PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Amanda Bastos Mareschi Aggio
O espectador digital como trabalhador do olhar capitalizado nos ambientes
midiáticos da Internet.
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
São Paulo
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programas de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
Amanda Bastos Mareschi Aggio
O espectador digital como trabalhador do olhar capitalizado nos ambientes
midiáticos da Internet.
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre
em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do
Prof. Dr. Rogério da Costa.
São Paulo
2014
ATA DE DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Amanda Bastos Mareschi Aggio
O ESPECTADOR DIGITAL COMO TRABALHADOR DO OLHAR CAPITALIZADO
NOS AMBIENTES MIDIÁTICOS DA INTERNET.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
São Paulo, ____ de _____________ de 2014.
AGRADECIMENTOS
O processo de estudo, dedicação e realização deste trabalho foi engrandecedor em
todos os setores da minha vida. A cada aula vista, a cada livro lido, a cada conversa feita, algo
novo e desafiador em mim se instalou. Cada um que está aqui relacionado mudou, de alguma
forma, minhas verdades e minhas certezas. Fez-me pensar, fez-me melhor. Sou eternamente
grata a:
Carlo Bulgarelli
Gabriela Aggio Bulgarelli
Pietro Aggio Bulgarelli
Raphael B. M. Aggio
Paulina Giraldo
Rosana Bastos
Sérgio M. Aggio
Ronaldo Bastos
Ademir Bulgarelli
Maria Rosa Bulgarelli
Sharine M. C. Melo
Diana Huh
Manoel Paulo Nóbrega da Silva
Professores inesquecíveis:
Prof. Dr. Aidar Prado, com suas considerações que mudaram o rumo deste trabalho;
Prof. Dr. Eugênio Bucci, o acaso que viria a ser o teórico fundamental da minha dissertação;
Prof. Dr. Eugênio Trivinho, com sua paixão pela Comunicação que será sempre lembrada;
Prof. Dr. Jorge A. Vieira, um ser humano admirável que tive o privilégio de conhecer;
Prof.a Dr.
a Lucilene Cury, sábia e justiceira, amiga querida;
Prof.a Dr.
a Pollyana Ferrari, exemplo de força e dedicação;
Prof. Dr. Rogério da Costa, por me apresentar caminhos que ampliaram o horizonte da minha
pesquisa.
AGGIO, Amanda Bastos Mareschi. O espectador digital como trabalhador do olhar
capitalizado nos ambientes midiáticos da Internet. São Paulo, 2014. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica / PEPG-
COS, PUC-SP, São Paulo.
RESUMO
O objetivo principal desta pesquisa é investigar dispositivos midiáticos na Internet onde mecanismos
biopolíticos posicionam o espectador digital como parte de um sistema que capitaliza o seu
olhar, depositando a partir dele certo valor monetário no material visto. Para responder ao
problema, a hipótese elaborada sugere que esse jogo de forças que sustenta o modus operandi
de algumas mídias de representação na Web convoca o espectador digital a ser trabalhador do
olhar e o remunera com a comprovação da sua existência. A fim de compreender o que leva o
espectador a manter-se nessa posição de trabalhador do olhar diante dos dispositivos de
quantificação de visualizações (views) disponíveis em algumas mídias, a pesquisa partiu do
estudo de casos que exemplificam esse jogo de forças o qual recai eventualmente sobre ele. A
apresentação de como funcionam algumas ferramentas digitais de entretenimento levantou
questões como: a interatividade proporcionada pelas novas tecnologias digitais resultou na
superação do estigma de passividade do espectador tradicional? Com o intuito de evitar o
discurso dogmático sobre a suposta passividade do espectador, foi necessário dedicar um
capítulo de pesquisa à compreensão do sistema de pensamento que sustenta o embate entre
passividade e atividade. A partir do livro O espectador emancipado, de Jacques Rancière,
identificou-se a persistência do pretensamente superado pensamento crítico tradicional - em
sua forma invertida - nos dispositivos midiáticos contemporâneos. A conversa teórica entre
Rancière e Didi-Huberman revelou pontos de conformidade entre suas teorias, como a
necessidade de ir além do entendimento da imagem e do espectador e de compreender o
funcionamento da máquina. Essa demanda pelo esclarecimento da forma de operar dos
dispositivos foi satisfeita pelo estudo da biopolítica foucaultiana, levando esta pesquisa ao
encontro dos conceitos que lhe ofereceram a coerência necessária para finalizá-la: a) a
sujeição (FOUCAULT) como aquilo que permite ao espectador a construção de sua
identidade, e b) o olhar como trabalho (BUCCI) enquanto o capital deslocado para o corpo
competente do homo oeconomicus.
