PESSOA DIREITO E DIREITOSColoacutequios 20142015
COORDENACcedilAtildeONuno Manuel Pinto OliveiraBenedita Mac Crorie
2016
Pessoa direito e direitos
Coloacutequios 2014 2015
2016
II
Ficha teacutecnica
Tiacutetulo
Pessoa direito e direitos
Coordenadores
Nuno Manuel Pinto Oliveira e Benedita Mac Crorie
Design Graacutefico
Pedro Rito e Ceacutelia Rocha
Data
novembro 2016
Editor
Direitos Humanos ndash Centro de Investigaccedilatildeo Interdisciplinar
Escola de Direito da Universidade do Minho
Campus de Gualtar
ISBN
978-989-97492-2-1
III
Iacutendice
Apresentaccedilatildeo
Coloacutequio Internacional Nos 20 anos de Lifersquos Dominion
LIFErsquoS DOMINIONrsquoS DOMINION DWORKINrsquoS APPROACH AND THE
CURRENT LEGISLATIVE DEBATE ON ASSISTED SUICIDE IN GERMANY
Steffen Augsberg helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip11
DEVE O ESTADO SER NEUTRO AS QUESTOtildeES DIFIacuteCEIS DO ABORTO E
DA EUTANAacuteSIA
Benedita Mac Crorie helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip25
O CONCEITO DE UM PLANO RACIONAL DE VIDA E O SENTIDO DE UMA
MORTE DIGNA
Nuno Manuel Pinto Oliveira helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip35
Coloacutequio Internacional Em torno de Life Time Contracts
PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE OS CONTRATOS DURADOUROS ESSENCIAIS Agrave
EXISTEcircNCIA DA PESSOA
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip55
LIFE TIME CONTRACTS UM PRIMEIRO BALANCcedilO
Luca Nogler amp Udo Reifner helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip65
UMA INTRODUCcedilAtildeO AOS CONTRATOS EXISTENCIAIS
Nuno Manuel Pinto Oliveira helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip89
IV
SERAacute A NEGOCIACcedilAtildeO COLETIVA DESEJAacuteVEL NO CONTEXTO DOS LIFE
TIME CONTRACTS
Antoacutenio Agostinho Guedes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip101
A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS E OS LIFE TIME CONTRACTS
Henrique Sousa Antunes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip119
AS FUNCcedilOtildeES DO DIREITO DA INSOLVEcircNCIA NO AcircMBITO DE LIFE TIME
CONTRACTS (BREVE REFLEXAtildeO)
Catarina Serra helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip133
A VINCULACcedilAtildeO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E
OS CONTRATOS DE LONGA DURACcedilAtildeO
Benedita Mac Crorie helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip151
OS PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE OS CONTRATOS DURADOUROS
ESSENCIAIS Agrave EXISTEcircNCIA DA PESSOA (LIFE TIME CONTRACTS)
ALGUNS TOacutePICOS
Joseacute Joatildeo Abrantes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip helliphelliphelliphelliphelliphellip163
OS CONTRATOS DE PRESTACcedilAtildeO DE SERVICcedilOS PUacuteBLICOS ESSENCIAIS
COMO LIFE TIME CONTRACTS
Jorge Morais Carvalho helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip165
O CONTRATO DE CREacuteDITO PARA AQUISICcedilAtildeO DE HABITACcedilAtildeO
PERMANENTE GARANTIDO POR HIPOTECA Agrave LUZ DOS PRINCIacutePIOS DE
LIFE TIME CONTRACTS
Ana Taveira da Fonseca helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip helliphelliphelliphellip183
V
PROPORCIONALIDADE E ADAPTABILIDADE A JURISPRUDEcircNCIA DO
TEDH NO EQUILIacuteBRIO DA RELACcedilAtildeO ENTRE SENHORIO E INQUILINO
Sandra Passinhas helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip201
BREVES REFLEXOtildeES SOBRE O EXERCIacuteCIO (EXTRAJUDICIAL) DO
DIREITO DE RESOLUCcedilAtildeO DO CONTRATO BILATERAL SINALAGMAacuteTICO
EM PARTICULAR SOBRE AS EXCECcedilOtildeES AO ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS
OPORTUNIDADESrdquo
O CASO PARTICULAR DAS RELACcedilOtildeES CONTRATUAIS DURADOURAS
Maria Joatildeo Sarmento Pestana de Vasconcelos helliphellip237
Coloacutequio ldquoO princiacutepio da dignidade da pessoa humana
e o direito privado Repensar os direitos de
personalidaderdquo
OS DIREITOS DE PERSONALIDADE COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS
Joaquim de Sousa Ribeiro helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip253
A (IR)RENUNCIABILIDADE DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE
Benedita Mac Crorie helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip263
DIREITOS (FUNDAMENTAIS) DE PERSONALIDADE
Luiacutesa Neto helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip275
TOMANDO A SEacuteRIO O PERSONALISMO EacuteTICO
Nuno Manuel Pinto Oliveira helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip277
AUSTERIDADE E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Joaquim Freitas da Rocha helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip295
VI
DIGNIDADE HUMANA E CONTRATO
Joseacute Joatildeo Abrantes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip301
A VISAtildeO PERSONALISTA DA FAMIacuteLIA E A AFIRMACcedilAtildeO DE DIREITOS
INDIVIDUAIS NO SEIO DO GRUPO FAMILIAR ndash A EMERGEcircNCIA DE UM
NOVO PARADIGMA DECORRENTE DO PROCESSO DE
CONSTITUCIONALIZACcedilAtildeO DO DIREITO DA FAMIacuteLIA
Rute Teixeira Pedro helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip313
Apresentaccedilatildeo
laquoSe [hellip] ouso apresentar nesta altura o resultado do trabalho ateacute
agora realizado faccedilo-o na esperanccedila de que o nuacutemero daqueles que
prezam mais o espiacuterito do que o poder seja maior do que hoje possa
parecer faccedilo-o sobretudo com o desejo de que uma geraccedilatildeo mais
nova natildeo fique no meio do tumulto ruidoso dos nossos dias
completamente destituiacuteda de feacute numa ciecircncia juriacutedica livre faccedilo-o
na firme convicccedilatildeo de que os seus frutos se natildeo perderatildeo para um
futuro distanteraquo
(Hans Kelsen laquoPrefaacutecioraquo in Teoria pura do direito Armeacutenio Amado
Coimbra 1979)
Em 2014 propusemos ao Direitos Humanos mdash Centro de Investigaccedilatildeo
Interdisciplinar a criaccedilatildeo de dois grupos de investigaccedilatildeo em Direitos humanos
e biomedicina e em Direito privado mdash fenoacutemenos de constitucionalizaccedilatildeo de
materializaccedilatildeo e de socializaccedilatildeo
A proposta foi aceite mdash e em cada um dos dois grupos de investigaccedilatildeo
comeccedilaacutemos a desenvolver algumas iniciativas
Comeccedilaacutemos em Dezembro de 2014 com um coloacutequio internacional
sobre os 20 anos do livro de Ronald Dworkin Lifeacutes Dominion
Continuaacutemos em Maio de 2015 com um coloacutequio internacional sobre
o livro de Udo Reifner e Luca Nogler Life Time Contracts e em Dezembro de
2015 com um encontro sobre O princiacutepio da dignidade humana e o direito
privado Repensar os direitos de personalidade
No primeiro contaacutemos com a presenccedila de Joseacute de Sousa e Brito de
Manuel Carneiro da Frada de Steffen Augsberg e de Laura Ferreira dos
Santos
No segundo contaacutemos com a participaccedilatildeo de Udo Reifner e de Luca
Nogler de Agostinho Cardoso Guedes de Henrique Sousa Antunes de
Catarina Serra de Juacutelio Gomes de Joseacute Joatildeo Abrantes de Jorge Morais
Carvalho de Ana Maria Taveira da Fonseca de Sandra Passinhas e de Maria
Joatildeo Vasconcelos
E no terceiro no coloacutequio sobre O princiacutepio da dignidade humana e o
direito privado intervieram Joaquim Sousa Ribeiro entatildeo Presidente do
8
Tribunal Constitucional Maria Luacutecia Amaral Paulo Mota Pinto Luiacutesa Neto
Jorge Pereira da Silva Joaquim Freitas da Rocha Joseacute Joatildeo Abrantes e Rute
Teixeira Pedro
Nenhum acto ou gesto humano se preenche de significado se natildeo for
um acto ou um gesto partilhado Renovamos por isso o nosso agradecimento
a todos por terem aceitado partilhar connosco os seus conhecimentos e as suas
convicccedilotildees renovamos tambeacutem o nosso agradecimento a todos aqueles que se
dispuseram a assistir aos coloacutequios que organizaacutemos participando nos seus
trabalhos
Em tempos como os de hoje em que os recursos disponiacuteveis satildeo tatildeo
escassos tudo ou quase tudo o que podemos fazer depende da generosidade
da disponibilidade e (atrevemo-nos a pensar) de alguma amizade de quem se
dispotildee a aceitar o nosso convite
Estamos convencidos de que nos anima a todos a mesma feacute numa
ciecircncia do direito livre mdash e sobretudo estamos convencidos de que os frutos
do que dissemos se natildeo perderatildeo num futuro mais proacuteximo ou mais distante
Braga novembro de 2016
Nuno Manuel Pinto Oliveira
Benedita Mac Crorie
Coloacutequio Internacional
Nos 20 anos de Lifersquos Dominion
Braga 12 de Dezembro de 2014
10
11
Lifersquos Dominionrsquos Dominion Dworkinrsquos Approach
and the Current Legislative Debate on Assisted
Suicide in Germany
Steffen Augsberg
A INTRODUCTORY REMARKS
In his seminal book bdquoLifersquos Dominionldquo1 Ronald Dworkin makes the
lucid and helpful distinction between the (objective collective) sanctity of
human life and the (subjective individual) right to life2 He then goes on to
argue that neither of these requires us to try to prolong each and every life at
any cost At this point his discussion is both subtle and convincing More
specifically though according Dworkin this analysis leads to the demand for
specific mechanisms allowing people to choose under certain conditions
whether or not to end their own life Here I find the argumentation too
generalistic and therefore not persuasive In my view Dworkin does not
sufficiently recognise the distinct historical experiences of different countries
and the legal traditions based upon these experiences Furthermore he does
not take into account the possibility that a rigid regulation of euthanasia might
be acceptable or even desirable in order to secure personal autonomy in
precarious circumstances Both of these aspects can be explained in more
detail by a short description of an ongoing debate in the German parliament
the Bundestag It concerns the question whether or not (certain forms of)
assisted suicide ndash which at present is legal due to the fact that suicide itself is
legal and assisting in a legal act cannot according to general criminal law
rules constitute a crime ndash are to be outlawed or even penalised
My argument here is developed in five steps At first it is worth
noticing that the current legislative process is exceptional insofar as it does not
follow the lines of traditional party politics and involves a great deal of
interdisciplinary and comparative work (B) Secondly in order to properly
understand the existing legal regulation of euthanasia and assisted suicide as
1 Dworkin R Lifersquos Dominion An Argument about Abortion and Euthanasia 1993 2 There are noteworthy parallels with Habermasrsquo concept of the sanctity of the human race (as
opposed to each individual human) cf Habermas J Die Zukunft der menschlichen Natur
Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik 2005
12
well as the different approaches to its reform it is important to remind
ourselves of the historical background In general much of what is being said
in German constitutional law has to be understood against the countryrsquos
specific historical experiences primarily the challenge of the fascist regime
At face value this rings especially true with regard to euthanasia although a
further scrutiny of their context creates some doubts as to the validity of the
historical arguments (C) On this basis we can thirdly take a closer look at
the legal framework in which a possible regulatory reform has to operate (D)
thus enabling us to better understand the different legislative proposals being
discussed in the Bundestag today (E) Finally this overview should help
understand why Dworkinrsquos approach regardless of how insightful interesting
and intellectually stimulating it is offers relatively little help with the
legislative task at hand (F)
B MEETING THE NEIGHBOURS THE CURRENT GERMAN DEBATE ON
ASSISTED SUICIDE AS A PARADIGM FOR A DISCUSSION INFLUENCED
BOTH BY INTERDISCIPLINARY INSIGHTS AND COMPARATIVE
PERSPECTIVES
Legal discussions tend to be rather introverted and self-centred and
lawyers are likely to regard legislative action mainly or even solely as a
question of conformity with higher-ranking norms Moreover in the German
parliamentary system at least discussions normally are shortened by means of
parliamentary or more precisely party discipline Although Art 38 of the
Fundamental Law states that members of Parliament bdquoshall be representatives
of the whole people not bound by orders or instructions and responsible only
to their conscienceldquo it is widely recognised that this passage does not stand
in the way of order and organisation within the parliamentary groups and
parliament as a whole Thus even with regard to highly controversial topics
with huge social andor fiscal implications (eg the recent decisions on
extending and expanding the financial support for Greece) the members of the
various parliamentary groups usually vote in accordance with their respective
party leaders This method while being a subject of constant criticism and
calls for reform has by and large been proven successful in the past It enables
parliamentarians to specialise in certain areas of expertise and allows their
colleagues to follow suit where these specific topics are concerned
The current legislative debate in Germany on the necessity to penalise
assisted suicide deviates from these well-trodden paths Its first peculiarity is
the fact that the party leaders have agreed to bdquoopen upldquo the debate ie not to
impose party discipline This is in line with the rather strange tendency in
recent years to allow members of parliament to vote according to their
13
conscience alone where ethical or biopolitical questions are concerned In
these (albeit rather scarce) circumstances parliament abstains from the
common practice of party discipline and adheres more strictly to the letter
(although not necessarily the spirit) of the (Fundamental) Law While it is
highly doubtful that this differentiation is in itself democratically sound3 in
the present context it has had very specific consequences All four legislative
proposals brought before parliament originated within parliament itself ie
none of them was drafted by the government and three out of the four are
based on cooperation of individual MPrsquos across party lines Secondly the
current debate is not limited to the field of law and the profession of lawyers
On the contrary the deliberations have so far included ia religious leaders
moral philosophers medical doctors and representatives of the secular
society4 Furthermore the ongoing discussions also benefit from far-reaching
factual and legal comparisons Specifically in order to support the argument
against stricter regulation regulatory concepts in countries whose approaches
to euthanasia andor (physician) assisted suicide are more liberal or care-free
than Germanyrsquos are being presented as possible role-models5 One might think
that this interdisciplinary and comparative perspective could (and maybe
should) easily link the current parliamentary debate directly to the work of
Dworkin Yet although at its heart lie exactly the problems which are also
pertinent for this conference the sanctity or in Dworkinrsquos terminology
intrinsic value of human life its relation to individual autonomy and freedom
and the ways in which it is to be protected by the legal order as far as I am
aware Dworkinrsquos position on euthanasia as laid out in bdquoLifersquos Dominionldquo is
not expressedly made reference to One might however find traces of his
basic concept and ideas within the details of the various legislative proposals
and their supporting arguments It is these implicit references that I would like
to stress in this short lecture
3 Cf Augsberg S bdquoSternstunden des Parlamentsldquo Ideal und Wirklichkeit biopolitischer
Entscheidungsfindung in der reprasentativen Demokratie forthcoming in Rixen S (Ed) Ist
wahrheitsorientierte Biopolitik moglich Chancen und Grenzen partizipationsfreundlicher
Institutionenarrangements bei politischen Konflikten am Lebensanfang und am Lebensende 4 As a side-note Having been involved in an expertsrsquo hearing held by the largest parliamentary
group (CDUCSU = the Christian Democrats) I was astonished ndash and a bit shocked ndash by the
extent of involvement of religious leaders Their influence is however not tangible in the
final legislative proposals 5 Cf eg the references to Belgium the Netherlands Luxemburg Switzerland and esp the
USA (Oregon Death With Dignity Act of 1997 Washington Death With Dignity Act of 2009
and the [Vermont] Patient Choice and Control at the End of Life Act of 2013) in Borasio G
et al Selbstbestimmung im Sterben ndash Fuumlrsorge zum Leben 2014 pp 41 seq
14
C HISTORICAL BACKGROUND EUTHANASIA AS ANATHEMA FOR
GERMAN SOCIETY
German constitutional thinking is in general highly influenced by the
historical experiences of the 20th century In many ways the Fundamental
Law can be read and interpreted as a normative antidote to the dangers that the
country faced the horror it suffered and the terror it inflicted on other nations
and peoples in the past Some specific sensibilities and peculiarities can be
explained against this background Whereas in other countries the influence of
religion eg catholicism in Southern Europe or Poland may be significantly
higher in Germany the memory oft he Nazi atrocities still shapes the current
legal and political debate Since the Nazi regime made use of the term
bdquoeuthanasialdquo ndash albeit in a completely different and perverted way the idea of
bdquomerciful killingsldquo is traditionally frowned upon in Germany As is the case
with many references to Nazi Germany mentioning these terrible crimes
usually functions as a almost irresistible discussion-stopper This is especially
evident with regard to sect 216 of the German Penal Code (Strafgesetzbuch=
StGB) According to this norm killing a person is a crime even if it is done in
response to and according to the bdquovictimrsquosldquo explicit demands In the political
realm at least this norm is regarded as a taboo that is not to be touched The
one common denominator of the four legislative proposals as well as the
political discussion on assisted suicide in general is the expressed conviction
that sect 216 StGB must not be modified
So on the one hand there can be little doubt that the atrocities of the
past still cast their shadow on the current debate Yet on the other hand there
is a sense there might be some mitigating factors Firstly we have to wonder
whether the importance of the historical experience on the collective psyche
in Germany has been exaggerated Historians have provided us with good
evidence that at least within the medical profession of the post-war period
relatively little attention was paid to past crimes6 Secondly according to
recent polls large parts of the populace do not share the taboo so evidently
dominant in the political sphere Questioned on their preferences with regard
to assisted suicide a solid majority state they would expect and accept bdquohelpldquo
from their respective physicians Obviously the subtle juridical differentiation
6 Cf the various publications of the Giessen university research project bdquoThematisierung der
NS-Medizin in der Nachkriegszeitldquo esp Roelcke VTopp SLepicard E (Eds) Silence
Scapegoats Self-Reflection The Shadow of Nazi Medical Crimes on Medicine and Bioethics
2014 Roelcke VLepicard E (Eds) Medical Narratives on National Socialist Euthanasia
Professional Identity and Ethics between Politics of Memory and Historiography (= Korot ndash
The Israel Journal of the History of Medicine and Science 19 [20072008] 2009 Special
Issue) 2009
15
between (de lege lata legal) assisted suicide and (de lege lata and according
to all relevant political actors de lege ferenda illegal) voluntary killing on
request7 is not only unknown but also irrelevant to the lay man Of course
when reading these polls we have to keep in mind the well-known potential
imprecision of demoscopy More importantly in a representative democracy
legislative reform is not designed directly according to popular demand or
widespread misconceptions of the law And yet the mere fact that there appears
to be such a blatant hiatus between the political class and the general public
merits the question whether and if yes why the criminalisation of the killing
on request is to be upheld Thirdly we have to recognise that the Nazi program
of euthanasia consisted not of voluntary killings but of murders thus
rendering the connection between these crimes and the current legal regulation
frail at best Even more relevant from a legal point of view is the fact that while
historical experiences may influence and explain legislative decisions they do
not in themselves serve as a sufficient legitimatory basis Historia docet but
is does not put forward legally binding demands In other words sect 216 StGB
the criminalisation of voluntary killing on request cannot be explained and
legitimized by objective supra-individualistic arguments This is why modern
criminal lawyers agree that the norm serves to guarantee individual autonomy
by securing that fleeting moments of desperation must not be exploited8 If this
reconstruction of the normrsquos telos is accepted as both legally and morally
convincing it leads pretty straightforwardly to a another conclusion There
may be other equally dangerous inferences on the autonomous decision-
making process These too could (and maybe should) therefore be subjected
to further regulation
D THE NORMATIVE FRAMEWORK FOR EUTHANASIA AND ASSSISTED
SUICIDE DE LEGE LATA
At this point it is necessary to present at least a very short overview oft
he normative framework that such regulatory reform would have operate
within In the given context this means that not only do we need to focus on
the general constitutional law provisions regarding (assisted) suicide (I) but
7 In short The two scenarios can be differentiated by a distinction that although theoretically
persuasive can prove rather difficult in practice we have to impugn whether the final act of
killing is taken by the bdquovictimldquo who is merely assisted by another person or whether this person
is responsible for this act 8 Cf Schneider H Muumlnchener Kommentar zum Strafgesetzbuch Bd 4 Second Edition
2012 sect 216 Rn 2 seq with further references
16
also on the conditions under which the Fundamental Law allows for the use of
criminal law (II)
I A FUNDAMENTAL RIGHTS BASED APPROACH TO THE PROBLEM
Like many modern constitutions the German Fundamental Law does
contain the right to life Its Art 2 subsection 2 does however not not only
concern the physical integrity of the human body Read together with the right
to free development of the individual personality (Art 2 subsec 1 and Art 1
subsec 1) the norm constitutes an encompassing fundamental right to
individual self-determination This dynamic individual right to make decisions
over onersquos own physical and mental integrity is of course especially relevant
in the field of medical attention (be it curative or palliative) Although
naturally patients tend to rely upon the expertise and experience of the medical
professionals involved in their care the constitution guarantees that the latter
have to behave according to the formerrsquos wishes Therefore it is the patient
not the physician who decides which procedure is to be applied This decision
is to be observed even where ndash from a purely medical point of view ndash it appears
bdquowrongldquo oder bdquoirrationalldquo The main goal of the medical treatment is not to
secure or restore the patientrsquos health rather it is his informed consent that
functions as the primary guideline for the medical professionals From a
fundamental rights perspective the hierarchy is very clear indeed Voluntas
non salus aegroti suprema lex9
This right to autonomy does not end where life-threatening decisions
are concerned On the contrary patients are guaranteed the right to decide
whether they agree to a life-saving operation or treatment Just as treatng a
patient is leliant upon his or her informed consent the informed dissent or veto
given by a mentally sound person is binding for the medical professionals
There is no duty of care against the patientrsquos wishes On the contrary
Continuing treatment against his or her wishes means violating his or her
physical integrity ndash from the crimainal law point of view it constitutes assault
As long as the patient is aware of the risks and consequences this is the case
even where non-treatment will lead to the patientrsquos death
About these questions there appears to be a broad maybe even
universal consensus among German constitutional lawyers At this point
Dworkin too would agree For even though he argues in bdquoLifersquos Dominionldquo
that we have to differentiate between the sanctity of life and the right to life
9 Cf Houmlfling W Salus etaut voluntas aegroti suprema lex ndash Verfassungsrechtliche Grenzen
des Selbstbestimmungsrechts in WienkeEberbachKramerJanke (Hrsg) Die Verbesserung
des Menschen 2009 pp 119 seq
17
and that the latter can only be attributed to individuals capable of having and
protecting interests10 thus excluding foetusses and embryos11 this distinction
of course cannot similarly be applied to the problems of suicide and
euthanasia In fact coming back to the German Fundamental Law the only
contentious issue concerns the question whether the constitution does
guranatee the right take onersquos own life meaning there is as it were a
fundamental right to suicide12 Indeed it does sound contradictory to provide
safeguards both for human life as well as the right to end it However any
interpretation that does not recognise the bdquoright to suicideldquo faces highly
problematic consequences Denying the right to end onersquos own life would be
tantamount to establishing a duty to continue living under any circumstances
ndash and that is obviously not acceptable from a fundamental rights perspective13
In stark contrast to religious beliefs this constitutional based approach does not
treat life as sacred or as an intrinsic untouchable value per se but as an
individual right or even as a personal commodity
So in short according to the German Fundamental Law each individual
is entitled to end his or her life Thus a great part of the characteristic problems
with regard to the legality of suicide which are so prominent within the
American legal system (and build the background to Dworkinrsquos analysis in
bdquoLifersquos Dominionldquo) do not exist in Germany Here suicide is not only not a
criminal offense but in principle protected by the law This also means that
assisting a person committing suicide is not punishable either The Penal Code
does however provide in its sect 216 for the criminalisation of euthanasia ie
the active killing of another person even if it happens in strict accordance to
this personrsquos expressed wishes As stated above the logic behind the
criminalisation of killings on request cannot be solely seen in the general taboo
of killing another person Rather the involvement of another person changes
10 Dworkin R Lifersquos Dominion An Argument about Abortion and Euthanasia 1993 p 20
bdquothe scarcely comprehensible idea that an organism that has never had a mental life can still
have interestsldquo 11 It is highly doubtful whether such a position is in accordance with the German Funamental
Law even though the Federal Constitutional Courtrsquos decisions on the criminalisation of
abortion might be interpreted in a similar sense Cf Augsberg S Wuumlrde des Menschen als
Gattungswesen Zur Verrechtlichung des Gattungsargumentes in Dabrock PDenkhaus
RSchaede S (Eds) Gattung Mensch Interdisziplinaumlre Perspektiven 2010 pp 385 seq 12 Cf for the sceptical position eg Di Fabio U MaunzDuumlrig (Eds) Grundgesetz-
Kommentar Art 2 Rn 47 with further references 13 Cf in this sense (among others) the recent recommendation by the German Ethics Council
(Deutscher Ethikrat) bdquoZur Regelung der Suizidbeihilfe in einer offenen Gesellschaft
Deutscher Ethikrat empfiehlt gesetzliche Starkung der Suizidpraventionldquo (18122014) p 3
18
and challenges the basic conception of a conscious and autonomous decision
to end onersquos own life
Moreover accepting the fundamental law basis of the autonomous
decision to end onersquos life is does of course not automatically encompass the
statersquos duty to supply legal mechanisms to successfully complete such an
endeavour Neither the Fundamental Law nor the Europea Convention on
Human Rights nor the European Unionrsquos Charter of Fundamental Rights
contain an entitlement of this sort14 On the other hand it does not proclude
the states from implementing protective measurements either With regard to
the high value the legal system places on human life a specific sensibility is
needed Since both the human autonomous decision-making and the physical
integrity are to be protected it is not only legally acceptable but in principle
necessary to prevent suicides and suicide-attempts The rationale being that
under normal circumstances it is almost impossible to know whether the
suicide (attempt) is grounded in an autonomous conscious and well-thought
out decision and that it is better to err on the side of caution It is not only the
duty to protect other peoplersquos (fundamental) rights ndash the classic example being
traumatized trains conductors ndash but primarily this cognitive insecurity the
unavoidable ignorance whether the decision has really been take
autonomously and without undue influence that legitimizes the statersquos action
against suicide attempts Empirically this approach can be validated by
pointing at statistcs according to which the number of suicide attempts is 10 to
20 times higher than the number of bdquosuccessfulldquo suicides15 Obviously there
exists a massive chasm between the fleeting wish to commit suicide and the
long-time wish for survival
II CRIMINAL LAW PROVISIONS
But is it really necessary to incorporate such provisions in the Penal
Code In a liberal system this question has to be asked and answered In our
case I am however convinced that even if we keep in mind the generally
speaking strict conditions under which criminal sanctions are lawful under the
German constitutional regime (1) the answer is bdquoYesldquo (2)
1 REGULATING PENAL LAW IN GENERAL
Criminalising a behaviour means using the legal systemrsquos most rigid
sanctioning mechanism Penal law provisions therefore must serve (only) to
14 Likewise the legislative proposal BT-Drs 1711126 pp 7 seq BR-Drs 23006 p 1 15 Cf eg Fiedler G Suizide Suizidversuche und Suizidalitat in Deutschland ndash Daten und
Fakten 2005 httpwwwsuicidologydeonline-textdatenpdf
19
enforce basic shared convictions If the law describes a given societyrsquos bdquoethical
minimumldquo16 then the criminal law must be held to an even stricter standard
The severity of the sanctions as well as the stigma that goes along with a
criminal conviction guarantee that trespasses against these norms are reduced
as much as possible Penal law provisions contain bans in the strict sense of
the word and thus form specifically intense infringements of individual
liberties For this reason they must not be used in order to protect mere moral
convictions or where individual rights are not (or not yet) at risk17
Furthermore penal law provisions demand specific legislative care They have
to state their respective aims clearly are to be formulated in a language that is
both precise and easily understandable and and they must avoid unwanted
negative effects In general new provisions should only be incorporated into
the Penal Code when there are no convincing other options
2 CRIMINALISING ASSISTED SUICIDE
However even against this reminder of the general preconditions and
limits of criminal law legislation in the current legislative debate there is no
need to worry that these standards are not met For once in the case of asssisted
suicide ndash as with sect 216 StGB ndash the law aims at protecting the most valuable
assets namely human life and individual autonomy It stipulates that these are
at least abstractly endangered where other persons or organisations are
involved because their involvement casts a doubt over the basic assumption of
self-responsibility that guarantees the legality of suicide (attempts) Clearly
putting life and autonomy at risk warrants a legal reaction and even a change
in the the penal law This ist especially true as other non-criminal law based
measures have been found wanting in the past According to recent experience
neither administrative law norms nor regulations on substance abuse and
(medical) professional behaviour have been able to effectively put a halt to the
attempts to establish assisted suicide as a normal service in Germany18
16 Cf Jellinek G Die socialethische Bedeutung von Recht Unrecht und Strafe 1878 17 Cf Hart HLA Law Liberty and Morality 1963 from a German criminal law perspective
eg Jakobs G Rechtsguumlterschutz Zur Legitimation des Strafrechts 2012 Wohlers W
Deliktstypen des Praumlventionsstrafrechts ndash zur Dogmatik bdquomodernerldquo Gefahrdungsdelikte
2000 18 For example in the case of a Berlin-based physician who claims to have assisted 150
persons with their suicide not only was there no criminal prosecution but an administrative
court even found no reason for a ban on the grounds of professional misbehaviour (VG Berlin
Judgement of March 30th 2012 ndash VG 9 K 6309 = Medizinrecht 2013 pp 58 seq) A spiritual
adviser who admittedly had been assisting with multiple suicides was only found guilty of
illegally importing and distributing narcotics in one instance (BGH Judgement of February
7th 2001 ndash 5 StR 47400 = BGHSt 46 pp 279 seq)
20
Relying on administrative control mechanisms or licensing programs would
also be an insufficient alternative Not only would the enforcement most likely
prove to be very difficult but such an arrangement would even have
counterproductive effects it would help to further strengthen the agenda to
bdquonormaliseldquo assisted suicide since the bdquoSterbehelferorganisationenldquo could
point to the bdquostamp of approvalldquo of being state-policed19
Finally the choice to implement the regulation of assisted suicide
within the Penal Code does have one further advantage In the German federal
system the regulation of professional behaviour is in general a matter of state
law Therefore it has been pointed out that the two legislative proposals that
aim to change just the Civil Code20 are unconstitutional on the grounds that
the competence for the regulation of the medical profession does not lie with
the federal level (bdquoBundldquo) but falls within the sphere of the states (bdquoLanderldquo)21
E ORIGIN AND OUTLINE OF THE ONGOING DEBATE
In the fall of 2015 the Bundestag will discuss and in all likelihood
decide on four legislative proposals Before these proposals can be described
in more detail (II) it is important to have a look at the factual developments
that have brought about this legislative action (I)22
I DEMOGRAPHIC CHANGE AND THE RISE OF
STERBEHELFERORGANISATIONEN (ORGANISATIONS
SPECIALISING IN ASSISTED SUICIDE)
As described above in the given criminal law system assisted suicide
is not a punishable offence This can of course be regarded as an integral and
intentional consequence of the legal systemrsquos approach to suicide in general
It might however also be perceived of as a loop-hole In any case the legality
of assisted suicide has enabled the emergence of a variety of so-called
19 BT-Drs 1711126 p 8 20 BT-Drs 185374 and 185375 21 Cf the expert opinion drafted by the Bundestagrsquos own team of legal advisers (Gutachten
des Wissenschaftlichen Dienstes des Deutschen Bundestags) Gesetzentwurfe zur
Sterbebegleitung Gesetzgebungskompetenz des Bundes und Bestimmtheitsgebot WD 3 ndash
3000 ndash 15515 of August 5th 2015 22 Disclaimer Having previously co-authored a similar proposal as an academic project
(httpstiftung-
patientenschutzdeuploadsfilespdfhibStellungnahmeGesetzentwurfAssistierterSuizid2012
0604pdf) I have been actively involved in drafting the second legislative proposal (Brand et
al)
21
bdquoSterbehelferorganisationenldquo Of course the term in itself is euphemistic as it
appeals to the idea of assisted dying wheras what is really meant is assisted
suicide While the numbers are still quite low they are apparently growing and
the attention and recognition received by these organisations have initiated an
intensive political debate This debate has to understood against the
background of the ndash another euphemism ndash bdquodemographic changeldquo within
German society Not only fort he last cuple of years but for decades the
demographic development ha staken a highly problematic turn As the former
President Koehler infamously put it bdquoWe are getting older and older but we
donrsquot have children anymoreldquo This aging society does affect a whole range of
political topics not the least of which are the ever-growing costs of the
national health service Clearly under these circumstances the idealistic idea
of self-determination regarding end-of-life decisions must be regarded with
even more scrutiny The potential for abuse is evident23
II A SHORT DESCRIPTION OF THE MOST RELEVANT LEGISLATIVE
AGENDAS
In the course of the ongoing debate the Bundestag has already passed
a law that serves to better the conditions for palliative care As stated before
the current debate focuses on the question of whether assisted suicide should
be penalised or whether it should be permissible if certain (mainly procedural)
conditions are met The proposals range from not changing the law at all to
penalising all forms of assisted suicide
1 A first legislative proposal (MP Sensburg et al)24 aims at
incorporating a new provision in the Penal Code that bans any form of assisted
suicide While this obviously serves to produce an easily understandable and
clear-cut solution it is also highly problematic from a constitutional law point
of view Since the new norm does not differentiate between suicides where the
autonomous decision is beyond doubt and suicides where that is not the case
it criminalises assistance even where the suicide itself is protected by the
respective individualrsquos fundamental rights
2 The second legislative proposal (MP Brand et al)25 does also
contain a new criminal law provision (sect 217 StGB) However in this proposal
this norm does not criminalise any form of assisted suicide Rather it penalises
only acts of assistance that are organised and meant to be provided
23 For a humourous yet quite scary take on the subject visit
httpfreakonomicscom20150827are-you-ready-for-a-glorious-sunset-a-new-
freakonomics-radio-episode 24 BT-Drs 185376 25 BT-Drs 185373
22
continuously and in many cases The rationale behind this proposal is that
persons andor organisations providing this kind of assistance are likely to
have interests of their own and develop their own agenda thereby possibly
contravening the wishes of the suicidal person Thus under such circumstances
it can be presumed that there is at least an abstract risk to an autonomous
decision-making process and the human life depending on this process
3 The third proposal (MP Kuumlnast et al)26 does not want to alter the
Penal Code but establishes a separate statute Within this statute however it
too contains a criminal law provision according to which certain forms of
assisted suicide are penalised Where the second proposal looks at continuance
and organisation this proposal relies on the financial aims of the persons
giving assistance The problem with this approach is a) that it can easily be
circumvented and b) that it is quite possible that an undue influence is exerted
even when there no financial interests involved
4 Finally the fourth porposal (MP Hintze et al)27 does not want to
criminalise assisted suicide at all On the contrary the proposal aims to clarify
its legality by integrating norms into the Civil Code that specify the conditions
under which assisted suicide is legal Among these conditions are the fact that
the suicidal person (in the proposalrsquos terminology the bdquopatientldquo) is an adult
and mentally sound yet suffering from a mortal and incurable illness that the
assistance is given by a physician and that certain steps are taken to ensure that
the bdquopatientrsquosldquo decision is sincere final and given voluntarily As with the third
proposal there are good arguments that this proposal is formally
unconstitutuional due to the fact that the Bundestag lacks the necessary
competence to legislate on these matters Furthermore the fact that the
proposal summarily excludes minors as well as persons who are not terminally
ill stands in stark contrast to the fundamental lawrsquos basic concept that no
human life is more or less valuable than another Finally while there is some
appeal in the idea that a procedural mechanism could be used to safeguard an
autonomous decision it is doubtful that this will work Quite obviously even
the drafters of the proposal do not trust their own concept because if they did
there would be no reason not to extend it a) beyond the restricted circle of
persons and b) to instances of killing on request (sect 216 StGB)
5 It remains to be seen how the Bundestag decides As things stand
only the second proposal does not invoke serious legal doubts It is however
quite possible that under these circumstances the Bundestag will vote not to
change the law at all leaving everything at it is
26 BT-Drs 185375 27 BT-Drs 185374
23
F LIFES DOMINIONS DOMINION NATIONAL EXPERIENCES AND
DISCIPLINARY EXPECTATIONS AS BOUNDARIES
As we have seen Dworkinrsquos tentative and balanced yet by tendence
liberal approach is not clearly tangible in the ongoing discussions His concept
of lifersquos intrinsic value can (and maybe must) however be understood against
the background of a nationrsquos specific historical experiences and the legal
traditions built upon those experiences Even if in Germany there is a trend
in recent years to discuss bdquoeuthanasialdquo more frankly and open-mindedly the
past still lingers on in the current debate and shapes recent events Another
aspect that links this discussion to Dworkinrsquos work concerns the use of
paternalistic legislation In the traditional liberal view attempts by the state to
educate and direct its citizens according to a specific idea of an accomplished
life are to be frowned upon To put it simply in a liberal society the individual
is free to do as he or she pleases and as long as this does not put others at risk
it is no one elsersquos especially not the statersquos business With regard to the case
at hand however we must also acknowledge that criticising state action as
paternalistic might often be oversimplistic For as we have seen the concept of
human autonomy and autonomous decision-making is indeed very
complicated and complex sometimes even dubious Even if it is not dicarded
as a myth altogether it is highly context-sensitive and worthy of both close
scientific (juridical) attention and maybe even legal protection In my view
that is one of the lasting lessons we can take from the debate on the
criminalisation of assisted suicide
24
25
Deve o Estado ser neutro
As questotildees difiacuteceis do aborto e da eutanaacutesia
Benedita Mac Crorie
O tema que nos propomos tratar diz respeito ao papel que o Estado
deve assumir a propoacutesito das ldquoquestotildees difiacuteceisrdquo28 do aborto e da eutanaacutesia
Tratando-se este coloacutequio de um coloacutequio comemorativo da obra de Ronald
Dworkin Lifeacutes Dominion gostariacuteamos de num primeiro momento
enquadrar cada uma das questotildees que nos propomos abordar no pensamento
do Autor para a partir daiacute passar para a nossa proacutepria anaacutelise destas
problemaacuteticas no ordenamento juriacutedico portuguecircs
1 O ABORTO
Em relaccedilatildeo agrave questatildeo do aborto e em traccedilos muito gerais a obra de
Dworkin parte de uma distinccedilatildeo que o Autor considera essencial entre uma
ldquoobjecccedilatildeo derivativardquo ao aborto que parte da consideraccedilatildeo do feto como um
ser com interesses proacuteprios e titular de direitos e uma ldquoobjecccedilatildeo
independenterdquo que se funda no valor intriacutenseco da vida humana29
Para o Autor esta distinccedilatildeo eacute essencial porque a confusatildeo entre estes
dois planos tem ldquoenvenenadordquo a discussatildeo puacuteblica sobre o aborto Segundo
ele os defensores do movimento proacute-vida parecem defender que o feto eacute jaacute
28 Sobre o conceito de hard cases ver RONALD DWORKIN Taking Rights Seriously 2ordf
impressatildeo (com resposta a criacuteticas) Duckworth London 2009 pp 81 ss RONALD
DWORKIN A Matter of Principle Clarendon Press Oxford 1985 pp 119 ss ANABELA
LEAtildeO ldquoEm torno dos conceitos de regra e de princiacutepio A poleacutemica entre Hart e Dworkinrdquo
in Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa Almedina Coimbra 2008 p 66 GUSTAVO ZAGREBELSKY El Derecho Duacutectil
Ley Derechos Justicia (trad MARINA GASCOacuteN) 8ordf Ediccedilatildeo Editorial Trotta Madrid
2008 p 139 utiliza a expressatildeo ldquocasos criacuteticosrdquo e considera que estes satildeo os casos ldquosobre os
quais natildeo existe acordo (hellip) entre os inteacuterpretes acerca do sentido e do valor que se lhes deve
atribuirrdquo O Autor daacute como exemplos as questotildees que se relacionam com os temas da vida (a
concepccedilatildeo o aborto) da morte (a eutanaacutesia) da sauacutede (os transplantes a engenharia geneacutetica)
e da bioeacutetica em geral 29 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And
Individual Freedom Vintage Books New York 1994 pp 11 e ss
26
uma pessoa com os inerentes direitos desde a concepccedilatildeo mas na verdade
muito poucos realmente acreditam nisso ou levam esta sua posiccedilatildeo ateacute agraves
uacuteltimas consequecircncias Assim sendo defende que o que realmente divide as
pessoas eacute a forma de interpretar uma ideia fundamental e que todos
compartilhamos que eacute a de que a vida humana eacute sagrada30
Nessa medida a questatildeo central que entende que se deve colocar eacute a
seguinte pode o aborto ser considerado ilegal para protecccedilatildeo da santidade ou
da inviolabilidade da vida humana Pode uma comunidade poliacutetica tornar
valores intriacutensecos em questatildeo de decisatildeo colectiva em vez de questatildeo de
escolha individual31
Dworkin considera que a criminalizaccedilatildeo do aborto implica que os
poderes puacuteblicos tomem uma posiccedilatildeo acerca de um assunto que eacute
essencialmente do foro religioso A crenccedila que cada um de noacutes tem a propoacutesito
do valor intriacutenseco da vida eacute tatildeo profunda e espiritual como qualquer outra
crenccedila ainda que possa natildeo estar explicitamente ligada a uma religiatildeo Nesse
sentido faz um apelo agrave tradiccedilatildeo de liberdade de consciecircncia em democracias
modernas plurais considerando que eacute uma terriacutevel forma de tirania destrutiva
da responsabilidade moral a comunidade impor princiacutepios de feacute ou convicccedilotildees
individuais Assim defende que o Estado deve assumir uma posiccedilatildeo de
neutralidade neste domiacutenio32
Aquela que nos parece ser uma das criacuteticas mais pertinentes agrave obra de
Dworkin (natildeo pondo em causa evidentemente a sua importacircncia
extraordinaacuteria) prende-se com a separaccedilatildeo estrita que o Autor estabelece entre
questotildees de direito e questotildees de valor estando estas uacuteltimas arredadas da
esfera puacuteblica particularmente se pretendermos transpor as suas ideias para a
ordem juriacutedico-constitucional portuguesa
Num texto em que comenta a obra de Dworkin Jeremy Waldron faz
uma criacutetica ao seu pensamento que vai precisamente nesse sentido dizendo o
seguinte ldquoNo final Dworkin manteacutem a sua argumentaccedilatildeo apenas insistindo
que a atribuiccedilatildeo de direitos nada tem que ver com questotildees de valor intriacutenseco
(hellip)rdquo Waldron considera no entanto que ldquonatildeo estamos em posiccedilatildeo de dizer
30 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And
Individual Freedom cit pp 13 ss 31 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And
Individual Freedom cit p 26 32 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And
Individual Freedom cit p 15
27
que as nossas controveacutersias sobre valor devem estar fora da tomada de decisatildeo
colectiva acerca da lei (hellip)rdquo33
Dworkin preconiza a neutralidade do Estado liberal e considera que as
decisotildees poliacuteticas devem ser na medida do possiacutevel independentes de
qualquer ldquoconcepccedilatildeo da vida boardquo34 Ora a criacutetica basilar que se tem dirigido
ao liberalismo neutral no qual se insere o pensamento do Autor eacute a de que as
normas de direitos fundamentais natildeo resultam de uma ldquoposiccedilatildeo originalrdquo mas
antes de uma ldquorsquoexperiecircnciarsquo histoacuterico-socialmente situadardquo35 Eacute entatildeo a
constataccedilatildeo de que os homens natildeo existem ldquoem estado purordquo mas ldquosituada e
comprometidamenterdquo que fundamenta a oposiccedilatildeo a esta perspectiva36 Os
preceitos relativos aos direitos fundamentais traduzem o reconhecimento de
ldquobens ou valoresrdquo importantes para uma dada comunidade e que justificam
esses mesmos preceitos37
Haacute entatildeo uma ldquounidade de sentido cultural nos direitos
fundamentaisrdquo o que natildeo significa no entanto a aceitaccedilatildeo de ldquouma
determinada teoria dos valoresrdquo ou ldquoo reconhecimento de uma ordem de
valores hieraacuterquica abstracta e fechadardquo sendo ldquoa ordem constitucional dos
direitos fundamentais uma ordem pluralista e abertardquo38 Eacute o princiacutepio da
dignidade da pessoa humana que confere essa ldquounidade de sentidordquo aos
direitos fundamentais39 Tal implica que devamos partir de uma concepccedilatildeo de
33 JEREMY WALDRON ldquoThe Edges of Liferdquo publicado a 12 de maio de 1994 disponiacutevel
em httpwwwlrbcoukv16n09 jeremy-waldronthe-edges-of-life (11012016) 34 RONALD DWORKIN ldquoLiberalismrdquo in STUART HAMPSHIRE (ed) Public and Private
Morality Cambridge University Press Cambridge 1978 p 127 35 FERNANDO J BRONZE ldquoPessoa Direito e Estadordquo in ANTOacuteNIO MENEZES
CORDEIRO - PEDRO PAIS DE VASCONCELOS ndash PAULA COSTA E SILVA (orgs)
Estudos em Honra do Professor Doutor Joseacute de Oliveira Ascensatildeo Vol I Almedina
Coimbra 2008 p 317 36 LUIacuteS PEDRO PEREIRA COUTINHO A Autoridade Moral da Constituiccedilatildeo Da
Fundamentaccedilatildeo da Validade do Direito Constitucional Coimbra Editora Coimbra 2009 p
51 37 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo
Portuguesa de 1976 4ordf Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2009 p 100 38 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo
Portuguesa de 1976 cit pp 100 e 101 Considerando que ldquoa transformaccedilatildeo da teoria dos
valores numa teoria dos princiacutepios evita a temida lsquotirania dos valoresrsquo sem se cair numa
(impossiacutevel) indiferenccedila aos valoresrdquo ver JOAtildeO LOUREIRO O Procedimento
Administrativo entre a Eficiecircncia e a Garantia dos Particulares Coimbra Editora 1995 p
162 39 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo
Portuguesa de 1976 cit p 103
28
bem que ldquoinclua de maneira essencial a autonomiardquo40 uma vez que o princiacutepio
da dignidade se consubstancia precisamente na ideia de (igual) autonomia
Assim o Estado deve ser plural mas natildeo tem necessariamente de ser
neutral Nas palavras de Nuno Pinto Oliveira o ldquoprinciacutepio do pluralismordquo
obriga o Estado a assegurar aos seus cidadatildeos ldquopor intermeacutedio da democracia
e dos direitos fundamentais lsquocertos espaccedilos de autodeterminaccedilatildeo em que [os
poderes poliacuteticos e sociais] natildeo podem entrarrsquordquo Por seu lado ldquoo princiacutepio da
neutralidaderdquo impotildee que o Estado ldquoescolha em cada caso concreto soluccedilotildees
inteiramente neutras em relaccedilatildeo agraves autocompreensotildees individuais e
colectivasrdquo Daqui se retira que ldquoo Estado contemporacircneo estaacute subordinado ao
princiacutepio do pluralismo natildeo estaacute no entanto subordinado ao princiacutepio da
neutralidaderdquo41
Tudo isto para dizer que ainda que natildeo se entenda que o feto seja titular
de um direito subjectivo agrave vida tal natildeo deve significar que consequentemente
natildeo deva gozar de nenhuma protecccedilatildeo Natildeo nos parece que esta tenha de ser
uma questatildeo de ldquotudo ou nadardquo O que estaacute em causa natildeo eacute em alternativa
apenas o valor intriacutenseco que cada um de noacutes atribui agrave vida mas antes o valor
que enquanto comunidade decidimos atribuir a este bem erigido em bem
constitucionalmente protegido
Tal tem vindo a ser o caminho trilhado pelo Tribunal Constitucional
Portuguecircs quando afirma por exemplo no Acoacuterdatildeo nordm 617200742 que laquo[d]a
inviolabilidade da vida humana como foacutermula de tutela juriacutedica natildeo deriva
desde logo que a protecccedilatildeo contra agressotildees postule um direito subjectivo do
feto ou que natildeo seja de distinguir um direito subjectivo agrave vida de uma
protecccedilatildeo objectiva da vida intra-uterina como resulta da jurisprudecircncia
constitucional portuguesa e de outros paiacuteses europeus O facto de o feto ser
tutelado em nome da dignidade da vida humana natildeo significa que haja tiacutetulo
idecircntico ao reconhecido a partir do nascimentoraquo
Assim a vida humana eacute um bem juriacutedico-constitucionalmente
protegido e o TC tem entendido que para o Estado mesmo que se considere
que o feto natildeo eacute titular de um direito subjectivo agrave vida decorre um dever de
proteger essa ldquovida em formaccedilatildeordquo Apesar disso na ponderaccedilatildeo que fez entre
o direito ao desenvolvimento da personalidade da mulher de um lado e a
40 CARLOS S NINO ldquoLiberalismo versus Comunitarismordquo in Revista del Centro de Estuacutedios
Constitucionales nordm 1 1988 p 374 41 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA O Direito Geral de Personalidade e a ldquoSoluccedilatildeo do
Dissentimentordquo ndash Ensaio Sobre um Caso de ldquoConstitucionalizaccedilatildeordquo do Direito Civil Coimbra
Editora Coimbra 2002 p 163 42 httpwwwtribunalconstitucionalpttcacordaos20070617html
29
dimensatildeo objectiva do direito agrave vida do outro entendeu que esse dever de
proteger o direito agrave vida natildeo implica necessariamente a criminalizaccedilatildeo do
aborto na medida em que o direito penal eacute a uacuteltima ratio e haveraacute outras
formas de tutelar este bem
Tambeacutem no Acoacuterdatildeo 75201043 o TC foi chamado a pronunciar-se
acerca do modo como foi regulamentada a interrupccedilatildeo voluntaacuteria da gravidez
precisamente no sentido de avaliar se o Estado cumpriu devidamente o dever
de protecccedilatildeo decorrente da norma que consagra o direito agrave vida e se natildeo
poderia estar aqui em causa um deacutefice de protecccedilatildeo ou uma proibiccedilatildeo de
insuficiecircncia Nas palavras do Tribunal ldquoO cumprimento desse dever estaacute
sujeito a uma medida miacutenima sendo violada a proibiccedilatildeo de insuficiecircncia
(ldquoUntermassverbotrdquo) quando as normas de protecccedilatildeo ficarem aqueacutem do
constitucionalmente exigiacutevel44rdquo
Uma das questotildees colocadas no Acoacuterdatildeo prendia-se com saber se a
consulta a que a graacutevida necessariamente tem de comparecer e que eacute uma
consulta meramente informativa eacute ou natildeo idoacutenea e suficiente para o fim a que
se destina ndash a tutela da vida humana intra-uterina
Quanto a essa questatildeo tendemos a concordar com o voto de vencida
da Senhora Conselheira Maria Luacutecia Amaral no qual considera que haacute
efectivamente um deacutefice de protecccedilatildeo particularmente no que se refere agrave
consulta obrigatoacuteria que na sua opiniatildeo ldquodeveria ser o lugar sisteacutemico para
o cumprimento do dever estadual de protecccedilatildeo da vida ndash tornando-se por isso
aberta em relaccedilatildeo ao resultado por dela natildeo dever resultar nenhuma
imposiccedilatildeo da conduta futura da graacutevida mas comprometida quanto aos seus
proacuteprios fins por implicar um reconhecido empenhamento do Estado quanto
agrave desincentivaccedilatildeo do aborto ndash o que natildeo acontece porque vem a ser regulada
pelo legislador como se afinal de um estrito procedimento formal se tratasse
43 httpwwwtribunalconstitucionalpttcacordaos20100075html 44 Sobre o princiacutepio da proibiccedilatildeo do deacutefice ver JORGE PEREIRA DA SILVA rdquoInterdiccedilatildeo de
protecccedilatildeo insuficiente proporcionalidade e conteuacutedo essencialrdquo in Estudos em Homenagem
ao Professor Doutor Jorge Miranda Vol II Coimbra Editora Coimbra 2012 pp 185 ss
JORGE REIS NOVAIS As Restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo Expressamente
Autorizadas pela Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 2003 pp 76 e 77 JOSEacute
JOAQUIM GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo 7ordf
Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2003 p 273 OLIVER KLEIN ldquoDas Untermassverbot ndash Uumlber
die Justiziabilitat grundrechtlicher Schutzpflichterfullungrdquo in JuS nordm 11 2006 p 961
DIETER GRIMM ldquoThe protective function of the staterdquo in GEORG NOLTE European and
US Constitutionalism Cambridge University Press Cambridge 2005 p 151
30
(para aleacutem de nela natildeo poderem estar presentes por proibiccedilatildeo decorrente do
nordm 2 do artigo 6ordm da Lei os meacutedicos objectores de consciecircncia)rdquo
Tendemos a concordar com esta posiccedilatildeo porque pensamos que eacute
importante que se entenda o aborto como uma lesatildeo de um bem juriacutedico
constitucionalmente protegido e natildeo como uma conduta meramente neutra45
No que se refere agrave questatildeo do aborto natildeo nos parece entatildeo que esta
seja uma questatildeo que deva apenas ser remetida agrave consciecircncia individual de
cada um tendo aqui o Estado um papel a cumprir ainda que esse papel natildeo
tenha de passar pela criminalizaccedilatildeo da conduta Ainda assim parece-nos
importante que o Estado leve a cabo poliacuteticas puacuteblicas e legisle no sentido de
evitar a sua banalizaccedilatildeo
Haacute ainda uma questatildeo que consideramos importante discutir a este
propoacutesito e em relaccedilatildeo agrave qual a lei eacute omissa o problema da reincidecircncia
Parece-nos que deve haver por parte do Estado uma atenccedilatildeo especial a estas
situaccedilotildees ainda que nos pareccedila que a soluccedilatildeo do problema natildeo deve passar
por medidas punitivas nomeadamente a imposiccedilatildeo do pagamento de taxas
moderadoras para quem reincida
2 A EUTANAacuteSIA
Voltando novamente agrave obra de Dworkin quanto ao fim da vida a
perspectiva do Autor parte da mesma ideia de que o que estaacute em causa eacute o
valor intriacutenseco que se atribui agrave vida sendo que a escolha do momento da
morte deve ser deixada agrave consciecircncia individual de cada um considerando que
estas questotildees que se colocam nos dois extremos da vida tecircm muito em
comum46 Para Dworkin a escolha da forma de morrer pode ser decisiva para
o proacuteprio sentido que pretendemos atribuir agrave nossa vida Assim a convicccedilatildeo
45 Independentemente de estarmos ou natildeo de acordo com as medidas adoptadas a Lei nordm
1362015 de 7 de Setembro que veio alterar a Lei nordm 162007 de 17 de abril sobre exclusatildeo
da ilicitude nos casos de interrupccedilatildeo voluntaacuteria da gravidez parece ter ido nesse sentido ao
estabelecer a obrigatoriedade de a mulher comparecer a consultas com um psicoacutelogo e um
teacutecnico de serviccedilo social bem como a possibilidade de os meacutedicos objectores de consciecircncia
poderem participar nas vaacuterias fases do processo de aconselhamento Esta lei foi entretanto
revogada 46 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And
Individual Freedom cit pp 179 e 218
31
de que a vida humana eacute sagrada pode acabar por se tornar em argumento
decisivo a favor em vez de contra a eutanaacutesia47
Pensamos que a argumentaccedilatildeo do Autor eacute mais convincente no que diz
respeito a esta questatildeo uma vez que aqui natildeo estaacute envolvido um ldquoser em
potecircnciardquo (ou o que lhe queiramos chamar) que eacute externo agrave pessoa que decide
morrer e que ainda que se possa considerar que natildeo eacute titular de um direito
subjectivo agrave vida goza da protecccedilatildeo que decorre deste direito na sua dimensatildeo
objectiva Trata-se da escolha que a proacutepria pessoa faz acerca do modo como
pretende terminar a sua proacutepria vida e na nossa perspectiva esse facto faz com
que natildeo possamos pensar os dois problemas exactamente nos mesmos termos
Haacute diferentes razotildees que podem ser invocadas por quem se opotildee agrave
liberdade de escolha em fim de vida O Autor refere que muitas vezes satildeo
razotildees paternalistas que estatildeo na base dessa oposiccedilatildeo defendendo-se que
mesmo quando as pessoas decidem em consciecircncia morrer ainda assim eacute mau
para elas que o faccedilam pelo que natildeo se deve permitir a eutanaacutesia48
Com o termo paternalismo pretende-se designar a ldquoprivaccedilatildeo ou
reduccedilatildeo da liberdade de escolha do indiviacuteduo operada pelo ordenamento a fim
de assegurar uma particular protecccedilatildeo da pessoa ou de uma categoria de
pessoas de actos contraacuterios ao seu proacuteprio interesserdquo49 O paternalismo
estadual goza de uma caracteriacutestica que o distingue das restantes medidas
restritivas do Estado a ldquofinalidade especiacutefica da restriccedilatildeo da liberdaderdquo Neste
caso o fundamento invocado eacute a protecccedilatildeo da pessoa contra possiacuteveis ldquomaacutes
escolhasrdquo que esta possa fazer e natildeo a defesa de interesses puacuteblicos ou de
terceiros50 Estaacute aqui em causa a protecccedilatildeo da pessoa contra si proacutepria
Ora o paternalismo eacute desde logo suspeito na perspectiva dos direitos
fundamentais porque potildee em causa o conteuacutedo de autonomia neles presente
ao permitir que essa autonomia apenas se exerccedila se se dirigir agrave promoccedilatildeo do
proacuteprio bem51 Na base da protecccedilatildeo da pessoa contra si mesma encontra-se
uma concepccedilatildeo de dignidade da pessoa natildeo apenas enquanto princiacutepio
47 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And
Individual Freedom cit p 196 e p 218 48 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And
Individual Freedom cit p 192 49 FABRIZIO COSENTINO ldquoIl paternalismo del legislatore nelle norme di limitazione
dellrsquoautonomia dei privatirdquo in Quadrimestre nordm 1 1993 p 120 50 KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht Duncker amp Humblot Berlin 2005
pp 11 e 12 51 JOEL FEINBERG Harm to Self The Moral Limits of the Criminal Law Oxford University
Press New York Oxford 1986 p 58
32
fundante da liberdade individual mas que se pode sobrepor a esta uacuteltima
justificando restriccedilotildees ao exerciacutecio das liberdades individuais52 Uma das
razotildees invocadas pelo Estado para obrigar o titular da dignidade a um
comportamento conforme agrave dignidade eacute o facto de este considerar que sabe
melhor do que o proacuteprio titular avaliar os seus interesses53
Natildeo estamos no entanto de acordo com esta interpretaccedilatildeo do princiacutepio
da dignidade da pessoa humana Deve ser o proacuteprio sujeito a determinar o que
eacute para si mais ou menos digno Uma ldquovaloraccedilatildeo paternalistardquo que transfere
para o Estado ldquoa decisatildeo uacuteltima sobre aquilo que as pessoas devem ou natildeo
valorar na sua vidardquo independentemente da sua vontade converte os direitos
em deveres54 Ora natildeo haacute nem deve haver como regra ldquodireitos obrigatoacuteriosrdquo
em Estado de Direito55 Nas palavras de Dworkin ldquoas decisotildees sobre a vida e
a morte satildeo as mais importantes as mais essenciais para a formaccedilatildeo e
expressatildeo da personalidade que algueacutem pode tomar Consideramos que eacute
essencial tomar essas decisotildees correctamente mas tambeacutem entendemos ser
essencial tomaacute-las por noacutes proacutepriosrdquo 56
Pensamos que podem ser legiacutetimas medidas estaduais paternalistas
quando nas palavras de Jorge Reis Novais estejam em causa as possibilidades
de ldquoautodeterminaccedilatildeo futurardquo da pessoa57 Sendo a autonomia um valor central
na nossa ordem juriacutedica e cabendo ao Estado criar condiccedilotildees de autonomia
seraacute legiacutetimo que se tomem medidas no sentido de evitar que o titular do direito
leve a cabo uma intervenccedilatildeo que lhe retire a possibilidade de se autodeterminar
livremente no futuro58
52 JEAN-PHILIPPE FELDMAN ldquoFaut-il proteacuteger lrsquohomme contre lui-mecircme La digniteacute
lrsquoindividu et la personne humainerdquo in Droits nordm 48 2009 pp 88 e 89 53 KAI FISCHER Die Zulaumlssigkeit aufgedraumlngten staatlichen Schutzes vor Selbstschaumldigung
Peter Lang Frankfurt am Main 1997 p 192 54 LUIacuteSA NETO ldquoO Direito Fundamental agrave Disposiccedilatildeo sobre o Proacuteprio Corpordquo Revista da
Faculdade de Direito da Universidade do Porto Ano I 2004 p 226 55 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo rdquo in JORGE MIRANDA
(org) Perspectivas Constitucionais ndash Nos 20 Anos da Constituiccedilatildeo Coimbra Editora 1996
pp 286 e 287 Embora sejam de admitir excepccedilotildees como eacute o caso dos direitos-deveres 56 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And
Individual Freedom cit p 239 57 Eacute tambeacutem essa a posiccedilatildeo de JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentais
cit p 318 58 MARTINA DOROTHEE EPPELT Grundrechtsverzicht und Humangenetik GCA-Verlag
Herdecke 1999 p 124 REINHOLD ZIPPELIUS ndash THOMAS WUumlRTENBERGER
Deutsches Staatsrecht cit p 195
33
Pensamos que este raciociacutenio natildeo deve no entanto ser transponiacutevel
para a escolha de terminar a proacutepria vida Eacute evidente que a decisatildeo deliberada
de pocircr termo agrave vida tem como consequecircncia que a pessoa natildeo pode continuar
a exercer a sua liberdade no futuro Mas mais do que isso essa decisatildeo implica
que deixa de haver futuro A pessoa natildeo continua consequentemente a viver
a sua vida sem uma parcela de liberdade que possa pocircr em causa a sua
autodeterminaccedilatildeo59
Por outro lado ainda ldquona literatura anglo-saxoacutenica tem-se feito a
distinccedilatildeo entre paternalismo forte (hard paternalism) e paternalismo fraco
(soft paternalism)rdquo Os defensores do ldquopaternalismo forterdquo sustentam que se
pode impor proteccedilatildeo a pessoas capazes que decidiram voluntariamente
autocolocar-se em perigo ou lesar-se Para o ldquopaternalismo fracordquo apenas seraacute
de admitir uma interferecircncia para a proteccedilatildeo do proacuteprio quando a sua decisatildeo
natildeo eacute voluntaacuteria60
Justifica-se uma abordagem paternalista quando se trate ldquode direitos ou
interesses de menores de pessoas incapazes de se autodeterminarem ou que se
encontrem numa posiccedilatildeo conjuntural de debilidade ou desfavorrdquo61 Natildeo
podemos no entanto esquecer aquela que poderaacute ter sido a manifestaccedilatildeo de
vontade da pessoa enquanto ainda era capaz por exemplo atraveacutes de um
testamento vital
Mas natildeo eacute apenas por motivaccedilotildees paternalistas que nos podemos opor
agrave liberdade de escolha no fim da vida Tambeacutem a proacutepria dimensatildeo objectiva
do direito agrave vida enquanto valor que a nossa ordem juriacutedica visa prosseguir
pode ser invocada neste domiacutenio Natildeo nos parece no entanto que neste caso
na ponderaccedilatildeo a fazer entre o direito ao desenvolvimento da personalidade ou
o conteuacutedo de liberdade iacutensito no direito agrave vida de quem sobre ela pretende
dispor por um lado e o direito agrave vida na sua dimensatildeo objectiva por outro a
salvaguarda deste uacuteltimo esteja numa relaccedilatildeo razoaacutevel ou proporcional com a
medida e a importacircncia dos efeitos danosos produzidos na esfera do titular do
direito ao natildeo se permitir que este possa optar por pocircr termo agrave sua vida nas
situaccedilotildees extremas a que nos estamos a referir62
59 BENEDITA MAC CRORIE Os limites da renuacutencia a direitos fundamentais nas relaccedilotildees
entre particulares Almedina Coimbra 2013 p 306 60 KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht cit pp 16 e 17 61 JORGE REIS NOVAIS As Restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo Expressamente
Autorizadas pela Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 2003 p 450 nota 785 62 Nesse sentido BENEDITA MAC CRORIEldquoA doutrina da renuacutencia a direitos fundamentais
ndash os casos da eutanaacutesia e da colheita de oacutergatildeos em vidardquo in Manuel Curado ndash Nuno Pinto
34
Finalmente e no que se refere agraves preocupaccedilotildees contra eventuais abusos
pensamos que a protecccedilatildeo da liberdade da decisatildeo e a salvaguarda dos
indiviacuteduos dos riscos que esta realidade pode acarretar se consegue instituindo
procedimentos por intermeacutedio dos quais se controlam as condiccedilotildees em que
esta liberdade eacute exercida e natildeo pura e simplesmente suprimindo-a63
Gostariacuteamos de terminar a nossa intervenccedilatildeo com uma frase de
Laurence Tribe a propoacutesito da obra que estamos a discutir hoje ldquoDworkin
pode natildeo nos convencer sobre as suas posiccedilotildees acerca do aborto ou da
eutanaacutesia mas natildeo seremos capazes de ler o seu trabalho sem chegar a um
sentido mais completo sobre o que a morte significa para noacutes e como a sua
interpretaccedilatildeo influencia o sentido que atribuiacutemos agrave vida Porque apesar de
todas as suas falhas este livro a obra prima de Dworkin eacute um deleite para a
mente e um baacutelsamo para a almardquo64
Oliveira (org) Pessoas Transparentes Questotildees Actuais da Bioeacutetica Almedina Coimbra
2010 p109 63 BENEDITA MAC CRORIE ldquoA doutrina da renuacutencia a direitos fundamentais ndash os casos da
eutanaacutesia e da colheita de oacutergatildeos em vidardquo cit p 109 Criticando o argumento slippery slope
isto eacute considerar-se que a legalizaccedilatildeo da eutanaacutesia mesmo em casos cuidadosamente
delimitados torna mais provaacutevel que venha tambeacutem a ser legalizada em situaccedilotildees mais
duvidosas podendo o processo terminar em praacuteticas eugeacutenicas como as que tiveram lugar
durante o nazismo ver RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About
Abortion Euthanasia And Individual Freedom cit p 197 64 LAURENCE H TRIBE ldquoOn the Edges Of Life And Deathrdquo publicado a 16 de maio de
1993 disponiacutevel em httpwwwnytimescom19930516bookson-the-edges-of-life-and-
deathhtml pagewanted=all (11012016)
35
O conceito de um plano racional de vida e o sentido de
uma morte digna
Nuno Manuel Pinto Oliveira
laquoA temperanccedila eacute uma espeacutecie de ordenaccedilatildeo e ainda o domiacutenio de
certos prazeres e desejos como quando dizem natildeo entendo bem de
que maneira ser lsquosenhor de sirsquo e empregam outras expressotildees do
geacutenero que satildeo como que vestiacutegios desta virtuderaquo65
laquo[hellip] na alma do homem haacute como que uma parte melhor e outra
pior quando a melhor por natureza domina a pior chama-se a isso
ser lsquosenhor de sirsquo mdash o que eacute um elogio sem duacutevida poreacutem quando
devido a uma maacute educaccedilatildeo ou companhia a parte melhor sendo mais
pequena eacute dominada pela superabundacircncia da parte pior a tal
expressatildeo censura o facto como coisa vergonhosa e chama ao
homem que se encontra nessa situaccedilatildeo escravo de si mesmoraquo66
I
Em The Autonomy of Morality67 Charles Larmore critica a
pressuposiccedilatildeo de que cada pessoa deve ter um plano coerente ou um plano
racional de vida Dworkin fala da vida como uma narraccedilatildeo criativa
integrada68 Finnis de um plano coerente de vida69 e Rawls de um plano
racional de vida70 Larmore alega que a ideia de um plano de vida conteacutem um
erro O plano de vida pressupotildee duas coisas Em primeiro lugar pressupotildee que
65 Platatildeo Repuacuteblica 5ordf ed Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1987 paacutegs 204-205
(431a) 66 Platatildeo Repuacuteblica cit paacuteg 182 (431a-b) 67 Charles Larmore The Autonomy of Morality Cambridge University Press Cambridge
2008 paacutegs 246-271 68 Ronald Dworkin Il dominio della vita (tiacutetulo original Lifes Dominion) Edizioni di
Comunitagrave Milano 1994 paacuteg 283 69 John Finnis Natural Law and Natural Rights Oxford University Press Oxford 1980 paacutegs
103-105 laquocoherent plan of liferaquo 70 John Rawls A Theory of Justice Revised Edition Harvard University Press Cambridge
(Massachussetts) 1999 paacutegs 153-160 e sobretudo paacutegs 491-496 laquorational plan of liferaquo
36
cada pessoa tenha o dever de dirigir a sua vida71 Em segundo lugar pressupotildee
que cada pessoa tenha o dever de dirigir a sua vida de acordo com uma
concepccedilatildeo harmoniosa mdash com uma unified conception mdash dos nossos fins e
dos meios adequados para os prosseguir72 O plano em causa deveria atender
designadamente agraves nossas convicccedilotildees sobre aquilo que eacute valioso e desvalioso
agravequilo que sabemos sobre as nossas capacidades e agravequilo que sabemos sobre
as probabilidades de alcanccedilarmos aquilo que consideramos valioso e de
afastarmos aquilo que eacute desvalioso73 Larmore sugere que o conceito de um
plano de vida desvaloriza injustificadamente a circunstacircncia de as
concepccedilotildees do bem de cada pessoa estarem sujeitas agrave mudanccedila
ldquoBeing surprised by a good of which we had no inkling is itself an
invaluable element of what makes life worth living Our lives would
be the poorer if our happiness unfolded perfectly according to
planrdquo74
Os argumentos de Charles Larmore confundem frequentemente duas
coisas O termo plano sugere a afectaccedilatildeo de meios determinados a fins
determinados O plano coerente ou plano racional de vida natildeo
O Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa contemporacircnea define plano como
um laquoprojecto para a organizaccedilatildeo e orientaccedilatildeo de um trabalho ou tarefa que
traccedila o esquema deste especificando as suas diversas partes ou etapas e que
visa a consecuccedilatildeo de um objectivoraquo75 Ora o plano coerente ou plano racional
de vida natildeo eacute (natildeo pode ser) representado como um afectaccedilatildeo de determinados
meios a determinados fins mdash a vida natildeo eacute propriamente um trabalho ou uma
tarefa e um plano coerente ou plano racional de vida natildeo traccedila propriamente
o esquema de um trabalho ou de uma tarefa
71 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 247 laquo The mistake lies at its very
core in the attitude toward life it embodies That attitude is the view that a life is something
we are to lead and not something we should allow to happen to usrdquo 72 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 247 laquo we should indeed seek to live
in accord with some unified conception of our overall purposes and of the path to achieve
themrdquo 73 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 247 laquo To the extent that we develop
our plan in a rational way giving due weight to our beliefs about what is valuable our
knowledge of our own abilities and our sense of the possibilities the world provides we will
have determined the character of our good and the way to achieve itrdquo 74 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 252 75 Academia das Ciecircncias de Lisboa Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa contemporacircnea vol
II Verbo Lisboa Satildeo Paulo 2001 paacuteg 2876
37
Entre o sentido geral do termo plano e o sentido especiacutefico do termo
plano coerente ou plano racional de vida na filosofia moral e poliacutetica haacute trecircs
diferenccedilas fundamentais Em primeiro lugar haacute diferenccedilas fundamentais
quanto ao grau de abstracccedilatildeo Em segundo lugar haacute diferenccedilas fundamentais
quanto ao grau de complexidade Em terceiro lugar haacute diferenccedilas
fundamentais quanto ao horizonte temporal dos projectos
mdash Em primeiro lugar haacute diferenccedilas fundamentais quanto ao grau de
abstracccedilatildeo Os fins de um plano podem e devem representar-se em termos
mais concretos Os fins de um plano coerente ou de um plano racional de vida
soacute podem e soacute devem representar-se em termos mais abstractos
mdash Em segundo lugar haacute diferenccedilas fundamentais quanto ao grau de
complexidade Os fins de um plano podem e devem representar-se em termos
mais simples Os fins de um plano coerente ou de um plano racional de vida
soacute podem e soacute devem representar-se em termos mais complexos
i) por um lado por natildeo estarem (por natildeo poderem estar)
determinados desde o iniacutecio76
ii) por outro lado ainda que jaacute estejam determinados (ainda que jaacute
tenham sido determinados) por conflituarem entre si77
mdash Em terceiro lugar haacute diferenccedilas fundamentais quanto ao tempo O
horizonte temporal de um plano eacute (sempre) um horizonte limitado Os planos
laquo acabam raquo ou laquo completam-se raquo com a consecuccedilatildeo do fim prosseguido O
horizonte temporal de um plano coerente ou de um plano racional de vida
esse eacute um horizonte ilimitado O plano coerente ou plano racional de uma vida
natildeo laquo acaba raquo e natildeo se laquo completa raquo78
II
Esclarecidas as diferenccedilas fundamentais entre um plano e um plano de
vida perguntar-se-aacute de que falamos quando falamos de um plano de vida
O problema relaciona-se com uma distinccedilatildeo fundamental em Lifersquos
Dominion Dworkin contrapotildee dois tipos de razotildees para que uma pessoa faccedila
ou natildeo faccedila alguma coisa para que uma pessoa decirc agrave vida uma determinada
76 John Rawls A Theory of Justice paacuteg 492 Os fins de um plano racional de vida
determinam-se gradualmente 77 Cf John Rawls A Theory of Justice cit paacuteg 79 O plano eacute desenhado para permitir uma
satisfaccedilatildeo harmoniosa dos interesses de uma pessoa mdash p ex atraveacutes da planificaccedilatildeo de
actividades laquopara que diferentes desejos natildeo colidam entre siraquo 78 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104
38
direcccedilatildeo79 O primeiro corresponderia aos interesses experienciais80 ou
interesses volicionais81 O segundo corresponderia aos interesses criacuteticos O
facto de todas as pessoas terem terem um plano de vida eacute controverso82 O
facto de os interesses criacuteticos soacute fazerem sentido dentro de um plano coerente
ou de um plano racional de vida esse eacute incontroverso
a) Os interesses criacuteticos exprimem a ambiccedilatildeo abstracta de viver uma
vida boa O termo vida boa eacute (pode ser) um termo um tanto ou quanto
estranho se em inglecircs o termo good life tem um preciso significado eacutetico ou
moral em portuguecircs os termos vida boa ou boa vida natildeo o tecircm O seu
significado eacute perturbado pela conotaccedilatildeo faacutecil com os planos de vida das
pessoas grosseiras ou vulgares que acreditam que o bem eacute o prazer83
O presente texto atribuiraacute ao termo vida boa o sentido que deve ter mdash
a vida boa eacute a vida que procura e prossegue o bem Aristoacuteteles falava de um
bem de um bem supremo laquo que devemos prosseguir em todos os actos da
nossa vida raquo e que Aristoacuteleles identificava com a felicidade84
Independentemente de qual seja o bem supremo mdash independentemente de o
bem supremo ser ou natildeo a felicidade a vida boa seraacute uma vida que o procura
e prossegue
b) Exprimindo a ambiccedilatildeo abstracta de viver uma vida boa os
interesses criacuteticos tecircm duas caracteriacutesticas
Os interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que o conjunto das
experiecircncias de uma pessoa tenha uma estrutura que exprima escolhas
coerentes O problema estaacute em que o facto de uma vida se fundar sobre uma
soacute convicccedilatildeo natildeo valeraacute de nada se a uacutenica convicccedilatildeo sobre a qual a vida se
funda for uma convicccedilatildeo errada o facto de uma vida exprimir escolhas
coerentes com uma soacute convicccedilatildeo natildeo valeraacute de nada se essas escolhas
coerentes forem escolhas erradas laquonenhum daqueles que considera a sua vida
fundada sobre um erro se consolaraacute de constatar que a sua vida se funda sobre
79 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 277 80 Expressatildeo preferida por Ronald Dworkin em Il dominio della vita cit paacutegs 277 ss 81 Expressatildeo preferida por Ronald Dworkin em ldquoFoundations of Liberal Equalityrdquo in Stephen
L Darwall Equal Freedom Selected Tanner Lectures on Human Values University of
Michigan Press Cambridge (Massachussetts) 1995 paacutegs 190-306 ou em ldquoLiberal
Communityrdquo in California Law Review vol 77 (1989) paacutegs 479-504 82 Dworkin parece pensar que sim mdash que todas as pessoas tecircm um plano de vida laquoas pessoas
cujas vidas natildeo parecem seguir nenhum projecto s[eriam] ainda assim guiadas por um sentido
geral do estilo de vida que consideram apropriadoraquo (Il dominio della vita cit paacuteg 279) 83 Aristoacuteteles Moral a Nicoacutemaco Espasa Calpe Madrid 1978 6ordf reimpressatildeo mdash 1993 paacuteg
67 84 Aristoacuteteles Moral a Nicoacutemaco cit paacuteg 65
39
um soacute erroraquo85 Os interesses criacuteticos satildeo por isso razotildees para desejar que as
escolhas coerentes que o conjunto das experiecircncias exprime sejam escolhas
correctas
III
Em primeiro lugar os interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que o
conjunto das experiecircncias de uma pessoa tenha uma estrutura mdash e para desejar
que a estrutura das experiecircncias exprima escolhas coerentes
Os interesses experienciais ou volicionais satildeo razotildees para desejar as
experiecircncias agradaacuteveis e para natildeo desejar as experiecircncias desagradeacuteveis86 O
valor das experiecircncias consideradas em si (isoladamente) depende de as
considerarmos agradaacuteveis ou desagradaacuteveis como experiecircncias87 Os
interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que o conjunto das experiecircncias mdash
agradaacuteveis e desagradaacuteveis mdash tenha uma determinada estrutura88 Dworkin
descreve-a como uma estrutura que exprima escolhas coerentes89
Os termos estrutura ou estrutura que exprima escolhas coerentes
significam (i) que as escolhas de uma pessoa satildeo determinadas por princiacutepios
e por valores (ii) que os princiacutepios e os valores determinantes satildeo em nuacutemero
relativamente restrito e (iii) que os princiacutepios e os valores determinantes em
nuacutemero relativamente resrito satildeo harmonizaacuteveis entre si
Caso as escolhas de uma pessoa sejam coerentes a sua vida exprimiraacute
um compromisso constante constitutivo do laquoeuraquo90 laquono sentido de uma
determinada perspectiva do caraacutecter ou do fim que uma vida entendida como
uma narraccedilatildeo criativa integrada [deve] exprimir ou ilustrarraquo91
O facto de as experiecircncias agradaacuteveis ou desagradaacuteveis de uma
pessoa terem uma determinada estrutura exprimindo escolhas coerentes
corresponderia a um ideal de integridade92 ainda que a integridade natildeo fosse
tudo sempre seria alguma coisa mdash e alguma coisa importante
85 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 284 86 Em Justice for Hedgehogs Dworkin fala em desiderata (paacuteg 118) 87 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 279 88 Em Justice for Hedgehogs Dworkin fala em values (paacuteg 119) 89 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 283 90 Rawls sugere que a unidade do laquoeuraquo depende da coerecircncia do plano de vida seleccionado
