governavam. O que se ganhou foi a capacidade de falar diretamente s
pessoas, de aparecer diante delas como seres humanos em carne e osso, com
quem os polticos pudessem desenvolver uma empatia, ou mesmo uma
simpatia, de dirigir-se a elas no como a um sdito, mas como a um amigo.
Em sntese, os lderes polticos adquiriram a capacidade de se apresentarem
como um de ns (THOMPSON, 2002, p. 69).
23
Na verdade, nessa sociedade da automanifestao, a administrao da imagem pblica
poltica tornou-se cada vez mais complexa. Visto que na visibilidade da comunicao de
massa que os argumentos podero adquirir maior repercusso e credibilidade (WEBER,
2006, p. 120), a produo e o controle da imagem pblica nos meios de comunicao tarefa
vital para a prtica poltica.
[...] o desejo de visibilidade de uma instituio e a obteno/manuteno de
uma imagem slida, favorvel e em longo prazo, depende da compreenso e
do equilbrio da equao entre a identidade de quem quer se tornar
publicamente visvel (nvel aproximado de verdade e realidade), e a
visibilidade (diferentes mediaes e dependente dos media) e a credibilidade
(nvel suficiente para manter disputas na mdia e na poltica) (WEBER, 2006,
p. 131).
Sabe-se que os pactos e disputas polticas da visibilidade no dependem apenas do
jornalismo e da comunicao miditica e esto em jogo tambm na comunicao poltico-
partidria e na comunicao pblica (WEBER, 2009). Porm, como se mencionou na
introduo, na primeira instncia de visibilidade mencionada que no h deciso fechada
sobre quais fatos, sujeitos ou instituies sero expostos. O jornalismo tem a capacidade de
reforar a imagem pblica produzida e administrada pelo campo poltico, mas tambm tem o
poder de constru-la de maneira totalmente dissociada ao que pretendiam o poltico e sua
equipe. possvel ainda silenciar e omitir, o que torna rdua (mas no impossvel) a tarefa de
se relacionar com os eleitores, objetivo final daqueles que buscam apoio e votos (GOMES,
2004). Enfim, o jornalismo:
. o espao que vigia, critica e expe aes e informaes geradas por
polticos, partidos e instituies do campo poltico. Mesmo estabelecendo
pactos econmicos e ideolgicos com determinadas instituies e sujeitos
polticos, nesse ambiente que prevalece a credibilidade. A instncia que
julga e tem o poder de propiciar visibilidade (WEBER, 2009, p. 87).
atravs da vigilncia dos espaos miditicos, em particular do jornalismo, que as
atitudes dos atores polticos so avaliadas e interpretadas e chegam ao conhecimento dos
cidados. Qualquer ato de violao do que considerado moralmente aceito em termos de
conduta nos mbitos econmico, sexual ou poltico pode tornar-se um escndalo, com
potencial de prejudicar a reputao dos membros do campo.
A reputao um aspecto do capital simblico dos atores polticos, formado pela
acumulao de prestgio, reconhecimento e respeito atribudos a ele. Segundo Thompson
24
(2002), a relativa apreciao e estima concedida a um indivduo ou instituio por outros.
Pode ser especfica da competncia dos atores polticos ou relativas ao seu carter. No
primeiro caso, consideram-se a demonstrao de habilidades no exerccio do cargo. J no
segundo caso, avalia-se o representante por suas caractersticas de fidedignidade e
confiabilidade, probidade e integridade. No necessrio demonstrar nenhuma competncia
especfica a fim de conseguir uma reputao de bom carter, mas voc deve demonstrar um
padro de comportamento atravs do tempo que os outros possam julgar ser digno de estima
(THOMPSON, 2002, p. 297).
A questo da reputao fundamental devido a um fortalecimento da poltica de
confiana, onde os representantes polticos no so avaliados somente pelos partidos aos quais
fazem parte, mas tambm pelo seu grau confiabilidade individual. A visibilidade
proporcionada pelo campo jornalstico e a funo deste de agir como co de guarda da
democracia colocam os atores polticos em testes de credibilidade com vistas a garantir que
suas promessas polticas sero cumpridas (THOMPSOM, 2002). Escndalos polticos, por
exemplo, podem ser esvaziadores de reputao e, por conseqncia, de confiana.
Como j se argumentou, em grande parte atravs das notcias que os cidados iro
tomar conhecimento das atitudes de seus representantes, iro julg-los confiveis ou no. O
texto noticioso capaz de produzir interpretaes e construir significados sobre os atores
polticos que, em ltima instncia, sero relevantes para a construo da reputao dos
membros do campo poltico, do grau de credibilidade atribudo a eles e do estabelecimento de
uma relao de confiana ou no.
