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Pedro Puro Sasse da Silva (UFF)
Em sua introdução ao livro The Dystopian Impulse in Modern
Literature, Keith Booker (1994, p.1-2) utiliza a Disneyworld – ou, de
forma mais geral, os parques temáticos – para apresentar as ideias de
utopia e distopia. Locais arquitetados para unirem com perfeição o
ápice do desenvolvimento tecnológico e do entretenimento com o
encanto dos mundos fantásticos, esses lugares poderiam ser vistos
como uma representação, ainda que limitada, da utopia. Dentro dos
limites do reino mágico da Disney não há criminalidade, trânsito,
guerra ou pobreza, apenas alegria e prazer. Se, no entanto, alguém se
distancia da sedução hipnótica fornecida por eles, pode perceber o
potencial distópico que o mesmo espaço também simboliza: uma
multidão de humanos transformados em rebanho, andando
cronometradamente de uma fila para outra, rodopiando repetidas
vezes em trens mecânicos que não levam a lugar nenhum,
consumindo desenfreadamente em uma completa fuga da realidade.
Não à toa, a ficção explorou exaustivamente essa ambivalência dos
parques de diversão para construir cenários de horror.
O ponto mais importante dessa imagem é compreender como
um mesmo espaço e um mesmo ideal de desenvolvimento, progresso
ou felicidade pode conter, em gérmen, uma visão negativa de si
mesmo. Quando magnificados ao extremo que a utopia pede, surgem
em suas sombras a projeção dos medos e ameaças que subjazem
nesses mesmos ideais, elementos constituidores da distopia.
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Os cidadãos do começo do século XX são os herdeiros
justamente dessa sombra, da frustração com todo ideal de progresso
tecnológico e científico prometido pelos Oitocentos (CARTWRIGHT,
2005, p.14). Diante de um mundo que havia falhado em alcançar as
maravilhas da modernidade e que, em troca, experimentara, entre
guerras e revoluções sangrentas, todos os horrores que a ciência é
capaz de produzir, a ficção distópica57 surge como um gênero porta-
voz dos medos não só relacionados à ciência, mas também às
ameaças políticas, sociais, ecológicas e mesmo morais que surgem
com seu avanço, ou seja, é uma reação à própria noção de progresso.
Se a utopia, enquanto ideal de sociedade, expectativa de um
mundo não só melhor, mas potencialmente perfeito, pode ser vista
desde a República de Platão, tanto o termo quanto sua representação
mais concreta e sistemática se dá apenas a partir de 1516, com a
publicação da Utopia, de Thomas More. Sátiras, ainda que veladas
por certo otimismo, da sociedade contemporânea, obras como a de
More ou a Nova Atlântida (1624), de Francis Bacon, expunham
avançadas sociedades hipotéticas que haviam superado, através da
ciência, as aflições da humanidade. Através dessa hipérbole positiva,
criava-se um contraste que dava relevo às questões sociais em que os
leitores estavam inseridos, como poder, ética ou educação.
57
Ainda que a literatura distópica mantenha certas características em comum ao longo de sua trajetória, vamos nos focar, nesse trabalho, em analisar as proximidades do Gótico com as ditas distopias clássicas, evitando aquelas que se desenvolvem a partir da segunda metade do século XX. Tal escolha se deve, primeiro, à maior circulação que essas obras tiveram ao longo dos anos, tornando os exemplos mais eficazes. Além disso, devido a certas diferenças na construção das sociedades distópicas do modelo clássico e das distopias pós-modernas, seria preciso analisar os dois casos em separado, o que demandaria um trabalho todo voltado apenas para isso. No entanto, como veremos, durante a análise de Não verás país nenhum, devido a algumas de suas características, mencionaremos alguns pontos da vertente pós-moderna.
711
O século XIX e principalmente o XX mostraram, contudo, que
se tornava cada vez mais difícil atribuir à ciência e à tecnologia um
papel redentor da humanidade. Pelo contrário, seu potencial, nas
mãos do homem, poderia levar a pesadelos de extermínio, vigilância,
dominação e exclusão. Dessa forma, já em finais do século XIX, obras
como A máquina do tempo (1895), de Wells, mostram as raízes de um
gênero que, em vez de criar projeções positivas de uma sociedade
científica e tecnologicamente avançada, criticará o presente através
de uma caricatura grotesca do mundo contemporâneo projetada no
futuro, na qual o progresso é o principal causador da miséria
humana.
Dentre os precursores do gênero, cujas raízes estão na virada
do XIX para o XX, com autores como Wells e Forster, três obras são
consideradas basilares para a consolidação da ficção distópica: Nós
(1924), do escritor russo Yevgeny Zamyatin; e os ingleses Admirável
mundo novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1949), de George
Orwell. Essas obras têm em comum, ainda que o façam de formas
distintas, a tematização da falta de liberdade, a perda da identidade
em prol de um construto coletivo, o apagamento da história, a
alienação causada pela tecnologia, os horrores da ciência e a grande
ameaça representada por um regime totalitário sem opositores.
Se, nas primeiras utopias, a sociedade avançada era deslocada
no espaço e revelada através dos olhos de um estrangeiro
contemporâneo à própria publicação da obra que lá pisava pela
primeira vez, na distopia, tradicionalmente, o deslocamento é
temporal – o autor projeta no futuro os piores traços da sociedade na
qual está inserido. Com isso, em muitos casos, cria-se uma sensação
de aprisionamento, uma vez que o espaço de fuga e liberdade tende
a se descolar para um passado inacessível que pode, no máximo,
tentar ser recuperado através da memória, de objetos ou da
recuperação de certas práticas. Oposto ao que ocorre na utopia, nas
distopias clássicas não é um viajante que descobre uma nova
712
sociedade, mas um cidadão inserido na comunidade distópica que,
deixando de ver os encantos de uma Disney World, se descobre
aprisionado em um circo de horrores.