ou da coerecircncia das escolhas da pessoa conforme o plano de vida seleccionado (cf John
Rawls A Theory of Justice cit paacuteg 491) 91 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 283 92 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 283
40
laquoa integridaderaquo mdash diz Dworkin mdash laquoreveste-se de grande
importacircncia na vida como na ciecircncia e na arteraquo93
IV
Em segundo lugar os interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que as
escolhas coerentes que o conjunto das experiecircncias de uma pessoa exprime
ou ilustra correctas mdash tornem a sua vida autenticamente melhor94
O facto de as experiecircncias de uma pessoa terem uma determinada
estrutura exprimindo escolhas coerentes eacute em si insuficiente para que a
estrutura das experiecircncias de uma pessoa seja a estrutura de uma vida boa
Finnis di-lo de uma forma clara O plano coerente ou plano racional
de vida eacute o plano de vida de uma pessoa racional e razoaacutevel Entre os corolaacuterios
da representaccedilatildeo de um plano coerente ou plano racional como plano de vida
de uma pessoa racional e razoaacutevel encontram-se os dois seguintes
O primeiro estaacute em que uma pessoa razoaacutevel natildeo pode conformar-se
com a decisatildeo de viver sem um projecto (= com a decisatildeo de viver de momento
para momento laquoprosseguindo desejos imediatosraquo95) e o segundo em que uma
pessoa razoaacutevel natildeo pode conformar-se com a decisatildeo de viver de projecto
definido para projecto definido O plano de vida de uma pessoa razoaacutevel natildeo
se esgota (natildeo pode esgotar-se) na realizaccedilatildeo de projectos definidos que
podem ser laquoacabadosraquo ou laquocompletadosraquo96
Evitando a irracionalidade de uma vida que decorre sem projectos
definidos ou de uma vida que decorre sem um plano que proporcione uma
estrutura aos projectos definidos que se acabam e se completam o plano de
vida deve representar-se como um compromisso com bens e ou com
valores97
O valor dos interesses experienciais ou volicionais eacute um valor
subjectivo O valor dos interesses criacuteticos eacute um valor objectivo O facto de os
reconhecermos ou de natildeo os reconhecermos natildeo os prejudica
As pessoas que conhecem o valor dos interesses criacuteticos satisfazendo-
os transformam (podem transformar) a sua vida numa vida melhor as pessoas
93 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 284 94 Cf Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 273 Os interesses criacuteticos satildeo
laquointeresses cuja satisfaccedilatildeo torna a vida autenticamente melhorraquo 95 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 96 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 97 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 laquocommitmentraquo
41
que natildeo conhecem o valor dos interesses criacuteticos natildeo os satisfazendo
transformam a sua numa vida pior ldquonatildeo [hellip] reconhecer [=os interesses
criacuteticos] significa cometer um erro tornar pior a proacutepria vidardquo98
O sentido dos termos tornar melhor a proacutepria vida ou tornar pior a
proacutepria vida deve esclarecer-se Tornar melhor a proacutepria vida natildeo significa
de forma nenhuma tornar a vida mais agradaacutevel natildeo significa de forma
nenhuma adoptar um estilo de vida que permita gozaacute-la melhor99 Tornar pior
a proacutepria vida natildeo significa de forma nenhuma tornar a vida menos
agradaacutevel
Os interesses criacuteticos fazem com que tornar a vida de uma pessoa mais
ou menos agradaacutevel fazem com que gozar a vida seja ldquono fim de contas
menos importante do que pareciardquo100 A ambiccedilatildeo abstracta corresponde agrave
ambiccedilatildeo abstracta de participaccedilatildeo em bens humanos fundamentais101 Entre
os quais estariam ou deveriam estar a integridade fiacutesica e psicoloacutegica (life) a
amizade o conhecimento ou a sabedoria (practical reasonableness)102
O termo tornar melhor a proacutepria vida significa fazecirc-la participar dos
bens fundamentais103 significa enchecirc-la com as coisas que satildeo ldquoboas em si
mesmasrdquo104 ou tornaacute-la mais coerente com os princiacutepios e com os valores que
satildeo certos e verdadeiros O termo tornar pior a proacutepria vida esse significa
esvaziaacute-la das coisas que satildeo ldquoboas em si mesmasrdquo tornaacute-la menos coerente
com os bens e com os valores que satildeo certos e verdadeiros
O compromisso com os bens e com os valores que satildeo certos e
verdadeiros estaria laquoacabadoraquo ou laquocompletoraquo desde que os bens ou valores
fossem plenamente realizados O problema estaacute em que os bens e os valores
fundamentais mdash como os bens ou valores da amizade do conhecimento ou da
sabedoria mdash natildeo satildeo nunca plenamente realizados Enquanto compromisso
com os bens e com os valores que satildeo certos e verdadeiros o plano de uma
vida natildeo estaraacute nunca laquocompletoraquo ou laquoacabadoraquo105
98 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 273 99 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 100 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 101 Expressatildeo de John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 85 102 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacutegs 85-90 103 Expressatildeo de John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacutegs 85-90 104 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 105 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 laquodeep commitmentsraquo
42
Enquanto o sentido geral de uma vida boa da participaccedilatildeo no bem da
amizade ou da participaccedilatildeo no bem do conhecimento ou no bem da sabedoria
pode representar-se com facilidade o sentido especiacutefico natildeo
O facto de a foacutermula encontrada por cada pessoa natildeo ser ldquouma foacutermula
eterna universalmente vaacutelidardquo106 soacute significa que as formas de participaccedilatildeo
em princiacutepios e valores universais107 ou de satisfaccedilatildeo dos interesses criacuteticos
estatildeo condicionadas pelas circunstacircncias especiacuteficas de cada um de noacutes108
Estando condicionadas pelas circunstacircncias especiacuteficas de cada um de noacutes as
formas de participaccedilatildeo em princiacutepios e em valores universais atraveacutes de
decisotildees ou de escolhas sobre acccedilotildees sobre omissotildees ou sobre projectos
definidos satildeo formas de participaccedilatildeo ldquopotencialmente inesgotaacuteveisrdquo109
Entre a afirmaccedilatildeo de que uma vida boa eacute uma vida aberta agrave
experiecircncia filha do seu tempo110 e a afirmaccedilatildeo de que uma vida boa eacute uma
vida conforme a um plano coerente ou a um plano racional natildeo haacute
contradiccedilatildeo alguma Os planos de vida como a justiccedila natildeo dizem respeito agrave
laquoactividade externa do homem mas agrave internaraquo os planos de vida como a
justiccedila dizem respeito laquoagravequilo que [o homem] verdadeiramente ele e ao que
lhe pertenceraquo111
Em diferentes palavras todavia insistindo no mesmo pensamento
O plano de vida eacute um compromisso eacute uma determinaccedilatildeo abstracta da
participaccedilatildeo nos bens e valores fundamentais compatiacutevel com a abertura da
determinaccedilatildeo concreta das formas de participaccedilatildeo a vida conforme ao plano
eacute uma vida aberta agrave experiecircncia filha do seu tempo por ser a experiecircncia que
nos revela as formas de participaccedilatildeo nesses bens e nesses valores
106 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 285 107 Expressatildeo de John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 64 laquoparticipation-
in-a-valueraquo 108 Expressatildeo de Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 285 109 Cf John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 64 110 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 271 ldquoThe good life outruns the
reach of planning because its very nature is to be the child of time To recognize this truth is
the beginning of wisdom for it is to understand why wisdom is something more than
prudencerdquo 111 Platatildeo Repuacuteblica cit paacutegs 204-205 (443c)
43
V
Nozick fala de uma laquomaacutequina da experiecircnciaraquo112 desenhada para
proporcionar todas as experiecircncias que uma pessoa quisesse ter mdash entre as
quais estariam p ex a experiecircncia de estar a fazer um amigo ou de estar a
escrever um grande livro ou de estar a ler um grande livro113 Entre uma vida
soacute com experiecircncias agradaacuteveis determinadas por uma qualquer laquomaacutequina da
experiecircnciaraquo e uma vida com experiecircncias agradaacuteveis e desagradaacuteveis
determinadas por escolhas coerentes Nozick sustenta que deve dar-se
preferecircncia ou prioridade agrave segunda por pelo menos trecircs razotildees
Em primeiro lugar a nossa representaccedilatildeo de uma vida boa implica
fazer determinadas coisas queremos fazer determinadas coisas e natildeo soacute ter a
experiecircncia de as fazer ou de as ter feito114 Em segundo lugar a nossa
representaccedilatildeo de uma vida boa implica ser alguma coisa queremos ser uma
determinada pessoa e natildeo soacute ter a experiecircncia de a ser ou de a ter sido115 Em
terceiro lugar ela implica o contacto com a realidade mdash com uma realidade
mais profunda que uma qualquer realidade artificial
laquoplugging into a experience machine limits us to a man-made reality
to a world no deeper or more important than that which people can
constructraquo116
Entre os argumentos deduzidos por Nozick para sustentar por que
devemos recusar uma vida contendo exclusivamente experiecircncias agradaacuteveis
proporcionadas por uma qualquer ldquomaacutequina da experiecircnciardquo e os argumentos
deduzidos por Dworkin para sustentar por que devemos aceitar uma vida
contendo experiecircncias agradaacuteveis e experiecircncias desagradaacuteveis
proporcionadas por escolhas coerentes haacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila117
O interesse em fazer determinadas coisas ou em ser uma determinada
pessoa em contacto com uma realidade mais profunda e consequentemente
mais significativa que qualquer realidade artificial corresponde exacta ou
quase exactamente ao conceito de interesse criacutetico
112 Robert Nozick Anarchy State and Utopia Blackwell Publishers Oxford 1974 paacutegs 42-
45 experience machine 113 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacuteg 43 114 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacuteg 43 115 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacuteg 43 116 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacutegs 43-44 117 Em Justice for Hedeghogs Dworkin exprime a sua concordacircncia com o raciociacutenio de
Nozick representando-o como algo de mais ou menos evidente (paacuteg 207 e paacuteg 458 mdash nota
nordm 17)
44
O valor dos interesses experienciais eacute um valor instrumental
(transitivo) As experiecircncias valem se forem agradaacuteveis e natildeo valem se o natildeo
forem O valor dos interesses criacuteticos esse eacute um valor final (intransitivo) Os
interesses criacuteticos orientam-se a coisas que satildeo ldquoboas em si mesmasrdquo118
VI
Dworkin extrai da distinccedilatildeo (teoacuterica) entre os conceitos de interesses
experienciais e de interesses criacuteticos o seguinte princiacutepio praacutetico
Os problemas relacionados com o valor da vida humana no seu estaacutedio
inicial (da vida humana ainda natildeo nascida ou ainda natildeo capaz de consciecircncia)
ou no seu estaacutedio final (da vida humana jaacute natildeo capaz de consciecircncia) satildeo
sempre problemas relacionados com os interesses criacuteticos As opccedilotildees sobre a
vida e a sobre a morte seriam as opccedilotildees laquomais importantes [hellip] para a
formaccedilatildeo e para a expressatildeo da personalidaderaquo119 Estando em causa
problemas relacionados com os nossos interesses criacuteticos cada um de noacutes
deveria ter o direito de os resolver conforme as suas convicccedilotildees
Dworkin alega que cada um de noacutes como pessoa considera importante
duas coisas (i) por um lado laquoconsideramos importante tomar as decisotildees mais
correctasraquo e (ii) por outro lado laquoconsideramos [hellip] importante tomar as
decisotildees mais coerentes com o nosso ideal de vida connosco proacutepriosraquo120
O Estado deveria dar a cada pessoa o direito de decidir o problema do
aborto de acordo com as suas convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu
estaacutedio inicial e de decidir o problema da eutanaacutesia de acordo com as suas
convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu estaacutedio final
O estaacutedio inicial da vida humana comeccedilaria num momento certo e
terminaria num momento certo mdash comeccedilaria com a concepccedilatildeo e terminaria
com a viabilidade fetal corresponderia aos seis primeiros meses de
gestaccedilatildeo121 O estaacutedio final da vida humana esse natildeo comeccedilaria num
momento certo e natildeo terminaria num momento certo Dworkin liga-o a uma
pluralidade de capacidades eou a uma pluralidade de valores mdash entre os quais
estatildeo p ex a cessaccedilatildeo da capacidade da pessoa para conformar um plano
coerente ou plano racional de vida122 a cessaccedilatildeo da capacidade da pessoa para
118 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 119 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 330 120 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 330 121 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit esp paacutegs 230-245 122 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 301
45
determinar acccedilotildees omissotildees eou laquoprojectos definidosraquo conforme a esse plano
coerente de vida123 e o valor do respeito da pessoa por si proacutepria124
O princiacutepio de que cada pessoa tem o direito de decidir o problema do
aborto de acordo com as suas convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu
estaacutedio inicial concretizar-se numa regra simples O Estado teria o dever de
afirmar a licitude ou pelo menos teria o dever de negar a ilicitude do aborto
durante os seis primeiros meses de gestaccedilatildeo125 O princiacutepio de que cada pessoa
tem o direito de decidir o problema da eutanaacutesia de acordo com as suas
convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu estaacutedio final esse natildeo se
concretizaria em nenhuma regra regra simples Dworkin diz simplesmente
que a morte tem laquouma importacircncia especial e simboacutelicaraquo126 Cada pessoa teria
direito a uma morte digna O termo morte digna designaria (soacute) uma morte
adequada agrave vida127 mdash a morte soacute seria digna desde que confirmasse ldquoem
termos muito niacutetidosrdquo ldquoos valores que [as pessoas] reconhecem como os mais
importantes das suas vidasrdquo128
Ora ldquoos valores que [as pessoas] reconhecem como os mais
importantes das suas vidas satildeo os valores prosseguidos por um plano coerente
ou um plano racional de vida Os termos cada pessoa tem direito a uma morte
digna significariam que cada pessoa tem direito a uma morte adequada ao seu
plano coerente de vida ou ao seu plano racional de vida Como o plano
coerente de vida ou plano racional de vida eacute um plano orientado pelos
interesses criacuteticos os termos cada pessoa tem direito a uma morte adequaao
ao seu plano coerente ou plano racional de vida significariam que cada pessoa
tem direito a uma morte adequada aos seus interesses criacuteticos129
VII
Dworkin desvaloriza (injustificadamente) a diferenccedila entre os
problemas do aborto ou da eutanaacutesia o caso do aborto natildeo eacute nem exclusiva
123 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 305 124 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 305 125 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacutegs 230-245 126 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 291 127 Cf Martin Koppernock Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung Zur
Rekonstruktion des allgemeinen Persoumlnlichkeitsrechts cit paacuteg 171 128 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 291 129 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacutegs 327-332
46
nem essencialmente um problema de autodeterminaccedilatildeo130 o caso da eutanaacutesia
sim
O argumento dos interesses criacuteticos eacute (e deve ser) um argumento mais
fraco no caso do aborto e mais forte no caso da eutanaacutesia Evitando o caso do
aborto perguntar-se-aacute entatildeo mdash O argumento dos interesses criacuteticos seraacute
razatildeo suficiente para sustentar um direito definitivo agrave eutanaacutesia
Em trecircs acoacuterdatildeos absolutamente fundamentais mdash nos acoacuterdatildeos de 29
de Abril de 2002 no caso Pretty vs Reino Unido de 20 de janeiro de 2011
no caso Haas vs Suiacuteccedila e de 19 de julho de 2012 no caso Koch vs Alemanha
mdash o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem adere ao argumento dos
interesses criacuteticos afirmando que cada pessoa tem o direito de conformar o
processo da sua morte Os acoacuterdatildeos de 29 de abril de 2002 e de 19 de Julho de
2012 descrevem-no pela negativa O primeiro descrevo-o como o direito de
evitar uma morte indigna131 e o segundo como o direito de evitar um processo
de morte caracterizado pela degradaccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica
ldquoWithout in any way negating the principle of sanctity of life
protected under the Convention the Court considered that in an era
of growing medical sophistication combined with longer life
expectancies many people were concerned that they should not be
forced to linger on in old age or in states of advanced physical or
mental decrepitude which conflicted with strongly held ideas of self
and personal identityrdquo132
O acoacuterdatildeo de 20 de janeiro de 2011 descreve-o pela positiva mdash como
direito de conformar o processo da morte decidindo p ex quando morrer133
130 Rainer Beckmann descreve-o como um problema de heterodeterminaccedilatildeo de uma pessoa
natildeo nascida (ldquorsquoSelbstbestimmungrsquo uber das Leben Ungeborenerrdquo in Bernward Buumlchner
Claudia Kaminski Mechthild Loumlhr (coord) Abtreibung mdash ein neues Menschenrecht Sinus‐
Verlag Krefeld 2012 paacutegs 27-58) 131 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash
paraacutegrafo 67 laquo The applicant in this case [Diane Pretty] is prevented by law from exercising
her choice to avoid what she considers to be and undignified and distressing end to her life
The Court is not prepared to exclude that this constitutes an interference with her right to
respect for private life as guaranteed under Article 8 [paragraph] 1 of the Convention raquo 132 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 19 de julho de 2012 mdash
paraacutegrafo 51 133 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 20 de janeiro de 2011 mdash
paraacutegrafo 51 ldquothe Court considers that an individualrsquos right to decide by what means and at
what point his or her life will end provided he or she is capable of freely reaching a decision
47
O problema estaacute tatildeo-soacute em averiguar se o direito eacute provisoacuterio ou
definitivo
O caso exige a distinccedilatildeo entre pontos de partida e pontos de chegada
Enquanto o ponto de partida deve representar-se como um princiacutepio mdash como
um direito provisoacuterio (prima facie) mdash o ponto de chegada (soacute) pode
representar-se como uma regra mdash (soacute) pode representar-se como um direito
definitivo O argumento dos interesses criacuteticos pode proporcionar uma
fundamentaccedilatildeo adequada e suficiente para o ponto de partida da discussatildeo
(direito provisoacuterio ou prima facie) mdash natildeo pode poreacutem proporcionar uma
fundamentaccedilatildeo suficiente para o ponto de chegada (= direito definitivo)
Em primeiro lugar o Estado tem o dever de limitar o direito agrave eutanaacutesia
exigindo uma adequada justificaccedilatildeo objectiva para a causaccedilatildeo da morte de
uma pessoa O problema da afirmaccedilatildeo da licitude ou da negaccedilatildeo da ilicitude
da eutanaacutesia soacute deve colocar-se desde que haja uma perturbaccedilatildeo grave da
capacidade de uma pessoa para prosseguir os seus interesses criacuteticos
Entre os casos em que haacute uma perturbaccedilatildeo grave da capacidade de
uma pessoa para prosseguir os seus interesses criacuteticos estatildeo sobretudo os
quatro seguintes (i) casos de perda definitiva da autonomia em que a pessoa
fica na absoluta dependecircncia de outrem (ii) casos de perda definitiva de
consciecircncia (iii) casos de diminuiccedilatildeo grave e irreversiacutevel das capacidades
intelectuais e (iv) casos de sofrimento irreversiacutevel e intoleraacutevel134
Em segundo lugar o Estado tem o dever de limitar o direito agrave eutanaacutesia
exigindo uma adequada justificaccedilatildeo subjectiva para a causaccedilatildeo da morte
O conceito de interesses criacuteticos pressupotildee que a pessoa disponha da
capacidade para representar intelectualmente os bens e os valores mais
importantes da sua vida e da liberdade para determinar as suas acccedilotildees as suas
omissotildees e os seus projectos definidos de acordo com os bens e os valores
representados135 Os poderes poliacuteticos e sociais podem e devem entrar nos
on this question and acting in consequence is one of the aspects of the right to respect for
private life within the meaning of Article 8 of the Conventionrdquo 134 Cf designadamente Joseph Raz ldquoDeath in Our Liferdquo in WWW lt
httpssrncomabstract=2069357 gt ldquoTypically at least four conditions are often thought to
justify voluntary euthanasia (a) a life without consciousness known as a vegetative life (b)
life of unremitting great pain (c) a life of total dependence on others (d) a life of greatly
diminished mental capacities (severe loss of memory absence of linguistic capacity
unremitting severe mental distress fear etc)rdquo 135 Construindo os direitos fundamentais como capabilities Martha Nussbaum Women and
Human Development The Capabilities Approach Cambridge University Press Cambridge
2000 paacutegs 70-105 Idem ldquoThe Supreme Court 2006 Term mdash Foreword lsquoConstitutionsrsquo and
48
espaccedilos de autodeterminaccedilatildeo correspondentes aos interesses criacuteticos para
proteger p ex a plena capacidade e a plena liberdade da pessoa contra o
perigo de uma perturbaccedilatildeo importante da possibilidade faacutectica de
autodeterminaccedilatildeo Estando por causa a eutanaacutesia o perigo de uma
perturbaccedilatildeo importante da possibilidade faacutectica de autodeterminaccedilatildeo eacute um
perigo particularmente seacuterio mdash as pessoas no estaacutedio final da sua vida podem
ser como quase sempre satildeo especialmente fraacutegeis e as pressotildees sociais
(designadamente as pressotildees familiares) sobre as pessoas especialmente
fraacutegeis podem ser especialmente intensas136
VIII
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem confirma que o
argumento dos interesses criacuteticos natildeo pode proporcionar uma fundamentaccedilatildeo
adequada para um direito definitivo agrave eutanaacutesia por pelo menos duas razotildees
a) Em primeiro lugar o direito de autodeterminaccedilatildeo sobre o processo
da sua morte137 pode e deve ser conformado O Estado deve (pelo menos)
determinar um procedimento adequado para que a decisatildeo da pessoa
Capabilities lsquoPerceptionrsquo Against Lofty Formalismrdquo in Harvard Law Review vol 121
(2007) paacutegs 4-97 Idem ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo in Human Dignity
and Bioethics Essays Commissioned by the Presidentrsquos Council on Bioethics Washington
2008 paacutegs 351-380 Thom Brooks ldquoCapabilitiesrdquo in WWW lt
httpssrncomabstract=1964924 gt 136 Cf designadamente Martha Nussbaum ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo cit
paacuteg 373 137 Cf acoacuterdatildeos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002
[paraacutegrafo 67 mdash laquoThe applicant in this case [Diane Pretty] is prevented by law from exercising
her choice to avoid what she considers to be and undignified and distressing end to her life
The Court is not prepared to exclude that this constitutes an interference with her right to
respect for private life as guaranteed under Article 8 [paragraph] 1 of the Conventionraquo] de
20 de janeiro de 2011 [paraacutegrafo 51 mdash laquothe Court considers that an individualrsquos right to decide
by what means and at what point his or her life will end provided he or she is capable of freely
reaching a decision on this question and acting in consequence is one of the aspects of the
right to respect for private life within the meaning of Article 8 of the Conventionrdquo] e de 19 de
julho de 2012 [paraacutegrafo 51 mdash ldquoWithout in any way negating the principle of sanctity of life
protected under the Convention the Court considered that in an era of growing medical
sophistication combined with longer life expectancies many people were concerned that they
should not be forced to linger on in old age or in states of advanced physical or mental
decrepitude which conflicted with strongly held ideas of self and personal identityrdquo]
49
corresponda com suficiente probabilidade e em suficiente medida a um
resultado conforme aos bens e aos valores fundamentais138
Dworkin representa o direito de autodeterminaccedilatildeo de acordo com os
interesses criacuteticos como um espaccedilo[] de autodeterminaccedilatildeo em que [os poderes
poliacuteticos e sociais] natildeo podem entrarrdquo139 Os problemas relacionados com o
valor da vida humana estariam laquoreservadosraquo aos indiviacuteduos
Ora o conceito de interesses criacuteticos pressupotildee que a pessoa disponha
da capacidade para assumir uma (= para se comprometer com uma) particular
representaccedilatildeo de valores universais e para determinar as suas acccedilotildees as suas
omissotildees e ou os seus laquoprojectos definidosraquo de acordo com a particular
representaccedilatildeo em causa140 Os poderes poliacuteticos e sociais devem entrar nos
laquoespaccedilos de autodeterminaccedilatildeoraquo determinados pelos interesses criacuteticos p ex
para proporcionar agrave pessoa a capacidade pressuposta
b) Em segundo lugar o direito de autodeterminaccedilatildeo sobre o processo
da sua morte pode ser restringido para a protecccedilatildeo de bens e de valores
conflituantes protegidos pela lei fundamental mdash como o valor da vida141
Estando em causa a eutanaacutesia (= suiciacutedio medicamente assistido) o
Estado deve (pelo menos) determinar um procedimento adequado para que a
decisatildeo da pessoa corresponda com suficiente probabilidade e em suficiente
medida a um resultado conforme aos bens e aos valores fundamentais
O perigo de uma perturbaccedilatildeo importante da possibilidade faacutectica de
autodeterminaccedilatildeo eacute um perigo seacuterio mdash por causa p ex das pressotildees sociais
sobre pessoas em situaccedilatildeo de especial (excepcional) fragilidade
138 Cf Robert Alexy Theorie der Grundrechte 3a ed Suhrkamp Frankfurt-am-Main 1996
paacuteg 431 139 Karl Loewenstein Teoriacutea de la constitucioacuten (tiacutetulo original Verfassungslehre) Editorial
Ariel Barcelona 1976 paacuteg 390 140 Construindo os direitos fundamentais como laquocapabilitiesraquo Martha Nussbaum ldquoThe
Supreme Court 2006 Term mdash Foreword lsquoConstitutionsrsquo and Capabilities lsquoPerceptionrsquo
Against Lofty Formalismrdquo in Harvard Law Review vol 121 (2007) paacutegs 4-97 Idem
ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo in Human Dignity and Bioethics Essays
Commissioned by the Presidentrsquos Council on Bioethics Washington 2008 paacutegs 351-380
Thom Brooks ldquoCapabilitiesrdquo in WWW lt httpssrncomabstract=1964924 gt 141 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash
paraacutegrafo 74 laquoIt does not appear to be arbitrary to the Court for the law to reflect the
importance of the right to life by prohibiting assisted suicide while providing for a system of
enforcement and adjudication which allows due regard to be given in each particular case to
the public interest in bringing a prosecution as well as to the fair and proper requirements of
retribution and deterrenceraquo
50
Ou bem que o Estado consegue conformar um procedimento adequado
para proteger as pessoas em situaccedilatildeo de fragilidade ou bem natildeo o consegue142
conseguindo conformaacute-lo poderaacute (e deveraacute) afirmar a licitude ou negar a
ilicitude da eutanaacutesia natildeo o conseguindo natildeo poderaacute fazecirc-lo143
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem representa como um fim
legiacutetimo da intervenccedilatildeo do Estado a protecccedilatildeo das pessoas em situaccedilatildeo de
especial fragilidade ou de especial vulnerabilidade mdash em especial a protecccedilatildeo
laquodas pessoas que natildeo estatildeo em condiccedilotildees de tomar decisotildees esclarecidas ou
informadas sobre acccedilotildees ou omissotildees susceptiacuteveis de pocircr termo agrave vida ou de
as assistir no processo de potilder termo agrave vidaraquo144
Esclarecida a existecircncia de um fim legiacutetimo potildee-se os problemas da
adequaccedilatildeo e da necessidade
Ora o problema da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia ou do suiciacutedio assistido potildee-
se e potildee-se de forma semelhante para as pessoas vulneraacuteveis e para as pessoas
natildeo vulneraacuteveis O Estado deveraacute distinguir as pessoas que se encontram em
situaccedilatildeo de especial fragilidade e as pessoas que natildeo se encontram em situaccedilatildeo
de especial fragilidade) deveraacute distinguir as pessoas vulneraacuteveis e as pessoas
natildeo vulneraacuteveis para o efeito de afirmar a ilicitude do suiciacutedio assistido das
pessoas vulneraacuteveis e a licitude natildeo ilicitude da eutanaacutesia ou do suiciacutedio
assistido das pessoas natildeo vulneraacuteveis deveraacute distinguir as pessoas
vulneraacuteveis e as pessoas natildeo vulneraacuteveis para o efeito de proibir a eutanaacutesia
ou o suiciacutedo assistido das pessoas vulneraacuteveis e de natildeo proibir (= de permitir)
o suiciacutedio assistido das pessoas natildeo vulneraacuteveis
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reconstroacutei o problema
representando-o nos seguintes termos a fragilidade tiacutepica da categoria ou
classe seraacute adequada eou suficiente para explicar ou para justificar uma regra
aplicaacutevel a todos os indiviacuteduos da categoria ou classe designada O facto de
as pessoas da categoria ou classe designada estarem tipicamente em situaccedilatildeo
de especial fragilidade explicaraacute justificaraacute a proibiccedilatildeo do suiciacutedio assistido
das pessoas que natildeo estatildeo em situaccedilatildeo de fragilidade
142 Entendendo que o Estado pode sempre e por isso deve sempre conformar um
procedimento adequado Benedita MacCrorie Os limites da renuacutencia a direitos fundamentais
nas relaccedilotildees entre particulares Livraria Almedina 2013 paacutegs 303-307 143 Martha Nussbaum ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo cit paacuteg 373 144 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash
paraacutegrafo 74 laquoThe law in issue in this case section 2 of the 1961 Act was designed to
safeguard life by protecting the weak and vulnerable and especially those who are not in a
condition to take informed decisions against acts intended to end life or to assist in ending
liferaquo
51
Os acoacuterdatildeos de 29 de abril de 2002 e de 20 de janeiro de 2011
respondem-lhe mdash e respondem que sim Os Estados teriam a prerrogativa de
avaliar os riscos da afirmaccedilatildeo da licitude ou da negaccedilatildeo da ilicitude da
eutanaacutesia para o efeito de determinar se conseguiriam ou natildeo conformar um
procedimento adequado para proteger as pessoas em situaccedilatildeo de fragilidade
Caso os Estados concluiacutessem que nenhum procedimento eacute adequado
para proteger as pessoas em situaccedilatildeo de fragilidade o facto de as pessoas da
categoria ou classe designada estarem tipicamente em situaccedilatildeo de fragilidade
explicaria justificaria a proibiccedilatildeo da eutanaacutesia ou do suiciacutedio assistido de
todas as pessoas mdash das pessoas que estatildeo e das pessoas que natildeo estatildeo em
situaccedilatildeo de fragilidade ou de vulnerabilidade Entre os meios adequados e
necessaacuterios para proteger o bem ou valor da vida humana estaria (poderia
estar) a proibiccedilatildeo da eutanaacutesia ou do suiciacutedio assistido145
laquo Clear risks of abuse do exist notwithstanding arguments as to the
possibility of safeguards and protective procedures raquo146
145 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash
paraacutegrafo 76 laquoNonetheless the Court finds in agreement with the House of Lords and the
majority of the Canadian Supreme Court in Rodriguez that States are entitled to regulate
through the operation of the general criminal law activities which are detrimental to the life
and safety of other individuals [hellip] The more serious the harm involved the more heavily will
weigh in the balance considerations of public health and safety against the countervailing
principle of personal autonomyraquo 146 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash
paraacutegrafo 74
52
Coloacutequio Internacional
Em torno de Life Time Contracts
Braga 15 de Maio de 2015
54
55
Princiacutepios gerais sobre os contratos duradouros
essenciais agrave existecircncia da pessoa
1 CONTRATOS DURADOUROS ESSENCIAIS Agrave EXISTEcircNCIA DA
PESSOA
Os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa satildeo relaccedilotildees
sociais que tecircm por objecto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o
trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua
participaccedilatildeo na vida social
2 DIMENSAtildeO HUMANA
(1) O ponto central147 do regime dos contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa deve ser o indiviacuteduo na sua concreta realidade
material e moral148
(2) O direito deve preocupar-se em disciplinar a conclusatildeo do contrato e as
relaccedilotildees de cooperaccedilatildeo entre as partes conformando-as para proteger
e para promover o desenvolvimento da pessoa humana
(3) Em especial o direito deve preocupar-se em garantir que o
desenvolvimento da pessoa humana natildeo seja nem comprometido nem
sequer deformado por relaccedilotildees de poder149
(4) Ao fazecirc-lo deve ter em conta que o desenvolvimento de cada indiviacuteduo
pressupotildee relaccedilotildees pessoais particularmente significativas150 entre as
quais estatildeo as relaccedilotildees familiares
Traduccedilatildeo para portuguecircs de Nuno Manuel Pinto Oliveira 147 Na versatildeo alematilde fala-se em Mittelpunkt na versatildeo italiana em punto di riferimento 148 Na versatildeo italiana fala-se em realidade cultural O termo realidade moral afigura-se
adequado para abranger todos os elementos da realidade natildeo material mdash designadamente os
elementos construiacutedos pela cultura 149 Na versatildeo inglesa fala-se em relaccedilotildees de poder na versatildeo italiana em relaccedilotildees de forccedila 150 O termo relaccedilotildees pessoais particularmente significativas encontra-se tatildeo-soacute na versatildeo
italiana Embora natildeo conste das versotildees alematilde inglesa francesa ou espanhol afigura-se
especialmente adequado por tornar claro que as relaccedilotildees familiares sotilde soacute um caso especial
56
3 DIMENSAtildeO TEMPORAL (DURACcedilAtildeO)
(1) A confianccedila de ambas as partes na continuidade da relaccedilatildeo contratual
deve ser protegida
(2) Em regra a cessaccedilatildeo antecipada do contrato151 por acto unilateral de
uma das partes natildeo deve ser permitida Exceptua-se os casos em que a
cessaccedilatildeo antecipada eacute necessaacuteria para garantir um miacutenimo de liberdade
de acccedilatildeo e de decisatildeo152
(3) Se a cessaccedilatildeo antecipada do contrato for permitida soacute deveraacute produzir
efeitos para o futuro natildeo abrangendo as prestaccedilotildees jaacute realizadas
4 CONTRATOS COLIGADOS
Os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa integram-se
em redes de contratos ligados entre si O legislador e o juiz devem apreciar e
resolver os problemas por si suscitados considerando sistematicamente a
ligaccedilatildeo entre todos os contratos integrados na rede153
5 O DEVER DE CONSIDERACcedilAtildeO DA PESSOA DO CONSUMIDOR OU DO
TRABALHADOR154
(1) O facto de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem bens ou serviccedilos
necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo das necessidades essenciais relacionadas com
das relaccedilotildees particularmente significativas de que depende o desenvolvimento da pessoa
humana Entre tais relaccedilotildees particularmente significativas devem estar p ex as relaccedilotildees de
amizade 151 Prefere-se a expressatildeo cessaccedilatildeo antecipada agrave expressatildeo ruptura (rupture) usada na
traduccedilatildeo francesa por causa da sua neutralidade (comparaacutevel agrave neutralidade do termo alematildeo
Aufloumlsung do termo inglecircs termination ou do termo italiano scioglimento) 152 Na versatildeo italiana fala-se de uma cessaccedilatildeo antecipada necessaacuteria para natildeo mortificar a
liberdade de acccedilatildeo e de decisatildeo da pessoa 153 Em nenhuma das versotildees se fala em legislador ou em juiz Em todo o caso parece adequado
dar aos termos problemas juriacutedicos e ou questotildees juriacutedicas usados em todas as versotildees um
sentido muito amplo abrangendo as questotildees de criaccedilatildeo (legislativa) e as questotildees de
aplicaccedilatildeo (judicial) do direito 154 Nas versotildees alematilde e italiana faz-se sobressair o aspecto da consideraccedilatildeo ou do respeito
A versatildeo italiana eacute particularmente sugestiva por sugerir que o prestador de bens ou de
serviccedilos devem tomar para si proprio o encargo (farsi carico) da situaccedilatildeo de fragilidade do
consumidor ou do trabalhador Nas versotildees inglesa francesa e espanhola faz-se sobressair o
aspecto das necessidades essenciais ou fundamentais do consumidor ou do trabalhador
57
o consumo ou com a habitaccedilatildeo155 ou de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo
de outrem uma quantia em dinheiro [no quadro de uma relaccedilatildeo de
creacutedito ou de uma relaccedilatildeo de trabalho] implica um dever de
protecccedilatildeo156 da pessoa do consumidor ou da pessoa do trabalhador
como partes mais fracas da relaccedilatildeo contratual
(2) O conteuacutedo do dever depende das concretas circunstacircncias fiacutesicas
psicoloacutegicas e sociais da parte carecida de protecccedilatildeo
(3) Os instrumentos legais e convencionais constituiacutedos em processos de
composiccedilatildeo colectiva de interesses devem conter disposiccedilotildees
imperativas adequadas agrave protecccedilatildeo dos interesses materiais e morais
do consumidor e do trabalhador
(4) Como os contratos podem ter diferentes fins podem ser de diferente
duraccedilatildeo ou de diferente tipo ou podem ter diferente significado para
as relaccedilotildees de vida das pessoas atingidas os instrumentos legais e
convencionais devem enunciar os niacuteveis de protecccedilatildeo e de respeito
necessaacuterios em cada caso
6 O DEVER DE CONSIDERACcedilAtildeO DO FIM DO CONTRATO
Aquele que colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem dinheiro157 bens ou
serviccedilos necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo de necessidades essenciais deve abster-se de
todos os comportamentos que possam pocircr em perigo o fim do contrato158 a
155 Na versatildeo espanhola fala-se em vivienda Em nenhuma das demais versotildees se fala nas
necessidades essenciais relacionadas com a habitaccedilatildeo 156 Na versatildeo italiana liga-se o dever de protecccedilatildeo a um dever de solidaridade laquoa colocaccedilatildeo
agrave disposiccedilatildeo dos bens ou serviccedilos [hellip] pressupotildee a disponibilidade [do prestador de bens ou
serviccedilos] para se encarregar de modo solidaacuterio da protecccedilatildeo da parte mais fraca
considerando a sua integridade fiacutesica e moralraquo 157 Nas versotildees alematilde inglesa francesa e espanhola fala-se em possibilidades ou em
oportunidades de obtenccedilatildeo de rendimento na versatildeo italiana fala-se em possibilidades ou em
oportunidades de acesso ao dinheiro O alcance do texto da versatildeo italiana eacute mais amplo que
o texto das versotildees alematilde inglesa francesa e espanhola As possibilidades de obtenccedilatildeo de
rendimento satildeo soacute as oportunidades proporcionados por um contrato de trabalho as
possibilidades de obtenccedilatildeo de dinheiro podem ser proporcionadas por um contrato de trabalho
ou por um contrato de creacutedito 158 Nas versotildees alematilde inglesa e francesa fala-se em fim social do contrato na versatildeo italiana
em fins cooperativos (scopi cooperativi)
58
fruiccedilatildeo do dinheiro ou dos bens ou dos serviccedilos prestados159 ou o significado
social da relaccedilatildeo160
7 DIMENSAtildeO COLECTIVA ASPECTOS PROCEDIMENTAIS E
SUBSTANTIVOS
(1) [Os contratos duradouros essenciais aacute existecircncia da pessoa tecircm uma
dupla dimensatildeo colectiva]
(2) Os consumidores e os trabalhadores tecircm o direito de exigir do Estado
o reconhecimento de sistemas colectivos de representaccedilatildeo (associaccedilotildees
de consumidores ou associaccedilotildees sindicais)
(3) [Independentemente da representaccedilatildeo dos seus interesses] os
consumidores e os trabalhadores tecircm o direito de exigir do Estado o
reconhecimento e o respeito pelos sistemas de valores colectivos como
aqueles que satildeo designados pelos conceitos de boa feacute e de bons
costumes161
(4) Os sistemas de valores colectivos devem aplicar-se em todas as fases
da relaccedilatildeo contratual desde o acesso aos bens e serviccedilos agrave
conformaccedilatildeo do contrato agrave sua adaptaccedilatildeo modificaccedilatildeo e agrave sua
extinccedilatildeo
8 ACESSO MEDIANTE O CONTRATO AOS BENS E SERVICcedilOS
ESSENCIAIS A EXISTEcircNCIA DA PESSOA
(1) Aquele que propotildee a conclusatildeo de contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa deve abster-se de qualquer discriminaccedilatildeo entre
pessoas ou entre grupos de pessoas em funccedilatildeo das suas caracteriacutesticas
pessoais e sociais
(2) Este dever aplica-se a todas as fases do processo contratual mdash tanto ao
momento em que se anuncia o contrato publicitando a proposta como
ao momento em que o contrato se conclui ou se extingue Aquele que
159 Nas versotildees inglesa e espanhola fala-se em uso produtivo Nas versotildees francesa e
espanhola fala-se simplesmente na utilidade das prestaccedilotildees contratuais 160 Nas versotildees francesa e espanhola fala-se da dimensatildeo social do contrato 161 Prefere-se uma distinccedilatildeo estrita entre o significado procedimental e o significado
substantivo da dimensatildeo colectiva do contrato a dimensatildeo procedimental prende-se com a
representaccedilatildeo colectiva das pessoas interessadas e a dimensatildeo substancial (eacutetica) prende-se
com a aplicaccedilatildeo dos valores colectivos da boa feacute e dos bons costuments
59
propotildee a conclusatildeo do contrato deve designadamente abster-se de
qualquer discriminaccedilatildeo ao definir as categorias de destinataacuterios da
proposta162 dificultando o acesso aos bens e aos serviccedilos prestados no
quadro de uma operaccedilatildeo de consumo ou as possibilidades de obtenccedilatildeo
de rendimento no quadro de uma relaccedilatildeo de trabalho163
(3) Este dever aplica-se ainda a todas as formas de discriminaccedilatildeo mdash tanto
agrave discriminaccedilatildeo relativa a grupos como agrave discriminaccedilatildeo relativa a
membros individuais de um grupo
(4) O significado dos contratos em causa para a satisfaccedilatildeo das necessidades
primaacuterias da pessoa humana como a habitaccedilatildeo o trabalho e a
participaccedilatildeo na vida econoacutemica e na vida social164 exige o
reconhecimento de um direito fundamental ao acesso mediante
contrato165 a tais bens ou agrave prestaccedilatildeo de tais serviccedilos
9 CORRESPECTIVO (PRECcedilO OU REMUNERACcedilAtildeO)
(1) A prestaccedilatildeo e a contraprestaccedilatildeo166 natildeo devem ser gravemente
desproporcionadas natildeo devem encontrar-se entre si numa grosseira
natildeo relaccedilatildeo
(2) O preccedilo dos bens ou serviccedilos prestados deve ser determinado de acordo
com criteacuterios transparentes
(3) [Estando em causa o acesso a bens ou a serviccedilos essenciais agrave satisfaccedilatildeo
das necessidades primaacuterias da pessoa humana] o preccedilo deve ser
162 Na versatildeo italiana fala-se de uma eventual definiccedilatildeo de categorias de destinataacuterios 163 Na versatildeo francesa faz-se uma alusatildeo expressa ao acesso 164 Em nenhuma das versotildees se fala em participaccedilatildeo na vida social Em todo o caso parece
adequado esclarecer que a participaccedilatildeo na vida econoacutemica eacute simultamente uma participaccedilatildeo
na vida social O risco de exclusatildeo econoacutemica eacute sempre um risco de exclusatildeo social 165 A expressatildeo mediante contrato encontra-se tatildeo-soacute na versatildeo italiana 166 Na versatildeo inglesa fala-se de obrigaccedilotildees reciacuteprocas
60
acessiacutevel167 natildeo discriminatoacuterio168 e proporcionado aos custos [de
produccedilatildeo]169
10 ADAPTACcedilAtildeO OU MODIFICACcedilAtildeO DO CONTRATO
(1) Se as circunstacircncias soacutecio-econoacutemicas pressupostas pelas partes como
fundamento da conclusatildeo do contrato natildeo se verificarem havendo
uma grave divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo de que as
partes partiram o conteuacutedo dos contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa deve ser adaptado ou modificado
(2) A divergecircncia pode referir-se agraves circunstacircncias presentes ou agraves
circunstacircncias futuras (error in futurum) e deve ser tatildeo grave que se
as partes tivessem uma representaccedilatildeo exacta da realidade natildeo teriam
concluiacutedo nenhum contrato ou teriam concluiacutedo um contrato de tipo
ou de conteuacutedo diferente
(3) Ao apreciar-se a gravidade da divergecircncia entre a realidade e a
representaccedilatildeo deve atender-se ao fim do contrato agrave distribuiccedilatildeo legal
ou contratual do risco e ao significado social da relaccedilatildeo170 171
(4) O conteuacutedo do contrato soacute deve ser adaptado ou modificado desde
que a subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual sem qualquer alteraccedilatildeo ou
modificaccedilatildeo seja inexigiacutevel
(5) Ao avaliar-se a exigibilidade ou inexigibilidade da subsistecircncia da
relaccedilatildeo contratual deve atender-se designadamente aos aos deveres
fundamentais de uma pessoa humana172 O consumidor ou o
167 Na versatildeo francesa abordables 168 Nas versotildees alematilde e inglesa fala-se em preccedilos determinados de acordo com criteacuterios natildeo
discriminatoacuterios na versatildeo espanhola em preccedilos natildeo discriminatoacuterios na versatildeo francesa
natildeo se faz referecircncia agrave discriminaccedilatildeo exigindo-se tatildeo-soacute que o preccedilo seja acessiacuteveis e
proporcionado aos custos e na versatildeo italiana natildeo se faz referecircncia nem a uma coisa nem agrave
outra 169 Na versatildeo francesa aligneacutes avec les coucircts 170 Como na traduccedilatildeo do sexto princiacutepio faz-se uma distinccedilatildeo entre o fim do contrato e o
significado social da relaccedilatildeo 171 Prefere-se autonomizar a referecircncia ao fim social do contrato ou ao significado social da
relaccedilatildeo por ser um dos aspectos em que a redacccedilatildeo do deacutecimo princiacutepio se desvia do sect 313
do Coacutedigo Civil alematildeo 172 Prefere-se autonomizar a referecircncia aos deveres fundamentais da pessoa humana por ser
um dos aspectos em que a redacccedilatildeo do deacutecimo princiacutepio se desvia do sect 313 do Coacutedigo Civil
alematildeo
61
trabalhador devem estar em condiccedilotildees de cumprir os seus deveres
fundamentais como por exemplo o dever de assistecircncia aos seus
familiares assegurando-lhes alimento vestuaacuterio e habitaccedilatildeo173
(6) As regulamentaccedilotildees colectivas alcanccediladas atraveacutes dos sistemas de
representaccedilatildeo dos interesses dos consumidores e dos trabalhadores
devem ter prioridade sobre os resultados de uma adaptaccedilatildeo ou de uma
modificaccedilatildeo individual
11 CESSACcedilAtildeO ANTECIPADA DO CONTRATO
(1) A cessaccedilatildeo antecipada dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia
da pessoa [atraveacutes de denuacutencia ou de revogaccedilatildeo por acto unilateral]
deve ser feita de uma forma transparente controlaacutevel174 e socialmente
aceitaacutevel Caso seja feita contra a contra a vontade do consumidor do
locataacuterio ou do trabalhador175 deve representar-se como uma medida
extrema (ultima ratio)
(2) O acto unilateral por que se faz cessar o contrato deve ser
fundamentado e as razotildees comunicadas para fundamentar a cessaccedilatildeo
do contrato devem ser verdadeiras adequadas e justas natildeo podendo
em caso algum ser razotildees discriminatoacuterias ou ter resultados
discriminatoacuterios
(21) O empregador o fornecedor de bens ou o prestador de serviccedilos
soacute pode fazer cessar o contrato contra a vontade do consumidor ou do
trabalhador desde que tenha razotildees relacionadas (i) com as
circunstacircncias pessoais da contraparte mdash designadamente com as suas
condiccedilotildees fiacutesicas176 mdash (ii) com o comportamento do consumidor ou
do trabalhador tatildeo grave ou tatildeo significativo que justifique uma
ruptura ou (iii) com as suas proacuteprias circunstacircncias econoacutemicas e
financeiras
173 Embora nenhuma das versotildees concretize o sentido do termo deveres fundamentais da
pessoa humana ou obrigaccedilotildees fundamentais da pessoa humana parece que deve densificar-
se o sentido da expressatildeo 174 Na versatildeo alematilde nachvollziehbar 175 Embora natildeo esteja nas versotildees alematilde e italiana a restriccedilatildeo encontra-se nas versotildees inglesa
francesa e espanhola 176 Na versatildeo alematilde faz-se referecircncia a circunstacircncias relacionadas com as condiccedilotildees da
pessoa na versatildeo italiana a circunstacircncias relacionadas com as condiccedilotildees fiacutesicas da pessoa
do devedor nas versotildees inglesa e francesa natildeos e faz referecircncia nem a uma coisa nem a outra
62
(22) As circunstacircncias econoacutemicas ou financeiras do empregador do
fornecedor de bens ou do prestador de serviccedilos soacute podem ser invocadas
como fundamento desde que os custos ou os esforccedilos exigidos para que
a relaccedilatildeo contratual continue sejam desproporcionados ou
excessivos177 [colocando em causa sustentabilidade econoacutemica e
financeira da operaccedilatildeo de consumo ou da relaccedilatildeo de trabalho178]
(3) Sempre que o fundamento da cessaccedilatildeo antecipada do contrato sejam as
circunstacircncias econoacutemicas ou financeiras do empregador do
fornecedor de bens ou do prestador de serviccedilos deve procurar-se a
(re)composiccedilatildeo do equiliacutebrio de interesses atraveacutes dos sistemas de
representaccedilatildeo coletiva O procedimento deve dar aos consumidores
aos trabalhadores e aos seus representantes179 uma oportunidade
razoaacutevel para apresentarem as suas razotildees proporcionando-lhes o
tempo suficiente para fazerem propostas que evitem a cessaccedilatildeo
antecipada do contrato ou que natildeo evitando a cessaccedilatildeo atenuem as
suas consequecircncias os seus efeitos
(4) Em todos os casos em que a cessaccedilatildeo antecipada no contrato se decirc no
seu interesse o empregador o fornecedor de bens ou o prestador de
serviccedilos fica adstrito a deveres de protecccedilatildeo para com o consumidor ou
para com o o trabalhador180 deve considerar com toda a diligecircncia181
os direitos e os interesses do consumidor ou do trabalhador Em
particular deve dar-lhe um periacuteodo de tempo adequado para se
preparar para o termo da relaccedilatildeo contratual
12 COMUNICACcedilAtildeO
(1) Em todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde que a preparaccedilatildeo do
contrato tem o seu iniacutecio com a entrada em negociaccedilotildees ateacute ao
momento em que a execuccedilatildeo do contrato tem o seu fim devem as
partes comunicar entre si
177 Na versatildeo italiana fala-se de um excesso de custo econoacutemico da cooperaccedilatildeo creditiacutecia 178 Na versatildeo inglesa fala-se da viabilidade do objecto do contrato na versatildeo francesa fala-
se da continuidade do objecto do contrato exigindo-se que fique comprometida para que haja
uma justa causa de ruptura 179 Na versatildeo alematilde p ex diz-se que devem ser ouvidos os indiviacuteduos e os seus
representantes na versatildeo inglesa que devem ser ouvidos os indiviacuteduos ou os seus
representantes 180 O termo deveres de protecccedilatildeo encontra-se tatildeo-soacute na versatildeo italiana 181 Na versatildeo alematilde fala-se soacute em diligecircncia na versatildeo francesa em toda a diligecircncia
63
(2) A comunicaccedilatildeo entre as partes deve ser directa e pessoal e deve ter
lugar designadamente antes de qualquer acto unilateral relativo ao
contrato (com a sua adaptaccedilatildeo a sua modificaccedilatildeo ou a sua resoluccedilatildeo)
(3) O diaacutelogo deve basear-se na igualdade deve ser um diaacutelogo entre
iguais conforme aos princiacutepios da confianccedila e da cooperaccedilatildeo
construtiva orientado objectivamente para a plena realizaccedilatildeo do fim
do contrato
13 INFORMACcedilAtildeO E TRANSPAREcircNCIA
(1) Em todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde que a preparaccedilatildeo do
contrato tem o seu iniacutecio com a entrada em negociaccedilotildees ateacute ao
momento em que a execuccedilatildeo do contrato tem o seu fim e mesmo
depois desse momento o empregador o fornecedor de bens ou o
prestador de serviccedilos182 deve dar ao consumidor ou ao trabalhador
informaccedilotildees verdadeiras completas atempadas e compreensiacuteveis
sobre todas as circunstacircncias relevantes para a relaccedilatildeo contratual
(2) O conteuacutedo do dever de informaccedilatildeo deve concretizar-se atendendo aos
interesses do consumidor ou do trabalhador e ao fim de corrigir as
assimetrias informacionais que possam subsistir entre as partes
14 MINIMO DE PARTICIPACcedilAtildeO NA VIDA ECONOacuteMICA [MIacuteNIMO DE
EXISTEcircNCIA]183
(1) [O consumidor ou o trabalhador natildeo pode ser privado de um miacutenimo
de participaccedilatildeo na vida econoacutemica]
(2) Os contratos que atingirem os rendimentos do consumidor ou do
trabalhador seja por lhe darem acesso a um rendimento regular
tornando-o disponiacutevel em determinadas circunstacircncias de tempo e de
lugar seja por lhe tirarem o acesso a tal rendimento entregando-o ao
fornecedor de bens ou ao prestador de serviccedilos devem proporcionar agrave
pessoa humana o miacutenimo necessaacuterio para a sua subsistecircncia
(3) O Estado deve conformar as suas leis de forma a proteger os
consumidores e os trabalhadores contra os riscos de exclusatildeo da vida
182 Na versatildeo italiana fala-se da parte que predisponha e organize o contrato 183 Na versatildeo italiana fala-se de miacutenimo vital
64
econoacutemica designadamente no quadro dos processos de execuccedilatildeo de
preacute-insolvecircncia ou de insolvecircncia
15 MIacuteNIMO DE PARTICIPACcedilAtildeO NA VIDA SOCIAL
(1) [O consumidor ou o trabalhador natildeo pode ser privado de um miacutenimo
de participaccedilatildeo na vida social]
(2) No momento da conformaccedilatildeo individual e colectiva184 como no
momento da sua interpretaccedilatildeo dos contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa185 deve considerar-se adequadamente os riscos de
exclusatildeo social da pessoa do consumidor ou do trabalhador
(3) No momento da conformaccedilatildeo como no momento da intepretaccedilatildeo do
contrato deve considerar-se designadamente os riscos de falta de
emprego de falta de habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento
relacionando-os com as suas causas soacutecio-econoacutemicas186
(4) Os princiacutepios e as regras de direito privado por que se pretende prevenir
o perigo de exclusatildeo social devem ser completados pelos princiacutepios e
pelas regras de direito puacuteblico
16 CONFIDENCIALIDADE
Os dados pessoais facultados187 durante um contrato duradouro
essencial agrave existecircncia da pessoa como os juiacutezos de valor proferidos com base
nos dados pessoais assim facultados devem ser tratados confidencialmente e
soacute podem ser usados no quadro da realizaccedilatildeo do fim do contrato188
184 Nas versotildees alematilde inglesa e francesa fala-se de conformaccedilatildeo individual e colectiva na
versatildeo italiana de estruturaccedilatildeo individual e coletiva 185 Na versatildeo espanhola fala-se soacute da interpretaccedilatildeo 186 Na versatildeo francesa fala-se das origens sociais da pessoa Em todas as demais versotildees
fala-se das causas sociais ou da origens sociais dos fenoacutemenos do desemprego da falta de
habitaccedilatildeo ou do sobreendividamento 187 Na versatildeo francesa fala-se em dados comunicados sem distinguir se satildeo dados pessoais
ou natildeo Em todo caso o deacutecimo sexto princiacutepio soacute faz pleno sentido desde que se aplique
exclusivamente aos dados pessoais 188 Nas versotildees alematilde e inglesa diz-se que soacute podem ser usados para a realizaccedilatildeo do fim do
contrato na versatildeo francesa que soacute podem ser usados no quadro da realizaccedilatildeo do fim do
contrato mdash foacutermula mais ampla e aparentemente mais apropriada
65
Life time contracts um primeiro balanccedilo
Luca Nogler amp Udo Reifner
I INTRODUCcedilAtildeO
Neste artigo propomo-nos fazer um primeiro balanccedilo do diaacutelogo em
torno do nosso livro Life Time Contracts com o subtiacutetulo Social Longterm
Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law189 O livro foi
apresentado em muacuteltiplas ocasiotildees em muacuteltiplos paiacuteses190 e apreciado por
uma seacuterie de recensotildees191 sugerindo que o diaacutelogo em torno dos contratos
duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa pode e deve prosseguir
Professor de Direito do trabalho na Universidade de Trento (Itaacutelia) Professor de Direito comercial nas Universidade de Hamburgo (Alemanha) e de Trento
(Itaacutelia) Traduccedilatildeo para portuguecircs de Nuno Manuel Pinto Oliveira 189 Life Time Contracts Social Longterm Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit
Law Eleven The Hague 2014 190 No dia 4 de dezembro de 2013 foi apresentado na Universidade do Luxemburgo por Hugh
Collins e David Hiez no dia 17 de marccedilo de 2014 foi apresentado na Universidade de Porto
Alegre no Brasil no dia 22 de maio de 2014 na Alemanha na Internationale Konferenz zu
Finanzdienstleistungen por Doris Neuberger e Ulrich Magnus nos dias 26 e 27 de setembro
de 2014 na Universidade McGill em Montreacuteal (Canadaacute) no quadro do coloacutequio Le livre agrave
venir dans les faculteacutes de droit no dia 17 de outubro de 2014 na Universidade de Santiago
de Compostela na Espanha por Javier Arias Varona Fernando Gallardo Francisco
Hernaacutendez Javier Lete e Aacutengel Fernaacutendez Albor no dia 8 de novembro de 2014 na
Universidade de Toacutequio no Japatildeo por Katsutoshi Kezuka e por Yasuo Suwa) no dia 6 de
marccedilo de 2015 na Universidade de Pisa em Itaacutelia por Vincenzo Roppo Marco De Cristofaro
Oronzo Mazzotta e Fabio Padovini no dia 15 de maio de 2015 na Universidade do Minho
em Portugal por Nuno Manuel Pinto Oliveira Agostinho Cardoso Guedes Henrique Sousa
Antunes Catarina Serra Juacutelio Gomes Benedita MacCrorie Jorge Morais Carvalho Ana
Maria Taveira de Fonseca Sandra Passinhas e Maria Joatildeo Vasconcelos nos dias 28 a 31 de
maio de 2015 no Annual Meeting da Law and Society Association em Seattle no dia 29 de
junho a 1 de julho de 2015 no 15ordm Annual Meeting da International Association of Consumer
Law em Amesterdatildeo em que foi apresentada uma comunicaccedilatildeo subordinada ao tema ldquoEarly
termination in Life-Time Contractsrdquo e por uacuteltimo no dia 25 de setembro de 2015 na
Universidade de Trento na Itaacutelia por Roberto Fiori e Gianni Santucci 191 David Hiez ldquoAgrave propos des Life Time Contractsrdquo in Revue trimestrelle de droit civil 2014
(4) paacutegs 817-827 Francisco Javier Arias Varona ldquoRecensioacutenrdquo in RPC 21 2014 paacutegs 389-
393 Marina Tamm ldquoBuchbesprechungrdquo in Verbraucher und Recht 2015 (1) paacutegs 39-40
66
Natildeo nos arrependemos em primeiro lugar de ter adoptado uma
perspectiva multicultural Temos a convicccedilatildeo plena de que a forccedila da Europa
estaacute no pluralismo das suas culturas Que a decisatildeo foi acertada demonstram-
no as traduccedilotildees dos Principles on Life Time Contracts em distintas liacutenguas
O livro publica as traduccedilotildees dos Principles em alematildeo em francecircs em
italiano e em espanhol depois de o livro ter sido publicado foram preparadas
as traduccedilotildees em portuguecircs em japonecircs e em coreano Como cada uma das
traduccedilotildees comprova natildeo se trata soacute de substituir palavras de uma liacutengua por
palavras de outra liacutengua Trata-se sim de integrar um texto numa cultura
juriacutedica diferente de quando em quando trata-se de o integrar numa cultura
juriacutedica muito diferente daquela em que o texto foi redigido
Javier Ariacuteas Varona refere-se a um ldquofortalecimento do caraacutecter
multicultural do trabalhordquo representanto-o como necessaacuterio para que os textos
possam produzir os impulsos que os autores pretendem que produzam
Concordando no essencial com Ariacuteas Varona Ewoud Hondius critica
as contribuiccedilotildees de autores neerlandeses publicadas em inglecircs por natildeo se
preocuparem tanto como deveriam preocupar-se com a compreensatildeo dos
conceitos e das estruturas do direito neerlandecircs pelo puacuteblico
O caso do termo centrale ondermingsraad seria um caso examplar
Hondius lamenta que tenha sido traduzido de forma a sugerir que se tratava de
um puro e simples oacutergatildeo de participaccedilatildeo ou de representaccedilatildeo deformando-se
a realidade ao esquecer-se como natildeo deveria esquecer-se a especificidade
das funccedilotildees desempenhadas e a originalidade do oacutergatildeo Com o exemplo do
termo centrale ondermingsraad Hondius pronuncia-se em favor da tese por
noacutes sustentada de que o uso da liacutengua-matildee dos autores pode ser necessaacuterio
ainda que tal liacutengua natildeo esteja entre as mais conhecidas mdash ainda que natildeo seja
a liacutengua mais faacutecil de falar ou a mais simples de compreender
David Hiez exprime uma apreciaccedilatildeo particular pela nossa preferecircncia
ldquoO grupo EuSoCo decidiu trabalhar em diferentes liacutenguas (inglecircs alematildeo
Pompeyo Gabriel Ortega Lozano ldquoRecensioacutenrdquo in Revista espantildeola de derecho del trabajo
2015 paacutegs 287-291 Ewoud Hondius ldquoReviewrdquo in Nederlands Tijdschrift voor Burgerlijk
Recht vol 37 2014 (8) paacutegs 308-309 Hugh Collins ldquoReviewrdquo in European Review of
Contract Law vol 10 2014 (3) paacutegs 466-472 Hans-Wolfgang Micklitz ldquoBook Notes mdash
Law 12015rdquo in Journal of Consumer Policy (2015) 38 paacuteg 108 Michele Graziadei in
Rivista trimestrale di diritto e procedura civile em curso de publicaccedilatildeo Chantal Mark in
European Journal of Comparative Law and Governance 2015 em curso de publicaccedilatildeo G
Loumlschnigg in Das Recht der Arbeit em curso de publicaccedilatildeo Muriel Fabre-Magnan ldquoCritique
de la notion de contenu du contratrdquo in Revue des contrats 01er Septembre 2015 ndeg 3 paacuteg
639 (II C)
67
francecircs e italiano) e natildeo recorrer a um novo esperanto Os leitores com
competecircncias linguiacutesticas mais limitadas poderatildeo porventura perder alguma
coisa Em todo o caso a decisatildeo foi correcta e deve ser apreciada
favoravelmente Faz parte de uma concepccedilatildeo distinta e proacutepria da construccedilatildeo
de um direito privado europeu Como parte de uma concepccedilatildeo distinta e
proacutepria responde pelo menos em parte agrave criacutetica dos que contestam qualquer
tentativa de aproximaccedilatildeo com o argumento da intraduzibilidade do direitordquo
O juiacutezo de Hiez foi de uma forma geral partilhado pelos comentadores
do livro Marina Tamm sentiu-se impelida a falar de uma ldquoheranccedila comum
europeiardquo (de uma gemeinsames europaumlisches Erbe)
Natildeo nos esquecemos em segundo lugar de que o tiacutetulo Life Time
Contracts natildeo eacute auto-explicativo mdash precisa sempre de um esclarecimento
adicional ou suplementar sobretudo se natildeo foi apresentado em inglecircs
Eacute uma designaccedilatildeo geneacuterica deve ser acompanhada por designaccedilotildees
mais especiacuteficas apropriadas para representar os seus dois desafios de uma
forma mais juriacutedica Em primeiro lugar satildeo contratos de longa duraccedilatildeo e em
segundo lugar satildeo contratos essenciais agrave existecircncia da pessoa mdash essenciais
agraves relaccedilotildees humanas Os esclarecimentos adicionais ou suplementares foram
de alguma forma jaacute feitos em algumas das traduccedilotildees dos princiacutepios publicadas
no livro [ou preparadas depois de o livro ter sido publicado]
Hugh Collins alega que ldquoo criteacuterio colocado no centro da definiccedilatildeo de
life time contracts [hellip] estaacute em ser o contrato mais ou menos essencial para a
realizaccedilatildeo da pessoa em ser o contrato mais ou menos essencial para a sua
participaccedilatildeo como pessoa na sociedaderdquo O problema estaria em que todos
ou quase todos os contratos pelo menos potencialmente satildeo essenciais para a
realizaccedilatildeo da pessoa Collins daacute como exemplo o caso de uma pessoa que
precisa de tomar o autocarro todos os dias para chegar ao local de trabalho O
serviccedilo de transportes puacuteblicos tornar-se-ia essencial para a sua realizaccedilatildeo
pessoal Com o uso diaacuterio de tal serviccedilo constituir-se-ia uma relaccedilatildeo e uma
relaccedilatildeo que pode ser descrita como ldquorelaccedilatildeo social duradourardquo O conceito de
life time contracts falharia por natildeo ter capacidade distintiva Seria
potencialmente capaz de incluir quase todos os contratos concluiacutedos
normalmente pelas pessoas ao longo da sua vida
David Hiez responde que o conceito de life time contract define-se em
extensatildeo por duas notas caracterizadoras mdash por um lado pela duraccedilatildeo e por
outro lado pela destinaccedilatildeo funcional agrave realizaccedilatildeo pessoal e social de um dos
contraentes Natildeo eacute suficiente para que o contrato entre na categoria dos life
time contracts que tenha como destinaccedilatildeo funcional a realizaccedilatildeo pessoal e
social de um dos contraentes Eacute necessaacuterio que o contrato seja duradouro
68
Quando os contratos de execuccedilatildeo instantacircnea simplesmente se repetem
e se sucedem sem que haja nada que os ligue desde o iniacutecio satildeo e devem ser
designados como contratos contingentes recorrentes Agraves relaccedilotildees por si
consituiacutedas pode chamar-se relaccedilotildees obrigacionais recorrentes
(Wiederkehrschuldverhaumlltnisse) Em todo o caso natildeo haacute nos contratos
recorrentes nenhuma relaccedilatildeo complexas como natildeo haacute nehuma relaccedilatildeo
duradoura mdash haacute sim sempre e soacute relaccedilotildees singulares sucessivas
Life time contracts poderaacute porventura ser mais bem lido como Life time
contracts Natildeo haacute de facto nada mdash natildeo haacute rigorosamente nada mdash em comum
entre os life time contracts e os contratos vitaliacutecios
Os contratos vitaliacutecios foram abolidos pelas revoluccedilotildees burguesas
conjuntamente com a escravatura e com a servidatildeo Ainda que as perspectivas
se tenham de alguma forma invertido mdash por haver muitos consumidores
muitos inquilinos e muitos trabalhadores que seguramente apreciariam que
os contratos necessaacuterios agrave sua existecircncia como os contratos de trabalho
durassem toda a vida192 mdash natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo sistemaacutetica entre os dois
conceitos Os consumidores os inquilinos ou os trabalhadores que pretendem
que os contratos necessaacuterios agrave sua existecircncia durem toda a vida natildeo querem
de forma nenhuma ficar-lhes vinculados para toda a vida Aquilo que os
trabalhadores que os inquilinos ou que os consumidores querem eacute soacute uma
protecccedilatildeo adequada contra uma cessaccedilatildeo unilateral das relaccedilotildees contratuais
essenciais agrave sua existecircncia E de facto os contratos vitaliacutecios natildeo satildeo coisa
que uma sociedade livre e responsaacutevel possa desejar ou sequer aceitar
Os Principles on life time contracts ao proibirem uma cessaccedilatildeo
arbitraacuteria procuram simplesmente um compromisso entre a liberdade
individual e a solidariedade social mdash compromisso tornado necessaacuterio pela
circunstacircncia de em causa estar uma relaccedilatildeo social que atinge directamente a
existecircncia de devedores inquilinos e trabalhadores Eacute por isso que a protecccedilatildeo
proporcionada contra a cessaccedilatildeo unilateral dos life time contracts natildeo eacute uma
protecccedilatildeo absoluta ou categoacuterica mdash eacute tatildeo-soacute circunstancial e relativa
O conceito de life time contracts implica uma criacutetica ao modelo ou
paradigma do contrato de compra e venda Em rigor uma criacutetica desdobraacutevel
em duas mdash por um lado contesta-se falta de uma dimensatildeo temporal
(ldquoduraccedilatildeordquo) e por outro lado ainda que a dimensatildeo temporal fosse de alguma
forma tomada em consideraccedilatildeo sempre se contestaria que fosse degradada a
uma dimensatildeo quantitativa mdash cuja funccedilatildeo seria soacute a de contribuir para a
192 [Os Professores Nogler e Reifner propotildeem um jogo de palavras que natildeo pode ou que soacute
com dificuldade poderaacute transpor-se para a liacutengua portuguesa ldquoMany consumers workers or
tenants would appreciate if their life time contracts would hold for lifetimerdquo]
69
determinaccedilatildeo do juro da renda ou do salaacuterio mdash e natildeo fosse representada na
sua dimensatildeo qualitativa como componente essencial de determinados
contratos em que o tempo estaacute ligado agraves vidas humanas
As duas dimensotildees satildeo poreacutem os dois lados de uma e da mesma
moeda mdash o anverso e o reverso de uma e da mesma medalha O princiacutepio
histoacuterico do caveat emptor permitiu o desenvolvimento de uma economia de
mercado em que se constituem contactos entre pessoas que natildeo se conhecem
e que se se conhecessem provavelmente natildeo teriam gostado umas das outras
A cooperaccedilatildeo anoacutenima quase necessaacuteria pressuposta por uma economia de
mercado substitui uma cooperaccedilatildeo voluntaacuteria de que de facto estaacute muito
distante Com a reduccedilatildeo das relaccedilotildees a contratos de execuccedilatildeo instantacircnea [a
spot contracts] o capitalismo realizou algo de extradordinaacuterio na perspectiva
da produtividade ao promover a cooperaccedilatildeo internacional e a reparticcedilatildeo do
trabalho [entre paiacuteses e dentro de um mesmo paiacutes entre diversos grupos
sociais]
Natildeo pode duvidar-se de que a ideia de cooperaccedilatildeo anoacutenima reduzida
a contratos de execuccedilatildeo instantacircnea ainda desempenha um papel importante
no comeacutercio internacional e no processo de globalizaccedilatildeo E natildeo se pretende
negar-lhe esse papel A criacutetica natildeo eacute a de que os contratos de execuccedilatildeo
instantatildenea como o contrato de compra e venda deveriam ser substituiacutedos por
contratos de execuccedilatildeo duradoura Eacute sim a de sublinhar que o modelo ou
paradigma da compra e venda natildeo eacute um paradigma adequado a todos os
contratos Natildeo se trata de negar que a ideia de livre escolha expliacutecita no
paradigma da compra e venda e impliacutecita sob designaccedilotildees distintas em alguns
aspectos do regime dos contratos de arrendamento e de trabalho ou em coisas
como o modelo da informaccedilatildeo nos contratos de consumo seja uma ideia
importante Trata-se sim de negar que seja a uacutenica ideia importante do regime
dos contratos ou de que deva ser a ideia mais importante do regime de alguns
tipos de contrato O sucesso do paradigma da compra e venda na conformaccedilatildeo
dos mercados converter-se-aacute em fundamental insucesso desde que todos os
contratos incluindo aqueles que se ligam ao consumo ou que permitem o
acesso agrave habitaccedilatildeo ou ao trabalho fiquem subordinados agrave sua ideologia desde
que haja uma inclusatildeo de relaccedilotildees essencialmente distintas da compra e venda
na ideologia contratual construiacuteda sobre o paradigma dos contratos de
execuccedilatildeo instantacircnea ou desde que haja uma exclusatildeo de tais relaccedilotildees da
ideologia contratual
Como as razotildees apresentadas para explicar tal exclusatildeo eram cada vez
menos convincentes e por isso cada vez mais difiacuteceis de aceitar houve
muacuteltiplas tentativas para reintegrar o pensamento da relaccedilatildeo no direito dos
contratos
70
O tempo deixa entatildeo de ser representado como uma pura e simples
projecccedilatildeo de agora para depois ou como um puro e simples ponto de
referecircncia para a determinaccedilatildeo dos salaacuterios das rendas ou dos juros e passa a
ser representado como uma realidade inquantificaacutevel mdash como o tempo de que
as pessoas dispotildeem para viver como o tempo-de-vida ou como o tempo-para-
a-vida Certas actividades como dormir trabalhar consumir amar e sofrer
criam o seu proacuteprio tempo Criam um tempo que eacute proacuteprio e que como tempo
proacuteprio natildeo eacute fungiacutevel mdash natildeo pode ser trocado por tempos diferentes de
outras actividades ou de outras coisas O direito deveraacute reconhecer que o
tempo-de-e-para-a-vida (life time) eacute a dimensatildeo mais importante de algumas
relaccedilotildees contratuais Se o fizer como deve ficaraacute aberto o caminho para a
definiccedilatildeo de um novo tipo de contrato Os bens e serviccedilos prestados estariam
ligados aacute duraccedilatildeo da vida de uma das partes Em tais contratos a duraccedilatildeo seraacute
(teraacute de ser) um elemento essencial em termos um tanto ou quanto
semelhantes agravequeles que se aplicavam a alguns contratos de locaccedilatildeo da Idade
Meacutedia193
Se a primeira ideia consistia em definir um novo tipo de contrato a
segunda talvez mais desafiante consiste em indicar um modelo ou paradigma
uniforme de regulaccedilatildeo de alguma forma anaacutelogo ao paradigma do contrato de
compra e venda194
O paradigma em causa deveria desenvolver-se de forma a construir-se
uma estrutura juriacutedica capaz de harmonizar o contrato e a relaccedilatildeo Como
acenturam alguns (muitos) observadores do nosso trabalho preocupamo-nos
sobretudo com a relaccedilatildeo entre o direito dos contratos e as necessidades
humanas Marina Tamm di-lo de uma forma particularmente impressiva mdash na
nossa abordagem ao direito dos contratos vai contida uma decisatildeo eacutetica
Decisatildeo que se exprime na criacutetica agrave tendecircncia para uma recepccedilatildeo automaacutetica
no discurso juriacutedico dos conceitos e das estruturas da economia neoclaacutessica O
193 O livro do Eclesiastes 3 1-22 representa um desvio ao uso moderno da palavra ldquotempordquo
O texto do capiacutetulo 3 comeccedila com o versiacuteculo em que se diz que ldquoTodas as coisas tecircm o seu
tempo e tudo o que existe debaixo dos ceacuteus tem a sua horardquo e continua com a enumeraccedilatildeo de
actividades humanas ligando-as ao seu tempo Cada um dos versiacuteculos comeccedila com as
palavras ldquoHaacute tempo parardquo e o desenvolvimento esclarece que se trata do tempo e natildeo do
momento (do dia ou da hora) Com a afirmaccedilatildeo de que ldquoAquilo que eacute jaacute existia e aquilo que
haacute-de ser jaacute existiu Deus faz voltar de novo aquilo que jaacute passourdquo (3 15) recorda-se-nos a
relatividade social do tempo A relatividade material essa eacute desde haacute deacutecadas reconhecida
pelos fiacutesicos 194 Cf G Oppo ldquoI contratti di duratardquo in Rivista di Diritto Commerciale 1943 I paacutegs 143
ss e paacutegs 227 ss e 1944 I p 17 ss
71
fenoacutemeno eacute particularmente grave por tais conceitos e tais estruturas
contaminarem parte significativa da anaacutelise econoacutemica do direito
Como escreve Michele Graziadei ldquona economia neoclaacutessica as
mercadorias satildeo todas iguais a si proacuteprias todas fungiacuteveisrdquo Graziadei remete
para uma obra recente de Debra Satz195 para sustentar que o mercado em que
as mercadorias satildeo transaccionadas eacute um mercado cujas especificiadades e
implicaccedilotildees morais ningueacutem compreende ou quer compreender ldquoNatildeo eacute um
acasordquo continua Michele Graziadei ldquoque um dos artigos publicados no
presente volume dirija uma criacutetica feroz agrave obra de Ronald Coase apresentado
mdash de forma aliaacutes um pouco caricatural mdash como um mau profeta que semeia
entre os juristas uma atitude de anaacuteloga insensibilidaderdquo
O caso seria poreacutem um pouco mais grave A criacutetica dirigida a Ronald
Coase seria pelo menos em parte uma criacutetica injusta Natildeo haveria tatildeo-soacute uma
contaminaccedilatildeo externa da teoria juriacutedica do contrato pela teoria econoacutemica
neoclaacutessica (e neoliberal) mdash haveria uma contaminaccedilatildeo interna da teoria
juriacutedica pelo formalismo ou pelo neoformalismo Entre os fundamentos da
teoria juriacutedica do contrato estaacute ainda a ideia de uma autonomia da vontade
contra a qual se dirigiram autores como Gierke mdash tatildeo frequentemente citado
ao longo de todo o livro mdash ou em tempos mais recentes pelos adeptos do
(chamado) socialismo juriacutedico ou em tempos ainda mais recentes os juristas
comprometidos com ldquocorrentes socialmente orientadasrdquo
Muriel Fabre-Magnan sublinha que life time contracts natildeo satildeo
necessariamente contratos para a vida natildeo satildeo contratos cuja duraccedilatildeo
coincida ou tenda a coincidir com a duraccedilatildeo da vida satildeo contratos
importantes na vida Satildeo contratos que desempenham uma funccedilatildeo importante
na vida de uma pessoa ldquoParecerdquo conclui Fabre-Magnan ldquoque a ideia
subjacente agrave definiccedilatildeo de tal tipo de contratos consiste na sua importacircncia no
acesso aos meios de subsistecircnciardquo Entre os contratos de creacutedito os contratos
de arrendamento e os contratos de trabalho haveria uma coisa em comum mdash
e na verdade uma coisa fundamental mdash cada um dos trecircs tipos de contrato
seria necessaacuterio para que o devedor o arrendataacuterio ou o trabalhador pudesse
alcanccedilar os meios necessaacuterios para a sua subsistacircncia
Fabre-Magnan sublinha ainda que o argumento da funccedilatildeo econoacutemica
e social do contrato mdash e da sua importacircncia para o acesso a bens e a serviccedilos
fundamentais mdash foi por si invocado para sustentar a tese de que o empregador
estaacute adstrito a um dever especial de fundamentaccedilatildeo dos actos unilaterais por
que promova uma cessaccedilatildeo antecipada dos contratos de trabalho Fabre-
195 D Satz Why Certain Things Should Not Be for Sale Oxford University Press Oxford
2010
72
Magnan refere-se em particular agrave nossa 14ordf tese em que a funccedilatildeo econoacutemica
e social do contrato foi enunciada sob a forma de princiacutepio
Continuando com a apreciaccedilatildeo da nossa proposta a autora sustenta
com bons argumentos que ldquoa ideia de protecccedilatildeo dos mais fracos tem os seus
limites e em todo o caso eacute algo artificial a ideia de uma fragilidade ou de
uma vulnerabilidade tiacutepicas da parte mais fraca eacute-o ainda maisrdquo
A protecccedilatildeo natildeo seria ou natildeo deveria ser justificada pelo tipo de
contrato mdash seria ou deveria ser justificada pela importacircncia que o contrato
tem para uma das partes e para a sua subsistecircncia Seria precisamente a
importacircncia que o contrato tem para uma das partes e para a sua subsistecircncia
que explicaria e que justificaria algumas disposiccedilotildees especiais do direito dos
contratos por que se pretende precisamente estabilizar a relaccedilatildeo mdash
proporcionar alguma estabilidade agrave relaccedilatildeo obrigacional
E na verdade se a razatildeo de ser da protecccedilatildeo proporcionada ao devedor
ao arrendataacuterio ou ao trabalhador pelo direito do creacutedito pelo direito do
arrendamento ou pelo direito do trabalho fosse simplesmente a fragilidade ou
a vulnerabilidade da parte mais fraca natildeo seria necessaacuteria uma particular
forma de contrato Pode haver fragilidades e vulnerabilidades em todas as
relaccedilotildees contratuais O problema soacute se potildee e soacute deve pocircr-se se a fragilidade
e a vulnerabilidade no direito satildeo o resultado de uma inadequada forma das
relaccedilotildees juriacutedicas ou de uma inadequada ideologia subjacente agraves relaccedilotildees
juriacutedicas contratuais em que o princiacutepio da igual liberdade de todos eacute
transformado degradando-se em princiacutepio de legitimaccedilatildeo de relaccedilotildees de
dependecircncia de diacutevida e de subordinaccedilatildeo Se tal suceder como
frequentemente sucederaacute pode porventura valer a pena reflectir sobre a
pergunta seguinte O modelo do contrato de compra e venda natildeo precisaraacute
porventura de ser complementado com um modelo (com um ldquoirmatildeordquo ou uma
ldquoirmatilderdquo) mais adaptado agrave economia moderna mdash mais adaptado agrave economia do
creacutedito e dos serviccedilos mdash Se se pusesse a pergunta e se se reflectisse
seriamente sobre os argumentos relevantes para a resposta poderia porventura
atribuir-se alguma relevacircncia agrave chamada ldquoigualdade de direitordquo evocada por
Anatole France Os modelos do direito da compra e venda poderiam
porventura ser representados como casos paradigmaacuteticos de um direito de
protecccedilatildeo do vendedor mdash e desde que os seus resultados fossem transferidos
como casos paradigmaacuteticos de um direito de protecccedilatildeo do empregador do
senhorio ou do mutuante Ora a protecccedilatildeo de um vendedor como a protecccedilatildeo
de um empregador (de uma entidade patronal) de um senhorio ou de um
mutuante precisaria de uma justificaccedilatildeo especial
Natildeo seria necessaacuterio declarar a desigualdade das partes natildeo seria
necessaacuterio dizer que o comprador que o trabalhador que o inquilino ou que
o mutuaacuterio se encontram em situaccedilatildeo de inferioridade e sobretudo natildeo seria
73
necessaacuterio dizer que se encontram em situaccedilatildeo de inferioridade por causa da
sua (alegada) fragilidade pessoal ou da sua (alegada) vulnerabilidade pessoal
Devemos esclarecer que a nossa perspectiva natildeo eacute uma perspectiva
funcional natildeo mdash a nossa perspectiva eacute uma perspectiva teacutecnica
