OS TEXTOS DE COROAÇÃO COMO FONTES PARA O ESTUDO DAS
RELAÇÕES ENTRE REPRESENTAÇÕES RÉGIAS E VESTUÁRIO
NA INGLATERRA MEDIEVAL
Maria de Nazareth Corrêa Accioli Lobato
UFRJ
Na Idade Média, teólogos e juristas acreditavam que a realeza era exercida por
Deus, detentor de um poder perfeito, sem começo, sem fim e sem limites. Todo poder
dele emanava e a ele estava submetido (BEAUNE, 1997, p. 85), uma supremacia cuja
imagem se encontra descrita, com bastante propriedade, nos dois versículos iniciais do
Salmo 93: “Iahweh é rei, vestido de majestade,/ Iahweh está vestido, envolto em poder./
Sim, o mundo está firme, jamais tremerá./ Teu trono está firme desde a origem / e desde
sempre tu existes.” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 962). Em consequência, o
status político dos reis terrestres se devia unicamente ao privilégio a eles concedido por
Deus através de seus representantes, os clérigos. Era função dos reis defender a Igreja
mediante o uso da força física e da violência. Em troca, seu poder era sacralizado pela
unção nas cerimônias de coroação, objetivando a submissão não apenas dos súditos ao
novo rei, mas também a do rei à Igreja (LE GOFF, 1984, v. II, p. 27-28). Desse modo,
era através da unção que o rei se legitimava como representante de Deus e principal
instrumento do esquema divino para a ordenação do mundo (WARREN, 1977, p. 241-
242), tornando-se, no dizer de Jacques Le Goff, “a imagem de Deus: rex imago Dei”
(2006, v. II, p. 396).
Voltemos aos versos iniciais do Salmo 93, onde vemos a ênfase concedida ao
vestuário como componente de glorificação do poder real divino: Iahweh está “vestido
de majestade”, “está vestido, envolto em poder”. Ora, se através da unção o rei se
tornava representante de Deus e de sua imagem, não é de estranhar que, também para
ele, as vestes de coroação fossem um símbolo de seu poder e de sua majestade. Com
isso em mente, objetivamos, neste trabalho, introduzir os textos de coroação como
fontes para o estudo das relações entre representações da realeza e vestuário na
Inglaterra medieval. Para tanto, tomamos como ponto de partida o significado da realeza
e das cerimônias de coroação no reino inglês, após o que procedemos à identificação e
descrição das fontes, seguidas de uma comparação entre peças de roupas, tecidos, cores
e adornos em cinco textos representativos da trajetória do vestuário régio entre os
séculos XII e XV, de sua inserção no contexto histórico e de uma avaliação do papel
ocupado pelas indumentárias na construção de representações do poder monárquico. Por
fim, tecemos algumas considerações acerca das possibilidades quanto ao uso dos textos
de coroação como fontes para o estudo proposto.
Realeza e rituais de coroação na Inglaterra: uma prática ancestral
A realeza é a mais antiga instituição política, cuja origem se perde na
Antiguidade mais remota. Ela sucedeu à família, ultrapassou os laços de sangue e se
elevou acima da autoridade dos pais sobre os filhos. Essa passagem da família para o
grupo configurou uma relação totalmente nova, cuja sobrevivência dependeu de três
fatores: escolha divina; colaboração providencial entre um rei e seus súditos; e união
eficaz entre determinada descendência familiar e um povo (BERCÉ, 1997, p. 7). O rei,
portanto, era visto como um mediador entre Deus e seu povo, e, por esse motivo,
detentor de um caráter sagrado, a ele conferido pelos sacerdotes através da unção com
óleo, um costume mencionado já no Antigo Testamento, cujos relatos sobre a unção dos
reis de Israel viriam a servir de modelo quando da adoção dessa prática nos reinos
medievais do Ocidente a partir do século VII (WOOLEY, 1915, p. 1-3).
Como todo rito ancestral e calcado numa tradição, as cerimônias medievais de
coroação obedeciam a um roteiro pré-determinado pelo poder eclesiástico. No caso
específico da Inglaterra, as mais antigas descrições sobrevivem em três Ordines
produzidos entre os séculos IX e XII, os quais, no início do século XIV, foram reunidos
num único documento, o Liber Regalis, texto latino que passou a estabelecer a ordem
dos rituais e dos procedimentos a serem observados nas cerimônias (LEGG, 1901, p.
xviii-xix; WILKINSON, 2011, p. 10).
