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PERSPECTIVAS DE ANLISE DA POBREZA NA SOCIEDADE PRODUTORA DEMERCADORIAS: elementos para o debate
Viviane Souza Pereira1
RESUMO
Este estudo apresenta uma reflexo inicial acerca dapobreza em massa na sociedade capitalista. Buscamossituar diferentes concepes acerca da pobreza e desuas manifestaes e contrap-las a uma perspectivaque, a partir de elementos de uma abordagem em
construo, toma como hiptese inicial a existncia deuma articulao direta entre a produo e reproduo dapobreza e a contradio fundamental da sociedadecapitalista, traduzida na contradio insustentvel entre ocontedo material da produo e a forma imposta pelovalor.
Palavras-chave: capitalismo, mercadoria, pobreza evalor.
ABSTRACT
This study presents a reflection on the of mass poverty incapitalist society. We seek to situate the differentconceptions of poverty and its manifestations and to alignthem to a perspective that, from elements of an approachto construction, takes as its initial hypothesis that there isa direct link between production and reproduction ofpoverty and conflict fundamental capitalist society,reflected in the untenable contradiction between thematerial content of production and the form imposed byvalue.
Keywords:capitalism, commodities, poverty, and value.
1Mestre. Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). [email protected]
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I - Introduo
Objetivando identificar a produo da pobreza em massa na sociedade
capitalista, buscamos situar diferentes concepes acerca da pobreza e de suas
manifestaes e, posteriormente, contrap-las a uma perspectiva que compreende a
produo e reproduo da pobreza na sociedade produtora de mercadorias a partir da
contradio fundamental desta forma de sociabilidade traduzida na contradio
insustentvel entre o contedo material da produo e a forma imposta pelo valor
(KURZ, 1997, p. 10).
Os significados atribudos pobreza sofreram alteraes atravs da histria:
vo desde o entendimento religioso da pobreza como um privilgio dos bem-
aventurados e como tal uma bno divina, uma qualidade almejada, at o conceito
atual pelo qual a pobreza associada falta, carncia. No primeiro caso havia uma
positividade relacionada a essa situao. No entanto, pobreza no se reduz a uma
questo somente econmica, tampouco se reduz sua manifestao mais imediata
a fome; de mesma forma, a cidadania no pode ser reduzida a direitos sociais. Ela
configura-se numa relao com direitos polticos e jurdicos e, sem ignorar os avanos
civilizatrios dela advindos e a luta dos trabalhadores em sua construo, a cidadania
tal qual a vivenciamos, configura-se, tambm e fundamentalmente, em mais uma
estratgia burguesa de manuteno do processo de acumulao e legitimao
ideolgica do capital.
Importa destacar que esta reflexo representa parte da pesquisa de
doutoramento, ainda em curso, da autora e, desta forma, no apresenta elementos
conclusivos, ficando, portanto, restrita, to somente, a observaes iniciais e
apontamentos de uma anlise ainda em construo. Nesse sentido, buscamos
apresentar perspectivas acerca da pobreza e apontar para a necessria construo de
uma compreenso diferenciada, que acreditamos ser capaz de identificar a gnese
deste fenmeno que, embora se faa presente de forma massacrante desde a
acumulao primitiva de capital, adquire novos e assustadores contornos em nosso
tempo.
II - Diferentes perspectivas de anlise da pobreza: elementos introdutrios de
uma pesquisa em curso
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Segundo Souza, a Idade Mdia um perodo especialmente elucidativo para
quem estuda a pobreza, pois foi em seu seio que se verificaram as grandes
transformaes que marcaram a concepo moderna da pobreza (SOUZA, 1982, p.
99, apud EZEQUIEL, s/d). Primeiramente, o pobre era visto como pobre de Cristo, que
vivia nas vilas e merecia ajuda dos mosteiros. No sculo XII, com as mudanas
estruturais, advindas do processo de urbanizao e das transformaes na economia
monetria e na propriedade rural, que solaparam o sistema feudal, a presena da
pobreza passou a ser associada cidade, cabendo ao poder pblico dar esmolas aos
pobres. No sculo XIV, os pobres j eram em nmero demasiado elevado, tornando-
se encargo oneroso ao Estado e Igreja. O pobre laboriosodos sculos XIII e XIV erao campons expropriado que, livre dos laos servis, almejava viver de seu trabalho,
embora muitas vezes no o conseguisse(ibidem, p.100).