Palavras-chave: Biopolítica. Capitalização do olhar. Espectador digital. Trabalhador do
olhar.
AGGIO, Amanda Bastos Mareschi Aggio. The digital spectator as viewing worker
capitalized in the Internet's media environment. Sao Paulo, 2014. Master’s degree – Post-
Graduate Program of Semiotics and Communication Studies / PEPG-COS, PUC-SP, Sao
Paulo.
ABSTRACT
This thesis aims to study the media devices in the Internet, where biopolitcs tools put the
digital spectator as part of a system which capitalize on his views. The hypothesis proposed
here suggests that games of power maintain the modus operandi of the representation media
in the Web and encourage the digital spectator to be a viewing worker by remunerating him as
long as there is proof of his existence. Expecting to understand what maintains the spectator
in this function of viewing worker, this research used case studies to exemplify these games
of power that eventually falls on him. Some questions emerged when studying how
some entertainment tools work: how the interactivity offered by new digital technologies have
resulted in overcoming the stigma of passivity of the traditional spectator? In order to avoid
the dogmatic discourse on the supposed passivity of the spectator, it was necessary to devote a
chapter of research to understand the system of thought that maintains the opposition between
passivity and activity. From the book The emancipated spectator, Jacques Rancière, it was
identified in contemporary media devices the perpetuation of the
supposedly extinct traditional critical thinking, but in its inverted form. The theoretical
conversation between Rancière and Didi-Huberman revealed points of agreement between
their theories, such as the need to go beyond the understanding of image and viewer by
understanding the operation of the machine. This demand for clarifying how to operate
devices was met through the study of Foucault's biopolitics, which led to concepts that offered
the ultimate coherence: a) the subjection (Foucault) to others allowing the viewer to the
construction of his identity; b) viewing as work (BUCCI) as the capital shifted to the
competent body of homo economics.
Key-words: Biopolitics. Viewing capitalization. Digital spectator. Viewing worker.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Dias para 100 milhões de visualizações ................................................................... 13
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Reação de Justin Bieber ao vídeo de Kony. Fonte:
https://twitter.com/justinbieber/status/177640383755468800 ................................................. 14
Figura 2: O texto complementando uma imagem que também o complementa ...................... 17
Figura 3: a imagem complementando um texto que já diz o suficiente ................................... 17
Figura 4: O texto como imagem ............................................................................................... 17
Figura 5: Home page do Youtube. Acessado em 30 de setembro de 2013 .............................. 19
Figura 6: Outros Tempos (São Paulo, KOSSOY, 1970) da série Viagem pelo fantástico ....... 26
Figura 7: Ensaio fotográfico para o site EGO, publicado em 30/10/2012 ............................... 27
Figura 8: Ensaio fotográfico para o site EGO, publicado em 30/10/2012 ............................... 27
Figura 9: Montagem feita sobre a fotografia “A Guerra do Vietnan” ...................................... 28
Figura 10: Montagem feita sobre a fotografia do desastre aéreo ocorrido .............................. 28
Figura 11: Josephine Meckseper, Sem título, 2005 .................................................................. 30
Figura 12: Gottfried Helnwein (2007) The Disaster of War 19 .............................................. 33
Figura 13: Gottfried Helnwein (2003), American Prayer......................................................... 33
Figura 14: Figura : Sophie Ristelhueber, WB #3, 2005 ........................................................... 38
Figura 15: Fonte (site googleglass.com, 2014) ........................................................................ 64
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 11
1. O OLHAR NA PRÁTICA ...................................................................................... 13