Tendo isso em vista, interessa a partir de agora compreender como o jornalismo define
nas notcias as circunstncias dos acontecimentos reportados e de que forma so produzidos
significados sobre determinado ator poltico. Ou seja, de que maneira as aes dos atores
polticos so interpretadas luz dos saberes dos jornalistas enquanto comunidade
interpretativa, produzindo significados de (in)confiabilidade sobre eles no texto noticioso.
Interessam saber como so construdos os enquadramentos jornalsticos e de que forma eles se
apresentam nas notcias.
25
1.2 Enquadramento e jornalismo
A perspectiva terica do enquadramento1 nos estudos relacionados ao jornalismo surge
da imbricao de duas transformaes ocorridas no final do sculo XX: a redescoberta do
poder do jornalismo atravs da hiptese do agendamento; e o entendimento da notcia no
mais como um espelho da realidade, mas como uma construo (TRAQUINA, 2005, 2008).
Compreender essas duas mudanas essencial para trabalhar sob a tica do enquadramento
jornalstico, entendido aqui como uma ideia organizadora central formada por quadros de
significado e interpretao presentes no texto noticioso que se funda em mapas culturais
supostamente consensuais.
A hiptese inicial do agendamento baseada na influncia do jornalismo2 na opinio
pblica, ou seja, na transferncia de temas abordados com destaque e frequncia pelos
veculos noticiosos para aqueles tpicos que os cidados consideram importantes
(McCOMBS, 2009) representou uma virada nas teorias dos efeitos limitados dominantes
entre as dcadas de 1940 e 1960. Conforme Traquina (2000), redescobre-se o poder do
jornalismo atravs de pesquisas empricas que buscavam examinar o papel de jornais, revistas
e telejornais na formao e na mudana de cognies. De acordo com a hiptese inicial do
agenda-setting, o jornalismo no diz s pessoas o que pensar, mas diz sobre o que pensar
(COHEN, 1963 apud McCOMBS; SHAW, 2000).
Segundo as revises sobre os estudos em agendamento conduzidas por Traquina
(2000) e McCombs (2009), entre os anos 1970 e 1980, esta hiptese foi expandida ao
iniciarem investigaes sobre a maneira de apresentao das notcias e a sua relao com a
formao da opinio pblica acerca de atributos de candidatos ou temas. Assim, concluiu-se
atravs de novas pesquisas que o enquadramento jornalstico sobre temas ou pessoas tem
reflexos na maneira pela qual o pblico ir compreend-los e formar imagens sobre eles.
Portanto, as notcias, sob essa perspectiva, no nos diriam apenas sobre o que pensar, mas
tambm como pensar. Essa hiptese sustenta-se principalmente em um contexto de
1 No Brasil, muitas vezes, os autores utilizam os termos frame, framework, framing e frame analysis sem fazer
distino entre essas expresses em portugus. Entende-se, neste trabalho, frame e framework como sinnimos
de enquadramento, e framing como o processo de construo do enquadramento. Considera-se frame analysis a
pesquisa sobre frames ou a anlise de frames. 2 Os primeiros autores do agenda-setting, Maxwell McCombs e Donald Shaw, bem como a maioria dos
pesquisadores norte-americanos, utilizam o termo mdia e agenda miditica em seus estudos. Porm, suas
pesquisas debruam-se sobre os contedos produzidos pelo jornalismo. Assim, seguindo o exemplo de Nelson
Traquina (2000), este trabalho ir se referir ao jornalismo e agenda jornalstica e sua relao com as agendas
polticas e a agenda pblica.
26
democracia em uma sociedade de massas, na qual a maior parte do nosso conhecimento sobre
os atributos dos candidatos polticos, desde sua ideologia poltica at sua personalidade, vem
das matrias noticiosas, conforme se explorou na seo anterior.
Esses enquadramentos jornalsticos que esto presentes nas notcias e que
influenciam a forma como os indivduos compreendem a realidade no esto inseridos
dentro de uma tica de efeitos imediatos e ilimitados como se pensava nas primeiras teorias
dos efeitos. O paradigma do enquadramento caracterizado pelas ideias construcionistas, que
conferem ao jornalismo um forte poder, porm restrito (SCHEUFELE, 1999). Forte porque
tem a capacidade de construir a realidade social atravs da forma como as notcias apresentam
os acontecimentos. Mas restrito devido capacidade cognitiva dos indivduos frente ao texto
noticioso e mtua interferncia entre esta realidade socialmente construda e a notcia. Ao
mesmo tempo em que a notcia constri significados sobre a realidade, os significados que
circulam na sociedade interferem na produo da notcia3.