Mollat procura identificar o ponto de ruptura, a partir do qual a precariedade se
transformou em misria, distinguindo os limites biolgico, econmico e sociolgico.
Para este autor, o limite biolgico ultrapassado quando no se possui condies
mnimas de sade e de sobrevivncia. Nesse caso, fatores como idade, vesturio,
habitao e alimentao so determinantes. O limite econmico, assentado nas
possibilidades de abastecimento, est por sua vez relacionado com a troca, com acompra e com o valor real da moeda. Tal limite comprimido pela demanda fiscal que
no poupa nem os mais precrios recursos dos pobres como os tributos senhoriais e
clericais, dzimos, taxas urbanas, e outros. Est ligado a situaes conjunturais como
a guerra, a fome e as crises econmicas em geral. J a transposio do limite
sociolgico cria, conforme o autor, a desclassificao. O campons e o arteso
medieval, sem suas ferramentas, eram destitudos de seu ofcio, assim como o nobre
sem cavalo e armas no tinha meios de existncia social. (MOLLAT, 198, apud
EZEQUIEL s/d, p.100).
Analisando o perodo feudal, Souza destaca que s h desclassificado em
funo da existncia do classificado e, por conseguinte, da prpria classificao
social/infra-estrutural de que a pobreza o principal agente desclassificatrio. Souza
justifica sua posio exatamente pelo fato de a sociedade colonial apresentar-se em
termos estamentais, em que o status e a honra so elementos de classificao. O
desclassificado social um homem livre e pobre freqentemente miservel -, o que,
numa sociedade escravista, no chega a apresentar grandes vantagens com relaoao escravo. (SOUZA, 1982, apudEZEQUIEL, s/d, p. 101).
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J nos liames da sociedade capitalista, a pobreza, enquanto uma das
expresses da questo social, segundo Lavinas (2003), institui-se enquanto tal tanto
na Europa quanto na Amrica latina, ao mesmo tempo em que o surgimento das
grandes cidades. Assim sendo, a pobreza, enquanto questo nasce com o selourbano.
Segundo a autora, pobreza significa falta ou pouca renda, mas uma definio
mais criteriosa a definiria como um estado de carncia, de privao, que pode colocar
em risco a prpria condio humana. Assim, ser pobre ter sua humanidade
ameaada, seja pela impossibilidade de satisfao de necessidades bsicas, seja pela
incapacidade de mobilizar esforos e meios para satisfao de tais necessidades.
Lavinas (ibidem) pontua que o carter urbano da pobreza torna-se ainda maisvisvel na medida em que esta vem desafiar a governabilidade urbana, exigindo dos
governos locais solues rpidas e efetivas, inscrevendo no territrio da cidade
marcas das contradies sociais que a reconfiguram e recontextualizam a cada
momento.
A pobreza um fato eminentemente urbano,
(...) no apenas porque a maioria dos pobres vive, hoje nas cidades e zonasmetropolitanas, mas porque a reproduo da pobreza mediada pela
reproduo do modo urbano das condies de vida, atravs da dinmica domercado de trabalho, da natureza do sistema de proteo social e do pactode coeso social que , na verdade, o que estrutura o conjunto de relaes einteraes entre a sociedade civil, o Estado e o mercado (ibidem, p.30).
De acordo com os destaques da autora, na Europa do sculo XX, o sistema de
combate pobreza adotado era de exclusiva responsabilidade do Estado. O Estado
de Bem-Estar oferecia proteo nos momentos de crise e instabilidade que de alguma
forma ameaavam ocasionalmente a segurana, integridade e o bem-estar dos
indivduos. Hoje, as estratgias de combate pobreza so, cada vez mais, de
responsabilidade dos governos locais, o que acarreta a criao de regimes locais de
regulao da pobreza, levando implementao de programas diversificados,
focalizados, especficos para cada situao particular.
