Pensar a educação, pensar o Brasil: memórias de relíquias nem um pouco
acadêmicas: os debates dos anos 1950-1960. Marcos Cezar de Freitas
Universidade Federal de São Paulo.
Uma opinião emitida pelo professor Florestan Fernandes em 1978, quando concedia
uma entrevista na qual analisava a “condição de sociólogo”, e que foi republicada em 2006,
pode nos servir de motivação (ou de provocação) para visitarmos novamente a história de
alguns debates sobre a educação brasileira, realizados nos transcorrer das décadas de 1950 e
1960. Dizia Florestan a respeito do modernismo, no Brasil:
(...) Mais do que qualquer outro grupo intelectual posterior, os modernistas
cederam ao de deveriam se opor, sucumbindo a uma condição intelectual à qual
pretendiam renunciar mas não renunciaram. (...) Ficam, positivamente, as inquietações
novas. Mas o que elas refletem? Tome-se, para a análise, a antropofagia. É incrível! Em
uma sociedade que tinha os problemas da sociedade brasileira, os intelectuais se
masturbam daquela maneira! Não é possível. Voltemos ao paralelo com Mariátegui (...). Aí
temos uma interpretação densa, crítica e negadora do Peru. O Peru do passado e o Peru
do presente, desembocando em uma concepção totalizadora e integradora do Peru através
de uma revolução socialista. Em meu entender, isso encerra a questão! (...) Para mim é
estranho que os universitários venham insistindo mais no estudo do modernismo que no do
significado revolucionário intrínseco à implantação da universidade e à criação em São
Paulo da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Com todas as suas insuficiências, essa
inovação atingia o fulcro das elites culturais e de sua dominação conservadora, que era,
até então, a escola superior isolada (Fernandes 2006, 25-6).
Esse diagnóstico do modernismo oferecido por um sociólogo que é considerado por
seus pares uma verdadeira escola de sociologia, tem em sua estrutura argumentativa uma
representação do rigor aliada a uma dimensão de compromisso político. Ou seja, na opinião
de Florestan o modernismo brasileiro fora débil por não ter sido capaz de negar o que
deveria ter negado em relação ao Brasil. Mas fora débil também pela incapacidade
demonstrada em afirmar o que deveria ser afirmado em relação ao porvir.
A comparação com o Peru, evocando a obra de Mariátegui, é um sinal de que para o
reconhecido sociólogo a capacidade de prognosticar é também parte constituinte (talvez
instituidora) da capacidade de diagnosticar. Mas não nos detenhamos em Mariátegui. A
evocação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo na
estrutura dessa argumentação projeta uma sombra sobre inúmeras iniciativas que se
propuseram a “pensar o Brasil” e que não foram reconhecidas como partícipes das análises
“interessadas” na construção do socialismo. A memória da FFCL tornou-se uma espécie de
“certificação de qualidade”. O trabalho na FFCL da USP, em inúmeras circunstâncias
compareceu ao campo argumentativo do autor para indicar suas concordâncias e
discordâncias em relação àqueles que se propunham a pensar o Brasil.
Pensar o Brasil, no transcorrer das décadas de 1940, 1950 e 1960 tornou-se
expressão análoga a “(re)visitar” o Brasil, aproximar-se de sua entranhas. Muitos
empreendimentos de análise, pessoais ou coletivos, revelaram-se verdadeiros mergulhos
num país aparentemente retido em seu passado. Todavia, muitos projetos não fazem parte
da história dos grandes monumentos das ciências sociais por motivos que ainda carecem de
melhor justificação. Aparentemente, muitas iniciativas no campo das ciências sociais foram
desvalorizadas no bojo de uma desvalorização geral que muitas vezes se associa à ciência
social feita fora da universidade e à ciência política feita para fora da prognose socialista.
Muitos deslocamentos em direção ao Brasil considerado arcaico ou rústico foram
realizados a despeito de desconfianças acadêmicas e, mesmo assim, trouxeram resultados
expressivos em termos de identificação das formas e falas do país real, como se dizia nos
anos 1950.
A história dos debates sobre a educação e a cultura no Brasil não pode ser contada
com rigor sem recuperar a riqueza (sim, a riqueza) de muitas iniciativas de aproximação em
relação à cultura popular e que, a despeito do descrédito acadêmico em relação ao rigor de
seus procedimentos, carregavam em seus propósitos importantes releituras do passado e
generosas contribuições para o futuro.
Proponho, com base em estudos já feitos, relembrar alguns casos exemplares dessa
situação (Cf. Freitas 2001; 2005).
1) O Teatro Experimental do Negro foi criado em 1944 e estava associado ao conjunto
de iniciativas que buscavam alternativas para a expressão cultural do negro; para o resgate
de seu patrimônio artístico e para sua inserção nos condomínios da sociedade letrada, na
qual se somavam preconceitos raciais com discriminação generalizada em relação ao
precário índice de escolarização daquela parcela expressiva da sociedade brasileira. A
iniciativa fez parte de um amplo movimento que reavivou a importância dos estudos
étnicos, no Brasil. Quando o projeto UNESCO sobre relações raciais, que será comentado
mais adiante, chegou ao Brasil na década seguinte, pelas mãos de Anísio Teixeira,
encontrou um terreno de discussão já fertilizado pelo Teatro Experimental do Negro.
Sua mais expressiva liderança, Abdias Nascimento, proclamou a importância do
Teatro Experimental nos seguintes termos:
A mentalidade de nossa população de cor é ainda pré-letrada e pré-lógica.
As técnicas sociais letradas ou lógicas, os conceitos, as idéias mal a
atingem. (...) Não é com elucubrações de gabinete que atingiremos e
organizaremos esta massa, mas captando e sublimando a sua profunda
vivência ingênua, o que exige a aliança de uma certa intuição morfológica
com o senso sociológico. Com estas palavras desejo assinalar que o Teatro
Experimental do Negro não é, nem uma sociedade política, nem
simplesmente uma associação artística, mas um experimento psico-
sociológico, tendo em vista adestrar gradativamente a gente negra nos
estilos de comportamento da classe média superior da sociedade brasileira.
(...) Com efeito, a população de cor, em virtude do seu baixo nível cultural,
não tem a preparação necessária para definir os seus próprios problemas.
Precisamos ouvir os estudiosos, consultar os entendidos e ouvir os próprios
negros (Nascimento, 1949, 11).
A liderança do movimento rapidamente expõe seus pressupostos teóricos com os
quais concebia aquela atividade artística como instância de ensino e formação.