Apesar do reconhecimento de que o pblico no passivo e de tomar como hiptese
de trabalho a influncia dos contedos noticiosos na formao da agenda pblica, a pesquisa a
ser conduzida acerca dos enquadramentos construdos sobre atores polticos nas notcias do
telejornalismo no est inserida no campo da psicologia social e tampouco pretende fazer uma
anlise de agendamento. A preocupao est em entender os enquadramentos que permeiam
as notcias sobre determinado ator poltico atravs de uma anlise que busca os quadros de
significado e interpretao sobre esta figura pblica no texto noticioso e caminha para a
relao entre a idia organizadora central apresentada no texto e os processos de construo
da notcia.
Devido aos diferentes propsitos das anlises de enquadramento que ultrapassam o
mbito do jornalismo e da mdia e se originam em uma perspectiva relacional, que busca
compreender de que maneira os indivduos organizam suas experincias cotidianas e atribuem
sentido a elas um desafio operar uma pesquisa com este referencial. Muitos pesquisadores
da rea de comunicao chamam ateno para esta dificuldade, referindo-se ao
enquadramento como um paradigma fraturado (ENTMAN, 1993), apontando sua impreciso
terica e emprica (SCHEUFELE, 1999) e alertando para a necessidade de especificar o nvel
de anlise do conceito (PORTO, 2004). Com a finalidade de consolidar uma definio de
enquadramento e o nvel de anlise adequado aos objetivos de pesquisa delineados
3 Essa perspectiva est assentada, em grande parte, nas ideias de Berger e Luckmann (2009). Para os autores, o
que socialmente entendido como realidade produto de uma construo objetivada do mundo da vida
cotidiana. Nesse contexto, as instituies sociais como o jornalismo tm o papel de reforar ou readequar esta realidade.
27
anteriormente, apresentar-se- abaixo uma articulao entre o trabalho fundador da frame
analysis, suas primeiras aplicaes dentro dos estudos em jornalismo e os avanos
apresentados por revises tericas recentes na rea.
A anlise de enquadramento surge a partir de uma perspectiva situacional que procura
entender como as pessoas percebem o mundo e o que real; ou seja, est preocupada em
desvendar como elas organizam suas experincias cotidianas. Erving Goffman, socilogo que
primeiro desenvolve o conceito, em 1973, defende que, quando um sujeito depara-se com
qualquer situao, ele se pergunta O que est acontecendo aqui? (1986). O que auxilia este
sujeito na interpretao daquele evento do qual ele toma parte so os enquadramentos.
Eu compreendo que definies de uma situao so construdas de acordo com
princpios de organizao que governam eventos pelo menos os sociais e com nosso envolvimento subjetivo neles; enquadramento a palavra que
utilizo para me referir a esses elementos bsicos que consigo identificar. Essa
a minha definio de frame. Minha frase anlise de frame uma expresso que se refere ao exame da organizao da experincia nestes termos
(GOFFMAN, 1986, p. 10-11, traduo nossa4).
Na perspectiva inaugural do conceito, Goffman enfatiza uma compreenso de frames
em nvel microssociolgico, na qual eles so entendidos como padres que organizam a
cognio da realidade, acionados e negociados em processos de interao face a face. Porm,
conforme observa Berger (1986), seu trabalho consegue conectar-se com a macrossociologia
na medida em que reconhece que as interpretaes no dependem somente de indivduos, mas
de um grupo social especfico no qual eles esto inscritos (GOFFMAN, 1986, p. 27).
Portanto, apesar de Goffman estar interessado na organizao social da experincia cotidiana
e na maneira como os enquadramentos so negociados em situaes de vulnerabilidade
(jogos, teatro, enganos), suas ideias so possveis de serem relacionadas com a teoria de
Berger e Luckmann (2009) sobre a construo social da realidade na medida em que partem
dos mesmos autores Alfred Schutz e George Herbert Mead para explicar como os
indivduos compreendem o mundo a sua volta5.
atravs da conexo entre essas duas perspectivas que Gaye Tuchman (1983) traz
uma relevante aproximao do conceito de enquadramento atividade de construo da
4 Texto original: I assume that definitions of a situation are built up in accordance with principles of organization which govern events at least social ones and our subjective involvement in them; frame is the word I use to refer to such of these basic elements as I am able to identify. That is my definition of frame. My
phrase frame analysis is a slogan to refer to the examination in these terms of organization of experience. 5 A grande diferena entre autores se d na compreenso de Berger e Luckmann (2009) de que o mundo da vida
cotidiana se estabelece como a realidade por excelncia e, no entendimento de Goffman (1986), mltiplas
realidades se traduzem de um mundo para outro sem haver uma supremacia entre eles (TUCHMAN, 1983).
