PINCELADAS EM TEMPO DE DITADURA: a arte de
Willy Zumblick e o regime militar brasileiro, 1974-1976.
Murilo de Sousa Rosa.1
Dois anos após a histórica enchente ocorrida em 1974 na cidade de Tubarão, em Santa Catarina, o
vitimado município recebeu a visita do presidente do Brasil da época, o militar Ernesto Geisel. Ao se
despedir, Geisel recebeu do prefeito Irmoto Feuerschutte e sua esposa uma tela do artista plástico
conterrâneo Willy Zumblick como gesto de agradecimento por sua atenção dada ao município. A opção
do prefeito em ofertar uma obra do renomado artista, no entanto, instiga uma reflexão. Sendo a tela de
Zumblick entendida pelo político local como um presente que agradaria a autoridade militar no país, tal
episódio conduz a uma problemática: como a arte de Willy Zumblick se relaciona com o governo de
Geisel? A pesquisa desenvolvida para responder essa questão procura compreender o olhar, o
posicionamento do artista em relação ao regime político governado pelo militar. Interessado no contexto
este artigo tem por objetivo analisar a relação entre a pintura do artista plástico Willy Zumblick e a
ditadura militar em meados da década de 1970. Para o desenvolvimento deste texto é feita uma releitura
de artigos de jornais de Tubarão da época, de livros que abordam tais eventos e a análise de algumas
obras do pintor de acordo com a proposta de leitura de imagens desenvolvida por Martine Joly.
Palavras-chave: Tubarão, enchente, Willy Zumblick, arte, Ernesto Geisel.
A visita do presidente Ernesto Geisel a Tubarão, no sul de Santa Catarina, foi
um evento significativo para sua população e o prefeito em exercício na época, Irmoto
Feuerschutte. O ano era 1976, e a recepção calorosa, como narra Irmoto em seu livro,
Uma direção para a vida, foi uma forma dos moradores homenagearem o militar por ter
auxiliado o município em sua recuperação após a destruição provocada pela força das
águas na enchente de 1974. Feuerschutte lembra que
Ao chegar o cortejo à [rua] Coronel Colaço, e pelo grande público presente,
havia inclusive cordões de isolamento, o Presidente Geisel deixa o carro,
quebrando o protocolo, e caminha, sendo ovacionado pelo povo e agraciado
com chuva de papel picado jogado do alto dos prédios, isto até o outro lado
das pontes, quando retorna ao automóvel que o conduz a Capivari.2
As boas-vindas podem ser entendidas como uma resposta à forma como o presidente
Geisel deu atenção à situação do lugar após o catastrófico evento. São nos relatos 1 Mestrando do curso de História do Tempo Presente da UDESC, orientando da professora Drª. Mara
Rúbia Sant’Anna-Müller.
2 FEUERSCHUTE, Irmoto José. Uma direção para a vida: memórias da enchente de Tubarão – 1974.
Tubarão: Reuter Ed., 2004, p. 101.
2
contidos no livro do ex-prefeito que se encontram alguns dos motivos para a popular
manifestação de gratidão: os auxílios prestados pelo 3ª Cia do exército aos tubaronenses
e a permanência da mesma na cidade; a disposição de helicópteros da Aeronáutica e da
Marinha no resgate as vítimas; a visita urgente do Secretário Geral do Ministério do
Interior após a enxurrada, com o intuito de dar início à recuperação da cidade, segundo
as ordens de Geisel; as duas audiências do prefeito Irmoto com o presidente; e as verbas
para compra de maquinário e a construção de casas.3
A despedida dos políticos locais a autoridade federal ficou marcada por outro
gesto simbólico: um quadro do pintor tubaronense Willy Zumblick foi entregue a
tripulação por Ilona, esposa do prefeito Irmoto, acompanhado de um cartão dedicado à
esposa do presidente. O ex-prefeito justifica então o gesto: “Procurávamos ser gratos a
quem por nós tanto fez”.4
Sobre a tela, no entanto, faltam mais detalhes. Não há no livro de Irmoto
Feuerschutte qualquer outra referência sobre o quadro. Outras publicações que tratam
das consequências das fortes chuvas e os esforços em recuperar a cidade sequer citam o
gesto, e não há qualquer menção nos jornais locais da época, guardados no Arquivo
Público de Tubarão, que trate do episódio e identifique a peça.