Se o Manifesto para a Justiccedila Social [no direito europeu dos contratos]
adoptava uma perspectiva funcional mdash alegando que o direito dos contratos
deveria realizar a justiccedila social ainda que natildeo demonstrasse com adequada
precisatildeo e com adequado rigor como poderia alcanccedilar-se um tal fim mdash o
nosso projecto mdash a que chamaacutemos de Projecto para um Contrato social
europeu (EuSoCo) e a que hoje deveriacuteamos porventura chamar de Projecto
para um Contrato social internacional (IsoCo) por causa da presenccedila de
participantes da Ameacuterica e da Aacutesia mdash esse adopta uma perspectiva teacutecnica
Natildeo definimos a funccedilatildeo dos contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa a partir de fora como sucederia se os trataacutessemos a partir
da perspectiva da justiccedila social e sim a partir de dentro
Partimos dos casos mais significativos de um direito dos contratos
socializado mdash como sejam os casos do direito do trabalho do direito da
protecccedilatildeo do inquilino ou do direito da protecccedilatildeo do consumidor como
devedor (mutuaacuterio) mdash para propor uma generalizaccedilatildeo dos aspectos (uma
generalizaccedilatildeo dos princiacutepios e das regras) que tais contratos tecircm em comum
O nosso ponto de partida estaacute na ideia de que a dimensatildeo social eacute
inerente agrave dimensatildeo temporal mdash estaacute de alguma forma contida na dimensatildeo
temporal O tempo soacute poder ser considerado desde que o contrato seja
duradouro desde que a sua execuccedilatildeo se prolongue por um prazo mais ou
menos longo Quanto mais longa for a duraccedilatildeo tanto mais aspectos
relacionais ligando o contrato e a vida se tornaratildeo evidentes Em uacuteltima
anaacutelise o contrato poderaacute tornar-se numa necessidade existencial O nosso
trabalho continua e desenvolve a criacutetica ao modelo dos contratos de execuccedilatildeo
instantacircnea (dos spot contracts) deduzida desde o iniacutecio do seacuteculo XX Se a
dimensatildeo social pode de alguma forma ser posta entre parecircntesis ao tratar-se
dos contratos de execuccedilatildeo instantacircnea tal natildeo pode de forma nenhuma
suceder nos contratos de execuccedilatildeo duradoura (nos long-term contracts) Os
conceitos de contrato social e de contrato de execuccedilatildeo duradoura satildeo
conceitos entre os quais haacute uma ligaccedilatildeo loacutegica Os contratos de execuccedilatildeo
duradoura (long term contracts) satildeo necessariamente contratos sociais (satildeo
necessariamente social contracts) mdash a duraccedilatildeo implica loacutegica e
necessariamente relaccedilotildees sociais e a ordenaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais pelo
contrato implica loacutegica e necessariamente relaccedilotildees juriacutedicas Explicitada a
relaccedilatildeo loacutegica necessaacuteria entre a dimensatildeo temporal e a dimensatildeo social o
74
nosso trabalho desenvolve a discussatildeo interrompida entre os contratos
transaccionais de execuccedilatildeo instantacircnea e os contratos relacionais
Propomo-nos atraveacutes da generalizaccedilatildeo dos aspectos que os contratos
de trabalho de arrendamento e de creacutedito ao consumo tecircm em comum
contribuir para a diferenciaccedilatildeo entre duas partes gerais do direito das
obrigaccedilotildees O modelo dos contratos de execuccedilatildeo instantacircnea desenhado a
partir do paradigma do contrato de compra e venda deve ser completado com
o modelo dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa
desenhado a partir dos paradigmas do creacutedito ao consumo do arrendamento e
do trabalho Construiacuteda de baixo para cima (a partir de uma bottom-up
methodology) a nova parte geral ocupando o cimo da piracircmide poderaacute
adaptar-se a aacutereas distintas do trabalho do arrendamento ou do creacutedito ao
consumo Os contributos relacionados com o direito do trabalho satildeo
particularmente significativos ao afirmarem uma tal possibilidade
II A DEFINICcedilAtildeO DE LIFE TIME CONTRACTS
Chegados aqui deve regressar-se ainda que brevemente agrave anaacutelise dos
elementos essenciais da definiccedilatildeo de Life time contracts
a) A duraccedilatildeo Entre as caracteriacutesticas dos Life time contracts estaacute a de
que ldquoa prestaccedilatildeo na sua integridade depende da duraccedilatildeo do contrato
(Laumlnge)rdquo196
Nos sistemas de Civil law o termo contratos de execuccedilatildeo duradoura
(long term contracts) abrange duas categorias de contratos em primeiro lugar
os contratos de execuccedilatildeo continuada cujo cumprimento se desenvolve
ininterruptamente pelo periacuteodo definido no contrato ou em todo o caso pelo
periacuteodo necessaacuterio para a satisfaccedilatildeo das necessidades do credor e em segundo
lugar os contratos de execuccedilatildeo perioacutedica cujo cumprimento se decompotildee em
actos sucessivos repetidos com intervalos (regulares ou irregulares) A
diferenciaccedilatildeo entre as relaccedilotildees obrigacionais de curto prazo e de longo prazo
relaciona-se com os interesses que a proacutepria obrigaccedilatildeo prossegue ou se propotildee
prosseguir Nos contratos que exigem uma prestaccedilatildeo continuada ou perioacutedica
os interesses do credor satildeo tais que natildeo podem ser satisfeitos por um acto
simples mdash soacute podem secirc-lo por uma prestaccedilatildeo complexa contiacutenua ou
descontiacutenua Nos contratos que natildeo exigem uma prestaccedilatildeo duradoura nem
continuada nem tatildeo-pouco perioacutedica os interesses do credor satildeo tais que
196 Vide por exemplo K Larenz Lehrbuch des Schuldrechts vol I mdash Allgemeiner Teil C
H Beck Muumlnchen 1987) paacuteg 30
75
podem ser satisfeitos por um acto simples A prestaccedilatildeo esgota-se num uacutenico
acto mdash e esse uacutenico acto esgota-se num uacutenico momento
Em termos histoacutericos o desenvolvimento da categoria dos contratos de
duraccedilatildeo mdash e em particular da sub-categoria dos contratos de longa duraccedilatildeo
mdash estaacute relacionada com quatro questotildees com a realizaccedilatildeo dos fins
prosseguidos pelas partes com a conclusatildeo do contrato e em particular com a
plena satisfaccedilatildeo das suas aspiraccedilotildees e dos seus interesses com a adaptaccedilatildeo dos
contratos aos casos de perturbaccedilatildeo do equiliacutebrio econoacutemico subjacente ao
contrato (Geschaumlftsgrundlage clausula rebus sic stantibus) com o direito de
as partes denunciarem discricionariamente ad nutum ou ad libitum os
contratos duradouros desde que a sua duraccedilatildeo seja indeterminada e por
uacuteltimo com os efeitos da resoluccedilatildeo do contrato Independentemente de o
fundamento da resoluccedilatildeo estar no contrato ou estar na lei a resoluccedilatildeo do
contrato natildeo teraacute (natildeo poderaacute em regra ter) efeito retroactivo
O problema estaacute em que a categoria histoacuterica dos contratos de longa
duraccedilatildeo eacute insuficiente natildeo considera ou pelo menos natildeo considera
suficientemente como deveria considerar o aspecto humano as partes de
alguns contrato de longa duraccedilatildeo satildeo seres humanos mdash satildeo pessoas mdash e os
contratos soacute podem compreender-se atendendo agrave sua relaccedilatildeo com um ser
humano (com uma pessoa com o tempo da vida de uma pessoa)
b) O tempo da-e-para a vida de uma pessoa (life time) Foi
precisamente por causa de tal insuficiecircncia que preferimos dar-lhes um nome
diferente mdash o nome de Life time contracts Em portuguecircs o termo poderaacute ser
traduzido ainda que de uma forma tatildeo-soacute aproximada por contratos
duradouros essenciais egrave existecircncia da pessoa
Como diz o nosso Segundo princiacutepio
ldquoO ponto central do regime dos contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa deve ser o indiviacuteduo na sua concreta realidade
material e moral O direito deve preocupar-se em disciplinar a
conclusatildeo do contrato e as relaccedilotildees de cooperaccedilatildeo entre as partes
conformando-as para proteger e para promover o desenvolvimento
da pessoa humanardquo
Em termos mais geneacutericos dir-se-aacute que os desenvolvimentos recentes
em duas aacutereas especiacuteficas como sejam o direito do arrendamento e o direito
do trabalho introduziram princiacutepios e regras no direito privado por que se
procura realizar o princiacutepio da justiccedila fazendo acepccedilatildeo de pessoas
Hugo Sinzheimer afirmou a propoacutesito dos contratos de trabalho ainda
que em termos todavia extensiacuteveis a todos os Life time contracts que o direito
natildeo deve limitar-se a reconhecer a liberdade formal do cidadatildeo Em vez de
76
tomar a liberdade de cada pessoa como uma formalidade deve projectar-se na
real substacircncia da liberdade para a realizar praticamente referindo-se agraves
necessidades do ser humano na sua natureza de ser em relaccedilatildeo197
Concordando com Sinzheimer decidimos concentrar-nos no aspecto
humano dos contratos sociais de longa duraccedilatildeo O termo Life time contracts
pretende acentuaacute-lo pretende colocaacute-lo em evidecircncia O problema central da
categoria dos Life time contracts mdash da catgoria dos contratos duradouros
essenciais agrave existecircncia da pessoa mdash relaciona-se com o ser humano com as
suas necessidades fiacutesicas e morais relacionadas com a pertenccedila com a
seguranccedila com o sucesso ou com a auto-realizaccedilatildeo Em diferentes palavras
relaciona-se com a sua necessidade existencial de gozar de bens e de serviccedilos
de oportunidades de trabalho e de oportunidades de rendimento A satisfaccedilatildeo
das necessidades existenciais do ser humano eacute uma preacute-condiccedilatildeo essencial
para a auto-relizaccedilatildeo para a participaccedilatildeo na vida social numa palavra eacute preacute-
condiccedilatildeo essencial para a prossecuccedilatildeo de uma vida feliz (happy life)
Trata-se de tomar a seacuterio a dimensatildeo do tempo natildeo de a tomar a seacuterio
em dimensotildees tradicionalmente consideradas pela ciecircncia do direito e sim de
a tomar a seacuterio em dimensotildees novas tradicionalmente esquecidas
Tomemos o caso do contrato de trabalho Trata-se de reconhecer que
o trabalho prestado pela pessoa toca o tempo trata-se sobretudo de
reconhecer que o trabalho prestado pela pessoa natildeo toca o tempo como uma
categoria externa ao sujeito (o ser no tempo enquanto tal natildeo pertence ao
empregador) e sim como uma categoria interna O tempo apresenta-se como
uma componente constitutiva do proacuteprio ser humano como pessoa O trabalho
representa um dos principais fenoacutemenos das relaccedilotildees sociais por permitir ao
trabalhador responder ainda que com toda a provisoriedade imposta pela
condiccedilatildeo humana a uma pergunta fundamental para a definiccedilatildeo da identidade
de cada ser humano (de cada pessoa) mdash ldquopor que viverdquo Em tal sentido
poderia porventura falar-se do tempo da vida do trabalhador
Em toda a era taylor-fordista afirmou-se que o trabalho representa uma
etapa da existecircncia em que o trabalhador ldquogastardquo o seu tempo-de-vida (life
time) Tal etapa natildeo faria parte do tempo entendido como kairos mdash ficaria
adscrita ao fazendo parte do tempo entendido como chroacutenos
Ao representar o tempo do trabalho como tempo ldquogastordquo como
chroacutenos o taylor-fordismo faz sobressair aquele que podemos qualificar como
o aspecto mais negativo do envolvimento do trabalhador no cumprimento da
197 H Sinzheimer Das Problem des Menschen im Recht Groningen 1933 republicado em H
Sinzheimer Arbeitsrecht und Rechtssoziologie 2ordf ed Europaumlische Verlagsanstalt Frankfurt-
am-Main 1976 paacutegs 53 ss
77
prestaccedilatildeo laboral O problema estaacute em que do ponto de vista dos princiacutepios e
dos valores o trabalhador natildeo pode ceder-se a si proacuteprio ao empregador e por
isso natildeo pode ceder-lhe o tempo da sua vida Natildeo pode por isso representar-
se o tempo do trabalho como tempo ldquogastordquo cedido ao empregador
A distorccedilatildeo oacuteptica engendrada pelo taylor-fordismo torna-se evidente
desde que consideremos o facto de que o envolvimento do trabalhador
dependente pode atingir em termos em tudo semelhantes os trabalhadores
independente Como soacute pode (sobre)viver atraveacutes do seu trabalho o
trabalhador eacute forccedilado a ldquogastarrdquo o seu tempo preparando ou realizando a sua
prestaccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que tem cada vez mais adeptos a posiccedilatildeo segundo
a qual na presenccedila de prestaccedilotildees essencialmente pessoais natildeo deve ser sempre
necessaacuteria a subordinaccedilatildeo Para justificar a aplicaccedilatildeo de partes significativas
do direito do trabalho mdash designadamente daquelas por que se pretende
proteger a esfera existencial do trabalhador mdash deveria ser suficiente que a
prestaccedilatildeo tivesse como destinataacuterio uma empresa uma organizaccedilatildeo
produtiva e que lhe proporcionasse uma particular utilitas Natildeo deveria ser
necessaacuterio que o trabalhador estivesse integrado na empresa mdash seria suficiente
que a prestaccedilatildeo tivesse como destinataacuterio a empresa e que tendo como
destinataacuterio a empresa lhe proporcionasse a particular utilitas resultante da
ligaccedilatildeo entre a prestaccedilatildeo e uma orgnanizaccedilatildeo produtiva
Perguntar-se-aacute poreacutem se o direito com os seus conceitos e as suas
estruturas pode dar ao tempo a importacircncia que deve dar-lhe representando-
o como deve representaacute-lo como algo de ontologicamente ligado ao
indiviacuteduo Ora a concepccedilatildeo do tempo aqui invocada mdash a que poderiacuteamos
chamar intermeacutedia por estar situada entre dois indicadores de medida mdash soacute
pode assumir-se como uma concepccedilatildeo significativa desde que seja adequada
aos conceitos aos princiacutepios e as regras aplicaacuteveis agraves relaccedilotildees sociais
disciplinadas pelo direito O aspecto qualitativo do tempo como expressatildeo
directa ou imediata daquilo que faz de cada pessoa uacutenica deve ser sempre
ldquomediatizadordquo pelo direito e por conseguinte pelos conceitos (juriacutedicos)
atraveacutes dos quais se seleccionam aspectos recorrentes (tiacutepicos) como p ex
a doenccedila a pobreza o desemprego as necessidades familiares ou as
necessidades sociais abstraindo da individualidade dos sujeitos implicados na
relaccedilatildeo inter-individual O jurista corre sempre o risco de incorrer numa
abstracccedilatildeo excessiva distanciando-se da realidade O pensamento juriacutedico
tem-se esforccedilado desde haacute muito tempo para desenvolver instrumentos como
o tipo (Typus) capazes incluir na proacutepria reflexatildeo teoreacutetica (designadamente
na proacutepria reflexatildeo sobre os meacutetodos) o substrato vital a que devem aderir os
conceitos do sistema juriacutedico Eacute um movimento desenvolvido pelos juristas
de alguma forma ligado a um movimento porventura mais amplo de
revalorizaccedilatildeo da filosofia praacutetica Em todo o caso na prossecuccedilatildeo de tal fim
com o qual concordamos plenamente o jurista deve ter toda a atenccedilatildeo para
78
natildeo abdicar daquilo que lhe eacute proacuteprio e para natildeo confiar aos outros mdash aos
filoacutesofos aos economistas ou aos socioacutelogos mdash a selecccedilatildeo dos interess
relevantes para a decisatildeo de cada caso concreto
O jurista que pretenda prevenir-se contra a sensaccedilatildeo de que o terreno
sobre o qual se move foge sob os seus peacutes natildeo pode nem por um momento
renunciar aos conceitos ou prescindir dos conceitos Simplesmente prescindir
dos conceitos natildeo se confunde nem deve confundir-se com renunciar agrave
pretensatildeo de estar tatildeo proacuteximo quanto possiacutevel da realidade O jurista e em
especial o jusprivatista pode referir-se simultaneamente aos conceitos e agrave
realidade Pode fazecirc-lo desde que evite colocar entre parecircntesis
reconhecendo-o aquilo que representa o proacuteprio fundamento da sua actividade
de jurista mdash as relaccedilotildees entre as pessoas Em tais relaccedilotildees cada indiviacuteduo tem
uma propensatildeo instintiva ou quase-instintiva para afirmar a sua
subjectividade para actuar a sua vontade de poder O jusprivatista soacute pode
referir-se agrave realidade desde que reconheccedila que a actuaccedilatildeo da vontade de poder
do indiviacuteduo estaacute sujeita a condiccedilotildees e deve estar sujeita a limites
O juslaborista deve ir ainda mais longe O direito do trabalho soacute se
constituiu por ter dado ao direito privado uma dimensatildeo axioloacutegica Em que
consiste tal dimensatildeo perguntar-se-aacute Em enunciar as regras de julgamento
por que haacute-de atribuir-se e distribuir-se os custos do agir humano de forma a
considerar as situaccedilotildees mais relevantes de limitaccedilatildeo da liberdade de cada um
por causa da sua participaccedilatildeo na vida econoacutemica e na vida social Os princiacutepios
e as regras por que haacute-de concretizar-se a regra de julgamento devem ter em
conta por um lado a loacutegica comutativa de uma relaccedilatildeo contratual e por outro
lado os limites que dentro da loacutegica comutativa o princiacutepio da exigibilidade
potildee agrave desequilibrada distribuiccedilatildeo de custos Em todo o caso ainda que dentro
dos limites da exigibilidade e da loacutegica comutativa do contrato a dimensatildeo
axioloacutegica eacute algo de essencial sem o qual o direito do trabalho natildeo pode
explicar-se e natildeo pode justificar-se
Entre os exemplos que poderiam evocar-se para concretizar o
argumento deduzido haacute um caso de particular actualidade mdash o caso da
utilizaccedilatildeo das tecnologias digitais O indiviacuteduo sofre cada vez mais a pressatildeo
da sua presenccedila Em termos tais que se tornam incompreensiacuteveis os atrasos do
pensamento juslaboral em relaccedilatildeo a um tema cada vez mais fundamental nas
relaccedilotildees de trabalho mdash o dever do empregador de proporcionar ao trabalhador
uma adequada formaccedilatildeo Quando um dos sujeitos da relaccedilatildeo sofre a pressatildeo
da realidade circundante instaurando-se o ldquodomiacutenio das coisas sobre os
79
homensrdquo198 o direito deve recordar ao outro sujeito que ser livre ldquonatildeo significa
ser livre do dever mas sim atraveacutes do dever e da responsabilidaderdquo199
Respondida agrave pergunta pelo se mdash se pode o direito dar ao tempo a
importacircncia que deve dar-lhe mdash falta poreacutem responder agrave pergunta pelo como
Como poderaacute dar-se a devida importacircncia agrave dimensatildeo qualitativa do tempo
atendendo ao ldquotempo da vidardquo ou ao ldquotempo vividordquo por cada um200
Reconhecemos que o direito natildeo pode atribuir relevacircncia pelo menos
relevacircncia directa ou imediata ao tempo da vida de cada trabalhador
O pensamento juriacutedico soacute pode operar com conceitos e os conceitos soacute
podem operar colocando o tempo da vida na sua ordem cronoloacutegica e
transformando os factos concretos de que depende a vida de cada trabalhador
em descriccedilotildees gerais e abstractas mdash em conceitos mdash construiacutedos sem fazer
qualquer referecircncia aos traccedilos individuais Transformar os factos em conceitos
e sobretudo transformar os factos concretos em conceitos abstractos e gerais
eacute algo que soacute pode fazer-se por referecircncia a acontecimentos recorrentes e a
acontecimentos recorrentes na vida de uma pluralidade de pessoas (como a
doenccedila a maternidade ou a paternidade)
Reconhecemos por isso que o direito soacute pode atribuir relevacircncia aos
factos recorrentes porque soacute os factos recorrentes satildeo tipicizaacuteveis
c) Essencialidade para a satisfaccedilatildeo das necessidades humanas Os
comentadores sublinharam sem excepccedilatildeo que um dos pontos fortes do livro
eacute a ligaccedilatildeo estabelecida entre os contratos de trabalho e os contratos de creacutedito
mdash entre ldquotemas que soacute raramente satildeo tratados em conjunto pelos juristasrdquo
Hugh Collins sugere que fundamento de tal ligaccedilatildeo estaacute na ideia de que ambos
os contratos datildeo agrave pessoa a capacidade de gastar Os primeiros os contratos
de trabalho atraveacutes da retribuiccedilatildeo do trabalhador e os segundos atraveacutes do
creacutedito David Hiez concorda com a constataccedilatildeo de Hugh Collins que natildeo eacute
habitual considerar em conjunto os contratos de trabalho os contratos de
arrendamento e os contratos de creacutedito ao consumo ldquosobretudo por se tratar
de contratos mais ou menos autoacutenomos ente si no sistema do direito privadordquo
Sem procurar propriamente sugerir uma qualquer explicaccedilatildeo ou justificaccedilatildeo
para o fenoacutemeno Hiez qualifica a opccedilatildeo por um tratamento unitaacuterio dos trecircs
tipos de contrato como particularmente fecunda para o desenvolvimento das
ideias (particolarmente euristica) O tratamento unitaacuterio do creacutedito do
arrendamento e do trabalho coloca em evidecircncia contiguidades que passam
198 Max Weber Der Sozialismus Athenaumlum Weinheim 1995 paacutegs 76 ss 199 Karl Polanyi Una societagrave umana unrsquoumanitagrave sociale Scritti 1918-1963 Jaca Book
Milano 1963 paacuteg136 200 E Borgna Il tempo e la vita Feltrinelli Milano 2015 paacuteg 59
80
ou podem passar despercebidas a um jusprivatista pelo facto de as suas
classificaccedilotildees dos contratos se sustentarem mais em consideraccedilotildees teacutecnicas
que em consideraccedilotildees sociais
ldquoOs autores do livro demonstram de uma forma convincenterdquo
conclui Hiez ldquoque na actual sociedade de consumo o rendimento
constante natildeo eacute suficiente que eacute necessaacuterio de quando em quando
mobilizar quantias elevadas para fazer frente a circunstacircncias
excepcionais e que tais quantidas elevadas soacute podem ser obtidas
atraveacutes do creacutedito O creacutedito ao consumo acaba por desempenhar
uma funccedilatildeo anaacuteloga ao contrato de trabalhordquo
Javier Ariacuteas Varona preocupa-se sobretudo com a relaccedilatildeo entre creacutedito
e insolvecircncia fazendo sobressair a ligaccedilatildeo estabelecida entre o direito puacuteblico
e o direito privado mdash entre o direito da insolvecircncia na medida em que seja
direito puacuteblico e o direito do creacutedito [ao consumo] na medida em que seja
direito privado ldquoA ligaccedilatildeo entre o conceito de contratos duradouros essenciais
agrave existecircncia da pessoa os contratos de creacutedito e as instituiccedilotildees da insolvecircncia
natildeo eacute uma ligaccedilatildeo evidente mdash em todo o caso os autores do livro tornaram-
na transparente Os capiacutetulos sobre o creacutedito e a insolvecircncia abrem
perspectivas para o futuro ao ligarem o desenvolvimento geral do direito [dos
contratos] aos elementos estruturais do direito da insolvecircnciardquo O contrato
permite ou pode permitir uma resoluccedilatildeo dos problemas colocando os
processos de insolvecircncia (ex post) no contexto das relaccedilotildees contratuais (ex
ante) O problema estaria tatildeo-soacute na resistecircncia da legislaccedilatildeo e da
jurisprudecircncia mdash o actual direito do creacutedito ao consumo natildeo estaria como
deveria estar aberto agrave aplicaccedilatildeo da clausula rebus sic stantibus agraves condiccedilotildees
especiais da pessoa
Em todo o caso Ariacuteas Varona qualifica a perspectiva aberta pelo livro
como profundamente original permitindo-nos apreender o fenoacutemeno da
insolvecircncia [das pessoas singulares] de uma forma diferente da habitual
Explicitando a razatildeo de ser da relaccedilatildeo entre os trecircs tipos de contratos
diremos que na sociedade contemporecircna a relaccedilatildeo de trabalho deixou de ser
a relaccedilatildeo de que depende em exclusivo a vida livre e digna de cada pessoa
Se natildeo queremos qua tal dignidade e tal liberdade se transformem numa pura
e simples utopia devemos reconhecer a importacircncia dos actos de consumo por
que se ldquogastardquo o tempo presente ou futuro da vida das pessoas
Como fizemos no passado com as actividades produtivas (como o
trabalho) devemos no presente dar importatildencia ao consumo e ao tempo
O nosso trabalho poderaacute parecer incompleto mdash grandes aacutereas do
direito como os serviccedilos financeiros como as pensotildees por doenccedila ou por
velhice como os seguros ou como os sistemas de pagamentos parecem ter
81
sido arbitrarimente excluiacutedas do conceito de Life time contracts O problema
potildee-se analogamente para os serviccedilos puacuteblicos essenciais O contributo de
Frey Nybergh sublinha-o ao tratar de alguns aspectos do seu regime
Em resposta agrave acusaccedilatildeo de incompletude deveraacute esclarecer-se que os
trecircs tipos de contratos seleccionados satildeo soacute exemplos Os contratos de
trabalho de arrendamento e de creacutedito ao consumo satildeo soacute trecircs casos ainda que
paradigmaacuteticos de contratos que podem e devem coordenar-se ao conceito de
contratos duradouros essenciais agrave existacircncia da pessoa Natildeo satildeo se forma
nenhuma mdash e nunca pretenderam ser mdash uma enumeraccedilatildeo exaustiva O
conceito de Life time contracts eacute na verdade mais amplo que os conceitos
delimitadores dos trecircs sectores especiacuteficos do direito dos contratos
No direito do trabalho propusemos a extensatildeo da ideia a todos os
contratos em que a actividade intelectual ou manual de uma pessoa (scl o
trabalho) eacute aplicada para a obtenccedilatildeo de um rendimento (em regra para a
obtenccedilatildeo de um rendimento necessaacuterio agrave vida) no direito dos serviccedilos
financeiros propusemos a inclusatildeo de todos os contratos relacionados com o
uso do dinheiro para o consumo pessoal ou para o trabalho nos contratos de
locaccedilatildeo propusemos a inclusatildeo da locaccedilatildeo financeira de bens de consumo
(consumer leasing) Os contratos de locaccedilatildeo claacutessicos como p ex o contrato
de arrendamento [para habitaccedilatildeo] constituem um caso paradigmaacutetico de
contratos duradouros essenciais aacute existecircncia da pessoa os contratos de locaccedilatildeo
novos como p ex o contrato de locaccedilatildeo financeira de bens de consumo
constituem um caso talvez menos paradigmaacutetico todavia natildeo menos
significativo Em todo o caso os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilo necessaacuterios
para o consumo foram completamente omitidos O problema poderaacute ser
resolvido criando uma quarta aacuterea ou um quarto sector mdash os contratos de
prestaccedilatildeo de serviccedilo orientados para a satisfaccedilatildeo das necessidades essenciais
(como sejam os contratos de fornecimento de bens essenciais como sejam a
aacutegua ou a electricidade ou as comunicaccedilotildees)
Feito o alargamento da categoria dos contratos duradouros essenciais
agrave existecircncia da pessoa poderiacuteamos porventura abandonar a linguagem juriacutedica
e abandonando-a definir a aacuterea dos contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa de forma a abranger o acesso a e o uso de diferentes
formas de capital de diferentes coisas e de diferentes serviccedilos de diferentes
formas de capital (do acesso ao acesso ao capital atraveacutes da do trabalho da
produccedilatildeo e do creacutedito [dos serviccedilos financeiros]) de diferentes coisas (atraveacutes
dos ldquoantigosrdquo contratos de arrendamento [para habitaccedilatildeo] e dos novos
contratos de locaccedilatildeo financeira de bens de consumo) e de diferentes serviccedilos
(como a aacutegua a electricidade o telefone e as telecomunicaccedilotildees de massa) Os
contratos de trabalho de arrendamento e de creacutedito satildeo soacute os exemplos mais
82
claros e mais distintos de tais contratos simultaneamente duradouros (da-e-
para a vida) e essenciais para a satisfaccedilatildeo das necessidades humanas
O facto de termos incluiacutedo na definiccedilatildeo de Life time contracts uma
referecircncia agrave sua essencialidade para a satisfaccedilatildeo das necessidades humanas
fundamentais (basic needs) carece de alguma explicaccedilatildeo
Deve esclarecer-se em primeiro lugar que a referecircncia agraves
necessidades humanas fundamentais natildeo eacute o criteacuterio da classificaccedilatildeo
Os contratos natildeo se subsumem ao conceito de Life time contracts por
serem contratos essenciais agrave satisfaccedilatildeo das necessidades humanas
fundamentais (basic needs) soacute se lhe subsumem se forem contratos
duradouros e se por serem contratos duradouros tocarem o tempo da-e-para-
a-vida (por tocarem o life time) Em diferentes termos A referecircncia agraves
necessidades humanas fundamentais eacute menos a causa que o efeito de uma
adaptaccedilatildeo das formas contratuais ao tempo da-e-para-a-vida
Deve esclarecer-se em segundo lugar que a referecircncia agraves necessidades
humanas fundamentais natildeo eacute soacute por si suficiente
David Hiez alega com alguma razatildeo que ldquoo criteacuterio baseado na
conexatildeo entre o contrato e a realizaccedilatildeo pessoal do contrato eacute um criteacuterio
susceptiacutevel de uma extensatildeo difiacutecil quase impossiacutevel de delimitarrdquo
O problema pode e deve resolver-se atraveacutes de uma tipificaccedilatildeo dos
interesses relevantes para que um contrato deva incluir-se na categoria dos
Life time contracts Os termos ldquorelaccedilotildees sociais que tecircm por objecto
proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos
necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo
exigem uma densificaccedilatildeo e uma especificaccedilatildeo jurisprudenciais Entre os
criteacuterios relevantes para tal densificaccedilatildeo para tal especificaccedilatildeo encontra-se o
criteacuterio da conformidade com o sistema de direitos fundamentais O aplicador
do direito deve concretizar os termos da definiccedilatildeo aderindo estritamente aos
direitos fundamentais reconhecidos pelas tradiccedilotildees constitucionais
Em abono da afirmaccedilatildeo de que o problema soacute pode resolver-se atraveacutes
de uma tipificaccedilatildeo dos interesses relevantes podem deduzir-se dois
argumentos O primeiro relaciona-se com o princiacutepio geral da certeza e da
seguranccedila juriacutedicas e o segundo com a regra especiacutefica [do direito alematildeo da
responsabilidade civil] de acordo com a qual os danos natildeo patrimoniais soacute satildeo
indemnizaacuteveis nos casos previstos na lei (sect 253 do Coacutedigo Civil alematildeo)
Na Introduccedilatildeo ao nossso livro chamaacutemos ao caso a jurisprudecircncia do
Supremo Tribunal Federal alematildeo (do Bundesgerichtshof) para darmos um
exemplo de uma densificaccedilatildeo e especificaccedilatildeo jurisprudecircncias dos interesses
relevantes O Supremo Tribunal Federal alematildeo reconhece um direito agrave
83
indemnizaccedilatildeo dos danos natildeo patrimoniais incluindo os danos contratuais pela
privaccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo do uso (Nutzungsentschaumldigung) dos bens e serviccedilos
que satildeo essenciais para um estilo de vida econoacutemica e financeiramente
autoacutenomo (eigenwirtschaftliche Lebenshaltung)
O criteacuterio do estilo de vida econoacutemica e financeiramente autoacutenomo
deve em todo o caso alargar-se em termos de incluir todos os casos em que a
interrupccedilatildeo do acesso a certos bens e a certos serviccedilos tem um impacto
significativo sobre os fundamentos materiais da vida de uma pessoa
Entre os casos em que o Supremo Tribunal Federal reconhece um
direito agrave indemnizaccedilatildeo encontram-se p ex os danos causados pela
interrupccedilatildeo do acesso aacute Internet necessaacuterio para a utilizaccedilatildeo do e-mail201 Os
casos de responsabilidade pela privaccedilatildeo ou pela perturbaccedilatildeo do uso devem de
qualquer forma expandir-se de forma a incluir o uso de um aparelho de
televisatildeo ou de um computador incluindo de um computador portaacutetil ou de
uma bicicleta ou de um equipamento de cozinha ou de uma casa de feacuterias
Entre os casos em que o Supremo Tribunal Federal natildeo reconhece ou
natildeo deve reconhecer nenhum direito agrave indemnizaccedilatildeo estatildeo p ex os danos
causados pela privaccedilatildeo ou pela perturbaccedilatildeo do uso de uma piscina privada202
de uma autocaravana203 de um casaco de peles204 ou de um barco a motor205
III POR QUEcirc UM DIREITO DO CONTRATO (SOCIAL) [OU UM DIREITO
(SOCIAL) DO CONTRATO]
Os Life time contracts natildeo estatildeo sujeitos a um regime autoacutenomo nos
direitos nacionais nem no direito europeu nem muito menos no direito
comunitaacuterio Os tipos especiacuteficos de contrato como o contrato de
arrendamento ou o contrato de trabalho tecircm sido regulados pelos direitos
nacionais O tipo geral dos Life time contracts natildeo [O caso do tipo geral
contratos de longa duraccedilatildeo eacute de alguma forma um caso semelhante]
Os juristas da Europa (continental) tecircm-se esforccedilado por enunciar uma
espeacutecie de ldquoparte geral do direito dos contratos e das obrigaccedilotildees para a
[protecccedilatildeo da] parte mais fracardquo (allgemeiner Teil des Rechts des schwaumlcheren
201 BGHZ de 24 de janeiro de 2013 ndash III ZR 9812 in httpjurisbundesgerichtshofdecgi-
binrechtsprechungdocumentpyGericht=bghampArt=enampnr=63259amppos=0ampanz=1 202 BGHZ de 28 de fevereiro de 1980 mdash VII ZR 13173 203 BGHZ de 15 de dezembro de 1982 mdash VIII ZR 31580 204 BGHZ de 12 de fevereiro de 1975 mdash VIII ZR 1173 205 BGHZ de 15 de novembro de 1983
84
Partners)206 O problema estaacute em que a construccedilatildeo de um tipo geral a partir da
fragilidade ou da vulnerabilidade das partes suscita duas dificuldades [Em
primeiro lugar] o criteacuterio da fragilidade ou da vulnerabilidade tende a
favorecer simplesmente uma igualdade formal O direito da parte mais fraca
tende a concretizar-se em princiacutepios e em regras por que se pretende
compensar a assimetria designadamente a assimetria informacional entre as
partes de um contrato Em termos praacuteticos uma compensccedilatildeo da assimetria
designadamente da assimetria informacional corresponderia tatildeo-soacute a uma
generalizaccedilatildeo do actual estado de coisas mdash do actual conjunto dos princiacutepios
e das regras do direito comunitaacuterio relativos agrave protecccedilatildeo dos consumidores
[Em segundo lugar] o criteacuterio da fagilidade ou da vulnerabilidade natildeo parece
ser um criteacuterio particularmente selectivo (natildeo parece ter uma particular
capacidade de selecccedilatildeo) Como afirma Andrea Nicolussi na sua contribuiccedilatildeo
para o livro ldquonos contratos haacute sempre ou quase sempre uma parte que eacute mais
fraca que a outrardquo mdash O direito da parte mais fraca tende a ser um direito de
todos os contratos
Se o contributo da teoria juriacutedica europeia (continental) falha por
convocar um criteacuterio que natildeo eacute adequado o contributo da teoria econoacutemica
norte-americana e em especial da teoria dos contratos relacionais esse falha
por negar as necessidades existenciais das pessoas envolvidas
Os economistas dos Estados Unidos esses tecircm-se esforccedilado por
distinguir os contratos transaccionais e os contratos relacionais enunciando os
princiacutepios e as regras gerais de uma teoria dos relational contracts
Ora a teoria dos contratos relacionais tem um aspecto positivo
reconhece uma parte do problema mdash em todos os contratos de longa duraccedilatildeo
o direito deve atender agrave relaccedilatildeo deve atender ao contacto altamente interactivo
entre as partes mdash natildeo obstante o seu aspecto positivo a teoria dos contratos
relacionais tem um aspecto negativo natildeo reconhece como deveria
reconhecer a outra parte do problema Em alguns contratos de longa duraccedilatildeo
como sejam os contratos de arrendamento de creacutedito ou de trabalho o direito
206 F Gamillscheg ldquoZivilrechtliche Denkformen und die Entwicklung des
Individualarbeitsrechts Zum Verhaumlltnis von Arbeitsrecht und BGBrdquo in Archiv fuumlr die
civilistische Praxis 1976 paacutegs 197 ss (= Idem Ausgewaumlhlte Schriften zu Arbeitsrecht und
Rechtsvergleichung Nomos Baden-Baden 2006 paacutegs 124 ss) P Derleder
ldquoUnterlegenenschutz im Vertragsrecht Ein Modell fuumlr das Arbeitsrechtrdquo in Kristische
Justiz 1995 paacutegs 320 ss G Houmlhn Kompensation gestoumlrter Vertragsparitaumlt Beck Muumlnchen
1982) E Roppo ldquoParte generale del contratto contratti del consumatore e contratti
asimmetricirdquo in Rivista di diritto privato 2007 paacutegs 669 ss G Gitti G Villa (coord) Il
terzo contratto Il Mulino Bologna 2008
85
dos contratos deve atender agraves necessidades existenciais de uma das partes mdash
como sejam p ex o arrendataacuterio o devedor ou o trabalhador
Foram as insuficiecircncias da teoria juriacutedica e da teoria econoacutemica do
contrato que nos fizeram desenvolver um conjunto de princiacutepios e de regras
gerais capazes de reger os Life time contracts Natildeo podemos considerar tatildeo-
soacute a fase da formaccedilatildeo do contrato temos de considerar sobretudo as relaccedilotildees
constituiacutedas na fase da execuccedilatildeo do contrato Em especial natildeo podemos por
considerarmos tatildeo-soacute a fase da formaccedilatildeo do contrato privilegiar a vontade
das partes Os Life time contracts requerem sempre princiacutepios e regras
inderrogaacuteveis O ponto deve enfatizar-se em resposta agravequeles que como Hugh
Collins consideram que a posiccedilatildeo tomada pelos autores do livro natildeo eacute uma
posiccedilatildeo particularmente clara
David Hiez conclui que o Life time contract natildeo eacute (ainda natildeo eacute) um
tipo de contrato ldquoTrata-se de uma categoria abstracta trata-se ainda de uma
categoria intelectual mas natildeo se trata de uma categoria juriacutedica O seu
propoacutesito natildeo eacute o de produzir consequecircncias juriacutedicas imediatas Eacute sim o de
fazer reflectir sobre a orientaccedilatildeo do direito europeu dos contratos [O trabalho
desenvolvido eacute] por isso um trabalho de caraacutecter estritamente doutrinalrdquo
No presente momento histoacuterico a conclusatildeo ainda eacute plenamente
exacta Em todo o caso como eacute mais ou menos manifesto temos a esperanccedila
de que os nossos princiacutepios sejam recebidos por um direito geral dos contratos
e mais mdash temos a esperanccedila de que o sejam num futuro proacuteximo A
globalizaccedilatildeo mundial estaacute a produzir uma cada vez mais marcada integraccedilatildeo
indirecta produzida pelos mercados Eacute tempo de reflectirmos sobre a
oportunidade uma integraccedilatildeo directa produzida pelo direito
O nosso livro privilegia o direito dos contratos Entre a nossa
perspectiva e as perspectivas preconizadas em trabalhos precedentes sobre os
contratos de longa duraccedilatildeo haacute uma diferenccedila fundamental noacutes concentraacutemo-
nos sobre o direito dos contratos e natildeo como Grossi na combinaccedilatildeo do direito
dos contratos com o direito das coisas207 ou como Gierke na combinaccedilatildeo do
direito dos contratos com o direito das pessoas208
O direito do trabalho eacute a prova de que a forma contrato eacute ainda uma
forma conveniente e de que eacute porventura uma forma necessaacuteria
207 P Grossi Locatio ad longum tempus ndash Locazione e rapporti reali di godimento nella
problematica di diritto comune Morano Napoli 1963 paacuteg 26 208 O von Gierke Dauernde Schuldverhaumlltnisse in Jherings Jahrbuumlcher fuumlr die Dogmatik des
buumlrgerlichen Rechts vol 64 (1914) paacutegs 24 ss
86
Em primeiro lugar o paradigma do direito dos contratos permite ligar
a liberdade e a igualdade (formais) entre as partes
A aplicaccedilatildeo da forma contrato agraves relaccedilotildees de trabalho representa para
o trabalhador uma primeira garantia de que eacute ldquoportador de valores ligados agrave
liberdade do ser humanordquo (porteur de valeurs lieacutees agrave la liberteacute de lrsquohomme)209
Eacute evidente que se trata apenas e soacute de uma garantia negativa em todo
o caso mesmo que se trate apenas e soacute de uma garantia negativa e mesmo que
tal seja evidente eacute sempre uma garantia Sem uma contratualizaccedilatildeo poderia
dar-se o caso de a relaccedilatildeo de trabalho se constituir ab initio como uma relaccedilatildeo
juridicamente desequilibrada com uma contratualizaccedilatildeo tal caso natildeo pode
dar-se O contrato eacute uma garantiia que a relaccedilatildeo natildeo se constitua pelo menos
juridicamente como uma relaccedilatildeo desequilibrada
Em segundo lugar independentemente do significado positivo a forma
contrato tem um significado negativo O paradigma do direito ds coisas natildeo
permite representar a realidade de uma forma adequada e sobretudo natildeo
permite resolver os problemas postos pela realidade de uma forma justa
Natildeo permite por um lado representar a realidade de uma forma
adequada Natildeo pode pensar-se com realismo que o trabalhador seja titular de
uma posiccedilatildeo de proprietaacuterio ou sequer de uma posiccedilatildeo anaacuteloga aacute de
proprietaacuterio (natildeo pode p ex pensar-se que o trabalhador seja ldquoproprietaacuteriordquo
de um lugar de trabalho)
Natildeo permite por outro lado resolver os problemas postos pela
realidade de uma forma justa O paradigma do direito dos contratos reconhece
que a composiccedilatildeo das relaccedilotildees entre as partes deve orientar-se por princiacutepios
de justiccedila relacional O paradigma do direito das coisas natildeo o reconhece Ora
na parte da realidade seleccionada pelos princiacutepios e pelas regras do direito
dos contratos estatildeo sempre em causa dois e quase sempre (muito) mais de
dois direitos fundamentais210 Os princiacutepios e as regras de direitos
fundamentais devem ser compreendidos como ldquoprinciacutepiosrdquo e como
ldquoprinciacutepiosrdquo devem condicionar quer a conformaccedilatildeo dos actos legislativos
quer a conformaccedilatildeo dos actos jurisdicionais Os direitos fundamentais devem
aplicar-se (indirecta ou mediatamente) agraves relaccedilotildees juriacutedico-privadas atraveacutes
p ex da interpretaccedilatildeo das disposiccedilotildees legais211 Compreendendo-se os
209 G Lyon-Caen Deacutefense et illustration du contract de travail in Archives de Philosophie
du Droit vol 13 (1968) paacuteg 69 210 Redescobre-se assim a concepccedilatildeo aristoteacutelica de justiccedila mdash vide Aristoacuteteles Eacutetica a
Nicoacutemaco 211 Cf CW Canaris ldquoGrundrechte und Privatrechtrdquo in Archiv fuumlr die civilistische Praxis
vol 184 (1984) paacutegs 201 ss concordando com a jurisprudecircncia constitucional da Repuacuteblica
87
direitos fundamentais como ldquoprinciacutepiosrdquo a aplicaccedilatildeo dos direitos
fundamentais agraves relaccedilotildees juriacutedico-privadas deve sempre realizar-se sob o signo
do balanceamento da nobre arte do compromisso ou da ponderaccedilatildeo da
proportio mdash sob o signo das exigecircncias relacionais
O conceito de exigecircncias relacionais conteacutem em si ldquoelementos de
orientaccedilatildeordquo e ldquoelementos de respostardquo agraves questotildees sobre os valores212
reconhecendo-se como deve reconhecer-se que ldquoas questotildees sobre os valores
[hellip] podem reduzir-se a questotildees sobre as consequecircncias das respectivas
escolhas transferindo a discussatildeo para uma ordem de argumentaccedilotildees e de
valoraccedilotildees das quais eacute mais faacutecil controlar a racionalidaderdquo213
Hugh Collins opotildee um uacuteltimo obstaacuteculo agrave aplicaccedilatildeo do paradigma do
direito dos contratos agraves ldquorelaccedilotildees sociais que tecircm por objecto proporcionar ao
indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a
sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo
Estando em causa contratos essenciais agrave auto-realizaccedilatildeo pessoal
deveria reconhecer-se a cada ser humano um direito fundamental de acesso agraves
oportunidades proporcionadas pelo mercado Collins critica poreacutem a
convicccedilatildeo de que as normas que disciplinam o acesso aos mercados possam
ser conformadas como propotildeem os Principles on Life Time Contracts mdash as
normas que disciplinam o acesso aos mercados natildeo seriam suficientemente
fortes para proporcionar a cada um um tal acesso a tais mercados
O raciociacutenio de Hugh Collins natildeo deve sufragar-se por desvalorizar
injustificadamente a relaccedilatildeo entre direito privado e os sistemas de valores
colectivos O direito privado tem necessidade de ser completado de ser
integrado pelas poliacuteticas puacuteblicas para que o acesso aos bens aos serviccedilos ao
trabalho e aos rendimentos necessaacuterios para a auto-realizaccedilatildeo e para a
participaccedilatildeo na vida social seja como deve ser universal
Federal da Alemanha mdash M Ruffert ldquoDie Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts
zum Privatrechtrdquo in Juristen Zeitung 20088 paacutegs 389-390 212 G Vettori ldquoIl tempo dei dirittirdquo in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile 2014
paacuteg 91 213 L Mengoni Diritto e valori Il Mulino Bologna 1985 paacuteg 46 nota nordm 100
88
89
Uma introduccedilatildeo aos contratos existenciais
Nuno Manuel Pinto Oliveira
laquoWer den Rechtstaat will muszlig den Sozialstaat befuumlrworten wer
liberale Grundrechte einfordert muszlig soziale Rechte anerkennen und
wer die Privtrechtsgesellschaft postuliert muszlig deren soziale
Verantwortung respektierenraquo214
I INTRODUCcedilAtildeO O DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS COMO
DIREITO SOCIAL
Em LrsquoEacutetat Providence Franccedilois Ewald distingue dois tipos de direito
privado O direito privado ldquoclaacutessicordquo poderia chamar-se direito civil O direito
privado moderno poderia chamar-se p ex direito social215
Entre o direito civil e o direito social encontrar-se-ia duas diferenccedilas
fundamentais216 O direito civil dirigir-se-ia ao indiviacuteduo o direito social
dirigir-se-iacutea agrave ldquoclasserdquo ou ao ldquogrupordquo dirigindo-se ao indiviacuteduo o direito civil
seria um direito da igualdade dirigindo-se agrave ldquoclasserdquo ou ao ldquogrupordquo o direito
social seria um direito de desigualdades217 Ewald fala impressivamente de
um ldquodireito discriminatoacuteriordquo e de um um ldquodireito de preferecircnciasrdquo218
O actual direito europeu dos contratos inscreve-se (aparentemente) no
direito social em primeiro lugar como direito dos consumidores dirige-se a
uma ldquoclasserdquo ou a um ldquogrupordquo e em segundo lugar como direito de protecccedilatildeo
dos consumidores dirige-se agrave ldquoclasserdquo ou ao ldquogrupordquo dos consumidores para
os preferir O problema estaacute em que o projecto de um direito europeu dos
Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho 214 Joumlrg Neuner Privatrecht und Sozialstaat C H Beck Muumlnchen 1998 paacuteg 291 215 Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence Editions Grasset Paris 1986 mdash esp Capiacutetulo II mdash
Droit social (consultado em formato electroacutenico epub) paacutegs 554 ss 216 Franccedilois Ewald fala de trecircs diferenccedilas As duas primeiras afiguram-se essenciais a terceira
natildeo Ewald alega que o fundamento do direito civil eacute um fundamento filosoacutefico e que o
fundamento do direito social eacute um fundamento socioloacutegico mdash a alegaccedilatildeo eacute pelo menos
contestaacutevel 217 Cf Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 577 (ldquodroit des ineacutegaliteacutesrdquo) 218 Cf Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 579
90
contratos com os consumidores como direito de desigualdades
discriminaccedilotildees ou preferecircncias eacute hoje um projecto em crise
O conceito de um direito social seria um conceito perigoso por causa
da sua imprecisatildeo219 mdash e o projecto de uma justiccedila social atraveacutes p ex de
um direito de protecccedilatildeo do consumidor seria um projecto perigoso
Heinrich Honsell critica o princiacutepio de uma protecccedilatildeo do consumidor
por contribuir para a diminuiccedilatildeo da qualidade da legislaccedilatildeo de direito privado
O conceito de consumidor seria em si controverso ao aceitar-se que
todos os membros de uma ldquoclasserdquo ou de um ldquogrupordquo carecem de protecccedilatildeo
estaacute a rejeitar-se estaacute a renunciar-se a uma diferenciaccedilatildeo entre os membros
da ldquoclasserdquo ou do ldquogrupordquo em que haacute uma carecircncia de protecccedilatildeo ou uma
necessidade de protecccedilatildeo materialmente justificada e os membros da ldquoclasserdquo
ou do ldquogrupordquo em que natildeo haacute nenhuma necessidade de protecccedilatildeo220
Em texto colectivo subscrito p ex por Grigoleit Jansen ou
Zimmermann alega-se que o conceito de consumidor designa exclusivamente
uma ldquofunccedilatildeo socialrdquo que ldquoos seres humanos natildeo satildeo necessariamente lsquofraacutegeisrsquo
quando desempenham a funccedilatildeo social [de consumidores]rdquo mdash e que a
(alegada) fragilidade dos consumidores ldquonatildeo proporciona uma adequada
fundamentaccedilatildeo para que se tomem medidas de protecccedilatildeo dos consumidores
como normas imperativasrdquo A fragilidade dos consumidores seria
simplesmente ldquoa poorly reasoned artefactrdquo221 222
219 Cf designadamente Friedrich von Hayek Die Verfassung der Freiheit mdash apud Joumlrg
Neuner Privatrecht und Sozialstaat cit paacutegs 73-74 laquoQue realmente significa [a palavra
lsquosocialrsquo] ningueacutem sabe Sabe-se apenas que uma economia de mercado social natildeo eacute uma
economia de mercado que um Estado de direito social natildeo eacute um Estado de direito que uma
consciecircncia social natildeo eacute uma consciecircncia que uma justiccedila social natildeo eacute uma justiccedila mdash e receio
que uma democracia social natildeo seja uma democraciaraquo 220 Heinrich Honsell em ldquoDie Zukunft des Privatrechtsrdquo in Zeitschift fuumlr schweizerisches
Recht 2007 e sobretudo em ldquoDie Erosion des Privatrechts durch das Europarechtrdquo in ZIP
mdash Zeitschrift fuumlr Wirtschaftsrecht 2008 paacutegs 621-630 (623-624) 221 Horst Eidenmuumlller Florian Faust Hans-Christoph Grigoleit Nils Jansen Gerhard
Wagner Reinhard Zimmermann ldquoTowards a Revision of the Consumer-acquisrdquo in Common
Market Law Review vol 48 (2011) paacutegs 1077-1123 (= WWW
lthttppapersssrncomsol3paperscfmabstract_id=1807943gt) 222 Em termos semelhantes Joumlrg Neuner Privatrecht und Sozialstaat cit paacuteg 279 O
princiacutepio da protecccedilatildeo do consumidor soacute em parte e em parte restrita pode procurar a sua
legitimaccedilatildeo atraveacutes do princiacutepio da protecccedilatildeo da parte mais fraca O princiacutepio em causa
precisa de ser completado por consideraccedilotildees morais eacuteticas e pragmaacuteticas mdash designadamente
91
Zimmermann explica que a divisatildeo do direito privado em direito civil
e em direito do consumo seria ldquofatalrdquo para o sistema O direito civil ficaria
ldquopresordquo a um princiacutepio de liberdade e a um princiacutepio de igualdade (formais) e
o direito dos consumidores ao tentar ldquolibertar-serdquo dos princiacutepio de uma
liberdade e de igualdade ldquoformaisrdquo ficaria ldquopresordquo a um princiacutepio de negaccedilatildeo
da liberdade pela protecccedilatildeo do consumidor contra a sua fragilidade223
II O DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS COMO DIREITO CIVIL
Entre os contributos do direito europeu para o desenvolvimento do
direito dos contratos sobressaem duas directivas mdash a Directiva 199313CE
de 5 de Abril de 1993 e a Directiva 199944CE de 25 de Maio de 1999
A primeira pronuncia-se sobre o conteuacutedo dos contratos (sobre as
claacuteusulas abusivas) a segunda pronuncia-se sobre o cumprimento e o natildeo
cumprimento dos contratos [de compra e venda de bens de consumo]
Ora o Tribunal de Justiccedila em acoacuterdatildeos recentes sobre as duas
directivas propotildee-se superar a tese de que o direito europeu dos contratos eacute
um direito da desigualdade discriminando entre os sujeitos da relaccedilatildeo
contratual para proteger o consumidor A representaccedilatildeo do direito europeu
dos contratos como um direito ldquodiscriminatoacuteriordquo ou como um ldquodireito de
preferecircnciasrdquo orientado para a protecccedilatildeo dos interesses de um e soacute um dos
sujeitos da relaccedilatildeo contratual deveria ser abandonada em favor da sua
representaccedilatildeo como um direito ldquonatildeo discriminatoacuteriordquo orientado para um
equiliacutebrio justo
1 A JURISPRUDEcircNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTICcedilA SOBRE A DIRECTIVA
199313CEE DE 5 DE ABRIL DE 1993
O acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila de 14 de marccedilo de 2013 (caso Aziz)
pronunciou-se sobre o conceito de claacuteusula abusiva do art 3ordm
ldquouma claacuteusula contratual que natildeo tenha sido objecto de negociaccedilatildeo
individual eacute considerada abusiva quando a despeito da exigecircncia de
pela conveniecircncia de fazer recair o risco sobre a parte que tem a possibilidade de se proteger
contra o risco atraveacutes de um contrato de seguro 223 Reinhard Zimmermann ldquoContract Law Reform The German Experiencerdquo in Stefan
Vogenauer Stephen Weatherill (coord) The Harmonisation of European Contract Law
Implications for European Private Law Business and Legal Practice Hart Publisnhing
Oxford Portland (Oregon) 2006 paacutegs 71-87 (84-85)
92
boa feacute der origem a um desequiliacutebrio significativo em detrimento do
consumidor entre os direitos e [as] obrigaccedilotildees das partes
decorrentes do contratordquo
O primeiro problema consistia em concretizar o requisito do
ldquodesequiliacutebrio significativordquo O Tribunal de Justiccedila interpretou-o como
significando uma diferenccedila entre as normas contratuais e as normas legais
(dispositivas ou supletivas) Existindo uma diferenccedila (significativa) entre a
situaccedilatildeo em que as normas contratuais e a situaccedilatildeo em que as normas legais
(dispositivas ou supletivas) colocariam o consumidor haacute um desequiliacutebrio
significativo entre os direitos e os deveres das partes decorrentes do
contrato224
O segundo problema consistia em concretizar o requisito da
desconformidade com a boa feacute (ldquoa despeito da exigecircncia de boa feacuterdquo) O
Tribunal de Justiccedila interpretou-o como significando uma diferenccedila
injustificada
O desequiliacutebrio significativo em detrimento do consumidor poderia
ser justificado ou injustificado poderia ser justificado desde que fosse
adequado necessaacuterio e proporcionado agrave prossecuccedilatildeo de um fim legiacutetimo do
profissional poderia ser injustificado desde que natildeo fosse adequado ou natildeo
fosse necessaacuterio ou natildeo fosse proporcionado O desequiliacutebrio justificado seria
conforme agrave exigecircncia da boa feacute o desequiliacutebrio injustificado natildeo mdash dar-se-
ia ldquoa despeito da exigecircncia de boa feacuterdquo Se claacuteusula contratual natildeo negociada
causasse um desequiliacutebrio injustificado e soacute se causasse um desequiliacutebrio
injustificado seria uma claacuteusula abusiva
O conceito de boa feacute garantiria o ldquoequiliacutebrio justordquo entre os interesses
legiacutetimos do profissional e os interesses legiacutetimos do consumidor mdash por um
lado protegeria o ldquointeresse legiacutetimordquo do profissional ldquonuma configuraccedilatildeo das
suas relaccedilotildees contratuais diferente da leirdquo225 mdash por outro lado protegeria o
224 Cf designadamente Stefan Grundmann ldquoThe General Clause or Standard in EC Contract
Law Directivas mdash A Survey on Some Important Legal Measures and Aspects in EC Lawrdquo in
Stefan Grundmann Denis Mazeaud (coord) General Clauses and Standards in European
Contract Law Kluwer Law International The Hague 2006 paacutegs 141-161 (145) ldquoThe most
important element in value judgements (abuse of rights) is where the party setting the
standard terms deviates considerably from default ruleshelliprdquo 225 Cf conclusotildees da advogada-geral Julianne Kokott no processo C-41511 (Aziz) mdash nordm 73
com a distinccedilatildeo entre o primeiro requisito (ldquodesequiliacutebrio significativo em detrimento do
consumidor entre os direitos e [as] obrigaccedilotildees das partes decorrentes do contratordquo) e o
segundo requisito (ldquoa despeito da exigecircncia de boa feacuterdquo) ldquogarante‐se o princiacutepio da liberdade
93
ldquointeresse legiacutetimordquo do consumidor em que a configuraccedilatildeo das contratuais natildeo
excedesse os limites da proporcionalidade
2 A JURISPRUDEcircNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTICcedilA SOBRE A DIRECTIVA
199944CE DE 25 DE MAIO DE 1999
O acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila de 16 de junho de 2011 (caso Weber
Putz) pronunciou-se sobre duas questotildees mdash sobre o conceito de ldquoreposiccedilatildeo
da conformidaderdquo atraveacutes da substituiccedilatildeo da coisa do art 3ordm nordm 2 e sobre o
conceito de desproporccedilatildeo do art 3ordm nordm 3 da Directiva 199944CE
O art 3ordm nordm 2 designa dois modos de ldquoreposiccedilatildeo da conformidaderdquo
com o contrato mdash a reparaccedilatildeo e a substituiccedilatildeo do bem ldquonatildeo conformerdquo
Caso o consumidor pudesse optar por qualquer um dos dois modos de
ldquoreposiccedilatildeo da conformidaderdquo e o fizesse o profissional poderaacute opor-se-lhe
alegando a desproporccedilatildeo relativa Caso o consumidor soacute pudesse optar por
um dos dois modos de ldquoreposiccedilatildeo da conformidaderdquo perguntava-se o
profissional poderaacute opor-se-lhe alegando a desproporccedilatildeo absoluta
O problema dependia da representaccedilatildeo da directiva como uma
directiva ldquodiscriminatoacuteriardquo orientada para a protecccedilatildeo dos interesses de uma
e soacute de uma das partes ou como uma directiva ldquonatildeo discriminatoacuteriardquo
orientada para o ldquoequiliacutebrio justordquo entre os interesses das duas partes
Entendendo-se que o fim da directiva eacute a protecccedilatildeo do consumidor a
resposta negativa seria (deveria ser) evidente O profissional natildeo poderia opor
a desproporccedilatildeo absoluta Ententendo-se que o fim da directiva eacute
simultaneamente a protecccedilatildeo do consumidor e do profissional a resposta
negativa natildeo seria evidente mdash ou pelo menos tatildeo evidente
O advogado-geral Jan Mazak dizia que o fim da directiva era
simultaneamente a protecccedilatildeo do consumidor e do profissional
ldquoComo qualquer outro sistema juriacutedico avanccedilado que regul[asse] os
direitos e obrigaccedilotildees do comprador e do vendedor decorrentes de um
cumprimento [defeituoso] o esquema de soluccedilotildees [hellip] da directiva
contratual e reconhece‐se que as partes possuem frequentemente um interesse legiacutetimo numa
configuraccedilatildeo das suas relaccedilotildees contratuais diferente da leirdquo
94
natildeo pode[ria] de modo algum favorecer nem o consumidor nem o
vendedorrdquo226 227
O Tribunal de Justiccedila ainda que natildeo subscrevesse completamente com
as conclusotildees do advogado-geral228 sufragou a tese do ldquoequiliacutebrio justordquo mdash
O fim da Directiva 199944CE consistiria (teria de consistir) em alcanccedilar um
ldquoequiliacutebrio justordquo atendendo designadamente a consideraccedilotildees de ordem
econoacutemica deduzidas pelo profissional (= deduzidas pelo vendedor)229
O raciociacutenio do Tribunal de Justiccedila conduz-nos agrave conclusatildeo de que as
directivas de protecccedilatildeo do consumidor satildeo simultaneamente directivas de
protecccedilatildeo do consumidor e directivas de protecccedilatildeo do profissional Entre os
direitos atribuiacutedos pelas directivas de protecccedilatildeo do consumidor estatildeo (podem
estar) direitos do profissional (p ex direitos do vendedor)
Face ao acoacuterdatildeo de 16 de Junho de 2011 poderaacute p ex perguntar-se
se o art 4ordm nordm 1 do Decreto-Lei nordm 672003 de 8 de Abril [alterado pelo
Decreto-Lei nordm 842008 de 21 de Maio] ao consagrar uma relaccedilatildeo de
alternatividade entre a reparaccedilatildeo da coisa a substituiccedilatildeo da coisa a reduccedilatildeo
do preccedilo e a resoluccedilatildeo do contrato ainda seraacute compatiacutevel com a directiva O
art 3ordm nordm 6 da Directiva 199944CE natildeo teraacute porventura pretendido dar ao
profissional (ao vendedor) o direito a uma segunda oportunidade (right to
cure)230
226 Conclusotildees do advogado-geral Jan Mazak nos processos C‑6509 (Gebr Weber) e C‑
8709 (Ingrid Putz) mdash paraacutegrafo nordm 30 227 Entre os corolaacuterios do ldquoequiliacutebrio justordquo estaria a protecccedilatildeo do profissional contra custos
desproporcionados ou excessivos O profissional poderia opor ao consumidor a desproporccedilatildeo
absoluta 228 Entre o advogado-geral e o tribunal havia tatildeo-soacute uma diferenccedila O advogado-geral alegava
que o ldquoequiliacutebrio justordquo exigia uma protecccedilatildeo do profissional contra os custos
desproporcionados ou excessivos O tribunal decidiu que natildeo mdash que o profissional natildeo
poderia opor ao consumidor a desproporccedilatildeo absoluta 229 Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila de 16 de junho de 2011 nos processos C‑6509 (Gebr
Weber) e C‑8709 (Ingrid Putz) mdash paraacutegrafo nordm 75 230 A favor da tese de que o art 3ordm da Directiva 199944CE daacute ao profissional o direito a duas
oportunidades Peter Rott ldquoMinimum Harmonisation for the Completion of the Internal
Market The Example of Consumer Sales Lawrdquo in Common Market Law Review vol 40
(2003) paacutegs 1107-1135 e tendencialmente Stefan Grundmann ldquoRegulating Breach of
Contract mdash The Right to Reject Performance by the Party in Breachrdquo in European Review
of Contract Law vol 2 (2007) paacutegs 121-149 contra Andrea Nicolussi ldquoEtica del contratto
e lsquocontratti di durata per lrsquoesistenza della personarsquordquo in Luca Nogler Udo Reifner (coord)
Life Time Contracts Eleven International Publishing The Hague 2014 paacutegs 123-167 (135)
95
III O DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS COMO DIREITO
CIVIL rdquoMATERIALIZADOrdquo
O conceito de equiliacutebrio justo deve compreender-se relacionando-o
com a alteraccedilatildeo com a mudanccedila ou com a transiccedilatildeo de paradigmas mdash do
paradigma de um direito privado formal para um direito privado material231
O paradigma de um direito privado formal centrado em
ldquoabstractismosrdquo232 ou seja centrado em conceitos abstractos de pessoa de
dignidade e de liberdade e dirigido (soacute) para realizaccedilatildeo da liberdade
individual tende a ser insensiacutevel aos contextos sociais em que a liberdade e a
igualdade hatildeo-de realizar-se tende a afirmar os princiacutepios de uma liberdade
formal de uma igualdade formal e de uma justiccedila formal (justiccedila
procedimental)
ldquola garanzia in forma specifica che il consumatore puograve far valere in base alla disciplina
europea della vendita dei beni di consumo non puograve essere concepita come uno strumento per
vincolarlo al contratto impedendogli di tornare sul mercato ma la misura piugrave adeguata
affincheacute il venditore si faccia carico della specifico interesse del consumatore al benerdquo 231 Cf Franz Wieacker Histoacuteria do direito privado moderno (tiacutetulo original
Privatrechtsgeschichte der Neuzeit unter besonderer Beruumlcksichtigung der deutschen
Entwicklung) 2ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995 paacutegs 679-722 Juumlrgen
Habermas Fatti e norme Contributi a una teoria discorsiva del diritto e della democrazia
(tiacutetulo original Faktizitaumlt und Geltung Beitraumlge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaats) Milan Guerini 1996 paacutegs 463-484 Claus-Wilhelm Canaris
ldquoWandlungen des Schuldvertragsrechts mdash Tendenzen zu seiner Materialisierungldquo in Archiv
fuumlr die civilistische Praxis vol 200 (2000) paacutegs 273-364 Gralf-Peter Calliess ldquoDie Zukunft
der Privatautonomie Zur neueren Entwicklung eines gemeineuropaumlischen Rechtsprinzipsrdquo
in Jahrbuch junger Zivilrechtswissenschaftler 2000 mdash Prinzipien des Privatrechts und
Rechtsvereinheitlichung Richard Boorberg Verlag Stuttgart Muumlnchen Hannover Berlin
Weimar Dresden 2001 paacutegs 85-110 Stefan Grundmann ldquoEuropean Contract Law(s) mdash Of
What Colourrdquo in European Review of Contract Law vol 1 (2005) paacutegs 184-210 Marietta
Auer Materialisierung Flexibilisierung Richterfreiheit Generalklauseln im Spiegel der
Antinomien des Privatrechtsdenken J C B Mohr (Paul Siebeck) Tuumlbingen 2005 Michael
Martinek ldquoVertragsrechtstheorie und Burgerliches Gesetzbuchrdquo (2005) in WWW
lthttparchivjurauni-saarlanddeprojekteBibliothektextphpid=375sdfootnote7symgt
Ralf Michaels ldquoRollen und Rollenverstandnisse im transnationalen Privatrechtrdquo (2011) in
WWW lt httppapersssrncomsol3paperscfmabstract_id=1938441gt paacutegs 29-31 Stefan
Grundmann ldquoThe Future of Contract Lawrdquo in European Review of Contract Law vol 6
(2011) paacutegs 490-527 (sobretudo pp 500-509) 232 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica 2ordf ed
Coimbra Editora Coimbra 1955 paacuteg 367
96
O paradigma de um direito privado material centrado em conceitos
(mais) concretos de pessoa de dignidade e de liberdade e dirigido para a
realizaccedilatildeo simultacircnea da liberdade individual e da justiccedila social tende a ser
sensiacutevel aos contextos sociais em que a liberdade e a igualdade hatildeo-de realizar-
se tende a negar os princiacutepios de uma liberdade formal de uma igualdade
formal eou de uma justiccedila formal (procedimental) para os superar233
Habermas fala impressivamente de uma ldquomudanccedila na percepccedilatildeo dos
contextos sociais nos quais a autonomia [ou a liberdade] de cada um deve
encontrar igual realizaccedilatildeordquo234 de que decorre uma ldquoregulamentaccedilatildeo
intencional superior agraves duas partesrdquo235 destinada a compensar as disfunccedilotildees
do mercado favorecendo quem estaacute em posiccedilatildeo mais fraacutegil236
Entre a coordenaccedilatildeo do direito europeu dos contratos ao direito civil
mdashldquomaterializadordquo mdash ou ao direito social haacute tatildeo-soacute uma diferenccedila
O direito social orienta-se por criteacuterios de carecircncia de protecccedilatildeo ou de
necessidade de protecccedilatildeo relacionados com os sujeitos mdash com as pessoas
com as ldquoclassesrdquo ou com os ldquogruposrdquo de pessoas carecidas de protecccedilatildeo237 O
direito civil orienta-se por criteacuterios de carecircncia de protecccedilatildeo ou de
necessidade de protecccedilatildeo relacionados com as situaccedilotildees mdash com os ldquocontextos
sociaisrdquo ou com os ldquocontextos situacionaisrdquo da liberdade238
233 Criticando o termo ldquomaterializaccedilatildeordquo Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 764
ldquoLrsquoexpression est commode elle est mauvaise par les confusions auxquelles elle invite En
effet si de nouveaux sujets et objets deviennent juridiquement pertinents cela ne tient pas tant
aacute une reacutevolte des faits contre un droit trop formel qursquoagrave une transformation de la rationaliteacute
juridique qui permet leur juridicisationrdquo 234 Juumlrgen Habermas Fatti e norme cit paacuteg 474 235 G W F Hegel Princiacutepios de filosofia do direito Martins Fontes Satildeo Paulo 1997 paacutegs
204-205 236 Juumlrgen Habermas Fatti e norme cit paacuteg 478 237 Joumlrg Neuner fala de uma compensaccedilatildeo de desigualdades determinadas de forma geral e
abstracta (Privatrecht und Sozialstaat cit paacuteg 276 ldquoKompensation abstrakter-generell
Ungleichheitenrdquo) 238 Joumlrg Neuner fala de uma compensaccedilatildeo de deficits determinados de forma individual e
concreta e relacionados com o processo de decisatildeo (Privatrecht und Sozialstaat cit paacuteg 274
ldquoKompensation konkret-entscheidungsbezogener Defiziterdquo)
97
IV O CONTRIBUTO DOS PRINCIacutePIOS SOBRE OS CONTRATOS
DURADOUROS ESSENCIAIS Agrave EXISTAcircNCIA DA PESSOA PARA A
MATERIALIZACcedilAtildeO DO DIREITO CIVIL
Em texto recente Stefan Grundmann apresenta o direito dos contratos
do futuro como um direito com uma diferenciaccedilatildeo acrescida ou reforccedilada
dentro de um sistema de princiacutepios e de regras Os actuais criteacuterios de
diferenciaccedilatildeo (entre ldquoclassesrdquo ou ldquogruposrdquo de pessoas) deveriam ser
completados por novos criteacuterios mdash considerando designadamente os tipos de
contratos e os tipos de situaccedilotildees em que se encontram os sujeitos da relaccedilatildeo
contratual
Grundmann propotildee que a sistematizaccedilatildeo do direito dos contratos em
torno de duas distinccedilotildees Em primeiro lugar da distinccedilatildeo entre os contratos
negociados e os contratos natildeo negociados Em segundo lugar da distinccedilatildeo
entre os contratos de execuccedilatildeo instantacircnea (spot contracts) e os contratos de
execuccedilatildeo duradoura (long-term contracts)239 Os princiacutepios e as regras de
direito civil sobre o conteuacutedo sobre o cumprimento e sobre o natildeo
cumprimento dos contratos de execuccedilatildeo instantantacircnea dos spot contracts
natildeo poderiam aplicar-se aos contratos de execuccedilatildeo duradoura A presunccedilatildeo de
semelhanccedila (presumptio similitatis) entre os dois tipos de relaccedilotildees contratuais
seria pura e simplesmente uma presunccedilatildeo errada240
Os Princiacutepios relativos aos contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa propotildeem-se integrar as duas distinccedilotildees desenhadas por
Stefan Grundmann com uma terceira distinccedilatildeo mdash entre os contratos
eticamente irrelevantes (eticamente neutros) e os contratos eticamente
relevantes por serem necessaacuterios para a auto-realizaccedilatildeo da pessoa humana241
O paradigma dos contratos de execuccedilatildeo instantatildenea eticamente
irrelevantes (eticamente neutros) concentrava-se no procedimento de
conformaccedilatildeo do conteuacutedo do contrato e nos resultados do procedimento de
conformaccedilatildeo do conteuacutedo do contrato O significado da justiccedila contratual
quando aplicada ao procedimento relacionava-se com uma ideia de liberdade
e quando aplicada aos resultados relacionava-se com uma ideia de
proporcionalidade mdash o resultado seria justo desde que entre a prestaccedilatildeo e a
239 Stefan Grundmann ldquoThe Future of Contract Lawrdquo cit paacutegs 515-518 240 Stefan Grundmann ldquoThe Future of Contract Lawrdquo cit paacutegs 523-524 241 Cf desenvolvidamente Luca Nogler Udo Reifner ldquoIntroduction The New Dimension of
Life Time in the Law of Contracts and Obligationsrdquo in Luca Nogler Udo Reifner (coord)
Life Time Contracts Eleven International Publishing The Hague 2014 paacutegs 1-71 e Helena
Klinger ldquoLebenszeitvertrage mdash Natur und Ethikrdquo in Luca Nogler Udo Reifner (coord)
Life Time Contracts Eleven International Publishing The Hague 2014 paacutegs 189-220
98
contraprestaccedilatildeo houvesse uma relaccedilatildeo de proporcionalidade O paradigma dos
contratos (de execuccedilatildeo duradoura) eticamente relevantes por serem contratos
essenciais para a auto-realizaccedilatildeo da pessoa humana esse chama a atenccedilatildeo
para pelo menos trecircs coisas
Em primeiro lugar para o tema do acesso ao contrato (para o acesso
atraveacutes do contrato aos bens e aos serviccedilos essenciais agrave auto-realizaccedilatildeo da
pessoa) Em segundo lugar para o tema da justiccedila na relaccedilatildeo entre os sujeitos
da relaccedilatildeo contratual Em terceiro lugar para o tema da justiccedila na relaccedilatildeo
entre todos os sujeitos de todas as relaccedilotildees econoacutemicas e sociais Estando em
causa contratos existenciais cada relaccedilatildeo contratual eacute (soacute) uma fracccedilatildeo da
totalidade de relaccedilotildees da vida econoacutemica e social242
O 1ordm princiacutepio afirma-o ao colocar entre os fins dos ldquocontratos
existenciaisrdquo a participaccedilatildeo na vida social O 14ordm e o 15ordm princiacutepios
confirmam-no ao consagrar garantias de um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida
econoacutemica e de um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida social
Os princiacutepios da liberdade geral de agir e da liberdade especiacutefica de
contratar natildeo satildeo adequados ou pelo menos natildeo satildeo suficientes O direito ao
delegar a competecircncia para decidir o acesso aos bens e aos serviccedilos
fundamentais na economia faria com que houvesse um perigo de
discriminaccedilatildeo ou um perigo de exclusatildeo ainda que natildeo houvesse nem
discriminaccedilatildeo nem exclusatildeo sempre poderia haver um perigo de que a
conformaccedilatildeo do contrato pusesse em perigo a auto-realizaccedilatildeo da pessoa a
sua participaccedilatildeo na vida econoacutemica ou a sua participaccedilatildeo na vida social
Como o 8ordm princiacutepio propotildee que o direito de acesso atraveacutes do contrato aos
bens e aos serviccedilos essenciais tenha a dignidade de um direito fundamental
dir-se-aacute o seguinte os princiacutepios da liberdade de agir e da liberdade de
contratar natildeo satildeo ou pelo menos podem natildeo ser suficientes para
proporcionar um resultado conforme aos direitos fundamentais
Entre as afirmaccedilotildees mais comuns estaacute a de que o personalismo eacutetico eacute
ou pelo menos deve ser o fundamento do direito civil243 se o termo
242 Cf Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 558 ldquoAlors que le contrat classique
srsquoanalyse comme la relation immeacutediate drsquoindividu agrave individu souverains et autonomes [hellip]
dans le contrat de droit social le tout a une existence propre et indeacutependante des parties mdash ce
nrsquoest plus lrsquoEacutetat mais la societeacute mdash et les parties ne peuvent jamais srsquoobliger directement sans
passer par la meacutediation du toutrdquo 243 Cf Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts 9ordf ed C H
Beck Muumlnchen 2004 paacuteg 21 ldquoHinter dem BGB seiner Grundbegriffen und seinen
grundlegenden Wertungen steht der ethische Personalismus als Menschenbild den seine
Verfasser ohne es ausdrucklich auszusprechen als selbstverstandlich vorausgesetzt habenrdquo
99
personalismo eacutetico tem algum significado soacute pode ser o seguinte O direito
civil deve contribuir para proporcionar a cada concreta pessoa o acesso aos
bens e aos serviccedilos essenciais deve contribuir para proporcionar a cada
concreta pessoa o acesso agraves relaccedilotildees essenciais para a sua auto-realizaccedilatildeo e
para a sua participaccedilatildeo na vida econoacutemica e na vida social 244 Se os contratos
eticamente irrelevantes podem ser soacute contratos de liberdade os contratos
eticamente relevantes essenciais para a auto-realizaccedilatildeo da pessoa soacute podem
ser contratos de solidariedade245 246
244 Cf Nuno Manuel Pinto Oliveira ldquoOs princiacutepios de um lsquopersonalismo eacuteticorsquo como projecto
de lsquomaterializaccedilatildeorsquo do direito privadordquo in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Joseacute
Lebre de Freitas Coimbra Editora Coimbra 2013 245 Expressatildeo de Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacutegs 446 ss mdash ainda que dentro de
um contexto diferente Ewald fala de um contrato social de solidariedade no texto fala-se de
um contrato individual de solidariedade 246 Cf 5ordm princiacutepio ldquoO facto de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem bens ou serviccedilos
necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo das necessidades essenciais relacionadas com o consumo ou com a
habitaccedilatildeo ou de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem uma quantia em dinheiro [no quadro
de uma relaccedilatildeo de creacutedito ou de uma relaccedilatildeo de trabalho] implica um dever de protecccedilatildeo da
pessoa do consumidor ou da pessoa do trabalhador como partes mais fracas da relaccedilatildeo
contratualrdquo mdash O texto da versatildeo italiana eacute particularmente impressivo por relacionar o o
dever de protecccedilatildeo com um dever de solidaridade ao referir a ldquodisponibilidade [do prestador
de bens ou serviccedilos] para se encarregar de modo solidaacuterio da protecccedilatildeo da parte mais fraca
considerando a sua integridade fiacutesica e moralrdquo
100
101
Seraacute a negociaccedilatildeo coletiva desejaacutevel no contexto dos
life time contracts
Antoacutenio Agostinho Guedes
SUMAacuteRIO 1 Introduccedilatildeo Enunciado da questatildeo 2 Para que serve o
Direito Valores normas e conflitos de interesse 3 Os ldquoprinciacutepiosrdquo ligados
aos Life Time Contracts 4 A negociaccedilatildeo coletiva e os seus perigos
1 Numa aproximaccedilatildeo ao conceito de Life Time Contracts Luca
Nogler e Udo Reifner apontam para uma ideia de contratos que desempenham
um papel fundamental no dia-a-dia e existecircncia das pessoas contratos que
criam relaccedilotildees sociais de longo prazo atraveacutes dos quais se adquirem bens e
serviccedilos oportunidades de trabalho e de rendimento importantes para a
autorrealizaccedilatildeo de cada pessoa e para a sua participaccedilatildeo plena na
comunidade247
Estariam em causa certos contratos aos quais os autores recusam
aplicar a velha loacutegica liberal do contrato de troca (em sentido amplo) de
mercadoria ou de serviccedilos por dinheiro tratado como uma pura transaccedilatildeo
comercial de execuccedilatildeo instantacircnea que se esgota e extingue no ato de
cumprimento
Referindo-se agraves iniciativas das instituiccedilotildees da Uniatildeo Europeia
especialmente agraves Diretivas sobre proteccedilatildeo dos consumidores creacutedito ao
consumo e relaccedilotildees laborais os autores e o restante grupo de trabalho numa
O presente estudo corresponde genericamente ao registo escrito da comunicaccedilatildeo
apresentada no acircmbito do coloacutequio denominado ldquoColoacutequio Internacional em Torno dos Life
Time Contractsrdquo promovido pelo centro de investigaccedilatildeo Direitos Humanos ndash Centro de
Investigaccedilatildeo Interdisciplinar cuja coordenaccedilatildeo cientiacutefica esteve a cargo do Doutor Nuno
Manuel Pinto de Oliveira e da Doutora Benedita Mac Crorie e que teve lugar na cidade de
Braga em maio de 2015 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Catoacutelica Portuguesa (UCP) Escola do
Porto e investigador do Catoacutelica Research Centre for the Future of Law - Centro de Estudos
e Investigaccedilatildeo em Direito 247 Introduction The New Dimension of Life Time in the Law of Contracts and Obligations
in Life Time Contracts ndash Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer
Credit Law Eleven International Publishing (versatildeo e-book) paacuteg 41
102
declaraccedilatildeo conjunta248 criticam o facto de tais iniciativas reduzirem os Life
Time Contracts a contratos sinalagmaacuteticos relativos a prestaccedilotildees presentes
tomando como ponto de partida o modelo do contrato de compra e venda
Justamente com o objetivo de pocircr em relevo as diferenccedilas entre aqueles
contratos e os simples contratos comerciais de troca o grupo EuSoCo
(European Social Contract) elaborou um conjunto de princiacutepios (em sentido
amplo) que seriam privativos dos Life Time Contracts e enunciou-os na obra
coletiva que temos vindo a citar249
Nessa enunciaccedilatildeo e para aleacutem de muitos outros aspetos relevantes
destacaria a adoccedilatildeo de uma noccedilatildeo de Life Time Contracts segundo a qual estes
seratildeo contratos ldquoduradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa [hellip] relaccedilotildees
sociais que tecircm por objeto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o
trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a sua autorrealizaccedilatildeo e para a sua
participaccedilatildeo na vida socialrdquo250
Destaco tambeacutem o princiacutepio enunciado em seacutetimo lugar (Collective
and ethical dimensions) de acordo com o qual os ldquoconsumidores e os
trabalhadores tecircm o direito de exigir do Estado o reconhecimento de sistemas
coletivos de representaccedilatildeo (associaccedilotildees de consumidores ou associaccedilotildees
sindicais)rdquo ldquotecircm o direito de exigir do Estado o reconhecimento e o respeito
pelos sistemas de valores coletivos como aqueles que satildeo designados pelos
conceitos de boa feacute e de bons costumesrdquo estes ldquosistemas de valores coletivos
devem aplicar-se em todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde o acesso aos
bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua adaptaccedilatildeomodificaccedilatildeo e agrave
sua extinccedilatildeordquo251
Este princiacutepio assim enunciado levanta algumas duacutevidas
Naturalmente natildeo sofre contestaccedilatildeo a ideia de que consumidores e
trabalhadores tecircm o direito de se organizar em associaccedilotildees ou outros
mecanismos de representaccedilatildeo coletiva e que o Estado deve reconhecer a tais
organizaccedilotildees legitimidade para essa representaccedilatildeo eacute aliaacutes o que decorre da
nossa Constituiccedilatildeo designadamente dos arts 60ordm 55ordm e 56ordm
A questatildeo que se me coloca neste acircmbito eacute a da saber ateacute onde se pode
admitir a intervenccedilatildeo de tais associaccedilotildees e mecanismos de representaccedilatildeo
248 Declaration in Life Time Contracts hellip cit paacuteg 32 249 Paacutegs 8 e ss 250 Extratos retirados da traduccedilatildeo preliminar para portuguecircs dos ldquoPrinciacutepios Gerais Sobre os
Contratos Duradouros Essenciais agrave Existecircncia da Pessoardquo preparada pelos coordenadores
cientiacuteficos do coloacutequio e distribuiacuteda aos participantes 251 Trad cit
103
coletiva nomeadamente se essa intervenccedilatildeo deve ser admitida desde logo na
proacutepria conformaccedilatildeo das normas reguladoras dos Life Time Contracts e desta
forma na proacutepria concretizaccedilatildeo atraveacutes da lei do que sejam os ldquovalores
coletivosrdquo que ldquodevem aplicar-se em todas as fases da relaccedilatildeo contratual
desde o acesso aos bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua
adaptaccedilatildeomodificaccedilatildeo e agrave sua extinccedilatildeordquo
Satildeo estas as questotildees sobre as quais me proponho refletir sendo certo
que as respostas encontradas seratildeo necessariamente determinadas pela minha
preacute-compreensatildeo do fenoacutemeno juriacutedico e especialmente do modo como o
legislador se acha vinculado aos valores juriacutedicos
2 De uma forma simples podemos dizer que o primeiro objetivo do
Direito eacute antes de mais resolver (e prevenir) conflitos de interesse segundo
um criteacuterio de justiccedila252
Na verdade enquanto ser autoacutenomo ldquoo homem procura realizar as
suas oportunidades conforme os seus interesses proacuteprios (e nem sempre o faz
por meios honestos ou processos leais) Mas esta satisfaccedilatildeo de interesses soacute
lhe eacute possiacutevel em sociedade quer dizer em intercacircmbio com outros homens
O homem eacute um ser social que apenas na convivecircncia com os outros (p ex na
famiacutelia na escola no trabalho nos tempos de lazer) pode evoluir e realizar-
se Eacute esta sua natureza ambivalente como indiviacuteduo autoacutenomo e ser social a
lsquosociabilidade natildeo-socialrsquo no dizer de Kant que explica as diversidades de