Na Amrica Latina, a trajetria desse enfrentamento se distingue, pois o Estado
de Bem-Estar no existiu de forma plena. Segundo Lavinas (ibidem), a pobreza era
regulada na esfera privada e as estratgias para combat-la, muitas vezes estratgias
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de sobrevivncia, uma criao dos trabalhadores pobres, excludos e marginalizados
sem direito cidadania regulada2.
Por outro lado, Lavinas destaca a definio simmeliana de pobreza. Designado
como o fundador da Sociologia da Pobreza no inicio do sculo XX, Simmel defendia
que pobre todo aquele que assistido.
Os pobres, enquanto categoria social, no so aqueles que sofrem de dficitsou privaes especficas, mas os que recebem assistncia ou deveriamreceb-la, em conformidade com as regras sociais existentes. Por issomesmo, a pobreza no pode ser definida como um estado quantitativo em simesmo, mas to somente a partir da reao social que resulta dessasituao especfica. (SIMMEL, 1998 apudLAVINAS 2003, p. 32).
As vrias conceituaes da pobreza tm orientado o desenho das polticas
pblicas voltadas para o seu enfrentamento em todos os cantos do mundo, incluindo a
Amrica Latina. No contexto de forte mutao da sociedade urbana brasileira,
destacam-se duas categorias chave para a compreenso da insero espacial da
pobreza no tecido urbano. Para Lavinas, moradia e mercado de trabalho so
categorias referenciais para a conceituao de pobreza. Insero espacial e insero
ocupacional so faces indissociveis do fenmeno da pobreza na sociedade brasileiramoderna. A autora associa diretamente a pobreza excluso social como podemos
ver na seguinte passagem:
Na Amrica Latina, e no Brasil em particular, o padro excludente constitutivo do modelo de acumulao, em todas as suas fases e no apenaspor fora da flexibilizao e globalizao dos mercados. Esse padro dadesigualdade extrema, entendida como excluso de um contingenteexpressivo da classe trabalhadora, a quem negada cidadania econmica esocial. A pobreza conseqncia da excluso. (LAVINAS, 2003, p. 43)
Na Amrica Latina, ainda segundo esta autora, a pobreza o resultado da
desigualdade extrema que chega via mercado de trabalho, atravs de empregos
desqualificados e, sobretudo, de nveis salariais extremamente baixos, aqum do
2 Na cidadania regulada so considerados cidados todos aqueles membros da comunidade que seencontram localizados em qualquer uma das ocupaes reconhecidas e definidas em lei. A extenso dacidadania se faz, pois, via regulamentao de novas profisses e/ou ocupaes, em primeiro lugar, e
mediante ampliao do escopo dos direitos associados a estas profisses, antes que por expanso dosvalores inerentes ao conceito de membro da comunidade. SANTOS (1987, p.68).
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mnimo para a subsistncia. A pobreza o retrato da desigualdade, e as periferias das
grandes cidades, a expresso da segregao diria que imposta aos pobres.
Zaluar, ao analisar as alteraes culturais ocorridas no Brasil, especificamente
com relao s noes de pobreza nas ltimas dcadas, afirma que a pobreza perde
seu sinal positivo de valor espiritual, para adquirir um sentido negativo de carncia, de
falta de bens, que implica perda de status, de poder e sucesso social (ZALUAR, 1997,
p.18).
Neste sentido, a autora afirma que a idia bsica de pobreza no pensamento
erudito que marcou todo o perodo autoritrio da carncia material, quando a poltica
social se caracterizava como assistencialista, paternalista e clientelista (ibidem, p.40).
Desta forma, a desigualdade foi interpretada no plano social apenas como resultado
de carncias materiais, sem vincul-la s desigualdades polticas e jurdicas.