Rapidamente se identifica a obra de Lévi-Bruhl como sustentáculo do analista. Por outro
lado, quando em 1949 o Teatro Experimental do Negro criou o Instituto Nacional do
Negro, Abdias Nascimento chamou atenção
(...) para o seu programa que incluía desde a alfabetização do homem de
cor, a aprendizagem técnica de representar o drama, a educação social e
cívica, a introdução na esfera da alta cultura, num esforço de valorizar o
negro socialmente, de impulsionar sua definitiva integração na
nacionalidade, livre de recalques e complexos de inferioridade, mas sim
numa positiva afirmação da personalidade criadora (Nascimento, 1950, 29).
A rejeição às “elucubrações de gabinete” ao mesmo tempo em que fortalecia a
instalação de dispositivos de tutela sobre aqueles considerados em situação “pré-lógica”,
também favorecia a entrada em cena de sujeitos e falas que expressavam um cuidado
“adaptativo” em relação ao analfabeto. Esse tipo de cuidado, que ganharia inúmeras
variações nos anos seguintes, tornar-se-ia uma marca registrada das manifestações
intelectuais que se dedicaram a defender a hipótese de que no seio da sociedade civil
existiam oportunidades concretas para se pensar a educação como estratégia de
“recuperação cultural”.
Diretamente envolvido com o Teatro Experimental do Negro, mas formado na
órbita de influência que proporcionava a circulação de Jacques Maritain e de Emmanuel
Monier, o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos é um exemplo da ação intelectual voltada
para a afirmação de pressupostos semelhantes.
Trata-se de um intelectual que se credenciou internacionalmente e que, ao expressar
conteúdos políticos de feição católica, não o fez em nome da Igreja, mas em nome da
sociedade civil. Um dos registros mais notáveis dessa intervenção foi a defesa da “redução
sociológica”. A proposta de Guerreiro Ramos pode ser considerada uma entre tantas
expressões, nascidas ao redor do tema cultura popular que se apresentava em defesa da
“descolonização das mentalidades”. Não é de menor relevância lembrar que o intento de
descolonizar as mentes levava a supor a existência de uma sociedade civil internacional
designada geopoliticamente como Terceiro Mundo.
Em relação à cultura brasileira indicava o sociólogo a necessidade de uma “atitude”
de comprometimento com a rusticidade presente na sociedade, de modo a recusar o elitismo
das propostas que desconsideravam a “fase” na qual se encontravam as pessoas
Num esforço didático considerável, Guerreiro Ramos indicava que
(...) a redução consiste na eliminação de tudo aquilo que, pelo seu caráter
acessório e secundário, perturba o esforço de compreensão e a obtenção do
essencial de um dado. (...) Seja praticada no domínio teórico, seja no
domínio das operações empíricas, é sempre a mesma atividade. A redução
de uma idéia ou de um minério, por exemplo, consiste em desembaraçá-los
de suas componentes secundárias para que se mostrem no que são
essencialmente.(...) A redução sociológica, porém, é ditada não somente
pelo imperativo de conhecer, mas também pela necessidade social de uma
comunidade que, na realização de seu projeto de existência histórica, tem de
servir-se da experiência de outras comunidades. (Guerreiro Ramos, 1996,
71).
A redução sociológica foi um dos mais sofisticados libelos em defesa do direito de
escolha da sociedade civil quanto aos conteúdos destinados à modelagem de sua formação,
tanto no campo da escolarização, e seus corolários curriculares, quanto no campo da
pesquisa, e suas possibilidades heurísticas.
Nas palavras de seu proponente o projeto deveria ser entendido como
(...) um procedimento crítico-assimilativo da experiência estrangeira. A
redução sociológica não implica isolacionismo, nem exaltação romântica do
local, regional ou nacional. É, ao contrário, dirigida por uma aspiração ao
universal, mediatizado, porém, pelo local, regional ou nacional. Não
pretende opor-se à prática de transplantações, mas quer submetê-las a
apurados critérios de seletividade. Uma sociedade onde se desenvolve a
capacidade de auto articular-se, tornar-se conscientemente seletiva. Diz-se
aqui conscientemente seletiva, pois em todo grupo social há uma
seletividade inconsciente que se incumbe de distorcer ou reinterpretar os
produtos culturais importados, contrariando, muitas vezes, a expectativa dos
que praticam ou aconselham as transplantações literais (Guerreiro Ramos,
1996, 73).
Alberto Guerreiro Ramos envolveu-se em ruidosas polêmicas e a proposta da
redução sociológica foi rejeitada de forma contundente por Florestan Fernandes (cf. Freitas
1998, pp. 115-139). Da mesma forma, entre Guerreiro Ramos e o filósofo Álvaro Vieira
Pinto manifestaram-se discordâncias significativas (cf idem, ibidem). Nos limites deste
espaço não é possível recuperar completamente o conteúdo de tais divergências.
Há que se ponderar, contudo, que o que motivava boa parte daquelas divergências
era a intenção de debater sobre a necessidade ou não de se adaptar os conteúdos escolares à
capacidade de intelecção daqueles que correspondiam à parcela excluída das instituições
que formalizavam a posse de cultura letrada. Ensinar, na opinião de muitos intelectuais que
se envolveram com a questão deveria ser uma atitude de encontro entre educador e
educando, de modo a reduzir a distância, inclusive social, entre um e outro.
Diante desse quadro, mesmo com o litígio intelectual que os envolvia, Álvaro Vieira
Pinto estimulou a utilização de um argumento que, ao termo, reforçava politicamente a
plataforma epistemológica da redução sociológica.
A realidade concreta era a mais privilegiada instância de ensino em qualquer
circunstância, muito particularmente aquelas consideradas “subdesenvolvidas”, nas quais o
imperativo da liberação do dinamismo das forças produtivas exigia o reconhecimento de
que a sociedade “já podia ser reconhecida” como portadora de uma cultura autêntica.
Diante dessa autenticidade, ser letrado ou iletrado não era uma diferença tão
relevante em face à possibilidade de se expressar uma “consciência crítica”. Aliás,
“reduzir” conteúdos, tanto na acepção de Guerreiro Ramos quanto de Vieira Pinto, era uma
estratégia empiricamente já testada pela sociedade, necessitando ser assumida por todos
como veículo de manifestação da consciência que deveria, então, se descolonizar. O fato é
que alguma espécie de “redução sociológica” já fazia parte das estratégias de trabalho de
muitos educadores que lidavam com a escolarização de crianças, jovens e adultos em
condições econômicas e sociais adversas.