Na Inglaterra medieval, as cerimônias de coroação eram solenidades de
profundo significado político e simbólico, quando o novo rei, ungido e coroado pelo
poder eclesiástico, se tornava Rex Dei Gratia, rei pela graça de Deus. No plano coletivo,
eram grandes acontecimentos na história do reino, posto que caracterizados pelo que os
britânicos chamam de pageantry – pompa, ostentação –, e que, atualmente, costumamos
denominar de teatro do poder, numa encenação cujo roteiro seguia as regras e rituais
estabelecidos nos Ordines e, posteriormente, no Liber Regalis, a saber: o cortejo; o
reconhecimento; o juramento; a unção; a investidura; a homenagem; a eucaristia; e o
cortejo final. Era um evento que mobilizava uma ampla variedade de grupos sociais,
desde clérigos e nobres que participavam da solenidade, até o restante da população
que, impedida de entrar na igreja, se enfileirava ao longo das estreitas ruas londrinas
para assistir ao cortejo que, na véspera do evento, conduzia o novo rei, em “trajes
nobres e apropriados” e com a “cabeça descoberta” da Torre de Londres ao palácio real,
situado em Westminster (FORMA et MODUS, 1901, p. 182), e, no dia da coroação, do
dito palácio até a Abadia de Westminster, local da cerimônia (FORMA et MODUS,
1901, p.183). Portanto, ainda que fugaz, certamente eram momentos de contato visual
direto dos súditos com a singular imagem de seu soberano, que, como tal, personificava
a muito arcaica instituição da realeza.
Ao final da cerimônia, além das principais insígnias – a coroa, o cetro e o orbe –,
o soberano também ostentava outro significativo símbolo de seu poder temporal, o
vestuário, materialização da superioridade e da singularidade de sua condição social e
política. Sob essa perspectiva, é correto afirmar que a imagem do rei era portadora de
uma linguagem visual que comunicava o seu lugar no mundo e transmitia uma ideia de
realeza, com todo o aparato e simbolismo a ela inerentes, uma afirmação à qual
voltaremos mais adiante.
Indumentárias régias na Inglaterra medieval: algumas fontes para seu estudo
Muito embora a maioria dos trajes régios medievais não tenha sobrevivido, eles
nos têm sido dados a conhecer, principalmente, através de fontes imagéticas diversas,
tais como iluminuras em manuscritos, selos, efígies tumulares, bordados, tapeçarias,
vitrais e retratos. Já no concernente às fontes escritas, somos da opinião de que os textos
relativos às cerimônias de sagração e aos inventários são os que fornecem dados bem
mais precisos acerca do vestuário régio, tais como a identificação e descrição de peças
de roupa, tecidos, cores e adornos. Parte dessa documentação se encontra nos English
Coronation Records, coletânea publicada em 1901, quando da ascensão de Eduardo
VII, a qual abrange desde o mais antigo relato sobre a unção de um rei, ocorrida no
século VII, até a coroação da rainha Vitória, em 1838.
Na avaliação dos documentos referentes ao período medieval presentes na
coletânea, notamos que foi só a partir do século XII que as roupas do novo rei passaram
a ser mencionadas, se tornando, a partir de então, parte integrante e importante dos
rituais de coroação, motivo pelo qual, dentre os documentos produzidos entre os séculos
XII e XV, comparamos cinco textos a nosso ver representativos da importância do
vestuário nas representações da realeza: Coronation of Richard I; Regalia of Henry III;
Regalia in 1356; Forma et Modus; e Coronation of Richard III.