Porém, a opção por uma das telas de Willy Zumblick entregue a Geisel como
uma lembrança tubaronense leva a algumas reflexões: por que justo uma pintura de
Zumblick? E quais as possíveis relações que se pode estabelecer entre a arte de Willy
Zumblick e o governo Geisel? Algumas hipóteses aqui levantadas procurarão responder
estas questões.
A proximidade entre Irmoto Feuerschutte e Willy Zumblick é o ponto de partida
para que se possa compreender o gesto de reconhecimento do prefeito de Tubarão. Ao
assumir o poder executivo do município no ano de 1973, Irmoto nomeou Zumblick
como presidente da Comissão Municipal de Turismo. Já no cargo, Willy organizou
neste mesmo ano um evento chamado Festival Hoje, promovendo apresentações
musicais e uma exposição coletiva de artes plásticas com a participação de renomados
3 FEUERSCHUTE, Irmoto José, op. Cit., p. 2004.
4 Ibidem, p. 102.
3
pintores do Estado.5 No mês de fevereiro do ano seguinte, pouco antes da ocorrência das
chuvas que motivaram a busca por auxílio ao município, alguns jornais da época,
pertencentes ao Arquivo Municipal, destacaram com entusiasmo o sucesso da realização
de um grandioso carnaval de rua organizado pelo secretário Willy. Após os estragos e as
perdas provocadas pelas águas de março de 74, o nome de Willy passa a constar na lista
dos que auxiliariam o prefeito na recuperação da cidade, indicando assim a confiança
que o executivo tinha no artista da terra.6 Além disso, o nome de Willy Zumblick já era
reconhecido há muitos anos pela mídia catarinense e outras mais pelo país como um dos
grandes pintores do Estado e até mesmo do Brasil, o que por si só poderia instigar
Irmoto a ofertar ao presidente um de seus quadros, levando em conta que se tratava
também de uma obra de autoria de um dos homens de sua confiança.
Outro fator relevante que auxilia na compreensão da oferta da obra do artista ao
militar é a forma como Willy tratou o drama dos flagelados em sua arte. Na biografia,
Zumblick para sempre: catálogo de obras, é possível conferir a reprodução de duas
pinturas que tratam do drama tubaronense: Retirantes da enchente e Dilúvio em
Tubarão7, as duas produzidas em 1974. No entanto, as circunstâncias que envolvem a
produção dos quadros tornam-se mais claros se for feita a análise através da leitura das
imagens, como sugere Martine Joly.8
A primeira tela representa a situação sofrida pelos conterrâneos do pintor. A
imagem, uma pintura a óleo com 1,40m x 1,20m que pertence atualmente ao acervo do
Museu Willy Zumblick, apresenta sete pessoas, homens e mulheres, adultos e crianças,
carregando, sob forte chuva e com água pelos tornozelos, os poucos pertences que
conseguiram pegar, vagando em busca de um lugar para que possam se abrigar das
5 FESTIVAL: Hoje em Tubarão. Nosso Jornal, Tubarão, 29 de set. 1973. nº. 494, p8, e Tri em
cima. Festival Hoje. Nosso Jornal, Tubarão, 17 de Nov. 1973. nº. 501, p8.
6 MACHADO, César do Canto. Tubarão 1974: fatos e relatos da grande enchente. Tubarão: Ed. Unisul,
2005, p. 140.