O que diferenciava o argumento de Álvaro Vieira Pinto no encontro entre
intelectuais e o tema da educação popular era que o autor de Consciência e realidade
nacional sustentava a hipótese de que o analfabetismo “não existia”.
No seu entender, na sociedade estariam dispersos vários tipos de linguagem, todas
articuladas como “alfabetos paralelos” dentro dos quais a cultura popular armazenaria a
memória social do trabalho.
Em relação à aquisição da habilidade de leitura e escrita procurava distinguir a falta
de escolarização da falta de alfabetização. Vieira considerava o alfabeto como uma “escala
cultural”. Se essa escala fosse imaginada como um continuum de zero a dez, no seu
entender seria consistente pensar que a sociedade congrega pessoas situadas em diferentes
pontos da mesma escala. Assim, propunha que se pensasse a pessoa que não sabe ler e
escrever como um alfabetizado “em escala zero”, ontologicamente diferente do analfabeto.
Dependendo da circunstância histórica, o alfabetizado em escala zero poderia portar
uma consciência mais crítica do que o alfabetizado em escala oito, ou nove, ou dez, por
exemplo. Isso porque o não manuseio das ferramentas do alfabeto não significava inaptidão
para o “manuseio” da realidade que circunda a existência de cada um; uma realidade que
está sempre “à mão” de quem trabalha.
Mesmo que a sociedade mantivesse “zonas iluminadas e não iluminadas” de cultura
letrada, e que o trânsito de uma para outra significasse um grande salto em direção ao
desenvolvimento nacional, na cultura iletrada Álvaro Vieira Pinto encontrava uma “cultura
em si” (cf. Pinto, 1960b, 16).
Admitindo uma “cultura em si” Vieira Pinto não deixava de reconhecer a
necessidade de se formalizar o auxílio àqueles que precisavam romper com a precariedade
material de sua existência. Por isso advertia que
O trabalho que as massas executam funda sua visão de mundo. Nas formas
inferiores, exploradas, humildes, o trabalhador não chega a ter senão uma
noção sensível de sua realidade, e, ainda que deseje modificá-la, não
alcança compreender como isso seria possível. Ao progredir nas formas de
produção, se criam formas superiores de trabalho, realizado por um volume
cada vez maior de pessoas, as quais pela necessidade de fazê-lo bem, têm
que possuir conhecimentos amplos. Precisam de instrução técnica e uma
formação cultural que tende sempre a crescer, sem possibilidade de que
interesses na execução do trabalho possam fixar-lhe um limite. A
consciência do trabalhador, uma vez despertada, se descobre como um
processo individual sempre mais independente. Com isso, sua percepção de
realidade se engrandece, e aprofunda o conhecimento das causas de sua
situação; e assim o indivíduo é levado a uma interpretação de si mesmo, de
seu papel no mundo e na sociedade (Pinto, 1973, 244-5).
Estamos diante de uma leitura antropológica da relação homem/aprendizagem;
antropológica à medida que expõe o sujeito em seu intercâmbio com o meio realizando
diferentes modalidades de trabalho. Essa variabilidade na modulação das formas de se
trabalhar constitui o cerne daquilo que, em sua obra, é designada como “cultura”. Com tais
pressupostos, Álvaro Vieira rejeitava a proposta educacional que
(...) não percebe que o povo está sempre educado na espécie e no grau de
educação que lhe permitem as condições da realidade onde vive. Julga que
a educação, como ideal e sistema, precede o processo real e o deve
conduzir. Mas em vez de considerá-la como efetiva inserção do indivíduo
nesse processo, considera-a como iluminação intelectual, necessária para
adquirir idéias e hábitos, a impor em seguir à comunidade atrasada (Pinto
1960 [II], 381-2).
Os argumentos provenientes de autores divergentes e discrepantes entre si, no que
toca aos temas ensino e sociedade civil encontravam um ponto de síntese no
reconhecimento de que a parcela rústica da sociedade, ainda que carecida de escolarização
formal, não poderia ser considerada incapacitada a participar do processo de superação do
subdesenvolvimento econômico. Ainda que passar da condição de pouco ou nada
escolarizado para a condição de plenamente escolarizado fosse considerado um direito
imediatamente referido à ampliação da cidadania, no âmago dessas contribuições
depositou-se um elogio ao homem em sua forma arcaica justamente porque o arcaico
deixou de ser visto como vazio de significados culturais.
Na mesma senda, alvo de críticas, mas também de adesões significativas, Paulo
Freire dedicava-se a formular um método extraído do próprio segmento social considerado
rústico ou arcaico. Em relação ao tema e às provocações que a dicotomia arcaico/moderno
apresentava como desafio interpretativo, Freire ofereceu o seguinte testemunho:
Ocorreu comigo uma longa e lenta evolução. Apesar disso é superficial
criticar meu trabalho denunciando os elementos idealistas de meus livros
sem considerar este partir da linguagem do povo, dos valores do povo, de
sua concepção do mundo. É necessário percebê-lo como um elemento
prenunciador de minha nova posição. (...) [Nesse sentido] A recusa da
cartilha é mais importante do que possa parecer à primeira vista. Se a
alfabetização deve começar pelas palavras do povo, pelo seu universo
vocabular, é para que o povo possa analisar suas próprias palavras, criar e
recriar sua própria linguagem. As cartilhas levam ao contrário de tudo isso.
Mesmo quando se parte da hipótese mais otimista, isto é, aquela das
cartilhas extraídas (...) não das palavras do educador, mas de um
conhecimento prévio da linguagem popular, o problema permanece inteiro.
Com efeito, quando o autor de uma cartilha decompõe as palavras em
sílabas e recompõe com essas sílabas novas palavras e novas frases, ele está
outra vez dando novas palavras e novas frases aos alunos. Esta doação é
uma imposição, uma inculcação ideológica. É isso que eu não queria
aceitar. É preciso ser coerente com o princípio de evitar imposição. É aos
analfabetos que compete decompor e recompor suas próprias palavras.
Somente eles podem utilizá-las como instrumento de recriação de sua
linguagem e, assim, por esse meio, tomar consciência de sua situação real.
(Freire, 1982, p.18-9).
Ao intento de oferecer ao homem iletrado a oportunidade de interferir na
organização de seu próprio processo de alfabetização, mediante a recolha de suas “palavras
geradoras” e de seu vocabulário base, somava-se a intenção política de mobilizar o
educador da escola para o lugar do educando, lugar esse muitas vezes genericamente
entendido como “comunidade”.