1.1 Ver para crer ......................................................................................................... 13
1.2 Broadcast yourself ................................................................................................ 16
2. O ESPECTADOR E A SUA EMANCIPAÇÃO ..................................................... 22
2.1 Olhar também é agir ............................................................................................. 23
2.2 A teoria crítica e a política nas produções artísticas contemporâneas ................... 30
2.3 Acusar, não. Compreender os acusadores ............................................................. 34
2.4 A pensatividade da imagem .................................................................................. 39
2.5 Entre .................................................................................................................... 40
3. O TRABALHADOR DO OLHAR: INFLUÊNCIAS BIOPOLÍTICAS ................ 46
3.1 A competência do olhar ........................................................................................ 46
3.2 O ambiente que originou a Biopolítica de Foucault .............................................. 49
3.3 Biopolítica ............................................................................................................ 52
3.4 O espectador digital como trabalhador do olhar. A existência como remuneração.56
CONCLUSÃO ............................................................................................................... 61
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 65
11
INTRODUÇÃO
O estudo aqui delimitado buscou o entendimento do espectador inserido nos ambientes
midiáticos de entretenimento na Internet1, em que ferramentas de contabilização (views)
inauguram uma forma de capitalização do olhar.
A estrutura argumentativa organiza-se em três pontos: 1) o olhar na prática; 2) a
emancipação do espectador, e 3) o trabalhador do olhar: influências biopolíticas.
Com o intuito de situar o trabalho no ambiente de entretenimento digital
contemporâneo e em suas práticas, o primeiro capítulo apresentará de forma concisa o modus
operandi de algumas ferramentas de representação que funcionam como mecanismos
biopolíticos de capitalização do olhar. A busca por exemplificar situações nas mídias digitais
da Web que demonstrem a supremacia da imagem diante das demais formas de comunicação
é uma preocupação nesse capítulo. O entendimento de mecanismos do site de entretenimento
YouTube traz à baila questões como: Qual o papel do espectador nos processos de
rentabilidade dessa mídia? Diante de tecnologias que possibilitam a interatividade do
espectador, como fica o estigma de passividade carregado pelo espectador tradicional até
então? São essas questões que dão o rumo do segundo capítulo desta pesquisa.
Uma análise do espectador e da tradição crítica que o ambienta dá forma ao segundo
capítulo a partir do estudo do livro O espectador emancipado, do filósofo Jacques Rancière.
O autor oferece um estudo dedicado às condições filosóficas que permitiram o entendimento
do espectador como passivo. Ele demonstra de que forma os pensamentos que supostamente
objetivam retirar o espectador da inatividade apenas a reforçam. Rancière também apresenta
uma proposta de como deve ser concebida uma imagem sem pretensões em relação ao
entendimento do espectador, uma imagem que o deixe livre para criar a sua rede de
pensamentos a respeito da representação que o impactou.
Ainda no segundo capítulo, uma conversa teórica com o filósofo e crítico de arte
Georges Didi-Huberman explicita ainda mais os conceitos de Rancière, levando a uma
reflexão comparativa sobre os pontos principais dos estudos de ambos. O capítulo desemboca
1 Optou-se neste estudo por utilizar a palavra Internet em caixa alta por referir-se a Internet Global centralizadora
de todas as internets (redes interligadas de computadores).
12
na importância dada pelos dois filósofos ao estudo da instância dos dispositivos de
representação. Segundo os autores, para que se entenda o espectador, deve-se ir além da pura
análise das imagens que o rodeiam. É preciso compreender os mecanismos de poder que
regem os dispositivos, os quais determinam rupturas de espaço e tempo, assim como a
distribuição dos corpos.