Esta concepo vai ao encontro da caracterizao de pobreza vigente desde a
primeira metade do sculo XIX na Inglaterra, que elencava as prioridades, comeando
pelo direito subsistncia. Para essa vertente nutricionista,
(...) pobre todo aquele que no se beneficia de um padro de subsistnciamnimo, baseado na ingesto diria de um requerimento calrico dado.Portanto, inicialmente, pobreza e fome so quase sinnimos e se confundem
na identificao de quem pobre. Nesse enfoque, as necessidades humanasaparecem limitadas s necessidades da sobrevivncia fsica comer, vestir-se desconsiderando o social. Esse ainda hoje o enfoque que prevalecena definio da pobreza absoluta ou da indigncia: um padro de vida aqumdo que exigido para assegurar a mera subsistncia ou sobrevivncia(LAVINAS, 2003, p. 31).
A discusso sobre as estratgias para o enfrentamento da pobreza exige o
enfrentamento do debate acerca das necessidades do ser humano: tanto as
necessidades existenciais, que se referem ao ser, ao ter, ao fazer e ao interagir,
quanto s necessidades que tratam da subsistncia, da proteo, do afeto, da
participao, da identidade, da liberdade. Enquanto necessidades humanas, no
podem ser hierarquizadas entre si, pois so essenciais e devem ser garantidas em
quantidade e qualidade suficientes. (ibidem).
Em contraponto, surge uma categoria nova: necessidades bsicas. Esta, por
sua vez, vem abrindo um leque de discusses orientadas para a caracterizao e
definio de novas categorias tais como, necessidades e carncias. Assim,
introduzido um novo entendimento da pobreza, definindo como um fenmeno de
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carter relativo e transnacional, ou seja, a noo de pobreza passa a situar-se no
tempo e no espao, considerando a estrutura social e institucional vigente, no sendo
expressa apenas em funo do nvel de renda. A problematizao da pobreza
enquanto questo social constitui-se, progressivamente, em torno do que sonecessidades historicamente determinadas. (ibidem).
Telles, trabalhando sua perspectiva para alm da questo das necessidades,
considera a privao de direitos como o grande desafio a ser considerado:
Se a pobreza sinal de privao de direitos, o significado desta no seesgota nas evidncias da destituio material. A destituio material acontrapartida de uma destituio simblica que homogeneiza todas nacategoria genrica e desidentificadora de pobre. Por essa via, as situaesconcretas que criam a destituio material - salrios baixos, desemprego e
subemprego, bem como a doena, a velhice, a orfandade ou a invalidez,submergem, indiferenciados, sob as imagens de carncia e de impotnciaque criam a figura de uma pobreza transformada em natureza e evocam aexigncia de um estado tutelar que deve proteo aos deserdados da sorte(TELLES, 1992, p.135).
A autora observa que, uma vez que a pobreza naturalizada perdem-se de
vista as possibilidades de superar sua situao (que nesse caso entendida como
natural e no histrica) e somente um Estado Tutelar pode proteger os pobres, assisti-
los paternalmente. Como deserdados da sorte, devem ser protegidos deles mesmos,
de sua ignorncia e incivilidade. (TELLES, 1992).
Telles apresenta outras possibilidades de entendimento desta questo. Para
ela a pobreza deve ser entendida a partir da tica da privao dos direitos e no
meramente a partir da destituio material e da carncia. possvel, segundo ela,
considerar que as alternativas para o enfrentamento desta questo passem pela via do
exerccio de direitos, em substituio s aes assistencialistas, paternalistas ou de
tutela. (ibidem). Percebemos, nessa abordagem, uma relao direta com a dimenso
explicitada anteriormente e que relaciona a excluso social no cidadania.Vieira (2004) procurou compreender a pobreza, tambm considerando suas
vrias dimenses. Analisando o contexto que engendra a situao de desemprego, as
dificuldades de acesso moradia, sade e educao a que est sujeita a
populao de rua, a autora afirma:
Na verdade a desigualdade social e a pobreza no so privilgios dasociedade moderna, mas um produto histrico que se modifica no espao eno tempo. A prpria forma como a pobreza vista socialmente se modifica. Osignificado mstico de pobreza no perodo medieval, associada aodespojamento, pouco tem a ver com a noo de pobreza como falta (VIEIRA,2004, p.18).