Todos os textos são precedidos de uma breve explanação de seu editor, Leopold
George Wickham Legg. Coronation of Richard I foi escrito pelo cronista Roger of
Hoveden (m. 1201) e vem a ser o mais antigo relato detalhado da coroação de um
soberano. O costume de carregar as vestimentas no cortejo se manteve até a época de
Eduardo II (1307-1327), após o que as vestes passaram a ser depositadas no altar da
igreja (LEGG, 1901, p. 46). Regalia of Henry III, é o mais antigo inventário das
insígnias régias. Provavelmente elaborado nos anos iniciais do reinado de Henrique III
(1216-1272), por volta de 1121-1222, nele encontram-se listados todos os itens
pertencentes ao soberano, e que Eustáquio de Faucunberg, tesoureiro e camareiro real,
recebeu de Pedro de Roches, bispo de Winchester, após a festa de St. Dunstan, em
Westminster (LEGG, 1901, p. 54). O terceiro texto, Inventory of Regalia in 1356,
concerne às insígnias de Eduardo III (1327-1377) e foi elaborado em 28 de novembro
de 1356 por Guilherme de Edington, bispo de Winchester e, posteriormente, Tesoureiro
real (LEGG, 1901, p. 79). O quarto texto, produzido por volta de meados do século XV,
e geralmente conhecido como Forma et Modus, é uma versão resumida do Liber
Regalis e descreve, em parágrafos, as instruções a serem observadas ao longo de toda a
cerimônia de coroação (LEGG, 1901, p. 172). O último relato, Coronation of Richard
III, se refere ao soberano cujo brevíssimo reinado (1483-1485) encerrou o período
medieval inglês.
Por fim, é interessante observar que os idiomas usados expressam as variações
linguísticas existentes no reino ao longo do recorte proposto. Coronation of Richard I,
Regalia of Henry III e Forma et Modus estão em latim, ao passo que Inventory of
Regalia in 1356 está em francês – língua da corte inglesa até o início do século XV –,
todas elas acompanhadas de uma tradução para o inglês moderno. Já Coronation of
Richard III está redigida somente no inglês médio do século XV.
Vestimentas régias: comparando fontes
Num sentido amplo, a expressão “vestimentas régias” poderia denotar todas as
indumentárias usadas pelos reis, independentemente da ocasião. Todavia, no que diz
respeito aos rituais de coroação no medievo inglês, tal expressão portava um significado
bem mais restrito, pois nem todas as roupas usadas pelo novo rei em sua coroação eram
“uestimentis Regalibus” (CORONATION OF RICHARD I, 1901, p. 49) ou “regalibus
indumentis” (FORMA ET MODUS, 1901, p. 185). Isso fica bastante claro no trecho
relativo à unção de Ricardo I, quando o rei foi despido de suas roupas, à exceção das
calças e da camisa, a qual foi rasgada junto aos ombros para receber o óleo consagrado.
Quanto às demais roupas usadas pelo soberano antes desse ritual, não é possível saber,
pois não são identificadas nem descritas. À unção seguiu-se o ritual da investidura,
ocasião na qual Ricardo I recebeu as insígnias de seu poder temporal, a saber, a espada
do reino, com a qual iria defender a Igreja de seus malfeitores, as esporas de ouro, a
coroa, o cetro, o bastão e as “vestes reais”, primeiro a túnica, depois a dalmática e,
finalmente, o manto (CORONATION OF RICHARD I, 1901, p. 51-52). Três peças
cujo status de indumentárias régias foi mantido nos séculos posteriores, como pode ser
comprovado pelo relato da Forma et Modus, ainda que nesse documento a dalmática
tenha assumido a denominação de colobium sindonis (1901, p. 185), ou colóbio, um
traje eclesiástico comprido, sem mangas ou com mangas curtas até os cotovelos, e que
também era parte integrante do vestuário de coroação dos reis da Inglaterra
(PLANCHÉ, 1876, p. 130). Desse modo, é possível inferir que a túnica, o colobium
sindonis “talhado como uma dalmática” (FORMA ET MODUS, 1901, p. 185) e o
manto eram reconhecidos como “regalibus indumentis” porque, juntamente com os
demais símbolos do poder, identificavam o rei como tal. Comparemos, pois, a descrição
dessas vestes e de seus tecidos, cores e adornos.
Primeiramente, as vestimentas. A túnica é uma peça de roupa muito antiga, já
usada por egípcios, gregos e romanos (PLANCHÉ, 1876, p. 509; FAIRHOLT, 1846, p.