28
notcia. Ela articula a perspectiva de Goffman, sobre enquadramento como princpio de
organizao que impe ordem sobre a experincia direta dos atores sociais, com o as noes
de Berger e Luckmann referentes ao estabelecimento de instituies sociais e o seu papel na
ordenao do mundo da vida cotidiana. A autora afirma que a notcia uma janela para este
mundo. Atravs de seu enquadramento, de sua moldura, o texto noticioso delineia este
mundo, ou seja, constri a realidade social. Para ela, o enquadramento das notcias depende
da atividade jornalstica, de suas restries organizacionais e do funcionamento do jornalismo
enquanto instituio capaz de objetivar significados sociais. H, porm, limites na proposta de
Tuchman. A autora, alm de no apresentar uma definio conceitual clara sobre
enquadramento, revelou pouco sobre as relaes entre o jornalismo e a construo dos frames
por sua viso ampla sobre a produo noticiosa, conforme observou Scheufele (1999).
Hall et al. (1993), apesar de no citarem Goffman (1986), fazem uma importante
contribuio para a operacionalizao do conceito de enquadramento dentro da pesquisa em
jornalismo. Segundo os autores, a produo social das notcias envolve um processo de
identificao e contextualizao que define os eventos relatados atravs de sua relao com
outros acontecimentos e os colocam num quadro de significao e interpretao familiar ao
pblico. Ou seja, os jornalistas utilizam quadros de referncia de fundo que constituem a
base do nosso conhecimento cultural, no qual o mundo social j est traado (HALL et al.,
1993, p. 226) para tornar o mundo sobre o qual eles produzem seus relatos inteligvel para o
pblico. A estes quadros de referncia de fundo d-se o nome mapas culturais do mundo
social, articulado pelos jornalistas em enquadramentos de significado e interpretao
presentes nas notcias.
Embora sua preocupao com a interao social face a face, Goffman (1986, p. 27)
tambm apontou para a existncia de um sistema de crenas, que ele chama de framework of
frameworks (enquadramento dos enquadramentos) recursos cognitivos compartilhados que
constituem um elemento central da cultura de um grupo particular. Este sistema seria formado
pelo conjunto dos enquadramentos primrios esquemas de interpretao de um evento em
particular que parecem no depender de interpretaes anteriores para aqueles que os
utilizam. Estes primary frameworks auxiliam os indivduos a localizar, perceber, identificar
e rotular uma srie de ocorrncias.
29
Tomados em conjunto, os enquadramentos primrios de um grupo social
especfico constituem um elemento central da sua cultura, especialmente na
medida em que trazem tona entendimentos sobre as principais classes de
esquemas, as relaes entre essas classes, e a soma total das foras e dos
agentes que estes desenhos interpretativos reconhecem estar solta no mundo
(GOFFMAN, 1986, P. 27, traduo nossa6).
Pode-se afirmar, ento, que tanto Hall et al. (1993) quanto Goffman (1986) apontam
para saberes compartilhados pelos membros de uma cultura, que sero utilizados para dar
sentido quilo que acontece a sua volta. Ambos afirmam tambm que existem mapas
culturais muito diferentes numa sociedade (p. 226) e que h um compartilhamento
incompleto desses recursos cognitivos (p. 27), respectivamente. Ou seja, reconhecem que o
dissenso est presente nos grupos sociais.
No entanto, haveria um enquadramento concordante bsico e mais lato (HALL et
al., 1993, p. 227) que est assentado em uma suposta natureza consensual de sociedade, onde
aquilo que nos aproxima enquanto participes de uma mesma cultura seria maior do que aquilo
que nos divide. As notcias, para os autores culturalistas, no apenas so construdas pelos
jornalistas a partir destes consensos, mas tambm ajudam a difundi-los e a refor-los
atravs de suas construes narrativas. As discordncias, segundo eles, tm espaos
institucionalizados para serem abordadas. Ou seja, mesmo sendo admitidas pelos participantes
do grupo, em sociedades capitalistas organizadas e democrticas, as divergncias devem estar
em espaos legtimos que buscam reconcili-las. O jornalismo seria um destes espaos, no
qual os dissensos so expostos de forma a serem discutidos e apaziguados.
Ao apontar o anormal, o desvio e o dissenso; a notcia refora o que normal, o que
regra, o que consenso. Desta maneira, o jornalismo enquanto instituio social legitimada
encontra-se em um lugar privilegiado para a organizao do mundo social, ao mesmo tempo
em que orientado por ele. Ao falar sobre seu objeto de pesquisa emprico recortes de
jornal que se constituem em fait-divers, conforme definio de Roland Barthes7 Goffman
(1986) ressalta que o entendimento do mundo precede essas estrias e determina quais sero
contadas e de que forma.