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Partindo de uma perspectiva de compreenso da pobreza que objetiva
identificar sua gnese e configurao contempornea, acreditamos que o desafio
desta investigao passa, fundamentalmente, pela compreenso de categorias
determinantes para o desvendamento da sociedade burguesa desde seu processo
embrionrio at sua configurao contempornea. Assim, a fim de problematizarmos a
produo da pobreza em larga escala na sociedade capitalista, tomamos como ponto
de partida o desvendamento daquilo que considerado riqueza nesta sociedade. Para
tanto, nos apropriaremos, majoritariamente, das construes de Marx acerca da
mercadoria como fonte de riqueza, por entendermos que este autor, possibilita-nos,
por meio de uma compreenso desvinculada de qualquer perspectiva apriorstica ou
dogmtica, uma anlise profunda das engrenagens da sociedade em que vivemos.
Observando a mercadoria, tal como posta por Marx (1982), veremos que ela,
de fato, representa a riqueza capitalista e compe-se de dois elementos
imediatamente identificveis. uma coisa, algo externo, que tem a capacidade de
satisfazer necessidades humanas de qualquer natureza e algo que pode ser trocado
compor outras mercadorias. Ou, seja, tanto um valor de uso, ao satisfazer
necessidades, quanto um valor de troca (ou tem valor de troca), uma vez que pode
resultar na aquisio de outras mercadorias. importante destacar que h algo na
mercadoria que ultrapassa a aparncia; ela produz um universo de sutilezas que
somente pode ser compreendido pela metafsica. A aparncia da mercadoria como
forma de riqueza especfica da sociedade burguesa. (MENEGAT, 2009).
Marx, afirma explicitamente que (...) os valores de uso constituem o contedo
material da riqueza, qualquer que seja a forma social desta. Na forma de sociedade a
ser por ns examinada, eles constituem, ao mesmo tempo, os portadores materiais do
valor de troca. (1982, p. 46)
Partindo desta perspectiva compreendemos que alm de representar uma
unidade do valor de troca e de uso, a mercadoria tem no valor de uso o contedo
material da riqueza. Destacamos que o valor de uso cumpre esse papel em toda forma
social e histrica. Entretanto, no modo de produo capitalista, ele significa, tambm,
os substratos materiais de algo especfico a esta sociedade, o valor de troca. Desta
forma, evidencia-se que enquanto o valor de uso uma caracterstica da riqueza
material em qualquer poca histrica, o valor de troca especfico do momento
histrico que vivenciamos, a sociedade do capital.
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Importa destacar que, antes deste desvendamento da essncia da mercadoria
proporcionado pela crtica de Marx, o sistema engendrado pelo capital era
compreendido como um imenso sistema de circulao e troca de bens como que
produzido e reproduzido por ele mesmo. Nessa abordagem, a atividade humana, queagrega valor e contedo ao capitalismo, desconsiderada e permanece envolta na
mgica ideolgica em que se sustenta a chamada economia vulgar.
Contrariando essa perspectiva, Marx (1982) desvendou o fetichismo da
mercadoria, apontando sua essncia desumana e coisificada, no como fruto de
caractersticas intrnsecas aos objetos, mas sim como resultante de relaes sociais
de produo historicamente construdas. A compreenso da mercadoria construda
por Marx em O Capitala toma como algo mgico que tem a capacidade de ocultar asrelaes humanas essenciais para a produo dos objetos. Partindo desta
perspectiva, temos que a sociedade burguesa ultrapassa um imenso sistema de
circulao e troca de bens e tem sua sustentao no modo como se realiza a atividade
humana, afinal a mercadoria, nessa realidade, resultado da atividade humana
produtiva. Importa, ainda, assinalar que, nesta sociedade, a igualdade representada
por uma igualdade do valor de troca. Marx (1982), em sua obra, descortina algumas
iluses construdas pelo capitalismo, apresentando-nos a forma segundo a qual as
relaes sociais de produo entre os homens aparecem como relaes entre coisas.