Bem antes, no entanto, de a ficção distópica se consolidar
como gênero de crítica social ao suposto progresso, o Gótico já
mostrava os perigos dos excessos da razão e da ciência. Para o Gótico
setecentista, a reação era contra as rápidas mudanças sociais e
políticas causadas pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. O
passado feudal, bárbaro e supersticioso no qual as histórias eram
ambientadas servia de contraponto e crítica ao Século das Luzes58. Já
no Gótico do século XIX, as ameaças residem na expansão da
metrópole moderna, na revolução industrial e nos muitos avanços da
ciência, dando à ficção gótica o papel de mostrar o lado sombrio
desse vertiginoso progresso, como vemos em autores como Mary
Shelley, Allan Poe e Dickens.
De fato, alguns autores (CARTWRIGHT, 2005; SCHÄFER, 1975)
defendem que a ficção distópica ou foi influenciada fortemente pelo
romance gótico, ou seria ela mesma um desdobramento do gênero
no século XX. Ainda que, no senso comum, o Gótico seja associado,
sobretudo, às características mais explícitas de sua vertente
setecentista, e, assim, relacionado ao passado, aos castelos,
catacumbas e fantasmagorias, o gênero, se visto em uma perspectiva
mais abrangente, pode apresentar inúmeros pontos de contato com a
ficção distópica.
Pretendemos, ao longo deste artigo, mostrar as relações entre
a ficção gótica e a ficção distópica, propondo uma leitura desta como
vertente do gótico no século XX e XXI. Para tal, faremos dois
58
Como veremos de forma mais explícita adiante, o Gótico, enquanto gênero focado nos excessos e transgressões da sociedade, também fará uma crítica aos extremos da paixão, mostrando como a razão pode ser utilizada para evitar o horror da loucura, do pesadelo ou da ilusão – o que ocorre, por exemplo, nas narrativas de Ann Radcliffe.
713
movimentos: inicialmente, partindo dos estudos de Fred Botting
sobre o Gótico, mostraremos como as obras basilares do gênero
distópico apresentam muitas das características fundamentais do
gênero; uma vez que tais obras já tem uma extensa fortuna crítica,
optamos, para explicitar algumas das características antes
mencionadas, por uma análise do romance de Ignácio de Loyola
Brandão Não verás país nenhum (1981), obra que, defendemos, é
parte do gênero distópico na literatura brasileira. Com isso, não só
fortalecemos os estudos do Gótico e da distopia no Brasil, áreas que
só recentemente vêm ganhando atenção crítica, como oferecemos
uma nova perspectiva que fuja ao cânone distópico, observando
semelhanças e diferenças que surgem dessa diferença.
A primeira questão que pode surgir ao apresentarmos uma
relação entre a ficção gótica e a ficção distópica está relacionada,
sobretudo, a uma visão limitada do Gótico que o restringe à sua
vertente setecentista, marcada pela ambientação num passado
feudal de florestas ermas, castelos obscuros, sugestões sobrenaturais
e vilões aristocratas. Dessa forma, surgiria uma óbvia discrepância:
como um gênero que aponta para um passado medieval e
supersticioso se relaciona com o que parece ser sua antítese, um
gênero marcado pela projeção futurista e pelo domínio científico e
tecnológico?
Dois esclarecimentos nos ajudam a desfazer esse aparente
problema. Primeiro, ainda que o Gótico setecentista seja, de fato,
marcado pelas características acima mencionadas, ao entender o
gênero de forma trans-histórica – como muitos dos teóricos do
Gótico optam por fazer –, passamos a observar que a poética gótica
se adapta a diferentes contextos temporais e espaciais. No Gótico do
século XIX, vemos que o passado feudal dá lugar ao presente, e as
714
ruínas ermas abrem espaço para os becos labirínticos da metrópole
moderna, como podemos ver em Poe e Dickens (BOTTING, 2005,
p.74), por exemplo. Se avançarmos, ainda, ao gótico do século XX,
perceberemos que mesmo a ficção científica – da qual a Distopia é
inegavelmente próxima, se não integrante – muitas vezes pode ser
vista como herdeira do Gótico. Botting, ao analisar a presença do
gênero no século XX, dedica um tópico inteiro à ficção científica,
apontando a união de ambos desde Frankenstein, ou o Prometeu
moderno (1818), de Mary Shelley até obras cinematográficas como
Alien (1979), de Ridley Scott (2005, p.107).
Para este trabalho, contudo, nos atrai sua identificação de
Neuromancer (1984), de William Gibson, e Blade Runner (1982),
também de Ridley Scott, com o Gótico. Ambas as obras não só fazem
parte da ficção científica como são consideradas parte do gênero
distópico. Dessa forma, vemos que já existe, mesmo nos estudos do
Gótico, uma pré-disposição a ver a Distopia como um dos
desdobramentos desse vasto gênero.
Enquanto tal exposição resolve a aparente contradição antes
apresentada, cria uma nova questão: se o Gótico não é apenas esse
gênero convencional de castelos e ruínas, se pode ser identificado em
ambientes e temáticas tão díspares quanto um sobrenatural passado
feudal e uma metrópole futurista ultra tecnológica, o que, então,
caracterizaria a poética gótica?