6 Texto original: Taken all together, the primary frameworks of a particular social group constitute a central element of its culture, especially insofar as understandings emerge concerning principal classes of schemata, the
relations of these classes to one another, and the sum total of forces and agents that these interpretative design
acknowledge to be loose in the world. 7 Informao imanente, classificada como variedades. Numa s palavra, seria uma informao monstruosa, anloga a todos os fatos excepcionais ou insignificantes, em suma inominveis, que se classifica em geral
pudicamente sobre a rubrica dos Varia (BARTHES, 1982, p. 57).
30
O enredo desses eventos reportados responde plenamente a nossas demandas que no so por fatos, mas por tipificaes. A sua narrao demonstra o poder
dos nossos entendimentos convencionais para lidar com os potenciais bizarros
da vida social, com os mais distantes mbitos da experincia. O que aparenta,
ento, ser uma ameaa nossa forma de compreender o mundo passa a ser
uma defesa engenhosamente selecionada deste mundo. Ns lanamos essas
estrias ao vento, elas impedem o mundo de nos perturbar (GOFFMAN, 1986,
p. 14-15, traduo nossa8).
Hall et al. (1993) extrapolam a anlise centrada nos fait-divers e comentam a
capacidade do jornalismo em tornar compreensvel o que eles chamam de realidade
problemtica. Esta seria a grande funo dos quadros de significado e interpretao
apresentados nas notcias. Em uma sociedade na qual h uma expectativa de consenso, de
rotina e de ordem, eventos problemticos so desestabilizadores se no forem delineados
dentro de conhecimentos convencionais. O jornalismo exerce, ento, duas funes: define
quais so os acontecimentos significativos e apresenta interpretaes sobre como
compreend-los dentro dos mapas culturais consensuais. Implcitas nessas interpretaes
esto as orientaes relativas aos acontecimentos e pessoas ou grupos nelas envolvidos
(HALL et al., 1993, p. 228). So esses esquemas de significado e interpretao que conduzem
o entendimento sobre determinado ator poltico que interessam a este trabalho.
Apesar dos avanos oferecidos pelos trabalhos de Gaye Tuchman (1983) e Hall et al.
(1993) sobre a formao dos enquadramentos pelas notcias que considera tanto os aspectos
sociais quanto os aspectos organizacionais e profissionais no campo uma definio do termo
nos estudos sobre comunicao no foi elaborada por estes pesquisadores. Esse avano
proposto por Todd Gitlin (1980), que parte do pensamento dos autores mencionados
anteriormente Goffman, Hall e Tuchman para elaborar um conceito de enquadramento.
Frames miditicos, em grande medida no mencionados e no reconhecidos,
organizam o mundo tanto para os jornalistas que os relatam quanto, e em um
grau importante, para ns que contamos com seus relatos. Frames miditicos
so padres persistentes de cognio, interpretao e apresentao, de
seleo, nfase e excluso, no qual os manejadores de smbolos
rotineiramente organizam o discurso, tanto verbal quanto visual (GITLIN,
1980, p. 7, traduo nossa9).
8 Texto original: The design of theses reported events is fully responsive to our demands which are not for facts but for typifications. Their telling demonstrates the power of our conventional understandings to cope with
the bizarre potentials of social life, the furthest reaches of experience. What appears, then, to be a threat to our
way of making sense of the world turns out to be an ingeniously selected defense of it. We press these stories to
the wind; they keep the world from unsettling us. 9 Texto original: Media frames, largely unspoken and unacknowledged, organize the world both for journalists who report it and, in some important degree, for us who rely on their reports. Media frames are persistent
patterns of cognition, interpretation, and presentation, of selection, emphasis, and exclusion, by which symbol-
handlers routinely organize discourse, whether verbal or visual.
31
A definio de Gitlin relevante j que rene os principais aspectos do
enquadramento trabalhados pelos autores que o antecedem. Ao ressaltar que os frames
produzidos pelo jornalismo so em grande medida no mencionados e no reconhecidos
aponta-se para a caracterstica de que os quadros primrios so operados facilmente pelos
atores sociais, mesmo que estes no consigam identific-los (GOFFMAN, 1986). Ou seja, os
frames construdos na atividade jornalstica no so necessariamente intencionais, podem ser
inconscientes (SCHEUFELE, 1999) na medida em que eles fazem parte da cognio dos
jornalistas. Esta observao fundamental, visto que neste trabalho busca-se apresentar uma
viso complexa da construo da notcia, que foge da ideia que ela produto de uma simples
manipulao dos fatos por parte dos jornalistas ou das empresas s quais pertencem.