O terceiro e último capítulo inicia-se com o historiador da arte Jonathan Crary, que
fará a transição entre os estudos do olhar espectador para a Biopolítica. Em seu livro Técnicas
do observador: visão e modernidade no século XIX, ele analisa o atual estatuto do olhar por
meio dos processos modernos que concebem a visão contemporânea. O autor aponta a
passagem da visão tida como algo estritamente filosófico para a concepção da visão como
algo também fisiológico. Esse redirecionamento da concepção dos sentidos humanos como
algo unificado para os estudos fisiológicos que explicavam os sentidos humanos de forma
isolada (o tato, por exemplo, era entendido inicialmente como parte do processo de visão),
permitiu o surgimento de tecnologias fundamentalmente direcionadas ao olhar. A eclosão das
mídias de representação suscita questões acerca da relação do espectador com os novos
procedimentos sobre o corpo e os novos mecanismos de poder. A imagem e o espectador
tornam-se importantes componentes do que Crary chama de uma “nova economia cultural de
valor e troca.” (2012, p. 22).
A fim de entender esses novos mecanismos de poder que surgem com a junção dos
estudos filosóficos e fisiológicos, esta dissertação parte para os estudos da Biopolítica
foucaultiana. A leitura do livro “O nascimento da biopolítica”, do filósofo Michel Foucault,
trouxe à tona condições políticas e econômicas que colaboraram para o surgimento de uma
forma sutil de controle do mercado e do social. A partir dos conceitos desenvolvidos por
Foucault, que consideram o corpo como gerador de renda ou o capital-compétence do
trabalhador contemporâneo, chega-se à teoria do olhar como trabalho, do estudioso brasileiro
Eugênio Bucci. Esses autores, entre outros que reforçam tais teorias, embasam e dão forma ao
conceito final desta dissertação: o espectador digital como trabalhador do olhar.
13
1. O OLHAR NA PRÁTICA
1.1 Ver para crer
Quando o vídeo da campanha Kony 2012 foi disponibilizado na Internet pela ONG
estadunidense Invisible Children, as pessoas puderam assistir às imagens reais, poderosas,
editadas de forma a atingir de maneira exemplar o emocional dos espectadores2. Com o
objetivo de denunciar o líder de uma guerrilha ugandense acusado pelo Tribunal Penal
Internacional de crimes contra a humanidade, o vídeo atingiu a incrível marca de 52 milhões
de views em apenas quatro dias após seu lançamento (5 de março de 2012). Seis dias mais
tarde, 100 milhões de views apareciam no rodapé do vídeo disponibilizado no YouTube. O
vídeo superou fenômenos midiáticos como Susan Boyle e Lady Gaga3.
Tabela 1: Dias para 100 milhões de visualizações
O vídeo foi divulgado, até mesmo por celebridades, de forma imediata:
2 Vídeo Kony 2012. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Y4MnpzG5Sqc>. Acesso em: 03 abr.
2014.
3Visible Measures. Disponível em: <http://corp.visiblemeasures.com/news-and-events/blog/bid/79626/Update-
Kony-Social-Video-Campaign-Tops-100-Million-Views>. Acesso em: 03 abr. 2014.
14
Figura 1: Reação de Justin Bieber ao vídeo de Kony. Fonte:
https://twitter.com/justinbieber/status/177640383755468800
No entanto, a Invisible Children recebeu da Charity Navigator, entidade que fiscaliza
as ONGs nos Estados Unidos, apenas duas de quatro estrelas possíveis por transparência
financeira. A ONG é acusada de concentrar seus gastos em salários, viagens e na realização
de vídeos. Além disso, de acordo com historiadores políticos, há um problema sério em
relação ao timing do que foi retratado na campanha. Em entrevista a uma renomada rede de
televisão brasileira, que também investigou o caso, o professor de Direito Peter Rosenblum,
da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, afirma que a situação mostrada no vídeo
realmente existiu, mas há dez anos: “Eu ficaria emocionado se isso tivesse acontecido uma
década atrás – quando Kony estava cometendo atrocidades. É um vídeo poderoso, uma
história poderosa. Mas há um problema relacionado ao tempo4”.