613). Na definição de Newman, a túnica é semelhante a uma camisa ou vestido, possui
corte reto, abertura para a cabeça, sem mangas ou com mangas compridas, podendo ser
usada sozinha ou sobre outra peça de roupa (2011, p. 188). Uma definição
contemporânea que bem pode ser aplicada à túnica régia medieval, o item mais presente
nos textos de coroação por nós analisados. À túnica se sobrepunha a dalmática, assim
denominada por ser originária da antiga província romana da Dalmácia. Era uma veste
comprida e larga, a princípio usada pelos romanos e posteriormente adotada pelo clero
medieval católico e também pela realeza, para uso tanto em sua coroação quanto nas
missas solenes (PLANCHÉ, 1876, p. 167; NEWMAN, 2011, p. 65). Enquanto
vestimenta régia, a dalmática é assim denominada nos textos do século XII
(CORONATION OF RICHARD I, 1901, p. 52) e do século XIII (REGALIA OF
HENRY III, 1901, p. 55-56), um traje que, dois séculos mais tarde, já havia sido
substituído pelo colobium sindonis (FORMA ET MODUS, 1901, p. 185). Finalmente, o
manto, a nosso ver o mais conhecido entre os trajes régios, e definido por Newman
como “Roupa folgada e sem mangas que se prende ao pescoço ou mais raramente na
frente do corpo e pende a partir dos ombros” (2011, p. 120), o qual, de acordo com a
Forma et Modus, deveria obedecer ao feitio quadrado (1901, p. 185).
Passemos, agora, aos tecidos. Na Idade Média as fibras têxteis mais usadas eram
a lã e a seda, de origem animal, e o linho e o cânhamo, de origem vegetal (PEZZOLO,
2013, p. 33). No entanto, a grande maioria das “vestes régias” era confeccionada com a
mais nobre dentre elas, a seda. De origem chinesa e milenar, a prática da sericultura foi
mantida em segredo até o século VI, quando, reza a lenda, dois monges
contrabandearam para Constantinopla centenas de ovos do bicho-da-seda, juntamente
com as sementes de amoreira necessárias para o cultivo das folhas que serviam de
alimento para as larvas. A partir de então esse luxuoso tecido passou a ser produzido
também no Império Bizantino, desse modo quebrando o monopólio oriental da
produção e do comércio da seda (NEWMAN, 2011, p. 169; LAVER, 1989, p. 47-48;
COSGRAVE, 2011, p. 89; FAIRHOLT, 1846, p. 598).
Muito embora o autor do relato da coroação de Ricardo I tenha o cuidado de
identificar as vestes régias, é apenas nas fontes posteriores que os tecidos das
indumentárias – feitos em fibras de seda ou, em menor escala, de linho –, passam a ser
mencionados. No inventário relativo aos ornamentos de Henrique III, uma túnica, duas
dalmáticas e dois mantos são confeccionados em samit, isto é, samito (REGALIA OF
HENRY III, 1901, p. 55-56), mesmo tecido das duas túnicas e do manto trajados por
Eduardo III, no século seguinte, em sua coroação (REGALIA IN 1356, 1901, p. 79-80).
O samito das vestes régias de ambos os soberanos costuma ser definido como
uma seda rica, entrelaçada ou bordada com ouro (FAIRHOLT, 1846, p. 594;
HOUSTON, 2019, p. 225). Desse modo, é possível deduzir que também era de samito
o manto quadrado “tecido com águias douradas”, ao qual se refere a Forma et Modus
(1901, p. 185). Igualmente de seda era o velvett, o veludo com o qual foram
confeccionados os trajes de coroação de Ricardo III (CORONATION OF RICHARD
III, 1901, p. 196). Tecido de seda formado por uma felpa suave num dos lados
(FAIRHOLT, 1846, p. 614), o veludo estava associado a pessoas de nível social elevado
(PLANCHÉ, 1876, p. 513).
Quanto ao linho, certamente era o tecido do colobium sindonis. Muito embora a
Forma et Modus não especifique o material com o qual essa veste régia deveria ser
confeccionada, tal certeza se respalda nas definições de Wilkinson, para quem o
colobium sindonis é uma peça de roupa que significa, literalmente, “pequena veste de
linho” (2011, p. 45), e de Planché, segundo a qual “sindon” é uma palavra de origem
hebraica que denota um tecido de linho puro (1876, p. 463).