O carter misterioso que o produto do trabalho apresenta ao assumir a forma
de mercadorias, donde provm? Dessa prpria forma, claro. A igualdade dos trabalhos
humanos fica disfarada sob a forma da igualdade dos produtos do trabalho como
valores; a medida, por meio da durao, do dispndio da fora humana de trabalho,
toma a forma de quantidade de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relaes
entre os produtores, nas quais se afirma o carter social dos seus trabalhos, assumem
a forma de relao social entre os produtos do trabalho. (MARX, 1982, p.94).
A atividade humana produz coisas que ganham autonomia. A sutileza da
mercadoria no vem de sua materialidade, nem do valor de troca, mas do valor
autnomo. Valor como forma autnoma produz outra forma: dinheiro e capital. Esse
valor autnomo reflete na atividade humana denominada trabalho. Nessa realidade
trabalho e trabalho abstrato indicam um nico conceito. A forma valor - abstrao do
valor de uso o que permite a inverso e resulta em uma imensa abstrao. A forma
dessa sociedade, enquanto processo social, s existe por essa abstrao.
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Assim, segundo Marx, a mercadoria a forma em que se apresenta, nessa
sociedade, o produto do trabalho humano, o qual se expressa na forma valor, ou seja,
a mercadoria apresenta-se, na sua forma natural, como valor de uso e, na sua forma
social, como valor. Ela adquire valor no pelas suas propriedades naturais, mas porcausa das relaes sociais de produo que se estabelecem.
Nesse sentido, compreendemos que as razes da pobreza associam-se
diretamente a contradio entre o contedo material da produo e a forma imposta
pelo valor, contradio esta construda pelos prprios sujeitos no movimento do real
que produz a sociabilidade burguesa.
Buscamos identificar a gnese da produo e reproduo da pobreza em
nossa sociedade e, para tanto, acreditamos ser primordial, envidarmos esforos na
construo de um olhar que aponte para a necessidade premente de construo
coletiva de uma crtica radical do valor enquanto valor, elemento que, em
conformidade com Kurz (1997), consideramos essencial para a apreenso da lgica
de produo e reproduo ampliada da pobreza que vivenciamos, marcantemente, na
histria da sociedade capitalista. s no mbito de uma crtica do valor, enquanto
definio basilar da forma social, que a atribuio de papis sexuais [ou da pobreza]
pode aparecer na conscincia terica. (p.27). [grifos nossos].
Desta forma, apresentamos o caminho em curso na pesquisa que estamos
desenvolvendo, com o sentido ltimo de realizar uma anlise das razes da pobreza e
sua configurao contempornea, por meio de uma crtica do valor a partir de uma
apropriao da teoria social crtica de Marx e de seus pressupostos centrais calcados
no materialismo histrico dialtico.
III - guisa de concluso
Ao buscarmos compreender as distintas abordagens analticas da pobreza
deparamo-nos com polmicas fundamentais como a prpria definio de pobreza. A
preocupao central na contemporaneidade parece-nos aquela relativa quantificao
da pobreza ou mesmo aquela que discute sua profunda articulao com a cidadania e
os empecilhos para sua efetivao dentro da lgica burguesa. Entretanto,
identificamos uma ausncia neste debate daquilo que consideramos como a gnese
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da pobreza massificada na sociedade capitalista, a contradio entre a forma e o
contedo do valor.
Assim, acreditamos que a raiz deste fenmeno somente pode ser desvendada
a partir de uma crtica contundente do valor, somente possvel por meio de uma
anlise minuciosa da contradio entre o contedo material da produo e a forma
imposta pelo valor na sociabilidade burguesa. Buscamos com este estudo apresentar
os elementos essenciais e iniciais para esta anlise que estamos a construir.
O caminho para discusso da pobreza, como buscamos demonstrar, no
simples. Surgem dificuldades tanto para conceitu-la e delimit-la, quanto para
identificar sua gnese e apontar elementos que a caracterizam na ordem do capital
financeirizado e mundializado. Assim, este estudo, como diante das dificuldades
elencadas no poderia ser de outra forma e, como j destacado na introduo,
apresenta to somente notas iniciais acerca de um debate em pleno curso e de uma
anlise em construo, para fins de divulgao e contribuio com a difcil tarefa de
desvendar as nuances e razes da imensa situao de pobreza que assola a
modernidade.
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