7 BEZ, Volnei Martins; ROCHA, Valmiré; ROCHA, Carlos. Zumblick para sempre – catálogo de obras
– Florianópolis: Secco, 2010, p. 75.
8 Martine Joly defende que a análise de imagens deve estar a serviço de um projeto, de acordo com os
objetivos, e deve ser feita através de uma leitura identificando e reconhecendo signos e significantes, e
compreendendo os significados. Conferir as representações, os motivos da mensagem visual, as intenções
do autor, as mensagens implícitas, os elementos ausentes e o contexto do seu aparecimento e destino.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Lisboa: Ed. 70, 1994, p. 44-76.
4
águas. Os personagens do primeiro plano têm os olhos arregalados, evidenciando o
quanto estão assustados com o cenário ao redor deles. São evidentes as semelhanças
entre esta tela e as diversas obras realizadas por Cândido Portinari que tematizam os
retirantes nordestinos. A influência deste sobre o primeiro parece muito clara, pois há
alguns elementos em comum nos trabalhos dos artistas: trouxas apoiadas sobre a
cabeça, crianças no colo das mulheres, homens caminhando com o auxílio de cajados.
O que diferencia a tela de Zumblick das de Portinari são os ambientes. No quadro do
primeiro há um cenário chuvoso e alagado, nos de Cândido são comuns às cenas áridas.
Retirantes da enchente, 1974, óleo sobre tela, 1,40m x 1,20m.
Acervo Museu Willy Zumblick, Tubarão, Santa Catarina.
Retirantes da enchente é também um registro do testemunho e da comoção do
artista. Sendo Zumblick um dos envolvidos no auxílio às vítimas, e acompanho de perto
as dificuldades dos mesmos, seu quadro apresenta um conteúdo que se aproxima de
outras falas. Em seu livro, História de Tubarão: das origens ao século XX, Amadio
Vittoretti relata que
Um grande número de famílias da cidade se evadiu porque não tinha um
ponto de apoio na cidade. Parentes e amigos doutras localidades lhes deram
guarida. Alguns haviam perdido a esperança de repor o que havia perdido.
Comentava-se: ‘Agora todo mundo é peregrino’. Os retirantes saíram em
5
qualquer veículo, alguns somente com a roupa do corpo em direção aos
municípios vizinhos. Em sequência, grupos se deslocavam a pé.9
Em algumas páginas anteriores, antecipando esta narrativa de Amadio, uma reprodução
de Retirantes da enchente, junta com algumas fotos, ilustravam o cenário de desolação
em Tubarão.10
Quanto ao apego do pintor por esta obra, uma pequena nota de jornal
esclarece que
Willy Alfredo Zumblick declarou que o quadro tem para ele um valor
inestimável e que por isso mesmo não esta à venda. Um outro quadro, que
retrata o salvamento feito pelos helicópteros, está sendo pintado por
Zumblick. Seu ateliê, com dezenas de quadros, foi atingido pelas águas.
Algumas telas ainda são recuperáveis e outras, que ficaram inutilizadas,
Zumblick acabou de destruir por completo.11
Dilúvio em Tubarão, 1974, óleo sobre tela, 1,40m x 1,20m.
9 VITTORETTI, Amadio. História de Tubarão: das origens ao século XX. Tubarão: Prefeitura
Municipal de Tubarão, 1992, p. 238.
10 Idem, p. 234.
11 Zumblick retrata o drama da enchente. Jornal de santa Catarina, 26.04.1974, s/p. Recorte de jornal
anexado em um encadernação de capa dura intitulada Jornais sobre a enchente de 74, pertencente ao
acervo do Arquivo Público Municipal de tubarão.
6
Acervo Museu Willy Zumblick, Tubarão, Santa Catarina.