Outro tecido mencionado é o diaper, usado numa segunda túnica de Henrique III
(REGALIA OF HENRY III, 1901, p. 56). Ao contrário do samit, que possui um
equivalente em português, o uso medieval do termo inglês diaper não possui tradução
precisa, motivo pelo qual preservamos sua grafia estrangeira. Esclarecemos, contudo,
que depois do século XV, o termo diaper passou a ser usado para denotar algodão ou
linho entremeado com desenhos de pequenos diamantes. Todavia, pelo fato de serem as
fraldas dos bebês feitas, originalmente, de retalhos desse tecido, a partir do século XVI
o vocábulo passou a denotar “fralda”, significado que se mantém até hoje na língua
inglesa (HORNBY, 2005). Voltando ao diaper medieval, tratava-se de um tecido que
costuma ser descrito como uma espécie de linho fino ornamentado, originário de Ypres
– daí d’ipres, diaper, isto é, de Ypres –, cidade do condado de Flandres famosa pelos
seus artigos de tecelagem. O termo se generalizou e passou a ser adotado para nomear
quaisquer tecidos que seguissem esse tipo de padrão ornamental, independentemente do
local onde fossem fabricados (FAIRHOLT, 1846, p. 492; PLANCHÉ, 1876, p. 169-
170). No entanto, cabe ressaltar que, ao contrário da seda ou do linho, o diaper não era
uma fibra têxtil, era tão somente um padrão de tecelagem.
Quanto às cores, elas também estão ausentes do relato da coroação de Ricardo I.
É somente a partir do século XIII que elas passam a ser mencionadas. Dentre elas, o
vermelho reina quase soberano entre as regalibus indumentis, e está presente em todas
as vestes de samito de Henrique III e de Eduardo III. No caso de Henrique III, o samito
na cor vermelha – “Rubeo Samit” – não se restringe à túnica, à dalmática e ao manto,
sendo encontrado também em sandálias, em meias e até mesmo nas bainhas de duas
espadas. Quanto aos itens de Eduardo III, além das vestes régias, o “Samyt rouge” é o
material de uma estola, de coturnos e de uma capa, bem como da bainha de uma de suas
espadas. Todavia, é possível deduzir que o predomínio do vermelho não mais existia no
século XV, quando da coroação de Ricardo III, cujos trajes de veludo eram da cor roxa,
“Purple Velvett” (CORONATION OF RICHARD III, 1901, p. 196). Já o branco é a
única cor que rompe o monopólio do vermelho nas indumentárias régias dos séculos
XIII e XIV: branco é a cor do diaper – “Diaspre blance” – da túnica de Henrique
(REGALIA OF HENRY III, 1901, p. 55-56).
Finalmente, chegamos aos adornos, itens indispensáveis para embelezar uma
roupa, os quais, nas indumentárias régias, assumiram a forma de pedras preciosas,
broches e debruns dourados. Nas “vestes régias” de Henrique III, pedras preciosas
debruavam a túnica, a dalmática e o manto; e dois broches, um com safira e o outro com
pérola, adornavam a dalmática e o manto (REGALIA OF HENRY III, 1901, p. 55-56).
Os broches estão ausentes entre os adornos das indumentárias de Eduardo III. Seu
manto, todavia, é ornamentado com esmeraldas e pérolas, afixadas sobre debruns
dourados (REGALIA IN 1356, 1901, p. 79-80).
Indumentárias de coroação no contexto histórico
Os textos de coroação analisados, produzidos entre os séculos XII e XV, se
inserem num cenário europeu que, em linhas muito gerais e esquemáticas, foi marcado,
no plano econômico, por uma fase de considerável expansão agrícola, comercial, urbana
e monetária (LE GOFF, v. I, 1983, p 87-112), seguida por uma etapa de retração; no
plano social, pela passagem de uma sociedade estática, organizada em ordens, para uma
sociedade mais flexível, organizada segundo os estados socioprofissionais surgidos em
decorrência do crescimento das cidades e das atividades a elas vinculadas (LE GOFF, v.
II, 1984, p. 9-17); e no plano político, pela gradual tentativa de centralização do poder
monárquico (LE GOFF, v. I, 1983, p. 133-139).