Alm da capacidade dos frames de organizao do mundo para os produtores da
notcia e para o pblico, abordada anteriormente, Gitlin (1980) tambm destaca o papel dos
jornalistas como manejadores de smbolos que organizam o discurso verbal e visual atravs
de processos que obedecem a certos padres. Para ele, os enquadramentos permitem o
processamento de grandes quantidades de informao rapidamente e de forma rotineira pelos
os profissionais que trabalham com as notcias. As informaes so reconhecidas pelos
jornalistas, designadas a categorias cognitivas e embaladas de forma a abastecerem a
audincia. Esses procedimentos que auxiliam o jornalista a empacotar as notcias so
chamados por Robert Entman (1993) de seleo e salincia.
O processo de enquadramento envolve essencialmente seleo e salincia.
Enquadrar selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida e torn-
los mais salientes em um texto comunicativo, de forma a promover
determinada definio de um problema, uma interpretao causal, uma
avaliao moral e/ou uma recomendao de tratamento para o item descrito
(ENTMAN, 1993, p. 52, traduo nossa10
).
Em relao ao primeiro aspecto ressaltado pelo autor seleo e salincia , pode-se
dizer que a construo do enquadramento depende de escolher e destacar alguns atributos dos
eventos reportados de forma consciente ou inconsciente pelo jornalista. O processo de seleo
pressupe incluso e excluso, visto que selecionar no somente incorporar determinados
aspectos da realidade no texto noticioso, tambm omitir outros. J a salincia est
relacionada ao destaque dado a certos atributos dos acontecimentos atravs da localizao de
10 Texto original: Framing essentially involves selection and salience: To frame is to select some aspects of a perceived reality and make the more salient in a communicating text, in such way as to promote a particular
problem definition, causal interpretation, moral evaluation, and/or treatment recommendation for the item
described.
32
uma informao no texto, da sua repetio neste texto ou em um conjunto de textos e na
associao desta informao destacada a smbolos e valores culturalmente familiares11
.
O segundo aspecto apontado por Entman (1993) centra-se na construo de um
argumento atravs do estabelecimento de um problema e da apresentao de causas,
avaliaes e solues para este. De acordo com o autor, os enquadramentos determinam o que
um agente causal est fazendo e quais so os custos e os benefcios dessas aes, medidos de
acordo com valores culturais compartilhados. O jornalista identifica um problema e suas
causas, faz avaliaes morais sobre seus agentes e seus efeitos, e pode sugerir tratamentos
para ele. Como foi dito anteriormente, acredita-se que estas definies estabelecidas no texto
noticioso esto baseadas em um suposto consenso social sobre o que normal e regular, no
que se pensa saber sobre a sociedade (HALL et al., 1993). Dessa maneira, a ruptura e o
dissenso destacado nas notcias apontam na direo de um consenso. Neste sentido, o
problema e as avaliaes feitas sobre ele, quando presentes de forma reiterada nas notcias,
podem orientar a compreenso da audincia sobre determinado ator poltico.
Gamson et al. (1992) identificam o enquadramento como um princpio organizador
central que une e d coerncia e significado a um conjunto diverso de smbolos. Para os
autores, tambm preciso especificar o que se entende por frame pela pluralidade do conceito
aplicado nas pesquisas sobre mdia. Considera-se aqui que o enquadramento o princpio
organizador central formado a partir de diversos quadros de significado e interpretao
manifestos no texto. Esse enquadramento funda-se em mapas culturais supostamente
consensuais que organizam o mundo tanto para os jornalistas que os produzem quanto para o
pblico. Os manejadores de smbolos os constroem a partir de conhecimentos prvios sobre o
grupo social no qual esto inseridos, de forma a fazer avaliaes sobre os acontecimentos que
reportam; e de saberes profissionais que os auxiliam a selecionar e salientar determinados
aspectos da realidade.
Pelo que foi exposto at aqui sobre enquadramento, esta pesquisa est inserida no que
Scheufele (1999), ao fazer uma classificao dos trabalhos com nfase nesta perspectiva
terica, categorizou como media frames as a dependent variable, ou seja, frames miditicos
como uma varivel dependente. A ideia de frame miditico centra-se na investigao de como
11 A salincia no dada automaticamente na notcia, ela produto da interao do texto com a audincia. Ou
seja, os indivduos, ao lerem as notcias, acionam uma cadeia de conhecimentos prvios para compreender e
interpretar aquele acontecimento. Nem todos, porm, iro enquadrar os acontecimentos relatados da mesma
forma. Como no iremos trabalhar com a formao dos enquadramentos individuais (ideias que guiam o
processamento de informaes pelas pessoas), iremos procurar nas notcias do telejornal estruturas que orientem,
de forma reiterada, a compreenso da audincia sobre o evento reportado na notcia atravs da apresentao de
determinado enquadramento no texto.