interesses as quais podem conduzir a tensotildees tensotildees essas que surgem tanto
entre os homens entre si como entre o homem e a sociedade a comunidade
em que se insere Estas tensotildees resultantes de interesses divergentes se por
um lado se revelam como estimulantes e dinamizadoras podem por outro lado
assumir a extensatildeo de conflitosrdquo253
Nas sociedades ocidentais este objetivo de resolver e prevenir
conflitos de interesse entre os membros da sociedade eacute normalmente
prosseguido pela criaccedilatildeo de normas gerais e abstratas por parte dos oacutergatildeos
252 Como bem refere ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO Teoria Geral do Direito Civil ndash
Relatoacuterio in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa vol XXIX (1988)
paacuteg 275 253 Heinrich Houmlrster A Parte Geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs ndash Teoria Geral do Direito
Civil Almedina 1992 paacuteg 7
104
poliacuteticos da comunidade as quais satildeo depois aplicadas pelos tribunais na
resoluccedilatildeo dos singulares conflitos de interesse254
Naturalmente que a norma legal natildeo vale apenas por si ou pela
legitimidade poliacutetica do oacutergatildeo que a criou essa norma vale antes de mais
porque encerra uma pretensatildeo de justiccedila ou seja porque liga a uma certa
situaccedilatildeo tiacutepica de conflito de interesses (descrita na sua hipoacutetese legal) a
soluccedilatildeo que o legislador entende ser a soluccedilatildeo justa para esse tipo de conflito
Natildeo eacute este o momento nem o lugar para ensaiar uma definiccedilatildeo de
Justiccedila no sentido acabado de apontar aliaacutes as tentativas de definiccedilatildeo da
Justiccedila tecircm ocupado mais os filoacutesofos do que os juristas255 256
A preocupaccedilatildeo destes (dos juristas) tem-se situado mais ao niacutevel da
identificaccedilatildeo de quais os valores que podem ser deduzidos da ideia de Direito
(e portanto de uma ideia de Justiccedila) e que por essa razatildeo devem ser
considerados os valores juriacutedicos fundamentais
Com efeito a ensaiar uma tentativa de descriccedilatildeo daquilo que deve ser
o processo loacutegico de criaccedilatildeo de Direito ou seja um sistema de normas visando
a resoluccedilatildeo de conflitos de interesse segundo um criteacuterio de justiccedila diria que
o primeiro passo seria a escolha pela comunidade dos seus valores essenciais
Claro que historicamente natildeo se pode dizer que os vaacuterios
ordenamentos juriacutedicos de cada comunidade politicamente organizada tenham
resultado de forma imediata de escolhas conscientes de certos valores como
resultado de uma reflexatildeo conjunta de todos os seus membros Pelo contraacuterio
todos os dados histoacutericos disponiacuteveis apontam para que a origem dos primeiros
sistemas juriacutedicos tenha sido a tradiccedilatildeo os usos e o costume e natildeo tanto
processos conscientes e atos expliacutecitos de reconhecimento de certos valores257
254 Estamos a falar principalmente dos paiacuteses da Europa continental sendo certo poreacutem que
tambeacutem nos paiacuteses de cultura anglo-saxoacutenica se tem assistido a um crescimento do statute
law 255 Cfr a este propoacutesito o interessante estudo de Joatildeo Cardoso Rosas Concepccedilotildees da Justiccedila
Ediccedilotildees 70 2011 256 Com bem refere Karl Larenz no seu ensaio Richtiges Recht Grundzuumlge einer Rechtsethik
(trad espanhola de Luis Diacuteez-Picazo Civitas 1985 reimp 1993) ldquoDe acordo com uma larga
tradiccedilatildeo da filosofia ocidental a tarefa dos filoacutesofos consiste em buscar a lsquounidadersquo subjacente
agrave multiplicidade de normas e de decisotildees A tarefa do jurista diversamente consiste em
encontrar decisotildees justas de casos concretosrdquo (traduccedilatildeo nossa do castelhano) 257 Sobre as origens do Direito cfr John Gilissen Introduccedilatildeo Histoacuterica ao Direito (trad de
Antoacutenio Manuel Hespanha e Manuel Macaiacutesta Malheiros) 7ordf ed Ed Gulbenkian 2013
paacutegs 31 e ss
105
A verdade poreacutem eacute que modernamente se tem assistido a um esforccedilo
de identificaccedilatildeo e revelaccedilatildeo dos princiacutepios e valores fundamentais que
conferem sentido ao (e legitimam o) Direito legislado um esforccedilo levado a
cabo algumas vezes ateacute pelo proacuteprio legislador258
A tradiccedilatildeo humanista judaico-cristatilde das sociedades ocidentais levou
desde logo a que esse esforccedilo de identificaccedilatildeo se dirigisse aos valores
relacionados com a dignidade da Pessoa do qual o melhor exemplo eacute sem
duacutevida a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Esta consagra
princiacutepios como a igualdade liberdade proteccedilatildeo da vida e da seguranccedila
pessoal a imparcialidade dos tribunais a presunccedilatildeo de inocecircncia o princiacutepio
nulla poena sine lege a proteccedilatildeo da privacidade e da honra e alguns outros
todos acolhidos na nossa Constituiccedilatildeo
Mais recentemente Karl Larenz ensaiou um esforccedilo semelhante mas
agora dirigido aos valores fundamentais que podem ser deduzidos da ideia de
Direito259 Neste contexto Larenz identifica princiacutepios como o respeito muacutetuo
a autonomia privada e a auto-vinculaccedilatildeo atraveacutes dos contratos a equivalecircncia
de prestaccedilotildees nos contratos sinalagmaacuteticos o princiacutepio da confianccedila (no qual
inclui o princiacutepio da boa feacute) o princiacutepio da culpa na responsabilidade civil e
penal mas tambeacutem os princiacutepios da proporcionalidade da natildeo retroatividade
das leis ou os princiacutepios da imparcialidade dos tribunais e do contraditoacuterio
Para aleacutem dos valores ligados agrave dignidade da Pessoa e deduzidos da
ideia de Direito eacute evidente que cada comunidade protege tambeacutem certos
valores ligados agrave sua heranccedila cultural os quais satildeo igualmente refletidos no
direito positivo Eacute o que acontece entre noacutes com certos valores ligados agrave
solidariedade social como o princiacutepio da proteccedilatildeo dos mais fracos social ou
economicamente mais deacutebeis patente em muitas normas relativas ao Direito
do Trabalho ao Direito do Consumo ou ao arrendamento urbano por exemplo
Dada a importacircncia destes valores para cada sociedade eacute normal que
os mesmos sejam enunciados na Lei Fundamental como acontece entre noacutes
aliaacutes A Parte I (Direitos e Deveres Fundamentais) da nossa Constituiccedilatildeo
enuncia muitos dos valores e princiacutepios acima mencionados formalizando um
certo compromisso entre os membros da sociedade portuguesa sobre um
conjunto de valores presentes e futuros
Este consenso sobre os valores fundamentais da sociedade traduz
assim o primeiro passo na construccedilatildeo de um sistema de normas juriacutedicas e
tende a refletir as conceccedilotildees dominantes na sociedade em certo periacuteodo
258 V por exemplo o art 5ordm da Lei nordm 66-B2007 de 28 de dezembro que cria o Sistema
Integrado de Gestatildeo e Avaliaccedilatildeo de Desempenho na Administraccedilatildeo Puacuteblica 259 Richtiges Recht cit paacutegs 55 e ss e passim
106
histoacuterico sejam de natureza moral filosoacutefica poliacutetica social ou cultural O
Direito eacute assim um resultado da cultura eacute uma realidade ldquohistoricamente
instituiacutedardquo260
Sobre estes valores importa ainda dizer duas coisas
Por um lado estatildeo em causa valores extralegais porque estatildeo acima
da lei escrita Constituem na expressatildeo feliz de J Baptista Machado o
ldquoreferente fundamentalrdquo do direito positivo261 no sentido em que cada norma
(e portanto o ordenamento no seu conjunto) remete para (refere-se a) esses
valores ou seja traduz uma ideia ou conceccedilatildeo de justiccedila (a conceccedilatildeo de justiccedila
do legislador) a qual estaacute pressuposta na soluccedilatildeo fornecida pela norma de tal
modo que a perfeita interpretaccedilatildeo ou compreensatildeo da mesma soacute eacute possiacutevel
quando o esforccedilo do inteacuterprete eacute tambeacutem dirigido a conhecer essa conceccedilatildeo ou
ideia de justiccedila traduzida na norma Numa palavra a norma soacute tem sentido
quando se toma em conta o valor para que a mesma remete
Por outro lado estamos em presenccedila de valores juriacutedicos pois os
mesmos tecircm vigecircncia justamente atraveacutes das normas que os concretizam
Valores que natildeo estejam concretizados em normas juriacutedicas natildeo vigoram na
ordem juriacutedica Recorrendo mais uma vez ao texto de J Baptista Machado
ldquoeste quid tans-positivo [o valor] natildeo tem existecircncia a se (autoacutenoma) pois soacute
existe ou tem vigecircncia atraveacutes dos textos positivos e na interpretaccedilatildeo e
aplicaccedilatildeo delesrdquo262
Importa recordar com efeito que haacute muitos aspetos da vida social
subtraiacutedos ao Direito mas natildeo subtraiacutedos agraves regras morais e sociais estas
tambeacutem inspiradas em valores (morais e sociais) mas justamente porque os
conflitos gerados nesses domiacutenios da vida social natildeo satildeo juridicamente
relevantes e portanto natildeo satildeo dirimidos pelo recurso a normas juriacutedicas os
valores invocados ou postos em causa em tais conflitos natildeo podem ser
considerados valores juriacutedicos
260 A expressatildeo eacute de J Baptista Machado (Introduccedilatildeo ao Direito e ao Discurso Legitimador
Almedina 2002 13ordf reimp paacuteg 7 261 Introduccedilatildeo hellip cit paacutegs 206 e ss 262 Introduccedilatildeo hellip cit paacuteg 210 Em sentido semelhante Karl Larenz Richtiges Recht cit
paacuteg 34 Este aspeto coloca em relevo a ideia de que natildeo basta enunciar nos primeiros artigos
de um diploma legal a vinculaccedilatildeo desse conjunto de normas a certos valores ou princiacutepios em
rigor essa enunciaccedilatildeo pouco vale se natildeo estiver traduzida em regras de comportamento
porque eacute dessas regras que se deduzem os tais valores que as mesmas visam concretizar
Enunciar um conjunto de valores ou princiacutepios sem os concretizar em normas de pouco vale
107
Dado este primeiro passo eleiccedilatildeo dos valores fundamentais da
comunidade torna-se necessaacuterio um segundo passo agora em nome da
praticabilidade e exequibilidade
A verdade eacute que se torna muito difiacutecil em alguns casos praticamente
impossiacutevel resolver conflitos de interesse concretos apenas com referecircncia aos
valores ou princiacutepios gerais Estes ldquosatildeo os pensamentos diretores de uma
regulamentaccedilatildeo juriacutedica existente ou possiacutevel Em si mesmos natildeo satildeo ainda
regras suscetiacuteveis de aplicaccedilatildeo embora possam transformar-se em regras [hellip]
Os princiacutepios indicam apenas a direccedilatildeo [o sentido] da regra que se pretende
encontrar Podemos dizer que satildeo o primeiro passo para a obtenccedilatildeo da regra
que determina os passos posterioresrdquo263
Neste sentido e no que toca agrave funccedilatildeo de dirimir conflitos de interesse
os princiacutepios carecem de concretizaccedilatildeo a qual resulta numa norma e pressupotildee
uma nova valoraccedilatildeo264
Na verdade enquanto pensamento diretor um determinado princiacutepio
pode comportar (e frequentemente comporta) um conjunto de concretizaccedilotildees
todas elas ldquojustasrdquo porque conformes ao princiacutepio em causa ou seja conteacutem
uma ldquopluralidade de possibilidades de concretizaccedilatildeordquo265 Assim a criaccedilatildeo de
uma norma inspirada no princiacutepio (a concretizaccedilatildeo do princiacutepio) obriga agrave
escolha de uma dessas possibilidades
Podemos ateacute dizer com J Baptista Machado que as normas
ldquorepresentam [hellip] lsquointerpretaccedilotildeesrsquo do legislador da sua proacutepria conceccedilatildeo de
Direito ou da ideia de Justiccedila a que adererdquo266 isto eacute o legislador elege a
soluccedilatildeo que ele considera mais justa de entre as vaacuterias soluccedilotildees justas que o
valor permite pelo que a norma incorpora a concepccedilatildeo de justiccedila do
legislador
Esta escolha e o juiacutezo de valor que a mesma encerra eacute o momento
poliacutetico do ato legislativo e nela o legislador atua em nome do Povo como
resulta do art 108ordm da nossa Constituiccedilatildeo Tal como acontece na definiccedilatildeo dos
valores constitucionais nas democracias representativas a concretizaccedilatildeo (e
interpretaccedilatildeo) desses valores eacute levada a cabo pelos oacutergatildeos poliacuteticos
263 Karl Larenz Richtiges Recht cit paacutegs 32 e 33 (traduccedilatildeo nossa do castelhano) 264 Karl Larenz Richtiges Recht cit paacuteg 33 265 Karl Larenz Richtiges Recht cit paacuteg 31 266 Introduccedilatildeo hellip cit paacuteg 207
108
(nomeadamente a Assembleia da Repuacuteblica) os quais atuam em nome do
Povo exercendo uma competecircncia poliacutetica267
A escolha feita pelo legislador resulta da ponderaccedilatildeo de vaacuterios aspetos
Num primeiro momento o legislador deve ponderar desde logo o
significado do valor em si o seu conteuacutedo material mas ao mesmo tempo
deve ponderar outros valores igualmente importantes em sede da regulaccedilatildeo
daquela categoria de conflitos de interesse
Por exemplo perante a duacutevida de saber se o proponente deve ou natildeo
poder revogar ou modificar a sua proposta a mera consideraccedilatildeo do princiacutepio
da autonomia privada deveria levar a que se desse uma resposta positiva a tal
questatildeo (como resulta do art 230ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil) uma vez que a
proposta soacute estaraacute em linha com os interesses do declarante se prevalecer a
manifestaccedilatildeo mais recente da sua vontade ao mesmo tempo poreacutem a
consideraccedilatildeo do princiacutepio da confianccedila deve levar a que essa revogaccedilatildeo ou
modificaccedilatildeo soacute seja admitida nos casos em que ainda natildeo existam expectativas
consolidadas por parte do destinataacuterio na versatildeo inicial da proposta (e daiacute a
soluccedilatildeo do art 230ordm nordm 1 do Coacutedigo Civil)
Ainda neste primeiro momento a ponderaccedilatildeo dos dois aspetos
mencionados eacute ldquocoloridardquo pelas concepccedilotildees filosoacuteficas poliacuteticas e sociais do
legislador podendo ainda intervir consideraccedilotildees de poliacutetica legislativa eou
ligadas ao momento histoacuterico (como aconteceu nas alteraccedilotildees produzidas no
regime do contrato-promessa em 1980 e 1986 por exemplo)
Ao mesmo tempo o legislador deve levar em conta a necessidade de
assegurar a coerecircncia do sistema (a unidade do sistema juriacutedico de que fala o
art 9ordm do Coacutedigo Civil) evitando contradiccedilotildees com outras normas
(contradiccedilotildees loacutegicas ou teleoloacutegicas) ou com outros valores (contradiccedilotildees
valorativas)
Arriscaria a dizer que a consideraccedilatildeo de todos estes aspetos pesa
essencialmente na busca daquela que na perspetiva do legislador eacute a soluccedilatildeo
justa para certo tipo de conflito de interesses Mas na criaccedilatildeo da norma devem
ainda intervir outros aspetos agora ligados a consideraccedilotildees de seguranccedila
juriacutedica e de justiccedila relativa
267 Eacute tambeacutem por esta razatildeo que a enunciaccedilatildeo de certos princiacutepios em diplomas legais (cfr
notas 14 e 18) aleacutem de inuacutetil pode tornar-se inconveniente se for entendida como um mandato
dado pelo legislador ao tribunal para concretizar esses princiacutepios para aleacutem do direito posto
este mandato natildeo poderaacute deixar de ser considerado uma violaccedilatildeo grosseira do princiacutepio da
separaccedilatildeo de poderes plasmado no art 111ordm da nossa Constituiccedilatildeo
109
Assim num segundo momento o legislador deve ponderar a
exequibilidade da soluccedilatildeo gizada de nada adianta uma norma que em si
mesma eacute um exemplo de justiccedila se depois a mesma se revela de aplicaccedilatildeo
impossiacutevel por razotildees praacuteticas
Por exemplo a soluccedilatildeo mais justa para resolver os conflitos de
interesse relacionados com a capacidade negocial seria talvez submeter todas
pessoas singulares a testes destinados a avaliar a sua maturidade perioacutedicos
ou melhor ainda previamente agrave praacutetica de qualquer ato negocial Ainda que
indiscutivelmente justa esta soluccedilatildeo eacute totalmente inexequiacutevel e qualquer
norma que a consagrasse se tornaria rapidamente letra morta ou pior
paralisaria o traacutefico juriacutedico
Tambeacutem neste segundo momento devem intervir consideraccedilotildees
ligadas agrave proporcionalidade considerando o objetivo prosseguido pelo
legislador (seja uma mera ordenaccedilatildeo da liberdade seja uma intenccedilatildeo
conformadora) bem como a necessidade de natildeo causar perturbaccedilatildeo nos
equiliacutebrios sociais por forma a na medida do possiacutevel preservar a
estabilidade do sistema juriacutedico e concomitantemente do sistema social
particularmente nos casos em que o legislador eacute animado por uma intenccedilatildeo
conformadora da sociedade
Relativamente ao primeiro aspeto pense-se por exemplo nos regimes
da nulidade e da anulabilidade O negoacutecio nulo natildeo produz efeitos nem a
nulidade pode ser sanada porque o que estaacute na base desta invalidade satildeo
razotildees relativas a interesses gerais da comunidade (ou estaacute em causa apenas a
aparecircncia de um negoacutecio) circunstacircncias que impotildeem uma reaccedilatildeo mais
vigorosa da lei Jaacute no caso da anulabilidade estaacute em causa a proteccedilatildeo de
interesses privados circunstacircncia refletida no respetivo regime juriacutedico Na
verdade natildeo soacute o negoacutecio anulaacutevel produz provisoriamente efeitos como estes
apenas poderatildeo ser destruiacutedos pelo tribunal a requerimento do titular do
interesse que a lei visava proteger com a anulabilidade ficando ainda
salvaguardado o direito daquele em confirmar o negoacutecio sanando a
invalidade268
Ou seja o regime juriacutedico de cada um destes tipos de invalidade reflete
uma reaccedilatildeo diferente da lei mais ou menos intrusiva da liberdade individual
segundo os valores que a mesma lei visa salvaguardar
Para o segundo aspeto (estabilidade e previsibilidade) cada vez menos
valorizado numa sociedade em que cada maioria no Parlamento (e cada
Governo que dela emana) pretende reconfigurar a sociedade e os seus
268 Para uma anaacutelise da proporcionalidade como um verdadeiro princiacutepio fundamental de
Direito cfr Antoacutenio Cortecircs Jurisprudecircncia dos Princiacutepios Lisboa 2010 paacutegs 270 e ss
110
equiliacutebrios segundo a sua ideologia poliacutetica ou as modas do momento basta
pensar na importacircncia fundamental da uniformidade de julgados que obriga
(deveria obrigar) a que o legislador no desenho de cada hipoacutetese legal eleja
com criteacuterio os dados juridicamente relevantes para a resoluccedilatildeo da questatildeo de
direito visada na norma desvalorizando outros que embora potencialmente
relevantes para uma soluccedilatildeo justa dos casos aiacute contemplados introduziriam
uma inseguranccedila indesejaacutevel na aplicaccedilatildeo da norma em causa269
Tudo visto fica entatildeo claro que as normas exercem uma funccedilatildeo de
mediaccedilatildeo entre os valores e os concretos conflitos de interesse mediaccedilatildeo essa
exercida em dois sentidos por um lado cada norma traduz uma certa ideia
(conceccedilatildeo) de justiccedila (do legislador) e eacute atraveacutes dela (do enunciado linguiacutestico
contido na norma) que se revela essa ideia de justiccedila por outro lado eacute tambeacutem
atraveacutes da norma que o valor juriacutedico concretizado na mesma adquire
positividade e portanto juridicidade270
Sob o ponto de vista da teacutecnica legislativa a norma descreve na sua
hipoacutetese uma certa categoria de conflito de interesses (ligando-se deste modo
aos concretos conflitos que a mesma norma haacute de resolver quando convocada
pelo tribunal para esse efeito) e na estatuiccedilatildeo associa a esse tipo de conflito
uma soluccedilatildeo que revela a conceccedilatildeo de justiccedila do legislador a qual resulta jaacute
de uma interpretaccedilatildeo que o mesmo levou a cabo dos valores do ordenamento
Eacute desta forma que cada concreto conflito de interesses eacute solucionado
segundo um criteacuterio de justiccedila
3 O primeiro aspeto a considerar no que aos Life Time Contracts diz
respeito eacute que subjacente agrave generalidade dos ldquoprinciacutepiosrdquo identificados pelo
grupo de trabalho parece existir uma ideia de proteccedilatildeo da parte contratual mais
deacutebil
Eacute certo que o relevo dado a esta categoria de contratos parece incidir
mais na dimensatildeo existencial de cada pessoa Luca Nogler e Udo Reifner
referem que Life Time Contracts ldquosatildeo acima de tudo aqueles que asseguram
um lugar para viver (contratos de arrendamento) bens e serviccedilos (contratos de
fornecimento) e rendimento (contratos de trabalho e contratos de
financiamento) o que eacute necessaacuterio para viverrdquo271
269 A velha tensatildeo entre justiccedila e seguranccedila cfr J Baptista Machado Introduccedilatildeohellip cit paacutegs
56 e ss 270 Cfr J Baptista Machado Introduccedilatildeo hellip cit paacutegs 207 e 292 271 Ob cit paacuteg 47
111
Poreacutem a ideia fundamental subentendida no conjunto dos princiacutepios
enunciados pelo grupo de trabalho eacute sem duacutevida a de que nesta categoria de
contratos existe uma parte mais deacutebil carecendo de uma proteccedilatildeo especiacutefica
dada a importacircncia que tais contratos assumem na existecircncia das pessoas em
geral
Tal ideia eacute enunciada de forma clara no quinto princiacutepio
(ldquoNecessidades Baacutesicasrdquo) quando se refere que o ldquofornecimento de bens e
serviccedilos essenciais para necessidades baacutesicas relacionadas com o consumo e
o emprego obriga a levar em conta consideraccedilotildees materiais sociais e
psicoloacutegicas tendo em vista a proteccedilatildeo da parte mais fraca do contrato Uma
regulamentaccedilatildeo rigorosa ou outras regras coletivas devem assegurar um grau
de proteccedilatildeo social adequado em linha com o objeto do contrato a sua duraccedilatildeo
e a sua importacircncia na vida das pessoas em causardquo272
Isso mesmo eacute reafirmado noutros ldquoprinciacutepiosrdquo quando se menciona as
ldquorelaccedilotildees de poderrdquo nos contratos ou se refere a necessidade de ldquoproteger a
confianccedila muacutetuardquo quando se aponta a ldquofinalidade social do contratordquo quando
se exige que os gastos associados a tais contratos sejam ldquoacessiacuteveis e em linha
com os custosrdquo ou que a extinccedilatildeo desses contratos seja ldquosocialmente
responsaacutevelrdquo mais claramente ainda quando relativamente aos contratos que
assegurem um rendimento regular se refere a necessidade de garantir um
ldquoniacutevel miacutenimo de rendimento [hellip] na forma de pagamentos continuados
suficientes para ir ao encontro das necessidades do consumidorrdquo e ainda que
ldquoos riscos sociais de desemprego falta de habitaccedilatildeo e sobre-endividamento
devem ser tidos em conta em todas as formas individuais e coletivas de
contrato considerando as origens sociais da pessoardquo
Podemos dizer que a proteccedilatildeo da parte mais deacutebil do contrato natildeo eacute
uma novidade no nosso ordenamento juriacutedico em vaacuterios ramos do Direito o
nosso legislador tem vindo a ensaiar formas variadas de proteccedilatildeo da parte mais
fraca do contrato ateacute no Direito Civil que continua a ser o ramo do Direito
Privado em que tradicionalmente existe uma maior neutralidade poliacutetica
relativamente a este aspeto
De que forma atua o legislador na interpretaccedilatildeo deste princiacutepio de
proteccedilatildeo da parte mais deacutebil
Na impossibilidade de determinar em cada caso concreto quem eacute a
parte mais fraca e qual a medida justa da proteccedilatildeo a dispensar-lhe o legislador
identifica situaccedilotildees tiacutepicas em que um dos contraentes tende a ter menos poder
negocial social ou econoacutemico seja em termos estatiacutesticos seja pela
interpretaccedilatildeo que o proacuteprio legislador faz da realidade social Eacute o que acontece
272 Ob cit paacutegs 12 e 13
112
com a viacutetima de negoacutecio usuraacuterio com o inquilino nas vaacuterias modalidades de
contrato de arrendamento com o trabalhador com o consumidor com o
pequeno empresaacuterio ou com o promitente-comprador de preacutedios urbanos para
citar os exemplos mais significativos
Num segundo momento o legislador cria normas imperativas que por
um lado visam defender o parte mais deacutebil contra a sua proacutepria fraqueza e
que por outro estabelecem soluccedilotildees visando alterar a partilha de risco que
existiria sem esta preocupaccedilatildeo Por partilha de risco pretendo designar o modo
como satildeo distribuiacutedas pelos contraentes as consequecircncias de certos eventos
natildeo causados pelas partes que afetam negativamente o normal cumprimento
do contrato causando designadamente maior dificuldade em cumprir maior
onerosidade da prestaccedilatildeo degradaccedilatildeo da situaccedilatildeo econoacutemica de uma das
partes (ou de ambas) ou ateacute impossibilidade de cumprimento
Um dos riscos mais importantes nesta categoria dos Life Time
Contracts eacute sem duacutevida o chamado risco normal da vida como sejam por
exemplo o risco de acidente incapacitante doenccedila desemprego perturbaccedilotildees
familiares (separaccedilotildees e divoacutercios com todo o seu cortejo de consequecircncias
negativas) acontecimentos que podem ter efeitos muitiacutessimo adversos para a
capacidade de a pessoa afetada honrar os seus compromissos contratuais
particularmente aqueles que se destinam a perdurar no tempo
Ora algumas das soluccedilotildees apontadas pelo EuSoCo foram jaacute acolhidas
no nosso Direito expressando as preocupaccedilotildees sociais do nosso legislador
civil Eacute o que se passa com a consagraccedilatildeo da possibilidade de extinguir ou
modificar contratos em consequecircncia de alteraccedilotildees do contexto que as partes
natildeo previram e que conduzem a um desequiliacutebrio das prestaccedilotildees (art 437ordm do
Coacutedigo Civil) ou no efeito natildeo retroativo da resoluccedilatildeo do contrato nos
contratos de execuccedilatildeo duradoura na proteccedilatildeo do inquilino no arrendamento
urbano ou ainda na proteccedilatildeo do trabalhador na relaccedilatildeo laboral (ambas algo
atenuadas com as recentes alteraccedilotildees legislativas nestas mateacuterias eacute certo) Eacute o
que acontece tambeacutem com a garantia de acesso a certos bens e serviccedilos
essenciais e com a proteccedilatildeo do consumidor tanto na fase da contrataccedilatildeo como
na fase do cumprimento do contrato com relevo para algumas das mais
recentes medidas adotadas para os contratos de creacutedito agrave habitaccedilatildeo na
sequecircncia da crise econoacutemica de 2008
Aquilo que eacute proposto nos ldquoprinciacutepiosrdquo dos Life Time Contracts eacute
portanto retirar da esfera de risco da parte mais fraca as consequecircncias de
certos eventos que resultam do risco normal da vida e deslocaacute-las para a esfera
de risco do outro contraente
113
4 Parece claro que a proteccedilatildeo da parte mais fraca e o modo como a
mesma eacute prosseguida encontra o seu fundamento na necessidade de defender
a dignidade da Pessoa tanto numa perspetiva formal como numa perspetiva
material Trata-se de proteger de uma forma efetiva o ciacuterculo de direitos
fundamentais e a liberdade de cada indiviacuteduo mas tambeacutem uma integraccedilatildeo
plena na sociedade nomeadamente assegurando na medida do possiacutevel que
cada um(a) tenha a oportunidade de realizar o seu projeto de vida pessoal e
profissional assegurando alguma estabilidade econoacutemica e o acesso a recursos
que permitam a satisfaccedilatildeo de certas necessidades baacutesicas273
Ora dir-se-ia que estas preocupaccedilotildees satildeo legiacutetimas e fazem todo o
sentido na perspetiva de considerar cada um(a) em toda a sua dimensatildeo de
Pessoa incluindo a dimensatildeo existencial Com efeito natildeo podemos perder de
vista que uma regulamentaccedilatildeo do fenoacutemeno contratual que tem como
horizonte apenas a ordenaccedilatildeo da liberdade individual e uma adequada
distribuiccedilatildeo entre as partes dos benefiacutecios e custos encarada numa perspetiva
puramente econoacutemica corre o risco de considerar apenas certas dimensotildees
parciais e portanto redutoras da Pessoa e do proacuteprio objetivo fundamental do
Direito no seu conjunto
Cada pessoa natildeo eacute apenas ldquoo vendedorrdquo ldquoo compradorrdquo ldquoo
empreiteirordquo ldquoo dono de obrardquo o ldquoproprietaacuteriordquo o ldquolocataacuteriordquo o
ldquoprofissionalrdquo ou o ldquoconsumidorrdquo cada pessoa assume pontualmente cada
um desses papeacuteis e muitas vezes vaacuterios desses papeacuteis ao mesmo tempo em
diversos contextos mas nunca podemos dizer que o conjunto desses papeacuteis
sociais define ou esgota cada pessoa
Cada um de noacutes eacute mais do que o conjunto das circunstacircncias que
definem o nosso lugar na sociedade seja a profissatildeo o estado civil a relaccedilatildeo
familiar a condiccedilatildeo de proprietaacuterio ou utilizador Numa perspetiva humanista
cristatilde em linha com a nossa heranccedila cultural uma comunidade de pessoas natildeo
pode ser a mera soma de um conjunto de individualidades ligadas por relaccedilotildees
de troca com colunas de ldquodeverdquo e ldquohaverrdquo assim uma adequada regulaccedilatildeo da
vida em sociedade baseada no respeito muacutetuo numa dimensatildeo global natildeo
pode perder de vista essa realidade
As preocupaccedilotildees expressas nas consideraccedilotildees que serviram de base aos
Life Time Contracts chamam a atenccedilatildeo para aspetos importantes da vida em
sociedade e atingem a proacutepria ideia de Direito enquanto conjunto de valores
e regras que tecircm em vista a ordenaccedilatildeo da vida em sociedade de acordo com
273 Logo no primeiro ldquoprinciacutepiordquo que conteacutem a definiccedilatildeo de Life Time Contracts refere-se a
importacircncia fundamental destes contratos para a autorrealizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e para a sua
participaccedilatildeo na comunidade
114
um criteacuterio de justiccedila e a realidade humana da vida em sociedade natildeo se esgota
em relaccedilotildees de troca
Isto dito importa tambeacutem ter presente os perigos que uma regulaccedilatildeo
demasiado intrusiva da liberdade individual pode gerar nos equiliacutebrios sociais
tendo em conta que as economias das sociedades ocidentais natildeo assentam em
modelos dirigistas mas sim em modelos assentes na liberdade de escolha em
linha aliaacutes com os respetivos modelos de organizaccedilatildeo poliacutetica e social
A questatildeo eacute que ao gizar as normas adequadas a prosseguir um objetivo
de proteccedilatildeo da parte contratual mais deacutebil eacute necessaacuterio identificar o valor
juriacutedico que o fundamenta e encontrar a interpretaccedilatildeo mais razoaacutevel (justa)
desse valor sem perder de vista outros valores igualmente importantes na
prossecuccedilatildeo das finalidades fundamentais do Direito Como jaacute disse antes eacute
necessaacuterio ponderar a coerecircncia do sistema bem como as condiccedilotildees de
exequibilidade oportunidade e proporcionalidade da soluccedilatildeo visada
Eacute tambeacutem muito importante ter a consciecircncia de que a proteccedilatildeo do
contraente mais fraco seraacute prosseguida agrave custa da deslocaccedilatildeo de certos riscos
a maior parte das vezes ligados ao risco normal da vida da esfera daquele a
quem o evento respeita para a esfera de outra pessoa que natildeo o pode gerir ou
controlar e tambeacutem por isso natildeo o quer suportar ou seja a proteccedilatildeo de uma
parte eacute conseguida agrave custa da outra parte (no sentido amplo do termo)
Deste modo independentemente da concepccedilatildeo de justiccedila subjacente agrave
soluccedilatildeo encontrada torna-se ainda necessaacuterio avaliar os efeitos perversos que
a mesma pode ter no sistema social e econoacutemico274 Isto porque num modelo
econoacutemico assente na liberdade individual as pessoas podem definir o limite
dos riscos que estatildeo dispostos a suportar para atingir os seus objetivos
nomeadamente no exerciacutecio de uma atividade profissional ou comercial
Neste sentido uma intervenccedilatildeo legislativa tendo em vista uma
alteraccedilatildeo fundamental do equiliacutebrio das partes em determinados contratos de
bens ou serviccedilos poderaacute ter como consequecircncia um agravamento da
contrapartida exigida por quem fornece esse bem ou serviccedilo na melhor das
hipoacuteteses (para refletir o maior risco em que a parte incorre com a celebraccedilatildeo
do contrato) ou ateacute a necessidade de ser o Estado a assumir certa atividade (e
a inerente socializaccedilatildeo do risco) em virtude de nenhum particular estar
disposto a fazecirc-lo tendo em conta os riscos econoacutemicos envolvidos
Por outro lado no que especialmente diz respeito ao seacutetimo ldquoprinciacutepiordquo
(Dimensatildeo Coletiva e Eacutetica) parece-me natildeo estar em causa um verdadeiro
274 Importa lembrar por exemplo que o congelamento das rendas praticamente levou agrave
extinccedilatildeo do mercado de arrendamento
115
princiacutepio mas sim uma regra com algumas matizes de natureza procedimental
ainda que com oacutebvias repercussotildees a niacutevel material275
Num primeiro passo afirma-se o direito que os ldquoconsumidores e os
trabalhadoresrdquo tecircm de ldquoexigir do Estado o reconhecimento de sistemas
coletivos de representaccedilatildeo (associaccedilotildees de consumidores ou associaccedilotildees
sindicais)rdquo Para aleacutem de um afloramento do princiacutepio da liberdade de
associaccedilatildeo esta menccedilatildeo a um ldquodireito de exigir do Estadordquo remete claramente
para uma norma e natildeo propriamente para um princiacutepio
Depois refere-se que os mesmos consumidores e trabalhadores ldquotecircm o
direito de exigir do Estado o reconhecimento e o respeito pelos sistemas de
valores coletivos como aqueles que satildeo designados pelos conceitos de boa feacute
e de bons costumesrdquo Mais uma vez estaacute em causa o ldquoexigir do Estadordquo um
determinado comportamento que aparentemente deveraacute ser traduzido em
medidas de caraacuteter legislativo destinadas a assegurar que estes sistemas de
valores coletivos se apliquem ldquoem todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde
o acesso aos bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua
adaptaccedilatildeomodificaccedilatildeo e agrave sua extinccedilatildeordquo
Salvo melhor opiniatildeo assim enunciado o ldquoprinciacutepiordquo diria que natildeo
estamos em presenccedila de um verdadeiro pensamento diretor de uma
regulamentaccedilatildeo juriacutedica mas face a algo que resulta da combinaccedilatildeo de uma
verdadeira regra de natureza essencialmente adjetiva (negociaccedilatildeo coletiva
prevalece sobre a negociaccedilatildeo individual) com o recurso a conceitos
indeterminados (boa feacute e bons costumes)
Note-se que este ldquoprinciacutepiordquo natildeo se confunde com o princiacutepio da boa
feacute pelo contraacuterio ele remete para o princiacutepio da boa feacute o qual recorde-se
estaacute consagrado no nosso Direito relativamente agrave fase da contrataccedilatildeo e
cumprimento do contrato (arts 227ordm e 762ordm do Coacutedigo Civil) e eacute ainda
relevante em sede de licitude material do conteuacutedo do contrato no acircmbito das
regulamentaccedilatildeo das claacuteusulas contratuais gerais276
Jaacute o conceito de ldquobons costumesrdquo remete para certos valores morais e
deontoloacutegicos e natildeo propriamente para determinado valor juriacutedico277
A verdade eacute que mais do que verdadeiros princiacutepios de Direito os
ldquoprinciacutepiosrdquo enunciados a propoacutesito dos Life Time Contracts remetem para
275 Uma distinccedilatildeo entre ldquoprinciacutepiordquo enquanto paracircmetro normativo e ldquoregrardquo (e as
dificuldades que a mesma envolve) eacute ensaiada por Antoacutenio Cortecircs ob cit paacutegs 127 e ss 276 Cfr o art 15ordm do Decreto-Lei nordm 44685 de 25 de outubro 277 Cfr por todos L Carvalho Fernandes Teoria Geral do Direito Civil vol II 4ordf ed
Lisboa 2007 paacuteg 199
116
um conjunto de ideias que no seu conjunto ajudam a definir o que possam ser
estes contratos descrevendo as suas carateriacutesticas ou apontam certas regras
(mais normas do que verdadeiros princiacutepios) mais ou menos concretas de
natureza substantiva ou procedimental
Talvez natildeo seja descabido dizer que o princiacutepio fundamental
subjacente aos Life Time Contracts eacute o da proteccedilatildeo da dignidade da Pessoa tal
como ficou dito antes e que o conjunto das 16 regras denominadas
ldquoprinciacutepiosrdquo satildeo jaacute concretizaccedilotildees desse princiacutepio fundamental A ser assim
devemos ter presente que tais concretizaccedilotildees podem natildeo ser politicamente
neutras e mais do isso poderatildeo aqui e ali estar marcadas por uma visatildeo
ideologicamente comprometida estando por isso abertas a discussatildeo
Esta perspetiva natildeo prejudica naturalmente o caraacuteter consensual de
algumas das regras em causa como sejam por exemplo certas normas
relativas agrave extinccedilatildeo dos contratos (deacutecimo primeiro ldquoprinciacutepiordquo mesmo tendo
em conta a necessidade de determinar o que significa entre outras coisas uma
conduta socialmente responsaacutevel) agrave comunicaccedilatildeo e informaccedilatildeo entre as partes
(deacutecimo segundo e deacutecimo terceiro ldquoprinciacutepiosrdquo) e agrave proteccedilatildeo dos dados
pessoais (deacutecimo sexto ldquoprinciacutepiordquo)
Eacute agrave luz destas consideraccedilotildees que o seacutetimo ldquoprinciacutepiordquo deve ser
apreciado
Por princiacutepio natildeo tenho preconceitos (ideoloacutegicos ou outros) contra a
negociaccedilatildeo coletiva quando a mesma eacute levada a cabo dentro de uma quadro
normativo claro e coerente ou seja dentro dos limites da lei criada pelos
oacutergatildeos poliacuteticos da comunidade a quem esta conferiu legitimidade para tal
Recentemente a DECO tem protagonizado a negociaccedilatildeo de condiccedilotildees mais
favoraacuteveis para os consumidores de contratos de fornecimento de bens e
serviccedilos essenciais (e natildeo soacute) tirando justamente partido do facto de atuar por
conta de grupos significativos de consumidores Digamos que desta forma se
consegue equilibrar o peso negocial de cada uma das partes envolvidas na
negociaccedilatildeo e isso eacute beneacutefico para todos os envolvidos e para a sociedade em
geral sob qualquer perspetiva
Poreacutem se a ideia que estaacute na base dessa negociaccedilatildeo coletiva eacute ganhar
peso negocial junto dos poderes puacuteblicos para ldquopermearrdquo a lei aos resultados
da negociaccedilatildeo coletiva entatildeo terei de manifestar a minha total discordacircncia agrave
luz de tudo o ficou dito acima sobre o que significa legislar
Para o poder puacuteblico seraacute sempre confortaacutevel ter grupos sociais
organizados a ldquonegociarrdquo as leis que hatildeo de regular a atividade de tais grupos
(ou parte dela) na medida em que natildeo teraacute de fazer escolhas que o exponham
agrave criacutetica puacuteblica (a coragem natildeo costuma ser um dos atributos dos titulares de
117
cargos puacuteblicos) e sempre se poderaacute desresponsabilizar dos resultados dessa
negociaccedilatildeo
A questatildeo eacute que uma lei raramente diz respeito apenas ao grupo A ou
B Por definiccedilatildeo uma lei diz respeito a toda a comunidade e quem representa
a comunidade satildeo os oacutergatildeos poliacuteticos que a mesma escolheu de acordo com os
mecanismos constitucionais
Por muito que isso possa custar a alguns setores da nossa sociedade os
sindicatos as associaccedilotildees de consumidores as associaccedilotildees de empresaacuterios ou
as organizaccedilotildees profissionais natildeo tecircm legitimidade democraacutetica para legislar
ningueacutem lhes conferiu atraveacutes de sufraacutegio universal e direto legitimidade
para em nome do Povo (de todo o Povo) traduzir em forma de lei uma
determinada ideia de justiccedila enquanto interpretaccedilatildeo de um princiacutepio juriacutedico
fundamental
Estas instituiccedilotildees (a que alguns chamam ldquoorganizaccedilotildees de classerdquo)
estatildeo essencialmente (diria ateacute unicamente) preocupadas com a defesa dos
interesses dos seus associados tal como normalmente resulta dos seus
estatutos e em refletir na lei a proteccedilatildeo desses interesses Por definiccedilatildeo a
procura de leis justas para todos natildeo estaacute no horizonte das suas preocupaccedilotildees
nem se espera que estejam em rigor
Em resultado desta postura de defesa dos interesses de classe perde-se
de vista o essencial Perde-se de vista a justiccedila bem como a ligaccedilatildeo aos valores
juriacutedicos fundamentais perde-se a coerecircncia do sistema (justamente pela
ausecircncia de ligaccedilatildeo aos princiacutepios) e passamos a ter leis que representam o
resultado de uma relaccedilatildeo de forccedila sociopoliacutetica
Quando as leis traduzem apenas uma relaccedilatildeo de forccedila transformam-se
na ldquolei do mais forterdquo e isso natildeo eacute Direito
Os ldquoprinciacutepiosrdquo informadores dos Life Time Contracts devem entatildeo ser
vistos como propostas de regulamentaccedilatildeo inspiradas na proteccedilatildeo da
dignidade da Pessoa que tecircm o meacuterito de trazer para o debate juscientiacutefico
uma questatildeo de indiscutiacutevel importacircncia econoacutemica e social
118
119
A alteraccedilatildeo das circunstacircncias e os life time contracts
Henrique Sousa Antunes
1 ENQUADRAMENTO DO TEMA
Eacute sabido que a natureza dos contratos condiciona a aplicaccedilatildeo dos
princiacutepios e regras contratuais Satildeo diversas as espeacutecies normativas que
disciplinam a relaccedilatildeo entre as partes em razatildeo da natureza unilateral ou
bilateral do contrato do seu caraacutecter instantacircneo ou duradouro da unicidade
ou do fraccionamento das prestaccedilotildees do alcance comutativo ou aleatoacuterio do
negoacutecio da sua dimensatildeo gratuita ou onerosa Tambeacutem na alteraccedilatildeo das
circunstacircncias a caracterizaccedilatildeo eacute relevante para a aplicaccedilatildeo do respectivo
regime
A lei portuguesa prevecirc nos artigos 437ordm a 439ordm do Coacutedigo Civil a
possibilidade da modificaccedilatildeo ou resoluccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo das
circunstacircncias excepcionando o princiacutepio pacta sunt servanda O regime
parece vocacionado para os contratos duradouros mas abrange tambeacutem os
contratos instantacircneos Neste caso poreacutem a sua aplicaccedilatildeo afigura-se
condicionada pela subsistecircncia de prestaccedilotildees em falta278 O instituto alcanccedila
fundamentalmente os contratos comutativos mas agrave revisatildeo do conteuacutedo do
contrato natildeo se julga imune o contrato aleatoacuterio se a boa feacute assim o impuser279
Eacute neste contexto de acomodaccedilatildeo do regime da resoluccedilatildeo ou
modificaccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo das circunstacircncias agraves caracteriacutesticas do
contrato afectado que se julga interessante retomar o tema que em texto
recente abordaacutemos entatildeo para apreciar criticamente o direito portuguecircs agrave luz
do direito europeu dos contratos280
O sentido geral da nossa anaacutelise concede agrave boa feacute a margem de
liberdade que a centralidade do recurso a este criteacuterio permite libertando o
julgador da limitaccedilatildeo que a invocaccedilatildeo do requisito da base do negoacutecio
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Catoacutelica Portuguesa 278 Ver por todos Maacuterio Juacutelio de Almeida Costa Direito das Obrigaccedilotildees 12ordf ediccedilatildeo
Coimbra 2009 paacutegs 342 e seguinte 279 Ver por todos Maacuterio Juacutelio de Almeida Costa Direito das Obrigaccedilotildees cit paacutegs 343 e
seguintes 280 A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos contratos in laquoCadernos de Direito
Privadoraquo nordm 47 julhosetembro de 2014 paacutegs 3 e seguintes
120
pressupotildee Agravequele eacute permitida a avaliaccedilatildeo de todas as circunstacircncias mesmo
extracontratuais que em razatildeo da alteraccedilatildeo verificada tornam inexigiacutevel a
prestaccedilatildeo Satildeo circunstacircncias em que as partes fundaram a decisatildeo de contratar
as circunstacircncias existentes ao tempo da vinculaccedilatildeo negocial
independentemente de integrarem a base do negoacutecio Cabe avaliar se no
momento do cumprimento da obrigaccedilatildeo a boa feacute escuda o devedor contra esse
dever Concluiacutemos entatildeo laquoA prevalecircncia da actuaccedilatildeo conjugada da doutrina
da claacuteusula rebus sic stantibus com criteacuterios de gravidade ou razoabilidade
permitiria evitar os equiacutevocos que no direito portuguecircs a associaccedilatildeo do
regime do art 437ordm do CC ao conceito de base negocial previsto no art 252ordm
nordm 2 desse diploma trouxe Lembra-se que segundo a jurisprudecircncia
portuguesa natildeo soacute a situaccedilatildeo econoacutemica ou pessoal do comprador ao tempo
do cumprimento ou em geral os motivos determinantes da vontade parecem
excluiacutedos do regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias como se diversamente
fosse na delimitaccedilatildeo do acircmbito de aplicaccedilatildeo do art 437ordm do CC eacute utilizada
exigecircncia idecircntica agrave do regime do erro sobre os motivos o acordo expresso
das partes sobre a essencialidade do motivo Esta orientaccedilatildeo deixa sem tutela
a alteraccedilatildeo de razotildees extracontratuais de natureza material ou pessoal que
pela sua gravidade merecem essa protecccedilatildeoraquo281
2 O CONCEITO DE LIFE TIME CONTRACTS
A temaacutetica deste coloacutequio na oacuterbita dos life time contracts permite
testar a bondade das nossas conclusotildees a respeito da delimitaccedilatildeo das
circunstacircncias atendiacuteveis por referecircncia agrave restriccedilatildeo que o conceito de base
negocial implica mas tambeacutem acerca do requisito negativo do alcance dos
riscos proacuteprios do contrato
O reconhecimento da existecircncia de contratos que pela natureza das
prestaccedilotildees envolvidas e pela sua duraccedilatildeo se revelam conaturais agrave existecircncia
da pessoa humana serve de fundamento agrave conceptualizaccedilatildeo dos life time
contracts e agrave anaacutelise da sua repercussatildeo em diferentes domiacutenios juriacutedicos
Trata-se de contratos que acompanham a expressatildeo da experiecircncia humana nas
suas vaacuterias dimensotildees e que em razatildeo da sua extensatildeo temporal imprimem
uma marca existencialista que soacute o tempo de uma vida permite Satildeo contratos
que garantem o substrato da vida do indiviacuteduo como o trabalho o
arrendamento os empreacutestimos de longa duraccedilatildeo Na definiccedilatildeo proposta pelo
grupo de trabalho liderado por Luca Nogler e Ugo Reifner (EuSoCo) laquolife
281 Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos contratos
cit paacutegs 20 e seguinte
121
time contracts are long-term social relationships providing goods services
and opportunities for work and income creation They are essential for the
self-realisation of individuals and their participation in society at various
stages in their liferaquo282 Eacute feliz a traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira em
texto que acompanhamos noutros momentos da nossa exposiccedilatildeo283 laquoOs
contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa satildeo relaccedilotildees sociais que
tecircm por objecto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e
os rendimentos necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo
na vida socialraquo
No nosso entendimento esta categoria contratual justificaria uma outra
conceptualizaccedilatildeo subsidiaacuteria fundada nos reflexos vitaliacutecios de contratos
instantacircneos A comercializaccedilatildeo de bens pessoais como a imagem ou a voz
ou os negoacutecios que tenham por objecto a aquisiccedilatildeo de bens duradouros satildeo
contratos que em medida relevante devem beneficiar da tutela que a
construccedilatildeo de princiacutepios fundamentais procura assegurar aos life time
contracts Estamos perante life time effects contracts
3 O ALCANCE DO PRINCIacutePIO PACTA SUNT SERVANDA
Na regulamentaccedilatildeo geneacuterica dos contratos predomina a perspectiva
relacional da liberdade de conformaccedilatildeo do conteuacutedo e assim da estabilidade
dos direitos e deveres acordados Uma vez nascida a relaccedilatildeo obrigacional o
seu cumprimento soacute muito residualmente pode ser afectado em razatildeo do
princiacutepio pacta sunt servanda Entende-se em geral que a vontade das partes
cria um espaccedilo de reserva que o salvaguarda das vicissitudes que a
socializaccedilatildeo justifica
No direito europeu a utilizaccedilatildeo da compra e venda como paradigma
da harmonizaccedilatildeo das regras contratuais acentua pelo seu caraacutecter instantacircneo
a desconsideraccedilatildeo dos interesses econoacutemicos e sociais que o reflexo
existencial de um contrato explica relevando neste contexto a situaccedilatildeo dos
trabalhadores arrendataacuterios e consumidores enquanto partes de contratos
duradouros
Em tais hipoacuteteses a tutela do creacutedito natildeo pode desconhecer os fins
existenciais que acompanham a prestaccedilatildeo Natildeo se trata de introduzir qualquer
282 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer
Credit Lawraquo (Luca NoglerUdo Reifner ndash eds) The Hague 2014 paacuteg xvii 283 Princiacutepios gerais sobre os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa
(traduccedilatildeo preliminar para portuguecircs ndash 1 de maio de 2015 documento distribuiacutedo aos
participantes no Coloacutequio)
122
dirigismo contratual de alcance colectivizante mas tatildeo-somente de
reconhecer que se agrave dimensatildeo econoacutemica do contrato acresce um outro
interesse principal relativo agrave dignidade da pessoa humana e assim de
impacto social o direito deve responder de forma ajustada apesar do princiacutepio
pacta sunt servanda
4 A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS NO DIREITO PORTUGUEcircS
A questatildeo eacute em especial significativa acerca da interpretaccedilatildeo dos
requisitos da resoluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo das
circunstacircncias no direito portuguecircs Desde logo e como noutra altura
salientaacutemos eacute preciso romper com a limitaccedilatildeo tradicional agrave base do negoacutecio
As razotildees extracontratuais satildeo frequentemente desconsideradas impedindo
a apreciaccedilatildeo dos factos agrave luz da boa feacute Na verdade se a variaccedilatildeo ocorre em
factos alheios aos pressupostos em que assentou a vontade de ambas as partes
o instituto vecirc a sua aplicaccedilatildeo prejudicada mesmo que a boa feacute aconselhasse a
revisatildeo
Eacute emblemaacutetico do sentido emprestado ao regime juriacutedico portuguecircs o
Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de 23 de janeiro de 2014 (Processo
1117109TVLSBP1S1 Relator Granja da Fonseca) a respeito do pedido
subsidiaacuterio de resoluccedilatildeo de um contrato-promessa de compra e venda de duas
fracccedilotildees imobiliaacuterias por alteraccedilatildeo das circunstacircncias pessoais e econoacutemicas
dos promitentes-compradores laquoDiferentemente do erro em que a base do
negoacutecio eacute unilateral respeitando exclusivamente ao errante na alteraccedilatildeo das
circunstacircncias a mesma eacute bilateral respeitando simultaneamente aos dois
contraentes (ie que se produza uma alteraccedilatildeo anormal das circunstacircncias em
que ambas as partes fundaram a decisatildeo de contratar) (hellip) De onde decorre
tout court que a alteraccedilatildeo das circunstacircncias pessoais dos contraentes eacute
insusceptiacutevel de preencher o instituto Designadamente a invocada
ldquodiminuiccedilatildeo significativa do poder de compra dos autores e a situaccedilatildeo de
desemprego em que se encontra a autora desde outubro de 2009rdquo Afloramento
aliaacutes da proibiccedilatildeo da sua invocaccedilatildeo como fundamento para exigir qualquer
reduccedilatildeo desconto ou abatimento da diacutevida ou dilaccedilatildeo da data do seu
vencimento como decorre do beneficium competentiae ou ne egeant do direito
romanoraquo Eacute ainda salientado que sem prejuiacutezo da aplicaccedilatildeo do entendimento
tradicional da teoria da base do negoacutecio excluindo pois a relevacircncia dos
factos considerados a exigecircncia de imprevisibilidade vedaria o pedido de
resoluccedilatildeo do contrato com os fundamentos invocados laquo(hellip) o nosso Supremo
Tribunal tem vindo a entender que nas situaccedilotildees de crise a alteraccedilatildeo relevante
carece ainda de ser anormal requisito ligado agrave imprevisibilidade pois que
sendo a alteraccedilatildeo normal as partes podiam tecirc-la previsto e acautelado na
123
conclusatildeo do contrato as suas consequecircncias (hellip) Ora as alteraccedilotildees da taxa
de juro e de esforccedilo o desemprego e a desvalorizaccedilatildeo da moeda mais a mais
desacompanhada da invocaccedilatildeo das concretas circunstacircncias de vida dos
autores agrave data da outorga dos contratos-promessas natildeo satildeo fundamentos
ligados agrave ideia de imprevisibilidaderaquo284
Eacute outra a liccedilatildeo do direito europeu que adoptando a perspectiva da
teoria da claacuteusula rebus sic stantibus permite submeter agrave anaacutelise de um criteacuterio
de razoabilidade circunstacircncias que embora alheias agrave definiccedilatildeo do objecto
contratual tecircm implicaccedilotildees numa dimensatildeo existencial da parte laquo(A
irrelevacircncia do conceito de base negocial) eacute o caminho dos instrumentos
internacionais mencionados A determinaccedilatildeo da alteraccedilatildeo das circunstacircncias
por referecircncia ao momento do cumprimento possibilita a consideraccedilatildeo de
factos que se tornaram essenciais depois da celebraccedilatildeo do contrato
designadamente no contexto da chamada ldquogrande base negocialrdquo ou razotildees
diversas da desproporccedilatildeo econoacutemica e assim alargar o acircmbito dos negoacutecios
abrangidos Estabelece-se um paralelismo com as razotildees da impossibilidade
de cumprimento permitindo entatildeo julgar que embora o requisito da
afectaccedilatildeo do objecto da prestaccedilatildeo distinga os regimes da impossibilidade e da
alteraccedilatildeo das circunstacircncias os factos que os motivam divergem da base
negocialraquo285
5 A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS NO DIREITO PORTUGUEcircS Agrave
LUZ DAS REFLEXOtildeES SOBRE LIFE TIME CONTRACTS AS
CIRCUNSTAcircNCIAS ATENDIacuteVEIS
A abordagem seguida no estudo sobre life time contracts a respeito das
circunstacircncias atendiacuteveis parece-nos equiacutevoca e porventura estranhamente
errada ao arrepio das opccedilotildees tomadas nos Princiacutepios Unidroit relativos aos
Contratos Comerciais Internacionais nos Principles of European Contract
Law (PECL) e no Draft Common Frame of Reference que neste contexto se
afiguram bem mais generosos286 As diferentes versotildees linguiacutesticas do estudo
que motiva esta reflexatildeo embora em sentidos natildeo necessariamente
convergentes acomodam a teoria da base do negoacutecio em eventual prejuiacutezo do
beneficiaacuterio da prestaccedilatildeo existencial Por outro lado no que excede a base do
284 Pode ser consultado nas bases de dados juriacutedico-documentais do Instituto de Gestatildeo
Financeira e Equipamentos da Justiccedila IP 285 Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos contratos
cit paacutegs 11 e seguinte 286 Ver Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos
contratos cit paacutegs 3 e seguintes
124
negoacutecio a proposta eacute injustificadamente limitada a circunstacircncias materiais
ou econoacutemicas
Cita-se a versatildeo inglesa laquo10 Adaptation If the social and economic
circumstances upon which a life time contract is based have changed
significantly since the contract was entered into or if material circumstances
from which the parties derived have arisen that are found to be at variance
with its original situation to such an extent that the social nature of the
contract is jeopardised and if the parties would not have entered into the
contract or would have entered into it on different terms had they foreseen this
change adaptation of the contract may be required if taking into account all
the circumstances of the specific case and in particular the contractual or
statutory allocation of risk and the fundamental obligation of a human being
one of the parties cannot reasonably be expected to continue to comply with
the contract without variation of its terms Collective regulation shall take
precedence over individual adaptationraquo287
Na traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira (laquo10 Adaptaccedilatildeo ou
modificaccedilatildeo do contratoraquo) laquo101 Se as circunstacircncias soacutecio-econoacutemicas
pressupostas pelas partes como fundamento da conclusatildeo do contrato natildeo se
verificarem havendo uma grave divergecircncia entre a realidade e a
representaccedilatildeo de que as partes partiram o conteuacutedo dos contratos duradouros
essenciais agrave existecircncia da pessoa deve ser adaptado ou modificado 102 A
divergecircncia pode referir-se agraves circunstacircncias presentes ou agraves circunstacircncias
futuras (error in futurum) e deve ser tatildeo grave que se as partes tivessem uma
representaccedilatildeo exacta da realidade natildeo teriam concluiacutedo nenhum contrato ou
teriam concluiacutedo um contrato de tipo ou de conteuacutedo diferente 103 Ao
apreciar-se a gravidade da divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo
deve atender-se ao fim do contrato agrave distribuiccedilatildeo legal ou contratual do risco
e ao significado social da relaccedilatildeo 104 O conteuacutedo do contrato soacute deve ser
adaptado ou modificado desde que a subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual sem
qualquer alteraccedilatildeo ou modificaccedilatildeo seja inexigiacutevel 105 Ao avaliar-se a
exigibilidade ou inexigibilidade da subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual deve
atender-se designadamente aos deveres fundamentais de uma pessoa
humana 106 O consumidor ou o trabalhador devem estar em condiccedilotildees de
cumprir os seus deveres fundamentais como por exemplo o dever de
assistecircncia aos seus familiares assegurando-lhes alimento vestuaacuterio e
habitaccedilatildeo 107 As regulamentaccedilotildees colectivas alcanccediladas atraveacutes dos
sistemas de representaccedilatildeo dos interesses dos consumidores e dos
287 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer
Credit Lawraquo cit paacuteg xix
125
trabalhadores devem ter prioridade sobre os resultados de uma adaptaccedilatildeo ou
de uma modificaccedilatildeo individualraquo
O juiacutezo que agora se faz eacute ainda mais discordante se considerarmos
que na anaacutelise das especificidades dos life time contracts o grupo de trabalho
(EuSoCo) olhou para as relaccedilotildees obrigacionais no seu plano primaacuterio de
desenvolvimento ou seja entre as partes Eacute paradigmaacutetico o princiacutepio relativo
ao reflexo da dimensatildeo humana dessas relaccedilotildees no exerciacutecio dos direitos e
deveres correspondentes laquo2 Human Dimension The subject matter of life time
contracts is real-life circumstances The role of the law governing them is to
frame the power relationships of those contracts in terms of human
development so that on-going co-operation rather than the formation of the
contract lies at the heart of the contratual relationship Personal relations
(such as the family) have to be taken into accountraquo288 Na traduccedilatildeo de Nuno
Manuel Pinto Oliveira (laquo2 Dimensatildeo humanaraquo) laquo21 O ponto central do
regime dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa deve ser o
indiviacuteduo na sua concreta realidade material e moral 22 O direito deve
preocupar-se em disciplinar a conclusatildeo do contrato e as relaccedilotildees de
cooperaccedilatildeo entre as partes conformando-as para proteger e para promover o
desenvolvimento da pessoa humana 23 Em especial o direito deve
preocupar-se em garantir que o desenvolvimento da pessoa humana natildeo seja
nem comprometido nem sequer deformado por relaccedilotildees de poder 24 Ao
fazecirc-lo deve ter em conta que o desenvolvimento de cada indiviacuteduo pressupotildee
relaccedilotildees pessoais particularmente significativas entre as quais estatildeo as
relaccedilotildees familiaresraquo
Se a existecircncia da pessoa eacute afectada na dimensatildeo primaacuteria referida
pouco interessa saber se a alteraccedilatildeo das circunstacircncias integra a base negocial
Eis o sentido que se procura tambeacutem emprestar ao direito portuguecircs Eacute
verdade que a abordagem do Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila antes
citado tomava por referecircncia a prestaccedilatildeo de trabalho remunerado nas
implicaccedilotildees que as suas vicissitudes tecircm noutras vinculaccedilotildees da pessoa
divergindo pois da perspectiva do estudo coordenado por Nogler e Reifner
A questatildeo analisa-se poreacutem do mesmo modo nos dois planos considerados
Desrespeita a dignidade humana pretender que os demais negoacutecios em
que o indiviacuteduo eacute parte satildeo imunes agrave alteraccedilatildeo das circunstacircncias existentes ao
tempo em que as partes celebraram life time contracts ao abrigo da
relatividade dos contratos (artigo 406ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil) Fundando as
razotildees que justificam proteger a relaccedilatildeo duradoura nos benefiacutecios que essa
relaccedilatildeo traz agrave existecircncia da pessoa eacute a relaccedilatildeo de causalidade que determina o
288 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer
Credit Lawraquo cit paacuteg xvii
126
contaacutegio das vicissitudes aos proveitos que aquela relaccedilatildeo duradoura permitia
Lembra-se que na definiccedilatildeo de life time contracts a dimensatildeo reflexa dos
efeitos permitidos pelo contrato eacute nuclear laquoThey are essential for the self-
realisation of individuals and their participation in society at various stages
in their liferaquo289 Na traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira recorda-se laquoOs
contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa (hellip) tecircm por objecto
proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos
necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialraquo
O regime dos artigos 437ordm a 439ordm do Coacutedigo Civil constitui lei que
excepciona a relatividade dos contratos pois a nosso ver a necessidade de
valoraccedilatildeo da manutenccedilatildeo do contrato sob o prisma da boa feacute exclui o conceito
de base negocial Eacute esta avaliaccedilatildeo que condiciona a decisatildeo sobre a
estabilidade da relaccedilatildeo obrigacional Como tambeacutem na jurisprudecircncia
portuguesa se salienta laquo(hellip) o direito das obrigaccedilotildees eacute um direito de
cooperaccedilatildeo social o negoacutecio juriacutedico visa realizar determinada cooperaccedilatildeo
entre os indiviacuteduos nele interferentes Daqui resulta que o negoacutecio deixaraacute de
produzir os seus efeitos tiacutepicos se factos supervenientes tornarem impossiacutevel
o miacutenimo de cooperaccedilatildeo nele visado Na determinaccedilatildeo e concretizaccedilatildeo desse
miacutenimo estaacute o princiacutepio da boa feacute Eacute ele que orienta todo o artigo 437ordm
envolvendo uma certa atipicidade A base do negoacutecio na altura da publicaccedilatildeo
do nosso Coacutedigo Civil era jaacute na Alemanha uma foacutermula vazia (hellip)raquo (Acoacuterdatildeo
do Supremo Tribunal de Justiccedila de 11 de marccedilo de 1999 Processo 15899
Relator Torres Paulo)290
Haacute uma eficaacutecia irradiante das vicissitudes dos contratos duradouros
essenciais agrave existecircncia da pessoa humana nas condiccedilotildees em que essa existecircncia
se desenvolve ou se expressa Assim justifica-se que num plano secundaacuterio
de desenvolvimento das relaccedilotildees obrigacionais apreciadas se situe a afectaccedilatildeo
de outros contratos se a boa feacute ou outro criteacuterio equivalente o legitimar As
vicissitudes nos life time contracts reforccedilam pois a adopccedilatildeo do criteacuterio da
claacuteusula rebus sic stantibus na aplicaccedilatildeo do artigo 437ordm do Coacutedigo Civil
Entre os princiacutepios desenhados para os life time contracts encontra-se
a fundaccedilatildeo desta tese Escreve-se sobre contratos relacionados laquo4 Linked
contracts Life time contracts are embedded in a network of linked contracts
to which the law must have regard when legal questions fall to be decidedraquo291
Na traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira (laquo4 Contratos coligadosraquo) laquoOs
289 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer
Credit Lawraquo cit paacuteg xvii 290 Pode ser consultado nas bases de dados da Colectacircnea de Jurisprudecircncia 291 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer
Credit Lawraquo cit paacuteg xvii
127
contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa integram-se em redes
de contratos ligados entre si O legislador e o juiz devem apreciar e resolver
os problemas por si suscitados considerando sistematicamente a ligaccedilatildeo entre
todos os contratos integrados na rederaquo
Eacute claro que na relaccedilatildeo entre outros contratos e os contratos duradouros
essenciais agrave existecircncia da pessoa podemos encontrar niacuteveis diversos de
dependecircncia No contrato de concessatildeo de creacutedito os contratos associados ao
objecto ou agrave actividade financiados estatildeo na oacuterbita contratual daquele Diverso
eacute o grau de dependecircncia entre os contratos que o salaacuterio de uma actividade
laboral remunera e a relaccedilatildeo de trabalho do devedor Neste caso a ausecircncia de
determinaccedilatildeo da finalidade da prestaccedilatildeo cumprida pela entidade empregadora
torna a ligaccedilatildeo entre o contrato de trabalho e as actividades juriacutedico-
econoacutemicas que o trabalhador desenvolve numa relaccedilatildeo indirecta Resta saber
se a teleologia em que se desenvolve a doutrina dos life time contracts tem a
amplitude suficiente para abranger os dois tipos de dependecircncia assinalados
A resposta parece-nos afirmativa
Em resumo as vicissitudes dos contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa reflectem-se nos contratos com aqueles relacionados
directa ou indirectamente como alteraccedilotildees relevantes nos termos do artigo
437ordm do Coacutedigo Civil A diferenciaccedilatildeo entre os planos primaacuterio e secundaacuterio
daqueles contratos natildeo eacute contudo despreziacutevel como veremos de seguida
6 A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS NO DIREITO PORTUGUEcircS Agrave
LUZ DAS REFLEXOtildeES SOBRE LIFE TIME CONTRACTS O RISCO
Deve reconhecer-se que uma malha menos apertada se justifica para a
relevacircncia da alteraccedilatildeo das circunstacircncias no contexto dos proacuteprios contratos
duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa Referimo-nos em especial ao
requisito negativo de a alteraccedilatildeo natildeo estar coberta pelos riscos proacuteprios do
contracto Julgamos assim questionaacutevel a opccedilatildeo tomada na definiccedilatildeo dos
princiacutepios aplicaacuteveis aos life time contracts Lembra-se a passagem relevante
do princiacutepio 10 sobre adaptation laquo(hellip) taking into account all the
circumstances of the specific case and in particular the contractual or
statutory allocation of risk and the fundamental obligation of a human being
()raquo Na traduccedilatildeo citada de Nuno Manuel Pinto Oliveira (laquo10 Adaptaccedilatildeo ou
modificaccedilatildeo do contratoraquo) laquo103 Ao apreciar-se a gravidade da divergecircncia
entre a realidade e a representaccedilatildeo deve atender-se ao fim do contrato agrave
distribuiccedilatildeo legal ou contratual do risco e ao significado social da relaccedilatildeoraquo
Exemplifiquemos a cessaccedilatildeo do contrato de trabalho eacute uma
circunstacircncia atendiacutevel na ponderaccedilatildeo da estabilidade dos negoacutecios celebrados
pelo indiviacuteduo com terceiros o agravamento dos encargos com um
128
empreacutestimo destinado a financiar a compra de uma casa eacute ponderaacutevel a
respeito da manutenccedilatildeo do respectivo contrato-promessa de aquisiccedilatildeo Em
qualquer dos casos as questotildees parecem enquadraacuteveis na aplicaccedilatildeo do artigo
437ordm do Coacutedigo Civil implicando a ponderaccedilatildeo do risco assumido pelo
interessado
Diversamente num contrato de creacutedito agrave habitaccedilatildeo adquirida a casa e
cessada portanto a relaccedilatildeo juriacutedica estabelecida com o vendedor a
legitimidade do exerciacutecio do direito de creacutedito pela instituiccedilatildeo financeira eacute
indissociaacutevel da dimensatildeo existencial do bem que o financiamento facultou e
a instituiccedilatildeo conhece Assim o incumprimento das prestaccedilotildees pelo aumento
das taxas de juro deve ser apreciado na perspectiva das consequecircncias que os
meios facultados ao credor para a tutela do seu direito tecircm na vida do devedor
A tal juiacutezo deve permanecer alheia a imputaccedilatildeo do risco legal ou contratual
ao arrepio do que a aplicaccedilatildeo do artigo 437ordm do Coacutedigo Civil determinaria
Eacute considerando este uacuteltimo enquadramento que se lecirc entre os
princiacutepios aplicaacuteveis aos life time contracts laquo15 Exclusion The social risks
of unemployment homelessness and over-indebtedness must be taken into
account in both the individual and the collective forms of the contract with due
regard to its social origin and in line with public lawraquo Na traduccedilatildeo de Nuno
Manuel Pinto Oliveira (laquo15 Miacutenimo de participaccedilatildeo na vida socialraquo) laquo151
O consumidor ou o trabalhador natildeo pode ser privado de um miacutenimo de
participaccedilatildeo na vida social 152 No momento da conformaccedilatildeo individual e
colectiva como no momento da interpretaccedilatildeo dos contratos duradouros
essenciais agrave existecircncia da pessoa deve considerar-se adequadamente os riscos
de exclusatildeo social da pessoa do consumidor ou do trabalhador 153 No
momento da conformaccedilatildeo como no momento da interpretaccedilatildeo do contrato
deve considerar-se designadamente os riscos de falta de emprego de falta de
habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento relacionando-os com as suas causas
soacutecio-econoacutemicas 154 Os princiacutepios e as regras de direito privado por que
se pretende prevenir o perigo de exclusatildeo social devem ser completados pelos
princiacutepios e pelas regras de direito puacuteblicoraquo A ideia tem reflexo em medidas
avulsas do legislador inclusivamente o portuguecircs Referem-se
designadamente os regimes estabelecidos nas Leis nordms 572012 582012 e
592012 de 9 de novembro reforccedilando a protecccedilatildeo dos mutuaacuterios de contratos
de creacutedito agrave habitaccedilatildeo e no Decreto-Lei nordm 582013 de 8 de Maio afastando
o regime geral da mora no cumprimento das obrigaccedilotildees em diacutevidas do
beneficiaacuterio de uma operaccedilatildeo de creacutedito
A resposta deve ser no entanto mais abrangente Encontra-se na
doutrina que sobre os life time contracts se pronuncia o reconhecimento da
insuficiecircncia do regime da resoluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo
das circunstacircncias na determinaccedilatildeo de um remeacutedio satisfatoacuterio para os
129
problemas que as vicissitudes naquele acircmbito colocam laquo(hellip) it could be
argued that when a debtor becomes unemployed or suffers an increase in the
interest rates applicable to the finance agreement or is affected by a global
economic crisis such as the current one the ldquostatus quordquo of the contract has
been breached The contract should therefore no longer be binding upon the
parties by application of the ldquorebus sic stantibusrdquo clause and the prejudiced
party would be entitled to amendment or termination of the contractual
relationship The ldquorebus sic stantibusrdquo clause therefore would allow the ex
post or retrospective amendment of the terms and conditions initially agreed
upon in the contract in order to rebalance the consideration resulting from it
However the lack of statutory recognition in the majority of legal systems ()
and a doctrinal foundation based on equity principles coupled with a
restrictive jurisprudential interpretation puts into question its operative
effectivenessraquo292
Em nossa opiniatildeo falta uma norma sobre a inexigibilidade da
prestaccedilatildeo entre os princiacutepios identificados no estudo editado por Luca Nogler
e Udo Reifner Na verdade na sua ausecircncia a alteraccedilatildeo das circunstacircncias fica
aprisionada pela assunccedilatildeo dos riscos proacuteprios do contrato
Exemplifique-se com o direito portuguecircs (artigo 437ordm do Coacutedigo
Civil) verifica-se uma precedecircncia loacutegica do criteacuterio do risco relativamente
ao criteacuterio da boa feacute A parte que assumiu o risco da alteraccedilatildeo das
circunstacircncias estaacute impedida de invocar a boa feacute em seu benefiacutecio Haacute uma
incompatibilidade natural entre a imputaccedilatildeo ao declarante da lesatildeo e o
reconhecimento de que a manutenccedilatildeo do contrato ofende gravemente o
princiacutepio da boa feacute Alguma doutrina admite ainda assim que
episodicamente a boa feacute prevaleccedila sobre a assunccedilatildeo do risco em razatildeo da
especial gravidade da alteraccedilatildeo para o lesado Neste sentido leia-se Almeida
Costa laquoNatildeo se exclui no entanto a possibilidade da ocorrecircncia de situaccedilotildees
excepcionais que apontem para a orientaccedilatildeo oposta visto que tambeacutem deve
ter-se presente o apelo que eacute feito aos princiacutepios da boa feacute Tudo residiraacute em
demonstrar riscos que excedam essa aacutelea normal definida supletivamente no
artigo 796ordm De qualquer modo apenas se coloca o problema a respeito da
292 Juana Pulgar A Contractual Approach to Over-Indebtedness Rebus Sic Stantibus Instead
of Bankruptcy in laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and
Consumer Credit Lawraquo cit paacuteg 534 Ver ainda Geraint Howells Change of Circumstances
in Consumer Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call for the
Maintenance of Sector Specific Rules in laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts
in Labour Tenancy and Consumer Credit Lawraquo cit paacutegs 460 e seguintes
130
revisatildeo e nunca da resoluccedilatildeo do contrato ou seja com vista a uma reparticcedilatildeo
equitativa dos danos pelas partesraquo293
A introduccedilatildeo de uma regra de inexigibilidade da prestaccedilatildeo permitiria
tratar a alteraccedilatildeo das circunstacircncias em contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa com a dulcificaccedilatildeo que a natureza desses contratos
justifica Retoma-se aqui a proposta de Nuno Manuel Pinto Oliveira que
merece o nosso aplauso Escreve laquoO Coacutedigo Civil poderia e porventura
deveria conter um artigo (p ex um art 790ordm-A) em que se dissesse o
seguinte ldquoSe a prestaccedilatildeo eacute excessivamente difiacutecil em tais condiccedilotildees que seria
gravemente contraacuterio agrave boa feacute reclamar o cumprimento pode o devedor
exonerar-se da obrigaccedilatildeo ou obter a modificaccedilatildeo destardquo O adveacuterbio
gravemente circunscreveria a aplicaccedilatildeo da regra aos casos em que a actuaccedilatildeo
do direito de creacutedito excedesse de forma evidente (hellip) os limites da boa feacute
deixando a descoberto o enlace entre os casos de dificuldade excessiva e de
abuso do direitoraquo294
Uma claacuteusula de inexigibilidade subtrairia a alteraccedilatildeo das
circunstacircncias ao procedimento de avaliaccedilatildeo do risco submetendo de
imediato a apreciaccedilatildeo da referida alteraccedilatildeo ao criteacuterio da boa feacute Esse parece-
nos ser o sentido que a legislaccedilatildeo portuguesa deveraacute seguir acomodando a
soluccedilatildeo que na actualidade tatildeo-soacute o recurso a argumentos de salvaguarda
permitem
A intervenccedilatildeo da lei que impute o risco ao lesado em contrato essencial
agrave existecircncia da pessoa pode estar ferida de inconstitucionalidade em razatildeo da
tutela da dignidade humana das condiccedilotildees de que a realizaccedilatildeo humana
concreta depende laquoA Constituiccedilatildeo confere uma unidade de sentido de valor
e de concordacircncia praacutetica ao sistema de direitos fundamentais E ela repousa
na dignidade humana O princiacutepio da dignidade da pessoa humana eacute pois a
referecircncia axial de todo o sistema de direitos fundamentais Pelo menos de
modo directo e evidente os direitos liberdades e garantias pessoais e os
direitos econoacutemicos sociais e culturais comuns tecircm a sua fonte eacutetica na
dignidade da pessoa de todas as pessoas Mas quase todos os outros direitos
ainda quando projectados em instituiccedilotildees remontam tambeacutem agrave ideia de
protecccedilatildeo e desenvolvimento das pessoas e a copiosa extensatildeo do elenco dos
direitos fundamentais das garantias institucionais e das tarefas do Estado natildeo
deve fazer perder de vista esse referencialraquo295 Tratando-se de uma claacuteusula de
293 Direito das Obrigaccedilotildees cit paacuteg 347 294 Princiacutepios de Direito dos Contratos Coimbra 2011 paacuteg 571 295 Jorge MirandaAntoacutenio Cortecircs Anotaccedilatildeo ao artigo 1ordm da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica
Portuguesa in laquoConstituiccedilatildeo Portuguesa Anotadaraquo (coord por Jorge MirandaRui Medeiros)
2ordf ediccedilatildeo Coimbra 2010 paacuteg 82
131
assunccedilatildeo voluntaacuteria do risco crecirc-se que o regime do artigo 280ordm nordm 2 do
Coacutedigo Civil fundamenta a sua ilicitude (laquoEacute nulo o negoacutecio contraacuterio agrave ordem
puacuteblica ou ofensivo dos bons costumesraquo)
Entretanto reconheccedila-se que em geral o reflexo das vicissitudes dos
contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa noutros contratos da
mesma natureza ou diversa eacute apreciado segundo a determinaccedilatildeo imediata da
boa feacute sem a triagem preacutevia dos pressupostos relativos agraves circunstacircncias em
que as partes fundaram a decisatildeo de contratar e ao risco proacuteprio do contrato
(artigo 437ordmdo Coacutedigo Civil)
Na verdade em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias contemporacircneas do contrato
que poreacutem se distanciam da sua base negocial falta em regra pela sua
natureza qualquer declaraccedilatildeo preacutevia da lei ou das partes a respeito da
imputaccedilatildeo do deacutebito da lesatildeo agrave esfera juriacutedica do proacuteprio lesado Em sentido
diferente do que sucede com a alteraccedilatildeo verificada no domiacutenio da base
negocial o risco eacute um risco de vida que por essa razatildeo deve ser apreciado
segundo o criteacuterio da boa feacute296
Admite-se contudo que a previsatildeo da lei ou a estipulaccedilatildeo das partes
possa dispor validamente sobre o risco da verificaccedilatildeo de factos
extracontratuais Nesse caso a disposiccedilatildeo parece imune aos argumentos de
ilicitude atraacutes invocados considerando a relatividade dos contratos Eis o
campo de aplicaccedilatildeo natural do princiacutepio sobre adaptaccedilatildeo ou modificaccedilatildeo
aplicaacutevel aos life time contracts que agora se propotildee
7 NOTAS FINAIS
Em suma meacuterito seja reconhecido aos promotores desta abordagem
que reclama a especificidade dos life time contracts A Luca Nogler e Udo
Reifner os parabeacutens pela publicaccedilatildeo de estudo tatildeo oportuno Sirva esta
intervenccedilatildeo como um desafio um repto que convoca o legislador e o aplicador
do direito portugueses mas espera-se que tambeacutem estimule os nossos colegas
estrangeiros a uma renovada ambiccedilatildeo na conceptualizaccedilatildeo dos princiacutepios
aplicaacuteveis aos contratos essenciais agrave existecircncia da pessoa humana A adopccedilatildeo
da claacuteusula rebus sic stantibus e a imunidade da apreciaccedilatildeo da alteraccedilatildeo das
circunstacircncias agrave imputaccedilatildeo legal ou contratual do risco satildeo as propostas
fundamentais que deixamos agrave reflexatildeo dos interessados Muito obrigado
296 Ver Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos
contratos cit paacutegs 14 e seguintes
132
133
As funccedilotildees do Direito da insolvecircncia no acircmbito de life
time contracts
(Breve reflexatildeo)
Catarina Serra
SUMAacuteRIO 1 Life time contracts 2 Contrato de creacutedito e insolvecircncia
3 O processo de insolvecircncia como via para o exerciacutecio de um direito ao
cumprimento (e ao natildeo cumprimento) das obrigaccedilotildees 4 A extinccedilatildeo dos
contratos O instituto da exoneraccedilatildeo do passivo restante 41 Nota histoacuterica
42 A exoneraccedilatildeo do passivo restante como causa extraordinaacuteria de extinccedilatildeo
das obrigaccedilotildees 43 O princiacutepio do cumprimento dos contratos e as razotildees que
justificam a exoneraccedilatildeo do passivo restante 44 Os abusos de exoneraccedilatildeo do
passivo restante 45 Sugestotildees de ajustamentos ao regime da exoneraccedilatildeo do
passivo restante
1 LIFE TIME CONTRACTS
Na preparaccedilatildeo desta intervenccedilatildeo aleacutem das naturais dificuldades
relacionadas com a falta de tempo deparei-me com as dificuldades do tema
central do Coloacutequio life time contracts
A primeira coisa que salta agrave vista eacute o facto de as palavras life e time
aparecerem separadas
Seria ldquocontratos vitaliacuteciosrdquo (ou contratos para toda a vida) uma
traduccedilatildeo adequada da expressatildeo life time contracts
Lendo o sub-tiacutetulo e as palavras introdutoacuterias dos Professores Luca
Nogler e Udo Reifner no livro homoacutenimo coordenado por ambos297 percebe-
O texto que se apresenta corresponde agrave intervenccedilatildeo oral efectuada no Coloacutequio Internacional
ldquoEm torno de Life Time Contractsrdquo realizado no dia 15 de maio de 2015 na Escola de Direito
da Universidade do Minho com a coordenaccedilatildeo cientiacutefica de Nuno Manuel Pinto Oliveira e
Benedita Mac Crorie Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho 297 LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts ndash Social Long-term Contracts in
Labour Tenancy and Consumer Credit Law The Netherlands Eleven International
Publishing 2014
134
se que natildeo ldquoLife timerdquo natildeo se refere ndash ou natildeo se refere exclusivamente ndash agrave
duraccedilatildeo da relaccedilatildeo contratual
Aleacutem de os contratos vitaliacutecios serem contraacuterios a um princiacutepio geral
do direito (o princiacutepio segundo o qual ningueacutem pode ficar indefinidamente
vinculado a uma obrigaccedilatildeo disposto em Portugal no art 280ordm nordm 1ordm do