Isso equivale a dizer que as rotas comerciais se expandiram, e com elas o
comércio de longa distância, responsável pela aquisição dos artigos de luxo
provenientes, inclusive, do Oriente mais remoto. Também equivale a dizer que as
cidades atraíram um número cada vez maior de mercadores e de artesãos especializados,
que se afirmavam como um novo grupo social cada vez mais distanciado dos
trabalhadores rurais (BATISTA NETO,1989, p. 93-112). Significa, ainda, que a
realeza, no intuito de fortalecer seu poder face aos senhores locais e ao clero, não ficou
imune às possibilidades propiciadas pela conjuntura socioeconômica da época, na
medida em que o exame dos textos de coroação aponta para a crescente importância do
vestuário na construção de uma imagem do poder monárquico como símbolo de
distinção, dignidade e superioridade social e política.
De fato, na comparação entre os componentes das indumentárias, observados em
sua trajetória ao longo do recorte cronológico proposto, o primeiro aspecto que chama a
atenção é a ausência de qualquer menção às indumentárias nos textos anteriores ao
século XII. É somente a partir desse momento que encontramos referências, ainda que
tímidas, aos trajes usados pelo novo rei. Quanto aos tecidos, são eles os melhores
indicadores da crescente importância do luxo nas representações do poder monárquico.
Por exemplo, nos inventários dos séculos XIII e XIV, relativos aos reinados de
Henrique III e Eduardo III, o suntuoso samito vermelho prevalece em quase todos os
itens referidos nos dois textos em questão. O mesmo pode ser afirmado quanto aos
adornos, expressões da riqueza e da superioridade real em forma de ouro e pedras
preciosas. Mais adiante, já no final do século XV, o veludo roxo foi o tecido escolhido
por Ricardo III para seus trajes de coroação. Muito embora a fonte não identifique as
peças que compunham as roupas desse soberano, não sendo possível, portanto, saber se
tratarem das “vestes régias”, a aparição do veludo na coroação de Ricardo III é
indicativa da adoção de um tecido associado à prosperidade e ao refinamento.
Portanto, é possível afirmar que a inclusão das indumentárias régias nos relatos
de coroação a partir do século XII expressa a crescente importância atribuída ao
vestuário na construção de uma imagem do poder monárquico caracterizada pelo
refinamento e pela suntuosidade. Características essas que, articuladas ao contexto
histórico acima referido, também nos autorizam a afirmar que tal imagem é um produto
do desenvolvimento socioeconômico dos séculos XII e XIII que não foi abalada pela
crise dos séculos XIV e XV, a crer no relato sobre os preparativos para a coroação do
sucessor de Ricardo III, o rei Henrique VII – cuja ascensão ao trono, em 1485, é
considerada como o fim da era medieval na Inglaterra – e no qual a presença de roupas
confeccionadas em tecidos de seda entremeados com fios de ouro (“clothe of golde”),
ou em veludo roxo adornado com peles de arminho (“purple veluet furred wt Ermyns”)
constituem alguns exemplos do luxo e do requinte exibidos pelo novo rei a caminho de
sua coroação (LITTLE DEVICE FOR THE CORONATION OF HENRY VII, 1901, p.
222).
Desse modo, entendemos que a expansão do comércio de artigos de luxo e a
crescente especialização e variedade de ofícios ligados ao vestuário, tais como tecelões,
cardadores, alfaiates, negociantes de sedas e tecidos luxuosos, e à produção de ricos
adornos, como os ourives, em muito contribuiu para a construção e consolidação de
uma imagem da realeza à altura do que se esperava de um rex imago Dei, pois, a
exemplo da imagem divina expressa pelo salmista, também estava “vestido de
majestade” e “envolto em poder”. Uma imagem que, a despeito de eventuais
adaptações, atravessou os séculos e constitui uma dentre as sobrevivências do medievo
nas cerimônias de coroação na Inglaterra contemporânea (LOBATO, 2019, p. 299-305).
Vestuário régio nos textos de coroação: possibilidades de um objeto
Diante do exposto, entendemos que a importância do vestuário na construção de
imagens do poder monárquico expressa questões que são de cunho econômico, social,
político e simbólico, as quais, na maior parte dos casos, estão estreitamente ligadas
entre si, motivo pelo qual sugerimos o estudo das relações entre representações da
realeza e indumentárias à luz da história do vestuário.