Dilúvio em Tubarão é a segunda tela de Willy que aborda a enchente de sua terra
natal, e assim como o primeiro quadro, este trata da agonia de seus conterrâneos, mas
faz referência também aos momentos de ajuda e esperança promovidos pela presença
dos helicópteros das forças armadas. A pintura apresenta a elevação das águas atingindo
os telhados de três ou quatro casas, e sobre elas estão mulheres e homens. No primeiro
plano seus rostos apresentam o pavor devido à ameaça das ondulações e um ambiente
tomado pela penumbra esverdeada. Com a presença da nave muitos erguem os braços
para chamar a atenção da tripulação, outros acenam com roupas brancas nas mãos para
reforçar o pedido de socorro, enquanto que outros tentam salvar os que estão na água
abraçados aos troncos de árvores. Este quadro de Zumblick também se aproxima de
outras narrativas, que abordam desespero e gratidão juntos, como é caso da matéria do
jornal O Estado, que tem o título Março de 1974, Florianópolis-Tubarão, a maior ponte
aérea de Santa Catarina. Nossos agradecimentos a esses incansáveis homens voadores,
e faz a abertura do texto com um parágrafo onde diz que “Naquela manhã, o ronco dos
helicópteros soou como sinfonia aos ouvidos daquelas 6.000 pessoas que esperavam o
auxílio ou a morte encima dos telhados”.12
César do Canto Machado registra em seu
livro, Tubarão 1974: fatos e relatos da grande enchente, uma fala muito semelhante,
escrevendo que
Chegara, enfim, o momento do resgate tão ansiosamente aguardado. Depois
de quase dois dias de angustiante incerteza, o sorriso volta a frequentar o
rosto dos flagelados, os quais efusivamente festejam a presença da inesperada
aeronave. Mudam de imediato, para melhor, as expressões antes tão
desoladas. Reativa-lhes o ânimo o fato de estar um helicóptero de volta a
cidade. A boa-nova apaga o derrotismo; desanuvia o panorama apreensivo
que assombra as fisionomias.13
Além dos registros nas obras, Willy, como presidente da Comissão Municipal de
Turismo de Tubarão, procurou fazer um agradecimento geral através de um ato público,
12
O Estado, 23.03.1975, s/p. Recorte de jornal anexado a encadernação pertencente ao Arquivo Público
de Tubarão.
13 MACHADO, César do Canto. Tubarão 1974: fatos e relatos da grande enchente. Tubarão: Ed. Unisul,
2005, p. 103.
7
e procurou “[...] organizar uma passeata nas ruas de Florianópolis, em agradecimento ao
socorro prestado por catarinenses e brasileiros aos irmãos do Sul do Estado”.14
A breve análise das duas pinturas de Zumblick acima realizada se torna
pertinente para que se possa compreender o posicionamento do artista em relação a um
dos fatores que perpassa boa parte das suas obras: a preservação da memória. Willy é
referenciado em suas biografias, em diversas passagens, como artista memorialista, e o
primeiro indício desta preocupação em registrar seu testemunho com relação à enchente
está no período em que pintor produz os quadros, pois, um mês após as fortes chuvas
dos dias 24 e 25 de março de 1974, que provocaram a destruição de boa parte de
tubarão, uma reprodução da tela Retirantes da enchente ilustrava a pequena matéria do
Jornal de Santa Catarina sobre a atividade do artista. Mesmo com seu ateliê atingido
pelas águas e envolvido com o socorro e o atendimento as vítimas, Willy Zumblick
reservou parte de seu tempo para continuar produzindo logo após a inundação, e na
condição de testemunha, pinta como se estivesse com pressa, como se quisesse relatar o
que viu e ouviu, e que não permitisse que o esquecimento pudesse “apagar” os detalhes
das coisas recém-vividas.