Coacutedigo Civil)298 verifica-se que o que estaacute em causa satildeo contratos em que a
vida e o tempo aparecem como dois objectos distintos da relaccedilatildeo contratual
ou seja os contratos que tecircm em vista a satisfaccedilatildeo de necessidades baacutesicas
como um lugar para viver (contrato de locaccedilatildeo) o acesso a produtos e serviccedilos
(contrato de fornecimento) e o acesso a rendimentos (contrato de trabalho e
contrato de creacutedito)299 300
A noccedilatildeo de tempo natildeo eacute poreacutem completamente indiferente agrave
caracterizaccedilatildeo destes contratos No quadro dos sistemas de civil law eles satildeo
geralmente reconduzidos agrave categoria dos contratos de execuccedilatildeo continuada
(ininterrupta ou perioacutedica) Um dos traccedilos essenciais destes contratos eacute
portanto o de que o seu cumprimento integral depende da duraccedilatildeo301
2 CONTRATO DE CREacuteDITO E INSOLVEcircNCIA
Na obra dos Professores Luca Nogler e Udo Reifner o contrato de
creacutedito aparece como fonte de uma relaccedilatildeo contratual necessaacuteria e
complementar que permite seja disponibilizar rendimentos agrave medida das
298 No quadro das obrigaccedilotildees duradouras ldquo[a] faculdade de denuacutencia resulta como a doutrina
corrente assinala da natildeo admissibilidade da existecircncia de vinculaccedilotildees negociais eternas ou
excessivamente duradouras que satildeo consideradas contraacuterias agrave ordem puacuteblica entendimento
que se funda no art 280ordm do CCiv (hellip)rdquo [cfr LUIacuteS CARVALHO FERNANDES Teoria Geral
do Direito Civil vol II Lisboa Universidade Catoacutelica Portuguesa 2007 (4ordf ed) p 476] 299 Cfr LUCA NOGLER UDO REIFNER ldquoIntroduction The new dimension of life time in the
law of contracts and obligationsrdquo in LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts
ndash Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law cit pp 1-6 300 Na definiccedilatildeo dos Principles of Life Time Contracts life time contracts ou em portuguecircs
ldquocontratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoardquo satildeo ldquoas relaccedilotildees sociais que tecircm por
objecto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos
necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo [cfr ldquoPrinciples
of Life Time Contractsrdquo in LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts ndash Social
Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law cit xvii-xxx (traduccedilatildeo
preliminar de Nuno Manuel Pinto Oliveira)] 301 Cfr LUCA NOGLER UDO REIFNER ldquoIntroduction The new dimension of life time in the
law of contracts and obligationsrdquo cit pp 2-3
135
necessidades (creacutedito ao consumo empreacutestimos garantidos sistema de
pensotildees e reformas apoios agrave educcedilatildeo contas bancaacuterias serviccedilos de
pagamentos) seja aceder directamente a certos bens ou serviccedilos (habitaccedilatildeo
transporte luz aacutegua gaacutes) mediante pagamento diferido ou perioacutedico302 303
Adopte-se esta definiccedilatildeo e pense-se na impossibilidade de
cumprimento que pode afectar o consumidor dos rendimentos ou dos bens e
serviccedilos ndash a impossibilidade de cumprimento do dever de retribuir as
vantagens que o acesso agravequeles rendimentos e agravequeles bens e serviccedilos
representam (pagar o correspectivo)
Se essa impossibilidade de cumprimento for uma impossibilidade
qualificada existe insolvecircncia
Torna-se entatildeo necessaacuterio saber o que fazer com os contratos de
creacutedito
A dar-se-lhes sem mais continuidade existe o risco de que estes
contratos originariamente pensados para durar mas ainda assim
limitadamente se transmutem em obrigaccedilotildees vitaliacutecias pesando sobre o
sujeito ldquopara o resto da vidardquo (debt for life304)
A questatildeo seraacute entatildeo a de como controlar (limitar ou atenuar) estes
efeitos
A funccedilatildeo do Direito da insolvecircncia nestes contextos eacute oacutebvia Ele
disponibiliza formas para a adaptaccedilatildeo da relaccedilatildeo contratual agrave nova situaccedilatildeo do
devedor ou seja para modificar ou fazer cessar os contratos que natildeo podem
ser cumpridos pelo devedor nos termos inicialmente acordados305
Tendo em consideraccedilatildeo contudo que estaacute em causa o confronto dos
direitos de creacutedito com direitos absolutos de tipo pessoal (direitos de
personalidade) pergunta-se seratildeo o Direito da insolvecircncia e as formas por ele
disponibilizadas adequados a estes desiacutegnios
302 Cfr LUCA NOGLER UDO REIFNER ldquoIntroduction The new dimension of life time in the
law of contracts and obligationsrdquo cit p 6 303 O contrato de creacutedito assume entatildeo nesta uacuteltima modalidade a forma de um life time
contract impliacutecito que emerge no quadro de outros life time contracts 304 Para usar a expressatildeo de PETER COY [ldquoStudent Loans Debt for Liferdquo Business Week 2012
18 (disponiacutevel em httpwwwbloombergcombwarticles2012-09-06student-loans-debt-
for-life)] 305 Natildeo houve infelizmente tempo para tratar os instrumentos vocacionados para a
renegociaccedilatildeo dos contratos no caso de situaccedilatildeo econoacutemica difiacutecil ou insolvecircncia de pessoa
singular nomeadamente no quadro da lei portuguesa o plano de pagamentos aos credores e
o plano de revitalizaccedilatildeo
136
3 O PROCESSO DE INSOLVEcircNCIA COMO VIA PARA O EXERCIacuteCIO DE UM
DIREITO AO CUMPRIMENTO (E AO NAtildeO CUMPRIMENTO) DAS
OBRIGACcedilOtildeES
Eacute um facto incontestaacutevel que o acolhimento do instituto da exoneraccedilatildeo
do passivo restante por todas as leis da insolvecircncia europeias306 aumentou
significativamente o nuacutemero de casos em que o processo de insolvecircncia se
abre por iniciativa do devedor e em geral o nuacutemero de processos de
insolvecircncia307
As razotildees para isso satildeo evidentes
Mas a verdade eacute que jaacute muito antes de existir o atractivo da exoneraccedilatildeo
o poder de acccedilatildeo judicial do devedor era associado sobretudo pela doutrina
italiana a um direito ndash ao direito de cumprir308
306 A uacuteltima lei foi a espanhola que pela Ley 242013 de 27 de septiembre de apoyo a los
emprendedores y su internacionalizacioacuten introduziu a figura da ldquoliberacioacuten o remisioacuten de las
deudas insatisfechas en el concurso de acreedores de persona fiacutesicardquo A disciplina comporta
poreacutem uma importante diferenccedila face agrave disciplina prevista no Direito portuguecircs (e na maioria
dos ordenamentos) a exoneraccedilatildeo depende de o devedor ter conseguido satisfazer ateacute ao
encerramento do processo de insolvecircncia aleacutem dos creacuteditos sobre a massa e dos creacuteditos sobre
a insolvecircncia que beneficiem de garantias pelo menos 25 dos creacuteditos comuns 307 Cfr LUTHER ZEIGLER ldquoThe Fraud Exception to Discharge in Bankruptcy A Reappraisalrdquo
Stanford Law Review 1986 38 (3) p 891 308 Como se assinalou haacute algum tempo no plano formal ou processual a apresentaccedilatildeo agrave
insolvecircncia suscitou intensa discussatildeo A hipoacutetese (inicial) de considerar a iniciativa do
devedor como exerciacutecio de poder executivo que se apoiava na concepccedilatildeo (redutora) da
falecircncia como uma execuccedilatildeo (o devedor era o sujeito passivo do processo e a sentenccedila de
declaraccedilatildeo de falecircncia equivalia a uma sentenccedila de condenaccedilatildeo) foi excluiacuteda dada a
impossibilidade processual de se requerer uma execuccedilatildeo contra si proacuteprio Surge entatildeo a tese
do poder de acccedilatildeo judicial defendida pese embora com fundamentos e desenvolvimentos
diversos por GUSTAVO BONELLI [Commentario al Codice di Commercio volume VIII (Del
fallimento) Parte I Milano Vallardi sd p 154] ANTONIO BRUNETTI (Diritto fallimentare
italiano Roma SEFI 1932 p 121) CARLO DAVACK (La natura giuridica del fallimento
Padova CEDAM 1940 pp 178 e s) RENZO PROVINCIALI (Manuale di diritto fallimentare
I Milano Giuffregrave 1962 p 345) GIORGIO DE SEMO (Diritto fallimentare Padova CEDAM
1961 p 135) e PIERO PAJARDI [Manuale di diritto fallimentare (a cura di Manuela Bocchiola
e Alida Paluchowski) Milano Giuffregrave 2002 pp 84 e s] Todos eles associaram mais ou
menos explicitamente este direito de acccedilatildeo ao direito de cumprir e ao facto de o processo de
falecircncia ser o uacutenico meio que permite ao devedor insolvente exonerar-se das suas obrigaccedilotildees
Em Portugal a tese da apresentaccedilatildeo do devedor agrave falecircncia como exerciacutecio do poder de acccedilatildeo
foi perfilhada por vaacuterios autores como por exemplo PEDRO DE SOUSA MACEDO (Manual de
direito das falecircncias volume I Coimbra Almedina 1964 pp 315 e 316)
137
Estaraacute de facto o poder de acccedilatildeo do devedor associado ao direito de
cumprir ndash e logicamente ao (simeacutetrico) direito de natildeo cumprir309
Em defesa da tese da associaccedilatildeo do poder de acccedilatildeo do devedor ao
direito de cumprir dizia-se que tal como nas situaccedilotildees normais o devedor
pode paralisar a acccedilatildeo executiva cumprindo a obrigaccedilatildeo (exercendo o direito
de cumprir) nas situaccedilotildees em que o devedor estaacute insolvente portanto
impossibilitado de cumprir (de exercer o direito de cumprir) ele tem em
alternativa o poder de escolher o tipo de execuccedilatildeo mais adequada agrave sua
situaccedilatildeo patrimonial especial e ao oacutenus de respeitar a par conditio creditorum
O devedor exerceria em ambos os casos o seu direito de cumprir
expressamente tutelado na lei atraveacutes de institutos como a mora do credor
A admissibilidade desta tese eacute duvidosa
E a razatildeo fundamental para isso eacute numa palavra a de que o processo
de insolvecircncia natildeo assegura o cumprimento
Na grande maioria dos casos o processo de insolvecircncia eacute encerrado
permanecendo embora ainda muitas obrigaccedilotildees por cumprir O devedor
manteacutem-se pois vinculado e pode ser executado a qualquer momento por
estas obrigaccedilotildees
Mesmo quando o pedido de declaraccedilatildeo de insolvecircncia eacute acompanhado
por um pedido de exoneraccedilatildeo do passivo restante a exoneraccedilatildeo do devedor eacute
sempre soacute um resultado possiacutevel e limitado do processo de insolvecircncia ou seja
primeiro natildeo eacute garantido que a exoneraccedilatildeo seja concedida310 e mesmo quando
ela eacute concedida deixa sempre algumas categorias de obrigaccedilotildees incoacutelumes311
309 Enquanto direito ou faculdade o direito de cumprir envolve a possibilidade de deixar de
cumprir 310 Excepto no caso de pessoas juriacutedicas que em princiacutepio se extinguem apoacutes o encerramento
do processo de insolvecircncia em sistema nenhum o processo de insolvecircncia garante o devedor
um meio de exoneraccedilatildeo Assim eacute tambeacutem no Direito portuguecircs [cfr art 233ordm nordm 1 als c) e
d) do CIRE] 311 Da exoneraccedilatildeo satildeo ressalvados certos creacuteditos Desde logo implicitamente os creacuteditos
sobre a massa insolvente (cfr nordm 1 do art 245ordm do CIRE a silentio) Depois expressamente
os creacuteditos por alimentos as indemnizaccedilotildees devidas por factos iliacutecitos dolosos praticados pelo
devedor que hajam sido reclamados nessa qualidade os creacuteditos por multas coimas e outras
sanccedilotildees pecuniaacuterias por crimes ou contra-ordenaccedilotildees e os creacuteditos tributaacuterios [cfr art 245ordm
nordm 2 als a) b) c) e d) do CIRE]
138
4 A EXTINCcedilAtildeO DOS CONTRATOS O INSTITUTO DA EXONERACcedilAtildeO DO
PASSIVO RESTANTE
a NOTA HISTORICA
Pode pensar-se que a exoneraccedilatildeo eacute uma aquisiccedilatildeo recente mas a
verdade eacute que tanto quanto se sabe a primeira referecircncia agrave discharge aparece
no Direito inglecircs logo no iniacutecio seacuteculo XVIII mais precisamente num estatuto
de 1705312
Isto significa que a sua emergecircncia tem fundamentos mais antigos do
que as ideias recentes sobre o impacto da sociedade de consumo e a
necessidade de uma poliacutetica protectora (paternalista) dos consumidores313
Haacute sinais de que o destinataacuterio da discharge era inicialmente o
comerciante que colaborasse no processo de pagamento aos credores e nem
tanto o comerciante desafortunado ou infeliz mas o certo eacute que a lei acabou
por se fixar na imagem do ldquoinsolvente viacutetima das circunstacircnciasrdquo
O acircmbito dos beneficiaacuterios da discharge foi ao longo do tempo sendo
sucessivamente alargado ateacute que em 1861 se estendeu em definitivo a todos
os sujeitos314
b A EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO RESTANTE COMO CAUSA
EXTRAORDINAacuteRIA DE EXTINCcedilAtildeO DAS OBRIGACcedilOtildeES
Em rigor a exoneraccedilatildeo do passivo restante qualifica-se como uma
causa de extinccedilatildeo das obrigaccedilotildees extraordinaacuteria relativamente ao elenco de
causas tipificado geralmente nas lei civil
No Coacutedigo Civil portuguecircs existe um cataacutelogo (ainda que incompleto)
dos factos extintivos aleacutem do cumprimento do qual constam a daccedilatildeo em
cumprimento a consignaccedilatildeo em depoacutesito a compensaccedilatildeo a novaccedilatildeo a
remissatildeo e a confusatildeo (cfr arts 837ordm a 874ordm do Coacutedigo Civil)
312 Isto apesar de se ter mantido a pena de prisatildeo para o comerciante falido ateacute 1869 (e a pena
de morte para os casos de falecircncia fraudulenta) [cfr VANESSA FINCH (Corporate insolvency
law mdash Perspectives and principles Cambridge 2009 (second edition) p 11] 313 Na realidade em particular nas aacutereas do Direito com repercussatildeo econoacutemica (Direito
comercial Direito das sociedades Direito da insolvecircncia) parece existir a premissa de que as
pessoas singulares se opotildeem agraves pessoas juriacutedicas e se encontram face a estas em permanente
situaccedilatildeo de fragilidade 314 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law
Review 19901991 43 pp 109-110
139
Deste cataacutelogo resulta mais ou menos claro que os casos em que as
obrigaccedilotildees se extinguem por uma causa que natildeo seja o cumprimento satildeo
poucos e os casos em que as obrigaccedilotildees se extinguem sem nenhuma
contrapartida para o credor satildeo raros (em rigor apenas a remissatildeo entra nessa
categoria)
c O PRINCIacutePIO DO CUMPRIMENTO DOS CONTRATOS E AS
RAZOtildeES QUE JUSTIFICAM A EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO
RESTANTE
A convicccedilatildeo geral eacute a de que a liberaccedilatildeo do devedor deve ficar
dependente do consentimento do credor (soacute ele podendo abdicar do direito a
exigir a satisfaccedilatildeo do seu interesse) e natildeo pode ser judicialmente decidida315
Independentemente do que aconteccedila depois da celebraccedilatildeo do contrato e da
constituiccedilatildeo do devedor na obrigaccedilatildeo (das circunstacircncias supervenientes que
tornem o seu cumprimento mais oneroso) pacta sunt servanda Caso contraacuterio
criar-se-ia uma desconfianccedila generalizada quanto agrave forccedila vinculativa dos
contratos316
O que estaacute na base desta convicccedilatildeo eacute uma visatildeo de tipo individualista
(individualistic) tiacutepica de quem raciocina no estrito quadro do Direito dos
contratos
A esta visatildeo sobreveio ndash e foi-se impondo ndash uma visatildeo de tipo
comunitarista (communitarian) tiacutepica de um alargamento da reflexatildeo ao
Direito da insolvecircncia
Em defesa desta visatildeo argumenta-se que o ldquoganho socialrdquo (net social
gain) alcanccedilado com a exoneraccedilatildeo do devedor compensa os prejuiacutezos
associados agrave ldquoexpropriaccedilatildeordquo dos credores317
315 Este eacute justamente o caso da exoneraccedilatildeo em que os credores satildeo destituiacutedos dos seus
direitos de creacutedito independentemente de consentimento Como se diz no Acoacuterdatildeo do Tribunal
da Relaccedilatildeo do Porto de 23 de outubro de 2008 (relatora ANA PAULA LOBO) (disponiacutevel em
httpwwwdgsipt) ldquoa oposiccedilatildeo dos credores ao deferimento do pedido de exoneraccedilatildeo do
passivo restante natildeo eacute fundamento legal para o indeferimento desse pedidordquo Esta eacute a razatildeo
pela qual vem sendo sustentado que o acesso agrave exoneraccedilatildeo eacute um verdadeiro direito potestativo
do devedor (cfr por todos JOSEacute GONCcedilALVES FERREIRA A exoneraccedilatildeo do passivo restante
Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 69-70 e p 123) 316 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law
Review 19901991 43 p 99 317 Exclui-se desde jaacute qualquer possibilidade de associar a exoneraccedilatildeo a um ldquoganho
econoacutemicordquo ou seja de ver na exoneraccedilatildeo um mecanismo adicional para a satisfaccedilatildeo dos
credores Natildeo se adere assim a tese de LUIacuteS MENEZES LEITAtildeO [Direito da Insolvecircncia
140
A ideia encontra-se enraiacutezada desde haacute muito tempo no Direito norte-
americano e associa-se a uma outra a de que natildeo faz sentido (eacute mesmo injusto)
exigir o cumprimento em situaccedilotildees de excessivo sacrifiacutecio318
Para este entendimento teraacute sido decisiva de iniacutecio a ldquoideologia
burguesardquo reclamando o reconhecimento dos riscos inerentes agrave vida
econoacutemica e da mais-valia que representa a restituiccedilatildeo de um comerciante agrave
actividade produtiva
Coimbra Almedina 2009 (2ordf ed) pp 307-308] que afirma que a exoneraccedilatildeo natildeo representa
grande prejuiacutezo para os credores que passam a ter uma dupla oportunidade de satisfaccedilatildeo
durante o processo de insolvecircncia e durante o chamado ldquoperiacuteodo de cessatildeordquo em que o
rendimento disponiacutevel do devedor eacute afectado durante cinco anos ao pagamento dos creacuteditos
Na realidade com a exoneraccedilatildeo cada credor fica novamente sujeito a um rateio sendo que
ainda por cima quanto aos credores da insolvecircncia o que se reparte eacute tatildeo-soacute o remanescente
do pagamento aos credores da massa insolvente [cfr art 241ordm nordm 1 al d) do CIRE] Ora se
natildeo houvesse exoneraccedilatildeo natildeo haveria rateio A satisfaccedilatildeo do credor dependeria apenas da sua
diligecircncia processual e da data de prescriccedilatildeo do seu creacutedito o que natildeo poucas vezes
representaria um aumento significativo do prazo para agir executivamente contra o devedor
O periacuteodo de cessatildeo natildeo eacute aleacutem do mais suficientemente longo para que seja frequente o
devedor reconstituir-se in bonis e pagar dentro desse periacuteodo a todos os que permaneceram
seus credores 318 Apesar do Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer Protection Act of 2005 tornando
mais difiacutecil o acesso agrave discharge subsiste ainda hoje no Direito norte-americano uma
tendecircncia para a desresponsabilizaccedilatildeo do devedor ndash ldquotheory of irresponsabilityrdquo como alguns
lhe chamam (cfr BRIAN ROTHSCHILD ldquoThe illogic of no limits on bankruptcyrdquo Emory
Bankruptcy Developments Journal 2007 2 p 485) ndash para a imputaccedilatildeo do desastre
econoacutemico aos riscos normais da vida como o aparecimento de uma doenccedila que obriga a
despesas meacutedicas excepcionais o despedimento suacutebito ou ateacute o divoacutercio A generosidade do
regime legal para com o devedor serviria para compensar o baixo niacutevel de assistecircncia puacuteblica
Justamente na cerimoacutenia de assinatura do Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer
Protection Act of 2005 reconhecia o Presidente George W Bush ldquo[o]ur Bankruptcy laws are
an important part of the safety net of Americardquo Neste contexto o Bankruptcy Abuse
Prevention and Consumer Protection Act of 2005 foi apontado como uma medida de reduccedilatildeo
da ldquorede de seguranccedila socialrdquo (cfr ROBERT M LAWLESS ELIZABETH WARREN ldquoLos cambios
de la normativa concursal estadounidense en 2005 reduciendo parte da la red de seguridadrdquo
Revista de Derecho Concursal y Paraconcursal 2007 6 pp 405 e ss) Sobre as causas da
conformaccedilatildeo da mentalidade norte-americana neste sentido cfr TERESA A SULLIVAN
ELIZABETH WARREN JAY LAWRENCE WESTBROOK ldquoLess Stigma or More Financial Distress
An Empirical Analysis of the Extraordinary Increase in Bankruptcy Filingsrdquo 2006 (disponiacutevel
em httpssrncomabstract=903355 ou httpdxdoiorg102139ssrn903355) e RAFAEL
EFRAT ldquoBankruptcy stigma plausible causes for shifting normsrdquo Emory Bankruptcy
Developments Journal 2006 2 pp 481 e s
141
Gradualmente contudo os comerciantes deram lugar aos
consumidores na posiccedilatildeo de beneficiaacuterios da protecccedilatildeo da lei da
insolvecircncia319 320
Alega-se depois que quando o devedor estaacute insolvente a perda eacute
repartida entre os credores e natildeo se repercute apenas em um ou alguns deles
Em teoria apesar de opostas as duas abordagens natildeo satildeo
inconciliaacuteveis O Direito dos contratos natildeo pode permanecer agrave margem dos
interesses da comunidade nem tatildeo-pouco o Direito da insolvecircncia pode
desconsiderar completamente as legiacutetimas expectativas dos credores
(HILLMAN)321 322
Cumpre contudo fazer uma pergunta essencial Satildeo os argumentos
que suportam esta segunda visatildeo argumentos irrestritamente vaacutelidos
Em primeiro lugar que ganho social eacute esse que alegadamente
compensa os danos decorrentes do natildeo cumprimento das obrigaccedilotildees
Diga-se desde jaacute que tudo indica tratar-se de uma mera convicccedilatildeo de
ganho social ndash a convicccedilatildeo de que eacute melhor para a sociedade reintegrar o
319 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law
Review 19901991 43 pp 110-112 320 Diga-se de passagem que a limitaccedilatildeo da responsabilidade dos comerciantes haacute-de ter
contribuiacutedo para que eles tivessem deixado de estar no centro das atenccedilotildees 321 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law
Review 19901991 43 pp 101-102 e pp 129-136 Para uma anaacutelise da tese (proacutexima) do
Direito da insolvecircncia como legislaccedilatildeo social (social legislation) cfr TODD J ZYWICKI
ldquoBankruptcy Law as Social Legislationrdquo Texas Review of Law and Politics 2000-2001 5 pp
395 e ss 322 Segundo alguns a funccedilatildeo do Direito da insolvecircncia eacute precisamente a de compensar as
limitaccedilotildees do Direito dos contratos [cfr UDO REIFNER ldquoResponsible bankruptucyrdquo in LUCA
NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts ndash Social Long-term Contracts in Labour
Tenancy and Consumer Credit Law cit p 553] O autor pergunta-se no entanto se o Direito
da insolvecircncia pode cumprir esta funccedilatildeo Conclui que o Direito da insolvecircncia soacute perderaacute a
sua carga destrutiva e poderaacute contribuir eficazmente para o desenvolvimento econoacutemico geral
quando o Direito privado e o Direito puacuteblico se aproximarem e o Direito da insolvecircncia se
fundir com o Direito do creacutedito (a liquidaccedilatildeo e a recuperaccedilatildeo devem ser princiacutepios separados
e este uacuteltimo deve ser integrado no Direito do creacutedito) e for definido por um novo
entendimento de relaccedilotildees creditiacutecias responsaacuteveis e de longo-prazo (ob cit p 555 e pp 570-
571)
142
devedor na sua posiccedilatildeo produtiva do que deixaacute-lo acorrentado a diacutevidas que
ele natildeo tem a possibilidade de pagar323
O argumento do ldquoganho socialrdquo padece depois de um problema
quanto aos pressupostos Pressupondo a irrelevacircncia dos credores o
argumento deveraacute ser pelo menos restringido eacute melhor para a sociedade se
dela se excluiacuterem os credores nomeadamente as instituiccedilotildees de creacutedito que
fazem da concessatildeo de creacutedito profissatildeo
Concede-se no entanto que as vantagens da exoneraccedilatildeo do passivo
natildeo se esgotam no favor debitoris Haacute outras vantagens de alcance mais geral
Entre elas incluem-se por exemplo na possibilidade de a exoneraccedilatildeo
funcionar como um estiacutemulo agrave diligecircncia processual do devedor324 e um
mecanismo para a uniformizaccedilatildeo dos efeitos do encerramento do processo de
insolvecircncia325
Mais importante do que isto eacute o facto de a exoneraccedilatildeo (ou a
possibilidade de recurso a ela) ter um impacto positivo na economia Ela
provoca uma contracccedilatildeo no creacutedito e por causa dela reduzem-se os casos de
insolvecircncia Quanto mais restrito eacute o acesso ao creacutedito (por ser mais ldquoexigenterdquo
quem o concede e por isso ser mais ldquoresponsaacutevelrdquo quem o pede) menos seratildeo
os riscos de insolvecircncia (MICHELOTTI)326
Quanto ao segundo argumento ele tatildeo-pouco eacute isento de reservas
Eacute verdade que no processo de insolvecircncia haacute uma preocupaccedilatildeo
essencial de justiccedila distributiva A aplicaccedilatildeo do princiacutepio par conditio
creditorum visa precisamente assegurar a justa distribuiccedilatildeo do sacrifiacutecio isto
eacute que se constitui entre os credores uma ldquocomunhatildeo nas perdasrdquo
323 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law
Review 19901991 43 p 100 324 Cfr ALESSANDRO NIGRO ldquolsquoPrivatizzazionersquo delle procedure concorsuali sie ruolo delle
bancherdquo Banca Borsa e Titoli di Credito 2006 p 365 e VALERIO SANGIOVANNI ldquoLa
domanda di apertura del procedimento dinsolvenza nel diritto tedescordquo Il Fallimento 2006
5 p 504 325 Estaacute agora mais diluiacuteda por exemplo a substancial diferenccedila entre a insolvecircncia de uma
sociedade comercial (de qualquer pessoa juriacutedica) e a insolvecircncia de um comerciante (de
qualquer pessoa humana) Se com a sujeiccedilatildeo ao processo de insolvecircncia se extinguia (se
extingue) a sociedade e consequentemente se tornava (se torna) inviaacutevel a satisfaccedilatildeo dos
creacuteditos remanescentes agora eacute possiacutevel suceder coisa idecircntica ndash atraveacutes da exoneraccedilatildeo ndash no
caso do comerciante em nome individual [cfr FRANCO MICHELOTTI ldquoLrsquoesdebitazione ex artt
142 143 144 L Fallrdquo p 3 (disponiacutevel em httpwwwdottcommroit)] 326 Cfr FRANCO MICHELOTTI ldquoLrsquoesdebitazione ex artt 142 143 144 L Fallrdquo p 8
(disponiacutevel em httpwwwdottcommroit)
143
(Verlustgemeinschaft)327 ou uma ldquocomunhatildeo no riscordquo
(Risikogemeinschaft)328
Eacute verdade tambeacutem por outro lado que o princiacutepio par conditio
creditorum deve ser entendido em sentido material se o justo eacute o igual e o
injusto o desigual quando as pessoas natildeo satildeo iguais natildeo devem receber partes
iguais (ARISTOacuteTELES329)
Atentando todavia na disciplina da exoneraccedilatildeo e em particular nos
seus efeitos percebe-se que haacute creacuteditos que natildeo satildeo atingidos ou que satildeo
ressalvados do efeito exoneratoacuterio (na lei portuguesa por exemplo os creacuteditos
tributaacuterios) Em relaccedilatildeo a eles existe de facto o risco de eles se transmutarem
em ldquocontratos vitaliacuteciosrdquo pesando como se disse sobre o sujeito ldquopara o resto
da vidardquo
Eacute duvidoso que esta soluccedilatildeo possa ser imputada agrave (ou justificada com
base na) dimensatildeo material do princiacutepio da igualdade e nessa medida
considerada compatiacutevel com a ideia acima referida de justa distribuiccedilatildeo das
perdas330 Ela eacute ateacute susceptiacutevel de comprometer na praacutetica a utilidade da
exoneraccedilatildeo uma vez que reduz consideravelmente o alcance da exoneraccedilatildeo
327 Cfr OTHMAR JAUERNIG Zwangsvollstreckungs- und Insolvenzrecht Muumlnchen Verlag
CH Beck 1996 p 172 Diz o A que o ponto de saiacuteda do direito da falecircncia eacute a ruiacutena
econoacutemica do devedor a ordem juriacutedica reage determinando que todos os credores quando
natildeo possam obter plena satisfaccedilatildeo devem ser satisfeitos de forma paritaacuteria enfim concebe
uma espeacutecie de comunhatildeo de destino e de perdas (Schicksals-und Verlustgemeinschaft)
nenhum credor por se antecipar tem direito a receber mais do que os outros 328 Cfr HANS HEILMANN STEFAN SMID Grundzuumlge des Insolvenzrechts Eine Einfuumlhrung in
die Grundfragen des Insolvenzrechts und die Probleme seiner Reform Muumlnchen Verlag CH
Beck 1994 p 16 329 Cfr ARISTOacuteTELES Moral a Nicoacutemaco (traduccioacuten del griego por Patricio Azcaacuterate
introduccioacuten de Luis Castro Nogueira) Madrid Espasa Calpe 1993 pp 209-210 330 Se a subtracccedilatildeo ao efeito exoneratoacuterio dos creacuteditos por alimentos das indemnizaccedilotildees
devidas por factos iliacutecitos dolosos praticados pelo devedor que hajam sido reclamados nessa
qualidade e dos creacuteditos por multas coimas e outras sanccedilotildees pecuniaacuterias por crimes ou contra-
ordenaccedilotildees ndash que nem sempre existem e quando existem satildeo pouco significativos na
totalidade dos creacuteditos ndash ainda se pode considerar justificada natildeo obstante em grau variaacutevel
com base nos interesses que estatildeo na base da sua constituiccedilatildeo (presumivelmente o caraacutecter
alimentar das obrigaccedilotildees de alimentos a especial censurabilidade das condutas geradoras de
obrigaccedilotildees de indemnizaccedilatildeo e a especial natureza dos interesses em jogo nos casos de sanccedilotildees
pecuniaacuterias por violaccedilatildeo do Direito Penal ou do Direito de mera ordenaccedilatildeo social) jaacute a dos
creacuteditos tributaacuterios (que satildeo aleacutem do mais muito frequentes e tecircm na praacutetica uma grande
extensatildeo) pode discutir-se se natildeo seraacute uma generosidade excessiva da lei para com o Estado e
conduziraacute a uma discriminaccedilatildeo injustificada no universo dos credores
144
como instrumento de extinccedilatildeo da generalidade das diacutevidas do devedor
(MENEZES LEITAtildeO)331
d OS ABUSOS DE EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO RESTANTE
Na generalidade dos ordenamentos europeus a exoneraccedilatildeo estaacute ainda
circunscrita ao devedor que a mereccedila ndash ao ldquodevedor honesto e
desafortunadordquo332 pressupondo a inexistecircncia de causas de censurabilidade da
conduta do devedor anterior e posteriormente agrave declaraccedilatildeo de insolvecircncia333 334
O periacuteodo de cessatildeo aparece de facto uma espeacutecie de ldquoperiacuteodo
experimentalrdquo335 e a exoneraccedilatildeo como uma espeacutecie de ldquoliberdade condicional
por bom comportamentordquo336 Diz-se aliaacutes por isso que natildeo eacute rigorosamente
331 Cfr LUIacuteS DE MENEZES LEITAtildeO Coacutedigo da Insolvecircncia e da Recuperaccedilatildeo de Empresas
Anotado Coimbra Almedina 2009 (5ordf ed) p 246 332 A categoria tem origem na expressatildeo francesa ldquodeacutebiteur malheureux et de bonne foirdquo usada
na codificaccedilatildeo napoleoacutenica para qualificar o devedor (natildeo comerciante) admitido agrave cessatildeo de
bens prevista no Code Civil (cfr ALAIN BEacuteNABENT ldquoLa question de la bonne foi dans les
proceacutedures collectivesrdquo Gazette du Palais 2003 nordms 57-58 p 37) Tambeacutem foi amplamente
acolhida nos paiacuteses anglo-saxoacutenicos sob a foacutermula ldquohonest but unfortunate debtorrdquo (cfr por
exemplo BRIAN ROTHSCHILD ldquoThe illogic of no limits on bankruptcyrdquo Emory Bankruptcy
Developments Journal 2007 2 pp 483 e 502) 333 Neste ponto divergem como se sabe originariamente os ordenamentos europeus e o norte-
americano Para a histoacuteria da discharge no Direito norte-americano cfr CHARLES JORDAN
TABB ldquoThe historical evolution of the bankruptcy dischargerdquo American Bankruptcy Law
Journal 1991 65 pp 325 e ss e TERESA A SULLIVAN ELIZABETH WARREN JAY
LAWRENCE WESTBROOK ldquoLimiting access to bankruptcy discharge an analysis of the
creditorsrsquo datardquo Wisconsin Law Review 1983 pp 1098-1101 Para um confronto entre os
dois sistemas cfr JACOB ZIEGEL ldquoFacts on the Ground and Reconciliation of Divergent
Consumer Insolvency Philosophiesrdquo Theoretical Enquiries on Law 2006 7(2) pp 299 e ss 334 Ilustram-no bem na lei portuguesa as normas das als b) d) e f) e g) do nordm 1 do art 238ordm
das als a) e b) do nordm 1 do art 243ordm do nordm 2 do art 244ordm e do nordm 1 do art 246ordm do CIRE A
maioria refere-se expressa ou implicitamente (por remissatildeo) agrave culpa grave e ou ao dolo do
devedor na praacutetica de certos actos uma erige em causa de indeferimento liminar a condenaccedilatildeo
do devedor num dos crimes previstos e punidos nos arts 227ordm a 229ordm do Coacutedigo Penal 335 Usa-se esta expressatildeo no Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 20 de novembro de
2008 (Relator TELES DE MENEZES) (disponiacutevel em httpwwwdgsipt) 336 Natildeo se pode esquecer que o despacho de exoneraccedilatildeo pode ser revogado designadamente
a pedido de qualquer credor ateacute ao termo do ano subsequente ao seu tracircnsito em julgado (cfr
art 246ordm nordm 2 2ordf parte do CIRE) A revogaccedilatildeo importa a reconstituiccedilatildeo de todos os creacuteditos
extintos (cfr art 246ordm nordm 4 do CIRE)
145
possiacutevel falar de ldquofresh startrdquo sendo mais apropriado falar de ldquoearned
startrdquo337
Eacute portanto desejaacutevel que natildeo ocorram comportamentos abusivos Mas
o sistema natildeo eacute ainda perfeito
Pode acontecer que um sujeito se apresente agrave insolvecircncia com o
exclusivo propoacutesito de obter a exoneraccedilatildeo do passivo restante e para que o
pedido de declaraccedilatildeo de insolvecircncia proceda colocar-se intencionalmente
numa situaccedilatildeo de insolvecircncia ou ateacute de aparecircncia de insolvecircncia (transmitindo
a pessoas proacuteximas atraveacutes de actos fraudulentos todos os seus bens) O
processo de insolvecircncia seraacute aberto mas imediatamente declarado findo por
insuficiecircncia de bens Poderaacute deveraacute o processo de insolvecircncia prosseguir
nestes casos para a avaliaccedilatildeo dos pressupostos do pedido de exoneraccedilatildeo
Eacute comum admitir-se que o processo prossiga para avaliaccedilatildeo da
oportunidade do pedido de exoneraccedilatildeo338 339 Nem sempre seraacute uma boa
decisatildeo
A continuaccedilatildeo do processo nestes termos natildeo eacute compatiacutevel com o uso
dos instrumentos preordenados a reagir contra os actos prejudiciais agrave massa
337 Cfr UDO REIFNER JOHANNA NIEMI-KIESILAumlINEN NIK HULS HELGA SPRINGENEER
Overindebtedness in European Consumer Law Principles from 15 European States
Nordesstedt Books on Demand 2010 p 166 338 Cfr por exemplo os Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 5 de novembro de 2007
(Relator PINTO FERREIRA) e de 12 de maio de 2009 (Relator HENRIQUE ARAUacuteJO)
(disponiacuteveis em httpwwwdgsipt) Eacute de facto como se diz no primeiro Acoacuterdatildeo uma
decisatildeo possiacutevel ndash o texto do nordm 8 do art 39ordm do CIRE reforccedila este entendimento 339 No quadro da insuficiecircncia do patrimoacutenio do devedor haacute que distinguir duas hipoacuteteses A
hipoacutetese regulada no art 39ordm do CIRE diz respeito agrave situaccedilatildeo em que o juiz antes de declarar
a insolvecircncia se apercebe de factos que lhe permitem presumir que o patrimoacutenio do devedor
eacute insuficiente para a satisfaccedilatildeo das custas do processo e das diacutevidas previsiacuteveis da massa
insolvente Quando assim eacute a declaraccedilatildeo de insolvecircncia eacute uma declaraccedilatildeo limitada [aos
elementos constantes das aliacuteneas a) a d) e h) do art 36ordm do CIRE] pois o fim do processo estaacute
iminente [cfr art 39ordm nordm 7 al b) do CIRE] mas aquele facto (a insuficiecircncia da massa) natildeo
pode deixar de ser mencionado na sentenccedila (cfr art 39ordm nordm 1 do CIRE) Distinta desta eacute a
hipoacutetese regulada no art 232ordm nordm 1 do CIRE em que o juiz de nada se tendo apercebido no
momento da declaraccedilatildeo de insolvecircncia vem a ser alertado pelo administrador da insolvecircncia
de que a massa insolvente eacute insuficiente para a satisfaccedilatildeo das custas do processo e das restantes
diacutevidas da massa Uma vez ouvidos o devedor a assembleia de credores e os credores da
massa insolvente o juiz declara o encerramento do processo (cfr art 232ordm nordm 2 do CIRE)
O art 230ordm nordm 1 al d) do CIRE eacute claro sobre o momento em que a hipoacutetese tem lugar
incluindo-a nos casos em que o processo prossegue ldquoapoacutes a declaraccedilatildeo de insolvecircnciardquo
146
insolvente e a recuperar os bens indevidamente subtraiacutedos ao patrimoacutenio do
devedor (a resoluccedilatildeo e a impugnaccedilatildeo pauliana)340
Uma vez admitido o pedido de exoneraccedilatildeo bastaraacute ao devedor
encontrar um posto de trabalho natildeo excessivamente bem remunerado e
permanecer ldquona sombrardquo adoptando um modo de vida modesto durante os
cinco anos que dura o periacuteodo de cessatildeo Findo este periacuteodo ele estaraacute pronto
para reaver os bens ldquopostos a salvordquo nos patrimoacutenios alheios e ldquoembarcar em
novas aventurasrdquo
Acresce que existindo embora em todas as leis um limite temporal
entre exoneraccedilotildees ou seja um ldquoperiacuteodo de quarentenardquo341 natildeo existe um
limite maacuteximo de exoneraccedilotildees Nada impede portanto que o sujeito beneficie
de mais do que uma exoneraccedilatildeo podendo em uacuteltima anaacutelise passar parte da
vida a contrair diacutevidas e outra a desembaraccedilar-se delas
O perigo de ocorrecircncia destes casos eacute percebido por FINNIS Tomando
o regime da insolvecircncia como exemplo da justiccedila diz o autor
ldquo() the law of bankruptcy can itself be made the instrument of
injustice above all by the bankrupt himself For it is certainly
possible and in some places not uncommon that someone who could
pay his just debts if he were so minded may choose instead to have
them cancelled by bankruptcy submitting himself to temporary
inconvenience for the sake of a future freedom from financial
difficultyrdquo342
e SUGESTOtildeES DE AJUSTAMENTOS AO REGIME DA
EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO RESTANTE
Em siacutentese embora se reconheccedila a sua ldquobondade intriacutensecardquo (as razotildees
ldquohumanitaacuteriasrdquo subjacentes) talvez natildeo fosse desadequado reequacionar a
disciplina da exoneraccedilatildeo do passivo restante
Uma possiacutevel alteraccedilatildeo seria quanto agrave duraccedilatildeo do periacuteodo de cessatildeo
Este periacuteodo deveria ter a duraccedilatildeo adequada a possibilitar ao devedor em cada
340 Natildeo obstante os mecanismos de controlo da conduta do devedor compreendidos nos
(mencionados) arts 238ordm 243ordm 244ordm e 246ordm do CIRE Sobrevaloriza-os em certa medida
JOSEacute GONCcedilALVES FERREIRA (A exoneraccedilatildeo do passivo restante Coimbra Coimbra Editora
2013 p 155) 341 Na lei portuguesa o periacuteodo de quarentena eacute de dez anos (cfr al c) do nordm 1 do art 238ordm
do CIRE) sendo o pedido de exoneraccedilatildeo liminarmente indeferido quando o devedor tiver
beneficiado da exoneraccedilatildeo nos dez anos anteriores agrave data do iniacutecio do processo de insolvecircncia 342 Cfr JONH FINNIS Natural Law and natural rights Oxford Clarendon Press 1980 p 191
147
caso tentar ldquoliquidarrdquo o essencial do seu passivo restante e ldquolimparrdquo o seu
nome A exoneraccedilatildeo produzir-se-ia entatildeo na medida em que houvesse pelo
menos um esforccedilo ldquobem-intencionadordquo por parte do devedor isto eacute orientado
para cumprir e tendo em vista recuperar o seu bom nome
A hipoacutetese contraacuteria aparentemente a Recomendaccedilatildeo da Comissatildeo de
12 de marccedilo de 2014 segundo a qual a exoneraccedilatildeo dos empresaacuterios
insolventes deve ter lugar no fim de um periacuteodo natildeo superior a trecircs anos (cfr
recomendaccedilatildeo 30)343
Mas em primeiro lugar a duraccedilatildeo deste periacuteodo ainda varia muito de
ordenamento para ordenamento e em alguns casos eacute superior ao
recomendado344
Em segundo lugar a soluccedilatildeo proposta natildeo implicaria um
prolongamento generalizado do periacuteodo de cessatildeo mas apenas a possibilidade
do seu ajustamento em concreto agraves perspectivas de uma situaccedilatildeo financeira
compatiacutevel com o pagamento aos credores podendo ateacute ser eliminado (e a
exoneraccedilatildeo ser imediata) nos casos em que se tivesse alcanccedilado no processo
de insolvecircncia um pagamento significativo (qualificado) das diacutevidas
Uma segunda alteraccedilatildeo seria a determinaccedilatildeo expressa de que as
obrigaccedilotildees em vez de se extinguirem se converteriam em obrigaccedilotildees naturais
As obrigaccedilotildees sobreviveriam podendo o devedor se assim quisesse cumpri-
las a qualquer momento (e o credor reter a coisa prestada)
Esta eacute uma alteraccedilatildeo mais consensual uma vez que mesmo na inexistecircncia de
norma expressa alguns jaacute entendem que eacute isso que se passa345
Em ambos os casos tratar-se-ia de funcionalizar o processo de
insolvecircncia agrave realizaccedilatildeo natildeo de um direito ao cumprimento ndash que jaacute se disse
natildeo se acredita que exista ndash mas de direitos de outra natureza relacionados
com o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana e tendentes
343 Recomendaccedilatildeo C(2014) 1500 final sobre uma nova abordagem em mateacuteria de falecircncia e
de insolvecircncia das empresas [disponiacutevel (em portuguecircs) em
httpeceuropaeujusticecivilfilesc_2014_1500_ptpdf e (em inglecircs) em
httpeceuropaeujusticecivilfilesc_2014_1500_enpdf] Sublinhe-se contudo a
circunscriccedilatildeo da Recomendaccedilatildeo aos empresaacuterios ou seja agraves pessoas singulares titulares de
empresa 344 Em Portugal dura actualmente cinco anos Na Alemanha comeccedilou por durar sete anos mas
fixou-se posteriormente em seis podendo excepcionalmente (nos casos em que determinada
percentagem dos creacuteditos tenha sido satisfeita) durar apenas trecircs Em Inglaterra dura
geralmente doze meses 345 Assim em Portugal em face do art 245ordm nordm 1 do CIRE JOSEacute GONCcedilALVES FERREIRA A
exoneraccedilatildeo do passivo restante Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 119-127
148
a garantir um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida econoacutemica (miacutenimo de
existecircncia) (securing livelihood) e um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida social
[(preventing) exclusion]346 347
Tratar-se-ia de garantir por outro lado que os institutos satildeo usados
para as suas finalidades proacuteprias ou por outras palavras de reforccedilar a ligaccedilatildeo
devida entre o uso dos direitos e as ldquoboas intenccedilotildeesrdquo dos sujeitos
Por fim seria compreensiacutevel que a ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo dos
empresaacuterios operasse em termos diferentes das pessoas singulares natildeo titulares
de empresa Apesar da ldquodemocratizaccedilatildeordquo do acesso ao creacutedito o primeiro estaacute
teoricamente (ainda) exposto a maiores riscos do que o segundo e por outro
346 Cfr ldquoPrinciples of Life Time Contractsrdquo in LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life
Time contracts ndash Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law
cit xvii-xxx (traduccedilatildeo preliminar de Nuno Manuel Pinto Oliveira)] 347 Propondo um enquadramento da exoneraccedilatildeo nos direitos humanos CHRYSTIN ONDERSMA
[ldquoA human rights framework for debt reliefrdquo (disponiacutevel em
httpssrncomabstract=2390788)] sustenta que o tratamento da insolvecircncia das pessoas
singulares deveraacute ter em conta os seguintes direitos niacutevel de vida adequado (adequate
standard of living) direito agrave sauacutede (right to healthcare) direito ao trabalho e a uma
remuneraccedilatildeo justa (right to work and ldquofavorablerdquo remuneration) proibiccedilatildeo da prisatildeo por
diacutevidas (prohibition on incarceration for failure to pay debt) proibiccedilatildeo de escravatura por
diacutevidas (prohibition to debt peonage) discriminaccedilatildeo (discrimination) confidencialidade
(privacy) e dignidade humana (human dignity)
149
lado eacute-lhe exigiacutevel uma maior responsabilidade348 349 Eacute compreensiacutevel
portanto que o empresaacuterio honesto seja qualificado como tal por aplicaccedilatildeo de
criteacuterios distintos daqueles por que se afere a honestidade ou o meacuterito de outros
devedores350
348 Em princiacutepio o exerciacutecio do comeacutercio pressupotildee uma preparaccedilatildeo especial e cuidados
particulares Por forccedila da funccedilatildeo econoacutemica e social que desempenham os comerciantes
devem actuar com maior responsabilidade natildeo sendo livres de perseguir o seu interesse
pessoal ou de agir conforme lhes parece e tendo de avaliar (e saber avaliar) a situaccedilatildeo da sua
empresa e conduzir-se de forma a evitar a produccedilatildeo de danos para os interesses particulares e
geral Acresce que no caso de insolvecircncia ndash risco muito comum na actividade comercial
(ldquomercatores sunt semper in proximo periculo decoquendirdquo) ndash se produzem em regra
perturbaccedilotildees mais graves do que quando se trata de sujeitos comuns se um credor natildeo recebe
com pontualidade natildeo pode por sua vez pagar pontualmente aos seus credores a crise de um
repercute-se nos outros e pode muito bem espoletar uma crise colectiva ou geral Eacute
essencialmente isso que o legislador se propotildee evitar por exemplo quando constitui o devedor
titular de empresa na obrigaccedilatildeo de reagir em prazo uacutetil agrave sua crise individual (cfr art 18ordm nordm
1 do CIRE) No que respeita aos particulares o seu recurso ao creacutedito tem vindo a crescer
mas a verdade eacute que por maior que ele seja a situaccedilatildeo dos particulares e a dos comerciantes
nunca se identificaratildeo sempre seratildeo diversas a motivaccedilatildeo para o recurso ao creacutedito e a funccedilatildeo
que o creacutedito desempenha no creacutedito ao consumo existem particularidades que satildeo
completamente estranhas ao creacutedito comercial como por exemplo as ofertas de creacutedito
(solicitations to take credit) enfim satildeo distintos os grupos de interesses econoacutemicos
envolvidos e merecedores de tutela numa e noutra situaccedilatildeo 349 Por algum motivo a insolvecircncia (a falecircncia) foi durante tanto tempo um regime (quase)
exclusivo dos comerciantes Havendo embora tambeacutem um regime concursual para os
particulares os regimes divergiam ao niacutevel dos efeitos e tambeacutem dos pressupostos No giro
comercial ldquoa insuficiecircncia do activo em face do passivo natildeo constitui de per si uma
perturbaccedilatildeo do mecanismo econoacutemico Haacute a somar ao activo o creacutedito pessoal tantas vezes
de um valor igual ou superior ao activo patrimonial consequecircncia como eacute do saber do
trabalho e da honestidade do indiviacuteduordquo [cfr ponto 4 do Relatoacuterio do Diploma Preambular do
Coacutedigo de Falecircncias de 1935 (DL nordm 25 981 de 26 de outubro de 1935)] 350 Natildeo exige contudo que o comerciante honesto seja o (e preencha os respectivos requisitos
do) ehrlicher Kaufmann de que falava Kant Segundo Kant o comerciante devia agir com
honestidade por convicccedilatildeo e natildeo para daiacute retirar vantagens se o comerciante natildeo engana os
seus clientes porque receia perdecirc-los a sua conduta natildeo tem valor moral pois resulta de um
desejo ou inclinaccedilatildeo egoiacutesta se em vez disso o comerciante procede assim apenas porque
julga ter o dever de ser honesto entatildeo a sua conduta tem valor moral Cfr Immanuel Kant
Grundlegung zur Mataphysic der Sitten 1785 disponiacutevel em httpvirt052zimuni-duisburg-
essendekantaa04385html
150
151
A vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos
fundamentais e os contratos de longa duraccedilatildeo
Benedita Mac Crorie
1 Para esta comunicaccedilatildeo partimos de um caso concreto que natildeo eacute um
caso muito recente (a decisatildeo data de 1993) mas que apesar disso eacute um caso
que coloca questotildees de uma grande actualidade e que eacute muito relevante para a
problemaacutetica da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais tema
que nos propomos tratar e que por isso seraacute o ponto de partida para toda a
reflexatildeo que faremos
O caso eacute o chamado caso das fianccedilas ou o Buumlrgschaftsurteil351 e eacute
uma decisatildeo do Tribunal Constitucional Federal Alematildeo Neste caso um
banco concedeu a um comerciante um empreacutestimo de 100000 DM (marcos
alematildees) na condiccedilatildeo de que a filha deste uacuteltimo fosse a fiadora Quatro anos
mais tarde e perante a incapacidade do pai em pagar o empreacutestimo o banco
veio pedir-lhe este montante acrescido de 60000 DM (marcos alematildees) de
juros
Na altura em que o caso chegou ao Tribunal Constitucional Federal
Alematildeo a fiadora era matildee solteira e natildeo tinha rendimentos Nas diferentes
instacircncias a sua pretensatildeo de se escusar a pagar essa quantia foi obtendo
respostas diferentes O Tribunal Regional (Landesgericht) considerou que o
contrato era vaacutelido e que consequentemente a quantia teria de ser paga por
seu lado o Tribunal de Recurso (Oberlandesgericht) considerou que o
funcionaacuterio do banco tinha violado o seu dever de informaccedilatildeo uma vez que
antes da assinatura se tinha limitado a pedir-lhe para assinar dizendo-lhe
apenas que necessitava da assinatura para os ficheiros Esta decisatildeo foi
revogada pelo Tribunal Federal de Justiccedila (Bundesgerichtshof) que natildeo
considerou que houvesse tal dever entendendo que qualquer pessoa maior de
idade sabe que assinar um contrato de fianccedila envolve um risco O pai era
solvente na altura em que o contrato foi assinado pelo que a informaccedilatildeo
prestada pelo banco foi considerada suficiente
A filha recorreu entatildeo desta decisatildeo para o Tribunal Constitucional
Federal Alematildeo (Bundesverfassungsgericht) invocando que o Tribunal
Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho 351 BVerfGE 89 214 ss httpwwwservatunibechdfrbv089214html (28012016)
152
Federal de Justiccedila atraveacutes da sua decisatildeo violou o seu direito agrave dignidade (art
1ordm da Constituiccedilatildeo Federal) e a sua autonomia privada (que derivaria do
paraacutegrafo 1 do art 2ordm da Constituiccedilatildeo Federal conjugada com o princiacutepio do
Estado Social (paraacutegrafo 1 do art 20ordm e paraacutegrafo 1 do art 28ordm da
Constituiccedilatildeo Federal)
A sua queixa constitucional foi bem sucedida Na sua fundamentaccedilatildeo
o Tribunal Constitucional Federal alematildeo considerou que em circunstacircncias
normais os contratos devem ser assumidos pelos Tribunais como uma
expressatildeo por ambas as partes do seu direito fundamental agrave autonomia privada
No entanto entendeu tambeacutem que nos casos em que o desequiliacutebrio estrutural
de poderes negociais leva agrave celebraccedilatildeo de um contrato excessivamente oneroso
para a parte mais fraacutegil os tribunais ciacuteveis tecircm a obrigaccedilatildeo de intervir de modo
a garantir a posiccedilatildeo da parte mais fraca No caso em anaacutelise o desequiliacutebrio
negocial existiu porque o banco natildeo informou devidamente a filha dos riscos
de ser fiadora ainda que o risco fosse bastante elevado atendendo ao seu
rendimento
Entendeu o Tribunal que esta obrigaccedilatildeo dos tribunais deriva do seu
dever de garantir um direito constitucionalmente protegido agrave autonomia
privada conjugado com o princiacutepio do Estado social Desta argumentaccedilatildeo
resulta que ambas as partes ndash a forte e a fraca ndash gozam de um direito
constitucional agrave autonomia privada O caso foi configurado como se tratando
de um conflito de direitos fundamentais Consequentemente o Tribunal
Constitucional Federal entendeu que o Tribunal Federal de Justiccedila violou o
direito ao livre desenvolvimento da personalidade da requerente (do qual
entende que deriva o direito agrave autonomia privada) na decisatildeo que tomou352
2 Este caso eacute um dos exemplos mais conhecidos a propoacutesito dos
efeitos dos direitos fundamentais no direito privado e nesta decisatildeo haacute dois
352 OLHA CHEREDNYCHENKO Fundamental Rights Contract Law and the Protection of
the Weaker Party 2007 disponiacutevel em
httpdspacelibraryuunlbitstreamhandle187420945full pdfsequence=6 pp 208 ss
OLHA CHEREDNYCHENKO ldquoThe constitutionalization of contract law Something New
under the Sunrdquo in EJCL Vol 81 2004 pp 4 ndash 5 CLAUS DIETER CLASSEN ldquoDie
Drittwirkung der Grundrechte in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgericht in AoumlR
122 1997 p 77 CLAUS-WILHELM CANARIS ldquoA influecircncia dos direitos fundamentais
sobre o direito privado na Alemanhardquo in INGO WOLFGANG SARLET (org) Constituiccedilatildeo
Direitos Fundamentais e Direito Privado Livraria do Advogado Editora Porto Alegre 2003
pp 228 ndash 229 e IDEM ldquoGrundrechtswirkungen und Verhaltnismassigkeitsprinzip in der
richterlichten Anwendung und Fortbildung des Privatrechtsrdquo in JuS Heft 3 1989 p 168
153
aspectos essenciais que relevam para o tema que estaacute hoje a ser discutido neste
coloacutequio
Por um lado o facto de o Tribunal assumir que derivam das normas de
direitos fundamentais deveres de protecccedilatildeo do Estado seja do Estado
legislador seja do Estado juiacutez que implicam que este tenha de garantir que os
direitos fundamentais dos particulares natildeo satildeo violados por outros particulares
neste caso o direito ao livre desenvolvimento da personalidade
Assim num primeiro momento vou aprofundar um pouco mais a
questatildeo da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais de modo a
procurar perceber como eacute que essa vinculaccedilatildeo pode eventualmente vir a
ter um ldquoefeito correctorrdquo do conteuacutedo de determinados contratos
Por outro lado e intimamente ligada com a questatildeo anterior o facto de
o juiacutez constitucional ter considerado que este contrato natildeo deveria ser feito
valer invocando para isso o direito agrave autonomia privada da proacutepria pessoa que
se vinculou parece que poderaacute consubstanciar-se numa defesa da pessoa
contra si mesma libertando-a de um viacutenculo juriacutedico que pelo menos
pretensamente voluntariamente assumiu Perante isto seraacute relevante discutir
a questatildeo de saber se eacute legiacutetimo em Estado de Direito democraacutetico que o
Estado assuma uma posiccedilatildeo paternalista de defesa da pessoa contra si proacutepria
ou pelo menos em que situaccedilotildees eacute que poderaacute ser de admitir essa defesa
Ora sendo os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa
como eacute por exemplo o caso dos contratos de creacutedito a que nos estamos a referir
parece que ainda se colocaraacute neste domiacutenio com maior premecircncia a questatildeo
da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais Alguns dos
princiacutepios aplicaacuteveis aos contratos duradouros parecem precisamente traduzir
a influecircncia dos direitos fundamentais nas relaccedilotildees juriacutedicas privadas Eacute o caso
do reconhecimento da dimensatildeo humana envolvida nestes contratos o
reconhecimento de dimensotildees colectivas e eacuteticas o salientar de um dever de
informaccedilatildeo e transparecircncia a preocupaccedilatildeo com o respeito pelo princiacutepio da
igualdade a garantia de um miacutenimo de existecircncia a chamada de atenccedilatildeo para
o risco de exclusatildeo da vida social e a proacutepria remissatildeo para as regras e
princiacutepios de direito puacuteblico
De facto o acesso a serviccedilos financeiros tornou-se crucial para a
possibilidade de os consumidores poderem participar natildeo apenas no mercado
mas tambeacutem na proacutepria vida social353 pelo que a questatildeo da
353 OLHA CHEREDNYCHENKO ldquoFundamental Rights European Private Law and
Financial Servicesrdquo 09092013 disponiacutevel em httpssrncom abstract=2475762
(12012016) p 186
154
constitucionalizaccedilatildeo do direito privado parece ser particularmente relevante
nestas aacutereas
3 Vamos entatildeo comeccedilar por tratar a questatildeo da vinculaccedilatildeo dos
particulares aos direitos fundamentais e vamos fazecirc-lo tendo em consideraccedilatildeo
o ordenamento juriacutedico portuguecircs Apesar de a nossa Constituiccedilatildeo referir
expressamente a vinculaccedilatildeo das entidades privadas no nordm 1 do artigo 18ordm tem-
se entendido que esta norma natildeo eacute inteiramente conclusiva
Quanto a esta problemaacutetica as teorias tradicionalmente defendidas satildeo
as teorias monistas as dualistas e a teoria dos deveres de protecccedilatildeo Em termos
sucintos354 as teorias monistas defendem que os direitos fundamentais satildeo
directamente aplicaacuteveis nas relaccedilotildees juriacutedicas privadas ou seja natildeo carecem
da mediaccedilatildeo de disposiccedilotildees de direito privado para que possam ser opostas a
particulares Esta doutrina foi formulada pela primeira vez por Nipperdey na
altura presidente do Bundesarbeitsgericht (BAG) De facto a geacutenese e o
desenvolvimento mais fecundo da teoria da vinculaccedilatildeo dos particulares aos
direitos fundamentais teve como cenaacuterio o campo das relaccedilotildees laborais o que
bem se compreende atendendo ao desequiliacutebrio de forccedilas que caracteriza esse
tipo de relaccedilotildees355
Jaacute as teorias da eficaacutecia mediata desenvolveram-se a partir da
formulaccedilatildeo de Duumlrig e defendem que a influecircncia dos direitos fundamentais eacute
apenas indirecta e deveraacute levar-se a cabo principalmente atraveacutes da
densificaccedilatildeo de claacuteusulas gerais e conceitos indeterminados do direito
privado356
Para a teoria dos deveres de protecccedilatildeo os direitos fundamentais
vinculam apenas os entes puacuteblicos mas estes para aleacutem do dever de os
respeitar e concretizar tecircm ainda a responsabilidade de os proteger contra
quaisquer ameaccedilas ainda que essas ameaccedilas resultem da actividade de outros
particulares Parte-se aqui da distinccedilatildeo entre direitos fundamentais enquanto
354 Mais desenvolvidamente ver BENEDITA MAC CRORIE A Vinculaccedilatildeo dos Particulares
aos Direitos Fundamentais Almedina Coimbra 2005 IDEM Os limites da renuacutencia a
direitos fundamentais nas relaccedilotildees entre particulares Almedina Coimbra 2013 355 JUAN MARIacuteA BILBAO UBILLOS ldquoEn queacute medida vinculan a los particulares los
derechos fundamentalesrdquo in INGO WOLFGANG SARLET (org) Constituiccedilatildeo Direitos
Fundamentais e Direito Privado cit pp 302 ndash 305 356 GUumlNTER DUumlRIG ldquoGrundrechte und Zivilrechtsprechungrdquo in THEODOR MAUNZ
(org) Vom Bonner Grundgesetz zur gesamtdeutschen Verfassung Festschrift zum 75
Geburtstag von Hans Nawiasky Isar Verlag Muumlnchen 1956 pp 176 ndash 177 IDEM ldquoArt 1rdquo
in THEODOR MAUNZ ndash GUumlNTER DUumlRIG Grundgesetz Kommentar Verlag C H Beck
Muumlnchen 1997 pp 66 - 68 tambeacutem ROBERT ALEXY Teoria de los derechos
fundamentales Centro de Estudios Constitucionales Madrid 1993 pp 511 ndash 512
155
direitos de defesa em relaccedilatildeo ao Estado e direitos fundamentais enquanto
deveres de protecccedilatildeo357 Canaris eacute um dos principais defensores desta teoria
na sua aplicaccedilatildeo agraves relaccedilotildees juriacutedicas privadas Segundo ele o destinataacuterio
deste dever de protecccedilatildeo nas relaccedilotildees entre particulares eacute o legislador de
Direito Civil e particularmente o julgador do Direito Civil358
No caso que estivemos a analisar a decisatildeo do Tribunal Constitucional
Federal alematildeo seguiu precisamente esta perpectiva de Canaris quanto agrave
problemaacutetica da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais
partindo de uma ideia de deveres de protecccedilatildeo do Estado Natildeo eacute esta a
perspectiva que seguimos quanto agrave problemaacutetica da vinculaccedilatildeo dos
particulares aos direitos fundamentais uma vez que entendemos que do art
18ordm da CRP decorre uma ldquovinculaccedilatildeo directa prima facierdquo na linha do que
tem vindo a ser defendido por Ingo Wolfgang Sarlet359 dos particulares aos
direitos fundamentais
Mas independentemente da posiccedilatildeo adoptada hoje a existecircncia de uma
vinculaccedilatildeo dos particulares seja qual for a sua forma e o seu alcance eacute
inquestionaacutevel E apesar das divergecircncias entre as teorias referidas na praacutetica
estas conduzem muitas vezes ao mesmo resultado360 ainda que possa haver
alguma diferenccedila no que se refere ao alcance do papel do juiz na ausecircncia de
lei ordinaacuteria Neste uacuteltimo caso enquanto a teoria da eficaacutecia imediata aplicaraacute
o direito fundamental constitucionalmente consagrado em quaisquer
357 JOAtildeO JOSEacute NUNES ABRANTES A vinculaccedilatildeo das entidades privadas aos direitos
fundamentais Associaccedilatildeo Acadeacutemica da Faculdade de Direito de Lisboa 1990 pp 96 e 97
JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo
Portuguesa de 1976 4ordf Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2009 p 248 358 CLAUS-WILHELM CANARIS Direitos Fundamentais e Direito Privado Almedina
Coimbra 2003 pp 39 ndash 43 359 INGO WOLFGANG SARLET ldquoDireitos Fundamentais e Direito Privado algumas
consideraccedilotildees em torno da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentaisrdquo in INGO
WOLFGANG SARLET (org) A Constituiccedilatildeo concretizada Livraria do Advogado Editora
Porto Alegre 2000 p 157 Considerando tambeacutem que nas relaccedilotildees entre particulares a
vinculaccedilatildeo dos particulares sem deixar de ser directa eacute neste acircmbito e dimensatildeo menos
absoluta ver JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO O problema do contrato As claacuteusulas
contratuais gerais e o princiacutepio da liberdade contratual Almedina Coimbra 1999 p 137 360 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo
Portuguesa de 1976 cit p 246 JORGE MIRANDA Manual de Direito Constitucional
Tomo IV 4ordf Ediccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra p 303
156
circunstacircncias a teoria dos deveres de protecccedilatildeo apenas o faraacute quando esteja
em causa um deacutefice de protecccedilatildeo (Untermassverbot)361
Para a reflexatildeo de hoje natildeo eacute muito relevante a posiccedilatildeo que se adopte
seja a teoria dos deveres de protecccedilatildeo ou da vinculaccedilatildeo directa dos particulares
aos direitos fundamentais na medida em que a ideia central a reter eacute a de que
os direitos fundamentais podem assumir um papel no controlo que se faz aos
contratos celebrados entre particulares e particularmente nos contratos de
longa duraccedilatildeo
Ainda assim em defesa da vinculaccedilatildeo directa dos particulares aos
direitos fundamentais apenas dizer que esta natildeo implica ldquonegar ou subestimar
o efeito de irradiaccedilatildeo desses direitos atraveacutes da leirdquo Eacute de facto o legislador
quem em primeira linha deve resolver as situaccedilotildees de conflito de direitos
fundamentais que possam surgir362 Eacute muito diferente ldquoafirmar que as normas
de direitos fundamentais tecircm eficaacutecia normativa no acircmbito das relaccedilotildees entre
particulares sendo os cidadatildeos titulares de tais direitos reconhecidos na
Constituiccedilatildeo tambeacutem nas suas relaccedilotildees juriacutedico-privadasrdquo ou considerar ldquoque
a Constituiccedilatildeo eacute por si soacute o instrumento adequado e auto-suficiente para
regular a vigecircncia dos direitos fundamentais no seio de tais relaccedilotildeesrdquo363
Esta perspectiva tambeacutem natildeo infirma a existecircncia de um dever de
protecccedilatildeo do Estado que o vincula a proteger os particulares de ofensas ou
ameaccedilas aos seus direitos fundamentais cometidas por terceiros uma vez que
este dever natildeo eacute incompatiacutevel ou contraditoacuterio com a ideia de vinculaccedilatildeo
imediata O que nos parece eacute que para aleacutem disso poderaacute ainda existir uma
vinculaccedilatildeo imediata dos particulares a estes direitos364 Trata-se de ldquouma
inequiacutevoca zona de confluecircncia entre a vinculaccedilatildeo do poder puacuteblico (hellip) e a
vinculaccedilatildeo - directa - dos particularesrdquo365
361 JORGE REIS NOVAIS ldquoOs direitos fundamentais nas relaccedilotildees juriacutedicas entre
particularesrdquo in JORGE REIS NOVAIS Direitos Fundamentais Trunfos contra a Maioria
Almedina Coimbra 2006 pp 74 e 75 362 JUAN MARIacuteA BILBAO UBILLOS ldquoEn queacute medida vinculan a los particulares los
derechos fundamentalesrdquo cit p 317 363 RAFAEL SARAZAacute JIMENEZ Jueces Derechos Fundamentales y Relaciones entre
Particulares Universidad de La Rioja Logrontildeo 2008 disponiacutevel in dialnetuniriojaes p
691 364 DANIEL SARMENTO Direitos Fundamentais e Relaccedilotildees Privadas Editora Luacutemen Juris
Rio de Janeiro 2004 p 287 365 INGO WOLFGANG SARLET ldquoDireitos Fundamentais e Direito Privado algumas
consideraccedilotildees em torno da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentaisrdquo cit p 147
JOSEacute JOAQUIM GOMES CANOTILHO ndash VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica
Portuguesa Anotada Vol I Coimbra Editora Coimbra 2007 p 387 entendem que ldquonatildeo eacute a
157
Por outro lado o facto de se admitir uma vinculaccedilatildeo dos particulares
aos direitos fundamentais natildeo significa que estes natildeo devam poder dispor das
posiccedilotildees juriacutedicas subjectivas protegidas pelas normas de direitos
fundamentais Admitir-se a vinculaccedilatildeo directa tem como consequecircncia apenas
que se teraacute de analisar a relaccedilatildeo juriacutedico-privada atraveacutes dos direitos
fundamentais
Assim a autonomia privada deve ser de facto interpretada no sentido
de se permitir que as pessoas se vinculem nos termos em que em consciecircncia
pretendam fazecirc-lo Mas tendo em conta a importacircncia dos contratos de longa
duraccedilatildeo para a proacutepria existecircncia da pessoa pensamos que eacute fundamental que
haja uma preocupaccedilatildeo acrescida quanto agrave influecircncia que os direitos
fundamentais devem ter nesta mateacuteria particularmente para garantir que as
pessoas fazem as suas opccedilotildees efectivamente em condiccedilotildees de plena liberdade
e que mantecircm a liberdade depois de terem feito essas mesmas opccedilotildees
Vimos que no caso que analisaacutemos o Tribunal Constitucional Federal
alematildeo considerou que a sede da protecccedilatildeo constitucional da autonomia
privada reside no direito ao livre desenvolvimento da personalidade Entre noacutes
natildeo haacute consenso quanto agrave norma ou normas constitucionais das quais deriva a
garantia da autonomia individual (poderaacute eventualmente ser de distinguir entre
liberdade geral de acccedilatildeo e liberdade contratual considerando que a liberdade
contratual natildeo decorre directamente de um direito ao desenvolvimento da
personalidade ainda que possa estar impliacutecita em diversas disposiccedilotildees
constitucionais como eacute o caso da garantia do direito de propriedade privada
a garantia da existecircncia de um sector privado dos meios de produccedilatildeo e da
iniciativa econoacutemica privada a liberdade de exerciacutecio de profissatildeo e a
liberdade de constituir famiacutelia)366 Independentemente disso a autonomia
privada eacute protegida a niacutevel constitucional e a partir do momento em que
mesma coisa falar-se em vinculaccedilatildeo imediata de entidades privadas (hellip) ou em dever de
protecccedilatildeo (hellip) dos direitos liberdades e garantias dos privados contra privados atraveacutes do
Estadordquo 366 Quanto agrave questatildeo de saber de que forma a autonomia privada eacute protegida pela Constituiccedilatildeo
ver ANA PRATA A tutela constitucional da autonomia privada Almedina Coimbra 1982
pp 75 e 214 - 216 Tambeacutem JOAtildeO CAUPERS Os direitos fundamentais dos trabalhadores
e a Constituiccedilatildeo Lisboa 1985 pp 168 - 169 JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO O problema
do contrato As claacuteusulas contratuais gerais e o princiacutepio da liberdade contratual cit pp
147 - 148 GUILHERME MACHADO DRAY O princiacutepio da igualdade no Direito do
Trabalho Almedina Coimbra 1999 pp 177 e 178 JORGE MIRANDA Manual de Direito
Constitucional cit pp 74 e 326 PAULO MOTA PINTO ldquoO direito ao livre
desenvolvimento da personalidaderdquo in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra Coimbra Editora 1999 pp 199 ndash 206
158
consideramos que a autonomia privada goza de protecccedilatildeo jusfundamental os
particulares estatildeo tambeacutem vinculados ao seu respeito ou o Estado tem um
dever de proteger esta autonomia seja o Estado legislador seja o Estado Juiz
O facto de entendermos que haacute uma vinculaccedilatildeo dos particulares aos
direitos fundamentais natildeo implica que deva haver uma equiparaccedilatildeo total entre
pessoas puacuteblicas e privadas Sendo ambas as partes do conflito titulares de
direitos fundamentais a sua soluccedilatildeo dependeraacute sempre das circunstacircncias do
caso concreto e dos direitos fundamentais em causa tendo de se levar a cabo
uma ponderaccedilatildeo de bens ou valores367 que foi exactamente o que fez o
Tribunal Constitucional Federal alematildeo
Ora um dos criteacuterios fundamentais a ter em conta nessa ponderaccedilatildeo eacute
o grau de desigualdade faacutectica entre as partes368 Quanto mais uma das partes
da relaccedilatildeo se encontre numa posiccedilatildeo de supremacia maior seraacute a sua
vinculaccedilatildeo ao respeito do direito fundamental em causa e maior seraacute o dever
do Estado de garantir que efectivamente o que estaacute em causa eacute ainda um
exercicio de autonomia e natildeo uma conduta heterodeterminada Entre iguais a
regra deve ser o princiacutepio da liberdade natildeo sendo em princiacutepio de aplicar neste
domiacutenio criteacuterios de proporcionalidade369
No caso Buumlrgschaft o Tribunal Constitucional Federal alematildeo diz
expressamente que ldquose o conteuacutedo do contrato for excessivamente oneroso
para a parte mais fraca e desproporcionado natildeo devem os juiacutezes ater-se agrave ideia
de que contrato eacute contratordquo A desigualdade das partes foi neste caso
considerada decisiva para o Tribunal no reconhecimento de uma violaccedilatildeo ao
direito ao livre desenvolvimento da personalidade
4 Passando agora para a segunda questatildeo que eacute a de saber se eacute
legiacutetimo em Estado de Direito democraacutetico que o Estado assuma uma posiccedilatildeo
367 INGO WOLFGANG SARLET ldquoDireitos Fundamentais e Direito Privado algumas
consideraccedilotildees em torno da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentaisrdquo cit p 157 368 DANIEL SARMENTO Direitos Fundamentais e Relaccedilotildees Privadas cit pp 302 e 375 369 Nesse sentido JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO O Problema do Contrato As Claacuteusulas
Contratuais Gerais e o Princiacutepio da Liberdade Contratual cit p 138 JOSEacute CARLOS
VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo Portuguesa de 1976
cit p 314 PAULO MOTA PINTO ldquoO direito ao livre desenvolvimento da personalidaderdquo
cit p 234 entende que ldquoo acordo dos particulares eacute no domiacutenio juriacutedico-privado
considerado determinante para a ponderaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do peso relativo de certos bens
sobretudo no domiacutenio patrimonialrdquo Obviamente desde que respeitados os ldquolimites positivos
e negativosrdquo da liberdade contratual
159
paternalista de defesa da pessoa contra si proacutepria ou pelo menos em que
situaccedilotildees eacute que poderaacute ser de admitir essa defesa370
Um dos problemas fundamentais com que o Direito tem
inelutavelmente de se confrontar eacute o de estabelecer um compromisso entre os
valores em que uma dada comunidade se revecirc e visa prosseguir e a liberdade
dos indiviacuteduos de poderem escolher o modo de vida que pretendem levar371
Admitir-se a defesa da pessoa contra si proacutepria implica que se entenda que eacute
legiacutetimo o Estado proteger os direitos fundamentais do indiviacuteduo para o seu
proacuteprio bem e contra a sua vontade quando natildeo se lesam quaisquer bens de
terceiros ou da comunidade Haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre a defesa da pessoa
contra si mesma e o paternalismo estadual372 na medida em que se considera
paternalista um comportamento do Estado que visa impor protecccedilatildeo
independentemente da questatildeo de saber se essa protecccedilatildeo eacute ou natildeo desejada
pela pessoa protegida
Ora se se restringe a autonomia privada para o bem dos proacuteprios
cidadatildeos por se considerar que estes poderatildeo natildeo ter em devida conta as
consequecircncias desse acto de disposiccedilatildeo estamos perante uma medida
paternalista
Haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre a defesa de um mais ou menos abrangente
dever de protecccedilatildeo do Estado e a interpretaccedilatildeo do princiacutepio da dignidade da
pessoa humana previsto na CRP que se preconiza Na base da protecccedilatildeo da
pessoa contra si mesma encontra-se uma concepccedilatildeo de dignidade enquanto
princiacutepio que natildeo soacute envolve o reconhecimento da liberdade individual mas
370 Sobre esta questatildeo ver mais desenvolvidamente Benedita Mac Crorie Os limites da
renuacutencia a direitos fundamentais nas relaccedilotildees entre particulares cit e tambeacutem Benedita Mac
Crorie ldquoO paternalismo estadual e a legitimidade da defesa da pessoa contra si proacutepriardquo in
AAVV Anuaacuterio Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho Tomo I - Ano de
2012 ndash Responsabilidade e Cidadania Escola de Direito da Universidade do Minho
Departamento de Ciecircncias Juriacutedicas Puacuteblicas Braga 2012 pp 33 ndash 45 (e-book ISBN 978-
989-97970-0-0 disponiacutevel in httpsissuucomeduminhodocsfinal_
responsabilidade_e_cidadania106) 371 MARIA CELINA BODIN DE MORAES ldquoO conceito de dignidade humana substrato
axioloacutegico e conteuacutedo normativordquo in INGO WOLFGANG SARLET (org) Constituiccedilatildeo
Direitos Fundamentais e Direito Privado Livraria do Advogado Editora Porto Alegre 2003
pp 108 e 109 372 Quando o Estado age de modo paternalista em relaccedilatildeo aos seus cidadatildeos podemos falar de
paternalismo estadual ou seguindo a expressatildeo inglesa legal paternalism de paternalismo
juriacutedico KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht Duncker amp Humblot
Berlin 2005 pp 11
160
que tambeacutem pode justificar restriccedilotildees ao exerciacutecio das liberdades
individuais373
Pensamos que a dignidade natildeo deve ser entendida como um valor
objectivo que se pode inclusivamente opor agrave proacutepria vontade do indiviacuteduo
De facto justificar a defesa da pessoa contra si proacutepria invocando o princiacutepio
da dignidade corresponderia a aplicar este princiacutepio contra a finalidade da sua
consagraccedilatildeo pois a dignidade traduz-se precisamente na possibilidade de o
indiviacuteduo escolher em liberdade o rumo que pretende seguir na sua vida374 Se
o princiacutepio da dignidade for entendido neste sentido soacute em casos extremos
poderaacute justificar restriccedilotildees da liberdade seja quando estamos a falar de
pessoas que natildeo tecircm capacidade de autodeterminaccedilatildeo seja quando possa estar
em causa a possibilidade de ldquoautodeterminaccedilatildeo futurardquo375
Talvez natildeo seja no entanto de excluir que nas situaccedilotildees em que seja
particularmente difiacutecil avaliar a existecircncia ou ausecircncia de autodeterminaccedilatildeo e
haja uma forte presunccedilatildeo de natildeo-voluntariedade se equacione a possibilidade
de pressupor essa ausecircncia376 Poderatildeo pois excepcionalmente admitir-se
restriccedilotildees graccedilas ao custo associado com a determinaccedilatildeo de autonomia caso a
caso377 embora este tipo de soluccedilotildees mais gerais possam conduzir a situaccedilotildees
injustas
373 JEAN-PHILIPPE FELDMAN ldquoFaut-il proteacuteger lrsquohomme contre lui-mecircme La digniteacute
lrsquoindividu et la personne humainerdquo in Droits nordm 48 2009 pp 88 e 89 374 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoInconstitucionalidade do Artigo 6ordm da Lei sobre
a Colheita e Transplante de Oacutergatildeos e Tecidos de Origem Humanardquo in Scientia Iuridica nordms
286288 2000 pp 260 e 261 375 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo ldquoRenuacutencia a direitos
fundamentaisrdquo in JORGE MIRANDA (org) Perspectivas Constitucionais ndash Nos 20 anos da
Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 1996 pp 327 e 330 Considerando tambeacutem que soacute
em situaccedilotildees limite eacute que a dignidade pode servir para restringir a liberdade ver ANSGAR
OHLY ldquoVolenti non fit iniuriardquo ndash die Einwilligung im Privatrecht Mohr Siebeck Tuumlbingen
2002 p 104 376 JESSICA WILEN BERG ldquoUnderstanding waiverrdquo in Houston Law Review Vol 40 nordm
281 2003 httppapersssrncomsol3paperscfmAbstract_id=614522 (28012016) p 299
sustenta que uma das razotildees para limitar a possibilidade de renuacutencia eacute precisamente o grau de
dificuldade que pode implicar a prova de que a renuacutencia preenche ldquoo grau de autonomia
exigido em cada casordquo MARGARET JANE RADIN ldquoMarket Inalienabilityrdquo in Harvard
Law Review Vol 100 nordm 8 19861987 pp 1909 e 1910 entende que algumas restriccedilotildees
impostas agrave possibilidade de venda de certos bens no mercado decorrem das grandes
dificuldades que implica avaliar todas as transacccedilotildees de modo a aferir se o consentimento eacute
verdadeiramente livre 377 JESSICA WILEN BERG ldquoUnderstanding waiverrdquo cit p 325
161
Assim entende-se que a opccedilatildeo por correr determinados riscos se insere
no ldquoprojeto de vidardquo do proacuteprio indiviacuteduo projecto que deve ser escolhido
livremente de acordo com as suas convicccedilotildees pessoais porquanto em
ldquosociedades pluraisrdquo natildeo eacute ldquodesejaacutevel uma absoluta uniformizaccedilatildeo dos
comportamentos individuaisrdquo378 Assim quando o sujeito se coloca em perigo
ou mesmo quando provoca uma lesatildeo no seu direito sendo ele capaz e estando
em causa um comportamento autodeterminado trata-se ainda do gozo de
liberdade jusfundamentalmente protegida Numa sociedade democraacutetica e
pluralista deve haver ldquoum direito a errar a tomar maacutes decisotildees e a correr
riscosrdquo sem o qual ldquotoda a ideia de autodeterminaccedilatildeo perderia sentidordquo379
Natildeo se coaduna por isso com a imagem de Homem pressuposta na
Constituiccedilatildeo uma concepccedilatildeo que partindo de uma ideia de deveres de
protecccedilatildeo do Estado considera que este tem legitimidade para proteger o
indiviacuteduo de si proacuteprio380
Parece-nos relevante e aplicaacutevel agrave concepccedilatildeo de dignidade que aqui
defendemos a perspectiva de Martha Nussbaum no seu livro ldquoCreating
capabilities the Human Development Approachrdquo Neste livro a autora defende
que o grau de desenvolvimento de uma sociedade e o respeito pela dignidade
dos seus cidadatildeos natildeo se deve medir pelo seu PIB mas antes pela resposta agrave
seguinte questatildeo o que eacute capaz de fazer e ser cada pessoa Esta eacute uma
perspectiva pluralista quanto a valores porque tem como objectivo criar
capacidades mas natildeo impor que as pessoas as utilizem de facto e a ideia baacutesica
que defende eacute a de que certas condiccedilotildees de vida proporcionam agraves pessoas uma
vida que eacute merecedora da dignidade que elas possuem Assim a dignidade eacute
inerente agrave pessoa o que implica uma ideia de que todos somos dotados de
378 HELENA PEREIRA DE MELO ldquoA Igualdade de Oportunidades para Quem Opta pela
ldquoEstrada do Tabacordquo in RUI NUNES ndash MIGUEL RICOU ndash CRISTINA NUNES (orgs)
Dependecircncias Individuais e Valores Sociais Graacutefica de Coimbra Coimbra 2004 p 163 379 JOEL FEINBERG Harm to Self The Moral Limits of the Criminal Law Oxford University
Press New York Oxford 1986 p 62 380 Nesse sentido referindo-se agrave Constituiccedilatildeo alematilde MARTINA DOROTHEE EPPELT
Grundrechtsverzicht und Humangenetik GCA-Verlag Herdecke 1999 pp 203 e 204
tambeacutem CHRISTIAN HILLGRUBER Der Schutz des Menschen vor sich selbst Verlag Franz
Vahlen Muumlnchen 1992 p 147 JOSEF ISENSEE ldquoDas Grundrecht als Abwehrrecht und als
staatliche Schutzpflichtrdquo in JOSEF ISENSEE ndash PAUL KIRCHHOF (orgs) Handbuch des
Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland Vol V 2ordf Ediccedilatildeo C F Muumlller Verlag
Heidelberg 2000 pp 203 KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht Duncker
amp Humblot Berlin 2005 p 115
162
igual dignidade mas para aleacutem disso carece de ser desenvolvida atraveacutes da
criaccedilatildeo de capacidades381
Em conclusatildeo num Estado natildeo-paternalista que se funda na dignidade
da pessoa humana e no livre desenvolvimento da personalidade individual a
defesa da pessoa contra si mesma natildeo deve consequentemente justificar a
restriccedilatildeo de direitos fundamentais neste caso do direito agrave autonomia privada
Tal dever existe apenas em situaccedilotildees extremas ou quando a pessoa em causa
natildeo esteja em posiccedilatildeo de cuidar de si Sendo a autonomia um valor central na
nossa ordem juriacutedica e cabendo ao Estado criar condiccedilotildees de autonomia o
titular do direito natildeo deve poder consentir numa intervenccedilatildeo que lhe retire a
possibilidade de se autodeterminar livremente no futuro Parece-nos que o
caso analisado tambeacutem poderia ser visto sob esta perspectiva
Para aleacutem destas situaccedilotildees natildeo eacute de admitir uma ldquoprotecccedilatildeo impostardquo
que restrinja as possibilidades de actuaccedilatildeo do visado382 jaacute que tal protecccedilatildeo
implica uma violaccedilatildeo grave ldquoda presunccedilatildeo de liberdade que deriva do princiacutepio
da dignidade da pessoa humanardquo383 O que natildeo invalida evidentemente que
natildeo decorra da proacutepria norma ou normas constitucionais da qual ou das quais
deriva a protecccedilatildeo da autonomia privada deveres do estado de proteger essa
mesma autonomia legislando no sentido de garantir que esta seja
efectivamente exercida em condiccedilotildees de liberdade Tal pressupotildee por
exemplo que os contraentes sejam devidamente informados de todos os riscos
inerentes agrave celebraccedilatildeo de determinados contratos isto eacute haacute um dever de
protecccedilatildeo do legislador que se deve reflectir no estabelecimento de garantias
quanto agrave obtenccedilatildeo de um consentimento que seja verdadeiramente livre e
esclarecido
381 MARTHA NUSSBAUM Creating capabilities the Human Development Approach
Harvard University Press 2011 pp 18 ss 382 WERNER FROTSCHER ldquorsquoBig Brotherrsquo und das deutsche Rundfunkrechtrdquo in
Schriftenreihe der LPR Hessen nordm 12 2000 p 43 Considerando que a defesa da pessoa
contra a autolesatildeo natildeo estaacute incluiacuteda no dever de protecccedilatildeo estadual ver JOSEF ISENSEE
ldquoDas Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflichtrdquo cit p 190 383 CARLA AMADO GOMES ldquoEstado Social e concretizaccedilatildeo de direitos fundamentais na
era tecnoloacutegica algumas verdades inconvenientesrdquo in Scientia Iuridica Tomo LXLL nordm 315
2008 p 423
163
Os princiacutepios gerais sobre os contratos duradouros
essenciais agrave existecircncia da pessoa (life time contracts)