Uma vez que, dentro dessa visão, não se pode definir o Gótico
através de aspectos arquitetônicos ou temáticos de uma de suas
manifestações, Botting o caracteriza através de um elemento que
afirma poder ser encontrado ao longo de todas as suas variantes.
Para ele, “Gótico significa uma escrita do excesso” (2005, p.1. –
Tradução nossa).
Por um lado, o excesso se manifesta de forma estética, uma vez
que no Gótico os espaços são excessivos por sua magnitude – os
castelos medievais, as visões sublimes de montanhas, do mar e das
715
florestas –, por sua complexidade – a sensação labiríntica das
passagens secretas, dos becos urbanos ou das naves espaciais – ou
pela ameaça que representam – cidades violentas e caóticas,
instituições corrompidas, vilões cruéis.
Por outro, vemos a manifestação desse excesso como forma de
ressaltar os limites, restrições e tabus da sociedade. O excesso, assim,
representa “a fascinação com transgressão e a ansiedade sobre os
limites e fronteiras” (BOTTING, 2005, p.1 − tradução do autor). Esse
excesso pode ser visto tanto no plano individual, revelando os vícios
ocultos da família burguesa vitoriana; no plano institucional, expondo
os pecados de um clero corrompido; ou ainda social, denunciando os
danos do capitalismo industrial sobre os mais pobres.
Com isso, fica claro que o Gótico é fortemente ligado à política.
Ainda que sua posição não seja explícita e pedagógica e que, muitas
vezes, sua ambivalência acabe levando a discussões sobre o suposto
moralismo ou subversão do gênero, é inegável que o Gótico provoca
uma forte reflexão sobre os padrões da sociedade que o lê. Mesmo
Sade, ainda no século XVIII, percebia que o Gótico “se tornara o fruto
indispensável dos abalos revolucionários de que a Europa Inteira se
ressentia” (SADE, 2002, p.45).
Botting mostra, ainda, como a década da Revolução Francesa
coincide com o ápice da popularidade da ficção gótica. Dessa forma,
notamos como não só o gênero coloca em xeque os limites da
sociedade para discutir as ansiedades de seu tempo, como essa
própria sociedade se interessa por uma ficção que dê conta de
discutir tais questões.
Podemos, então, partir da ideia de que diferentes vertentes do
Gótico não seriam necessariamente relacionadas entre si por
elementos arquitetônicos, personagens específicas ou recortes
temporais, mas compartilham uma mesma poética, baseada em
personagens, espaços e atos marcados por excesso e transgressão
716
dos limites impostos como forma de discutir os medos, ansiedades e
inseguranças da sociedade que a produz.
Tal definição, como pretendemos demonstrar, se aplica com
eficácia também ao gênero distópico, tornando-o um bom candidato
a uma vertente do Gótico no século XX e XXI. Tom Moylan, em Scraps
of the untaited sky (2000), mostra através de um dos precursores dos
cânones da literatura distópica, “The machine stops” (1908), de E.M.
Forster, como o gênero – e a própria utopia – tem suas raízes na
tradição satírica, em que excesso e crítica social andam lado a lado59.
Enquanto, no entanto, na tradição utópica vemos uma extrapolação
otimista da ciência e tecnologia, a distopia faz uma inversão
fundamental: o foco deixa de residir na esperança para residir nos
terrores da História (2000, p.111).
Por mais que seja uma narrativa ambientada em um futuro
distante, em uma sociedade muitas vezes drasticamente diferente da
nossa, as questões suscitadas ao longo dessas obras não poderiam
ser mais contemporâneas ao seu contexto de produção
(CARTWRIGTH, 2005, p.12). Podemos ir além e dizer que não só tais
questões apontam para o presente da sociedade na qual a obra surge
– afinal, de uma forma ou outra, toda obra acaba falando algo sobre
seu próprio tempo – mas que tais questões sustentam toda a
constituição da sociedade hipotética apresentada por essas distopias.
Não se trata, assim, simplesmente de dizer que há, em
Admirável mundo novo, uma preocupação com a perda da
individualidade, ou que há, em 1984, um aviso contra regimes
59
De fato, a tradição satírica parece antecipar algumas das características que vão ser encontradas também no Gótico: a representação dos vícios, a presença do baixo corporal, a tensão entre humor e horror e certo viés moralista, entre outros. O Gótico, no entanto, como uma poética altamente convencional, terá uma série de topoi (como a recorrência fantasmagórica do passado, a ambivalência moral, a obscuridade etc ) que o faz ser visto menos como parte da tradição satírica que como herdeiro dela.
717
totalitários. O processo de formulação das comunidades imaginadas
por esses autores é baseado na extrapolação dos medos próprios de
suas épocas. Dessa forma, na sociedade distópica, tudo se torna
excesso: os mecanismos de controle que começam a despontar no
século XX, nessas histórias subjugam completamente o homem;
regimes totalitários foram capazes de dominar o mundo; esforços em
lidar com o caos social se tornam métodos desumanos de
apagamento da individualidade e iniciativa; a frustração com a
modernidade é transformada em um verdadeiro pesadelo do
progresso.