Observar esse deslocamento significa acompanhar simultaneamente outros
movimentos em direção ao povo com o intuito de ouvi-lo, mobilizá-lo e convidá-lo a uma
nova etapa do “desenvolvimento nacional” por mais que isso oscilasse entre o ilusório e o
dramático.
O tema do desenvolvimento nacional nos oferece a oportunidade para identificar,
ainda que brevemente, outro exemplo de densa atividade intelectual que a exemplo do
Teatro Experimental do Negro; das pesquisas de Alberto Guerreiro Ramos e Vieira Pinto,
das inovações trazidas por Paulo Freire, não foi incluído no panteão dos grandes momentos
das ciências sociais.
2) No final de 1956, Djacir Meneses concluiu uma tarefa a ele confiada por Luiz de
Aguiar Costa Pinto, Roberto Moreira e Anísio Teixeira no âmbito das ações incentivadas
pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Meneses finalizou, naquela ocasião, a
redação da volumosa síntese O Brasil no pensamento brasileiro. Tratava-se de uma
coletânea de interpretações, imagens e sínteses sobre a história do Brasil organizadas como
um mosaico e dispostas em uma seqüência cujo empenho didático revelava seu intento:
separar do corpus da historiografia, da antropologia e das ciências sociais brasileiras os
elementos reveladores da morfologia do arcaísmo nacional. Cumpria enunciar como a
identidade nacional estava sendo reelaborada desde o século XIX nas mais diversas
tendências do pensamento social brasileiro. Conhecido o componente arcaico de nossas
cultura, sociedade e economia revelava-se imediatamente um projeto político: trazer o
conhecimento histórico para serviço de uma complexa idéia de modernização (Menezes
1998).
O estudo que gerou a coletânea O Brasil no pensamento brasileiro e que se
viabilizou no âmbito do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais fez parte de uma série
de iniciativas às quais devemos o projeto de se conhecer o país em suas singularidades. O
mais expressivo exemplo disso foi o programa de estudos em “cidades laboratório”, o qual
permitia que vários pesquisadores procedessem (com outro modus operandi) à leitura do
país no microscópio, onde supostamente os elementos de nosso arcaísmo se revelariam sem
intermediários. Djacir Meneses oferecia a “planta histórico sociológica” necessária para
que os estudos de caso vicejassem.
A importância de se evocar a síntese levada a efeito por Djacir Meneses decorre do
fato de que, ao observarmos o mosaico que dela resulta poderemos compreender aspectos
importantes do programa “cidades laboratório” do Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais, criado por Anísio Teixeira em 1956 no então Distrito Federal. Anísio
Teixeira pensava o “formato científico” das instituições que criava não só amparado em
opiniões de educadores e filósofos. Anísio Teixeira tinha uma concepção particular de
história e de processo histórico, ambas decisivas no seu modo de pensar as “cidades
laboratório”.
Penso que, das diversas tradições historiográficas que provinham do século XIX e
chegavam aos anos cinqüentas do século XX, Anísio Teixeira recolheu componentes
diversos com os quais construiu suas próprias metáforas dos arcaísmos presentes na cultura
brasileira. De suas análises sobre o caráter não-moderno do Brasil decorre sua acepção de
identidade nacional.
Anísio Teixeira reuniu as camadas de uma leitura histórica amplíssima para explicar
o que entendia por atraso cultural e econômico. Leu muito e do muito que leu “desviou”
análises das intenções políticas de seus autores e, com esse distanciamento, procurou reunir
“chaves históricas” para decifrar os enigmas de nossa civilização material.
A coletânea O Brasil no pensamento brasileiro, com suas alentadas 822 páginas
ajuda a compreender o topos analítico de Anísio, mediante a descrição de seus “temores”:
No Brasil, o elemento dirigente se recruta no “patriciado agrícola (Oliveira Viana), que organizaria a produção rural, durante o império; e, na República, há crescente participação das elites urbanas, efeitos da semi-industrialização; em tais camadas se concentra o pensamento previdente e providente. E possidente.
Porque a propriedade da terra, como fator essencial da riqueza, habilita a representar o “povo”. Eles são uma parcela, mas parcela onde se condensa a consciência do totus: essas camadas adquirem a convicção de que são elas a “nação”. (...) Mas a justificação ética da representação política, que dá à minoria o direito de falar em nome do “povo”, está na convicção de que promovem o desenvolvimento nacional – e não o interesse de grupos. Assim, ao ouvirmos as interrogações formuladas pelos escritores políticos do Império e da primeira República, pressentimos quanto essas elites estavam na boa convicção de que debatiam medidas de caráter público. Centralização ou descentralização? Unitarismo ou federalismo? Eleição direta ou por círculos? Trabalho servil ou salariado? Militarismo ou poder civil? (...) As idéias são importadas como as instituições, que as exprimem socialmente (Meneses: 1998: 15).
O “lugar” teórico e político de Anísio Teixeira era este: o da rejeição à
transplantação de idéias e instituições; o da convicção de que “permanências” advindas do
latifúndio e da escravidão apartavam o país do convívio com a razão e a democracia. Os
argumentos “desviados” para o “lugar” do qual falava podem ser recolhidos numa tradição
historiográfica que Anísio Teixeira “percorreu”, mesmo que dela diretamente jamais fizesse
referência explícita.
Há em seus escritos uma recorrência às genealogias; às conseqüências dos passos
históricos retiradas de movimentos de “longa duração”. Talvez o melhor exemplo disso
esteja resumido no ensaio O espírito científico e o mundo atual no qual Anísio discorre
sobre a trajetória da razão e da ciência desde a antigüidade clássica até o momento
histórico de sua “desaceleração”, a idade média. A partir dessa compreensão, tirada em
chave de longuíssima duração, o autor analisa a contemporaneidade levando em
consideração a necessidade de se retomar fios históricos rompidos, ou seja, reatar com a
trajetória da razão e buscar os instrumentos necessários para sair, para romper, com o
imobilismo medieval que sobrevivera em algumas sociedades forjadas pela cultura da
Contra Reforma. Sua referência direta era o Brasil.
Suas lentes tentavam dar visibilidade aos detalhes de uma sociedade que vinha
“funcionando” a partir da estruturação irracional de sua vida material. Afinal de contas,
tratava-se de uma concentração geográfica monumental cujas instituições mais longevas
presentes na configuração do Estado nação havia sido a grande propriedade e a escravidão.