Alguns toacutepicos
Joseacute Joatildeo Abrantes
1 INTRODUCcedilAtildeO
A oportunidade de um coloacutequio sobre life time contracts contratos
laquoexistenciaisraquo contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa life
time contracts a ignorada dimensatildeo social do direito europeu dos contratos
por exemplo no DCFR criacutetica
2 JUSTICcedilA SOCIAL E CONTRATO
De Fouilleacute (laquoqui dit contractuel dit justeraquo) agrave actualidade - i eacute da
autonomia da vontade e da liberdade contratual sem limites a um novo
conceito de contrato marcado pelo cercear crescente daquela autonomia e
daquela liberdade Da liberdade abstracta agrave liberdade concreta A
funcionalizaccedilatildeo dos direitos e do contrato Um contrato laquomenos contratualraquo
(Josserand)
Da afirmaccedilatildeo da igualdade juriacutedico-formal dos contraentes ao
reconhecimento da sua desigualdade real Dos coacutedigos civis oitocentistas agrave
criacutetica do liberalismo (vg com Otto von Gierke Philipp Lotmar e Anton
Menger entre outros) e agrave laquocrise do contratoraquo A entrada em cena da justiccedila
social
3 A PROTECCcedilAtildeO DO CONTRAENTE DEacuteBIL
Momentos diferenciados dessa protecccedilatildeo mdash numa primeira fase a
debilidade contratual encarada apenas como caracteriacutestica individual do
contraente daiacute a resposta para o problema aparecer centrada sobretudo nas
teorias das incapacidades e dos viacutecios da vontade no regime dos negoacutecios
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
164
usuraacuterios (lesatildeo) nos institutos da imprevisatildeo e do abuso de direito etc mdash
mais tarde eacute que se passa a encarar essa debilidade como caracteriacutestica de
certas categorias de contraentes como o trabalhador o inquilino o comprador
a creacutedito ou a prestaccedilotildees o mutuaacuterio etc a tutela do aderente nas claacuteusulas
contratuais gerais (contratos de adesatildeo) garantia constitucional da autonomia
privada
4 JUSTICcedilA CONTRATUAL NOS CONTRATOS laquoEXISTENCIAISraquo VG NO
CONTRATO DE TRABALHO
Constitucionalizaccedilatildeo materializaccedilatildeo e socializaccedilatildeo do direito privado
A Constituiccedilatildeo como objektive Wertordnung e a eficaacutecia horizontal dos
direitos fundamentais (artordm 18ordm1 da CRP) Justiccedila social no direito dos
contratos breve referecircncia ao DCFR e agrave invalidade dos contracts infringing
fundamental principles (art II-7301) O caso do contrato de trabalho foi sob
a eacutegide da ideia de protecccedilatildeo do contraente deacutebil que o juslaboralismo ganhou
foros de cidadania em relaccedilatildeo ao direito civil Referecircncia aos artigos 14ordm e
seguintes do Coacutedigo do Trabalho algumas questotildees
165
Os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos
essenciais como life time contracts
Jorge Morais Carvalho
1 ENQUADRAMENTO E SEQUEcircNCIA
O convite formulado pelo Prof Doutor Nuno Manuel Pinto Oliveira
para participar em coloacutequio sobre o tema em Braga no dia 15 de maio de
2015 foi o meu primeiro contacto com os Life Time Contracts384 que podem
ser designados em portuguecircs como contratos duradouros essenciais agrave
existecircncia da pessoa385
Pensei de imediato em estudar a aplicaccedilatildeo dos princiacutepios gerais sobre
Life Time Contracts aos contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais
suspeitando da sua relevacircncia neste acircmbito
Tal como na apresentaccedilatildeo feita no coloacutequio tambeacutem neste texto
depois de indicar quais satildeo face agrave lei portuguesa os contratos de prestaccedilatildeo de
serviccedilos puacuteblicos essenciais ocupar-me-ei da questatildeo de saber se estes podem
ser qualificados como Life Time Contracts Nos pontos subsequentes tratarei
de dois problemas especiacuteficos que se colocam nos contratos de prestaccedilatildeo de
serviccedilos puacuteblicos essenciais ambos ligados agrave cessaccedilatildeo do contrato e que
podem e devem ser analisados agrave luz dos princiacutepios gerais sobre Life Time
Contracts Satildeo eles a cessaccedilatildeo do contrato pelo utente durante o denominado
periacuteodo de fidelizaccedilatildeo e a suspensatildeo e posterior cessaccedilatildeo do contrato pelo
prestador do serviccedilo
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Investigador do CEDIS
ndash Centro de Investigaccedilatildeo amp Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade 384 AAVV (coordenaccedilatildeo de Luca Nogler e Udo Reifner) Life Time Contracts Eleven
International Publishing The Hague 2014 385 Segundo a traduccedilatildeo feita pelo Prof Doutor Nuno Manuel Pinto Oliveira que seraacute seguida
ao longo do texto nas citaccedilotildees dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts
166
2 CONTRATOS DE PRESTACcedilAtildeO DE SERVICcedilOS PUacuteBLICOS ESSENCIAIS
Nos termos do artigo 9ordm-8 da Lei de Defesa do Consumidor386
ldquoincumbe ao Governo adotar medidas adequadas a assegurar o equiliacutebrio das
relaccedilotildees juriacutedicas que tenham por objeto bens e serviccedilos essenciais
designadamente aacutegua energia eleacutetrica gaacutes telecomunicaccedilotildees e transportes
puacuteblicosrdquo
A Lei nordm 2396387 regula certos aspetos dos contratos relativos a
serviccedilos puacuteblicos essenciais natildeo se aplicando apenas aos contratos de
consumo O regime tem um acircmbito subjetivo de aplicaccedilatildeo mais alargado Com
efeito o artigo 1ordm-1 refere-se ldquoagrave proteccedilatildeo do utenterdquo e o nordm 3 considera
ldquoutente para os efeitos previstos nesta lei a pessoa singular ou coletiva a quem
o prestador do serviccedilo se obriga a prestaacute-lordquo Assim o diploma aplica-se a
todos os contratos em que se verifique a prestaccedilatildeo de um serviccedilo puacuteblico
essencial independentemente da natureza juriacutedica ou da dimensatildeo do
utente388 Soacute no caso de o utente ser simultaneamente um consumidor nos
termos da Lei de Defesa do Consumidor389 por exemplo eacute que se trata de uma
relaccedilatildeo de consumo390 mas em todas as situaccedilotildees o objeto das normas tem
386 Lei nordm 2496 de 31 de julho (retificada pela Declaraccedilatildeo de Retificaccedilatildeo nordm 1696 de 13 de
novembro) alterada pela Lei nordm 8598 de 16 de dezembro pelo Decreto-Lei nordm 672003 de
8 de abril e pelas Leis nos 102013 de 28 de janeiro e 472014 de 28 de julho 387 Lei nordm 2396 de 26 de julho alterada pelas Leis nos 52004 de 10 de fevereiro 122008
de 26 de fevereiro 242008 de 2 de junho 62011 de 10 de marccedilo 442011 de 22 de junho
e 102013 de 28 de janeiro 388 ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO ldquoO Anteprojecto de Coacutedigo do Consumidorrdquo in O Direito
Ano 138ordm IV 2006 p 706 389 Segundo o artigo 2ordm-1 da Lei de Defesa do Consumidor ldquoconsidera-se consumidor todo
aquele a quem sejam fornecidos bens prestados serviccedilos ou transmitidos quaisquer direitos
destinados a uso natildeo profissional por pessoa que exerccedila com caraacuteter profissional uma
atividade econoacutemica que vise a obtenccedilatildeo de benefiacuteciosrdquo O conceito de consumidor pode ser
analisado com referecircncia a quatro elementos (embora alguns deles possam em determinadas
normas ficar vazios) elemento subjetivo elemento objetivo elemento teleoloacutegico e elemento
relacional (CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA Direito do Consumo Almedina Coimbra 2005
p 29 JORGE MORAIS CARVALHO Manual de Direito do Consumo 2ordf ediccedilatildeo Almedina
Coimbra 2014 p 15)Note-se que o elemento teleoloacutegico exclui do conceito todas as pessoas
fiacutesicas ou juriacutedicas que atuam no acircmbito de uma atividade profissional independentemente
de terem ou natildeo conhecimentos especiacuteficos no que respeita ao negoacutecio em causa Distinguem-
se neste elemento de forma clara os conceitos de consumidor e de utente 390 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em
Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra
2002 p 123
167
uma grande afinidade com o direito do consumo consistindo tambeacutem na
proteccedilatildeo de uma das partes do contrato precisamente aquela que no contrato
em concreto natildeo tem conhecimentos especiacuteficos na aacuterea do serviccedilo em causa
Neste sentido justifica-se que esta mateacuteria seja normalmente incluiacuteda no
estudo do direito do consumo391
Apesar da referecircncia a serviccedilos puacuteblicos os contratos a que a Lei nordm
2396 se refere satildeo contratos de direito privado392 independentemente de o
prestador de serviccedilo ser uma entidade puacuteblica ou privada sendo competentes
para a resoluccedilatildeo dos litiacutegios os tribunais comuns e natildeo os tribunais
administrativos393 Estes contratos satildeo atualmente celebrados na maioria dos
casos com exceccedilatildeo dos serviccedilos de fornecimento de aacutegua de gestatildeo de
resiacuteduos soacutelidos urbanos e de recolha e tratamento de aacuteguas residuais geridos
em regra pelos municiacutepios entre os utentes e as empresas privadas que prestam
os serviccedilos previstos no diploma ainda que no acircmbito de um contrato de
concessatildeo394 O artigo 1ordm-4 aditado pela Lei nordm 122008 esclarece que se
considera prestador de serviccedilo ldquotoda a entidade puacuteblica ou privada que preste
ao utente qualquer dos serviccedilos [hellip] independentemente da sua natureza
juriacutedica do tiacutetulo a que o faccedila ou da existecircncia ou natildeo de contrato de
concessatildeordquo
O caraacuteter puacuteblico dos serviccedilos estaacute essencialmente relacionado com o
interesse geral nestes serviccedilos que devem estar acessiacuteveis ao puacuteblico na sua
391 ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ldquoA Protecccedilatildeo do Consumidor de Serviccedilos de
Telecomunicaccedilotildeesrdquo in As Telecomunicaccedilotildees e o Direito na Sociedade da Informaccedilatildeo
Instituto Juriacutedico da Comunicaccedilatildeo Coimbra 1999 p 141 MAFALDA MIRANDA BARBOSA
ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter
Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de 26 de julhordquo in Estudos de Direito
do Consumidor nordm 6 2004 p 407 392 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em
Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra
2002 p 124 Contra ALEXANDRA LEITAtildeO ldquoA Protecccedilatildeo dos Consumidores no Sector das
Telecomunicaccedilotildeesrdquo in Estudos do Instituto de Direito do Consumo Vol I 2002 p 147 393 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 29 de maio de 2014 Processo nordm
167178120IYPRT-AP1 (Judite Pires) 394 ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ldquoA Protecccedilatildeo do Consumidor de Serviccedilos Puacuteblicos
Essenciaisrdquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 2 2000 p 340 MAFALDA MIRANDA
BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou
Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de 26 de julhordquo in Estudos de
Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 422
168
globalidade Neste sentido seria porventura preferiacutevel a referecircncia a serviccedilos
de interesse geral em detrimento de serviccedilos puacuteblicos essenciais395
O requisito da essencialidade remete principalmente para a sua
relevacircncia na vida dos cidadatildeos embora possa ser objeto de criacuteticas396
No que respeita aos serviccedilos abrangidos deve atender-se agrave lista do
artigo 1ordm-2 da Lei nordm 2396 Apesar de se debater acerca do caraacuteter taxativo
ou meramente exemplificativo da lista397 eacute muito duvidoso que face agrave letra
do preceito (ldquosatildeo os seguintes os serviccedilos puacuteblicos abrangidosrdquo) possam ser
acrescentados serviccedilos na sequecircncia de simples determinaccedilatildeo por via
interpretativa da sua natureza de serviccedilo puacuteblico essencial398
Na redaccedilatildeo originaacuteria o diploma aplicava-se aos serviccedilos de
fornecimento de aacutegua de energia eleacutetrica de gaacutes e de telefone estabelecendo
o artigo 13ordm-2 que ldquoa extensatildeo das regras [hellip] aos serviccedilos de
telecomunicaccedilotildees avanccediladas bem como aos serviccedilos postais ter[ia] lugar no
prazo de 120 dias mediante Decreto-Lei ouvidas as entidades representativas
dos respetivos sectoresrdquo o que soacute veio a suceder em 2008
O artigo 127ordm-2 da Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas399 excluiu o
serviccedilo de telefone do acircmbito de aplicaccedilatildeo da Lei nordm 2396 Esta situaccedilatildeo foi
retificada pela Lei nordm 122008 que alterou o artigo 1ordm-2 alargando a lista dos
395 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em
Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra
2002 p 139 ELIONORA CARDOSO Os Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais ndash A Sua Problemaacutetica no
Ordenamento Juriacutedico Portuguecircs Coimbra Editora Coimbra 2010 p 137 396 ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO ldquoO Anteprojecto de Coacutedigo do Consumidorrdquo in O Direito
Ano 138ordm IV 2006 p 707 397 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em
Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra
2002 pp 140 e 141 MAFALDA MIRANDA BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos
Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm
2396 de 26 de julhordquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 423 398 ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ldquoA Protecccedilatildeo do Consumidor de Serviccedilos Puacuteblicos
Essenciaisrdquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 2 2000 p 339 MAFALDA MIRANDA
BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou
Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de 26 de julhordquo in Estudos de
Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 414 399 Lei nordm 52004 de 10 de fevereiro (retificada pela Declaraccedilatildeo de Retificaccedilatildeo nordm 32-A2004
de 10 de abril) alterada pelo Decreto-Lei nordm 1762007 de 8 de maio pela Lei nordm 352008 de
28 de julho pelos Decretos-Leis nos 1232009 de 21 de maio e 2582009 de 25 de setembro
e pelas Leis nos 462011 de 24 de junho 512011 de 13 de setembro 102013 de 28 de
janeiro e 422013 de 3 de julho
169
serviccedilos puacuteblicos essenciais a que o diploma se aplica Aleacutem de o serviccedilo de
telefone se encontrar novamente abrangido pelo regime400 incluindo
naturalmente todos os serviccedilos ligados a telefone fixo ou moacutevel como as
mensagens escritas401 este acolhe ainda todos os outros serviccedilos relativos a
comunicaccedilotildees eletroacutenicas (em especial Internet e televisatildeo por cabo402) e os
serviccedilos postais de recolha e tratamento de aacuteguas residuais e de gestatildeo de
resiacuteduos soacutelidos urbanos
Em relaccedilatildeo ao telefone discutia-se face agrave redaccedilatildeo originaacuteria se os
serviccedilos relativos aos telemoacuteveis se encontravam abrangidos pelo regime
questatildeo que se encontra atualmente resolvida em sentido afirmativo pela
referecircncia a comunicaccedilotildees eletroacutenicas403
Quanto agrave compatibilizaccedilatildeo do regime da Lei nordm 2396 com o da Lei
das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas natildeo parecem levantar-se problemas teoacutericos
complexos uma vez que natildeo se verifica uma contradiccedilatildeo entre as normas dos
dois diplomas Os princiacutepios gerais previstos no regime dos serviccedilos puacuteblicos
essenciais constituem uma boa base para a interpretaccedilatildeo das normas
especiacuteficas sobre proteccedilatildeo dos utentes de serviccedilos relativos a comunicaccedilotildees
eletroacutenicas consagradas na Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas A grande
vantagem para o utente que resulta da aplicaccedilatildeo da Lei nordm 2396 a estes
contratos consiste na sujeiccedilatildeo dos prestadores de serviccedilos a normas que natildeo
encontram paralelo na Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas como a proibiccedilatildeo
de imposiccedilatildeo de consumos miacutenimos (artigo 8ordm) e em especial o
estabelecimento de um prazo de prescriccedilatildeo relativamente curto do direito de
exigir o pagamento do preccedilo do serviccedilo (artigo 10ordm)404
No que respeita agrave aacutegua agrave eletricidade e ao gaacutes note-se que o contrato
em causa natildeo consiste num simples fornecimento de uma quantidade
determinada caso em que se trataria de simples contratos de compra e venda
mas na disponibilizaccedilatildeo de um sistema de abastecimento que permite ao utente
400 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 4 de junho de 2013 Processo nordm
122618087YIPRTL1 (Rosa Maria Ribeiro Coelho) 401 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 20 de fevereiro de 2014 Processo nordm
155374124 YIPRTL1-8 (Luiacutes Correia de Mendonccedila) 402 ELIONORA CARDOSO Os Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais ndash A Sua Problemaacutetica no
Ordenamento Juriacutedico Portuguecircs Coimbra Editora Coimbra 2010 p 103 403 JOAtildeO CALVAtildeO DA SILVA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Essenciais Alteraccedilotildees agrave Lei nordm 2396 pelas
Leis nos 122008 e 242008rdquo in Revista de Legislaccedilatildeo e de Jurisprudecircncia Ano 137ordm nordm
3948 2008 p 168 404 MAFALDA MIRANDA BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos
Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de
26 de julhordquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 6 2004 pp 414 e 415
170
a utilizaccedilatildeo de bem com as carateriacutesticas acordadas sempre que entenda
adequado sendo no entanto devida a quantidade efetivamente consumida405
Assim por exemplo o contrato que tem por objeto uma garrafa de aacutegua natildeo
pode ser qualificado como relativo a um serviccedilo puacuteblico essencial pois neste
caso o bem eacute vendido isoladamente fora de um sistema contiacutenuo de
fornecimento de aacutegua
3 OS CONTRATOS DE PRESTACcedilAtildeO DE SERVICcedilOS PUacuteBLICOS ESSENCIAIS
COMO LIFE TIME CONTRACTS
Os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais satildeo sem
duacutevida contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa
Assim por um lado trata-se de contratos de execuccedilatildeo duradoura
Todos os serviccedilos atualmente consagrados na lista do artigo 1ordm-2 da
Lei 2396 pressupotildeem uma prestaccedilatildeo contiacutenua incluindo os serviccedilos postais
na parte que respeita agrave deslocaccedilatildeo diaacuteria do carteiro para entrega de
correspondecircncia
Esta eacute aliaacutes uma carateriacutestica essencial dos serviccedilos puacuteblicos
essenciais
Nos casos da aacutegua da eletricidade do gaacutes da televisatildeo por cabo e
parcialmente do telefone e da Internet o fornecimento resulta em regra de
contratos de execuccedilatildeo duradoura que tecircm por objeto uma prestaccedilatildeo de
execuccedilatildeo continuada a cargo do prestador do serviccedilo (fornecimento
permanente do bem ou do serviccedilo) e uma prestaccedilatildeo de execuccedilatildeo perioacutedica a
cargo do utente (pagamento do preccedilo)406
Estes contratos envolvem mais do que o simples fornecimento do bem
implicando um serviccedilo correspondente ao acesso a uma determinada rede pelo
que existe uma relaccedilatildeo duradoura unitaacuteria determinando-se as prestaccedilotildees
concretas em conformidade com o contrato e em regra consoante as
necessidades e os acessos do utente ao bem atraveacutes de atos materiais como
abrir a torneira acender a luz ou realizar uma chamada telefoacutenica Estes atos
405 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 28 de novembro de 2013 Processo nordm
35729119YIPRTL1-2 (Vaz Gomes) 406 MAFALDA MIRANDA BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos
Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de
26 de julhordquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 423 ANTUNES VARELA
Das Obrigaccedilotildees em Geral Vol I 10ordf ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2003 (reimpressatildeo da
ediccedilatildeo de 2000) pp 92 e 93
171
natildeo correspondem agrave aceitaccedilatildeo taacutecita de uma proposta de contrato resultante de
um contrato quadro anterior mas a um pedido (tambeacutem taacutecito) do utente do
qual deve resultar nos termos do contrato previamente celebrado o seu
cumprimento imediato e automaacutetico
A satisfaccedilatildeo do interesse das partes eacute permanente o que tambeacutem eacute
carateriacutestico dos Life Time Contracts
Por outro lado estes contratos satildeo ainda essenciais agrave existecircncia da
pessoa
Podem natildeo ter a mesma relevacircncia em termos da ponderaccedilatildeo do que
um contrato de creacutedito de arrendamento ou de trabalho que podem ter efeitos
mais prolongados no tempo mas os bens ou serviccedilos em causa satildeo
fundamentais para o nosso modo de vida
Considerando-se que ldquoos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia
da pessoa satildeo relaccedilotildees sociais que tecircm por objeto proporcionar ao indiviacuteduo
os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a sua
autorrealizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo (ponto 11 dos
princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts) natildeo subsistem duacutevidas de que
numa primeira linha a aacutegua a eletricidade e o gaacutes satildeo bens sem os quais natildeo
podemos sentir-nos minimamente realizados e em segunda linha o mesmo se
pode concluir dos serviccedilos relativos a comunicaccedilotildees eletroacutenicas Com efeito
a autorrealizaccedilatildeo e a participaccedilatildeo na vida social passam em grande parte
atualmente pela comunicaccedilatildeo Sem meios para estabelecer comunicaccedilotildees
(telefone Internet televisatildeo etc) perde-se parte da forma como a existecircncia
eacute entendida na nossa sociedade
4 APLICACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE LIFE TIME CONTRACTS
A ALGUNS PROBLEMAS RELACIONADOS COM A CESSACcedilAtildeO DO
CONTRATO
Neste ponto o objetivo passa por testar os princiacutepios gerais sobre Life
Time Contracts a questotildees concretas relacionadas com a cessaccedilatildeo dos
contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais
Seratildeo abordados dois problemas muito distintos (a) cessaccedilatildeo do
contrato pelo utente durante o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo e (b) suspensatildeo e
cessaccedilatildeo do contrato pelo prestador do serviccedilo em caso de incumprimento por
parte do cliente
172
a CESSACcedilAtildeO DO CONTRATO DURANTE O PERIacuteODO DE
FIDELIZACcedilAtildeO
O periacuteodo de fidelizaccedilatildeo eacute o periacuteodo miacutenimo de vigecircncia de um
contrato de execuccedilatildeo duradoura sem termo final durante o qual os contraentes
natildeo lhe podem pocircr fim por via de denuacutencia O contrato com termo final em
que por definiccedilatildeo natildeo existe a possibilidade de denuacutencia deve ser cumprido
integralmente Os contratos sem e com termo final distinguem-se em funccedilatildeo
de o contrato continuar ou natildeo a produzir efeitos apoacutes o final do periacuteodo em
causa sendo irrelevante a qualificaccedilatildeo dada pelas partes
O periacuteodo de fidelizaccedilatildeo tem fonte contratual (e natildeo legal) Produz
efeitos se estiver inserido numa claacuteusula de um contrato tratando-se em regra
de uma claacuteusula contratual geral que natildeo pode ser negociada pelo aderente
A fidelizaccedilatildeo incide sobre as condiccedilotildees definidas no contrato em que
a claacuteusula se encontra inserida As partes vinculam-se assim a no periacuteodo
miacutenimo de vigecircncia do contrato cumprir pontualmente as condiccedilotildees que
foram por si previamente definidas
Aleacutem de definir o periacuteodo de duraccedilatildeo miacutenima do contrato (elemento
relativo ao tempo) a claacuteusula relativa ao periacuteodo de fidelizaccedilatildeo pressupotildee a
determinaccedilatildeo do valor a pagar em caso de incumprimento desse periacuteodo
miacutenimo Poder-se-aacute discutir a qualificaccedilatildeo desse valor como preccedilo
(contrapartida da prestaccedilatildeo do serviccedilo relativamente ao conjunto do periacuteodo
de duraccedilatildeo miacutenima do contrato descontando o que jaacute tiver sido pago pelo
consumidor) ou como indemnizaccedilatildeo (claacuteusula penal que fixa
antecipadamente o valor da indemnizaccedilatildeo a pagar em caso de incumprimento)
A natureza da claacuteusula soacute pode ser avaliada em concreto dependendo
da interpretaccedilatildeo das declaraccedilotildees das partes (artigos 236ordm a 238ordm do Coacutedigo
Civil e 1ordm e 11ordm do Decreto-Lei nordm 44685407) Nos casos em que o valor a
pagar equivale agrave soma do montante das mensalidades acordadas como
contrapartida da prestaccedilatildeo do serviccedilo ateacute ao termo do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo
esse valor deveraacute ser em princiacutepio qualificado como preccedilo Se o valor for
inferior o mais provaacutevel seraacute tratar-se de uma claacuteusula penal O valor nunca
pode ser superior
A jurisprudecircncia aponta no sentido de que a validade da claacuteusula que
impotildee um periacuteodo de fidelizaccedilatildeo depende da existecircncia de contrapartidas para
407 O Decreto-Lei nordm 44685 de 25 de outubro foi alterado pelos Decretos-Leis nos 22095
de 31 de agosto (retificado pela Declaraccedilatildeo de Retificaccedilatildeo nordm 114-B95 de 31 de agosto)
24999 de 7 de julho e 3232001 de 17 de dezembro
173
o consumidor408 efetivamente compensadas ndash apenas ndash pela manutenccedilatildeo do
contrato por um periacuteodo miacutenimo409 Invoca-se o artigo 22ordm-1-a) do Decreto-
Lei nordm 44685 que visa proteger o aderente de uma vinculaccedilatildeo excessiva
irrefletida410 evitando que veja a sua liberdade contratual limitada411
Neste sentido nota-se que o ponto 32 dos princiacutepios gerais sobre Life
Time Contracts apesar de proibir em regra a cessaccedilatildeo antecipada do contrato
por ato unilateral de uma das partes excetua ldquoos casos em que a cessaccedilatildeo
antecipada eacute necessaacuteria para garantir um miacutenimo de liberdade de accedilatildeo e de
decisatildeordquo Articulando este princiacutepio com o constante do ponto 51 (ldquoo facto de
algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem bens ou serviccedilos necessaacuterios agrave
satisfaccedilatildeo as necessidades essenciais relacionadas com o consumo [hellip]
implica um dever de proteccedilatildeo da pessoa do consumidor [hellip] como parte[hellip]
mais fraca[hellip] da relaccedilatildeordquo) protege-se a posiccedilatildeo do utenteconsumidor por se
tratar de um Life Time Contract
O artigo 19ordm-c) do Decreto-Lei nordm 44685 tambeacutem eacute relevante neste
contexto No Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 7 de maio de
2015412 considera-se que ldquoa claacuteusula contratual geral inserida num contrato
de prestaccedilatildeo de serviccedilos de comunicaccedilotildees electroacutenicas vaacutelido por dois anos
que estabeleccedila que em caso de denuacutencia antecipada pelo cliente a operadora
teraacute direito a uma indemnizaccedilatildeo no valor da totalidade das prestaccedilotildees do preccedilo
previstas ateacute ao termo do prazo contratado impotildee consequecircncias patrimoniais
injustificadas e gravosas ao aderente e consequentemente eacute uma claacuteusula penal
desproporcionada aos danos a ressarcirrdquo
Considera-se portanto excessiva uma claacuteusula que preveja o
pagamento de um valor correspondente ao preccedilo contratado para a globalidade
408 Cfr Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 6 de dezembro de 2011 Processo nordm
2881080YXLSBL1-7 (Luiacutes Espiacuterito Santo) Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de
5 de junho de 2012 Processo nordm 3095085YXLSBL1-7 (Maria da Conceiccedilatildeo Saavedra)
anotado por JOAtildeO PEDRO PINTO-FERREIRA e JORGE MORAIS CARVALHO ldquoContrato para a
Utilizaccedilatildeo de Instalaccedilotildees e Equipamentos Desportivos ndash Anotaccedilatildeo ao Acoacuterdatildeo do Tribunal da
Relaccedilatildeo de Lisboa de 5 de junho de 2012rdquo in Desporto amp Direito ndash Revista Juriacutedica de
Direito do Desporto Ano X nordm 28 2012 e Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 5
de julho de 2012 Processo nordm 7855109TBOERL (Teresa Prazeres Pais) 409 JORGE MORAIS CARVALHO ldquoContratos Civis e Proacuteprios do Fenoacutemeno Desportivordquo in O
Desporto que os Tribunais Praticam Coimbra Editora Coimbra 2014 pp 69-90 p 89 410 JOSEacute MANUEL DE ARAUacuteJO BARROS Claacuteusulas Contratuais Gerais Coimbra Editora
Coimbra 2010 p 343 411 ANA PRATA Contratos de Adesatildeo e Claacuteusulas Contratuais Gerais Almedina Coimbra
2010 p 520 412 Processo nordm 134839123YIPRTP1 (Leonel Serocircdio)
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do periacuteodo contratual miacutenimo Natildeo parece ser assim admissiacutevel a estipulaccedilatildeo
de uma compensaccedilatildeo por incumprimento do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo
equivalente ao valor correspondente agraves mensalidades em falta
O incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo por parte do consumidor
soacute pode resultar da cessaccedilatildeo do contrato por causa natildeo imputaacutevel ao
profissional antes do termo do periacuteodo miacutenimo de vigecircncia do contrato
definido pelas partes
Este ocorre em duas situaccedilotildees denuacutencia do contrato pelo consumidor
dentro do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo resoluccedilatildeo do contrato pela empresa com
fundamento em incumprimento por parte do cliente413
Natildeo haacute incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo se o cliente declarar
agrave outra parte a resoluccedilatildeo do contrato mas natildeo tiver fundamento para exercer
o direito Neste caso natildeo haacute direito de resoluccedilatildeo pelo que a declaraccedilatildeo natildeo
produz efeitos O contrato manteacutem-se portanto nos termos anteriores agrave
declaraccedilatildeo do consumidor
Tambeacutem natildeo haacute incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo no caso de
o consumidor manifestar intenccedilatildeo de natildeo exercer o seu direito de creacutedito em
relaccedilatildeo ao profissional mas natildeo de pocircr em causa a manutenccedilatildeo do contrato
Por exemplo num contrato relativo a comunicaccedilotildees eletroacutenicas o pedido de
portabilidade ou a alteraccedilatildeo da residecircncia do consumidor nos casos em que
impeccedilam a prestaccedilatildeo do serviccedilo pelo profissional natildeo satildeo incompatiacuteveis com
a manutenccedilatildeo do contrato pelo que o consumidor natildeo incumpre a claacuteusula de
fidelizaccedilatildeo podendo (e devendo) continuar a cumprir periodicamente a sua
prestaccedilatildeo
Quanto agraves consequecircncias do incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo
ndash quando esta seja vaacutelida ndash pelo consumidor o valor a pagar por este nunca
poderaacute exceder o das prestaccedilotildees em falta ateacute ao final do periacuteodo definido no
contrato Assim por exemplo caso o consumidor resolva o contrato 6 meses
antes do final do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo e o valor da mensalidade seja de euro 40
o valor maacuteximo que lhe poderaacute ser exigido eacute determinado tendo em conta os
meses em falta (6 meses) e o valor da mensalidade (euro 40) pelo que natildeo poderaacute
ser superior a euro 240
413 Cfr Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 27 de maio de 2010 Processo nordm
4294060YXLSBL1-2 (Neto Neves) e de 30 de junho de 2011 Processo nordm
1410080TJLSBL1-7 (Luiacutes Lameiras) Natildeo havendo incumprimento definitivo natildeo haacute
fundamento de resoluccedilatildeo pelo que a claacuteusula de fidelizaccedilatildeo natildeo pode ser acionada Neste
sentido v Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 25 de fevereiro de 2010 Processo
nordm 1591083TVLSBL1-6 (Maacutercia Portela)
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Em mateacuteria de contratos relativos a comunicaccedilotildees eletroacutenicas o
Decreto-Lei nordm 562010 consagra um regime especial que se aplica a qualquer
utente ndash conceito definido no artigo 1ordm-3 da Lei nordm 2396 ndash e natildeo apenas a
consumidores
O artigo 2ordm-3 do Decreto-Lei nordm 562010 estabelece que ldquoeacute proibida a
cobranccedila de qualquer contrapartida aleacutem das referidas no nuacutemero anterior a
tiacutetulo indemnizatoacuterio ou compensatoacuterio pela resoluccedilatildeo do contrato durante o
periacuteodo de fidelizaccedilatildeordquo
O artigo 2ordm-2 do Decreto-Lei nordm 562010 pressupotildee ndash interpretado
extensivamente parcialmente em linha com o artigo 48ordm-2 da Lei das
Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas ndash que o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo tem de estar
associado a determinada vantagem
Essa vantagem pode consistir (i) num desconto abatimento ou
subsidiaccedilatildeo na aquisiccedilatildeo ou posse de equipamento que permite o acesso ao
serviccedilo de comunicaccedilotildees eletroacutenicas hipoacuteteses constantes da letra do artigo
2ordm-2 do Decreto-Lei nordm 562010 ou (ii) em outros aspetos desde que previstos
de forma expressa (e clara no que respeita aos valores) no contrato nos termos
do artigo 48ordm-2 da Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas na redaccedilatildeo dada pela
Lei nordm 512011 de 13 de setembro
O jaacute referido Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 1 de abril
de 2014 restringe no entanto a aplicaccedilatildeo do Decreto-Lei nordm 562010 aos
casos em que eacute fornecido um equipamento414
Em sentido diametralmente oposto ao desta decisatildeo natildeo
correspondendo assim agrave posiccedilatildeo intermeacutedia que defendemos neste texto pode
ler-se no Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 26 de junho de 2014415
que ldquose natildeo tiver sido vendido ou de outra forma fornecido qualquer
equipamento pelo operador da rede puacuteblica de comunicaccedilotildees electroacutenicas ao
utente das comunicaccedilotildees electroacutenicas aquelas normas do corpo do artigo 2ordm-
2 e do artigo 2ordm-3 impedem que o operador cobre o que quer que seja pela
resoluccedilatildeo do contrato resoluccedilatildeo essa operada pelo utente durante o periacuteodo de
fidelizaccedilatildeordquo Portanto segundo esta decisatildeo que parte do pressuposto de que
ldquoa disciplina do Decreto-Lei nordm 562010 natildeo foi alterada ou derrogada pela
414 Esta orientaccedilatildeo teve grande sucesso no Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto v Acoacuterdatildeos de 13
de maio de 2014 Processo nordm 203179122YIPRTP1 (Rodrigues Pires) de 16 de setembro
de 2014 Processo nordm 27076138YIPRTP1 (Henrique Arauacutejo) de 20 de maio de 2014 de 28
de abril de 2015 Processo nordm 95926130YIPRTP1 (Vieira e Cunha) e embora de forma
bastante atenuada quanto agraves consequecircncias Acoacuterdatildeo de 7 de maio de 2015 415 Processo nordm 28496120YIPRTP1 (Pedro Lima Costa)
176
entrada em vigor da Lei nordm 512011rdquo416 a vantagem tem de estar relacionada
com um equipamento sob pena de o prestador de serviccedilos de comunicaccedilotildees
eletroacutenicas natildeo poder impor ao utente o pagamento de qualquer valor pelo
incumprimento do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo
Parece-nos que a interpretaccedilatildeo mais adequada por corresponder quer
agrave letra quer ao espiacuterito dos dois diplomas eacute aquela que permite a sua
compatibilizaccedilatildeo aplicando-se o Decreto-Lei nordm 562010 independentemente
de ter sido fornecido um equipamento No caso de natildeo ter sido fornecido um
equipamento a vantagem para o utente afere-se com base em outros elementos
(artigo 48ordm-2 da Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas) desde que previstos no
contrato
Quanto ao valor a pagar em caso de incumprimento da claacuteusula o
artigo 2ordm-2 do Decreto-Lei nordm 562010 prevecirc que nos primeiros 6 meses a
contar do iniacutecio do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo o consumidor deve pagar no
maacuteximo 100 do valor da vantagem concedida em contrapartida da
fidelizaccedilatildeo apoacutes os primeiros 6 meses (e antes de se chegar ao uacuteltimo ano) o
consumidor deve pagar no maacuteximo 80 no uacuteltimo ano do periacuteodo de
fidelizaccedilatildeo o consumidor deve pagar no maacuteximo 50 Estas satildeo as
percentagens maacuteximas podendo ser inferiores uma vez que ao valor da
vantagem concedida em contrapartida da fidelizaccedilatildeo eacute subtraiacutedo nos termos
da norma o valor das mensalidades entretanto pagas417 A soluccedilatildeo que permite
indexar o valor a pagar ao valor da vantagem tem o meacuterito de colocar em
relevo o nexo quase sinalagmaacutetico418 que existe entre o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo
e a vantagem
O que acontece se durante o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo o utente fica
desempregado tem de emigrar muda de residecircncia ou por qualquer motivo
passa a estar sobreendividado
A resposta dada pelo direito portuguecircs eacute claramente inadequada natildeo
existindo um mecanismo que salvaguarde de forma equilibrada a posiccedilatildeo do
utente O regime da alteraccedilatildeo de circunstacircncias a que se poderia
eventualmente recorrer nestes casos tem pressupostos de aplicaccedilatildeo que o
416 Parece-nos correta a ideia de que o Decreto-Lei nordm 562010 natildeo foi alterado ou derrogado
pela entrada em vigor da Lei nordm 512011 Com efeito sendo a Lei das Comunicaccedilotildees
Eletroacutenicas (alterada pela Lei nordm 512011) lei geral em relaccedilatildeo ao Decreto-Lei nordm 562010
parece-nos que a interpretaccedilatildeo em sentido contraacuterio feita na jurisprudecircncia citada na nota 29
natildeo eacute adequada 417 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 13 de maio de 2014 418 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 21 de outubro de 2014 Processo nordm
83857138YIPRTP1 (Henrique Arauacutejo)
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tornam dificilmente aplicaacutevel Com efeito tem-se entendido que estas
situaccedilotildees diretamente ligadas ao utente se encontram cobertas ldquopelos riscos
proacuteprios do contratordquo
Relativamente agrave emigraccedilatildeo e agrave mudanccedila de residecircncia trata-se de
decisotildees dos utentes que devem ter em conta na sua atuaccedilatildeo a vinculaccedilatildeo
contratual com terceiros O desemprego e o sobreendividamento (quando
motivado no todo ou em parte por razatildeo exterior ao sobreendividado) natildeo
resultam em regra de decisotildees dos utentes podendo mais facilmente ser
invocados no sentido da adaptaccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato
O princiacutepio 10 dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts parece
menos exigente do que o artigo 437ordm do Coacutedigo Civil Com efeito o ponto
101 estabelece que ldquose as circunstacircncias socioeconoacutemicas pressupostas pelas
partes como fundamento da conclusatildeo do contrato natildeo se verificarem havendo
uma grave divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo de que as partes
partiram o conteuacutedo dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da
pessoa deve ser adaptado ou modificadordquo
A celebraccedilatildeo de um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos
essenciais com uma claacuteusula de fidelizaccedilatildeo pressupotildee em regra uma
situaccedilatildeo econoacutemica estaacutevel por parte do utente que lhe permita cumprir o
contrato ao longo da sua vigecircncia
O ponto 102 prevecirc que ldquoa divergecircncia pode referir-se agraves circunstacircncias
presentes ou agraves circunstacircncias futuras e deve ser tatildeo grave que se as partes
tivessem uma representaccedilatildeo exata da realidade natildeo teriam concluiacutedo nenhum
contrato ou teriam concluiacutedo um contrato de tipo ou de conteuacutedo diferenterdquo
Neste caso estatildeo em causa circunstacircncias futuras relativas agrave
estabilidade da situaccedilatildeo socioeconoacutemica do utente que eram essenciais para a
celebraccedilatildeo do contrato Se as partes soubessem que o utente iria emigrar
passado seis meses (com um periacuteodo de fidelizaccedilatildeo de vinte e quatro meses)
natildeo teriam certamente celebrado o contrato
O ponto 103 determina que ldquoao apreciar-se a gravidade da
divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo deve atender-se ao fim do
contrato agrave distribuiccedilatildeo legal ou contratual do risco e ao significado social da
relaccedilatildeordquo
Se for dada especial relevacircncia ao fim do contrato e agrave distribuiccedilatildeo
contratual do risco podemos aproximar este princiacutepio ao artigo 437ordm do
Coacutedigo Civil enfraquecendo-o significativamente Prevecirc-se no entanto que
tenha igualmente em conta o significado social da relaccedilatildeo Este elemento
parece decisivo para concluir que agrave partida este princiacutepio poderaacute ser aplicaacutevel
aos casos de desemprego emigraccedilatildeo ou sobreendividamento Quanto agrave
mudanccedila de residecircncia a resposta teraacute de ser menos taxativa uma vez que
178
depende de circunstacircncias concretas relativas ao caso Se o utente decidir
simplesmente mudar de residecircncia sem que nada na sua situaccedilatildeo
socioeconoacutemica o imponha ou aconselhe natildeo deve ser protegido por este
princiacutepio Jaacute se tiver que mudar de residecircncia devido a uma deslocalizaccedilatildeo do
seu posto de trabalho provavelmente jaacute deveraacute ser protegido natildeo tendo de
cumprir a claacuteusula de fidelizaccedilatildeo A anaacutelise soacute poderaacute ser feita em qualquer
caso em concreto
O princiacutepio 103 deve ser lido em articulaccedilatildeo com o princiacutepio 153 do
qual resulta que ldquono momento da conformaccedilatildeo como no momento da
interpretaccedilatildeo do contrato deve considerar-se designadamente os riscos de
falta de emprego de falta de habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento
relacionando-os com as suas causas socioeconoacutemicasrdquo
Os princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts estatildeo essencialmente
construiacutedos a pensar na proteccedilatildeo da pessoa no sentido da manutenccedilatildeo do
contrato419 e natildeo no da sua resoluccedilatildeo Do ponto 31 dos princiacutepios gerais sobre
Life Time Contracts resulta que ldquoa confianccedila de ambas as partes na
continuidade da relaccedilatildeo contratual deve ser protegidardquo Num contrato de
creacutedito de arrendamento ou de trabalho o devedor o inquilino ou o
trabalhador tem de ser protegido em regra com vista agrave manutenccedilatildeo do
contrato Num contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais o utente
tem de ser protegido nos dois sentidos Jaacute analisamos a questatildeo no que respeita
agrave possibilidade de o utente pocircr termo ao contrato Veremos agora as regras e
os princiacutepios aplicaacuteveis agrave situaccedilatildeo inversa em que eacute o prestador de serviccedilos a
pocircr termo ao contrato
b SUSPENSAtildeO E CESSACcedilAtildeO DO CONTRATO PELO PRESTADOR DE
SERVICcedilO
A questatildeo a que se procura dar resposta neste ponto diz respeito agrave
consequecircncia da mora do utente relativamente agrave obrigaccedilatildeo de pagar o preccedilo
sendo necessaacuterio perceber se e quando a prestaccedilatildeo do serviccedilo pode ser
suspensa e o contrato resolvido
O ponto 11 dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts ocupa-se
da cessaccedilatildeo antecipada do contrato O ponto 111 determina que ldquoa cessaccedilatildeo
antecipada dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa deve ser
feita de uma forma transparente controlaacutevel e socialmente aceitaacutevelrdquo
acrescentando-se que ldquocaso seja feita contra a vontade do consumidor [hellip]
419 LUCA NOGLER e UDO REIFNER ldquoIntroduction The New Dimension of Life Time in the
Law of Contracts and Obligationsrdquo in Life Time Contracts Eleven International Publishing
The Hague 2014 p 43
179
deve representar-se como uma medida extrema (ultima ratio)rdquo A
responsabilidade social impotildee por exemplo que o fornecimento de aacutegua natildeo
possa ser suspenso salvo em situaccedilotildees-limite natildeo se devendo considerar
como tal a simples mora do consumidor sem analisar as circunstacircncias em que
esta ocorreu420
O ponto 112 impotildee que o ato pelo qual se faz cessar o contrato seja
fundamentado sendo as razotildees comunicadas ldquoverdadeiras adequadas e justas
natildeo podendo em caso algum ser razotildees discriminatoacuterias ou ter resultados
discriminatoacuteriosrdquo As razotildees tecircm de estar relacionadas neste caso com o
comportamento do consumidor que deve ser ldquotatildeo grave ou significativo que
justifique uma ruturardquo (1121) Assim por exemplo num contrato de
fornecimento de eletricidade a falta de pagamento de uma ou mais faturas
numa situaccedilatildeo em que o consumidor se encontre impossibilitado de o fazer
por algum evento da sua vida natildeo deve permitir a suspensatildeo e a cessaccedilatildeo do
contrato uma vez que o comportamento do consumidor natildeo eacute suficientemente
censuraacutevel a ponto de justificar a rutura
A lei portuguesa apesar de proteger o utente de serviccedilos puacuteblicos
essenciais no que respeita agrave suspensatildeo do fornecimento natildeo vai ainda tatildeo
longe como o que parece resultar dos princiacutepios gerais sobre Life Time
Contracts
Nos termos do artigo 5ordm-1 da Lei nordm 2396 ldquoa prestaccedilatildeo do serviccedilo
natildeo pode ser suspensa sem preacute-aviso adequado salvo caso fortuito ou de forccedila
maiorrdquo Impotildee-se assim que o prestador de serviccedilo avise previamente o utente
de que o fornecimento do serviccedilo poderaacute ser suspenso Esta regra protege o
utente contra uma suspensatildeo inesperada
O artigo 5ordm-2 regula especificamente os casos de mora do utente
estabelecendo que sempre que se ldquojustifique a suspensatildeo do serviccedilo esta soacute
pode ocorrer apoacutes o utente ter sido advertido por escrito com a antecedecircncia
miacutenima de vinte dias relativamente agrave data em que ela venha a ter lugarrdquo Esta
advertecircncia ldquoaleacutem de justificar o motivo da suspensatildeo deve informar o utente
dos meios que tem ao seu dispor para evitar a suspensatildeo do serviccedilo e bem
assim para a retoma do mesmo sem prejuiacutezo de poder fazer valer os direitos
que lhe assistam nos termos geraisrdquo (artigo 5ordm-3) O utente tem assim de ser
informado da possibilidade de suspensatildeo com uma antecedecircncia bastante
razoaacutevel e dos passos que deve dar se pretender evitar a suspensatildeo ou jaacute
420 Nota-se que o ponto 142 dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts refere que os
contratos que tirem o acesso a rendimento do consumidor ldquoentregando-o ao fornecedor de
bens ou ao prestador de serviccedilos devem proporcionar agrave pessoa humana o miacutenimo necessaacuterio
para a sua subsistecircnciardquo
180
depois de esta ter tido lugar se quiser voltar a beneficiar da prestaccedilatildeo do
serviccedilo
O artigo 5ordm-4 reforccedila a posiccedilatildeo do utente ao prever que ldquoa prestaccedilatildeo
do serviccedilo puacuteblico natildeo pode ser suspensa em consequecircncia de falta de
pagamento de qualquer outro serviccedilo ainda que incluiacutedo na mesma fatura
salvo se forem funcionalmente indissociaacuteveisrdquo Sendo dissociaacuteveis os
serviccedilos natildeo pode ser suspensa a prestaccedilatildeo de um na sequecircncia da falta de
pagamento de outro Por exemplo se o utente tiver celebrado um contrato de
fornecimento de energia eleacutetrica e de gaacutes mas natildeo pagar a parte da fatura
relativa ao gaacutes o fornecimento de energia eleacutetrica natildeo pode ser interrompido
No que respeita aos serviccedilos de comunicaccedilotildees eletroacutenicas se estiver
em causa uma relaccedilatildeo de consumo o regime eacute consideravelmente menos
favoraacutevel para o consumidor sendo mesmo incompreensiacutevel no que respeita
aos seus objetivos Aplica-se neste caso o artigo 52ordm-A da Lei das
Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas
O nordm 1 deste artigo alarga o prazo do preacute-aviso para trinta dias
O nordm 2 determina que o preacute-aviso seja comunicado por escrito ao
consumidor impondo o prazo (ldquodez dias apoacutes a data de vencimento da faturardquo)
e o conteuacutedo (indicaccedilatildeo especiacutefica da ldquoconsequecircncia do natildeo pagamento
nomeadamente a suspensatildeo do serviccedilo e a resoluccedilatildeo automaacutetica do contrato e
informaacute-lo dos meios ao seu dispor para as evitarrdquo) Isto significa que mesmo
que natildeo o queira fazer o prestador do serviccedilo de comunicaccedilotildees eletroacutenicas
tem o dever de desencadear o mecanismo que conduziraacute agrave suspensatildeo do
serviccedilo e posteriormente agrave resoluccedilatildeo do contrato no prazo de dez dias apoacutes
a data do vencimento da fatura Natildeo se admite aparentemente sequer que as
partes acordem numa dilaccedilatildeo do prazo para pagamento da fatura interpretaccedilatildeo
do preceito que me parece de afastar por ser inaceitaacutevel
Comunicada ao consumidor a possibilidade de suspensatildeo este tem
trinta dias para pagar Se natildeo o fizer o prestador de serviccedilo deve
ldquoobrigatoriamente no prazo de dez dias apoacutes o fim do prazo [hellip] suspender o
serviccedilo por um periacuteodo de trinta diasrdquo (nordm 3) A suspensatildeo soacute pode ser evitada
pelas partes se tiverem celebrado um acordo de pagamento por escrito com
vista agrave regularizaccedilatildeo dos valores em diacutevida
A suspensatildeo tambeacutem natildeo tem lugar nos termos do nordm 4 nos casos em
que ldquoos valores da fatura sejam objeto de reclamaccedilatildeo por escrito junto da
empresa com fundamento na inexistecircncia ou na inexigibilidade da diacutevida ateacute
agrave data em que deveraacute ter iniacutecio a suspensatildeordquo
Se o consumidor pagar os valores em diacutevida ou se as partes tiverem
celebrado um acordo de pagamento por escrito cessa a suspensatildeo do serviccedilo
devendo este ser resposto no prazo maacuteximo de cinco dias uacuteteis (nordm 6)
181
O nordm 7 estatui que ldquofindo o periacuteodo de 30 dias de suspensatildeo sem que
o consumidor tenha procedido ao pagamento da totalidade dos valores em
diacutevida ou sem que tenha sido celebrado um acordo de pagamento por escrito
o contrato considera-se automaticamente resolvidordquo Ou seja mais uma vez
independentemente da sua vontade o prestador de serviccedilo tem o dever de
resolver o contrato
Este regime parece ter tido como objetivo por um lado resolver o
problema das pendecircncias nos tribunais portugueses tendo como pressuposto
que estes litiacutegios entopem os tribunais e por outro lado combater o
sobreendividamento dos consumidores evitando a acumulaccedilatildeo de diacutevidas
Natildeo se evita contudo a propositura de accedilotildees em tribunal uma vez que seraacute
sempre devido pelo menos o valor relativo ao mecircs que desencadeou este
procedimento mais o correspondente agrave prestaccedilatildeo do serviccedilo nos quarenta dias
seguintes Teremos portanto sempre uma diacutevida correspondente a um periacuteodo
superior a dois meses Se o regime ficasse por aqui ainda se poderia considerar
cumprida uma parte dos seus objetivos pois conter-se-ia a acumulaccedilatildeo de
diacutevidas pelo consumidor
No entanto o nordm 8 de preceito em anaacutelise estabelece que a resoluccedilatildeo
ldquonatildeo prejudica a cobranccedila de uma contrapartida a tiacutetulo indemnizatoacuterio ou
compensatoacuterio pela resoluccedilatildeo do contrato durante o periacuteodo de fidelizaccedilatildeordquo
Ou seja aleacutem dos valores relativos aos dois meses em que o serviccedilo natildeo esteve
suspenso o prestador do serviccedilo pode ainda exigir a contrapartida relativa ao
incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo Eacute a proacutepria lei que impotildee que se
mantecircm os efeitos do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo mas apenas para o utente Resulta
deste regime portanto que o prestador de serviccedilo estaacute obrigado a resolver o
contrato deixando de prestar o serviccedilo mas manteacutem o direito a exigir os
valores previstos na claacuteusula de fidelizaccedilatildeo Esta norma nada resolve assim
como se vecirc quer o problema das pendecircncias nos nossos tribunais quer o
problema da acumulaccedilatildeo de diacutevidas pelos consumidores acentuando o
desequiliacutebrio da relaccedilatildeo
Se a empresa decidir continuar a prestar o serviccedilo depois de
ultrapassados os prazos aqui referidos deixa de poder exigir o seu pagamento
sendo tambeacutem responsaacutevel pelo pagamento das custas processuais devidas
pela cobranccedila do creacutedito (nordm 10) A consequecircncia eacute bastante gravosa para o
prestador de serviccedilo que por esta via se vecirc compelido a suspender o serviccedilo e
a resolver o contrato sempre que se verifiquem as situaccedilotildees aqui indicadas
independentemente das circunstacircncias concretas do caso
Uma leitura deste regime agrave luz dos jaacute referidos princiacutepios gerais sobre
Life Time Contracts permitiria corrigir algumas soluccedilotildees inadequadas no
sentido da sua aceitabilidade social Trata-se assim de um oacutetimo exemplo da
182
importacircncia que a consideraccedilatildeo da existecircncia de uma categoria de contratos
duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa e da sua regulaccedilatildeo especiacutefica
pode ter
183
O contrato de creacutedito para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo
permanente garantido por hipoteca agrave luz dos
princiacutepios de life time contracts
Ana Taveira da Fonseca
1 QUALIFICACcedilAtildeO DO CONTRATO DE CREacuteDITO PARA AQUISICcedilAtildeO DE
HABITACcedilAtildeO PERMANENTE GARANTIDO POR HIPOTECA COMO LIFE
TIME CONTRACT
O contrato de muacutetuo para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo proacutepria e permanente
pode ser qualificado como um life time contract porque se trata um contrato
duradouro essencial agrave existecircncia da pessoa atraveacutes do qual ainda que
indiretamente se proporciona a fruiccedilatildeo de um bem fundamental a habitaccedilatildeo
Constitui por isso um contrato essencial agrave realizaccedilatildeo e integraccedilatildeo do
indiviacuteduo em sociedade
Noutra perspetiva o contrato de muacutetuo para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo
proacutepria e permanente eacute um contrato de creacutedito ao consumo com
especificidades proacuteprias que decorrem da importacircncia dos montantes
envolvidos da duraccedilatildeo do contrato e da finalidade do creacutedito Um creacutedito que
se destina a facultar ao mutuaacuterio habitaccedilatildeo permanente tem para este uma
importacircncia diversa de qualquer outro contrato de financiamento
Ao contraacuterio do que sucede noutros paiacuteses em que o acesso agrave habitaccedilatildeo
eacute garantido primordialmente pelo arrendamento em Portugal em virtude dos
incentivos que foram criados para aquisiccedilatildeo de casa proacutepria e das taxas de juro
historicamente baixas o modelo passou a ser o da aquisiccedilatildeo da propriedade
atraveacutes do recurso ao creacutedito de longa duraccedilatildeo
Tatildeo importante quanto indagar se o regime juriacutedico do contrato de
arrendamento para habitaccedilatildeo estaacute em conformidade com os princiacutepios de life
time contracts eacute averiguar se o contrato de creacutedito agrave habitaccedilatildeo garantido por
hipoteca protege eficaz e efetivamente o consumidor Essa proteccedilatildeo vinha
sendo fundamentalmente assegurada pela imposiccedilatildeo de fornecimento
detalhado de informaccedilatildeo ao mutuaacuterio antes da celebraccedilatildeo do contrato Ora o
que a crise econoacutemico-financeira que vem assolando a Europa desde 2008
demonstrou eacute que essa proteccedilatildeo eacute insuficiente para atingir os objetivos a que
Professora da Faculdade de Direito da Universidade Catoacutelica Portuguesa
184
se propotildee O paradigma de que o consumidor informado saberaacute tomar as
melhores decisotildees vem sendo pouco a pouco substituiacutedo por um modelo de
responsable lending em que o mutuante tambeacutem se responsabiliza pelos riscos
da concessatildeo de creacutedito ao longo de toda a execuccedilatildeo do contrato Por esta via
pretende-se assegurar na medida do possiacutevel que o mutuaacuterio iraacute contrair um
creacutedito com montantes e condiccedilotildees de reembolso que teraacute capacidade de
cumprir natildeo obstante tratar-se de um financiamento de muito longo prazo e
por isso estar sujeito a um conjunto de vicissitudes imprevisiacuteveis e natildeo
controlaacuteveis no momento da concessatildeo do creacutedito umas que podem afetar
diretamente a pessoa do mutuaacuterio como por exemplo a diminuiccedilatildeo da
capacidade financeira provocada por doenccedila ou desemprego involuntaacuterio ou a
ocorrecircncia de uma qualquer patologia na relaccedilatildeo matrimonial e outras
decorrentes da imprevista alteraccedilatildeo da conjuntura financeira que conduza por
exemplo a um aumento das taxas de juros passiacutevel de tornar incomportaacutevel o
serviccedilo da diacutevida421
O que nos propomos analisar eacute em que medida os princiacutepios de life
time contracts se encontram refletidos na nossa legislaccedilatildeo especialmente
depois das alteraccedilotildees introduzidas pelas Leis nos 57 58 59 e 602012 de 9 de
Novembro e que modificaccedilotildees se vislumbram venham a ser efetuadas
421 Para UDO REIPFNER ldquoo modelo paternalistardquo da informaccedilatildeo enquanto meio preferencial
de proteccedilatildeo do consumidor falhou em virtude da incapacidade de os consumidores jogarem
corretamente as regras do mercado para daiacute concluir que a ldquoconsumer credit protection needs
a safe haven in the form of the loan contract as a life time contractrdquo Cfr UDO REIPFNER
ldquoDarlehensvertrag als Kapitalmiete (Locatio conduction specialis)rdquo Life Time Contracts
Social Long-Term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law (org Luca
Nogler amp Udo Reifner) Eleven International Publishing The Hague 2014 p 420 Ainda
segundo o mesmo autor o princiacutepio de responsible lending natildeo se pode concretizar
simplesmente na disponibilizaccedilatildeo de informaccedilatildeo ao consumidor porque desta forma se
acautela o momento da formaccedilatildeo do contrato mas natildeo o periacuteodo da sua execuccedilatildeo Segundo
REIFNER eacute esta concepccedilatildeo de responsible lending que estaacute refletida na proposta que veio a
dar origem agrave Diretiva 201417UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de fevereiro
de 2014 relativa aos contratos de creacutedito aos consumidores para imoacuteveis de habitaccedilatildeo Cfr
UDO REIPFNER ldquoResponsible Bankruptcyrdquo Life Time Contracts Social Long-Term Contracts
in Labour Tenancy and Consumer Credit Law (org Luca Nogler amp Udo Reifner) Eleven
International Publishing The Hague 2014 p 570 Sobre a importacircncia da manutenccedilatildeo de
obrigaccedilotildees de informaccedilatildeo durante o periacuteodo de execuccedilatildeo do contrato de creacutedito ao consumo
no direito do Reino Unido GERAINT HOWELLS ldquoChange of Circumstances in Consumer
Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call for the Maintenance of Sector
Specific Rulesrdquo Life Time Contracts Social Long-Term Contracts in Labour Tenancy and
Consumer Credit Law (org Luca Nogler amp Udo Reifner) Eleven International Publishing
The Hague 2014 pp 454 e ss
185
aquando da transposiccedilatildeo da Diretiva 201417UE do Parlamento Europeu e
do Conselho de 24 de fevereiro de 2014 relativa aos contratos de creacutedito agrave
habitaccedilatildeo garantidos por hipoteca
2 DIMENSAtildeO HUMANA DO DIREITO
O princiacutepio primeiro sobre que o qual deve assentar a regulaccedilatildeo de um
life time contract eacute o da dimensatildeo humana422 O regime juriacutedico aplicaacutevel a
estes contratos deve por isso acautelar o desenvolvimento dos indiviacuteduos que
a eles recorrem para assegurar a sua existecircncia Essa dimensatildeo humana eacute
concretizada em mais princiacutepios nomeadamente o da exigecircncia de adaptaccedilatildeo
dos contratos em caso de alteraccedilatildeo das circunstacircncias e o da cessaccedilatildeo do
contrato como uacuteltimo remeacutedio em caso de incumprimento Aquilo que de mais
interessante encontramos nestes princiacutepios eacute exatamente a dimensatildeo
humanista do Direito que neles se encontra refletida mais concretamente o
facto de atraveacutes deles se recolocar o indiviacuteduo no centro das preocupaccedilotildees do
Direito e natildeo se relativizar a proteccedilatildeo do Homem em nome de outros
interesses mormente os econoacutemico-financeiros
21 AS EXIGEcircNCIAS DE ADAPTACcedilAtildeO IMPOSTAS PELOS PRINCIacutePIOS DE
LIFE TIME CONTRACTS E A SUA COMPATIBILIDADE COM O
REGIME DE REPARTICcedilAtildeO DO RISCO
211 A dimensatildeo social deste contrato e a sua importacircncia vital para
aqueles a quem um bem essencial eacute por esta via proporcionado exigem que
este possa ser adaptadomodificado se as circunstacircncias econoacutemicas e sociais
presentes e futuras pressupostas pelas partes como fundamento da conclusatildeo
do contrato natildeo se verificarem desde que se possa razoavelmente concluir que
as partes natildeo teriam celebrado o contrato ou soacute o teriam feitos em condiccedilotildees
diferentes423
422 Tomamos por base a traduccedilatildeo apresentada por Nuno Pinto de Oliveira em 1 de maio de
2015 423 De acordo com o princiacutepio 10 de Life Time Contractsldquoif the social and economic
circumstances upon which a life time contract is based have changed significantly since the
contract was entered into or if material circumstances from which the parties derived have
arisen that are found to be at variance with its original situation to such an extent that the social
nature of the contract is jeopardised and if the parties would not have entered into the contract
or would have entered into it on different terms had they foreseen this change adaptation of
the contract may be required if taking into account all the circumstances of the specific case
and in particular the contractual or statutory allocation of risk and the fundamental obligation
of a human being one of the parties cannot reasonably be expected to continue to comply with
186
O que cabe perguntar eacute se uma diminuiccedilatildeo abrupta da solvabilidade do
mutuaacuterio deve permitir agrave luz do princiacutepio enunciado lanccedilar matildeo dos
mecanismos de adaptaccedilatildeo do contrato Eacute preciso contudo assinalar que
mesmo de acordo com este princiacutepio para que o contrato possa ser modificado
eacute necessaacuterio que decorra de todas as circunstacircncias do caso concreto e em
particular da distribuiccedilatildeo legal e contratual do risco do fim cooperativo do
contrato e de eventuais obrigaccedilotildees fundamentais das partes que natildeo seja
exigiacutevel que uma delas se mantenha vinculada ao contrato com o conteuacutedo
imodificado
Segundo JUANA PULGAR a funccedilatildeo deste princiacutepio eacute alargar o acircmbito
de aplicaccedilatildeo da claacuteusula rebus sic standibus prevista no sect 313 do BGB para
ldquolife time circumstances and the social environmentrdquo424 Mais concretamente
segundo a autora quando o devedor fica desempregado sofre um aumento da
taxa de juro aplicaacutevel ao seu contrato de financiamento ou eacute afetado por uma
crise econoacutemica global como a atual ldquothe ldquostatus quordquo of the contract has
been breached (hellip) The rdquorebus sic standibusrdquo clause therefore would allow
the ex post or retrospective amendment of the terms and conditions initially
agreed upon in the contract in order to rebalance the consideration resulting
from itrdquo425
A primeira questatildeo que importa equacionar eacute se eacute possiacutevel recorrer ao
regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias no caso de ocorrer uma deterioraccedilatildeo da
situaccedilatildeo patrimonial do devedor que o impeccedila de cumprir a obrigaccedilatildeo a que se
vinculou e em segundo lugar se esse regime geral deve sofrer alguma inflexatildeo
se se estiver perante um life time contract
Uma vez que mesmo de acordo com o princiacutepio enunciado ao
apreciar-se a divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo se deve atender agrave
distribuiccedilatildeo legal e contratual do risco impotildee-se antes de tudo que se proceda
a uma definiccedilatildeo dos riscos associados a estes contratos e por conta de quem
na falta de convenccedilatildeo em contraacuterio eacute que os mesmos devem correr
Satildeo conhecidas as reservas que na nossa ordem juriacutedica assim como
noutras satildeo colocadas ao risco enquanto pressuposto negativo de aplicaccedilatildeo do
the contract without variation of its terms Collective regulation shall take precedence over
individual adaptationrdquo 424 Cfr JUANA PULGAR ldquoA Contractual Approach to Overindebtedness Rebus Sic Standibus
Instead of Bankruptcyrdquo Life Time Contracts Social Long-Term Contracts in Labour Tenancy
and Consumer Credit Law (org Luca Nogler amp Udo Reifner) Eleven International
Publishing The Hague 2014 p 533 425 JUANA PULGAR ldquoA Contractual Approach to Overindebtedness Rebus Sic Standibus
Instead of Bankruptcyrdquo cit p 534
187
regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias Somos contudo de opiniatildeo que uma
limitaccedilatildeo ao princiacutepio da forccedila vinculativa do contrato soacute se justifica nas
hipoacuteteses em que o problema natildeo possa resolver-se por apelo a uma regra
razoaacutevel de reparticcedilatildeo do risco De outra forma pocircr-se-ia em causa a confianccedila
legiacutetima da parte no cumprimento das obrigaccedilotildees assumidas pela contraparte
De facto quem se vincula atraveacutes de um contrato ao cumprimento de uma
obrigaccedilatildeo faacute-lo-aacute na perspetiva de obtenccedilatildeo direta ou indireta de um ganho
Tal implica necessariamente a assunccedilatildeo de um risco Ora natildeo deve legitimar-
se a alteraccedilatildeo de um contrato sempre que se verifique existir uma modificaccedilatildeo
indesejada para um dos contraentes das condiccedilotildees de cumprimento das
obrigaccedilotildees por si contraiacutedas mas que ainda assim esteja a coberto dos riscos
que aquele assumiu no momento em que decidiu contratar426
Tudo passa quanto a noacutes por determinar quais satildeo os riscos proacuteprios
do contrato em anaacutelise427 Estando em causa um life time contract eacute natural
que as regras de reparticcedilatildeo do risco sejam diferentes do regime geral aplicaacutevel
aos demais contratos de muacutetuo
212 O risco de desvalorizaccedilatildeo do imoacutevel deve em princiacutepio correr
por conta do proprietaacuterio porque tambeacutem seraacute ele o primeiro beneficiado pela
sua valorizaccedilatildeo428 Se o imoacutevel desvalorizar depois de a propriedade se ter
426 Entendimento diverso eacute preconizado por HENRIQUE SOUSA ANTUNES ldquoA alteraccedilatildeo das
circunstacircncias no direito europeu dos contratosrdquo Cadernos de Direito Privado nordm 47
julhosetembro 2014 pp 15 e 16 Segundo o autor soacute quando ldquoa lei o preveja o contrato
tenha natureza aleatoacuteria ou as partes tenham disposto de modo expresso sobre o temardquo eacute que
se justificaria um afastamento do regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias por aplicaccedilatildeo das
regras do risco ldquoSoluccedilatildeo diversa prejudicaria a adequaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre as partes ao que a
boa feacute dispotildee legitimaria um grave desequiliacutebrio que afecta o proacuteprio sentido da justiccedila
contratual Noutra perspectiva pressuporia a inversatildeo da primazia do requisito da afectaccedilatildeo
grave dos princiacutepios da boa feacuterdquo 427 Sobre a questatildeo v FERREIRA DE ALMEIDA ldquoErro sobre a base do negoacuteciordquo Cadernos de
Direito Privado nordm 43 julhosetembro 2013 pp 8 e ss Para FERREIRA DE ALMEIDA a
reparticcedilatildeo do risco resultaraacute em primeiro lugar da interpretaccedilatildeo do contrato Sendo este
omisso a reparticcedilatildeo do risco far-se-aacute por apelo a um conjunto de cacircnones em sistema moacutevel
ldquo2ordm Incidecircncia tendencial do risco sobre a parte que controla (ou que estaacute mais ldquoproacuteximardquo de)
o fator errado ou alterado 3ordm (que pode coincidir com a anterior) Incidecircncia tendencial do
risco sobre a parte a quem compete a prestaccedilatildeo caracteriacutestica (hellip) 4ordf Incidecircncia tendencial
do risco sobre a parte que atua com motivaccedilatildeo especulativa 5ordm Incidecircncia tendencial do risco
sobre a parte mais forte (hellip) 6ordm Reparticcedilatildeo equitativa sempre que possiacutevel atraveacutes da
modificaccedilatildeo soluccedilatildeo que precede a resoluccedilatildeordquo 428 A questatildeo natildeo eacute muito diferente daquela que no iniacutecio dos anos 80 foi amplamente
debatida pela doutrina e jurisprudecircncia portuguesas Em agosto de 1973 as accedilotildees de uma
determinada sociedade anoacutenima foram vendidas As accedilotildees foram entregues e foi acordado que
188
transmitido o risco corre por conta do seu titular quer este recorra a fundos
proacuteprios quer recorra a um financiamento de terceiro para o adquirir Ubi
commoda ibi incommoda Se o imoacutevel passar a valer o dobro apesar de por
essa via a hipoteca enquanto garantia ficar reforccedilada o beneficiaacuterio direto eacute
o proprietaacuterio Essa eacute aliaacutes uma das vantagens de aceder agrave habitaccedilatildeo atraveacutes
da aquisiccedilatildeo da titularidade do direito de propriedade com recurso a um
financiamento em alternativa agrave celebraccedilatildeo de um contrato de arrendamento O
mesmo resulta do regime geral aplicaacutevel agrave hipoteca Se existir uma diminuiccedilatildeo
do valor da coisa hipotecada por facto natildeo imputaacutevel ao devedor o credor
pode ainda assim exigir que o primeiro a substitua ou reforce (art 701ordm nordm1
o preccedilo seria pago em prestaccedilotildees Na praacutetica o vendedor concedeu por esta via um creacutedito
aos compradores Antes de essas prestaccedilotildees terem sido integralmente pagas o Estado
portuguecircs nacionalizou a sociedade vendida em 1973 Os compradores a creacutedito vieram pedir
a modificaccedilatildeo do contrato com fundamento na alteraccedilatildeo das circunstacircncias em que basearam
a decisatildeo de contratar VASCO LOBO XAVIER defendeu em Parecer que ldquodepois de transmitida
por efeito do contrato a propriedade da coisa alienada o risco do perecimento ou deterioraccedilatildeo
desta passa a correr por conta do adquirente Isto significa que natildeo obstante este perecimento
ou deterioraccedilatildeo o adquirente continuaraacute vinculado ao pagamento integral do preccedilo ainda em
diacutevida Em face disto o comprador natildeo pode valer-se do art 437ordm nos casos em que alteraccedilatildeo
das circunstacircncias invocada consista na perda ou deterioraccedilatildeo da coisa adquirida e em que
essa perda ou deterioraccedilatildeo se tenha verificado depois da transferecircncia do riscordquo Cf VASCO
LOBO XAVIER ldquoAlteraccedilatildeo das Circunstacircncias e Risco (art 437ordm e 796ordm do Coacutedigo Civil)rdquo
CJ 1982 T II p 21 Acolhendo soluccedilatildeo idecircntica v CALVAtildeO DA SILVA ldquoSwap de taxa de
juro inaplicabilidade do regime da alteraccedilatildeo das circunstacircnciasrdquo Revista de Legislaccedilatildeo e
Jurisprudecircncia ano 143 maio-junho de 2014 pp 368 e 369 Tambeacutem nos parece que em
casos como os descritos o contrato natildeo pode ser alterado por modificaccedilatildeo das circunstacircncias
De outra forma teriacuteamos de admitir que o contrato de compra e venda tambeacutem poderia ser
resolvido ou modificado a requerimento do vendedor na hipoacutetese de a sociedade no lugar de
ter sido nacionalizada ter passado a valer o dobro por circunstacircncias excecionais com as quais
as partes natildeo podiam contar no momento da conclusatildeo do contrato Contra esta soluccedilatildeo
tinham-se pronunciado ANTUNES VARELA e HENRIQUE MESQUITA para quem as regras do
risco natildeo podem paralisar o funcionamento do instituto da alteraccedilatildeo das circunstacircncias
Segundo os referidos autores o art 437ordm destina-se ldquoa corrigir certas injusticcedilas surgidas no
desenvolvimento das relaccedilotildees contratuais e que nesse plano se sobrepotildee agrave disciplina estrita
estabelecida em planos diferentes para as vaacuterias espeacutecies de contratordquo Assim as regras do
risco soacute impediriam a aplicaccedilatildeo do instituto da alteraccedilatildeo das circunstacircncias quando em causa
estivesse um risco normal mas jaacute natildeo nas situaccedilotildees de risco anormal como seria o caso de
uma nacionalizaccedilatildeo Cf ANTUNES VARELA (com colaboraccedilatildeo de HENRIQUE MESQUITA)
ldquoResoluccedilatildeo ou Modificaccedilatildeo do Contrato por Alteraccedilatildeo das Circunstacircnciasrdquo CJ 1982 T II
pp 14 e 15 Em sentido idecircntico v GUILHERME DE OLIVEIRA ldquoAlteraccedilatildeo das Circunstacircncias
Risco e Abuso de Direito a propoacutesito de um Creacutedito de Tornasrdquo Colectacircnea de
Jurisprudecircncia 1989 t V pp 20 e ss
189
do CC) mutatis mutandis se a coisa se valorizar em mais de um terccedilo do seu
valor agrave data da constituiccedilatildeo da hipoteca pode o devedor requerer a reduccedilatildeo
judicial da hipoteca (art 720ordm nordm2 al b) do CC)
213 No que concerne aos riscos do creacutedito mais concretamente ao
incumprimento das prestaccedilotildees devidas pelo mutuaacuterio em consequecircncia de uma
alteraccedilatildeo da sua situaccedilatildeo patrimonial o risco deve ser do mutuaacuterio embora
num contexto de crise nos pareccedilam positivas todas as alteraccedilotildees introduzidas
em 2012 quer atraveacutes do procedimento extrajudicial de regularizaccedilatildeo de
situaccedilotildees de incumprimento (PERSI) criado pelo Decreto-Lei nordm 2272012 de
25 de outubro quer atraveacutes do regime extraordinaacuterio de proteccedilatildeo dos
devedores de creacutedito agrave habitaccedilatildeo que se encontrem numa situaccedilatildeo econoacutemica
muito difiacutecil instituiacutedo pela Lei nordm 582012429 de 9 de novembro430 com as
alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto De acordo com este
uacuteltimo diploma os mutuaacuterios e os fiadores chamados a assumir as obrigaccedilotildees
dos primeiros que reuacutenam os pressupostos aiacute previstos podem beneficiar a
requerimento de um plano de reestruturaccedilatildeo da diacutevida e medidas
complementares a esse plano (arts 8ordm 10ordm e 19ordm da Lei nordm 582012 de 9 de
novembro com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto)
Natildeo existindo acordo relativamente agrave restruturaccedilatildeo da diacutevida pode o devedor
solicitar a aplicaccedilatildeo de medidas substitutivas da execuccedilatildeo da hipoteca como a
daccedilatildeo em cumprimento do imoacutevel hipotecado a alienaccedilatildeo do imoacutevel a um
fundo de investimento imobiliaacuterio de arrendamento habitacional com opccedilatildeo
de compra (sale and lease back) ou permuta por imoacutevel propriedade do
mutuante ou de um terceiro de valor inferior com revisatildeo do contrato de
creacutedito (art 20ordm da Lei nordm 582012 de 9 de novembro com as alteraccedilotildees
introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto)
O financiador passou a estar obrigado a renegociar o contrato por se
entender que nestes casos se ultrapassou a linha do limite de sacrifiacutecio que
com base numa ideia de justa reparticcedilatildeo do risco pode ser imposto a uma parte
para a manter vinculada a um contrato sem o modificar
429 NOTA DE ATUALIZACcedilAtildeO 1 Uma vez que o regime instituiacutedo pela Lei nordm 582012 tinha
um periacuteodo de vigecircncia inicial que terminou no dia 31 de dezembro de 2015 e natildeo foi
prorrogado afigura-se que o mesmo jaacute natildeo estaraacute em vigor 430 Sobre a proteccedilatildeo alcanccedilada no Reino Unido para os devedores sobreendividados em caso
de incumprimento do contrato de creacutedito agrave habitaccedilatildeo garantido por hipoteca pela Pre-Action
Protocol for Possession Claims based on Mortgage or Home Purchase Plan Arreas in Respect
of Residential Property v GERAINT HOWELLS ldquoChange of Circumstances in Consumer
Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call for the Maintenance of Sector
Specific Rulesrdquo cit p 462
190
A aplicaccedilatildeo deste regime tem contudo sido diminuta em virtude dos
requisitos que a lei exige estarem reunidos para que o devedor possa recorrer
a estes mecanismos de flexibilizaccedilatildeo e atenuaccedilatildeo das suas obrigaccedilotildees
contratuais O devedor tem de pertencer a um agregado familiar que se
encontre numa situaccedilatildeo econoacutemica difiacutecil431 e o valor patrimonial do imoacutevel
natildeo pode ultrapassar os euro100000 euro115000 ou euro130000 consoante o imoacutevel
hipotecado tenha respetivamente um coeficiente de localizaccedilatildeo ateacute 14 entre
15 e 25 e entre 25 e 35 (art 4ordm da Lei nordm 582012 de 9 de novembro com
as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto) O alargamento
dos potenciais beneficiaacuterios deste regime estaria em conformidade com os
princiacutepios de life time contracts de acordo com os quais os riscos de doenccedila
ou desemprego do mutuaacuterio podemdevem em certa medida ser transferidos
para os mutuantes Somos contudo de opiniatildeo que esse objetivo deve ser
preferencialmente alcanccedilado atraveacutes de um alargamento dos beneficiaacuterios do
regime instituiacutedo pela Lei nordm 582012 e natildeo pelo recurso agrave aplicaccedilatildeo do regime
geral da alteraccedilatildeo das circunstacircncias432 De iure condendo dever-se-aacute
nomeadamente equacionar a extensatildeo deste regime especial a agregados
431 Considera-se de acordo com o art 5ordm do referido diploma em situaccedilatildeo econoacutemica muito
difiacutecil o agregado familiar que reuacutena cumulativamente os seguintes requisitos
a) Pelo menos um dos mutuaacuterios o seu cocircnjuge ou unido de facto se encontre em situaccedilatildeo de
desemprego ou o agregado familiar tenha sofrido uma reduccedilatildeo do rendimento anual bruto
igual ou superior a 35
b) Aumento da taxa de esforccedilo para valor igual ou superior a 45 50 ou 40 consoante
respetivamente o agregado familiar integre ou natildeo dependentes ou seja considerado uma
famiacutelia numerosa
c) O valor total do patrimoacutenio financeiro de todos os elementos do agregado familiar seja
inferior a metade do rendimento anual bruto do agregado familiar
d) O patrimoacutenio imobiliaacuterio do agregado familiar seja constituiacutedo unicamente pela habitaccedilatildeo
proacutepria e permanente e por garagem e imoacuteveis natildeo edificaacuteveis ateacute ao valor total de euro 20000
e) O rendimento anual bruto do agregado familiar calculado em funccedilatildeo do seu nuacutemero de
membros natildeo exceda em 14 vezes os valores correspondente agrave soma de 100 ou 120 do
valor do salaacuterio miacutenimo nacional pelo mutuaacuterio consoante o agregado seja ou natildeo constituiacutedo
por mais de uma pessoa 70 por cada membro maior e 50 por cada membro menor 432 Esta parece ser tambeacutem a posiccedilatildeo perfilhada por GERAINT HOWELLS ldquoChange of
Circumstances in Consumer Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call
for the Maintenance of Sector Specific Rulesrdquo cit pp 463 quando refere que ldquosome
protection around the enforcement of credit contracts may be provided by general provision
on good faith and fair dealing but the consumer credit context seems best served by specific
rules (hellip) one might be sceptical about the ability of a general rule law to provide meaningful
rules that fit each and every life time contractrdquo
191
familiares com rendimentos superiores e a imoacuteveis com valores patrimoniais
mais elevados
214 Apesar de o risco da desvalorizaccedilatildeo do imoacutevel e do
incumprimento do contrato ser primariamente do mutuaacuterio o mutuante tem a
possibilidade de antes de o creacutedito ser concedido proceder a uma avaliaccedilatildeo
mais rigorosa desse risco do que o mutuaacuterioconsumidor Eacute neste contexto
que devem ser entendidas as obrigaccedilotildees de avaliaccedilatildeo da solvabilidade do
mutuaacuterioconsumidor e dos imoacuteveis criadas pela Diretiva 201417UE Aiacute se
estabelece que ldquoos Estados-Membros asseguram que antes da celebraccedilatildeo do
contrato de creacutedito o mutuante proceda a uma rigorosa avaliaccedilatildeo da
solvabilidade do consumidorrdquo atraveacutes da qual se deve apurar a probabilidade
de o mutuaacuterio cumprir o contrato de creacutedito sendo que essa avaliaccedilatildeo natildeo deve
basear-se predominantemente na circunstacircncia de o valor do imoacutevel ser
superior ao valor do creacutedito nem no pressuposto de que o imoacutevel se vai
valorizar salvo se o creacutedito se destinar agrave construccedilatildeo ou agrave realizaccedilatildeo de obras
nesse mesmo imoacutevel (art 18ordm nos 1 e 3 da Diretiva 201417UE) No que
respeita agrave avaliaccedilatildeo dos imoacuteveis cumpre assinalar que a preocupaccedilatildeo que
ressalta do art 19ordm nordm2 da Diretiva 201417UE eacute a de que esta seja realizada
por profissionais ldquoindependentes em relaccedilatildeo ao processo de negociaccedilatildeo e
contrataccedilatildeo do creacuteditordquo A soluccedilatildeo indicia que o legislador comunitaacuterio
entende que em regra a responsabilidade do devedor natildeo estaacute limitada ao
valor do imoacutevel hipotecado e que o risco de desvalorizaccedilatildeo deste assim como
as alteraccedilotildees da sua situaccedilatildeo patrimonial correm pelo mutuaacuterioconsumidor
mas que a incorreta avaliaccedilatildeo da solvabilidade deste uacuteltimo e do valor do
imoacutevel hipotecado eacute um risco do mutuante Conclusatildeo que se retira da
circunstacircncia de no art 18ordm nordm4 da Diretiva 201417UE se estabelecer que
os mutuantes natildeo poderatildeo resolver ou alterar o contrato em prejuiacutezo do
consumidor com base na incorreta avaliaccedilatildeo da solvabilidade deste uacuteltimo
salvo se esta se tiver baseado em informaccedilatildeo falsificada por ele
Interrogamo-nos contudo se na transposiccedilatildeo da Diretiva natildeo se pode
- ou deve - ir mais longe visto que aiacute tambeacutem se prevecirc que o mutuante soacute pode
disponibilizar creacutedito ao consumidor se a avaliaccedilatildeo de solvabilidade indicar
que eacute provaacutevel o cumprimento do contrato de muacutetuo (art 18ordm nordm 5 al a) da
Diretiva 201417UE) Nas hipoacuteteses em que esse juiacutezo de probabilidade
assentou numa incorreta avaliaccedilatildeo da solvabilidade do devedor e do imoacutevel
dado em garantia sem que tenha havido dolo do mutuaacuterio e essa avaliaccedilatildeo
gerou no mutuante e no mutuaacuterio a expectativa de que o imoacutevel hipotecado
seria suficiente em caso de incumprimento para solver o creacutedito em diacutevida
parece-nos que a hipoacutetese pode configurar uma situaccedilatildeo de erro sobre a base
ou de alteraccedilatildeo das circunstacircncias consoante o caso concreto que exigiraacute uma
anulaccedilatildeoresoluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato Neste caso natildeo eacute possiacutevel
afastar o regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias por apelo agraves regras do risco
192
215 Jaacute todavia no que respeita agrave alteraccedilatildeo dos custos do creacutedito o
risco deve correr por conta do mutuante O certo eacute que as mais das vezes esse
risco eacute transferido para o mutuaacuterio atraveacutes de claacuteusulas que permitem ao
mutuante alterar unilateralmente o spread Estas claacuteusulas ndash ditas de ius
variandi ndash parecem estar legitimadas pelo regime juriacutedico aplicaacutevel agraves
claacuteusulas contratuais gerais433 De acordo com o art 22ordm nordm1 al c) da LCCG
satildeo proibidas as claacuteusulas contratuais gerais que atribuam a quem as
predisponha o direito de alterar livremente o contrato exceto se existir razatildeo
atendiacutevel que as partes tenham convencionado Poreacutem tal proibiccedilatildeo natildeo se
aplica a claacuteusulas contratuais gerais que concedam ao fornecedor de serviccedilos
financeiros o direito de alterar a taxa de juro ou o montante de quaisquer outros
encargos aplicaacuteveis desde que correspondam a variaccedilotildees do mercado e sejam
comunicadas de imediato por escrito agrave contraparte podendo esta resolver o
contrato com fundamento na mencionada alteraccedilatildeo ndash cfr art 22ordm nordm 2 al
a) da LCCG434 A resoluccedilatildeo implica contudo a obrigaccedilatildeo de restituiccedilatildeo do
capital mutuado de que o mutuaacuterio pode natildeo dispor Ainda que em abstrato
433 Partindo do pressuposto que as claacuteusulas de ius variandi satildeo vaacutelidas e que por isso as
alteraccedilotildees ao contrato satildeo legiacutetimas desde que o credor as comunique atempadamente ao
devedor os Tribunais no Reino Unido tecircm discutido quais os limites que devem ser impostos
a este poder de modificaccedilatildeo unilateral dos contratos de creacutedito A jurisprudecircncia tem sido a
este propoacutesito bastante permissiva Desde que a alteraccedilatildeo da taxa de juro natildeo tenha um fim
iliacutecito ou natildeo seja desonesta caprichosa arbitraacuteria ou discriminatoacuteria a liberdade de comeacutercio
imporaacute aos tribunais que natildeo controlem estas alteraccedilotildees Para um resumo de diversas decisotildees
judiciais que versam sobre a problemaacutetica enunciada v GERAINT HOWELLS ldquoChange of
Circumstances in Consumer Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call
for the Maintenance of Sector Specific Rulesrdquo cit pp 456 e ss Para GERAINT HOWELLS
ldquoone suspects that the courts will continue to allow a large measure of commercial freedom
(hellip) Variation is not an issue covered by Consumer Credit Directive beyond the requirement
that the borrower be informed of changes in the rate interest However controls on the power
to vary it are one aspect of the ongoing relationship that could possibly be formulated as a
general rule and included in the CFR (hellip) However even if there is a power to control
variation of interest rates the scope of any such rule will have to be worked out in the context
of credit contracts that is whether it is only arbitrary controls that are restricted or whether
any charge must be reasonable thus interfering with commercial judgmentsrdquo 434 De acordo com aquele que eacute o entendimento do Banco de Portugal expresso na Carta-
Circular nordm 322011DSC os factos que fundamentam a alteraccedilatildeo devem ser especificados
pela instituiccedilatildeo de creacutedito Por outro lado esses factos devem ser externos ou alheios a esta e
ser relevantes excecionais e ter subjacente um motivo ponderoso fundado em juiacutezo ou criteacuterio
objetivo Cfr ANDREacute FIGUEIREDO ldquoO Poder de Alteraccedilatildeo Unilateral nos Contratos Bancaacuterios
Celebrados com Consumidoresrdquo Subjudice nordm 39 junho de 2007 p 17
193
o mutuaacuterio possa junto de outra instituiccedilatildeo contratar um novo financiamento
para amortizar o antigo natildeo significa que em concreto tal seja possiacutevel
Segundo ANDREacute FIGUEIREDO ldquoao contraacuterio do que sucede ao abrigo
da regra geral natildeo se exige aqui que os fundamentos objectivos para o
exerciacutecio do poder de alteraccedilatildeo unilateral do contrato se encontrem elencados
na claacuteusula geral Se a claacuteusula especificasse os eventos que legitimariam o
exerciacutecio do ius variandi estariacuteamos natildeo no acircmbito de aplicaccedilatildeo desta norma
especial mas no contexto da proacutepria regra geralrdquo435 Somos de opiniatildeo que
deveratildeo ser consideradas nulas por indeterminabilidade do seu objeto (art
280ordm do CC) as claacuteusulas contratuais que se limitem a permitir a modificaccedilatildeo
unilateral do contrato no caso de existir uma variaccedilatildeo dos mercados Quem
contrai uma obrigaccedilatildeo por 30 ou 40 anos tem de poder determinar a medida
da sua responsabilidade o que natildeo eacute possiacutevel se a uma taxa de juro variaacutevel
como a EURIBOR adicionarmos a possibilidade de alteraccedilatildeo ilimitada dos
spreads em virtude de variaccedilotildees dos mercados a definir unilateral e
exclusivamente no futuro pelo credor Natildeo nos parece que a vaguidade das
claacuteusulas contratuais que legitimam este ius variandi seja colmatada por
segundo a Carta-Circular do Banco Portugal nordm 322011DSC a alteraccedilatildeo da
taxa de juro ou outros encargos de contratos dever obedecer ao princiacutepio da
proporcionalidade e assentar numa relaccedilatildeo de causalidade entre por um lado
o evento invocado e por outro o teor e alcance da alteraccedilatildeo contratual que a
instituiccedilatildeo de creacutedito pretende introduzir Embora a invocaccedilatildeo do princiacutepio da
proporcionalidade permita excluir as alteraccedilotildees que conduzam a um
desequiliacutebrio injustificado das prestaccedilotildees ainda natildeo assim natildeo faculta ao
devedor um criteacuterio que lhe permita objetivamente mensurar a medida da sua
responsabilidade no momento em que o contrato eacute concluiacutedo
O artigo art 28ordm-A aditado ao Decreto-Lei nordm 34998 de 11 de
novembro pela Lei nordm 592009 de 9 de novembro apesar de ter limitado as
alteraccedilotildees de spread em caso de renegociaccedilatildeo do contrato436 ficou aqueacutem do
que seria exigiacutevel numa loacutegica de imputaccedilatildeo do risco de aumento dos custos
do creacutedito a quem o concede mormente quando este se funda numa variaccedilatildeo
dos mercados visto que neste ponto o regime ficou intocado
435 Cfr ANDREacute FIGUEIREDO ldquoO Poder de Alteraccedilatildeo Unilateral nos Contratos Bancaacuterios
Celebrados com Consumidoresrdquo cit pp 17 e 18 436 O que aiacute se proiacutebe eacute simplesmente o aumento dos spreads por o mutuaacuterio ter arrendado o
imoacutevel a um terceiro em virtude de uma alteraccedilatildeo do local de trabalho ou de uma situaccedilatildeo de
desemprego ou em caso de divoacutercio separaccedilatildeo judicial de pessoas e bens dissoluccedilatildeo da uniatildeo
de facto ou falecimento de um dos cocircnjuges quando se prove que o agregado familiar tem
rendimentos que proporcionam uma taxa de esforccedilo inferior a 55 ou 60 consoante este
uacuteltimo seja composto por dois ou mais dependentes
194
22 A RESOLUCcedilAtildeO E CONSEQUENTE EXECUCcedilAtildeO FORCcedilADA DA
DIacuteVIDA COMO UacuteLTIMA MEDIDAREMEacuteDIO EM CASO DE
INCUMPRIMENTO DO CREacuteDITO Agrave HABITACcedilAtildeO GARANTIDO POR
HIPOTECA E SUA CONFORMIDADE COM A DIMENSAtildeO HUMANISTA
QUE OS PRINCIacutePIOS DE LIFE TIME CONTRACTS IMPOtildeEM Agrave
REGULACcedilAtildeO DESTES CONTRATOS
De acordo com o deacutecimo primeiro princiacutepio de life time contracts a
cessaccedilatildeo antecipada do contrato deve ser feita de forma transparente
controlaacutevel e socialmente aceitaacutevel e caso seja feita contra a vontade do
consumidor deve representar-se como uma medida extrema (ultima ratio)
Em primeiro lugar cumpre assinalar que na nossa legislaccedilatildeo jaacute
encontramos refletido o princiacutepio enunciado Em caso de incumprimento jaacute
se estabelece uma proibiccedilatildeo de imediata resoluccedilatildeo do contrato de muacutetuo De
acordo com o art 7ordm-B - aditado pela Lei nordm 592012 ao Decreto-Lei nordm
34998 que regula a concessatildeo de creacutedito agrave habitaccedilatildeo - eacute necessaacuterio o
incumprimento de pelo menos trecircs prestaccedilotildees vencidas para que o contrato
possa ser resolvido
Preocupaccedilatildeo aliaacutes reiterada pelo legislador comunitaacuterio quando na
Diretiva 201417UE prevecirc que os Estados-Membros obriguem os mutuantes
ldquoa agirem com ponderaccedilatildeo adequadardquo antes de iniciarem um processo de
execuccedilatildeo (art 28ordm nordm1) Num contexto geral de crise natildeo eacute qualquer
incumprimento que deve fazer despoletar a responsabilidade patrimonial
Conforme resulta do preacircmbulo da referida Diretiva ldquodadas as importantes
consequecircncias que a execuccedilatildeo da hipoteca tem para os mutuantes os
consumidores e eventualmente para a estabilidade financeira conveacutem
incentivar os mutuantes a tratarem de forma proactiva o risco de creacutedito logo
de iniacutecio e instituir as medidas necessaacuterias para assegurar que os mutuantes
ajam com razoaacutevel toleracircncia e envidem diligecircncias razoaacuteveis para resolver a
situaccedilatildeo por outros meios antes de intentarem um processo de execuccedilatildeo
hipotecaacuteriardquo
Desde que proceda ao pagamento de todas as prestaccedilotildees vencidas e natildeo
pagas juros de mora e demais despesas incorridas pelo mutuante o mutuaacuterio
tem a possibilidade de no prazo de oposiccedilatildeo agrave execuccedilatildeo requerer a retoma do
creacutedito A lei permite assim uma purgaccedilatildeo do incumprimento com efeitos
retroativos Eacute que apesar de a mora se ter convertido em incumprimento
definitivo os efeitos retroativos da purgaccedilatildeo do incumprimento permitem a
195
revivescecircncia de um contrato que cessou (art 23ordm-B aditado pela Lei nordm 59
2012 ao Decreto-Lei nordm 34998)437
23 NAtildeO LIMITACcedilAtildeO DA RESPONSABILIDADE DO MUTUAacuteRIO AO BEM
DADO EM GARANTIA E SUA CONFORMIDADE COM OS PRINCIacutePIOS
DA NAtildeO EXCLUSAtildeO SOCIAL DO DEVEDOR EM CASO DE
INCUMPRIMENTO
Outro dos traccedilos caracteriacutesticos do nosso regime eacute a natildeo limitaccedilatildeo da
responsabilidade do mutuaacuterio ao bem dado em garantia salvo nas hipoacuteteses
em que tal foi convencionado por mutuante e mutuaacuterio (art 602ordm do CC)
Soluccedilatildeo que natildeo foi alterada pelo art 23ordm-A nordm1 do Decreto-Lei nordm 34998
aditado pela Lei nordm 592012 quando determina que por acordo podem as
partes estabelecer que a venda executiva ou a daccedilatildeo em cumprimento extingue
integralmente a diacutevida Disposiccedilatildeo desnecessaacuteria porquanto esta possibilidade
de limitaccedilatildeo da responsabilidade sempre existiu
Mesmo quando o mutuaacuterio se encontra numa situaccedilatildeo econoacutemica
difiacutecil para efeitos de aplicaccedilatildeo do regime instituiacutedo pelo art 23ordm nordm1 da Lei
nordm 582012 e vem requerer a daccedilatildeo em cumprimento do imoacutevel a daccedilatildeo soacute
extingue totalmente a diacutevida quando a soma do valor da avaliaccedilatildeo atual do
imoacutevel e das quantias entregues a tiacutetulo de reembolso do capital for pelo
menos igual ao valor do capital inicialmente mutuado acrescido das
capitalizaccedilotildees que possam ter ocorrido ou quando o valor da avaliaccedilatildeo atual
do imoacutevel para efeito de daccedilatildeo for igual ou superior agrave quantia em diacutevida Nos
outros casos a diacutevida manteacutem-se relativamente ao capital remanescente Soacute
natildeo eacute possiacutevel ao mutuante aplicar condiccedilotildees de creacutedito piores e beneficiar de
novas garantias pessoais ou reais (art 23ordm n os 2 e 3)
Soluccedilatildeo que nos parece conforme ao art 28ordm nordm 4 da Diretiva quando
estabelece que ldquoos Estados-Membros natildeo podem impedir as partes num
contrato de creacutedito de acordarem expressamente que a devoluccedilatildeo ou a
transferecircncia para o mutuante da garantia ou do produto da respetiva venda eacute
suficiente para reembolsar o creacuteditordquo
Ao contraacuterio do sustentado pelo Tribunal Judicial de Portalegre438 na
sequecircncia de algumas decisotildees proferidas por tribunais espanhoacuteis no mesmo
sentido natildeo entendemos que exista abuso de direito quando o mutuante requer
a continuaccedilatildeo da execuccedilatildeo sobre outros bens do mutuaacuterio apoacutes a adjudicaccedilatildeo
437 A revivescecircncia tambeacutem se encontra prevista no art 1084ordm nos 3 e 4 do CC para o contrato
de arrendamento que foi resolvido por falta de pagamento de rendas 438 Cf Sentenccedila de 14 de janeiro de 2012 do Tribunal Judicial de Portalegre in
httpwwwinverbispt2012ficheirosdoctribunalportalegre_creditohipotecariopdf
196
do imoacutevel hipotecado por um valor inferior ao da avaliaccedilatildeo feita no momento
da concessatildeo do creacutedito439 Segundo o Tribunal a ldquoobrigaccedilatildeo de pagamento
do simples remanescente da diacutevida apoacutes valor da adjudicaccedilatildeo configuraria
uma situaccedilatildeo de abuso de direito na modalidade de desequiliacutebrio no exerciacutecio
de direito porquanto sendo titular de um direito de creacutedito formal e
aparentemente exigiacutevel por incumprimento contratual a sua executoriedade e
reconhecimento judicial desencadearia resultados totalmente alheios ao que o
sistema poderia admitir (hellip) em consequecircncia do seu normal e regular
exerciacuteciordquo O que o Tribunal parece defender eacute que o Banco ao conceder um
creacutedito na sequecircncia de uma avaliaccedilatildeo que ele proacuteprio certificou cria uma
situaccedilatildeo de confianccedila de que o valor do imoacutevel chegaraacute para pagar o
empreacutestimo e por isso eacute abusivo vir pedir a diferenccedila entre o valor da
avaliaccedilatildeo e o valor da adjudicaccedilatildeo
Natildeo nos parece que em regra e em abstrato o exerciacutecio do direito a
requerer a adjudicaccedilatildeo pelo valor miacutenimo fixado na lei seja ilegiacutetimo por o seu
titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa feacute quando esse
valor for inferior ao da avaliaccedilatildeo feita no momento da concessatildeo do creacutedito
muito menos que haja um investimento de confianccedila merecedor de tutela que
conduza ao mesmo resultado Tudo depende do que se venha a provar ter
ocorrido no caso concreto O mutuaacuterio sabe que a sua responsabilidade natildeo se
encontra circunscrita ao bem hipotecado e que o risco de desvalorizaccedilatildeo do
imoacutevel corre por sua conta uma vez que seraacute ele tambeacutem o primeiro
beneficiado se este se valorizar
Desde que na avaliaccedilatildeo para efeitos de venda ou de adjudicaccedilatildeo se
tenha dado cumprimento aos criteacuterios legalmente estabelecidos o facto de a
adjudicaccedilatildeo ser feita por um valor inferior ao da avaliaccedilatildeo e o credor exigir a
quantia remanescente que esteja em diacutevida natildeo eacute de per si abusivo A garantia
de que goza o devedor nesses casos eacute a de que a adjudicaccedilatildeo natildeo pode ser feita
por um valor inferior a 85 do valor de base dos bens (na data do Acoacuterdatildeo o
valor era de 70) e que esse valor de base eacute o maior dos seguintes valores o
valor patrimonial tributaacuterio com menos de seis anos ou o valor de mercado
(art 816ordm nordm2 do CPC) A posiccedilatildeo do devedor natildeo eacute diferente quando o
credor requer a adjudicaccedilatildeo daquela em que estaria na hipoacutetese de o bem ser
439 No mesmo sentido v ISABEL MENEacuteRES CAMPOS ldquoComentaacuterio agrave (muito falada) sentenccedila
do Tribunal Judicial de Portalegre de 4 de janeiro de 2012rdquo Cadernos de Direito Privado nordm
38 abriljunho de 2012 pp 4 a 9 Sustentando posiccedilatildeo contraacuteria MENEZES LEITAtildeO ldquoO
impacto da crise financeira no regime do creacutedito agrave habitaccedilatildeordquo in I Congresso de Direito
Bancaacuterio Almedina Coimbra 2015 p 16 considera que este comportamento do Banco
representa um exerciacutecio manifestamente abusivo do direito de creacutedito mais concretamente
um verdadeiro venire contra factum proprium
197
vendido a um terceiro atraveacutes de apresentaccedilatildeo de proposta em carta fechada
pois o valor miacutenimo da adjudicaccedilatildeo (art 799ordm nordm3 do CPC) eacute igual ao valor
miacutenimo de venda (art 821ordm nordm3 do CPC)
O Tribunal entendeu tambeacutem que haveria aqui um enriquecimento sem
causa na modalidade de condictio ob rem quando o Banco ficou com o imoacutevel
por 70 do seu valor de base O argumento foi o de que tendo o contrato de
muacutetuo um fim especiacutefico mais concretamente a aquisiccedilatildeo de um imoacutevel o
mutuante soacute teria direito agrave diferenccedila entre o valor da diacutevida e o valor do imoacutevel
agrave data da concessatildeo do creacutedito440
Cabe perguntar se de iure condendo natildeo estaria em conformidade aos
princiacutepios de life time contracts limitar a responsabilidade do mutuaacuterio ao
valor do bem hipotecado Temos duacutevidas que essa limitaccedilatildeo seja defensaacutevel
Em primeiro lugar esta soluccedilatildeo nunca protegeria a casa de morada de famiacutelia
Sendo o uacutenico bem que responderia pela diacutevida mais facilmente seria
executado Em segundo lugar apesar de proteger o restante patrimoacutenio do
mutuaacuterio a soluccedilatildeo natildeo tem em conta que o risco de natildeo ser possiacutevel uma
daccedilatildeo em cumprimento uma adjudicaccedilatildeo ou uma venda judicial pelo valor do
creacutedito deve correr por conta do mutuaacuterio porque eacute sobre ele que recai o risco
de desvalorizaccedilatildeo do imoacutevel
Embora natildeo nos pareccedila imperativo agrave luz dos princiacutepios de life time
contracts restringir a garantia agrave hipoteca somos de opiniatildeo que devem criar-
se condiccedilotildees e incentivos para que os consumidores para aleacutem do seguro de
vida e do imoacutevel possam tambeacutem fazer seguros para garantia de situaccedilotildees de
desemprego ou de alteraccedilatildeo do niacutevel de rendimentos por motivos de sauacutede
Apesar de os custos decorrentes da subscriccedilatildeo deste tipo de coberturas serem
elevados as vantagens para o consumidor e para a solvabilidade do sistema
bancaacuterio em geral associadas agrave socializaccedilatildeo destes riscos seratildeo certamente
superiores E isto sobretudo se os seguros natildeo forem contratados com
companhias pertencentes ao mesmo grupo (juriacutedico ou econoacutemico) do
mutuante
O que se prevecirc na Diretiva eacute que os ldquoEstados-Membros devem instituir
procedimentos ou tomar medidas que permitam a obtenccedilatildeo do melhor preccedilo
pelo imoacutevel objeto de execuccedilatildeo hipotecaacuteriardquo Se depois de executada a
hipoteca subsistirem montantes em diacutevida os Estados-Membros asseguram a
440 MENEZES LEITAtildeO em comentaacuterio agrave referida decisatildeo considera que natildeo haveraacute aqui um
enriquecimento sem causa posto que ldquoa aplicaccedilatildeo da condictio ob rem natildeo tem lugar sempre
que esteja em causa um contrato como eacute neste caso o creacutedito agrave habitaccedilatildeordquo Cfr MENEZES
LEITAtildeO ldquoO impacto da crise financeira no regime do creacutedito agrave habitaccedilatildeordquo cit p 16
198
adoccedilatildeo de medidas que facilitem o reembolso a fim de proteger os
consumidores (cfr art 28ordm nordm5 da Diretiva 201417UE)
A este propoacutesito eacute necessaacuterio registar que desde 2012 o valor miacutenimo
de venda judicial ou pelo qual pode ser requerida a adjudicaccedilatildeo passou de 70
do valor de base dos bens para 85 Eacute desejaacutevel que o legislador aumente
ainda este valor
Pode tambeacutem pensar-se na criaccedilatildeo de incentivos de natureza fiscal a
quem adquira imoacuteveis atraveacutes de vendas judiciais a fim de estimular e alargar
a procura e deste modo potenciar que o produto da liquidaccedilatildeo do bem seja o
da avaliaccedilatildeo Mais concretamente propotildee-se que as isenccedilotildees previstas no art
8ordm do CIMT para as instituiccedilotildees de creacutedito ou para as sociedades comerciais
cujo capital seja direta ou indiretamente dominado pelas primeiras sejam
alargadas a todos os adquirentes de imoacuteveis em processo execuccedilatildeo ou de
insolvecircncia
Apesar de o Acoacuterdatildeo Uniformizador de Jurisprudecircncia nordm 399 e de o
art 5ordm nordm4 que subsequentemente foi introduzido no Coacutedigo de Registo
Predial terem aparentemente excluiacutedo do conceito de terceiros para efeitos de
registo as aquisiccedilotildees de direitos sobre imoacuteveis que natildeo derivem de um ato
voluntaacuterio do seu titular subsiste na jurisprudecircncia alguma incerteza
relativamente agrave oponibilidade ao comprador de boa feacute - que adquiriu um
determinado imoacutevel atraveacutes de venda judicial e registou a sua aquisiccedilatildeo - de
um direito anterior incompatiacutevel mas natildeo registado antes da penhora441 No
seguimento do que jaacute defendemos anteriormente entendemos que em face do
disposto no art 824ordm nordm2 do CC com a venda executiva caducam todos os
direitos constituiacutedos antes da penhora mas natildeo registados ateacute essa data442
No que respeita agrave garantia do reembolso do remanescente o que o
legislador nacional teraacute de equacionar no momento da transposiccedilatildeo da Diretiva
441 Sobre o tema v Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de 7 de fevereiro de 2013 (LOPES
DO REGO) processo nordm 3326094TBVFRP1S1 in wwwdgsipt De acordo com o referido
aresto o Acoacuterdatildeo Uniformizador de Jurisprudecircncia nordm 399 ldquonatildeo decidiu nem tinha que
decidir a questatildeo da natureza juriacutedica da venda judicial em termos de apurar se o Estado nela
actua em nome proacuteprio no exerciacutecio de um poder coercitivo autoacutenomo ou se pelo contraacuterio
o transmitente do bem vendido judicialmente continua ainda a ser o devedor executado
actuando o Estado em verdadeira sub-rogaccedilatildeo deste ndash e dependendo decisivamente desta
configuraccedilatildeo normativa da venda judicial a qualificaccedilatildeo do adquirente do bem como terceiro
por ter adquirido a propriedade de um mesmo transmitente comumrdquo 442 Cfr ANA TAVEIRA DA FONSECA ldquoPublicidade espontacircnea e publicidade provocada de
direitos reais sobre imoacuteveisrdquo Cadernos de Direito Privado nordm 20 outubrodezembro de 2007
pp 16 e ss
199
eacute se o regime vigente eacute suficiente para acautelar as situaccedilotildees de exclusatildeo social
do devedor sobreendividado que perde a habitaccedilatildeo Seraacute nomeadamente
necessaacuterio determinar se o regime das impenhorabilidades e da exoneraccedilatildeo do
passivo restante (arts 235ordm e ss do CIRE) eacute suficiente para acautelar esse
perigo ou se depois de executada a hipoteca seraacute necessaacuterio assegurar por via
legal uma modificaccedilatildeo do contrato de creacutedito que permita ao devedor solver o
remanescente em diacutevida e ao mesmo tempo reorganizar a sua vida O
incumprimento e a insolvecircncia natildeo podem determinar ldquoa morte do devedorrdquo
quando este eacute uma pessoa individual
24 EXECUCcedilAtildeO DA HIPOTECA E PROTECcedilAtildeO DA CASA DE MORADA DE
FAMIacuteLIA
A garantia do miacutenimo de subsistecircncia do executado outra das
preocupaccedilotildees refletida nos princiacutepios de life time contracts natildeo vai ao ponto
de impedir a penhoravenda da casa de morada de famiacutelia443
Importa por isso refletir se agrave luz deste princiacutepio tem sentido que a
execuccedilatildeo comece obrigatoriamente pelo bem hipotecado como parece resultar
do disposto no art 752ordm do CPC De facto o agente de execuccedilatildeo parece estar
obrigado a comeccedilar a penhora pelo imoacutevel hipotecado para garantia do creacutedito
exequendo mesmo que esta natildeo possa ser considerada adequada (art 751ordm
nordm3 do CPC) e proporcional ao valor da quantia exequenda (art 735ordm nordm3
do CPC) Afigura-se-nos que embora a penhora deva comeccedilar pelo bem
onerado para garantia da obrigaccedilatildeo exequenda (art 752ordm do CPC) nada
impede o executado de requerer a sua substituiccedilatildeo por outro bem que
permitindo ao exequente receber a prestaccedilatildeo a que tem direito seja menos
onerosa para o executado devendo o juiz em caso de oposiccedilatildeo do exequente
agrave substituiccedilatildeo tomar em devida consideraccedilatildeo a importacircncia do bem para o
executado (art 751ordm nordm4 al a) e nordm5 do CPC) O que resulta do regime
substantivo eacute que o devedor que for dono da coisa hipotecada tem o direito de
se opor agrave penhora de outros bens enquanto natildeo for reconhecida a insuficiecircncia
daquela para solver o creacutedito exequendo (art 697ordm do CC) Muito embora a
ratio da disposiccedilatildeo seja a de evitar que o patrimoacutenio do devedor continue
onerado enquanto outros bens do devedor estatildeo a ser penhorados e vendidos
por tal ser em geral contraacuterio ao interesse do devedor tal poderaacute natildeo suceder
443 NOTA DE ATUALIZACcedilAtildeO 2 Com a entrada em vigor da Lei nordm 132016 de 23 de maio
deixou de ser possiacutevel a venda em sede de execuccedilatildeo dos imoacuteveis destinados exclusivamente
a habitaccedilatildeo proacutepria e permanente do devedor que tenham sido penhorados por diacutevidas fiscais
Nestes casos depois da penhora a venda fica suspensa o que natildeo significa que o imoacutevel natildeo
possa ser vendido se vier a ser novamente penhorado no acircmbito por exemplo de uma
execuccedilatildeo por incumprimento de um contrato de creacutedito para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo proacutepria e
permanente garantido por hipoteca
200
quando o que estaacute em causa eacute a casa de morada de famiacutelia Devia por isso
pensar-se na possibilidade de o regime previsto no art 752ordm do CPC natildeo se
aplicar quando o bem onerado fosse a habitaccedilatildeo do executado
Eacute verdade que o regime da accedilatildeo executiva para pagamento de quantia
certa contempla vaacuterias formas de proteccedilatildeo da casa de habitaccedilatildeo efetiva do
executado especialmente desde 2013 Aiacute se prevecirc que recaindo a penhora
sobre a casa de habitaccedilatildeo efetiva do embargante a requerimento deste pode
por decisatildeo judicial sem necessidade de prestaccedilatildeo de cauccedilatildeo a venda ficar
suspensa ateacute agrave prolaccedilatildeo da decisatildeo em primeira instacircncia sobre os embargos
deduzidos pelo executado quando tal venda seja suscetiacutevel de causar prejuiacutezo
grave e dificilmente reparaacutevel (art 733ordm nordm5 do CPC) O mesmo sucede
com as necessaacuterias adaptaccedilotildees se houver deduccedilatildeo de oposiccedilatildeo agrave penhora do
imoacutevel que seja a habitaccedilatildeo efetiva do executado (art 785ordm nordm4 do CPC) ou
se a sentenccedila que estiver a servir de base agrave execuccedilatildeo estiver pendente de
recurso (art 704ordm nordm4 do CPC)
Contudo ao contraacuterio do previsto no art 864ordm do CPC e no art15ordm-N
do NRAU para o despejo do arrendataacuterio natildeo estaacute prevista a possibilidade de
se requerer a suspensatildeo provisoacuteria da entrega do imoacutevel por motivos de razatildeo
social imperiosa apoacutes a venda judicial do mesmo Eacute certo que nestes casos o
executado eacute constituiacutedo depositaacuterio depois da penhora (art 756ordm nordm1 al a)
do CPC) mas depois da venda pode necessitar de algum tempo para encontrar
outra habitaccedilatildeo e a lei natildeo contempla essa possibilidade A lei somente
estabelece que o agente de execuccedilatildeo deve comunicar antecipadamente o
despejo agrave cacircmara municipal e agraves entidades assistenciais competentes se
existirem dificuldades seacuterias de realojamento do executado e permite que a
execuccedilatildeo se suspenda quando a entrega do imoacutevel puser em risco de vida a
pessoa que aiacute habita por razotildees de doenccedila aguda (arts 828ordm 861ordm e 863ordm
nordm3 do CPC)
201
Proporcionalidade e adaptabilidade a jurisprudecircncia
do TEDH no equiliacutebrio da relaccedilatildeo entre senhorio e
inquilino
Sandra Passinhas
1 INTRODUCcedilAtildeO A RELACcedilAtildeO DE ARRENDAMENTO
Satildeo elementos essenciais do contrato de arrendamento a cedecircncia
temporaacuteria do gozo de uma coisa e o pagamento de uma retribuiccedilatildeo por esse
mesmo gozo Consideraccedilotildees de poliacutetica social mas tambeacutem de equidade ou
justiccedila social levaram os legisladores dos vaacuterios paiacuteses europeus a
implementarem normas que afectam cada um destes elementos em especial
no arrendamento para habitaccedilatildeo medidas relativas a limitaccedilotildees ao montante
inicial da renda ou congelamento dos aumentos posteriores limitaccedilotildees na
escolha da pessoa do arrendataacuterio impossibilidade de extinccedilatildeo do contrato por
vontade do senhorio natildeo caducidade do contrato de arrendamento pelo
decurso do prazo ou ainda diferimento da desocupaccedilatildeo do imoacutevel apoacutes o termo
do contrato
A protecccedilatildeo do arrendataacuterio e do seu direito agrave habitaccedilatildeo foi sendo
desenhada como uma limitaccedilatildeo aos poderes do senhorio444 em regra
proprietaacuterio do imoacutevel a favor do contraente mais fraco e vulneraacutevel o
arrendataacuterio Esta circunstacircncia natildeo pode obliterar contudo que a intervenccedilatildeo
material no contrato eacute uma opccedilatildeo do legislador na conformaccedilatildeo da poliacutetica
puacuteblica de acesso agrave habitaccedilatildeo
O direito agrave habitaccedilatildeo em Portugal eacute um direito constitucionalmente
garantido no artigo 65ordm da CRP Na sua vertente positiva445 aquela que estaacute
Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 444 No acoacuterdatildeo R amp L SRO e outros c Repuacuteblica Checa (Queixas nordms 3792605 2578409
3600209 4441009 e 6554609) de 3 de julho de 2014 pode ler-se no sect102 que uma das
dimensotildees de um direito real eacute precisamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees em que um terceiro
pode usar a coisa 445 Na vertente negativa o direito agrave habitaccedilatildeo consiste no direito de natildeo ser arbitrariamente
privado da habitaccedilatildeo ou de natildeo ser impedido de conseguir uma revestindo entatildeo a forma de
direito de defesa determinando um dever de abstenccedilatildeo do Estado e de terceiros e
apresentando-se nessa medida como um direito anaacutelogo aos direitos liberdades e garantias
A chamada dimensatildeo negativa do direito agrave habitaccedilatildeo traduz-se num mero dever de abstenccedilatildeo
202
aqui em causa o direito agrave habitaccedilatildeo consiste no direito de a obter traduzindo-
se na exigecircncia das medidas e prestaccedilotildees estaduais adequadas a realizar tal
objectivo Neste sentido constitui um verdadeiro e proacuteprio lsquodireito socialrsquo que
justifica e legitima a pretensatildeo do cidadatildeo a determinadas prestaccedilotildees446
implicando determinadas obrigaccedilotildees positivas do Estado O conteuacutedo do
direito agrave habitaccedilatildeo natildeo estaacute preacute-determinado ao niacutevel das opccedilotildees
constitucionais mas antes pressupotildee uma tarefa de concretizaccedilatildeo e de
mediaccedilatildeo do legislador ordinaacuterio e cuja efectividade estaacute dependente da
chamada ldquoreserva do possiacutevelrdquo (Vorbehalt des Moumlglichen) em termos
poliacuteticos econoacutemicos e sociais447 A intervenccedilatildeo do Estado pode incindir
sobre aspectos tatildeo variados como a requalificaccedilatildeo urbana o financiamento da
aquisiccedilatildeo proacutepria a promoccedilatildeo da construccedilatildeo imobiliaacuteria o incentivo ao
arrendamento etc448 Esta intervenccedilatildeo pode ser directa atraveacutes o
do Estado e de terceiros em ordem a natildeo praticarem actos que possam prejudicar a efectiva
realizaccedilatildeo daquele direito Cfr por todos J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada 1ordm vol 2ordf ed pp 345 e 346 446 J J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa
Anotada 1ordm vol 2ordf ed pp 345 e 346 Na jurisprudecircncia vide o Acoacuterdatildeo TC nordm 10192 de
17 de marccedilo onde se lecirc ldquoCom efeito a vertente mais significativa do direito agrave habitaccedilatildeo
enquanto lsquodireito econoacutemico social e culturalrsquo conteacutem-se na sua dimensatildeo positiva isto eacute
no direito dos cidadatildeos agraves medidas e prestaccedilotildees estaduais adequadas agrave concretizaccedilatildeo do
objectivo ali enunciado ndash o direito a obter uma habitaccedilatildeo adequada e condigna agrave realizaccedilatildeo
da condiccedilatildeo humana em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiarrdquo
e o Acoacuterdatildeo TC nordm 13192 de 1 de abril ldquoO lsquodireito agrave habitaccedilatildeorsquo ou seja o direito a ter uma
morada condigna como direito fundamental de natureza social situado no Capiacutetulo II
(direitos e deveres sociais) do Tiacutetulo III (direitos e deveres econoacutemicos sociais e culturais)
da Constituiccedilatildeo eacute um direito a prestaccedilotildeesrdquo Considera este aresto que o direito agrave habitaccedilatildeo
como direito social que eacute quer seja entendido como um direito a uma prestaccedilatildeo natildeo vinculada
recondutiacutevel a uma mera pretensatildeo juriacutedica (na senda de Vieira de Andrade) ou antes como
um autecircntico direito subjectivo inerente ao espaccedilo existencial do cidadatildeo (na opiniatildeo de
Gomes Canotilho) natildeo lhe confere um direito imediato a uma prestaccedilatildeo efectiva jaacute que natildeo
eacute directamente aplicaacutevel nem exequiacutevel por si mesmo 447 Por todos J C VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo
Portuguesa de 1976 5ordf ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2012 pp 162 e ss 448 Da parte do particular o acesso agrave habitaccedilatildeo passa em geral pela escolha entre dois meios
privilegiados a compra e o arrendamento A opccedilatildeo por este uacuteltimo convoca razotildees tatildeo diversas
como o facto de a compra natildeo ser viaacutevel (natildeo ter meios para custear a compra de uma casa ou
natildeo ter credibilidade bancaacuteria) natildeo ser adequada agraves necessidades habitacionais (mudanccedila
frequente do local de trabalho vida familiar instaacutevel) ou existir uma opccedilatildeo expressa do
particular nesse sentido
203
fornecimento de habitaccedilatildeo ou indirecta atraveacutes de regulaccedilatildeo subsiacutedios e
incentivos449
No acircmbito da poliacutetica de acesso agrave habitaccedilatildeo450 alternativas como a
construccedilatildeo de habitaccedilatildeo puacuteblica e o desenvolvimento do arrendamento social
tecircm tido no nosso paiacutes um caraacutecter marcadamente residual A intervenccedilatildeo
sobre o arrendamento habitacional tem sido sobretudo realizado de forma
indirecta atraveacutes da regulaccedilatildeo do regime do arrendamento urbano Da
intervenccedilatildeo legislativa resulta todavia a oneraccedilatildeo do senhorioproprietaacuterio
com os custos dessas poliacuteticas nomeadamente inscrevendo-os na funccedilatildeo
social da propriedade
Numa altura em que se assiste a uma certa revitalizaccedilatildeo do mercado do
arrendamento cabe reflectir sobre os vectores essenciais de uma poliacutetica de
habitaccedilatildeo a longo prazo indagar da necessidade de uma mudanccedila das atitudes
e vontade poliacuteticas e propor a superaccedilatildeo de eventuais barreiras regulatoacuterias
O que pretendemos destacar neste texto eacute a relevante inversatildeo do
caminho decisoacuterio no TEDH de uma poliacutetica proacute-inquilino baseada num
primeiro momento de reconhecimento de uma ampla margem de apreciaccedilatildeo
aos Estados Contratantes o TEDH passou a uma anaacutelise mais profunda da
proporcionalidade das restriccedilotildees impostas aos proprietaacuterios vindo a
considerar que as poliacuteticas de habitaccedilatildeo de enorme importacircncia econoacutemica e
social natildeo podem violar os paracircmetros de protecccedilatildeo da CEDH451
449 Cfr DAVID MULLINS e ALAN MURIE ldquoIntroductionrdquo Housing Policy in the UK Public
Policy and Politics 2005 p 1 450 Note-se que a habitaccedilatildeo tem caracteriacutesticas que determinam a poliacutetica puacuteblica e que a
distinguem de outras poliacuteticas puacuteblicas para aleacutem de ter tem um custo alto por referecircncia ao
rendimento corrente reflecte padrotildees de investimento de 60-100 anos anteriores Cfr DAVID
MULLINS e ALAN MURIE ldquoIntroductionrdquo Housing Policy in the UK Public Policy and
Politics 2005 p 1 451 Jaacute analisaacutemos a protecccedilatildeo da propriedade pela Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos
no nosso ldquoThe protection of Property under European Law Fundamental Rights Consumer
Protection and Intellectual Property Bridging Conceptsrdquo Florenccedila 2010 pp 134 e ss
disponiacutevel em httpswwwgoogleptsearchq=sandra+passinhas+cadmusampie=utf-
8ampoe=utf-8ampgws_rd=crampei=zYKvVoD-LMj5aIaIlegO Mais recentemente vide o nosso
ldquoFundamental rights in actions to protect immovablerdquo in SONIA MARTIN SANTISTEBAN e
PETER SPARKES Protection of Immovables in European Legal Systems CUP 2015 pp 31-
62
204
2 A PROTECCcedilAtildeO DA PROPRIEDADE NO TEDH
Como no decurso dos trabalhos preparatoacuterios da CEDH natildeo foi
possiacutevel chegar a acordo quanto agrave oportunidade de inserir a tutela da
propriedade numa Convenccedilatildeo os Estados Contratantes acordaram que esta
protecccedilatildeo seria reenviada para a adopccedilatildeo de um protocolo posterior Eacute neste
contexto que vem a surgir o Protocolo 1 cujo artigo 1ordm eacute a uacutenica disposiccedilatildeo
da Convenccedilatildeo que tem como objecto expresso um direito patrimonial A
norma vem a ser aceita452 com o objectivo limitado de evitar os actos de
confisco arbitraacuterio da propriedade privada sem excluir o poder conformador
dos Estados sobre a propriedade a fim de garantir a realizaccedilatildeo da sua funccedilatildeo
social
O artigo 1ordm do Protocolo 1 estabelece que
ldquoQualquer pessoa singular ou colectiva tem o direito ao respeito dos
seus bens Ningueacutem pode ser privado do que eacute a sua propriedade a
natildeo ser por utilidade puacuteblica e nas condiccedilotildees previstas na lei e pelos
princiacutepios gerais do direito internacional
As condiccedilotildees precedentes entendem-se sem prejuiacutezo do direito que os
Estados possuem de pocircr em vigor as leis que julguem necessaacuterias
para a regulamentaccedilatildeo do uso dos bens de acordo com o interesse
geral ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras
contribuiccedilotildees ou de multasrdquo
Esta norma garante o direito de propriedade453 e tem sido
entendida454 como compreendendo trecircs regras distintas455 a primeira
expressa na primeira frase do primeiro paraacutegrafo consagra o princiacutepio do gozo
paciacutefico dos bens como uma norma de natureza geral a segunda na segunda
frase do mesmo paraacutegrafo abrange a privaccedilatildeo da propriedade e sujeita-a a
determinadas condiccedilotildees a terceira contida no segundo paraacutegrafo reconhece
que os estados podem entre outras coisas controlar o uso da propriedade para
452 Sobre a origem da norma vide MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della proprietagrave nella
Convenzione dei Diritti dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 pp 1 e ss 453 Acoacuterdatildeo Marckx c Beacutelgica (Queixa nordm 683374) de 13 de junho de 1979 sect63 454 Sobre os princiacutepios que regem a interpretaccedilatildeo da Convenccedilatildeo MARIE-BEacuteNEacuteDICTE
DEMBOUR Who Believes in Human Rights ndash Reflecions on the European Convention CUP
2006 pp 21 e ss 455 Veja-se o Acoacuterdatildeo Sporrong e Loumlnnroth c Sueacutecia (Queixas nordm 715175 715275) de 23
de setembro de 1982 sect 61
205
a realizaccedilatildeo do interesse geral atraveacutes de leis456 que considerem necessaacuterias
para esse fim O Tribunal cabe controlar a conformidade do exerciacutecio deste
poder de regulamentaccedilatildeo do uso dos bens com os princiacutepios da legalidade e da
proporcionalidade surgindo assim o direito de propriedade como uma
garantia negativa perante a acccedilatildeo do poder estatal
As regras enunciadas contudo estatildeo interrelacionadas a segunda e a
terceira regras constituem instacircncias de interferecircncia com o gozo paciacutefico da
propriedade e portanto devem ser concretizadas em funccedilatildeo do princiacutepio geral
enunciado na primeira regra457
A problemaacutetica do arrendamento tem sido tratada pelo TEDH no
acircmbito especiacutefico da terceira regra (segundo paraacutegrafo) ou seja no poder dos
Estados de regulamentarem o uso dos bens458 Ainda que os senhorios
houvessem ficado privados do uso e fruiccedilatildeo do imoacutevel natildeo o pudessem
alienar etc em nenhum dos casos analisados houve medidas que implicassem
a transferecircncia do tiacutetulo de propriedade O Tribunal parece assim atribuir
relevacircncia agrave finalidade uacuteltima do regime considerando como uma simples
regulamentaccedilatildeo do uso dos bens qualquer medida que embora restringindo ndash
temporaacuteria ou definitivamente ndash alguns dos poderes do proprietaacuterio natildeo
aparece finalizada numa privaccedilatildeo da propriedade
456 No que respeita ao seu conteuacutedo o respeito pelo princiacutepio da legalidade pressupotildee uma
dupla determinaccedilatildeo relativa agrave existecircncia das normas de direito interno e agrave conformidade das
medidas concretas com essas normas Cfr MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della
proprietagrave nella Convenzione dei Diritti dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 p 182 O Acoacuterdatildeo
R amp L SRO e outros c Repuacuteblica Checa (Queixas nordm 3792605 2578409 3600209
4441009 e 6554609) de 3 de julho de 2014 versou sobre um esquema de controlo de rendas
que natildeo cobria os custos de reparaccedilatildeo reconstruccedilatildeo e manutenccedilatildeo dos apartamentos em causa
As normas em causa haviam sido declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional
pelo que a interferecircncia com os direitos do titular natildeo tinha base legal 457 Inter alia ver o Acoacuterdatildeo Lithgow e Outros c Reino Unido (Queixas nordm 900680 926281
926381 926581 926681 931381 940581) de 8 de julho de 1986 sect 106 Sobre o
fundamento filosoacutefico destas normas ver Ali Riza Ccediloban Protection of Property Rights
within the European Convention on Human Rights Ashgate 2004 pp137-138 458 Na verdade nunca o TEDH considerou que a legislaccedilatildeo do arrendamento conduzisse a uma
expropriaccedilatildeo de direito ou de facto Cfr Mellacher e outros contra Aacuteustria (Queixas nordm
1052283 1101184 1107084) de 19 de dezembro de 1989 Scollo contra Itaacutelia (Queixa nordm
1913391) de 28 de setembro de 1995 sect 27 Ghigo c Malta (Queixa nordm 3112205) de 26 de
setembro de 2006 sect49 Immobiliare Saffi contra Itaacutelia (Queixa nordm 2277493) de 28 de julho
de 1999 sect 46 Spadea and Scalabrino contra Itaacutelia (Queixa nordm 1286887) de 28 de setembro
de 1995 sect 28
206
Especificamente no que respeita ao poder de regulamentaccedilatildeo do uso dos bens
para a realizaccedilatildeo do interesse geral satildeo de referir duas notas
(1) O TEDH reconhece uma ampla margem de apreciaccedilatildeo aos Estados para
definir o que eacute o lsquointeresse geralrsquo (isto eacute quanto agrave anaacutelise e
reconhecimento do problema e quanto agrave escolha concreta das medidas
adequadas para a soluccedilatildeo do problema)
Segundo a jurisprudecircncia europeia a margem de apreciaccedilatildeo atribuiacuteda
aos Estados varia em funccedilatildeo do contexto459 entre os elementos que o TEDH
toma em consideraccedilatildeo figuram a natureza e a importacircncia do direito protegido
e o tipo de comportamento no caso concreto460 Os oacutergatildeos de controlo natildeo
podem exercer um controlo de meacuterito quanto a tal avaliaccedilatildeo no pressuposto
de que os Estados gozam de um amplo espaccedilo de avaliaccedilatildeo em funccedilatildeo dos
objectivos de poliacutetica econoacutemica e social a realizar A natildeo ser que seja
desprovida de uma base razoaacutevel ou seja se revele manifestamente infundada
o Tribunal natildeo pode substituir-se461 agrave avaliaccedilatildeo da autoridade nacional Assim
sendo o limite constituiacutedo pelo interesse geral assume significado enquanto
se consubstancie numa garantia de racionalidade (coerecircncia loacutegica e
racionalidade) mais do que numa garantia de conteuacutedo462
(1) O princiacutepio da proporcionalidade
O princiacutepio do justo equiliacutebrio ou da proporcionalidade natildeo tem
nenhuma referecircncia textual e eacute de origem exclusivamente jurisprudencial No
acircmbito do artigo 1ordm do Protocolo 1 este princiacutepio aplica-se quer a medidas de
desapossamento (segunda regra) quer nas hipoacuteteses de meras interferecircncias
com o direito de propriedade (terceira regra)463
ldquoo segundo paraacutegrafo do Artigo 1 do Protocolo 1 (P1-1) deve ser
construiacuteda agrave luz do princiacutepio da primeira frase desse artigo Assim
a interferecircncia deve respeitar um equiliacutebrio justo entre as exigecircncias
do interesse geral e os requisitos da protecccedilatildeo dos direitos
fundamentais dos indiviacuteduosrdquo
459 Sobre a margem de apreciaccedilatildeo em geral vide FRANCSCO BILANCIA I diritti fondamentale
como conquiste sovrastatali de civiltagrave Il diritto de proprietagrave nella Convenzione europea
Giappichelli Turim 2002 pp 113 e ss 460 Acoacuterdatildeo Buckley c Reino Unido (Queixa nordm 2034892) de 29 de setembro de 1996 sect 74 461 James e outros c Reino Unido (Queixa nordm 879379) de 21 de fevereiro de 1986 sect46 462 Em Mellacher et al c Aacuteustria sect 45 463 Cfr Sporrong e Loumlnnroth c Sweden sect69 e Mellacher et al c Aacuteustria sect48 James e Outros
c Reino Unido sect50
207
O princiacutepio do justo equiliacutebrio exige que cada medida de privaccedilatildeo ou
de regulamentaccedilatildeo do direito individual (no nosso caso a propriedade)
obedeccedila a uma razoaacutevel relaccedilatildeo de proporcionalidade entre os meios utilizados
e o objectivo da medida464 Este criteacuterio - que tem um alcance mais amplo do
que o da exigecircncia do pagamento de um montante indemnizatoacuterio465 - permite
equilibrar em concreto os direitos individuais protegidos pela Convenccedilatildeo com
os interesses da colectividade que justificam a sua compressatildeo
Dito de outro modo a avaliaccedilatildeo da proporcionalidade constitui o
instrumento que permite coordenar o respeito pelas obrigaccedilotildees resultantes da
Convenccedilatildeo com o exerciacutecio dos poderes soberanos de que os Estados satildeo
titulares Neste sentido a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da proporcionalidade acaba
por desenvolver uma funccedilatildeo complementar466 agrave da doutrina da margem de
apreciaccedilatildeo estadual enquanto o recurso a esta uacuteltima permite atribuir ao
Estado uma certa esfera de discricionariedade na determinaccedilatildeo dos
pressupostos que permitem a tomada de medidas limitativas ou de
regulamentaccedilatildeo dos direitos individuais a avaliaccedilatildeo da proporcionalidade diz
respeito agrave congruecircncia das medidas concretas relativamente ao fim a atingir
permitindo controlar que as medidas adoptadas pelo Estado no exerciacutecio do
poder discricionaacuterio natildeo comprimam excessivamente a posiccedilatildeo juriacutedica do
indiviacuteduo467
Assim entendido o princiacutepio da proporcionalidade constitui natildeo
apenas um princiacutepio substancial ou informador mas tambeacutem um esquema
compoacutesito de valoraccedilatildeo que permite equilibrar interesses e valores de
natureza heterogeacutenea assumindo eventualmente conteuacutedos distintos em
funccedilatildeo do tipo de interferecircncia bem como da importacircncia do direito individual
e do interesse colectivo que justificam a restriccedilatildeo
Eacute quanto a este uacuteltimo aspecto que o controlo do tribunal se mostra
mais incisivo transformando-se num controlo de meacuterito que tem em conta
todas as circunstacircncias do caso concreto O criteacuterio do justo equiliacutebrio e o da
464 Acoacuterdatildeo Beyeler c Itaacutelia (Queixa nordm 3320296) de 5 de janeiro de 2000 sect114 465 Vide MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della proprietagrave nella Convenzione dei Diritti
dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 pp 212 e ss 466 Cfr MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della proprietagrave nella Convenzione dei Diritti
dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 p 233 Fala em funccedilatildeo correctiva ALI RIZA CcedilOBAN
Protection of Property Rights within the European Convention on Human Rights Ashgate
2004 p 204 467 O controlo da proporcionalidade incinde sobre os efeitos que a medida concreta de
interferecircncia ou regulamentaccedilatildeo comporta em relaccedilatildeo ao caso concreto permite verificar se o
indiviacuteduo (o senhorio) sofre um sacrifiacutecio excessivo e exorbitante Cfr Hakansson e Sturesson
c Sueacutecia (Queixa nordm 1185585) sect 51
208
proporcionalidade tornam-se nas matildeos do tribunal um instrumento de poliacutetica
judiciaacuteria extremamente duacutectil que permite a este uacuteltimo alcanccedilar as soluccedilotildees
mais variadas
3 AS POLIacuteTICAS NACIONAIS DE ARRENDAMENTO SUJEITAS A
ESCRUTIacuteNIO O RECONHECIMENTO DE UMA AMPLA MARGEM DE
APRECIACcedilAtildeO AOS ESTADOS CONTRATANTES
Vamos comeccedilar por analisar a jurisprudecircncia do TEDH no caso
Mellacher em que o Tribunal escrutinou medidas austriacuteacas de controlo de
rendas
I CASO MELLACHER ET AL C AacuteUSTRIA DE 19 DE DEZEMBRO DE
1989 RENDAS CONTROLADAS
Este eacute um caso paradigmaacutetico na jurisprudecircncia do TEDH cujas linhas
orientadoras estiveram na base da posterior evoluccedilatildeo jurisprudencial
Discutiam-se no caso concreto determinadas medidas legislativas - com base
na Lei do Arrendamento Austriacuteaca de 1981 (Mietrechtsgesetz) em especial o
sect 44 - atraveacutes das quais o Estado havia transformado contratos de
arrendamento de duraccedilatildeo limitada com rendas livremente negociadas entre as
partes em contratos de duraccedilatildeo indeterminada e com renda limitada que em
alguns casos dificilmente permitia cobrir os custos de manutenccedilatildeo dos
imoacuteveis468
Mr Mellacher e os outros requerentes que eram proprietaacuterios de um
preacutedio relativamente ao qual haviam celebrado contratos de arrendamento
queixaram-se de que as autoridades austriacuteacas interferiram com a sua liberdade
contratual e privaram-nos do percebimento das rendas A Lei do
Arrendamento alegaram tornara-os meros administradores das suas
propriedades a troco de uma retribuiccedilatildeo controlada pelas autoridades puacuteblicas
Natildeo se colocaram no caso concreto duacutevidas quanto agrave base legal da
intervenccedilatildeo e na medida em que o Estado Austriacuteaco alegou que a Lei visava
reduzir a disparidade de rendas para apartamentos equivalentes e combater a
especulaccedilatildeo imobiliaacuteria tornar mais faacutecil o alojamento a preccedilos razoaacuteveis para
468 Para a fixaccedilatildeo do montante de renda por metro quadrado a Lei do Arrendamento dividia
os arrendamentos em quatro classes de acordo com o seu niacutevel de conforto e
independentemente da sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta divisatildeo era muito desvantajosa para os
senhorios de casas com menos condiccedilotildees criando situaccedilotildees de desigualdade
209
uma populaccedilatildeo menos afluente e ao mesmo tempo incentivar melhoramentos
nos imoacuteveis o Tribunal considerou que a medida visava prosseguir um
objectivo de interesse geral469
Restava470 entatildeo a questatildeo da proporcionalidade saber se a intervenccedilatildeo
em causa respeitava o equiliacutebrio (fair balance) entre as necessidades de
interesse geral da comunidade e a protecccedilatildeo dos direitos fundamentais dos
indiviacuteduos equiliacutebrio esse que se manifesta numa adequada proporcionalidade
entre os meios empregues e o objectivo perseguido O juiacutezo do Tribunal foi
positivo apesar do montante avultado das reduccedilotildees estas natildeo constituem um
oacutenus desproporcionado e o facto de as rendas terem sido acordadas
previamente de acordo com os valores de mercado natildeo impede que o legislador
as considere inaceitaacuteveis do ponto de vista da justiccedila social
Se esta decisatildeo respeita integralmente a margem de apreciaccedilatildeo do
Estado Contratante no que respeita agrave intervenccedilatildeo no equiliacutebrio das prestaccedilotildees
contratuais vamos agora ver as especificidades dos casos em que estava em
causa a legislaccedilatildeo italiana no acircmbito do arrendamento
II CASOS CONTRA ITAacuteLIA
Desde 1947 que o legislador italiano intervinha no arrendamento
urbano quer atraveacutes do controlo e congelamento das rendas quer pela
prorrogaccedilatildeo legal dos arrendamentos em vigor e pelo adiamento suspensatildeo
ou escalonamento da execuccedilatildeo das ordens de despejodesapossamento
Diploma nuclear deste regime foi a Lei 392 de 27 de julho de 1978
que estabelecia um limite da prorrogaccedilatildeo legal dos arrendamentos ateacute 31 de
dezembro de 1982 30 de junho de 1983 ou 31 de dezembro de 1983 consoante
as circunstacircncias Este diploma estabelecia na Secccedilatildeo 56 que o magistrado
fixava a data para a execuccedilatildeo da ordem de desapossamento tendo em
consideraccedilatildeo as circunstacircncias particulares do inquilino e do senhorio e a
causa de extinccedilatildeo do arrendamento A execuccedilatildeo natildeo poderia ser diferida por
mais de seis meses ou de doze em casos excepcionais
469 Cfr sect 47 470 O Tribunal reconheceu no sect 51 que na legislaccedilatildeo social sobre o controlo de rendas o
legislador pode tomar medidas que afectem a execuccedilatildeo de contratos celebrados em data
anterior de modo a prosseguir o objectivo pretendido Tambeacutem natildeo ajuizou a possibilidade de
medidas alternativas Na medida em que o Estado aja nos limites da sua margem de
apreciaccedilatildeo natildeo cabe ao Tribunal avaliar em que medida a legislaccedilatildeo em causa representa a
melhor soluccedilatildeo para lidar com o problema ou em que medida a discricionariedade legislativa
deveria ter sido exercida noutra maneira
210
Desde 1983 todavia vaacuterias normas vieram prorrogar a suspensatildeo
dessas ordens de reapossamento (ordinanze di sfratto)471 A Lei 118 de 5 de
abril de 1985 na sua Secccedilatildeo 1(3) viria a determinar que as suspensotildees natildeo
seriam aplicaacuteveis se a repossessatildeo houvesse sido ordenada por incumprimento
do pagamento das rendas Tambeacutem natildeo poderia ser ordenada a prorrogaccedilatildeo da
suspensatildeo do despejo se (a) apoacutes a conclusatildeo do contrato o senhorio
requeresse o imoacutevel para uso (residencial comercial ou profissional) proacuteprio
do cocircnjuge filhos ou netos e se oferecesse ao inquilino acomodaccedilatildeo similar
com uma renda comportaacutevel e que natildeo ultrapassasse os 20 da renda inicial
pagando ainda os custos da mudanccedila do inquilino (b) quando o senhorio
tivesse necessidade urgente do imoacutevel para seu alojamento dos seus filhos ou
dos seus ascendentes
Estas medidas foram sancionadas pelo Tribunal no Acoacuterdatildeo Spadea e
Scalabrino c Itaacutelia472 No que respeita ao objectivo da interferecircncia o Tribunal
considerou que as medidas legislativas que suspendiam os despejos durante o
periacuteodo 1984 a 1988 eram adequadas para lidar com o elevado nuacutemero de
extinccedilatildeo de contratos de arrendamento entre 1982 e 1983 previsto devido ao
levantamento das suspensotildees de execuccedilatildeo pela Lei 3921978 e justificava-se
pela necessidade de permitir que os inquilinos afectados encontrassem novo
alojamento ou obtivessem habitaccedilatildeo social A execuccedilatildeo simultacircnea de todas
as ordens de despejo considerou-se originaria uma consideraacutevel tensatildeo social
e poria em causa a ordem puacuteblica473
Quanto agrave proporcionalidade da interferecircncia face ao propoacutesito da
intervenccedilatildeo ndash proteger os inquilinos com baixos rendimentos e evitar o risco
de perturbaccedilatildeo da ordem puacuteblica ndash o Tribunal avaliou em que medida foi
respeitado o equiliacutebrio entre o interesse dos requerentes e o interesse puacuteblico
Considerando que na situaccedilatildeo concreta a uacutenica causa para o desapossamento
471 Mais concretamente o Decreto Legislativo 795 de 1 de dezembro de 1984 cujas normas
foram incorporadas no Decreto Legislativo 12 de 7 de fevereiro de 1985 que mais tarde se
tornou Lei 118 de 5 de abril de 1985 e que cobria o periacuteodo de 1 de dezembro de 1984 a 30
de junho de 1985 Uma segunda suspensatildeo resultou do Decreto Legislativo 708 de 29 de
outubro de 1986 que veio a tornar-se a Lei 899 de 23 de dezembro de 1986 e que cobria o
periacuteodo entre 29 de dutubro de 1986 e 31 de marccedilo de 1987 Uma terceira suspensatildeo foi
introduzida pelo Decreto Legislativo 26 de 8 de fevereiro de 1988 que se tornou a Lei 108
de 8 de abril de 1988 e que cobria inicialmente o periacuteodo de 8 de fevereiro de 1988 a 30 de
setembro mas depois foi prorrogado ateacute 31 de dezembro de 1988 Finalmente uma uacuteltima
suspensatildeo foi introduzida pelo Decreto Legislativo 551 de 30 de dezembro de 1988 que se
tornou Lei 61 de 21 de fevereiro de 1989 e que cobria o periacuteodo ateacute 30 de abril de 1989 472 Acoacuterdatildeo Spadea e Scalabrino c Itaacutelia (Queixa nordm 1286887) de 28 de setembro de 1995 473 Para 31
211
era a caducidade do contrato de arrendamento e que natildeo se verificava
nenhuma situaccedilatildeo de excepccedilatildeo agrave suspensatildeo do despejo ndash apesar de os
requerentes terem sido obrigados a comprar um novo apartamento e natildeo terem
recuperado o imoacutevel senatildeo apoacutes a morte de uma arrendataacuteria e apoacutes a saiacuteda
voluntaacuteria da outra ndash o Tribunal considerou que as medidas natildeo eram
desproporcionadas mas antes cabiam na margem de apreciaccedilatildeo reconhecida
ao Estado italiano pelo segundo paraacutegrafo do artigo 1 do Protocolo 1
No Acoacuterdatildeo Scollo c Itaacutelia de 28 de setembro de 1995474 o requerente
tinha uma ordem judicial para a desocupaccedilatildeo do imoacutevel pelo inquilino em 30
de junho de 1984 A pedido do inquilino o magistrado deferiu ao abrigo da
Lei 94 de 25 de marccedilo de 1982 a desocupaccedilatildeo para 31 de outubro de 1984
Como o inquilino permaneceu no imoacutevel o requerente iniciou o procedimento
de despejo Entretanto o Decreto de 17 de fevereiro de 1985 (que viria a ser a
Lei nordm 118 de 5 de abril de 1985) entrou em vigor suspendendo os despejos
ateacute 30 de junho de 1985 Entre 1 de julho de 1985 e a entrada em vigor do
Decreto Legislativo 708 de 29 de outubro de 1986 que suspendeu os despejos
ateacute 31 de marccedilo de 1987 o requerente fez nove tentativas para despejar o
inquilino Entre 1 de abril de 1987 e 8 de fevereiro de 1988 data em que uma
nova seacuterie de diplomas veio suspender os despejos ateacute 30 de abril de 1989 o
senhorio fez nove tentativas para despejar o inquilino Entre 1 de maio de 1989
e 15 de outubro de 1991 o senhorio (diabeacutetico com 71 de incapacidade e
desempregado) fez dezoito tentativas infrutiacuteferas para despejar o inquilino Em
1 de dezembro de 1989 o senhorio inicia um processo judicial contra o
inquilino invocando que a suspensatildeo do despejo natildeo era aplicaacutevel ao caso
concreto pois o inquilino desde Novembro de 1987 natildeo pagava parte da
renda O inquilino regularizou a situaccedilatildeo e o processo foi arquivado Scollo
viria a recuperar o imoacutevel a 15 de janeiro de 1995
A respeito do propoacutesito da interferecircncia o Tribunal repetiu o raciociacutenio
jaacute referido no Acoacuterdatildeo Spadea e Scalabrino v Itaacutelia e considerou que a
execuccedilatildeo simultacircnea de todas as ordens de despejo originaria uma
consideraacutevel tensatildeo social e poria em causa a ordem puacuteblica
Quanto agrave proporcionalidade o Tribunal comeccedilou por aceitar que a
necessidade urgente de Scollo em recuperar o seu imoacutevel natildeo se verificou
durante todo o periacuteodo em causa mas natildeo aceitou as conclusotildees que o
Governo retirou desse facto Apesar da declaraccedilatildeo solene do requerente da
necessidade da casa proferida a 30 de novembro de 1987 que lhe daria
prioridade na assistecircncia policial para executar o despejo nunca houve uma
ordem administrativa nesse sentido Igualmente apesar de o seu advogado ter
contactado duas vezes o Comiteacute da Prefeitura em setembro de 1994 -
474 Acoacuterdatildeo Scollo c Itaacutelia (Queixa nordm 1913391) de 28 de setembro de 1995
212
sublinhando que o caso do seu cliente deveria ser resolvido rapidamente jaacute
que ele precisava do apartamento natildeo tinha emprego e tinha uma incapacidade
de 71 para aleacutem de o inquilino natildeo pagar a renda desde 30 de novembro de
1987 - as autoridades administrativas competentes natildeo agiram de forma a
responder a estes pedidos
Ainda que no caso concreto as condiccedilotildees legais para a execuccedilatildeo do
despejo estivessem verificadas o requerente natildeo recuperou a propriedade ateacute
15 de janeiro de 1995 e apenas porque o inquilino deixou o apartamento de
livre vontade Nesse periacuteodo o requerente natildeo soacute foi obrigado a comprar outro
apartamento como ainda teve de propor uma acccedilatildeo judicial para resolver o
problema do natildeo pagamento das rendas
Concluiu o Tribunal que475 ao adoptar as medidas de emergecircncia e ao
estabelecer determinadas excepccedilotildees agrave sua aplicaccedilatildeo o legislador italiano
poderia razoavelmente considerar que de acordo com a necessidade de
encontrar um justo equiliacutebrio entre os interesses da comunidade e o direito dos
senhorios e do requerente em particular que os meios escolhidos eram
apropriados para alcanccedilar o objectivo pretendido No entanto a restriccedilatildeo ao
uso do apartamento por parte do requerente resultante da natildeo aplicaccedilatildeo pelas
autoridades competentes dessas normas foi contraacuteria aos requisitos do
segundo paraacutegrafo do Artigo 1 do Protocolo 1 Consequentemente houve uma
violaccedilatildeo dessa norma
O Tribunal apreciou ainda a existecircncia de uma violaccedilatildeo do artigo 6ordm476
sect1 que estabelece
Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada
equitativa e publicamente num prazo razoaacutevel por um tribunal
independente e imparcial estabelecido pela lei o qual decidiraacute quer
sobre a determinaccedilatildeo dos seus direitos e obrigaccedilotildees de caraacutecter civil
quer sobre o fundamento de qualquer acusaccedilatildeo em mateacuteria penal
dirigida contra ela O julgamento deve ser puacuteblico mas o acesso agrave
sala de audiecircncias pode ser proibido agrave imprensa ou ao puacuteblico
durante a totalidade ou parte do processo quando a bem da
moralidade da ordem puacuteblica ou da seguranccedila nacional numa
sociedade democraacutetica quando os interesses de menores ou a
protecccedilatildeo da vida privada das partes no processo o exigirem ou na
medida julgada estritamente necessaacuteria pelo tribunal quando em
475 Para 40 476 Sobre as relaccedilotildees entre o artigo 1ordm do Protocolo 1 e o artigo 6ccedil Ali Riza Ccediloban Protection
of Property Rights within the European Convention on Human Rights Ashgate 2004 pp 244
e ss
213
circunstacircncias especiais a publicidade pudesse ser prejudicial para
os interesses da justiccedila
O Tribunal considerou em primeiro lugar que a norma era aplicaacutevel
o objectivo dos procedimentos era resolver um litiacutegio entre o requerente e o
inquilino Em segundo lugar o Tribunal sublinhou que entre a notificaccedilatildeo do
inquilino para o despejo e a desocupaccedilatildeo (voluntaacuteria) do imoacutevel decorreram
onze anos e dez meses Ao natildeo ultrapassar as dificuldades praacuteticas criadas com
a execuccedilatildeo de um elevado nuacutemero de despejos considerou o Tribunal que a
ineacutercia das autoridades administrativas competentes gerou responsabilidade
do Estado italiano nos termos do artigo 6ordm nordm 1
No Acoacuterdatildeo Immobiliare Saffi v Itaacutelia477 um caso entre muitos
julgados pelo Tribunal478 relativos agrave jaacute referida Lei 61 de 21 de fevereiro de
1989 que entrou em vigor no mecircs de marccedilo desse mesmo ano ndash estava em
causa a distinccedilatildeo entre os despejos prioritaacuterios e os natildeo prioritaacuterios Esta Lei
estabelecia que a partir de 1 de maio de 1989 o pedido de assistecircncia policial
para os despejos seria tratado segundo uma ordem de prioridade estabelecida
de acordo com criteacuterios fixados pelo prefeito Entre os casos com prioridade
contavam-se aqueles em que natildeo era legalmente possiacutevel suspender a
execuccedilatildeo especialmente os casos em que os senhorios precisavam de
alojamento para si proacuteprios para os cocircnjuges descendentes e ascendentes
Para todos os outros casos a assistecircncia policial deveria ser providenciada no
maacuteximo ateacute quarenta e oitos meses contados a partir de 1 de janeiro de 1990
ou seja ateacute dezembro de 1993 Na sequecircncia desta lei e relevante para o caso
entraram na Perfettura de Livorno 1186 casos de pedido de assistecircncia policial
para despejos (354 casos de atrasos no pagamento da renda 58 denuacutencias para
habitaccedilatildeo 722 porque terminou o contrato 55 outras)
Se os casos natildeo prioritaacuterios deveriam ter lugar num periacuteodo maacuteximo
de 4 anos a contar de 1990 ou seja ateacute dezembro de 1993 na praacutetica todavia
ateacute os despejos urgentes se tornaram muito difiacuteceis e o pedido de assistecircncia
policial tornou-se um momento autoacutenomo no despejo com a possibilidade de
o prefeito poder suspender a ordem dada pelo magistrado Em dezembro de
1993 o prazo foi prorrogado ateacute 31 de dezembro de 1995 depois ateacute 26 de
fevereiro de 1996 e finalmente ateacute 26 de abril de 1996 De 31 de dezembro de
1993 ateacute 31 dezembro de 1995 (Decreto Legislativo nordm 33093) de 31 de
dezembro de 1995 ateacute 29 de fevereiro de 1996 (Decreto Legislativo nordm 54695
477 Acoacuterdatildeo Immobiliare Saffi c Itaacutelia (Queixa nordm 2277493) de 28 de julho de 1999 478 Stornelli e Sacchi c Itaacutelia 28 de outubro de 2005 Lunari c Itaacutelia 11 de abril de 2001
Edoardo Palumbo c Itaacutelia 1 de marccedilo de 2001 Molteni e Ghisi c Itaacutelia 28 de outubro de
2005
214
de 29 de fevereiro de 1996 ateacute 26 de abril de 1996 (Decreto-Legislativo nordm
8196) de 26 abril 1996 ateacute 25 de junho de 1996 (Decreto Legislativo nordm
21796 e desde essa altura ateacute 31 de dezembro de 1996 (Decreto Legislativo
nordm 33596) Satildeo ainda de referir as posteriores Lei 566 de 4 de novembro de
1996 os Decretos Legislativos 1721997 71998 e 3751998 e a Lei 431 de
9 de dezembro de 1998
No caso concreto depois de ter sido dada notiacutecia de despejo em 1983
e de entre 15 de dezembro de 1988 e janeiro de 1996 terem sido feitas onze
tentativas de recuperar o imoacutevel sem sucesso por o requerente natildeo ter direito
a assistecircncia policial o reapossamento acabou por ter lugar apenas em abril de
1996 na sequecircncia da morte do inquilino
O Tribunal considerou que o escopo desta legislaccedilatildeo que se
enquadrava no segundo paraacutegrafo do Artigo 1ordm do Protocolo 1 era liacutecito jaacute
que a legislaccedilatildeo impugnada tinha um objectivo de interesse geral como
requerido pelo segundo paraacutegrafo do Artigo 1ordm (o jaacute mencionado objectivo de
evitar a tensatildeo social e o perigo para a ordem puacuteblica eventualmente resultante
da extinccedilatildeo de um elevado nuacutemero de contratos entre 1982 e 1983 devido ao
levantamento das suspensotildees de execuccedilatildeo das ordens de despejo e o de
permitir que os inquilinos afectados encontrassem novo alojamento ou
obtivessem habitaccedilatildeo social)479
No que agrave proporcionalidade da medida dizia respeito o tribunal reiterou
que esta deve respeitar o justo equiliacutebrio (fair balance) entre as necessidades do
interesse geral e a protecccedilatildeo dos direitos dos indiviacuteduos reconhecendo ao
Estado uma ampla margem de apreciaccedilatildeo quer na escolha dos meios de
concretizaccedilatildeo desse fim quer na questatildeo de saber se as consequecircncias dessa
concretizaccedilatildeo satildeo justificadas pelo objectivo da lei em questatildeo480 Nesse
sentido reiterou que um sistema de suspensatildeo temporaacuteria ou escalonamento de
execuccedilatildeo de ordens judiciais seguidas da reinstalaccedilatildeo do senhorio na sua
propriedade natildeo eacute soacute por si susceptiacutevel de criacutetica tendo em consideraccedilatildeo a
margem de apreciaccedilatildeo permitida pelo segundo paraacutegrafo do artigo 1481
Todavia este sistema comporta o risco de impor aos senhorios um oacutenus
excessivo em termos de disposiccedilatildeo da sua propriedade e deve dar garantias
procedimentais que salvaguardem a operatividade do sistema e que o impacto
nos direitos do proprietaacuterio natildeo seja arbitraacuterio nem imprevisiacutevel O Tribunal
considerou que o sistema italiano era inflexiacutevel ao estabelecer que os casos em
que o arrendamento havia cessado com fundamento na necessidade urgente do
479 sect 47 480 sect 49 481 sect 54
215
imoacutevel do senhorio tinham prioridade tornou a execuccedilatildeo das ordens natildeo-
urgentes dependentes da inexistecircncia de ordens prioritaacuterias Na medida em que
existia sempre um largo nuacutemero de pedidos prioritaacuterios as ordens natildeo
prioritaacuterias praticamente natildeo foram executadas mesmo apoacutes Janeiro de 1990
Dito de outro modo o fornecimento de assistecircncia policial ficava sempre
dependente do nuacutemero de pedidos prioritaacuterios e do nuacutemero de agentes policiais
disponiacuteveis O Tribunal sublinhou ainda que na fase administrativa nenhum
tribunal tinha jurisdiccedilatildeo para apreciar o impacto que os atrasos causados pelo
sistema tinham nos casos concretos a actividade do perfeito era autorizada e
cabia no acircmbito da legislaccedilatildeo em vigor O Tribunal considerou em uacuteltimo lugar
que as medidas de emergecircncia adoptadas natildeo tinham nenhum limite temporal
findo o qual fosse assegurado o reaposssamento do senhorio
No caso concreto o juiz ordenou ao inquilino que restituiacutesse o imoacutevel
ao senhorio ateacute 30 de setembro de 1984 Nos seis anos seguintes a execuccedilatildeo
das ordens de despejo natildeo urgentes foi sendo sucessivamente suspensa Em
1989 Immobiliare Saffi obteve o direito a assistecircncia policial entre 1 de janeiro
de 1990 e o final de 1993 Mas este prazo foi sendo prorrogado e o requerente
soacute recuperou o imoacutevel a 11 de abril de 1996 apoacutes a morte do inquilino
O tribunal considerou que durante onze anos a situaccedilatildeo causou um
estado de incerteza juriacutedica quanto ao momento da restituiccedilatildeo do apartamento
O requerente natildeo poderia requerer tutela judicial ao juiz que tratou do processo
de execuccedilatildeo que considerou ser de admitir uma prorrogaccedilatildeo nem ao tribunal
administrativo que natildeo poderia afastar a decisatildeo do prefeito de dar prioridade a
casos urgentes jaacute que a decisatildeo era legiacutetima O requerente natildeo tinha modo de
compelir o governo a tomar em consideraccedilatildeo as dificuldades surgidas em
virtude da prorrogaccedilatildeo Do mesmo a empresa natildeo tinha perspectivas de obter
uma indemnizaccedilatildeo do Governo italiano pelo periacuteodo da prorrogaccedilatildeo durante o
qual esteve incapaz de vender ou arrendar o seu apartamento a valor de mercado
Consequentemente o Tribunal concluiu que as medidas tomadas pelo legislador
italiano impuseram um oacutenus excessivo agrave empresa requerente e afectaram o
equiliacutebrio entre a protecccedilatildeo do direito de propriedade e as exigecircncias do
interesse geral consubstanciando uma violaccedilatildeo do artigo 1 do Protocolo 1
Os requerentes tambeacutem invocaram a violaccedilatildeo do artigo 6ordm nordm 1 da
CEDH A este respeito o Tribunal tomou em consideraccedilatildeo que a requerente
pediu ao magistrado de Livorno uma ordem confirmando a extinccedilatildeo do
arrendamento e requerendo que o inquilino restituiacutesse o imoacutevel Como o
inquilino natildeo contestou o despejo a uacutenica questatildeo era verdadeiramente a
restituiccedilatildeo do imoacutevel a recusa em restituir o imoacutevel consubstanciava uma
extensatildeo de facto do arrendamento e uma limitaccedilatildeo do direito de propriedade
do requerente o que constituiacutea um ldquolitiacutegiordquo para efeitos do artigo 6ordm O
Tribunal considerou ainda que o direito a um tribunal seria ilusoacuterio se uma
216
decisatildeo domeacutestica pudesse manter-se inoperativa em detrimento de uma das
partes Seria inconcebiacutevel que o artigo 6ordm previsse garantias processuais dos
litigantes ndash processos justos puacuteblicos e ceacuteleres ndash sem proteger a execuccedilatildeo das
decisotildees construir o artigo 6ordm como dizendo respeito apenas ao acesso aos
tribunais e com o decurso do processo seria uma violaccedilatildeo do Estado de Direito
A execuccedilatildeo de uma decisatildeo judicial cabe ainda no conceito de ldquocausardquo do
artigo 6ordm como eacute jurisprudecircncia constante e antiga do Tribunal482
Relativamente ao caso concreto o Tribunal sublinhou em primeiro
lugar que a decisatildeo administrativa relativa agrave concessatildeo de assistecircncia policial
se baseava nos mesmos factores jaacute tomados em consideraccedilatildeo pelo magistrado
ao abrigo da Lei 39278 Em segundo lugar o Tribunal observou que a decisatildeo
administrativa natildeo estava sujeita a controlo judicial Por uacuteltimo o Tribunal
considerou que a prestaccedilatildeo de assistecircncia policial foi sendo adiada por
periacuteodos de seis meses ao longo de quase nove anos fazendo pressupor que
as autoridades italianas natildeo procuraram soluccedilotildees alternativas para as questotildees
de ordem puacuteblica na aacuterea da habitaccedilatildeo Consequentemente o Tribunal
declarou uma violaccedilatildeo do artigo 6ordm da Convenccedilatildeo
4 A VIRAGEM NA JURISPRUDEcircNCIA DO TEDH DA INSUFICIEcircNCIA
ADJECTIVA OU PROCEDIMENTAL Agrave INTERFEREcircNCIA SUBSTANTIVA
Se nos casos contra Itaacutelia o Tribunal declarou a violaccedilatildeo do artigo 1ordm
do Protocolo 1 com base em razotildees objectivas ou procedimentais483 vamos
agora analisar a viragem jurisprudencial do Tribunal em casos em que estava
em causa o equiliacutebrio substancial484 da relaccedilatildeo entre senhorio e inquilino485
482 Acoacuterdatildeo Hornsby c Greece (Queixa nordm 1835791) de 19 de marccedilo de 1997 sect 40 483 Assim como no Acoacuterdatildeo Schirmer c Poloacutenia (Queixa nordm 6888001) de 21 de setembro de
2004 sobre a oferta de residecircncia alternativa como requisito de execuccedilatildeo de uma decisatildeo de
despejo 484 Em sentido divergente quanto agrave natureza desta viragem mas quanto a noacutes sem razatildeo como
resulta do que vimos de dizer David Magalhatildees ldquoPropriedade privada e cessaccedilatildeo do
arrendamento urbano uma compatibilizaccedilatildeo possiacutevelrdquo BFD 86 (2010) p 690 Afirma o
autor que o acompanhamos num texto que havia escrito anteriormente em 2005 - ldquoAs
restriccedilotildees ao direito de propriedade decorrentes do vinculismo arrendatiacutecio uma perspectiva
jusfundamentalrdquo BFD 81 (2005) pp 967-1007 - o que natildeo eacute verdade como claramente
resulta da presente exposiccedilatildeo 485 Sobre o que consideram o abandono da autocontenccedilatildeo judicial do Tribunal ver CHRISTOPH
SCHMID JASON R DINSE e MARTA SANTOS SILVA ldquoRumo a um nuacutecleo comum do
arrendamento urbano para fins habitacionais da Europardquo BFD 89 (2013) pp 422 e ss
217
I OS ACOacuteRDAtildeOS HUTTEN-CZAPSKA V POLOacuteNIA 3501497 DE 22
DE FEVEREIRO DE 2005 E 19 DE JUNHO DE 2006 (GRAND
CHAMBRE)
Comecemos por algumas notas sobre o contexto polaco O Decreto de
21 de dezembro de 1945 sobre Gestatildeo Puacuteblica da Habitaccedilatildeo e Controlo do
Arrendamento486 que entrou em vigor a 13 de fevereiro de 1946 introduziu a
Poliacutetica de Gestatildeo Puacuteblica da Habitaccedilatildeo que se aplicava aos arrendamentos
para habitaccedilatildeo e para comeacutercio de imoacuteveis privados O Decreto sobre o
Arrendamento (Dekret o najmie lokali)487 de 28 de julho de 1948 que entrou
em vigor em 1 de setembro de 1948 estabelecia a competecircncia das autoridades
estaduais para administrar o arrendamento quer no sector puacuteblico quer no
sector privado Para o efeito foi-lhes concedido poder para atribuir a um
particular um apartamento num imoacutevel privado A afectaccedilatildeo de uma habitaccedilatildeo
(przydział lokalu) equivalia para todos os efeitos praacuteticos a lsquoconcederrsquo o
direito a arrendar uma habitaccedilatildeo (ou uma instalaccedilatildeo comercial) Estes
diplomas tambeacutem continham normas sobre controlo de rendas
A Lei da Habitaccedilatildeo (Prawo lokalowe) de 10 de abril de 1974488 entrou
em vigor em 1 de agosto e substituiu o Decreto 1945 sobre a Gestatildeo Puacuteblica
da Habitaccedilatildeo e do Controlo do Arrendamento pelo Regime Especial do
Arrendamento (Ocupaccedilatildeo e Uso das Instalaccedilotildees e Edifiacutecios) Todavia natildeo
modificou substancialmente os princiacutepios em que se baseava a poliacutetica de
arrendamento em particular o direito de arrendar um apartamento (para
habitaccedilatildeo ou para fins comerciais) num edifiacutecio sujeito a lsquogestatildeo puacuteblicarsquo natildeo
tinha origem num contrato privado mas era conferido ao inquilino atraveacutes de
uma decisatildeo administrativa O dono do edifiacutecio continuava a natildeo ter uma
palavra a dizer sobre quem podia viver na sua casa nem por quanto tempo
Manteve-se ainda o regime das rendas controladas Estas normas que
restringiam drasticamente o montante de renda cobraacutevel tiveram origem numa
distribuiccedilatildeo de recursos habitacionais excepcionalmente riacutegida que
caracterizou os primeiros trinta anos do regime comunista na Poloacutenia As
486 Dekret z 21 grudnia 1945 r o publicznej gospodarce lokalami i kontroli najmu -
httpwwwlegeoplprawodekret-z-dnia-21-grudnia-1945-r-o-publicznej-gospodarce-
lokalami-i-kontroli-najmuon=26081950) 487httpwwwlegeoplprawodekret-z-dnia-28-lipca-1948-r-o-najmie-lokalion=16081958 488httpwwwlegeoplprawoustawa-z-dnia-10-kwietnia-1974-r-prawo-
lokaloweon=12101987
218
circunstacircncias todavia natildeo se modificaram substancialmente depois de 1989
No iniacutecio de 1990 a situaccedilatildeo habitacional na Poloacutenia apresentava-se
particularmente difiacutecil em resultado de uma diminuiccedilatildeo do alojamento
disponiacutevel e do elevado custo de adquisiccedilatildeo de um apartamento O montante
da renda controlada pelo Estado que tambeacutem era aplicada a edifiacutecios privados
cobria apenas 30 do custo de conservaccedilatildeo dos edifiacutecios
A Lei de 2 de julho de 1994 sobre o Arrendamento Residencial e
Subsiacutedios agrave Habitaccedilatildeo que entrou em vigor em 12 de novembro do mesmo
ano pretendia estabelecer uma nova regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees entre
inquilinos e senhorios e por isso aboliu o Regime Especial do Arrendamento
e introduziu um novo regime de controlo de rendaTodavia embora tivesse
abolido o regime de renda controlada e viesse a permitir que as rendas fossem
livremente negociadas este regime mantinha a renda controlada para os
arrendamentos residenciais que houvessem tido na sua origem decisatildeo
administrativa Por outro lado introduziu o regime da renda regulada (czynsz
regulowany) e regulamentou pormenorizadamente o caacutelculo da renda para
arrendamentos residenciais que tivessem estado sujeitas ao Regime Especial
do Arrendamento Estabeleceu ainda um conjunto de normas que visavam
proteger inquilinos em situaccedilatildeo difiacutecil durante a transiccedilatildeo de um sistema de
controlo estadual para um sistema de mercado e que se permaneceriam em
vigor ateacute 31 de dezembro de 2004 Relativamente a esses contratos criados
administrativamente manteve-se o direito de sucessatildeo no arrendamento e
com ligeiras modificaccedilotildees as normas que protegiam os inquilinos (mesmo os
inadimplentes) contra a extinccedilatildeo dos arrendamentos
Em geral a relaccedilatildeo de arrendamento sob a Lei 1994 continuava a ser
constituiacuteda atraveacutes de uma decisatildeo unilateral do estado A renda a receber era
estabelecida em valores muito baixos que natildeo cobriam os custos meacutedios de
manutenccedilatildeo da propriedade Por outro lado os proprietaacuterios estavam
obrigados a levar a cabo dispendiosos trabalhos de manutenccedilatildeo e o senhorio
enfrentava fortes limitaccedilotildees na extinccedilatildeo dos arrendamentos
De acordo com um relatoacuterio de 1998 quatro anos depois da introduccedilatildeo
do regime da renda regulada a renda meacutedia cobria apenas 60 dos custos de
manutenccedilatildeo dos edifiacutecios residenciais A diferenccedila era suportada pelos
senhorios A escala do problema era grande jaacute que nessa altura 2960000
residecircncias (255 de todos os recursos habitacionais do paiacutes) estavam
submetidas a este regime de renda controladas (600 000 eram propriedade
privada) Sendo que o nuacutemero de apartamentos na Poloacutenia era de 11600000
os apartamentos privados sujeitos ao regime de controlo de renda constituiacuteam
52 dos recursos habitacionais do paiacutes
A Lei de 2 de julho de 1994 veio a ser apreciada pelo Tribunal
Constitucional Polaco nos Acoacuterdatildeos de 12 de janeiro e de 10 de outubro de
219
2000 que considerou que a Secccedilatildeo 9 - estabelecendo os deveres dos senhorios
- era incompatiacutevel com os princiacutepios constitucionais da protecccedilatildeo da
propriedade e da justiccedila social jaacute que os onerava excessivamente um encargo
que de modo nenhum era proporcional ao proveito resultante da renda
controlada O Tribunal decidiu ainda que a Lei deveria ser revogada ateacute 11 de
julho de 2001
Em 21 de junho de 2001 o parlamento adoptou uma nova Lei da
Protecccedilatildeo dos Direitos dos Inquilinos Recursos Habitacionais dos Municiacutepios
e Alteraccedilotildees ao Coacutedigo Civil (Ustawa o ochronie praw lokatoroacutew
mieszkaniowym zasobie gminy i o zmianie Kodeksu cywilnego)489 que entrou
em vigor a 10 de julho Esta Lei revogou o anterior regime da renda controlada
e substituiu-o por um outro regime legal de controlo de renda mas que
restringia a possibilidade de o senhorio aumentar as rendas De resto esta Lei
natildeo modificou substancialmente o regime do arrendamento manteve quase
todas as restriccedilotildees na extinccedilatildeo dos arrendamentos e as obrigaccedilotildees quanto agrave
conservaccedilatildeo da propriedade agravaram a situaccedilatildeo dos senhorios em parte
devido ao congelamento das rendas a niacuteveis considerados inaceitaacuteveis (3 do
valor de reconstruccedilatildeo do edifiacutecio)