O vídeo causou revolta entre ugandenses que alegam tratar-se de uma causa
praticamente resolvida pelas autoridades do país. Para a ministra da Informação de Uganda, o
vídeo é uma tentativa distorcida de descrever os conflitos na região e apresenta seu povo
como incapaz de resolver seus problemas políticos e sociais5. Até mesmo um documento
4 Denúncia contada no vídeo Kony 2012 aconteceu há 10 anos. Disponível em:
<http://g1.globo.com/fantastico/quadros/detetive-virtual/noticia/2012/03/denuncia-contada-no-video-kony-2012-
aconteceu-ha-10-anos.html>. Acesso em: 03 abr. 2014.
5 Uganda intensifica campanha contra vídeo viral sobre Joseph Kony. Disponível em:
<http://tecnologia.terra.com.br/internet/uganda-intensifica-campanha-contra-video-viral-sobre-joseph-
kony,b4f9fe32cdbda310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 03 abr. 2014.
15
oficial feito pela Africa Studies Association, React and Respond: The Phenomenon of Kony
20126, foi elaborado como forma de oferecer ao público uma resposta ao material divulgado.
Em sua defesa, a ONG Invisible Children publicou em seu site uma resposta às
críticas: “Nós estamos fazendo o nosso melhor para sermos mais inclusivos, transparentes e
factuais possível. Nós construímos esta organização com a filosofia de 'ver para crer7' em
mente, e é por isso que somos uma organização baseada na mídia8”.
A questão interessante nesse caso não é o grau de veracidade do vídeo divulgado, mas
a rapidez com que esse material foi visualizado por um grande público e a forma com que ele
foi replicado imediatamente. Ao refletir sobre esse acontecimento, algumas direções de
entendimento tornam-se possíveis:
a) O impulso oferecido pelas novas ferramentas digitais de representação estética na
renovação de um espectador antes tido como passivo;
b) A consolidação do espectador como parte importante de um sistema de
capitalização nas mídias virtuais: quanto mais olhares aprovando o produto, maior o
seu valor;
c) A declaração de defesa da Invisible Children diz que a ONG se baseia na filosofia
do “ver para crer” a fim de firmar seu posicionamento de produtor midiático ao
realizar vídeos para a divulgação da causa que defende. Aqui se tem o
posicionamento do olhar tido como realidade: aquilo que digo ter visto dificilmente
é contradito. Talvez essa relação eficaz das imagens com o que chamamos de real
implique o poder hegemônico pictórico na contemporaneidade. Não que tal relação
não se tenha estabelecido com essa elevação da imagem às demais formas de
informação em tempos anteriores, mas a propagação atual de ambientes midiáticos
que propõem a comunicação por meio de imagens colaborou de certa forma para a
consolidação dessa situação de supremacia. Dificilmente uma carta de apoio teria o
mesmo alcance do vídeo citado neste capítulo.
6 Carta-resposta da Africa Studies Association. Disponível em: <http://concernedafricascholars.org/wp-
content/uploads/2012/04/Kony-React-Respond.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2014.
7 Grifo meu.
8 Vídeo pedindo prisão de líder guerrilheiro de Uganda vira sucesso na internet. Disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/celular/noticias/2012/03/120308_uganda_video_rs.shtml>. Acesso em 03
abr. 2014.
16
1.2 Broadcast yourself
Broadcast yourself, slogan utilizado pelo site YouTube, coloca de forma clara o seu
caráter biopolítico no sentido do corpo como capital (abordaremos o conceito de biopolítica
mais atentamente no capítulo III). Nesse caso, o foco do conceito é a possibilidade comum a
todos os seus espectadores de promover o seu trabalho com um amplo alcance de público.
Complementando o propósito de angariar produtores de entretenimento, o YouTube tem como
base de sustentação financeira e objetivo central o aumento de acessos aos vídeos
disponibilizados no seu ambiente de rede. São os frequentadores do site que possibilitam a
sua manutenção por meio de uma ferramenta que contabiliza visualizações e completa o
sistema que capitaliza esse formato de negócio.
A proliferação de aplicativos que têm como objeto central a imagem e as
possibilidades de interatividade que ela apresenta traz à tona a centralidade do olhar na
relação social contemporânea. O aplicativo gratuito Instagram permite aos seus usuários fazer
um registro fotográfico, aplicar uma grande variedade de filtros sobre a imagem e
compartilhar a foto em redes sociais. Trata-se de um programa basicamente para fotos. Em
2012, o Instagram foi comprado pela rede social Facebook por mais de um bilhão de dólares9.