Anísio Teixeira deixou-se convencer por uma tradição historiográfica lamentosa em
relação à presença da cultura ibérica no passado do Brasil. Rejeitava o forte componente
privado que esse passado legara ao país. Se a imagem da longa duração presente em alguns
escritos de Anísio nos faz lembrar Fernand Braudel, também algumas passagens do
historiador francês poderiam se confundir com a percepção anisiana de economia e
sociedade:
Entre vida material (no sentido de economia muito elementar) e vida econômica, a superfície de contato, que não é contínua, materializa-se em milhares de pontos modestos (...). Esses pontos são todos eles rupturas: de um lado, a vida econômica com suas trocas, suas moedas, seus pontos nodais e seus meios superiores, praças comerciais, bolsas ou grandes feiras; do outro, a vida material, a não-economia, sob o signo obcecante da auto-suficiência. A economia começa no limiar do valor de troca (Braudel: 1998b: 7).
Essa vida material, auto-suficiente, não é exatamente a da Economia com letra
maiúscula. O acervo conceptual de Anísio e de muitos intelectuais com os quais conviveu e
que o conduziu às afinidades historiográficas de sua trajetória, reitera permanentemente as
idéias de mudança e modernização, uma vez que esse acervo constituiu-se no
reconhecimento de que permanece anacronicamente na sociedade, uma vida material que se
contrapõe à vida econômica:
[trata-se do]...reconhecimento dos limites do possível no mundo da pré-indústria. Um desses limites é o lugar, então enorme, ocupado pela vida material (Braudel: 1998a: 13).
Mas o mundo da pré-indústria correspondia ao passado a ser superado. Mas o
passado não seria superado se não fosse estudado meticulosamente “de perto”. E como
estudar o passado de perto? Empreendendo uma aproximação em relação às chamadas
culturas locais, às chamadas cidades-laboratório. Assim, entende-se melhor a concepção de
centro de pesquisa avançada que estabeleceu-se no âmbito das ações do Estado delegadas
ao CBPE.
O CBPE fora concebido, desde a chegada de Anísio à direção do INEP em 1952,
como um centro avançado de altas investigações educacionais. Quando de sua
concretização, a vinculação entre as idéias originais do projeto e as iniciativas que, então,
eram patrocinadas pela UNESCO, compuseram uma situação que conspirou decisivamente
para que o CBPE reunisse sociólogos, antropólogos, psicólogos e historiadores ao redor do
tema educação.
O projeto original abriu-se à influência do organismo internacional que buscava
operacionalizar medidas visando a colaborar com o esforço de reconstrução do pós-segunda
guerra. A compreensão acerca do complexo quadro de diversidade étnica e cultural
espalhado em muitos países somou-se à percepção de que o “conhecimento local” poderia
trazer à luz os tipos humanos até então submersos no obscurantismo dos preconceitos
cientificistas e raciais ou no absoluto desconhecimento.
Na estrutura operacional do CBPE a Divisão de Estudos e Pesquisas Educacionais e
a Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais proporcionaram o envolvimento de profissionais
de vários jaezes com a questão educacional e, em contrapartida, permitiram aos chamados
educadores profissionais um envolvimento denso com questões que se apresentavam desde
o século XIX como decisivas à compreensão da cultura brasileira.
Um seleto grupo de intelectuais envolveu-se com a pesquisa educacional/cultural:
Charles Wagley, Jacques Lambert, Otto Klineberg, Andrew Pearce, Berta Hutchinson,
Almir de Castro, Jaime Abreu, João Roberto Moreira, Marvin Harris, Oracy Nogueira,
Orlando Valverde, Juarez Rodrigues Brandão Lopes, Carolina Martuscelli, Carl Withers,
Adroaldo Junqueira Aires, Josildeth Gomes, Carlos Castaldi, José Bonifácio Rodrigues,
Orlando F. de Melo, Luis de Castro Faria, Luiz Aguiar Costa Pinto, Fernando de Azevedo,
Gilberto Freyre, Almeida Júnior, Antonio Candido de Melo e Souza, Lourival Gomes
Machado, Florestan Fernandes, Roger Bastide, Egon Schaden, Darci Ribeiro, Maria José
Garcia Werebe, Aparecida Jolly Gouveia, José Mário Pires Azanha, Luiz Pereira, Celso de
Rui Beisieguel .
Essa plêiade diversificada de investigadores foi chamada a envolver-se com o
Programa Cidades-Laboratório, planejado no âmbito da Divisão de Pesquisas Sociais.
Tratava-se de um projeto que recuperava os procedimentos etnográficos e os direcionava a
um conjunto de pesquisas as quais, pautadas no estudo de caso, visavam trazer à luz a
enorme alteridade cultural na qual o país estava mergulhado.
O “mapeamento” da diversidade cultural fazia parte de uma estratégia ampla de
recuperação de temas tratados até então com critérios presos aos procedimentos científicos
do final do século XIX e início do século XX. Em tais procedimentos, questões de inegável
relevância foram trazidas à sociedade com os imperativos categóricos dos evolucionismos e
cientificismos da época, marcados pelas idéias eugenistas de um indisfarçável racismo e
padecendo do uso de abusivos movimentos de generalização analítica. Evidentemente,
entre os temas recuperados pelos “cebepianos”, a questão racial e a da miscigenação
apresentaram-se prontamente, e o fizeram fazendo-se acompanhar da retomada do tema da
distância entre os “muitos brasis”.
Com o objetivo de associar o conhecimento da especificidade regional, das
singularidades locais e da diversidade étnica, o projeto propunha elaborar “mapas
culturais”. Para Anísio Teixeira a produção dos mapas culturais revestia-se de valor
estratégico uma vez que os mapas ofereceriam subsídios para uma disseminação mais
qualificada da escola pública e uma articulação de conteúdos e normas curriculares mais
condizente com as nuanças locais. A pesquisa de campo convertia-se em estratégia de
Estado e o conhecimento local em componente da universalização do ensino.
O Informe CBPE de 1956, que justificava sua implantação planejada para o ano
posterior referia-se aos mapas culturais com os seguintes argumentos:
A expressão mapa cultural está naturalmente sendo usada como
um símbolo, para representar um conhecimento completo da
cultura brasileira contemporânea, no seu sentido mais amplo,
incluindo vida de família e criação de filhos; atividades
econômicas e sociais, o uso do tempo de lazer, atitudes
psicológicas, objetivos e ideais, com a devida atenção à herança
religiosa e ética do povo (...) O mapa educacional deverá conter,
também, um componente psicológico, representado pelas atitudes
do povo em relação às escolas, o grau e natureza da satisfação e
descontentamento, os desejos e esperanças – e possivelmente
também os temores – relativos à educação, qual contribuição
prática que o povo poderá dar à escola e assim por diante. (...) Se
o antropólogo social tiver sido designado pelo CENTRO para
elaborar um estudo de comunidade, é de esperar que ele dedique
atenção especial ao papel da escola na comunidade, à escola
como instituição, à composição (econômica, social, étnica) da
população da escola, às atividades e ocupações dos educandos, ao
status dos professores etc. Informe CBPE, 1956: 119-121).