Outro interesse de Willy com relação à memória, envolvendo o episódio da
enchente, está ligado à função de lembrar os demais. A produção de suas telas logo após
o ocorrido faz lembrar à preocupação contida em outras narrativas escritas
posteriormente, como aborda Amadio Vettoretti, pois ao tratar das enchentes ocorridas
há décadas anteriores, diz que “A população não tinha conhecimento de haver ocorrido
uma inundação maior que aquela que estava ocorrendo. Por falta de memória, por não
haver registros de ocorrência semelhantes, alguns foram tragados impiedosamente.”15
E
mais adiante, Vettoretti, recorrendo a importância de lembrar e aprender com os eventos
passados, sugere “[...] que a população se dispa da falsa idéia de que as enchentes não se
repetem, de vez que a história nos prova ao contrário.”16
Assim como Vettoretti, que
chama a atenção dos tubaronenses para que fiquem alerta a possíveis eventos futuros, o
pintor demonstra a mesma preocupação, pois deixa claro na matéria do Jornal de Santa
14
Zumblick retrata o drama da enchente. Jornal de Santa Catarina, 26.04.1974, s/p. Recorte de jornal,
encadernação do Arquivo Público de Tubarão.
15 VITTORETTI, Amadio, op. Cit., p. 230.
16 Idem, p. 248.
8
Catariana, já citado acima, que a tela é inestimável e não estava a venda, mas Willy,
depois de muitos anos, doa a peça ao Museu Willy Zumblick, inaugurado no ano 2000,
para apreciação dos visitantes e admiradores, e que permanece como um lembrete aos
observadores que, onde hoje é o Museu, no centro de Tubarão, um dia já foi tomado
pelas águas de 74.
Quanto aos interessados pela preservação da memória referente às vítimas e os
colaboradores para a recuperação da cidade, Willy parecia ser uma exceção. Mais uma
vez tomo emprestada a fala do conterrâneo de Zumblick, Amadio Vittoretti, pois para o
autor, ao tratar da ajuda vinda de várias partes do Brasil e do mundo, argumenta que “O
povo tubaronense lembra e fala imediatamente da catastrófica inundação e suas
consequências, no entanto poucos são os que tem na memória este monumental
exemplo de solidariedade humana.”17
Não há neste artigo a pretensão de questionar ou
aprovar o argumento de Amadio, no entanto, Willy Alfredo Zumblick parece pertencer
a este reduzido número de pessoas que se preocupavam com a preservação das
memórias sobre a enchente. O artista, autor das telas que representavam cenas da evento
ocorrido, e que pensava em organizar já em abril de 1974 uma passeata em
Florianópolis para agradecer aos que colaboravam com a recuperação de sua terra natal,
queria fazer ainda mais.
Assim como Zumblick, Irmoto Feuerschutte também manifestou seu desejo em
ver construído um monumento que simbolizasse a gratidão tubaronense aos que
socorreram sua cidade. Willy Zumblick, na função de presidente da Comissão
Municipal de Turismo, segundo a pequena nota de um periódico da época, toma a
iniciativa de liderar
[...] um movimento para a construção de um monumento aos ‘mortos e
benfeitores da enchente’, pois ‘nada nos impede de testemunharmos
publicamente o nosso reconhecimento, e a melhor maneira que concebemos
seria a construção de um monumento muito simples, sem requintes, própria
de uma cidade convalescente’.18
17
VITTORETTI, Amadio, op. Cit., 239.
18 “A cidade quer construir um monumento aos mortos”. Recorte de jornal anexado a uma
encadernação Recortes de jornal da enchente de 74, pertencente ao Arquivo Público de Tubarão.
9
A proposta da construção de um monumento que fizesse referência ao evento recém-
ocorrido, com o intuito de lembrar os vivos dos conterrâneos que sucumbiram e
homenagear os que socorreram o lugar, no entanto, formou opiniões divergentes. O
texto segue dizendo que “[...] alguns populares acham a idéia válida, mas desnecessária,
para o caso de ser posta em prática imediatamente. Já outros acham a idéia, além de
válida, absolutamente necessária, ‘pois as vítimas da enchente devem ser lembradas’”.