Enquanto esse excesso fundador da sociedade distópica
constrói o espaço narrativo dessas obras, todo enredo das distopias
só entra em movimento através de uma drástica transgressão. Seja
em Nós, Admirável mundo novo, 1984 ou Fahrenheit 451 (1953), o
protagonista é sempre uma personagem que, em algum momento,
irá romper com toda a noção de ordem da sociedade em que está
inserida. É importante perceber que se aliam, nesse sentido, o
excesso e a transgressão: não se trata de ter um vício ou cometer um
crime, mas de questionar toda a ideia de ordem, moral, economia ou
justiça envolvida na constituição daquela comunidade.
Uma forma bem específica e recorrente desse excesso Gótico
que também encontraremos nas distopias se dá na representação
dos perigos encontrados ao cruzar os limites da razão e da paixão. Em
sua ambivalência, o Gótico, ao mesmo tempo em que desafia os
valores da razão iluminista no deslocamento ao passado feudal
supersticioso ou místico, também os reafirma ao punir os excessos da
paixão, do desejo ou do vício. Dessa forma, “Indivíduos eram
produtos divididos da razão e do desejo, sujeitos tanto à obsessão, ao
narcisismo e ao próprio prazer quanto a racionais e responsáveis
códigos de comportamento” (BOTTING, 2005, p.8 − tradução do
autor).
718
Por um lado, toda sociedade distópica representa um claro
alerta aos perigos que o excesso da razão pode criar no plano social.
Em 1984, a tecnologia é capaz de reescrever a História; em Admirável
mundo novo, toda a sociedade é fruto de um projeto tecnológico de
seleção artificial e castas biologicamente determinadas; em Nós, os
sujeitos são progressivamente reificados, pensando apenas de forma
lógico-matemática, agindo de forma burocrática, tendo números de
série em vez de nomes e tornando-se, por fim, apenas máquinas em
forma humana.
É importante, contudo, ressaltar que a razão excessiva
encontrada nessas obras não está relacionada a uma razão crítica,
mas a uma razão binária, maquinal. Dessa forma, uma constante
entre todas essas obras e elemento central em Fahrenheit 451, é o
banimento das artes que instigam o pensamento. Por mais que em
todos os casos haja formas de entretenimento televisivo e mesmo
literário – em 1984 há máquinas que produzem ficção – em todos os
casos os ditos grandes romances, a alta poesia e a filosofia são
prontamente excluídas da sociedade.
Por outro lado, o excesso de paixão também pode ser encarado
como um perigo. Nas principais obras da distopia clássica vemos uma
peculiar constante: a conscientização do protagonista que permite
que o enredo entre em movimento é sempre motivado, total ou
parcialmente, por uma paixão: Winston Smith tem Julia, Bernard
Marx e John têm Lenina Crowe, D-503 tem I-330, e Guy Montag tem
Clarisse McClellan. Caso a consequência dessa paixão fosse
unicamente a libertação da alienação distópica, não haveria um alerta
quanto aos seus perigos. No entanto, em todos os casos, de uma
forma ou outra, essa libertação vem acompanhada de consequências
devastadoras: Winston e Julia torturados, Bernard e John banidos, D-
503 lobotomizado, Clarisse morta.
Não é apenas nessas características centrais que encontramos
proximidade entre os dois gêneros. Ainda que ambientada no futuro,
719
a narrativa distópica utiliza frequentemente espaços próprios do
Gótico, descritos com o mesmo estilo sobrecarregado de tons
sombrios e referências à morte e degradação, típicos do gênero:
Foi como entrar na fria câmara marmórea de um mausoléu depois que a lua se pôs. Escuridão total, nem um traço do mundo prateado lá de fora, as janelas bem fechadas, a alcova era um mundo tumular onde nenhum som da grande cidade conseguia penetrar. (BRADBURY, 2012)
O sol avançara e as infindáveis janelas do Ministério da Verdade, agora que já não recebiam luz direta, pareciam tão temíveis quanto as seteiras de uma fortaleza. O coração de Winston se encolheu diante do enorme vulto piramidal. O edifício era forte demais, não havia como tomá-lo. (ORWELL, 2009, p.39)
Do isolamento e escuridão dos mausoléus à imensidão
inabalável e sublime das fortalezas, mesmo as imagens que remetem
ao passado feudal encontram espaço no ambiente distópico. Não
obstante, é com o gótico do século XIX que os ambientes da ficção
distópica encontram mais semelhança. As catacumbas dão lugar ao
laboratório e os castelos abrem espaço para uma cidade em ruínas,
labiríntica e superlotada:
Apesar do verão que reinava para além das vidraças, apesar do calor tropical da própria sala, a luz tênue que entrava pelas janelas era fria e crua, buscando, faminta, algum manequim coberto de roupas, algum vulto acadêmico pálido e arrepiado, mas só encontrando o vidro, o níquel e a porcelana de brilho glacial de um laboratório. À algidez hibernal respondia a algidez hibernal. As blusas dos trabalhadores eram brancas, suas mãos estavam revestidas de
720
luvas de borracha pálida, de tonalidade cadavérica. A luz era gelada, morta, espectral. (HUXLEY, 2014, p.21)
Será que sempre houvera aquele cenário de casas do século XIX caindo aos pedaços, paredes laterais escoradas com vigas de madeira, janelas remendadas com papelão, telhados reforçados com chapas de ferro corrugado, decrépitos muros de jardins adernando em todas as direções? (ORWELL, 2004, p.13-14)
A ideia de “mar de gente”, a multidão que surge com a
ascensão da metrópole moderna, é também um elemento
importante para ambos os gêneros. Já presente em “O homem da
multidão” (1840), de Poe, a ideia da multidão surge nas distopias
através, sobretudo, de uma coletividade compulsória e sufocante, da
qual os protagonistas tentam escapar através da reafirmação de sua
individualidade – seja pelo amor, pela arte, pela crítica, pelo crime
etc. Em Nós a coletividade já é expressa no próprio título e é de tal
forma extremada que as casas são transparentes para que ninguém
cultive a ideia de privacidade. Nas demais obras, não deixamos de
ver, também, certa dissolução ou mesmo criminalização da
individualidade: a união pelos ideais do Partido em 1984, a poligamia
compulsória em Admirável mundo novo ou o sistema de telas
múltiplas e os programas interativos em Fahrenheit 451.