33
os enquadramentos so incorporados ou se manifestam no texto. Como este trabalho est
focado na notcia produzida por jornalistas e no em contedos produzidos pela mdia em
geral, o termo a ser utilizado daqui em diante ser frame jornalstico.
Nesta tipologia delineada pelo professor norte-americano, considera-se ainda que os
frames presentes nas notcias dependem de alguns aspectos para a sua formao. Assim, os
pesquisadores que atuam nesta linha esto preocupados em descobrir que fatores influenciam
a maneira como os jornalistas enquadram determinados temas, em estabelecer como esse
processo funciona e em determinar quais so os frames que os jornalistas utilizam.
Para os propsitos aqui apresentados, buscar-se- determinar os enquadramentos
construdos nas notcias sobre certo ator poltico e relacionar a forma como estes frames se
manifestam no texto ao processo de construo da notcia. Como no ser conduzido um
estudo etnogrfico sobre a produo noticiosa, utilizaremos os fatores que podem influenciar
a formao de enquadramentos de acordo com o que j foi estabelecido por outros
pesquisadores.
Segundo a reviso de Scheufele (1999), para o exame de frames jornalsticos, os
aspectos que resultam na formao dos enquadramentos podem ser divididos em dois: rotinas
sociais e rotinas profissionais dos jornalistas. Acredita-se que essas rotinas sociais esto
ligadas a noo de que os jornalistas so uma comunidade interpretativa que partilha padres
de significao e interpretao baseados em supostos consensos sociais e que atravs das
rotinas profissionais especialmente aquelas prticas acionadas como parte de seus saberes
de procedimento e narrao que os processos de seleo e salincia essenciais ao framing
atuam.
1.3 Os jornalistas e suas rotinas sociais e profissionais
Sobre as rotinas sociais, pode-se dizer que os jornalistas, no contexto ao qual se refere
esta pesquisa, fazem parte de uma sociedade democrtica moderna de natureza supostamente
consensual, que partilha mapas culturais acionados na significao e interpretao do que
acontece a sua volta. Dividem valores e normas sociais com outros membros da cultura na
qual esto inseridos. Porm, alm de integrarem este ambiente social maior, eles tambm
participam de uma tribo jornalstica que possui uma forma especfica de ver o mundo
(TRAQUINA, 2008), uma comunidade interpretativa unida por noes compartilhadas da
34
realidade (ZELIZER, 2000). Segundo a figura de linguagem proposta por Pierre Bourdieu
(1997), os jornalistas possuem culos que os permitem ver certas coisas da maneira como
as veem. Com estes culos, eles operam uma seleo daquilo que enxergam e uma construo
do que selecionado. Sob essa perspectiva, o jornalismo no apenas uma profisso,
tambm um conjunto de pessoas unidas por um saber partilhado e por interpretaes coletivas
de acontecimentos pblicos relevantes.
De acordo a viso desenvolvida por Barbie Zelizer (2000) sobre os jornalistas
enquanto comunidade interpretativa, o grupo estabelece atravs de associaes informais
convenes em grande medida tcitas e negociveis sobre quais so as prticas adequadas
profisso. Por meio de interpretaes realizadas em um tempo duplo um modo
interpretativo local e um modo interpretativo durativo , os jornalistas definem e redefinem a
maneira como reconhecem os acontecimentos significativos; criam, experimentam e falam
sobre as notcias. Comentar as coberturas jornalsticas de eventos atuais e reinterpretar a
maneira que as notcias eram tratadas no passado luz de definies contemporneas so duas
atividades que marcam a percepo dos jornalistas sobre os eventos considerados relevantes e
sobre como relat-los no momento presente. atravs desse discurso sobre o modo de
construir a notcia que se estabelece uma cultura jornalstica, dotada de valores e de saberes
especficos mais ou menos institucionalizados em rotinas profissionais que, postos em
relao, ajudam a determinar os enquadramentos jornalsticos.
Ericson, Baranek e Chan (1987) j haviam apontado a importncia da troca de relatos
entre jornalistas no processo de ensinar e lembrar os colegas sobre o que considerado certo e
errado em determinadas circunstncias e quais so as provveis consequncias de
determinadas aes. Atravs de uma articulao verbal contnua sobre o conhecimento
exigido para alcanar um bom desempenho no trabalho formado um vocabulrio de
precedentes. Este rene a sabedoria do ofcio, mobilizada para o produto final do jornalismo
a notcia , e sistematizada pelos autores em trs tipos: saber de reconhecimento, saber de
procedimento e saber de narrao.