A Lei de 2001 foi sucessivamente alterada A alteraccedilatildeo mais
importante foi a adoptada pelo Parlamento em 17 e 22 de dezembro de 2004
que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2005 Em virtude das alteraccedilotildees de
2004 as autoridades prolongaram a aplicaccedilatildeo das regras impondo restriccedilotildees
no montante das rendas para aleacutem do final de 2004 ndash o que veio a ser
considerado pelo Tribunal Constitucional Polaco como uma seacuteria violaccedilatildeo do
Estado de Direito
No caso concreto a casa da condessa Maria Hutten-Czapska
construiacuteda em 1936 como uma moradia familiar com reacutes-do-chatildeo e primeiro
andar foi usada durante a Segunda Guerra Mundial pelos oficiais do Exercito
Alematildeo e em 1945 foi ocupada por oficiais do Exeacutercito Vermelho Em maio
de 1945 o Director do Departamento da Habitaccedilatildeo de Cacircmara de Gdynia
(Kierownik Wydzialu Mieszkaniowego Magistratu Miasta Gdynia) emitiu uma
ordem atribuindo o primeiro andar a A Z que se mudou definitivamente em
outubro do mesmo ano Por ordem cronoloacutegica satildeo de destacar os seguintes
factos
- A 13 de fevereiro de 1946 a casa ficou sujeita ao regime da lsquoGestatildeo
Puacuteblica da Habitaccedilatildeorsquo e em 1 de agosto de 1974 ao Regime Especial do
Arrendamento
489 httpisapsejmgovplDetailsServletid=WDU20010710733
220
- A 8 de julho de 1975 o Mayor da Gdynia autorizou WP a mudar o
apartamento de que era arrendataacuterio sob o Regime Especial do Arrendamento
pelo reacutes-do-chatildeo da casa da requerente por um periacuteodo de tempo
indeterminado
- A 24 de outubro de 1975 o Director do Gabinete da Cacircmara de
Gnynia para a Administraccedilatildeo Local e o Ambiente (Kierownik Wydziału
Gospodarki Terenowej i Ochrony Środowiska Urzędu Miejskiego w Gdyni)
ordenou que a casa ficasse sujeita a gestatildeo estadual (przejęcie w zarząd
państwowy) a partir de 2 de janeiro de 1976
- A 3 de agosto de 1988 o Tribunal Judicial da Gdynia (Sąd Rejonowy)
julgou que em virtude da morte de A Z os seus herdeiros sucederiam no
direito de arrendar o 1ordm andar
- Em outubro de 1990 o Mayor da Gnydia restituiu a gestatildeo da casa agrave
requerente que desde entatildeo procura recuperar a casa para aiacute instalar a sede da
Amber Trail Foundation (Fundacja Bursztynowego Szlaku)
A requerente queixou-se ao TEDH de que o Estado Polaco tinha
violado o artigo 1ordm do Protocolo 1 da CEDH A situaccedilatildeo criada pela aplicaccedilatildeo
de leis que lhe impunham relaccedilotildees de arrendamento e estabeleciam um
inadequado niacutevel de renda constituiacutea uma violaccedilatildeo contiacutenua do direito ao
lsquorespeito dos seus bensrsquo O seu direito de propriedade foi substancialmente
afectado jaacute que ela natildeo soacute natildeo retirava nenhum proveito da sua propriedade
como tambeacutem em virtude das restriccedilotildees agrave extinccedilatildeo do arrendamento natildeo
readquiria a posse ou o uso da sua propriedade (as condiccedilotildees legais para
recuperar a casa por exemplo providenciar habitaccedilatildeo substituta para o
inquilino) Era dona soacute no papel Natildeo tinha possibilidade de decidir quem e
por quanto tempo habitaria a casa E por uacuteltimo o facto de a renda fixada natildeo
ter razoavelmente adequada aos custos para manter a propriedade em bom
estado resultou numa significativa descida do valor e estado de conservaccedilatildeo
da sua casa490
Reunido em secccedilatildeo o Tribunal considerou que em anaacutelise estava uma
medida que regulamentava o uso da propriedade e natildeo uma expropriaccedilatildeo
apesar de a requerente natildeo ter a detenccedilatildeo material da casa e de os seus direitos
relativos ao arrendamento da casa incluindo o seu direito a receber as rendas
e a extinguir os arrendamentos estarem sujeitos a uma seacuterie de limitaccedilotildees
490 O funcionamento do regime da renda controlada jaacute afectou 100 000 senhorios cuja
propriedade esteve sujeita agraves mesmas limitaccedilotildees que constam do presente caso Entre 600 000
a 900 000 inquilinos na Poloacutenia beneficiaram destas regras especiais sobre o montante da
renda e a extinccedilatildeo dos contratos A decisatildeo do caso presente teve pois consequecircncias nos
direitos de um grande nuacutemero de indiviacuteduos
221
Assim a decisatildeo deste caso foi colocada no acircmbito do segundo paraacutegrafo do
Artigo 1ordm
Quanto agrave prossecuccedilatildeo do interesse geral o Tribunal reiterou que satildeo as
autoridades nacionais que estatildeo melhor posicionadas para apreciar o que eacute o
interesse geral Satildeo elas que fazem a avaliaccedilatildeo inicial quanto agrave existecircncia de
um problema puacuteblico que requer a adopccedilatildeo de medidas que afectem o direito
de propriedade491 Decisotildees sobre se e quando o arrendamento deve ser
controlado pelo Estado ou deixado agraves regras do mercado bem como a escolha
das medidas para assegurarem as necessidades habitacionais da comunidade e
o momento para a sua implementaccedilatildeo envolvem a consideraccedilatildeo de aspectos
sociais econoacutemicos e poliacuteticos necessariamente complexos O Tribunal
relembramos aceita por princiacutepio a decisatildeo do legislador nacional sobre o
que eacute do interesse geral a natildeo ser que ela no caso concreto se mostre
totalmente desprovida de fundamento
O controlo das rendas teve origem numa escassez contiacutenua de
habitaccedilatildeo devido agrave diminuiccedilatildeo de casas para arrendar e aos altos custos de
aquisiccedilatildeo de um apartamento Foi implementado para assegurar a protecccedilatildeo
social dos inquilinos e assegurar especialmente relativamente a inquilinos em
difiacutecil situaccedilatildeo financeira uma transiccedilatildeo gradual de rendas controladas pelo
estado para um arrendamento plenamente negociado durante a reforma do
paiacutes a seguir ao colapso do regime comunista O Tribunal aceitou pois que
naquele contexto econoacutemico e social a legislaccedilatildeo impugnada servia um
interesse geral
Quanto agrave proporcionalidade ainda que na discricionariedade dos
Estados Contratantes caiba o poder de tomar medidas sobre o controlo das
rendas (sancionadas em Mellacher) o Tribunal sublinhou que esta
discricionariedade natildeo eacute ilimitada no seu exerciacutecio mesmo no contexto da
mais complexa reforma do Estado e natildeo pode afrontar os paracircmetros da
Convenccedilatildeo Em particular nada justifica que natildeo se assegurasse ao requerente
durante todo o periacuteodo em anaacutelise pelo menos as quantias necessaacuterias para
cobrir os custos de manutenccedilatildeo
O Tribunal relembrou as palavras do Tribunal Constitucional Polaco
no Acoacuterdatildeo de 12 de maio de 2004492 segundo o qual ldquoo regime da renda
controlada baseada em normas que necessaacuteria e inevitavelmente
acarretavam prejuiacutezos para os senhorios resultou numa distribuiccedilatildeo
491 Para 149 492 httpisapsejmgovplDetailsServletid=WDU20041221289ampmin=1
222
desproporcionada injustificada e arbitraacuteria do oacutenus social envolvido na
reforma habitacional e essa reforma foi feita principalmente agrave custa dos
senhoriosrdquo O Tribunal Constitucional havia considerado que as medidas
adoptadas consubstanciavam uma violaccedilatildeo contiacutenua do direito de propriedade
porquanto a maneira como as rendas eram calculadas tornava impossiacutevel que
os senhorios tivessem algum proveito com as rendas ou que ao menos
conseguissem recuperar os custos de conservaccedilatildeo dos imoacuteveis
Nessas circunstacircncias considerou o TEDH e na linha das decisotildees do
tribunal constitucional as autoridades polacas tinham o dever de eliminar ou
ao menos remediar com prontidatildeo a situaccedilatildeo que foi considerada incompatiacutevel
com os requisitos do direito fundamental da propriedade Acresce que o
princiacutepio da legalidade do Artigo 1ordm do Protocolo 1 e a previsibilidade do
direito resultante dessa norma exigiria do Estado que tivesse revogado o
regime do controlo de renda o que natildeo era incompatiacutevel com a adopccedilatildeo de
medidas para protecccedilatildeo do inquilino Em suma o Tribunal considerou que as
autoridades impuseram agrave requerente um encargo desproporcionado e
excessivo que natildeo era susceptiacutevel de justificaccedilatildeo pelo interesse geral
Foi a primeira vez que o TEDH declarou uma determinada restriccedilatildeo
dos direitos dos proprietaacuterios operada atraveacutes da interferecircncia no contrato de
arrendamento como inadmissiacutevel As reacccedilotildees natildeo se fizeram esperar
marcadas pela tentativa de reduzir o impacto do Acoacuterdatildeo ao estabelecimento
de um montante das rendas que constituiacutesse uma lsquorestriccedilatildeo injustificadarsquo ao
direito de propriedade
O acoacuterdatildeo da Grand Chamber de 19 de junho de 2006 veio confirmar
esta decisatildeo Mas acrescentou que a violaccedilatildeo do direito de propriedade no caso
em questatildeo natildeo resultava exclusivamente da questatildeo do montante da renda
pelo contraacuterio consistia no efeito combinado de normas de determinaccedilatildeo da
renda e de vaacuterias restriccedilotildees quanto aos direitos dos senhorios a respeito da
extinccedilatildeo dos arrendamentos dos encargos financeiros que lhes foram
impostos e da ausecircncia de meios legais para tornar possiacutevel compensar ou
mitigar os prejuiacutezos em que incorriam com a conservaccedilatildeo da propriedade ou
de terem obras subsidiadas pelo Estado em casos justificados493
493 O Tribunal considerou que a situaccedilatildeo polaca natildeo era semelhante a outros casos julgados
anteriormente Em Mellacher and Others a legislaccedilatildeo domeacutestica restringia a renda cobraacutevel
mas nunca abaixo dos niacuteveis de conservaccedilatildeo da propriedade e os senhorios podiam aumentar
a renda de modo a cobrir as necessaacuterias despesas de conservaccedilatildeo Esta norma permitiu aos
senhorios austriacuteacos manter a sua propriedade em boa condiccedilatildeo ao passo que o regime polaco
natildeo o permitiu nem fornecia nenhum outro procedimento para obter contribuiccedilotildees para a
conservaccedilatildeo ou subsiacutedios estaduais causando inevitaacutevel deterioraccedilotildees na propriedade por
223
O Tribunal sublinhou que se se era verdade que o Estado polaco
herdou do regime comunista uma escassez grave de alojamentos disponiacuteveis
com rendas comportaacuteveis sempre teria de equilibrar as questotildees
particularmente difiacuteceis e socialmente sensiacuteveis com a resoluccedilatildeo do conflito
entre inquilinos e senhorios Cabia-lhe assegurar a protecccedilatildeo dos direitos de
propriedade dos senhorios e o respeito pelos direitos sociais dos inquilinos
frequentemente vulneraacuteveis o que requeria uma distribuiccedilatildeo justa dos
encargos sociais e financeiros envolvidos na transformaccedilatildeo e reforma da
poliacutetica de habitaccedilatildeo Este encargo contudo natildeo poderia ser imputado apenas
a um grupo social especiacutefico independentemente dos interesses especiacuteficos do
outro grupo ou da comunidade como um todo
II A CONSOLIDACcedilAtildeO OS CASOS CONTRA MALTA
Ao abrigo da Lei da Habitaccedilatildeo as casas eram requisitadas pelo
Governo de Malta atraveacutes do Director da Habitaccedilatildeo Social Passado algum
tempo era dado conhecimento aos proprietaacuterios de que a casa teria sido dada
de arrendamento a um inquilino Por exemplo no caso Ghigo c Malta494 a
detenccedilatildeo prolongou-se por vinte e dois anos no caso Fleri Soler e Camilleri
c Malta495 por sessenta e cinco anos e no caso Edwards c Malta496 por mais
de trinta 30 anos Vejamos os dois primeiros casos497
No Acoacuterdatildeo Ghigo v Malta quanto ao objectivo da interferecircncia o
TEDH considerou que as medidas de requisiccedilatildeo e de controlo de rendas
visavam assegurar uma distribuiccedilatildeo justa e um igualmente justo uso de
recursos habitacionais num paiacutes em que o solo disponiacutevel para habitaccedilatildeo natildeo
chegava para responder agrave procura498
falta dos adequados investimento e modernizaccedilatildeo Em Spadea and Scalabrino embora o
Estado tivesse suspendido temporariamente os despejos de apartamentos privados os
senhorios mantinham o direito de extinguir os arrendamentos No caso em anaacutelise pelo
contraacuterio o legislador polaco condicionou a extinccedilatildeo dos arrendamentos limitando
seriamente os direitos dos senhorios a esse respeito 494 Acoacuterdatildeo Ghigo v Malta (Queixa nordm 3112205) de 26 de setembro de 2006 495 Acoacuterdatildeo Fleri Soler e Camilleri c Malta (Queixa nordm 3534905) de 26 de setembro de
2006 496 Edwards c Malta (Queixa nordm 1764704) de 24 de outubro de 2006 497 Sem esquecer outros Acoacuterdatildeos como Amato Gauci c Malta (Queixa nordm 4704506) de 15
de setembro de 2009 Gera de Petri Testaferrata Bonici Ghaxaq c Malta (Queixa nordm
2677107) de 5 de abril de 2011 (90 anos) Saliba et al c Malta (queixa nordm 2028710) de 22
de novembro de 2011 498 sect 58
224
Quanto agrave proporcionalidade o Tribunal reiterou que ao apreciar o
respeito pelo Artigo 1ordm era necessaacuterio um exame global dos vaacuterios interesses
em causa considerando que a Convenccedilatildeo visa salvaguardar a efectividade dos
direitos Esse exame quando se trata da legislaccedilatildeo relativa agrave habitaccedilatildeo
envolve natildeo apenas as condiccedilotildees de reduccedilatildeo da renda recebida pelos
senhorios e a extensatildeo da interferecircncia estatal na liberdade contratual e nas
condiccedilotildees do mercado de arrendamento mas tambeacutem a existecircncia de garantias
procedimentais de que o sistema e o seu impacto nos direitos do senhorio natildeo
satildeo arbitraacuterios nem imprevisiacuteveis A incerteza - legislativa administrativa ou
resultante das praacuteticas das autoridades - eacute um factor a ter em conta na avaliaccedilatildeo
da conduta do estado499
No caso concreto a casa havia sido requisitada sem aviso preacutevio pelo
Governo em 31 de marccedilo de 1984 e soacute quase cinco meses depois em 23 de
agosto do mesmo ano o requerente foi informado de que a casa tinha sido
atribuiacuteda a um determinado inquilino Os senhorios natildeo tinham nenhuma
influecircncia na escolha do inquilino ou nos elementos essenciais do
arrendamento O senhorio tambeacutem natildeo podia impedir o arrendamento com
base na necessidade da casa para habitaccedilatildeo proacutepria Por uacuteltimo o requerente
nunca recebeu nenhuma compensaccedilatildeo pela perda de controlo sobre a sua
propriedade O valor da renda estabelecido pelo Gabinete de Avaliaccedilatildeo de
Imoacuteveis era de MTL 23 anuais (mais ou menos 55 Euros) o que
reconhecidamente natildeo reflectia o valor de mercado dos imoacuteveis afectados O
Tribunal considerou que a restriccedilatildeo ao proprietaacuterio que apenas lhe permitia
receber menos de 5 euros por mecircs pela sua propriedade natildeo salvaguardava o
seu direito a fruir a sua propriedade
O Tribunal reiterou que nas esferas como a poliacutetica de habitaccedilatildeo os
Estados necessariamente gozam de uma ampla margem de apreciaccedilatildeo natildeo
apenas quanto ao reconhecimento da existecircncia de um problema mas tambeacutem
quanto agrave escolha de medidas e da sua forma de implementaccedilatildeo O controlo do
Estado sobre as rendas eacute uma dessas medidas e da sua aplicaccedilatildeo normalmente
resulta reduccedilotildees significativas no montante da renda a receber Mesmo em
situaccedilotildees onde o controlo de renda pelo legislador envolve consequecircncias tatildeo
vastas para numerosos proprietaacuterios e tem consequecircncias econoacutemicas e sociais
para o paiacutes como um todo as autoridades dispotildeem de uma discricionariedade
consideraacutevel natildeo apenas na escolha da forma e na decisatildeo da extensatildeo do
controlo sobre o uso da propriedade mas tambeacutem em decidir sobre o momento
apropriado para a execuccedilatildeo das leis necessaacuterias Todavia a discricionariedade
do estado ainda que consideraacutevel natildeo eacute ilimitada e o seu exerciacutecio natildeo pode
levar a consequecircncias contra os paracircmetros da Convenccedilatildeo
499 Cfr sect 62
225
O Tribunal considerou que considerando o extremamente baixo valor
da renda fixada o facto de o imoacutevel do requerente ter sido requisitado por
mais de vinte e dois anos o facto de o proprietaacuterio natildeo participar na escolha
do arrendataacuterio nem poder influenciar os termos do contrato fora imposto
um oacutenus excessivo e desproporcionado ao requerente que havia suportado os
custos sociais e financeiros do alojamento do inquilino e nessa medida
declarou uma violaccedilatildeo do Artigo 1 do Protocolo1
No caso Fleri Soler e Camilleri c Malta500 o imoacutevel dos requerentes
foi requisitado a 4 de setembro de 1941 e afectado primeiro ao Departamento
de Educaccedilatildeo e posteriormente ao Ministeacuterio da Induacutestria e Agricultura O
edifiacutecio foi usado como reparticcedilatildeo puacuteblica durante 65 anos A renda devida
era de 89 Libras Maltesas (aproximadamente 213 Euros) anuais tendo sido
aumentada em 1989 para 34053 libras maltesas (aproximadamente 817
Euros) por ano
O TEDH considerou que a interferecircncia era legal e cumpria um
objectivo de interesse geral jaacute que os imoacuteveis foram afectados a entidades
puacuteblicas que prosseguiam interesses da comunidade como um todo O
Tribunal considerou todavia que as rendas eram extremamente baixas e natildeo
poderiam compensar o uso de um imoacutevel grande o suficiente para alojar
reparticcedilotildees puacuteblicas A ponderaccedilatildeo das consequecircncias da limitaccedilatildeo das rendas
sempre seria diferente pelo facto de o imoacutevel visar a instalaccedilatildeo de reparticcedilotildees
puacuteblicas e natildeo assegurar o bem-estar social dos inquilinos o que impotildee um
escrutiacutenio mais apertado por parte do TEDH
Considerando o baixo montante da renda paga o proveito miacutenimo que
o proprietaacuterio poderia tirar do imoacutevel o facto de a propriedade ter sido
ocupada por mais de sessenta e cinco anos a restriccedilatildeo na escolha do
arrendataacuterio e nas estipulaccedilatildeo das condiccedilotildees do contrato a inexistecircncia de
garantias procedimentais o Tribunal declarou a existecircncia de um encargo
desproporcionado e excessivo sobre o requerente que natildeo respeitava o
equiliacutebrio entre o interesse geral da comunidade e a protecccedilatildeo dos seus direitos
fundamentais
Em face da jurisprudecircncia analisada que reforccedila a posiccedilatildeo do senhorio
no acircmbito do contrato de arrendamento cabe indagar do respeito pelos
princiacutepios gerais sobre contratos duradouros essenciais agrave existecircncia das
pessoas Eacute o que veremos no proacuteximo ponto
500 Acoacuterdatildeo Fleri Soler e Camilleri c Malta (Queixa nordm 3534905) de 26 de setembro de
2006
226
5 OS PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE CONTRATOS DURADOUROS501
O arrendamento eacute um contrato duradouro502 essencial agrave existecircncia da
pessoa503 porquanto tem por objecto proporcionar ao indiviacuteduo (na sua
concreta realidade material e moral) um bem alojamento necessaacuterio para a
sua auto-realizaccedilatildeo e participaccedilatildeo na vida social O objecto dos contratos
duradouros satildeo as circunstacircncias da vida real sendo que o papel das normas
que regulam estes contratos consistiraacute sempre em enquadrar as relaccedilotildees de
poder resultantes destes contratos em termos de desenvolvimento humano de
modo a que seja a contiacutenua cooperaccedilatildeo mais do que a formaccedilatildeo do contrato
a estar no centro da relaccedilatildeo contratual
O fim do contrato impede que aquele que coloca agrave disposiccedilatildeo de
outrem bens necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo de necessidades materiais aja de modo a
pocircr em perigo a sua fruiccedilatildeo ou o proacuteprio significado social da relaccedilatildeo A
dimensatildeo temporal do contrato de arrendamento e a protecccedilatildeo da confianccedila
das partes na continuidade da relaccedilatildeo contratual requer que a natildeo ser que
exista uma necessidade de garantir um miacutenimo de liberdade de acccedilatildeo e
decisatildeo a cessatildeo antecipada de um contrato por acto unilateral natildeo deve ser
permitida A dimensatildeo colectiva destes contratos requer da sua parte a
aplicaccedilatildeo do sistema colectivo de valores a todas as fases da realccedilatildeo contratual
desde o acesso aos bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua
modificaccedilatildeo e extinccedilatildeo Se por um lado o acesso mediante o contrato aos
bens e serviccedilos essenciais agrave existecircncia da pessoa eacute assegurado por uma poliacutetica
de natildeo discriminaccedilatildeo destacamos por outro lado que a prestaccedilatildeo e a
contraprestaccedilatildeo natildeo devem ser gravemente desproporcionadas o preccedilo deve
ser acessiacutevel natildeo discriminatoacuterio e proporcionado aos custos
Aleacutem de aspectos procedimentais relativos agrave comunicaccedilatildeo entre as
partes e da consagraccedilatildeo de direitos agrave informaccedilatildeo transparecircncia e
501 Dispensamo-nos neste momento de aprofundar a temaacutetica dos princiacutepios gerais sobre
contratos duradouros necessaacuterios agrave existecircncia humana e agrave Declaraccedilatildeo EuSoCo por jaacute ter sido
tratado noutra sede 502 Vide LUCA NOGLER e UDO REIFER ldquoIntroductionrdquo em Life Time Contracts Social Long-
term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law Eleven International
Publishing 2014 p 1 e ss sobre as diferentes dimensotildees do tempo e correspondente
importacircncia nas relaccedilotildees contratuais 503 Sobre a eacutetica do contrato nesta sede vide ANDREA NICOLUSSI ldquoEtica del contrato e
lsquoContratti ldquodi duratardquo per lrsquoesistenza della personarsquordquo e HELENA KLINGER ldquoLebenszeitvertrage
ndash Natur und Ethikrdquo em LUCA NOGLER e UDO REIFER Life Time Contracts Social Long-term
Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law cit pp 123 e ss e 189 e ss
respectivamente
227
confidencialidade os princiacutepios versam ainda sobre os miacutenimos de
participaccedilatildeo quer na vida econoacutemica (os contratos que atingirem os
rendimentos do consumidor por lhe tirarem o acesso a tal rendimento
entregando-o ao fornecedor de bens ou prestador de serviccedilos devem
proporcionar agrave pessoa humana o miacutenimo necessaacuterio para a sua subsistecircncia)
quer na vida social (no momento da conformaccedilatildeo e no momento da
interpretaccedilatildeo do contrato deve considerar-se os riscos da falta de emprego de
falta de habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento relacionando-os com as suas
causas soacutecio-econoacutemicas)
Face a este quadro necessariamente breve a jurisprudecircncia do TEDH
pode surgir como contraditoacuteria com estes princiacutepios porquanto a viragem
recente que descrevemos se deu no sentido de tutelar a posiccedilatildeo do senhorio
proprietaacuterio que em virtude de medidas puacuteblicas viram a sua posiccedilatildeo
individual intoleravelmente afectada em funccedilatildeo do interesse social do
contrato Em nossa opiniatildeo contudo tal contradiccedilatildeo eacute meramente aparente
Na verdade a jurisprudecircncia do TEDH ndash partindo do pressuposto de que
habitaccedilatildeo eacute essencial para a auto-realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e para a sua
participaccedilatildeo social em vaacuterias fases da vida e que o inquilino eacute normalmente
uma parte vulneraacutevel - estaacute alinhada com os princiacutepios gerais sobre contratos
duradouros Vejamos
O princiacutepio da remuneraccedilatildeo exige em primeiro lugar que as
obrigaccedilotildees muacutetuas dos contratos duradouros natildeo devam ser
desproporcionadas Os preccedilos devem ser claros e natildeo discriminatoacuterios e os
encargos devem ser comportaacuteveis e alinhados com os custos a suportar com o
bem Ora a jurisprudecircncia recente do TEDH condenou os Estados por
imporem legislativamente limites de renda extraordinariamente baixos que
natildeo permitiam aos seus proprietaacuterios suportarem os custos com a manutenccedilatildeo
e a conservaccedilatildeo dos imoacuteveis504
O princiacutepio da adaptaccedilatildeo sugere que se as circunstacircncias em que um
contrato duradouro foi celebrado se alterarem significativamente ou se as
circunstacircncias materiais em que as partes fundaram a sua vontade variaram de
tal maneira que a natureza social do contrato eacute posta em causa e se as partes
natildeo teriam contratado agora ou natildeo teriam contratado em termos diferentes se
tivessem previsto a mudanccedila a adaptaccedilatildeo do contrato pode ser necessaacuteria se
tendo em conta as circunstacircncias do caso concreto e em particular a afectaccedilatildeo
do risco natildeo se pode razoavelmente esperar de uma das partes que continue a
cumprir o contrato nos mesmos termos Igualmente na jurisprudecircncia do
TEDH encontramos o sancionamento de medidas estatais que impedem esta
adaptaccedilatildeo natildeo soacute quanto agrave actualizaccedilatildeo das rendas mas quanto agrave
504 Relembremos os casos contra a Poloacutenia e contra Malta
228
impossibilidade de obter a restituiccedilatildeo do imoacutevel ainda que houvesse
necessidade dele para habitaccedilatildeo proacutepria ou que entretanto tivesse mudado o
contexto soacutecio-poliacutetico do paiacutes505
Analisemos ainda um outro aspecto agora relativo agrave extinccedilatildeo do
contrato a cessaccedilatildeo antecipada deve ser transparente controlaacutevel e
socialmente responsaacutevel Tambeacutem aqui o TEDH veio declarar como contraacuterias
agrave CEDH medidas que impediam a cessaccedilatildeo do contrato de arrendamento quer
criando dificuldades procedimentais (Itaacutelia e Malta) quer desconhecendo as
necessidades habitacionais do proprietaacuterio do imoacutevel (Itaacutelia Poloacutenia e Malta)
Na verdade o fim social dos contratos duradouros necessaacuterios agrave
existecircncia da pessoa exigem um apurado equiliacutebrio entre as prestaccedilotildees das
partes numa valoraccedilatildeo especiacutefica de proporcionalidade A ideia de
proporcionalidade lato sensu representa hoje uma importante limitaccedilatildeo ao
exerciacutecio do poder puacuteblico servindo a garantia dos direitos e liberdades
individuais506 Consagrada no artigo 18ordm nordm 2 da CRP no que agraves restriccedilotildees a
direitos liberdades e garantias diz respeito a exigecircncia de proporcionalidade
enquanto princiacutepio geral de limitaccedilatildeo do poder puacuteblico pode ancorar-se no
princiacutepio geral do Estado de Direito e impotildee os limites resultantes da avaliaccedilatildeo
da relaccedilatildeo entre os fins e as medidas puacuteblicas devendo o Estado (legislador
505 Em especial nos casos contra a Itaacutelia e a Poloacutenia 506 Na jurisprudecircncia o Tribunal Constitucional tem reconhecido e aplicado em vaacuterias
decisotildees o princiacutepio da proporcionalidade Veja-se o Acoacuterdatildeo TC nordm 63493 [Relator LUIacuteS
NUNES DE ALMEIDA] (inconstitucionalidade do artigo 132ordm do Coacutedigo Penal e Disciplinar da
Marinha Mercante aprovado pelo Decreto-Lei nordm 33252 de 20 de novembro de 1943 na
parte em que estabelece a puniccedilatildeo como desertor daquele que sendo tripulante de um navio e
sem motivo justificado o deixe partir para o mar sem embarcar quando tal tripulante natildeo
desempenhe funccedilotildees directamente relacionadas com a manutenccedilatildeo seguranccedila e equipagem
do mesmo navio) de 4 de novembro o Acoacuterdatildeo TC nordm 27498 [Relator ARMINDO RIBEIRO
MENDES] de 9 de marccedilo (natildeo inconstitucionalidade de norma que pune o natildeo acatamento de
ordem de demoliccedilatildeo) o Acoacuterdatildeo TC nordm 45195 [Relator GUILHERME DA FONSECA] de 6 de
julho (inconstitucionalidade de norma que estabelece a impenhorabilidade total de bens
anteriormente penhorados pelas reparticcedilotildees de financcedilas em execuccedilotildees fiscais) Acoacuterdatildeo TC
nordm 75895 [Relator LUIacuteS NUNES DE ALMEIDA] de 20 de dezembro (inconstitucionalidade de
norma que impede a participaccedilatildeo pessoal na assembleia geral dos bancos e em certas
condiccedilotildees de accionistas que natildeo disponham de 1300 da soma dos votos possiacuteveis) Acoacuterdatildeo
TC nordm 118296 [Relator SOUSA BRITO] de 20 de novembro (inconstitucionalidade de normas
sobre custas nos tribunais tributaacuterios) Acoacuterdatildeos TC nordm 17600 [Relator BRAVO SERRA] de
22 de marccedilo e Acoacuterdatildeo TC nordm 20200 [Relator PAULO MOTA PINTO] de 4 de abril (sobre a
perda dos instrumentos do crime)o Acoacuterdatildeo TC nordm 48400 [Relator PAULO MOTA PINTO]
de 22 de novembro (indeferimento taacutecito do pedido de legalizaccedilatildeo de obras)
229
ou administrador) adequar a sua acccedilatildeo aos fins pretendidos natildeo tomando
medidas desnecessaacuterias ou excessivamente restritivas
Satildeo subprinciacutepios constitutivos do princiacutepio da proporcionalidade o
princiacutepio da conformidade ou adequaccedilatildeo de meios o princiacutepio da
exigibilidade ou da necessidade (Erforderlichkeit) e o princiacutepio da
proporcionalidade em sentido restrito (Verhaumlltnismaumlssigkeit) entendido como
princiacutepio da justa medida507 O primeiro destes princiacutepios requer que a medida
adoptada para a realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico a proteger deva ser apropriada
agrave prossecuccedilatildeo do fim ou fins a ele subjacentes508 A exigecircncia de conformaccedilatildeo
pressupotildee que o acto do poder puacuteblico seja apto para e conforme aos fins
justificativos da sua adopccedilatildeo (Zielkonformitaumlt Zwecktauglichkeit) Pressuposta
a legitimidade do fim consignado na norma a idoneidade traduz-se na
existecircncia de um meio adequado agrave sua prossecuccedilatildeo Perante um bem
juridicamente protegido a intervenccedilatildeo ou a providecircncia a adoptar pelo oacutergatildeo
competente teria de estar em correspondecircncia com ele A liberdade de
conformaccedilatildeo do legislador recorde-se eacute muito ampla neste campo e deve ser
tomada em consideraccedilatildeo ao estabelecer a relaccedilatildeo de adequaccedilatildeo meio-fim Por
uacuteltimo o princiacutepio da exigibilidade ou da necessidade impotildee que o cidadatildeo
cujo direito esteja a ser restringido tenha direito agrave menor desvantagem
possiacutevel Destaca-se como elemento operativo a ideia de exigibilidade
material pois o meio deve ser o mais poupado possiacutevel quanto agrave limitaccedilatildeo dos
direitos fundamentais A necessidade do meio significa que eacute aquele entre
todos os que poderiam ser escolhidos in abstracto que melhor satisfaz em
concreto com menos custos a realizaccedilatildeo do fim e assim eacute essa providecircncia
essa decisatildeo que deve ser tomada Como decidiu o Tribunal Constitucional509
ldquoessas medidas restritivas tecircm de ser exigidas para alcanccedilar os fins em vista
por o legislador natildeo dispor de outros meios menos restritivos para alcanccedilar
o mesmo desideratordquo
Os tribunais nacionais e referimo-nos especificamente aos tribunais
constitucionais natildeo podem ignorar estes princiacutepios O cerne do debate ao niacutevel
constitucional estaacute na relaccedilatildeo a estabelecer entre o direito agrave habitaccedilatildeo e o
direito de propriedade a que subjaz uma opccedilatildeo legislativa de raiz a quem cabe
507 SEGUIMOS GOMES CANOTILHO Direito constitucional e teoria da constituiccedilatildeo 7ordf ediccedilatildeo
Almedina Coimbra 2003 paacuteg 270 Em formulaccedilatildeo semelhante para JORGE MIRANDA
Manual de Direito Constitucional IV 5ordf ediccedilatildeo Coimbra Editora 2012 paacuteg 308 o princiacutepio
da proporcionalidade decompotildee-se nos trecircs subprinciacutepios da idoneidade ou adequaccedilatildeo da
necessidade e da racionalidade ou proporcionalidade stricto sensu 508 Cfr por todos o Acoacuterdatildeo TC nordm 118296 [Relator SOUSA BRITO] de 20 de novembro
(inconstitucionalidade de normas sobre custas nos tribunais tributaacuterios) 509 Acoacuterdatildeo TC nordm 63493 [Relator LUIacuteS NUNES DE ALMEIDA] de 4 de novembro
230
suportar os custos de uma poliacutetica de habitaccedilatildeo baseada no arrendamento510
Como JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS511 acentuam o direito agrave habitaccedilatildeo
tem fundamentalmente como sujeito passivo o Estado em sentido amplo e
natildeo ao menos em princiacutepio os proprietaacuterios ou senhorios O direito agrave
habitaccedilatildeo ldquonatildeo se move agrave partida no ciacuterculo das relaccedilotildees entre particulares
antes tem como alvo o Estado no sentido de que cabe a este a
responsabilidade poliacutetica de planear adoptar e executar providecircncias
tendentes a criar as condiccedilotildees necessaacuterias para todos poderem ter habitaccedilatildeo
condignardquo Por isso os destinataacuterios do direito a habitaccedilatildeo satildeo o Estado as
regiotildees autoacutenomas e as autarquias locais e natildeo ao menos em princiacutepios os
proprietaacuterios de habitaccedilotildees ou os senhorios Tambeacutem JOSE CASALTA
NABAIS512 nos ensina que os deveres de direitos fundamentais recaem
predominantemente ou exclusivamente sobre o Estado consoante se trate de
direitos liberdades ou garantias ou de deveres de direitos sociais
Relativamente a estes uacuteltimos os deveres do estado satildeo o dever de
concretizaccedilatildeo legal dos direitos sociais o dever de natildeo retroceder no
respeitante agravequele niacutevel de concretizaccedilatildeo legal jaacute sedimentado na consciecircncia
comunitaacuteria e o dever de prestar nos termos da concretizaccedilatildeo constitucional
(se e na medida em que a houver) e da concretizaccedilatildeo legal respectiva Na
opiniatildeo do autor os particulares natildeo satildeo sujeitos passivos de direitos sociais
natildeo podendo a lei impor-lhes a realizaccedilatildeo dos mesmos como se
desencadeassem uma Drittwirkung ldquoPor isso quando a lei obriga os
particulares agrave realizaccedilatildeo de prestaccedilotildees sociais como de algum modo sucede
entre noacutes com as tradicionais leis do arrendamento urbano para a habitaccedilatildeo
por forccedila da conjugaccedilatildeo do congelamento das rendas com a inflaccedilatildeo
verificada nas uacuteltimas deacutecadas ela estaacute a infringir a Constituiccedilatildeo eacute que a
realizaccedilatildeo do direito social agrave habitaccedilatildeo implica para o estado e natildeo para os
particulares a tiacutetulo de propriedade de arrendamento ou de qualquer outro
de uma habitaccedilatildeo para cada famiacutelia a custos adequadamente suportaacuteveis
pelos respectivos agregados familiares atendendo aos respectivos
rendimentos e encargos Numa outra perspectivaccedilatildeo isto quer dizer que os
direitos sociais numa sociedade que pretende manter-se aberta devem ser
realizados atraveacutes do estado fiscal (atraveacutes do sistema de impostos) e natildeo por
510 Sobre a histoacuterica permeabilidade da disciplina do arrendamento urbano a factores de
poliacutetica econoacutemico-social vide MARIA OLINDA GARCIA Arrendamento plural Quadro
normativo e natureza juriacutedica Coimbra Editora Coimbra 2009 pp 51 e ss 511 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada I Coimbra Editora
Coimbra 2005 anot ao artigo 65ordm paacutegs 669-670 III 512 JOSEacute CASALTA NABAIS O dever fundamental de pagar impostos Almedina Coimbra
1998 (3ordf reimpressatildeo de 2012) paacutegs 66-67 nota 140
231
via do estado dirigista como foi a soluccedilatildeo concretizada nas ceacutelebres leis do
inquilinatordquo
O Tribunal Constitucional portuguecircs que comeccedilou por apresentar uma
orientaccedilatildeo mais luacutecida veio posteriormente a sancionar decisotildees poliacuteticas que
oneravam o proprietaacuteriosenhorio fundamentando as suas decisotildees na
ldquohipoteca social que onera a propriedaderdquo Vejamos
I ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 10192 DE 17 DE MARCcedilO
ldquoOra no plano desta vertente do direito agrave habitaccedilatildeo natildeo pode
aceitar-se como constitucionalmente exigiacutevel que a realizaccedilatildeo
daquele direito esteja dependente de limitaccedilotildees intoleraacuteveis e
desproporcionadas de direitos de terceiros (que natildeo o Estado)
direitos esses porventura tambeacutem constitucionalmente consagrados
como sucede aliaacutes com o direito de propriedade privada elencado
no tiacutetulo constitucional correspondente aos direitos econoacutemicos
sociais e culturais
Escreveu-se a este propoacutesito no acoacuterdatildeo recorrido que laquoo facto
de a Constituiccedilatildeo reconhecer a todos o direito agrave habitaccedilatildeo natildeo implica
que os proprietaacuterios de casas tenham de entregaacute-las a quem as natildeo
tem e muito menos que o tenham de fazer para todo o sempre como
se os seus verdadeiros donos fossem os respectivos arrendataacuterios e
seus sucessores (hellip)rdquo
Na verdade natildeo existe qualquer exigecircncia constitucional
impondo agrave lei ordinaacuteria o dever de consagrar uma transmissatildeo
sucessiva e ilimitada da posiccedilatildeo juriacutedica de arrendataacuterio mortis causa
sendo manifesto que a norma do artigo 65ordm da Constituiccedilatildeo natildeo
obriga a semelhante entendimento mesmo quando se entenda que o
direito agrave habitaccedilatildeo deve prevalecer sobre o direito de uso e disposiccedilatildeo
da propriedade privada
A isto acresce que a soluccedilatildeo consagrada na norma sob
controveacutersia garante um quadro de transmissatildeo do arrendamento no
qual se contempla e protege suficientemente a dimensatildeo social mais
premente do direito agrave habitaccedilatildeo acautelando os interesses do cocircnjuge
sobrevivo e dos parentes ou afins na linha recta do de cujus os quais
aliaacutes beneficiam em certos casos do regime de rendas subsidiadas
instituiacutedo pela Lei nordm 4685
Haacute-de dizer-se que neste domiacutenio de particular sensibilidade
social uma dialeacutectica fundada nos interesses conflituantes que aqui
se colocam (os do inquilino e do direito agrave habitaccedilatildeo e os do senhorio
232
e do direito de uso e disposiccedilatildeo da propriedade privada) pode
conduzir a opccedilotildees de poliacutetica legislativa diversas daquela que hoje se
contecircm na norma do artigo 1111ordm do Coacutedigo Civil Simplesmente
deve reconhecer-se que a soluccedilatildeo vigente poderaacute sofrer contestaccedilatildeo
neste domiacutenio mas natildeo jaacute seguramente por viacutecio de violaccedilatildeo do artigo
65ordm da Constituiccedilatildeordquo
II ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 13192 DE 1 DE ABRIL
ldquoO direito agrave habitaccedilatildeo tem assim o Estado ndash e igualmente as
regiotildees autoacutenomas e os municiacutepios ndash como uacutenico sujeito passivo ndash e
nunca ao menos em princiacutepio os proprietaacuterios de habitaccedilotildees ou os
senhorios Aleacutem disso ele soacute surge depois de uma interpositio do
legislador destinada a concretizar o seu conteuacutedo o que significa que
o cidadatildeo soacute poderaacute exigir o seu cumprimento nas condiccedilotildees e nos
termos definidos pela lei Em suma o direito fundamental agrave
habitaccedilatildeo considerando a sua natureza natildeo eacute susceptiacutevel de conferir
por si mesmo ao arrendataacuterio um direito jurisdicionalmente
exercitaacutevel de impedir que o senhorio denuncie o contrato de
arrendamento quando necessitar do preacutedio para sua habitaccedilatildeo
Estas consideraccedilotildees satildeo suficientes para demonstrar que a
norma da primeira parte da aliacutenea a) do nordm 1 do artigo 1096ordm bem
como as dos artigos 1097ordm e 1098ordm todos do Coacutedigo Civil nunca
poderatildeo infringir o disposto no artigo 65ordm da Constituiccedilatildeordquo
III ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 15192 DE 8 DE ABRIL
A concretizaccedilatildeo do direito agrave habitaccedilatildeo - o facultar a cada
pessoa uma morada condigna - eacute pois uma tarefa cuja realizaccedilatildeo -
gradual como se disse - a Constituiccedilatildeo comete ao Estado
Mas fundando-se o direito agrave habitaccedilatildeo na dignidade da pessoa
humana (ou seja naquilo que a pessoa realmente eacute - um ser livre com
direito a viver dignamente) existe aiacute um miacutenimo que o Estado
sempre deve satisfazer E para isso pode ateacute se tal for necessaacuterio
impor restriccedilotildees aos direitos do proprietaacuterio privado Nesta medida
tambeacutem o direito agrave habitaccedilatildeo vincula os particulares chamados a
serem solidaacuterios com o seu semelhante (princiacutepio de solidariedade
social) vincula designadamente a propriedade privada que tem
uma funccedilatildeo social a cumprir
Eacute a esta luz que hatildeo-de ser avaliadas normas como aquelas que
como jaacute atraacutes se referiu subtraem o contrato de arrendamento para
habitaccedilatildeo agrave regra da liberdade contratual e o submetem agrave regra da
233
renovaccedilatildeo automaacutetica e obrigatoacuteria Nelas o legislador conhecendo
como conhece a falta de casas para habitaccedilatildeo sacrifica um direito do
senhorio a favor do direito do locataacuterio a dispor de uma casa para sua
habitaccedilatildeo De facto retira agravequele o direito que em princiacutepio lhe
assistiria de denunciar livremente o contrato de arrendamento
celebrado - direito este que estaacute compreendido seja no direito de
iniciativa econoacutemica privada (artigo 61ordm nordm 1 da Constituiccedilatildeo) seja
no direito de propriedade privada (artigo 62ordm nordm 1 da Constituiccedilatildeo)
A legislaccedilatildeo sobre arrendamento para habitaccedilatildeo eacute fortemente
vinculiacutestica sendo um domiacutenio onde a hipoteca social que recai sobre
a propriedade eacute talvez mais forte
IV ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 2632000 DE 3 DE MAIO
ldquoEm face desta parametrizaccedilatildeo ponderando que jaacute se concluiu
que o lsquonuacutecleorsquo ou dimensatildeo essencial do direito de propriedade do
senhorio natildeo eacute posto em crise pelos normativos sub specie que aos
interesses dos cidadatildeos em verem garantido o seu direito agrave habitaccedilatildeo
natildeo eacute alheia a vinculaccedilatildeo dos particulares chamados com o seu
direito de propriedade a cumprir a funccedilatildeo social decorrente daquele
direito agrave habitaccedilatildeo a par com as incumbecircncias que o Estado deve
prosseguir e que a escassez do mercado habitacional reclama a
adopccedilatildeo de medidas tendentes a conseguir a preservaccedilatildeo do direito
de habitaccedilatildeo como um valor indubitavelmente protegido pela Lei
Fundamental igualmente se haveraacute de concluir que as normas em
apreccedilo ao conferir caracteriacutesticas vinculiacutesticas ao contrato de
arrendamento para habitaccedilatildeo designadamente no que se reporta agrave sua
livre revogaccedilatildeo por banda do senhorio e agraves limitaccedilotildees quanto agrave
actualizaccedilatildeo da contrapartida pelo desfrute do arrendado se natildeo
configuram como ultrapassando um modo adequado e proporcionado
de resoluccedilatildeo do conflito que agrave partida se postaria entre um e outro
daqueles direitos
E justamente por isso natildeo violam elas designadamente os
artigos 62ordm 13ordm e 18ordm da Lei Fundamental
Natildeo cabe a este Tribunal indicar se de entre as vaacuterias formas
virtualmente possiacuteveis de hipotisar e tendentes a tal resoluccedilatildeo outro
deveria ser o trilho a seguir pelo legislador Cabe-lhe isso sim aferir
se a soluccedilatildeo normativa adoptada na oacuteptica do quadro unitaacuterio da
Constituiccedilatildeo e da prossecuccedilatildeo do desiderato da menor compressatildeo
dos direitos ou valores em jogo eacute adequada e proporcionada questatildeo
agrave qual como se viu jaacute se deu resposta afirmativa
234
Natildeo satildeo pois inconstitucionais as normas colocadas agrave
sindicacircncia deste Tribunal no presente recurso
V ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 4202000 DE 11 DE OUTUBRO
Como atraacutes se referiu ndash apenas com a excepccedilatildeo dos contratos
de duraccedilatildeo limitada - o legislador subtraiu o contrato de
arrendamento para habitaccedilatildeo agrave regra da liberdade contratual e
submeteu-o agrave da renovaccedilatildeo obrigatoacuteria e automaacutetica Fecirc-lo porque
conhecendo como conhece a falta de casas para habitaccedilatildeo decidiu
sacrificar um direito do senhorio ndash o direito de denunciar livremente
o contrato que se compreende seja no direito de iniciativa econoacutemica
privada seja no direito de propriedade - a favor do direito agrave habitaccedilatildeo
do locataacuterio ou seja do direito que este tem de dispor de uma casa
para nela habitar
Eacute que o direito agrave habitaccedilatildeo embora seja um direito cuja
realizaccedilatildeo ndash uma realizaccedilatildeo gradual pois eacute um direito colocado sob
reserva do possiacutevel ndash constitui essencialmente tarefa do Estado (cf
artigo 65ordm nordm 2 da Constituiccedilatildeo) funda-se na dignidade da pessoa
humana E por isso como haacute um miacutenimo incomprimiacutevel desse
direito cuja concretizaccedilatildeo o Estado deve assegurar o legislador com
esse objectivo impotildee restriccedilotildees ao proprietaacuterio privado que desse
modo eacute chamado a ser solidaacuterio com o seu semelhante em nome
desde logo da funccedilatildeo social da propriedade sobre a qual recai uma
verdadeira hipoteca social a qual numa certa visatildeo das coisas se
funda no destino universal dos bens
VI ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 1962010
Tem sido entendido que os preceitos que desde o princiacutepio do
seacuteculo XX estabelecem as regras do arrendamento de preacutedios
urbanos vecircm consagrando um regime de severas limitaccedilotildees agrave
liberdade contratual impondo importantes restriccedilotildees e viacutenculos agrave
autonomia da vontade privada de modo a assegurar uma poliacutetica de
justiccedila social Neste domiacutenio as partes natildeo satildeo encaradas pela lei
como contraentes mas enquanto membros de uma determinado
grupo social (inquilinos e senhorios) cujos interesses pela sua
relevacircncia na dinacircmica da sociedade importa reger em abstracto
independentemente do acto que deu origem agrave situaccedilatildeo em concreto
Eacute este caraacutecter puacuteblico e de forte incidecircncia poliacutetico-social da
legislaccedilatildeo sobre o contrato de arrendamento que exige que tambeacutem
ele seja encarado ao lado de institutos onde a vontade das partes cede
235
perante os interesses comunitaacuterios sendo por isso a lei nova de
aplicaccedilatildeo imediata aos contratos preacute-existentes
6 CONCLUSAtildeO
Seria desejaacutevel que o Tribunal Constitucional numa perspectiva
necessariamente dialoacutegica repensasse a sua metodologia decisoacuteria agrave luz dos
desafios lanccedilados pela recente jurisprudecircncia do Tribunal Europeu Mais do
que encarar a tutela do inquilino como um encargo do proprietaacuteriosenhorio
configurada esta como um limite inerente agrave funccedilatildeo social da propriedade
sugere-se uma metoacutedica centrada na valorizaccedilatildeo das duas posiccedilotildees em
confronto na situaccedilatildeo concreta a do inquilino (quer se enquadre a sua
pretensatildeo no acircmbito do direito social agrave habitaccedilatildeo quer se qualifique a sua
posiccedilatildeo como ldquopropriedaderdquo [property] em termos de tutela internacional) e
a do senhorio (no acircmbito da permissatildeo normativa que lhe confere o seu direito
real) A soluccedilatildeo da antinomia pragmaacutetica entre os direitos do senhorio e do
inquilino513 tem de ser pensada atraveacutes de um processo ponderativo de
concordacircncia praacutetica em que a cada um dos direitos seja reconhecido o seu
espaccedilo proacuteprio de operatividade segundo o princiacutepio da proporcionalidade
enquanto princiacutepio juriacutedico fundamental objectivamente conformador de toda
a actividade do Estado incluindo a actividade judicial E sempre note-se no
respeito pela reparticcedilatildeo de competecircncias constitucionalmente estabelecida
Seraacute assim ainda que aparentemente repetimos soacute aparentemente o contrato
de arrendamento se torne menos social
513 Que ainda vai deixando vestiacutegios no nosso ordenamento sobretudo nos regimes
transitoacuterios Para uma anaacutelise geral vide MARIA OLINDA GARCIA Arrendamento Urbano
Anotado 3ordf ediccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 2014
236
237
Breves reflexotildees sobre o exerciacutecio (extrajudicial) do
direito de resoluccedilatildeo do contrato bilateral
sinalagmaacutetico em particular sobre as exceccedilotildees ao
ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo
O caso particular das relaccedilotildees contratuais duradouras
Maria Joatildeo Sarmento Pestana de Vasconcelos
INTRODUCcedilAtildeO
Nas uacuteltimas deacutecadas temos vindo a assistir a uma importacircncia
crescente das relaccedilotildees contratuais duradouras e complexas assentes numa
relaccedilatildeo de confianccedila reciacuteproca e de colaboraccedilatildeo muacutetua entre as partes nas
quais as qualidades pessoais dos contratantes e porventura tambeacutem a sua
solidez financeira se afiguram essenciais514
Natildeo obstante as vaacuterias legislaccedilotildees nacionais e os vaacuterios diplomas
normativos de fonte comunitaacuteria que constituem o alicerce do denominado
ldquoDireito Europeu dos Contratosrdquo continuam a assentar no paradigma do
contrato de compra e venda ndash contrato de execuccedilatildeo instantacircnea por excelecircncia
- consagrando assim uma regulamentaccedilatildeo que nem sempre reflete as
peculiaridades das relaccedilotildees contratuais duradouras Refira-se a tiacutetulo de
exemplo a Diretiva 199944CE sobre a venda de bens de consumo e das
garantias a ela relativas bem como o a opccedilatildeo seguida pelo legislador alematildeo
que aproveitou a necessidade de transposiccedilatildeo do referido diploma comunitaacuterio
para reformar o Coacutedigo Civil estendendo o regime nele consagrado para a
venda de bens de consumo a todo o direito da compra e venda e ainda ao
regime geral das perturbaccedilotildees da prestaccedilatildeo Aliaacutes uma das criacuteticas que tem
sido apontada agrave reforma do BGB de 20012002515 eacute justamente o facto de o
Assistente da Escola de Direito da Universidade do Minho 514 Cfr JOAtildeO BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo in
Estudos em Homenagem ao Prof J J Teixeira Ribeiro pp 343 a 411 p 356 515 Cfr STEFAN GRUNDMANN ldquoRegulating Breach of Contract ndash The Right to Reject
Performance by the Party in Breachrdquo in ERCL 2207 pp 121 a 149 O Autor critica o facto
de o legislador alematildeo natildeo ter aproveitado a Reforma de 20012002 para tomar em
238
legislador alematildeo ter tomado como paradigma de todo o direito contratual o
contrato de compra e venda
A nossa intervenccedilatildeo neste Coloacutequio subordinado ao tema ldquoLife Time
Contractsrdquo pretende ser uma breve reflexatildeo sobre o exerciacutecio extrajudicial do
direito de resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico em particular sobre
as exceccedilotildees ao chamado ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo no acircmbito das
relaccedilotildees contratuais duradouras
Numa primeira fase procuraremos responder agrave seguinte questatildeo
sendo o cumprimento ainda possiacutevel em que circunstacircncias poderaacute o credor
exercer imediatamente o direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato bilateral
sinalagmaacutetico sem ter de dar ao devedor inadimplente uma segunda
oportunidade para cumprir Posteriormente procuraremos refletir sobre esta
questatildeo no acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras e complexas a fim de
averiguar em que medida eacute que a ponderaccedilatildeo de interesses subjacente ao
referido ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo se adapta agraves peculiaridades destas
relaccedilotildees
1 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo COMO REQUISITO DO
VAacuteLIDO EXERCIacuteCIO DO DIREITO POTESTATIVO DE RESOLUCcedilAtildeO
Na eventualidade de o devedor natildeo realizar a prestaccedilatildeo a que estaacute
adstrito sendo o cumprimento ainda possiacutevel o credor soacute poderaacute em
princiacutepio exercer o direito subjetivo propriamente dito ao cumprimento
atraveacutes do qual obteacutem o mesmo resultado praacutetico que teria conseguido atraveacutes
do cumprimento pontual e voluntaacuterio516 A razatildeo pela qual o credor natildeo pode
neste caso escolher se quer ficar vinculado ou desvincular-se do contrato
prende-se com o facto de o princiacutepio da prioridade do cumprimento visar
simultaneamente a proteccedilatildeo do credor e do devedor517
consideraccedilatildeo os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos e os contratos duradouros de uma forma
mais substancial como um segundo paradigma ao lado da compra e venda e dos contratos de
execuccedilatildeo instantacircnea 516 Neste sentido v JOAtildeO CALVAtildeO DA SILVA ldquoCumprimento e sanccedilatildeo pecuniaacuteria
compulsoacuteriardquo Almedina Coimbra 2002 p 141 Como observa o Autor atraveacutes do
cumprimento e execuccedilatildeo in natura ldquosatisfaz-se de forma especiacutefica e in natura o interesse
primaacuterio do credor proporcionando-lhe natildeo uma qualquer vantagem mas a vantagem bem
determinada e por si esperada finalidade e razatildeo de ser da proacutepria obrigaccedilatildeordquo 517 Neste sentido v NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo
Coimbra Editora Coimbra 2011 p 810 O Autor defende que por esta razatildeo a relaccedilatildeo entre
o cumprimento e a resoluccedilatildeo do contrato natildeo eacute uma relaccedilatildeo de alternatividade mas de
239
O ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo surge como uma soluccedilatildeo de
compromisso entre a proteccedilatildeo dos interesses de cada um dos sujeitos da
relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional Em termos gerais podemos afirmar que de
acordo com este princiacutepio o devedor que natildeo cumpre agrave primeira (no tempo
devido) deve ter a oportunidade de cumprir agrave segunda ndash dentro de um prazo
razoaacutevel depois do tempo devido518 Isto significa que sendo o cumprimento
ainda possiacutevel o credor soacute poderaacute desvincular-se do contrato exercendo o
direito potestativo de resoluccedilatildeo se decorrido o referido prazo o devedor natildeo
tiver realizado a prestaccedilatildeo devida
O ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo ainda que com contornos
diversos eacute comum a muitos ordenamentos juriacutedicos nacionais sistemas de
Direito uniforme ndash como eacute o caso da Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a
compra e venda internacional de mercadorias ndash tendo sido ainda
reaproveitado pelo legislador comunitaacuterio
11 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo NA DIRETIVA
199944CE DE 25 DE MAIO DE 1999
Na Diretiva 199944CE de 25 de maio de 1999 relativa a certos
aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas o
legislador comunitaacuterio regula o natildeo cumprimento da obrigaccedilatildeo de entrega de
bens em conformidade com o contrato individualizando no artigo 3ordm os
quatro direitos que o consumidor pode exercer e estabelecendo entre eles uma
hierarquia519 Embora caiba ao consumidor o direito de escolha esta escolha
deve respeitar a ordem hieraacuterquica estabelecida pelo legislador comunitaacuterio
na qual podemos distinguir dois niacuteveis com dois direitos cada Num primeiro
niacutevel encontramos os direitos primaacuterios (que o consumidor pode e deve
exercer preferencialmente) que satildeo os direitos orientados para o
cumprimento o direito agrave reparaccedilatildeo e o direito agrave substituiccedilatildeo da coisa num
segundo niacutevel encontramos os direitos secundaacuterios o direito agrave reduccedilatildeo
adequada do preccedilo e o direito agrave rescisatildeo do contrato
A transiccedilatildeo de um niacutevel para o outro eacute regulada pelos nordms 5 e 6 do
artigo 3ordm do referido diploma comunitaacuterio Aquilo que resulta destas normas
eacute que sendo a reparaccedilatildeo ou a substituiccedilatildeo ainda possiacuteveis sem grave
subsidiariedade Isto significa que sendo o cumprimento ainda possiacutevel o credor natildeo poderaacute
escolher se quer ficar vinculado ou desvincular-se 518 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 810 519 Sobre a Diretiva 199944CE de 25 de maio de 1999 v por todos PAULO MOTA PINTO
ldquoConformidade e garantias na venda de bens de consumordquo in Estudos de Direito do
Consumidor Coimbra 2000 pp 197 e ss e ldquoReflexotildees sobre a transposiccedilatildeo da Directiva
199944CE para o direito portuguecircsrdquo in Themis ano II nordm 4 2001 pp 195 a 218
240
inconveniente para o consumidor os direitos agrave reduccedilatildeo adequada do preccedilo ou
agrave rescisatildeo do contrato soacute podem ser exercidos depois de ter expirado um
adicional e razoaacutevel periacuteodo de tempo destinado a dar ao vendedor uma
segunda oportunidade para cumprir isto eacute para repor os bens em
conformidade com o contrato atraveacutes da reparaccedilatildeo ou da substituiccedilatildeo Neste
sentido podemos afirmar que o princiacutepio das duas oportunidades constitui a
peccedila central da ordem hieraacuterquica estabelecida pela Diretiva
12 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo NA LEI ALEMAtilde
A Diretiva sobre a venda de bens de consumo esteve como jaacute
referimos na geacutenese da reforma do BGB de 20012002520
Esta reforma incidiu de forma particular no regime das perturbaccedilotildees
da prestaccedilatildeo
No que toca agrave questatildeo que nos ocupa o (atual) nordm 1 do sect 323 BGB
passou a estabelecer como ponto de partida em caso de natildeo cumprimento a
necessidade de conceder ao devedor um prazo adicional para cumprir antes
de o credor poder exercer o direito subjetivo propriamente dito a uma
indemnizaccedilatildeo substitutiva da prestaccedilatildeo - sect 282 ndash ou o direito potestativo de
resoluccedilatildeo do contrato bilateral - sect 324
No entanto enquanto que na Diretiva 199944CE este prazo comeccedila
a correr automaticamente o BGB exige que este prazo seja fixado pelo credor
embora jaacute natildeo se exija ao contraacuterio do que resultava do sect 326 (versatildeo anterior
do BGB) que a fixaccedilatildeo do referido prazo seja acompanhada de uma
advertecircncia de que natildeo aceitaraacute a prestaccedilatildeo fora de prazo
(Ablehnungsandrohung)521 Consequentemente perante a versatildeo reformada
do BGB decorrido o prazo adicional sem que o devedor tenha realizado a
prestaccedilatildeo em falta o credor manteacutem a faculdade de optar pelo cumprimento
pela indemnizaccedilatildeo ou pela resoluccedilatildeo do contrato
520 Sobre a Reforma do Coacutedigo Civil alematildeo v ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO ldquoDa
Modernizaccedilatildeo do Direito Civilrdquo I Aspectos Gerais 2004 Almedina Coimbra 2004 em
especial pp 70 e ss 521 Uma importante consequecircncia da supressatildeo deste requisito que se encontrava
expressamente previsto no sect 326 BGB v ant eacute que decorrido o prazo adicional sem que o
devedor tenha realizado a prestaccedilatildeo em falta o credor manteacutem a faculdade de optar pela accedilatildeo
de cumprimento pela indemnizaccedilatildeo ou pela resoluccedilatildeo do contrato Sobre este ponto v NUNO
MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoEstudos sobre o natildeo cumprimento das obrigaccedilotildeesrdquo III
Contributo para a interpretaccedilatildeo do artigo 808ordm do Coacutedigo Civil Almedina Coimbra 2009
p 61
241
O sect 323 do BGB contempla ainda determinados casos em que o
credor pode resolver imediatamente o contrato Entre eles contam-se (1) a
recusa definitiva e seacuteria de cumprimento feita pelo devedor ao credor (sect 323
nordm 2 al 1)) (2) os casos em que a prestaccedilatildeo de torna inuacutetil por perda de
interesse do credor na prestaccedilatildeo o que acontece nos casos em que a prestaccedilatildeo
natildeo seja realizada dentro do prazo ou termo essencial (3) os casos em que
atendendo agraves circunstacircncias concretas e agrave ponderaccedilatildeo dos interesses de ambas
as partes se justifique a resoluccedilatildeo imediata Nestes casos o requisito da
concessatildeo de um prazo adicional ao devedor para que este cumpra eacute
substituiacutedo por um aviso preacutevio (Abmahnung)
A possibilidade dada ao credor de resolver imediatamente o contrato
nos casos em que ldquoatendendo agraves circunstacircncias concretas e agrave ponderaccedilatildeo dos
interesses de ambas as partes se justifique a resoluccedilatildeo imediatardquo afigura-se
especialmente importante no acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras e
complexas e abrange casos que entre noacutes soacute poderiam caber numa claacuteusula
geral de resoluccedilatildeo do contrato por inexigibilidade de subsistecircncia da relaccedilatildeo
contratual
13 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo NO DIREITO
PORTUGUEcircS
Ao contraacuterio do BGB o Coacutedigo Civil portuguecircs natildeo consagra (ainda)
uma noccedilatildeo ampla de incumprimento O natildeo cumprimento eacute regulado num
enquadramento sistemaacutetico que tem como polos de referecircncia a
impossibilidade (total ou parcial) e a mora522 Consequentemente tambeacutem o
regime da resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico se encontra construiacutedo
em torno desta dicotomia
No que respeita agrave questatildeo que nos ocupa o ponto de partida do direito
portuguecircs eacute diferente do ponto de partida do direito alematildeo Enquanto que o
direito alematildeo parte como jaacute vimos do requisito da concessatildeo ao devedor de
um prazo adicional para cumprir antes de o credor poder exercer o direito agrave
resoluccedilatildeo do contrato os artigos 801ordm nordm 2 e 802ordm do Coacutedigo Civil portuguecircs
consideram explicitamente a impossibilidade como causa (a causa) da
resoluccedilatildeo imediata do contrato bilateral sinalagmaacutetico523 No entanto
tambeacutem de acordo com o direito portuguecircs nos casos em que o
incumprimento natildeo revista a forma de impossibilidade (casos de mora em que
o cumprimento posterior ainda eacute possiacutevel) o credor natildeo goza de um direito de
resoluccedilatildeo imediata teraacute de dar ao devedor (em mora) nos termos do artigo
522 JOAtildeO BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo cit p 344 523 O artigo 801ordm contempla os casos de impossibilidade (definitiva) total o artigo 802ordm
contempla os casos de impossibilidade (definitiva) parcial
242
808ordm nordm 1 do Coacutedigo Civil uma segunda oportunidade para cumprir O
ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo consubstancia-se pois na necessidade de
o credor fixar ao devedor (em mora) um prazo razoaacutevel para que este cumpra
Antes de o credor fixar este prazo e de ele terminar o credor continua
vinculado ao conteuacutedo originaacuterio da relaccedilatildeo contratual o que significa que soacute
poderaacute atuar o direito subjetivo propriamente dito ao cumprimento Depois de
o prazo terminar sem que o devedor tenha realizado uma prestaccedilatildeo conforme
ao contrato o credor adquire o direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato
podendo escolher se quer ficar vinculado ao contrato ou desvincular-se
exercendo o direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato Neste sentido o
direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico previsto
nos artigos 801ordm nordm 2 e 802ordm do Coacutedigo Civil soacute pode em princiacutepio ser
exercido desde que o devedor desaproveite duas oportunidades para
cumprir524
O artigo 808ordm nordm 1 2ordf alternativa consagra poreacutem uma exceccedilatildeo ao
princiacutepio das duas oportunidades Trata-se do caso em que a prestaccedilatildeo se torna
inuacutetil por perda (objectiva) do interesse do credor na prestaccedilatildeo ldquose o credor
em consequecircncia da mora perder o interesse que tinha na prestaccedilatildeordquo O nordm 2
do artigo 808ordm por sua vez acrescenta que ldquoa perda do interesse do credor na
prestaccedilatildeo eacute apreciada objectivamenterdquo Isto significa que o artigo 808ordm do
Coacutedigo Civil se deve aplicar aos casos em que o credor natildeo possa realizar os
fins da prestaccedilatildeo por causa do natildeo cumprimento temporaacuterio ou transitoacuterio
imputaacutevel ao devedor525
Em segundo lugar embora natildeo resulte expressamente da lei o credor
pode ainda desvincular-se do contrato sem necessidade de conceder ao
devedor um prazo adicional para cumprir quando o devedor recuse de forma
categoacuterica clara e definitiva o cumprimento da obrigaccedilatildeo526 Neste caso seria
inuacutetil intimar para cumprir dentro de um prazo adicional ou suplementar um
devedor que jaacute declarou definitivamente que natildeo cumpriraacute Por outro lado por
parte do devedor a alegaccedilatildeo de que o credor natildeo lhe deu uma segunda
oportunidade para cumprir consubstanciaria um abuso do direito na
modalidade de venire contra factum proprium
524 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 810 525 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 863 526 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 827
243
2 A RESOLUCcedilAtildeO DO CONTRATO NO AcircMBITO DAS RELACcedilOtildeES
CONTRATUAIS DURADOURAS
Diferentemente dos contratos de execuccedilatildeo instantacircnea os contratos
duradouros (nomeadamente os contratos de execuccedilatildeo continuada ou
perioacutedica) criam uma relaccedilatildeo contratual mais complexa que apresenta
aspectos particulares e que poderaacute reclamar a adopccedilatildeo de um criteacuterio especial
para avaliar a gravidade do inadimplemento susceptiacutevel de justificar a
resoluccedilatildeo do contrato
A particular natureza dos contratos duradouros527 faz com que cada
prestaccedilatildeo ou cada inadimplemento natildeo devam ser tomados e valorados
isoladamente mas antes com referecircncia agrave relaccedilatildeo contratual no seu todo
Assim por um lado em regra natildeo bastaraacute o inadimplemento de uma soacute
prestaccedilatildeo para fazer desaparecer o interesse do credor na subsistecircncia da
relaccedilatildeo e para legitimar a resoluccedilatildeo O credor teraacute normalmente interesse nas
prestaccedilotildees subsequentes
Mas por outro lado um inadimplemento ainda que de menor
importacircncia jaacute poderaacute legitimar a resoluccedilatildeo se pela sua natureza e pelas
circunstacircncias de que se rodeou (p ex desordem nos negoacutecios do devedor
desorganizaccedilatildeo da empresa fornecedora) for de molde a fazer desaparecer a
confianccedila do credor no exato cumprimento das prestaccedilotildees subsequentes ou
das obrigaccedilotildees contratuais em geral para o futuro Esta perda de confianccedila natildeo
deve ser valorada tendo em vista a gravidade do inadimplemento do ponto de
vista do prejuiacutezo que dele advenha para o credor528 Aqui o que se pergunta eacute
se ao inadimplemento de uma soacute prestaccedilatildeo se pode (ou natildeo) atribuir este valor
sintomaacutetico529
O problema do incumprimento sintomaacutetico ainda no acircmbito dos
contratos de execuccedilatildeo duradoura pode estar relacionado com o natildeo
cumprimento de deveres de prestaccedilatildeo ou com o natildeo cumprimento de deveres
acessoacuterios de conduta Assim por exemplo nos contratos de execuccedilatildeo
continuada que pressuponham uma relaccedilatildeo de confianccedila muacutetua e de
527 Cfr BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo cit p 356 528 Isto natildeo significa que numa relaccedilatildeo nascida de um contrato de execuccedilatildeo continuada ou
perioacutedica natildeo possam surgir inadimplementos cuja valoraccedilatildeo deve ser feita tendo em vista o
prejuiacutezo que desses inadimplementos advenha para o credor ou que o criteacuterio especial do
desaparecimento da confianccedila possa valer como criteacuterio concorrente ou subsidiaacuterio 529 Por exemplo um atraso na realizaccedilatildeo de uma soacute prestaccedilatildeo pode natildeo ser suficientemente
grave mas o conjunto de atrasos sim O cumprimento defeituoso ou imperfeito pode natildeo ser
suficientemente grave mas o conjunto de cumprimentos imperfeitos sim
244
colaboraccedilatildeo estreita entre as partes530 deve entender-se como ensina Baptista
Machado que todo o comportamento que afecte gravemente essa relaccedilatildeo potildee
em perigo o proacuteprio fim do contrato abala o fundamento deste e pode
justificar por isso a resoluccedilatildeo531
A possibilidade conferida ao credor de resolver imediatamente o
contrato bilateral sinalagmaacutetico sem ter de dar ao devedor uma segunda
oportunidade para cumprir com fundamento na inexigibilidade de
subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual afigura-se pois especialmente relevante no
acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras e complexas O nosso Coacutedigo
Civil porque toma como paradigma o contrato de execuccedilatildeo instantacircnea e
porque regula a resoluccedilatildeo com base na dicotomia impossibilidademora natildeo
prevecirc no regime geral do natildeo cumprimento a resoluccedilatildeo do contrato por
inexigibilidade Contudo acolhe esta ideia de inexigibilidade da subsistecircncia
da relaccedilatildeo contratual no regime especiacutefico de alguns contratos tiacutepicos ndash de
execuccedilatildeo duradoura ndash por exemplo do contrato de arrendamento do contrato
de sociedade do contrato de trabalho ou do contrato de agecircncia Em todos
estes contratos a inexigibilidade surge associada agrave noccedilatildeo de ldquojusta causardquo (cfr
art 1003ordm al a) e 1083ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil art 351ordm nordm 1 do Coacutedigo
do Trabalho e no art 30ordm do Decreto-Lei nordm 17686 de 3 de julho)
Nuno Pinto Oliveira na esteira da posiccedilatildeo defendida entre noacutes por
Baptista Machado interpreta estas normas como afloramentos de um princiacutepio
geral aplicaacutevel natildeo apenas agraves relaccedilotildees contratuais duradouras mas a todas as
relaccedilotildees contratuais de acordo com o qual o credor deveraacute dispor de um direito
potestativo de resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico sempre que se decirc
ldquoqualquer circunstacircncia facto ou situaccedilatildeo em face da qual e segundo a boa feacute
natildeo seja exigiacutevel a uma das partes a continuaccedilatildeo da relaccedilatildeo contratualrdquo Ao
esquecer-se de consagrar este princiacutepio o legislador portuguecircs teria causado
uma lacuna que deveria pois ser integrada atraveacutes de uma analogia geral
(analogia juris)532
O BGB reformado afigura-se no que toca a este ponto mais ajustado
agraves peculiaridades das relaccedilotildees contratuais duradouras O sect 323 3 BGB admite
a resoluccedilatildeo do contrato nos casos em que haja circunstacircncias especiais
(besondere Umstaumlnde) e em que a resoluccedilatildeo imediata do contrato se
expliquese justifique atendendo ao balanceamento ou ponderaccedilatildeo dos
interesses contrapostos de cada uma das partes (unter Abwaumlgung der
beiderseitigen Interessen) O sect 324 BGB por sua vez admite a resoluccedilatildeo do
530 Poderaacute tratar-se de contratos celebrados intuito personae mas natildeo necessariamente 531 BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo cit p 359 532 Cfr NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 870
245
contrato sempre que a inobservacircncia de deveres acessoacuterios de conduta torne
inexigiacutevel a subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual
Estas normas embora sejam aplicaacuteveis a todas as relaccedilotildees contratuais
introduzem uma abertura e uma flexibilidade que se afiguram especialmente
relevantes no acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras533 Para aleacutem disso
funcionado como exceccedilotildees ao ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo estas
normas poderatildeo tambeacutem contribuir para disciplinar o devedor de uma forma
mais eficiente jaacute que lhe retiram em parte a seguranccedila juriacutedica que o
princiacutepio das duas oportunidades lhe outorga o devedor sabe que natildeo teraacute uma
segunda oportunidade de cumprir se o seu comportamento abalar a relaccedilatildeo de
confianccedila muacutetua na qual assenta a relaccedilatildeo contratual tornando assim
inexigiacutevel a sua subsistecircncia
3 O MODELO CONSAGRADO NA CONVENCcedilAtildeO DE VIENA DE 1980 SOBRE
A COMPRA E VENDA INTERNACIONAL DE MERCADORIAS
31 A NOCcedilAtildeO DE VIOLACcedilAtildeO FUNDAMENTAL DO CONTRATO
Nos termos da Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a compra e venda
internacional de mercadorias o direito de rescisatildeo do contrato eacute concedido ao
comprador em duas hipoacuteteses previstas no artigo 49ordm nordm 1 da Convenccedilatildeo
quando a falta de cumprimento de qualquer obrigaccedilatildeo pelo vendedor constituir
uma violaccedilatildeo fundamental do contrato ou quando o vendedor natildeo faccedila a
entrega das mercadorias findo o prazo suplementar que foi fixado pelo
comprador nos termos do artigo 47ordm (ou ainda no decurso deste se o vendedor
declarar categoricamente que natildeo faraacute a entrega dentro de tal prazo) Deste
modo excetuado o caso em que haja falta de entrega o direito de rescisatildeo que
o comprador pode exercer nos termos da Convenccedilatildeo repousa na noccedilatildeo de
ldquoviolaccedilatildeo fundamentalrdquo do contrato ou fundamental breach utilizando a
expressatildeo anglo-saxoacutenica534 Esta noccedilatildeo serve para traccedilar a fronteira entre as
533 Defendendo que ldquo[e]ntre a flexibilidade do Coacutedigo Civil alematildeo e a inflexibilidade do
Coacutedigo Civil portuguecircs deve preferir-se a primeirardquo v NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA
ldquoEstudos sobre o natildeo cumprimento das obrigaccedilotildeesrdquo cit p 69 534 A consagraccedilatildeo da noccedilatildeo de ldquoviolaccedilatildeo fundamentalrdquo do contrato pode ser vista como uma
aproximaccedilatildeo aos sistemas do Common Law em que a faculdade de resoluccedilatildeo eacute limitada aos
casos em que haacute uma violaccedilatildeo grave do contrato O legislador internacional teraacute entendido
que a soluccedilatildeo do Common Law representa o melhor equiliacutebrio entre o interesse da parte faltosa
em natildeo sofrer as consequecircncias da rescisatildeo em caso de uma violaccedilatildeo de gravidade menor e o
interesse da parte lesada em natildeo se ver obrigada a aceitar uma prestaccedilatildeo em que natildeo tem (ou
246
formas de incumprimento menos graves que natildeo potildeem em causa a
subsistecircncia do contrato e situaccedilotildees mais graves que permitem agrave parte lesada
a rescisatildeo do contrato
O artigo 25ordm da convenccedilatildeo determina que uma violaccedilatildeo do contrato
cometida por uma das partes eacute fundamental quando causa agrave outra parte um
prejuiacutezo tal que a prevecirc substancialmente daquilo que lhe era legiacutetimo esperar
do contrato salvo se a parte faltosa natildeo previu esse resultado e se uma pessoa
razoaacutevel com idecircntica qualificaccedilatildeo e colocada na mesma situaccedilatildeo natildeo o
tivesse igualmente previsto
A expressatildeo ldquoprejuiacutezordquo natildeo eacute aqui utilizada no seu sentido teacutecnico mas
como desvantagem resultante do incumprimento agrave luz do interesse do credor
Assim jaacute se entendeu que natildeo constitui uma violaccedilatildeo fundamental a existecircncia
de defeitos de conformidade numa pequena parte da mercadoria ou que natildeo
excluam uma utilizaccedilatildeo alternativa sem fazer incorrer o comprador em
despesas elevadas Por outro lado natildeo soacute o incumprimento da obrigaccedilatildeo
principal mas tambeacutem o incumprimento de obrigaccedilotildees acessoacuterias pode ser
considerado uma violaccedilatildeo fundamental se tiver suficiente importacircncia para a
outra parte Assim por exemplo o desrespeito pelo vendedor de um direito de
exclusividade reconhecido ao comprador pode dependendo do conteuacutedo do
contrato e das circunstacircncias concretas do caso consubstanciar uma ldquoviolaccedilatildeo
fundamentalrdquo do contrato535
Natildeo basta poreacutem a existecircncia de um prejuiacutezo substancial Eacute
necessaacuterio que a parte faltosa tenha previsto a produccedilatildeo desse prejuiacutezo ou que
ele fosse previsiacutevel por uma pessoa razoaacutevel com idecircntica qualificaccedilatildeo e
colocada na mesma situaccedilatildeo Incumbe agrave parte faltosa provar que o prejuiacutezo
substancial causado agrave outra parte natildeo foi previsto nem seria previsiacutevel Assim
por exemplo o atraso na entrega da mercadoria soacute constituiraacute uma violaccedilatildeo
fundamental se causar um prejuiacutezo substancial ao comprador e se o vendedor
puder aperceber-se da sua gravidade Nesta hipoacutetese poreacutem o comprador
pode nos termos do artigo 49ordm nordm 1 aliacutenea b) fixar um prazo suplementar ao
vendedor e resolver o contrato se a entrega natildeo tiver lugar dentro desse prazo
sem necessidade de demonstrar que o atraso na entrega da mercadoria constitui
uma violaccedilatildeo fundamental do contrato
jaacute natildeo tem) interesse V LUIacuteS DE LIMA PINHEIRO Direito Comercial Internacional Almedina
Coimbra 2005 p 278 535 V LUIacuteS DE LIMA PINHEIRO Direito Comercial Internacional cit p 279
247
32 O DIREITO DE DECLARAR A RESOLUCcedilAtildeO NOS CONTRATOS COM
PRESTACcedilOtildeES SUCESSIVAS
O artigo 73ordm da Convenccedilatildeo consagra um regime especial aplicaacutevel agrave
resoluccedilatildeo do contrato por inexecuccedilatildeo de alguma das obrigaccedilotildees quando a
prestaccedilatildeo de qualquer das partes se protele no tempo Tal regime comtempla
as consequecircncias que resultam de uma tal inexecuccedilatildeo quer no que diz respeito
agrave entrega natildeo efectivada quer no que concerne agrave sua repercussatildeo sobre os
demais atos de entrega futuros ou jaacute efetuados536 No caso de contratos em
que as prestaccedilotildees se achem fracionadas como eacute o caso de contratos de compra
e venda com entregas sucessivas o princiacutepio geral eacute o de que se o
incumprimento de uma obrigaccedilatildeo referente a uma entrega constituir uma
violaccedilatildeo fundamental do contrato a outra parte pode resolvecirc-lo no acircmbito
correspondente a esta entrega (artigo 73ordm nordm 1) Neste caso o direito de
resoluccedilatildeo eacute limitado agrave prestaccedilatildeo em causa e soacute existe nos termos gerais
quando se verifique uma violaccedilatildeo fundamental do contrato
O nordm 2 do artigo 73ordm da Convenccedilatildeo prevecirc a hipoacutetese em que o
incumprimento de uma das prestaccedilotildees singulares de entrega daacute agrave outra parte
seacuterias razotildees para pensar que ocorreraacute uma violaccedilatildeo fundamental na parte
correspondente agraves futuras entregas Assim autoriza-se a parte lesada a num
prazo razoaacutevel declarar a resoluccedilatildeo de toda a relaccedilatildeo duradoura para o futuro
Neste caso prescinde-se do caraacuteter fundamental da violaccedilatildeo ocorrida para se
exigir apenas que ela funde o receio justificado de outras violaccedilotildees futuras
que possam revestir aquele caraacuteter
Embora natildeo exista na nossa lei uma norma semelhante poderemos
admitir como defende Baptista Machado que o inadimplemento de uma
prestaccedilatildeo neste tipo de contratos pode ter valor sintomaacutetico legitimando
entatildeo a resoluccedilatildeo do contrato se tal inadimplemento ldquofor de molde a fazer
desaparecer a confianccedila do credor no exato e fiel cumprimento das prestaccedilotildees
subsequentesrdquo
O nordm 3 do artigo 73ordm prevecirc a hipoacutetese em que tendo o comprador
resolvido o contrato em relaccedilatildeo a uma das entregas as demais (passadas ou
futuras) natildeo poderem mais ser utilizadas para os fins tidos em vista pelas partes
no momento da celebraccedilatildeo do contrato em virtude da sua iacutentima conexatildeo com
a prestaccedilatildeo em falta
Haacute aqui uma analogia com o regime especial dos efeitos da resoluccedilatildeo
do contrato previsto na nossa lei para as chamadas obrigaccedilotildees de execuccedilatildeo
536 Cfr os nuacutemeros 2 e 3 do artigo 73ordm da Convenccedilatildeo de Viena de 1980
248
continuada ou perioacutedica no que diz respeito agraves prestaccedilotildees jaacute efetuadas (v
artigo 434ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil)
CONCLUSOtildeES
A anaacutelise que empreendemos permite-nos concluir que quer na
Diretiva 199944CE de 25 de maio de 1999 quer nos Coacutedigos Civis
portuguecircs e alematildeo quer na Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a venda
internacional de mercadorias existe uma diferenciaccedilatildeo entre incumprimentos
essenciais (em que a prestaccedilatildeo jaacute natildeo eacute possiacutevel ou eacute inuacutetil do ponto de vista
da satisfaccedilatildeo do interesse do credor) e incumprimentos natildeo essenciais (em
que a prestaccedilatildeo ainda eacute possiacutevel e uacutetil)
A razatildeo de ser desta diferenciaccedilatildeo eacute a seguinte sendo a prestaccedilatildeo ainda
possiacutevel e uacutetil importa encontrar um equiliacutebrio entre o interesse do devedor
em cumprir e o interesse do credor em desvincular-se do contrato exercendo
o direito potestativo de resoluccedilatildeo O equiliacutebrio entre estes dois interesses
alcanccedila-se atraveacutes do ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo ou seja do requisito
da fixaccedilatildeo ao devedor de um prazo adicional para cumprir e assim impedir a
resoluccedilatildeo do contrato
O ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo tem vantagens para ambas as
partes para o credor porque lhe permite exercer o direito potestativo de
resoluccedilatildeo do contrato mesmo nos casos em que o cumprimento posterior
ainda eacute possiacutevel para o devedor pela certeza e pela seguranccedila que lhe
proporciona ele sabe que se natildeo cumprir agrave primeira poderaacute ainda cumprir agrave
segunda e tem ainda a garantia de que enquanto aquele prazo adicional natildeo
terminar o credor natildeo poderaacute exercer o direito de resoluccedilatildeo do contrato (a natildeo
ser que no decurso desse prazo o devedor declare de forma definitiva e
categoacuterica que natildeo cumpriraacute)
Nos casos em que a prestaccedilatildeo jaacute natildeo eacute possiacutevel ou eacute inuacutetil ndash o interesse
do credor em desvincular-se do contrato exercendo o direito potestativo de
resoluccedilatildeo eacute claramente preponderante razatildeo pela qual faz sentido admitir que
este possa resolver imediatamente o contrato sem ter que dar ao devedor uma
segunda oportunidade para cumprir537
537 O artigo 9301 (1) PECL determina que uma das partes pode resolver o contrato se o
incumprimento da outra parte constituir um incumprimento essencial Assim nos casos de
incumprimento essencial existe um direito de resoluccedilatildeo imediata Natildeo existindo um
incumprimento essencial o credor soacute poderaacute resolver o contrato se previamente tiver
concedido ao devedor um prazo adicional para este cumprir e o respectivo prazo terminar sem
que o devedor tenha realizado a sua prestaccedilatildeo O artigo 9301 (2) PECL estabelece que em