Percebemos, assim, que a Distopia, ao utilizar os diversos
aspectos do Gótico aqui apresentados, compartilha com esse gênero
um de seus objetivos centrais: colocar como questão os problemas,
medos e limites de seu próprio tempo, sendo, assim, uma ferramenta
de crítica política e social. Ainda que pudéssemos listar outras
características que fortalecem a tese de que a distopia, se não é
diretamente uma vertente do Gótico no século XX, ao menos utiliza
721
muitas de suas estratégias narrativas, optamos por aprofundar as
características já descritas através da análise de nosso corpus.
Ainda que trabalhar com uma das obras supracitadas facilitaria
a compreensão geral, uma vez que são amplamente conhecidas,
acreditamos que, devido a sua extensa fortuna crítica, muito do que
se poderia falar sobre os elementos góticos nelas encontrados já
pode ser visto em outros textos (SCHÄFER, 1979; CARTWRIGTH,
2005).
Da mesma forma que as distopias da primeira metade do
século XX surgem de uma situação política tensa, com, entre outros
horrores, duas guerras mundiais vividas de perto por seus autores, no
Brasil, Não verás país nenhum é publicado durante um período
delicado de nossa política: a ditadura militar. O autor, Ignácio de
Loyola Brandão, jornalista e escritor paulista, já havia sofrido censura
com seu romance Zero (1975), e encontrou na ficção distópica uma
forma de contornar a censura militar. Partindo de um conto seu
anterior, “O homem com um furo na mão”, que passa a servir de
situação inicial para a obra, Brandão publica, em 1981, Não verás país
nenhum.
Nela, Souza, professor universitário afastado do cargo por suas
atitudes políticas, desperta, um dia, com uma coceira na mão, que
evolui até se tornar um furo. A peculiar patologia serve como uma
epifania, o passo final para a tomada de consciência e atitude contra
o sistema, típica do protagonista distópico. A partir de então, a
história narra sua decadência, a perda do emprego, o abandono da
esposa e, ao fim, a prisão e o exílio para a morte.
A trama central, contudo, nos interessará menos, aqui, do que
as situações observadas pelo protagonista durante a obra. Narrado
em primeira pessoa, Souza se torna um guia que descreve com
722
detalhes, como se o fizesse a um estrangeiro, os muitos aspectos
daquela São Paulo distópica e apocalíptica. Dominada por um sistema
político corrupto e totalitário, em meio a um ecossistema arruinado
pela ação do homem, criminalidade e proliferação de doenças
convivem na cidade com uma burocracia kafkiana em um Brasil
minguado pela desertificação e pela venda de estados a
multinacionais.
Um elemento importante para se frisar antes de analisar a
sociedade construída na obra de Brandão é a percepção da
população do meio em que vivem. Nas obras mais tradicionais, a
maior parte da sociedade vê o sistema em que vivem como ideal,
utópico. Nessas distopias, de fato, os males, em comparação aos
problemas das sociedades que lhes antecederam, haviam sido
reduzidos, se não eliminados – ainda que à custa de liberdade e
individualidade. Já em Não verás país nenhum, temos uma distopia
concomitante a um apocalipse ecológico que avança claramente ao
longo da narrativa. Dessa forma, ainda que a população não tenha
muito como libertar-se daquele sistema – nem mesmo Souza ou os
revolucionários podem fazê-lo – vemos em seus discursos não
ufanismo, mas revolta.
O excesso gótico surge primeiramente através do problema do
meio-ambiente. A década de 70, marcada pela consolidação do
ativismo ambiental, reforçou no imaginário a ideia de um apocalipse
ecológico. Com altas taxas de desmatamento e poluição, e,
principalmente, com o início da construção da usina nuclear de
Angra, o medo de um futuro catastrófico se difundia pela população.
Na obra, extremam-se todas as consequências negativas
desses atos, de forma que se constrói um Brasil desolado, em que a
floresta amazônica se tornou um deserto, as praias são isoladas por
perigo de contaminação, não há mais solos férteis e resta pouca água
potável. O pior perigo, contudo, é o aquecimento global. Operando
uma inversão peculiar em relação ao Gótico, em que é a noite que
723
abriga os males, em Não verás país nenhum é o sol que se torna letal,
amaldiçoando a humanidade com a clássica fraqueza vampírica:
O sol atravessava como verruma, matava. Ao menos, era a imagem que a gente tinha, porque a pessoa dava um berro enorme, apertava a cabeça com as duas mãos, o olho saltava, a boca se abria em busca de ar. Num segundo, o infeliz caía, duro, sem contorcer. A gente via, a alguns passos, a pessoa murchando, secando, desidratada, a pele se desgrudava como folha seca, mais um pouco e os ossos dissolviam. (BRANDÃO, 1988, p.193)
Nesse ambiente completamente hostil, a única forma de
sobrevivência é manter-se dentro do que parece ser a última
metrópole do Brasil: retomando um cenário típico do Gótico urbano
do século XIX, vemos uma São Paulo superlotada, labiríntica e em
ruínas, com violência e corrupção convivendo com a miséria da maior
parte de seus cidadãos. Mantendo o padrão das distopias antes
mencionadas, há também nessa cidade um poder totalitário que
encabeça o regime. Esse governo, contudo, não funciona de forma
tão absoluta quanto seus pares estrangeiros. Enquanto os sistemas
das distopias tradicionais controlam cada aspecto de suas respectivas
comunidades, o Esquema, como é chamado esse poder central na
São Paulo futurista, parece surgir como uma força ilusória, unindo de
forma abstrata uma série de micropoderes que negociam seus
próprios domínios na cidade.