A aquisio desses saberes, para Ericson, Baranek e Chan (1987) se daria de forma
tcita. Eles circulariam atravs desse processo de contao de estrias e no seriam
formalmente expressos. Apesar de este trabalho estar de acordo com a viso de que muitos
saberes so transmitidos de maneira informal nas relaes entre jornalistas, tambm se
ressalta o crescimento de meios institucionalizados de circulao de prticas e valores do
jornalismo desde que os autores canadenses fizeram sua investigao em redaes de jornais e
emissoras de televiso no Canad. O prprio ensino universitrio, o aumento da pesquisa
35
acadmica, os cdigos de tica, bem como os manuais de redao, so indicadores de um
processo de profissionalizao (TRAQUINA, 2005) e se configuram em meios formais de
aquisio dos saberes de reconhecimento, procedimento e narrao. Compartilha-se, ento, da
assero de Zelizer (2000, p. 34) sobre a rede informal de jornalistas produzir um discurso
como forma de assimilar elementos dessa prtica negligenciados pelas interpretaes
formalizadas da profisso.
Esta comunidade interpretativa faz uso no apenas seus cdigos deontolgicos e seus
saberes de construo da notcia, como tambm est sujeita aos valores da empresa na qual
trabalha. Em relao poltica editorial, Breed (1993) afirma que, atravs de um regime de
recompensa e punio, o jornalista socializado com as normas editoriais da empresa, por
vezes em detrimento de valores pessoais ou profissionais que tenha trazido consigo. Ou seja,
ele tende a conformar-se com a orientao poltica da instituio para a qual trabalha, por
temer sanes, por experimentar um sentimento de obrigao com os superiores, por desejar
promoes e ascenso profissional ou por no perceber resistncia dos outros jornalistas em
relao a esta poltica. O prazer da atividade jornalstica e a notcia como um valor um
objetivo a ser conquistado pode fazer com que o jornalista se adapte aos interesses da
empresa e construa enquadramentos alinhados poltica editorial.
Observa-se, entretanto, que junto complexidade da construo da notcia (pela
interao entre as regras formalizadas da profisso e as noes tcitas que preenchem suas
lacunas), h um espao de oposio autoridade hierrquica. Os jornalistas encontram
brechas, baseadas em seus saberes compartilhados, que permitem desvios da poltica editorial.
Vale destacar que as normas desta poltica editorial nem sempre so claras, permitindo
margem de manobra ao jornalista; e que o profissional tem opes de seleo em muitas
etapas pode escolher quem entrevistar, que perguntas fazer e que itens realar na notcia.
Afirma-se, ento, que as rotinas sociais dos jornalistas podem ser divididas em trs
fatores. O primeiro diz respeito a sua insero em uma sociedade que compartilha de mapas
culturais supostamente consensuais. O segundo refere-se a sua participao em uma
comunidade interpretativa que possui cdigos deontolgicos e saberes mais ou menos
institucionalizados sobre o que notcia e como report-la. O terceiro est atrelado insero
deste jornalista em uma organizao dotada de uma poltica editorial, que pode confrontar-se
com os valores da comunidade ou limitar sua atuao. Esses trs fatores ajudam a construir os
saberes de reconhecimento, de procedimento e de narrao dos jornalistas.
O saber de reconhecimento diz respeito habilidade profissional de distinguir quais
so os acontecimentos que tm potencial de virar notcia. Ele est relacionado a critrios de
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noticiabilidade substantivos, que justificam a escolha de determinado evento em detrimento
de outros por caractersticas que o prprio acontecimento apresenta. O saber de procedimento
encontra-se na aptido do jornalista em pensar e operacionalizar tcnicas e condutas
relacionadas recolha e verificao dos fatos. Esto includas neste quesito formas de lidar
com restries organizacionais e mobilizar seus conhecimentos acerca das fontes. J o saber
de narrao manifesta-se na capacidade de compilar todas as informaes recolhidas e
transform-las em um relato noticioso coerente e em tempo hbil. Para isso, os jornalistas
dispem de estruturas narrativas previamente estabelecidas.
Visto que no interessa para este trabalho os fatores que levam os jornalistas a noticiar
um evento e sim os esquemas de significado e interpretao presentes nas notcias, no sero
exploradas as questes relacionadas ao saber de reconhecimento. O foco est nos saberes de
procedimento e de narrao, nos quais se do os processos de seleo e salincia necessrios
ao framing, respectivamente.
Conforme se apontou anteriormente, selecionar incorporar determinados aspectos da
realidade no texto noticioso
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