O projeto não foi levado adiante, e somente em 1983 foi construída, ao lado da catedral
da cidade, a “[...] Torre da Gratidão. Porém, pouca gente sabe o que representa. [...] Na
sua base, existe uma alegoria executada por Willy Zumblick, com três placas de bronze.
Na placa central, lemos: ‘RECONSTRUIR É VIVER’”.19
A torre, de 3,00m x 12,00m,
com o Cristo esculpido em alto relevo, feito de concreto, bronze e mosaico de cerâmica,
representa “[...] as vítimas da grande enchente que assolou a região de Tubarão no ano
de 1974 e a gratidão do povo tubaronense a todos que, solidários, contribuíram para
amenizar o flagelo.”20
Mas para o ex-prefeito, Irmoto Feuerschutte, em uma entrevista a
Agência AL, os créditos da recuperação de Tubarão pertencem ao governador Colombo
Salles e ao presidente Ernesto Geisel, e não se conforma “‘[...] até hoje de eles não
terem um marco erguido na cidade em sua homenagem’”.21
O interesse pela construção de uma memória pública, logo após a enchente,
provocou dúvidas e repercussão. Um evento ocorrido em uma comunidade pode
provocar, argumenta Alessandro Portelli22
, uma multiplicidade de memórias
fragmentadas, tanto subjetivas quanto oficiais, e estas, muitas vezes, podem entrar em
choque, pois o uso público da memória pode acabar desrespeitando a vontade de não
lembrar e manter o silêncio, como deseja alguns envolvidos. Quanto à relevância dada
Segundo uns dos funcionários dos funcionários da instituição, as encadernações eram montadas pela
Secretaria da educação. Infelizmente não foi mantido o nome do jornal.
19 VITTORETTI, Amadio, op. Cit., p. 239.
20 BEZ, Volnei Martins; ROCHA, Valmiré; ROCHA, Carlos. Op. Cit., p. 404.
21 Disponível em <http://agenciaal.alesc.sc.gov.br/index.php/noticia_single/irmoto-feuerschutte-o-
medico-esportista-que-virou-prefeito-de-tubaraeo> . Acesso em 19/07/2014.
22 PORTELLI, A. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política,
luto e senso comum. In: FERREIRA, M. de M., AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história
oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1998. p.103-130.
10
por Irmoto Feuerschutte à colaboração de Ernesto Geisel para recuperação da cidade,
esta se torna para o político, segundo Enzo Travesso, uma questão política e ética, ou
seja, um deve de memória, mas a visibilidade de certas memórias depende da força de
seus portadores.23
Esses interesses em comum com Willy, ou seja, pela preservação da memória e a
gratidão pela ajuda recebida, talvez sejam os motivos que justifiquem a oferta da pintura
de Zumblick ao presidente Geisel, entregue no momento da despedida do militar no ano
de 1976. Além da proximidade, por trabarelhem juntos no poder executivo municipal,
prefeito e presidente da Comissão Municipal de Turismo compartilhavam não só o
interesse em preservar as lembranças do evento que ocorrera em Tubarão, através de um
monumento que o simbolizasse, como ambos desejavam tornar público, e perene, os
agradecimentos por aqueles que contribuíram para a recuperação de Tubarão. Irmoto
Feuerschutte, muito provavelmente gostaria também que o presidente Geisel, a quem
era tão grato pelo auxílio e pela visita oficial, não esquecesse o reconhecimento da
população tubaronense. Nada mais significativo então do que presenteá-lo com uma
obra do renomado artista catarinense, reconhecido que entre os tubaronenses talvez
tenha sido um dos que mais se esforçou em tornar público sua gratulação pelo socorro
oferecido pelo governo militar. Trinta anos após a ocorrência das chuvas que tornaram
submersa a maior parte da cidade, Irmoto lançou um livro, Uma direção para a vida, no
qual relata diversos momentos provocados pela enchente, e não se esqueceu de unir, em
uma mesma frase, o grato artista e o presidente.