Nesse sentido, podemos ver, em Não verás país nenhum, uma
obra de transição entre o modelo das distopias clássicas, nas quais
uma das principais características vistas é a presença de um Estado
forte, de uma instituição totalitária que garante a ordem, e as
distopias pós-modernas, que poderiam ser caracterizadas seguindo
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as ideias de Bauman ao discutir os medos usados nas utopias da
modernidade líquida:
Não importa onde se ambientem, as utopias criadas atualmente reciclam um novo tipo de temor: um medo proveniente menos da ação que da negligência, horrores surgindo não dos excessos e da ambição extrema, mas do próprio colapso do controle (tanto por falta de habilidade quanto por falta de vontade). [...] na ausência de setores responsáveis pela produção do medo e de uma equipe geral para comandar e dar destino a esses produtos, na ausência de um centro de poder para ser invadido, tomado e incendiado a fim de livrar a todos de seus pavores e fobias, estamos todos condenados a confrontar nossos medos individualmente e traçar nossas próprias artimanhas e subterfúgios para combatê-los, porque os medos que temos em comum não culminam em uma união de interesses e causa comum, e não se fundem em um estímulo de unir forças. (BAUMAN, 2013, p.79-80 − tradução do autor)
Ainda que o poder não tenha sido totalmente descentralizado
na sociedade de Não verás país nenhum, sua estrutura se dispersa de
tal forma que encontrar suas origens e entender suas trajetórias
labirínticas se torna impossível, como confirma o próprio
protagonista: “Não me peçam para explicar a mecânica da estrutura.
Não há possibilidade, somente vivendo dentro dela” (BRANDÃO,
1988, p.38).
Uma estrutura de poder caótica reflete-se em uma cidade
igualmente problemática. A representação dessa metrópole, ainda
mais que seus pares europeus, remete às representações urbanas do
gótico do XIX. O primeiro elemento que se destaca é a presença
ameaçadora da multidão:
725
Durante certo tempo comentamos a multidão que crescia, dia a dia, na cidade. Comentávamos, tranquilamente, sem medo, sem realizar o que estava se passando. Era uma constatação dos dias que corriam. Não me preocupava de onde tais pessoas vinham, ou porque estavam vindo. Ou quem eram. As ruas iam se enchendo, cada vez mais intransitáveis. Vieram os primeiros grandes problemas de circulação. E de repente, os meus rostos, aqueles que eu via diariamente, quase que às mesmas horas, em situações idênticas, passaram a desaparecer. Como se esvaíssem em plena neblina. (BRANDÃO, 1988, p.171)
Essa multidão, ainda que represente uma ameaça ao
sentimento de pertinência, de comunidade, no entanto, não se
compara à ameaça representada por esse segundo grupo que dela se
destaca: os mutilados, carecas e deficientes. A obra mostra como
esses personagens vêm, na verdade, da periferia da cidade. Sem
acesso aos mesmos bens do que o centro, como uma moradia para se
proteger do sol, comida e remédios, eles são marcados por
desnutrição, doenças e deformações:
As coisas que aparecem são desagradáveis. Os carecas, os que têm a pele caindo, os olhos inflamados, os surdos. Vi gente que veio do campo, sem um pelo no corpo, o nariz corroído por inseticidas, ouvidos purgando, gente que perdeu o controle motor. E os que andam com o pulmão artificial às costas, como os carros que usavam gasogênio na primeira guerra mundial? (BRANDÃO, 1988, p.103)
Chamados ao longo do livro apenas de Carecas, característica
que parece comum à maior parte dos que ficam expostos às
intempéries de um ambiente letal, esses indivíduos representam o
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medo daqueles que estão além das fronteiras – físicas ou sociais.
Bauman trabalha, em O mal-estar na pós-modernidade, a ideia de
que essa alteridade, corporificada através do que ele denomina de “o
estranho”, representa uma ameaça para a comunidade na qual se
insere, pois não compartilha – e não pode compartilhar – os valores e
práticas por ela instituídos. Presentes, mas alheios, esses estranhos
colocam em xeque a ordem da comunidade, sendo, então, vistos por
ela como uma impureza, um mal a ser evitado ou mesmo eliminado.
Bauman observa pelo menos três ordens sociais que criam três
tipos diferentes de estranhos: nos tempos pré-modernos, essa figura
estaria ligada, sobretudo, aos estrangeiros; na modernidade, esses
estranhos seriam demarcados por um fator ideológico, os
revolucionários60; na pós-modernidade, em que a fluidez de poderes
e identidades torna quase impossível a demarcação estável de um
estranho, Bauman argumentará que só resta uma forma de
identificação, o próprio acesso ao consumo. Dentro de uma
sociedade em que “o critério da pureza é a aptidão de participar do
jogo consumista, os deixados fora como um ‘problema’, como a
‘sujeira’ que precisa ser removida são os consumidores falhos”
(BAUMAN, 1998, p.24. − grifos do original).