Com 30 milhões de usuários na ocasião da compra e um crescimento promissor, o aplicativo
alcançou o primeiro lugar no ranking de aplicativos mais requisitados na App Store (loja
virtual da Apple) em abril de 201210
. Também utilizado para arquivar, classificar e gerenciar
imagens, conhecidas como pins, o site Pinterest obteve um total de 11,7 milhões de usuários
únicos em janeiro de 2012, tornando-se o mais rápido site da história a quebrar a marca de
mais de 10 milhões de visitas únicas11
. Já no conhecido Facebook, uma rápida amostragem
realizada na página principal de qualquer usuário possibilita a instantânea constatação de que
o uso de imagens caracteriza praticamente todas as postagens feitas nesse site. Nele, a escrita
9 Facebook compra Instagram por US$ 1 bilhão em dinheiro e ações. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/tecnologia/facebook-compra-instagram-por-us-1-bilhao-em-dinheiro-acoes-4530157>.
Acesso em: 01 out. 2013.
10 Instagram fica em 1º lugar na App Store como aplicativo gratuito mais baixado, pela primeira vez. Disponível
em: <http://oglobo.globo.com/tecnologia/instagram-fica-em-1-lugar-na-app-store-como-aplicativo-gratuito-
mais-baixado-pela-primeira-vez-4617709>. Acesso em: 01 out. 2013.
11 Pinterest Hits 10 Million U.S. Monthly Uniques Faster Than Any Standalone Site Ever. Disponível em:
<http://techcrunch.com/2012/02/07/pinterest-monthly-uniques/>. Acesso em: 03 abr. 2014.
17
entra como elemento visual na imagem ou como o seu complemento, ou até mesmo a
caracterização do texto como imagem por meio do uso de fontes desenhadas ou fotografia das
palavras. Apesar de o campo principal para inserção de dados nessa rede social se configurar
como um espaço de elementos textuais, a maioria dos seus usuários opta por fazer o upload de
alguma imagem como forma de se comunicar com o seu grupo de “amigos”.
Figura 2: O texto complementando
uma imagem que também o
complementa
Figura 3: a imagem
complementando um texto que já
diz o suficiente
Figura 4: O texto como imagem
Apesar da disponibilidade de certa variedade de aplicativos que trabalham com
imagens na Internet, analisar exclusivamente o canal de mídia YouTube levanta desafios mais
coerentes com o caminho de pesquisa que se desenrolará neste estudo. No YouTube, o seu
frequentador pode ser, desde o princípio, exclusivamente espectador, se por isso optar. Para
cada vídeo inserido nesse canal, uma ferramenta realiza a contagem de vezes que ele foi
visualizado pelos seus frequentadores. Dessa forma, apenas o olhar é contabilizado nos views
do YouTube, diferente de algumas ferramentas digitais em que outros sentidos são
mensurados (alguns mecanismos digitais, por exemplo, contabilizam a sensação do usuário
em olhar aquilo que lhe é apresentado por meio de ferramentas como “curtir” e
“compartilhar”12
). O view é tido como moeda no Youtube: ele determina quantias de
12
Essas ferramentas não influenciam, ao menos diretamente, os investimentos publicitários no Youtube. Esse site
de entretenimento não realiza processos de verificação para essas ferramentas como faz com a view. Isso é
constatável quando vemos um vídeo com os views congelados em 300 visualizações com mais de 5 mil likes.
Fonte: Facebook, acesso em 25
de setembro de 2013
Fonte: Facebook, acesso em 25
de setembro de 2013
Fonte: Facebook, acesso em 25
de setembro de 2013
18
investimento em publicidade. Assim, há uma atenção redobrada por parte do site a essa
ferramenta. A partir de um número de corte (no caso do Youtube a análise se inicia a partir de
300 views), cada novo acesso passa por uma análise estatística que determinará se aquele click
é válido ou se houve alguma fraude. O algoritmo de contabilizaçãos dos views no Youtube não é
divulgado pelo site. A verificação provavelmente deve ser feita pelo browser, o IP, a região
geográfica e o histórico de navegação do usuário arquivado pelo Youtube13
.