Como se percebe, a investigação de campo, o estudo de caso, enfim, a produção dos
mapas culturais estavam diretamente vinculados à produção simultânea de um “mapa
educacional” de modo a tornar um campo de conhecimento a razão de ser do outro. A
estratégia reunia o conhecimento local com a reestruturação das práticas escolares.
O projeto investigativo do CBPE proporcionava aos educadores brasileiros a
apropriação de temas que até então se mantinham como “reféns” de uma tradição
interpretativa originada no século XIX.
Qual tradição?
* * *
Desde o século XIX algumas representações da realidade nacional foram associadas
às escolas interpretativas que se organizavam ao redor de um persistente conceito de
“realismo” com o qual a descrição do país e de seu povo correspondia a uma
desqualificação de suas possibilidades.
Vem de longa data, no Brasil, o incômodo em relação ao transplante de instituições
de um local para outro. Pode-se dizer que, em relação a esse incômodo uma tradição
analítica instalou-se no pensamento brasileiro e se manteve até meados do século XX (Cf.
Carvalho, 1998: 208-9 e Freitas, 2001: 20-21).
Pode-se recuperar nos escritos de Paulino José Soares de Souza, o Visconde do
Uruguai, os estudos comparativos acerca da estrutura organizacional e administrativa de
outros países. Em tais estudos o autor advertia sobre os riscos presentes na implantação de
leis incompatíveis com a “personalidade” do país e que, o grande risco a ser evitado pelas
autoridades deveria ser o da criação de regras que não levassem em consideração os
costumes arraigados no povo. Sugeria uma técnica de governo capaz de suprir, com gestos
administrativos, as lacunas peculiares a um país extravagante na composição de seu povo e
no compromisso de suas elites (Cf. Souza 1862: 27-31).
O mesmo cuidado em relação as (im)possibilidades do brasileiro ressurgem com
eloqüência na obra ruidosa de Silvio Romero. O polemista sergipano reconhecia na
diversidade brasileira um acervo rico de elementos para o conhecimento da cultura
tipicamente popular, mas, em contrapartida, mesmo quando denunciava a impropriedade
dos escritos que não reconheciam a cultura miscigenada do país, sinalizava um
“necessário” branqueamento da população. Por detrás de uma erudita acepção de
conhecimento local ou de aferição da realidade, revelavam-se as marcas de um
cientificismo que se apoiava nas teorias que queria evitar e, com isso, atestava que a
realidade nacional, conhecida de perto, revelava, antes de tudo, suas impossibilidades e
suas incompatibilidades em relação ao mundo moderno (Cf. Romero 1881 e 1888).
Essas inclinações, voltadas à própria desqualificação, ganharam intensidade e
pendores acadêmicos na formação da comunidade de antropólogos brasileiros, surgida ao
redor de Raimundo Nina Rodrigues. Neste, a valorização de técnicas antropométricas de
aferição das medidas de aptidão e inaptidão representaram um esforço laboratorial tenaz no
sentido de fazer com que a ciência olhasse de perto o homem considerado bárbaro, o
sertanejo a ser civilizado. Talvez o exemplo mais contundente desse esforço seja a cabeça
de Antonio Conselheiro solicitada por Nina Rodrigues para a realização de estudos e
medidas craniométricas.
Esse ciclo de investigações sobre a realidade brasileira no qual ciência, norma
jurídica e literatura se misturavam, encontrou, na abertura do século XX, no livro Os
sertões, de Euclides da Cunha, a suma metodológica que sintetizou uma realidade
considerada reveladora de um país real, porém desconhecido. Revelou um país que, se visto
de perto, estava condenado a “progredir ou desaparecer”. Considerava-se que Os sertões
descrevia uma realidade bruta, por assim dizer, primitiva.
O épico de Canudos tornou o sertão uma metáfora do país e espraiou a técnica
descritiva do autor como se fosse quase um “laudo técnico” a atestar a existência de outros
brasis, os quais, vistos de perto, conhecidos localmente, encareciam não só uma nova
ciência mas, antes de tudo, um projeto nacional (Cf. Lima, 1999).
Poucos textos foram tão influentes quanto o de Euclides da Cunha. Aquela “tradição
realista” vinha desde o século XIX alardeando as impossibilidades de um país que, se visto
de perto, revelava uma síntese perversa assentada na mistura da doença com o
analfabetismo e, tudo isso, com a herança da miscigenação.
Os sertões atualizou o argumento cientificista do século XIX e deu-lhe configuração
estética. A obra, jornalística a princípio, estabeleceu o elo entre aqueles autores e a nova
geração que, no século XX, continuaria alimentando a idéia de que uma peculiaridade
caracterizaria o país e que esta se revelaria somente com o investimento intelectual no
sentido de se conhecer a realidade “de perto”.
Alberto Torres, no início do século XX, acrescentou um ingrediente nacionalista a
essa tendência. De uma forma geral o homem mestiço do Brasil estava crivado por uma
ambigüidade nos textos nos quais era analisado. Ao mesmo tempo o homem (tipicamente)
brasileiro era responsabilizado pelas impossibilidades do país e, paradoxalmente, era
apontado como o portador de uma verdadeira essência nacional.
Torres insistiu com as demandas por um “conhecimento local”. O país, segundo ele,
aguardava uma política de recondução do homem ao campo posto que, na geografia,
encontravam-se os elementos mais adequados para se elaborar uma nação mais equilibrada.
O regresso à natureza era, mais do que uma hipótese político/administrativa, um projeto
civilizatório acompanhado de uma concepção de ciência considerada adequada a uma
realidade caprichosa, que se oferecia ao conhecimento apenas quando investigada a poucos
metros de distância (Cf. Torres 1938a e 1938b).
O mais influente continuador dessa tradição foi Francisco José de Oliveira Vianna.
O sociólogo jurista, com largo espectro de influência no Estado Novo, quando publicou,
entre tantos títulos, Evolução do povo brasileiro e Populações meridionais do Brasil foi
definitivamente guindado à condição de “intérprete do Brasil”. Oliveira Vianna sofisticou
uma argumentação racista que recolheu junto a autores como Gustave Le Bom e direcionou
uma psicologia social que fazia para os condomínios da ciência política.