Vemos assim, como em Não verás país nenhum se situa,
novamente, na fronteira entre a vertente moderna e pós-moderna
das distopias. Ainda que haja um poder centralizado, os
revolucionários, problema típico das distopias clássicos, não
representam um problema. Ao contrário, são os próprios cidadãos da 60
Vemos como, paradoxalmente, nas distopias clássicas, o próprio protagonista encarna o papel de estranho da sociedade na qual se insere. Ao rebelar-se contra as normas impostas, ameaça a estabilidade das crenças, das práticas e a da própria estrutura daquela comunidade. Como a história é narrada através da perspectiva desse protagonista – cujas ideias o aproximam do ideal propagado como positivo pela sociedade de seus leitores – assimilamos a situação de completa marginalização desse personagem, tendo a impressão que, na verdade, os estranhos são justamente todos aqueles que seguem os predicativos daquele sistema.
727
cidade, os mais pobres, sobretudo, que surgem como perigo a ser
tratado.
Esses estranhos, os carecas, não só representam a ameaça da
alteridade, como corporificam de forma radical esse perigo, sendo
demarcados por sua clara repugnância. Dentro das fronteiras da
cidade, vemos como seu papel espelha as relações entre as classes
sociais marginalizadas e as classes mais abastadas da cidade. Sua
condição, criada pelo sofrimento da desigualdade, é elemento
suficiente para provocar reações hostis no próprio protagonista:
No corredor, defronte ao barbeiro, um grupo de três carecas. Muito semelhantes aos que eu tinha visto ontem. Cara de perigosos. O que faziam por aqui? Teriam fichas de circulação? E se eu perguntasse? Ou mandasse um Civiltar indagar? Se não tiverem fichas, é melhor que desapareçam. (BRANDÃO, 1988, p.52)
Ao problema social soma-se, ainda, a própria geografia
labiríntica. Se, nas metrópoles góticas do XIX, a inacessibilidade se
construía através de barreiras puramente físicas, os milhares de ruas
e becos da cidade, na obra de Brandão, essas barreiras são também
burocráticas. Saber que conduções tomar, quais fichas de circulação é
preciso ter, saber a quem subornar e que caminho fazer, são todas
habilidades importantes para deslocar-se por essa urbe caótica.
O labirinto, espaço recorrente nas narrativas do gótico
setecentista, é a plena materialização de muitas características
próprias do gênero. O labirinto é, ao mesmo tempo, um ambiente
ermo e confinador, alienado e alienante do resto do mundo. Sua
estrutura reflete tanto a intricada lógica de sua construção quanto a
subversão da própria lógica do deslocamento. Ao ser transportado
para o ambiente urbano (BOTTING, 2005, p.74) como metáfora para
caos inerente às metrópoles modernas, o labirinto se torna
onipresente, parte integrante da vida na cidade, seja na
728
complexidade de sua geografia, a inescrutabilidade de sua burocracia
ou o confinamento e letalidade de sua estrutura social.
Nessa cidade labiríntica, o sobrinho de Souza, ainda que tão
confinado quanto o tio, faz parte de uma das duas forças que,
supostamente, deveriam reprimir o caos urbano, mas que acabam
não só colaborando para sua formação como tirando proveito da
situação. Os militares, militecnos como são chamados na ficção de
Brandão, parecem reesposáveis por uma boa parcela do poder
político e administrativo da cidade. Vemos novamente, na construção
desses personagens, relações com as distopias clássicas, uma vez que
parte de seu treinamento envolve a perda de sentimentos e
memória, tornando-os indivíduos maquinais:
Hoje, a palavra Militecno é corriqueira, incorporou-se ao linguajar. Mas então não sabíamos bem o que significava. Líamos na imprensa, ouvíamos no rádio e não ligávamos. Se tivéssemos previsto o perigo. Como podíamos sequer imaginar que aqueles homens não tinham o cérebro normal?
Ficou demonstrado pelos cientistas. Foi mais uma das razões que os tornaram marginalizados. Provou-se que os Militecnos sofreram metamorfose em seu organismo. O cérebro ficou afetado. Perdeu parte da memória. As emoções foram eliminadas. Tornaram-se serenamente calculistas. (BRANDÃO, 1988, p.29)
Por processos diferentes, o resultado não é muito diferente
daquele que encontramos em um Winston Smith após a tortura ou
na população da sociedade de Nós após a fantasiotomia. O perigo da
perda da razão – insanidade, delírio, psicose, possessão – e o perigo
da perda de emoções – apatia, reificação, tédio, mecanização – são já
recorrentes no Gótico, seja através da polarização das faculdades
729
morais em O médico e o monstro (1886), da ingenuidade monstruosa
de Frankeinstein, ou o Prometeu Moderno, ou mesmo pelo
hedonismo exacerbado – que acaba levando a uma anestesia emotiva
e moral – dos personagens de Sade ou dos dândis decadentistas, por
exemplo.