Trata-se, contudo, de uma história do vestuário renovada, calcada no caminho
inaugurado em 1957 por Roland Barthes como um contraponto às histórias que, até
então, se limitavam à mera descrição cronológica das indumentárias em seus respectivos
estilos de época (CALANCA, 2011, p. 19). Na concepção de Barthes, o foco do
historiador deve residir na percepção de que toda cobertura corporal é um valor, pois
tende a se inserir num sistema formal organizado, normativo e consagrado pela
sociedade. Desse modo, a condição prévia de toda relação entre vestuário e história
consiste em descrever o vestuário segundo o nível social, institucional – e não em
termos de formas estéticas ou motivações psicológicas –, e em explicá-lo de acordo com
as regras de disposição ou uso, de relações e de valores (2005, p. 265-266). Tal caminho
foi retomado por Fernand Braudel, para quem a história da indumentária coloca
problemas relacionados às matérias-primas, aos processos de fabricação, aos custos, às
imobilidades culturais, às modas, e às hierarquias e oposições sociais (1979, t. 1, p.
271). Afirmava Braudel, ainda, ser a moda o testemunho profundo de uma sociedade, de
uma economia e de uma dada civilização (1979, t. 1, p. 281). A partir de então a
indumentária, enquanto objeto de pesquisa, passou a ser vista como um fenômeno
completo, portador de um discurso histórico, econômico, etnológico e tecnológico, de
uma linguagem através da qual os indivíduos expressam sua posição no mundo e sua
relação com ele (CALANCA, 2011, p. 16). Em consequência, uma pesquisa dessa
natureza, assentada sobre as “linhas mestras” criadas por Barthes e Braudel, bem pode
ser identificada como uma “nova história” do costume e da moda (CALANCA, 2011, p.
26)
Portanto, concordando com essa abordagem, consideramos que a roupa é
portadora de uma linguagem visual capaz de comunicar não apenas uma época, mas
também uma posição na sociedade, um lugar no mundo, uma ideia; e consideramos,
ainda, que o vestuário permite vislumbrar múltiplos cenários e grupos sociais
envolvidos em sua produção, circulação e consumo num dado momento histórico.
Desse modo, é possível notar que a nova história do vestuário dialoga com vários
campos de observação, tais como a história cultural (CHARTIER, 1990), a história da
cultura material (NACIF, 2007), e a nova história política, esta com sua ênfase nos
aspectos simbólicos e imaginários do poder (LE GOFF, 1995). A história social do
vestuário apresenta-se, portanto, como um enfoque bastante adequado às fontes em
questão.
Considerações finais
Neste breve trabalho nos limitamos à identificação e classificação dos
componentes dos trajes de coroação; comparamos tais componentes para verificar
frequências e variáveis, ou seja, o que muda, o que não muda, e o que muda naquilo que
não muda nas indumentárias de coroação ao longo dos séculos XII ao XV; e
identificamos o lugar ocupado pelas vestes régias na construção e afirmação de uma
imagem do poder monárquico compatível com o papel a ser desempenhado pelo rei da
Inglaterra enquanto rex imago Dei.
Todavia, um estudo das relações entre representações da realeza e vestuário nos
textos de coroação não deve se restringir à identificação e comparação dos componentes
das vestes régias, na medida em que a abordagem do tema à luz da nova história do
vestuário permite-nos vislumbrar inúmeros aspectos invisíveis a olho nu, abrindo, desse
modo, um leque de possibilidades de investigação, tais como: 1) Averiguar em que
medida a monarquia inglesa, enquanto símbolo máximo do poder temporal, se
beneficiou das condições materiais existentes no Ocidente europeu ao longo do recorte
cronológico proposto; 2) Avaliar as relações entre aspectos materiais e imateriais, isto é,
o papel dos elementos materiais na construção de significados simbólicos; 3) Articular
esses componentes com as tendências do vestuário inglês em geral; 4) Verificar a
qualidade do vestuário na Inglaterra medieval; 5) Descortinar cenários, grupos sociais,
formas de organização e demais aspectos envolvidos nas indumentárias régias,
considerados de acordo com o circuito produção-circulação-consumo; dentre outros.
Portanto, a despeito de sua antiguidade, os textos relativos às cerimônias de
coroação na Inglaterra medieval podem ser considerados como fontes fidedignas para o
estudo das relações entre representações da realeza e vestuário à luz de novas
abordagens propostas pela História.
*****
Referências bibliográficas
1. Fontes
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.
CORONATION OF RICHARD I. In: English coronation records. Edited by Leopold
George Wickham Legg. Westminster: Archibald Constable & Co., 1901, p. 46-53.
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