Vianna reagiu à transplantação de idéias e instituições e talvez tenha sido o mais
erudito argumentador da “incompatibilidade” entre o povo brasileiro e a democracia
representativa, especialmente a de modelo anglo-saxão. A herança da miscigenação era, em
sua obra, lamentada e reconhecida como uma fatalidade capaz de impedir o país de
equiparar-se às nações, consideradas por ele, civilizadas. Propunha, inclusive, uma
apreciação de natureza empírica:
O erro dos nossos reformadores políticos tem sido querer realizar
aqui – no meio desses nossos rudimentarismos e estrutura e de
cultura política – uma democracia de tipo inglês. Porque sejam
quais forem as combinações a arranjos constitucionais que
engenharem, seja qual for a pregação dos novos Rui do futuro,
estaremos condenados a jamais ser ingleses. (...)O sufrágio
universal e o sufrágio igual é anticientífico, quando aplicado
sistematicamente a nosso povo. Pela pluralidade de sua estrutura
cultural e pela diversidade de sua estrutura ecológica, o nosso
povo está exigindo também uma pluralidade de sistemas eleitorais
ou, mais exatamente – uma pluralidade de eleitorados Vianna,
1974, V. II 131 e 156).
Essa impossibilidade de ser inglês tornava o brasileiro um estranho “objeto de
ciência”. Em nome de uma apropriação do “conhecimento local”, do entrever a “realidade
tal qual ela realmente é”, Oliveira Vianna recomendava a ditadura e a centralização de
decisões diante da “incapacidade atávica” desse povo de adaptar-se ao feitio de
determinadas instituições. Sabemos o quanto esse tipo de argumentação tornou-se influente.
Essa tradição realista, de certa forma, poderia ter em Oliveira Vianna seu último
representante deixando de lado o incomensurável movimento de recepção dessas idéias
através das quais o tema do conhecimento da realidade nacional foi inúmeras vezes
reeditado. Contudo, para não conceder a Oliveira Vianna o posto de finalizador de uma
trajetória interpretativa, o nome de Alberto Guerreiro Ramos deve acrescentado a essa
tradição, ressalvando-se seu decisivo distanciamento do cientificismo racista.
Guerreiro Ramos é, ao mesmo tempo, um ponto de continuidade e de inflexão em
relação àquela tradição. É uma inflexão à medida que analisou todos esses autores que o
precederam e, mesmo elogiando-os pelo empenho no sentido de articular uma ciência
sociológica nacional, manteve-se ancorado em outros domínios conceituais, especialmente
aqueles proporcionados pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL),
fundada em 1948 e que trazia à luz uma renovada conceituação de desenvolvimento e de
subdesenvolvimento econômico (Cf. Freitas 1998). Contudo, Guerreiro Ramos é um ponto
de continuidade à medida que associou a idéia de conhecimento local à hipótese de se fazer
uma sociologia adaptada às peculiaridades de um país subdesenvolvido. Propunha uma
“sociologia engajada” ou uma “sociologia em mangas de camisa” (Ramos 1957 e 1965).
A proposta metodológica de Guerreiro Ramos foi desqualificada com veemência
por Florestan Fernandes que considerou indébita a hipótese de uma adaptação do fazer
ciência a uma realidade nacional. Florestan advogava a universalidade cumulativa da
ciência a qual investia qualquer pesquisador da faculdade de perceber sua realidade numa
conjuntura mais ampla, sem reducionismos nacionalistas, segundo sua opinião (Cf.
Fernandes, 1980:70).
A rejeição por parte de Florestan Fernandes da redução sociológica de Guerreiro
Ramos gerou uma contundente polêmica entre ambos e que se cristalizou na memória das
ciências sociais brasileiras como um embate entre procedimentos acadêmicos e não
acadêmicos.
O importante a salientar é que, desde o século XIX, ao redor do tema
“conhecimento local” uma trajetória interpretativa fez-se constante e prolífica. Embora se
alterando no tempo, o tom comum entre tais autores, excetuando Guerreiro Ramos, era o
tom do “conhecer de perto” para “perceber as impossibilidades” dadas as “peculiaridades
locais”.
Essa tradição interpretativa será visitada pelos educadores brasileiros no âmbito do
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e de seus Centros Regionais de Pesquisas
Educacionais. Nesse movimento, uma concepção magnificada de trabalho e de formação
docente será responsável pela retirada do tema conhecimento local dos domínios no quais
permanecia há quase um século. Voltemos ao programa cidades-laboratório.
* * *
O Programa Cidades-Laboratório do CBPE proporcionou àqueles investigadores,
ineditamente envolvidos com o tema educação, a retomada de temas essenciais à
compreensão da cultura brasileira e que estavam, até então, à mercê de um tratamento
conceitual subordinado aos critérios expostos acima.
Em relação à escrita da história da educação, esse evento proporcionava um
movimento, no mínimo, paradoxal. A historiografia da educação fora, na década anterior,
configurada pelas mãos de Fernando de Azevedo quando da publicação de A cultura
brasileira (Cf. Carvalho, 1998). Cristalizava-se, na publicação daquela obra, um fazer
história da educação relacionado à crônica da articulação entre Estado e sociedade. Nessa
crônica, o professor aparece como conseqüência inexorável da ação governamental e a ação
escolar como resultado da presença ou da ausência do aparato legislativo sobre determinada
realidade geográfica (Cf. Azevedo, 1955).
O Programa Cidades-Laboratório associado simultaneamente às propostas de
realização de um mapa cultural e de um mapa educacional, tornou necessário envolver a
imagem do professor ao empreendimento de se (re)conhecer a realidade e de se perceber,
nela, o impacto da presença ou da ausência das instituições escolares.
O investimento nos estudos de caso oportunizou representar o professor, instalado
nos lugares mais ermos, como agente mais qualificado à tarefa de descrever localidades e
indicar, nelas, os elementos raízes necessários à compreensão das peculiaridades de cada
componente sócio-geográfico. A matéria histórica “construção da nacionalidade” que até
então fora celebrada por Fernando de Azevedo com a apologia do vigor da unidade
conseguida, tornava-se matéria antropológica a conduzir pesquisadores, professores e
habitantes locais à celebração da diversidade. Esta se tornou indício de um grande “valor
constitutivo da mesma nacionalidade”.
O objetivo traçado no sentido de retomar o conhecimento local, como prerrogativa
do esforço metodológico de se restabelecer as bases do mapa cultural brasileiro, guindou o
professor de cada localidade à condição de “primeiro intérprete” dos resultados do “ver de
perto”. Esse ver de perto sinalizava uma nova orientação àqueles que inseriam o Brasil no
roteiro dos estudos sobre a diversidade.