Ainda que friamente racionais, os militecnos não escapam à
corrupção. Presentes em todos os setores da sociedade, tanto nas
áreas administrativas quanto econômicas, eles utilizam
constantemente seu cargo como forma de negociar favores. Nisso se
equiparam à segunda força de repressão da cidade, os civiltares. Uma
espécie de milícia civil legalizada pelo Esquema, eles se assemelham,
na obra, ao papel da polícia militar nas grandes cidades, fazendo o
contato direto com a criminalidade das ruas. Oposto à frieza que
pode se esperar dos militecnos, esse grupo é conhecido por sua
violência e crueldade.
Enquanto o perigo dos excessos da razão pode ser plasmado
nos militecnos, os perigos de sua falta são encontrados diretamente
em Sousa. Processo iniciado pela descoberta do buraco em sua mão,
ao longo da narrativa a personagem perde progressivamente as
amarras sociais na qual todo cidadão se vê preso. O ponto definitivo,
contudo, que a levará finalmente à prisão e depois ao exílio, é, como
nas distopias clássicas e em diversas narrativas góticas, motivado por
uma figura feminina, uma femme fatale.
Após perder emprego, casa e mulher, Souza encontra-se em
uma parte desconhecida da zona pobre da cidade quando conhece
Elisa. Hipérbole da ausência da razão, Elisa gira sem parar no meio de
uma praça deserta quando Souza a vê pela primeira vez. No princípio
confuso, mas depois encantado pela liberdade sedutora da loucura,
Souza se envolve com ela, e após tentarem conseguir comida em um
bar próximo e entrarem em uma briga, são presos. Trancados no
porta-malas de uma viatura, Souza perde o resto de sua civilidade.
Primeiro, urina no local ínfimo. Depois, de alguma forma excitado
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pela situação, entre o cheiro de suor e urina, ali mesmo transa com
Elisa. Essa cena escatológica marca o início de uma trajetória sem
volta para a personagem.
Conduzido à prisão para cumprir pena e depois solto
novamente em algum ponto desconhecido da cidade, desnutrido,
sem permissões de circulação, sem esperanças de reconstruir sua
vida, acaba sendo obrigado a se mudar para as Marquises, uma área
construída pelo Esquema para abrigar os milhares de necessitados da
cidade. Vendida com uma melhora de vida para os pobres, as
Marquises eram apenas “milhares de colunas sustentando uma laje
de concreto” (BRANDÃO, 1988, p.321).
Aglomerados ao ponto de não conseguirem sentar, todos eram
obrigados a permanecer de pé “misturados, entrelaçados,
enganchados, unidos. Colados intimamente, trocando hálitos,
respirações, suores, peidos” (BRANDÃO, 1988, p.332). Vemos nesse
corpo grotesco, somatório de todos os rejeitos que a sociedade não
consegue administrar mais, uma extrapolação da ideia do homo sacer
de Agambem, do qual parte também Bauman, em Vidas
desperdiçadas, para analisar o chamado “refugo humano” da
modernidade (BAUMAN, 2005, p.44), a parte da população vista
como excedente, dispensável, e, por isso, programaticamente
excluída de seu progresso. Na narrativa, vemos como essa exclusão se
dá de forma concreta, com o estado despejando a população em um
grande depósito de lixo humano.
A narrativa termina, enfim, com uma nota de esperança. Sousa
percebe que o buraco em sua mão, motivador de toda sua situação,
desapareceu. Pouco depois, não se sabe se levado pela loucura, sente
cheiro de terra molhada por uma chuva natural que não se
encontrava mais naquele ambiente. Dessa forma, seguindo a tônica
dos romances distópicos tradicionais, vemos um fim que de forma
alguma pode ser encarado como a libertação daquele sistema, mas
que, assim como o posfácio de 1984, a tentativa de revolução em Nós
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ou os homens-livro de Fahrenheit 451, dão abertura para uma
esperança de escapatória de um futuro ameaçadoramente gótico.
Sabemos que apenas para lidar com as relações entre gótico e
distopia, seria necessário mais de um artigo, como os trabalhos de
Cartwright e Schäfer mostram. Da mesma forma, abordar com
detalhe todos os elementos de um romance rico em relações com a
sociedade e com a tradição da literatura distópica tampouco é
possível no espaço limitado de um artigo.
Sendo assim, ainda que o trabalho pendule entre dois temas
demasiado grandes para sua alçada, acreditamos ser importante
fortalecer a fortuna crítica do gênero distópico em território nacional.
Mostrando ao longo da obra claras e muitas vezes nominais
referências aos pais do gênero e reconhecendo em mais de um
momento da narrativa a filiação da obra à ficção científica – talvez
pelo termo distopia ainda não estar tão popularizado –, Não verás
país nenhum nos permite ainda perceber como a literatura distópica
canônica foi lida, apropriada e transformada em território nacional.
BAUMAN, Zigmunt (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editora.
______ (2005). Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
______; DONSKIS, Leonidas (2013). Moral blindness: the loss of sensitivity in
liquid modernity. Cambridge: Polity Press.
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as social criticism. Westport: Greenwood Press.
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732
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dystopian novels. August. University of Glasgow. Faculty of Arts. PHD thesis −
Department of English Literature.
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Vidal Serrano. São Paulo: Globo.
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dystopia. Colorado: Westview press.
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São Paulo: Companhia das Letras.
SADE, Donatien Alphonse François (2002). Os Crimes do amor e A Arte de
escrever ao gosto do público. Tradução: Magnólia Costa Santos. Porto
Alegre: L&PM.
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romance, dystopia”. Science Fiction Studies. (Vol.6). University Greencastle,
IN.
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