CONCLUSÃO.
Na hora da despedida, o prefeito agradecido presenteia o presidente do país, um
militar da ditadura, por todo auxílio prestado a sua cidade atingida pela enchente. A
minha dúvida era: por quais motivos Irmoto Feuerschutte e sua esposa ofertaram ao
general Ernesto Geisel justo uma obra de Willy Zumblick como uma forma de
agradecê-lo?
23
TRAVERSO, Enzo. Historia e memoria. Notas sobre un debate. In: FRANCO, Marina; LEVIN,
Florência. Historia reciente: perspectivas y desafios para un campo enconstrucción. Buenos Aires:
Paidós, 2007, p.67-96.
11
Após a releitura de alguns livros, artigos de jornais e obras de Willy que tratam
da enchente, pude perceber que, além da proximidade profissional entre o prefeito de
Tubarão e o artista/presidente da Comissão Municipal de Turismo, ambos possuíam
algumas idéias em comum quanto ao episódio da enchente de 1974 e os eventos que se
desenvolveram a partir de então, o que pode muito bem justificar a opção de Irmoto em
entregar uma tela de Zumblick a Geisel.
Alguns fatores tornam-se relevantes para entender a escolha. Vale lembrar que
o renomado artista catarinense Willy Zumblick, também reconhecido nacionalmente,
era tubaronense, o que tornaria a oferta peculiar. Além disso, junto com Irmoto, Willy
fez parte da equipe dos que prestaram auxílio às vítimas.
Por fim, Willy e Irmoto defendiam a importância de tornar monumental a
memória sobre a enchente de Tubarão. Zumblick falava em lembrar-se das vítimas e
agradecer as numerosas ajudas vindas de muitos lugares, e sem dúvida incluir o próprio
general Ernesto Geisel nas homenagens. Feuerschutte desejou um marco na cidade
dedicado ao militar, o que não ocorreu. No entanto, a gratidão, tanto a popular quanto a
do prefeito, foi simbolizada pela oferta da tela do artista, e Irmoto deu assim início ao
seu “dever de memória”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
BEZ, Volnei Martins; ROCHA, Valmiré; ROCHA, Carlos. Zumblick para sempre –
catálogo de obras – Florianópolis: Secco, 2010.
FEUERSCHUTE, Irmoto José. Uma direção para a vida: memórias da enchente de
Tubarão – 1974. Tubarão: Reuter Ed., 2004.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Lisboa: Ed. 70, 1994.
MACHADO, César do Canto. Tubarão 1974: fatos e relatos da grande enchente.
Tubarão: Ed. Unisul, 2005.
PORTELLI, A. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944):
mito, política, luto e senso comum. In: FERREIRA, M. de M., AMADO, Janaína
12
(orgs.). Usos & abusos da história oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1998.
p.103-130.
TRAVERSO, Enzo. Historia e memoria. Notas sobre un debate. In: FRANCO, Marina;
LEVIN, Florência. Historia reciente: perspectivas y desafios para un campo
enconstrucción. Buenos Aires: Paidós, 2007, p.67-96.
VITTORETTI, Amadio. História de Tubarão: das origens ao século XX. Tubarão:
Prefeitura Municipal de Tubarão, 1992.
JORNAIS.
Jornal de Santa Catarina, 26 de ab. 1974, s/p
Nosso Jornal, Tubarão, 29 de set. 1973. nº. 494, p8.
Nosso Jornal, Tubarão, 17 de Nov. 1973. nº. 501, p8.
O Estado, 23 de mar. 1975, s/p.
Encadernação Recortes de jornal da enchente de 74, pertencente ao Arquivo Público
de Tubarão.
SITES.
http://agenciaal.alesc.sc.gov.br/index.php/noticia_single/irmoto-feuerschutte-o-medico-
esportista-que-virou-prefeito-de-tubaraeo
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