As representações do trabalho docente, nesse contexto, surgem magnificadas à
medida que o professor é considerado um interlocutor relevante; seus conteúdos são
considerados imprescindíveis a despeito das precariedades presentes em sua formação
profissional.
No âmbito dos Centros Regionais de Pesquisas Educacionais, os CRPEs, essa
(res)significação do trabalho docente pode ser avaliada em sua expressiva complexidade.
Especificamente o CRPE de São Paulo, instalado em 1956 na Universidade de São
Paulo, proporcionou uma modalidade diferenciada do estudo de caso, a qual colaborou
decisivamente para que uma nova geração de intelectuais resgatasse o tema da distância
entre os muitos brasis dos domínios interpretativos provenientes do século XIX, naquilo
que foi chamado ao início de tradição realista.
Os “dois brasis”, que até os anos cinqüentas do século vinte estavam contidos nas
metáforas euclidianas dos sertões, com o advento do CBPE passaram a ser considerados
componentes da refundação da sociologia da educação. No caso do CRPE de São Paulo
essa refundação conduziu os pesquisadores da Divisão de Pesquisas Educacionais à
formulação de um Programa Escolas-Laboratório, uma vez que compreenderam que a
metrópole paulista continha, em si mesma, muitos brasis.
No plano nacional, o estudo de caso conduzia-se levando em consideração aportes
interpretativos como os de Roger Bastide:
Todos os contrastes de terra e vegetação, de raças e de etnias, de
costumes e de estilos, permanecem brasileiros. Todas oposições de
velocidade e lentidão não impedem que o tempo, que ora parece
estagnar preguiçoso, ora se precipita para o futuro, seja sempre o
mesmo tempo brasileiro. Até agora, foi focalizada a harmonização
de contrários, água e fogo, açúcar e café, litoral e sertão, e
verificou-se que as civilizações antagônicas, a do gaúcho no sul e
a do vaqueiro no norte, a do fazendeiro e a do industrial, a do
negro e a do imigrante, são antes complementares do que
antagônicas. Mas há uma unidade mais profunda do que a simples
complementariedade entre elas; por toda parte, são encontrados
os mesmos problemas fundamentais, impostos pelo meio
geográfico ou herdados da história (Bastide, 1971, 232).
A identificação de “problemas fundamentais”, objeto da redefinição da problemática
dos muitos brasis, na metrópole, correspondia, no entender dos pesquisadores do CRPE de
São Paulo, ao estudo do impacto da cultura urbana, incluída aí a escola, sobre as
“mentalidades rústicas” que se instalavam na cidade provenientes de zonas rurais ou quase
que totalmente ruralizadas.
O professor da Escola-Laboratório era chamado a colaborar na observação empírica
dos muitos brasis instalados numa só cidade. As chamadas “mentalidades rústicas”
tornavam-se o grande “objeto de ciência” daquela geração. Dizia, a esse respeito, Luiz
Pereira:
Também as camadas inferiores das comunidades citadinas vivem
segundo um estilo não inteiramente urbano. Os contingentes
migratórios vêm a fazer parte delas, permanecendo como
portadores de muitos complexos da cultura rústica, continuando a
viver o rural na cidade (Pereira, 1959, 1).
* * *
A história da educação brasileira não foi reescrita ao ensejo da produção dos mapas
culturais e educacionais. O movimento interpretativo que reorganizou o acervo de
interpretações sobre a existência de múltiplos países – segredados num só – foi capaz de
apreender, inclusive, a complexidade que as grandes metrópoles ofereciam ao cientista
social. Mas o empreendimento não conseguiu manter-se.
O cuidado minucioso com o detalhe, com a singularidade e com a diversidade num
país estupefato com os próprios fragmentos, despersonalizou-se na seqüência dos
acontecimentos políticos dos anos sessentas quando a “órbita Anísio Teixeira” não
conseguiria mais sobrevier.
A abordagem do homem considerado rústico, tal qual fizera Antonio Candido no
seu Parceiros do Rio Bonito permaneceu ao aguardo de uma etnografia sólida, ensaiada
pelo mesmo Candido nos estudos A estrutura da escola e As diferenças entre o campo e a
cidade e o seu significado para a educação.
Contudo, há que registrar que o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e os
Centros Regionais de Pesquisas Educacionais recuperaram o emblemático tema dos dois
brasis. No mote dessa recuperação o rústico, o interiorano, o sertanejo, o imigrante, o
mestiço, enfim, o brasileiro em todas essas formas, passou a ser considerado o capítulo
primeiro de um projeto de (re)escrever a história desse “povo”.
A verificação do impacto da instituição escola nas variadas realidades sócio-
geográficas; o registro da expectativa da obtenção do acesso à cultura letrada tipicamente
escolar; o planejamento oriundo de mapas culturais/educacionais, enfim todos esse fatores
em conjunto, tornaram-se aspectos indissociáveis de um trabalho coletivo em cuja pauta de
ação o professor não era incluído de forma subordinada ou subalterna.
Fosse na escola da grande metrópole onde a cada bairro se encontrava um país
diferente, fosse nas zonas não urbanizadas onde a cada região se deparava com um
brasileiro diferente, o professor – aquele que já existia, não o que haveria de ser forjado –
fora chamado a co-interpretar a realidade.
Iniciava-se um processo, através do qual, a chamada à cena das realidades e dos
agentes desde muito mantidos à sombra, significava trazer à luz novos elementos para que
hoje pudéssemos lidar com uma reconstituição dos fatos para além dos limites da narrativa
épica das realizações governamentais. O professor, convidado por um pouco a ser
protagonista na construção dos cenários de pesquisa nunca mais seria investido de tanta
responsabilidade acadêmica e mesmo sua opinião não tornaria a ser considerada tão
relevante.
Os exemplos trazidos a essa reflexão sobre o pensar a educação/pensar o Brasil
merecem ocupar um lugar de maior destaque na memória das ciências sociais. Muitas das
personagens aqui lembradas não construíram uma plataforma política de superação dos
nossos problemas tal como fez Mariátegui, por exemplo. Mas conheceram nossa realidade
com profundidade, respeito e, principalmente, generosidade.
Deixaram pistas que, a meu ver, devemos retomar. Devemos retomar evitando fazer
do inventário das inconsistências o pretexto para um distanciamento que, muitas vezes, não
deve nada a qualquer elitismo.
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