O funcionamento do YouTube também se assemelha ao modus operandi da TV a cabo
e suas centenas de canais. O zapping atualizou-se como click no YouTube. Diante de uma
interatividade básica na Internet, proporcionada pelas inovações da Web 2.0 que facilitam a
navegação do usuário na rede de maneira que haja pouco esforço para encontrar o que deseja
no ambiente digital, clicar, assim como zapear, consiste apenas em ajustar o aparato
tecnológico às condições ideais para o espectador. Na home page do YouTube há a seção
“Recomendados” e “Mais Populares”. Essa área leva o visitante aos produtos selecionados de
acordo com suas buscas anteriores e com o número de acessos por parte do público em geral.
Trata-se dos princípios antropológicos de classificação da televisão aplicados ao contexto
digital: a audiência.
13
O vídeo “Why youtube freezers at 301 views” pareceu ser a fonte mais confiável disponível na Internet para
entender o funcionamento da view. Nele, Ted Hamilton, um gerente de produto do Youtube Analytics, apresenta
declarações a respeito da constituição dessa ferramenta, apesar de admitir tratar-se de um segredo da Empresa.
Hamilton declara: “A view should be a video playback requested by an actually user... We think views as a
currency and for we have to make an effort to eliminate counterfeit views”, disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=oIkhgagvrjI>. Acessado em 22 de abr. de 2014.
19
Figura 5: Home page do Youtube. Acessado em 30 de setembro de 2013
A audiência do YouTube em 2013 correspondeu a 1 bilhão de espectadores por mês, os
quais consomem 6 bilhões de horas por mês dos vídeos divulgados nesse ambiente. O número
de views passou de 62 bilhões em 2010 para 130 bilhões em 201314
. Com a instabilidade da
audiência da televisão tradicional15
, o YouTube atrai a produção artística profissional que
busca conectar-se com seu público. Essa profissionalização dos produtos YouTube transforma
o site de uma coleção caótica de vídeos e hits virais em um destino legítimo de vídeos
profissionais que se organizam em contas específicas denominadas “canais”. Devidamente
cadastrado em um canal, o espectador receberá qualquer tipo de atualização realizada pelo
artista que escolheu acompanhar.
14
Miguel Helft, Fortune Magazine, 25 de julho de 2013: How YouTube changes everything. Disponível em:
<http://money.cnn.com/2013/07/25/technology/youtube-google.pr.fortune/ >. Acesso em: 03 abr. 2014.
15 Ricardo Feltrin, 10 de abril de 2012: Ibope aponta a perda de 7% dos televisores ligados em 2012 em relação
ao ano anterior. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ooops/ultimas-noticias/2012/04/10/tv-aberta-tem-
fuga-inedita-de-telespectadores-veja-os-numeros.htm>. Acesso em: 03 abr. 2014.
20
Os sites de compartilhamento de vídeos provavelmente não substituirão a TV, mas
mudarão a forma como se consome esse tipo de produto. Na primeira era do vídeo de
entretenimento, havia a TV com um punhado de canais; em um segundo momento, a TV a
cabo com centenas de canais. Hoje, a Web oferece dezenas de milhares de canais
customizados para cada perfil de audiência. Alguns canais do YouTube possuem um número
de audiência maior que vários canais medianos na TV a cabo e atraem investidores e
anunciantes. Machinima, um canal do YouTube voltado para os fãs de games (homens entre
18 e 34 anos), tem 11 milhões de assinantes e seus vídeos publicados atingem, no total, cerca
de 2 bilhões de views por mês16
. Os anunciantes hoje pagam mais, em muitos casos bem mais,
pela publicidade realizada na TV do que num site de compartilhamento de vídeos. Porém,
essa diferença tende a cair em função do crescimento da audiência de entretenimento na
Web17
.
Nesse contexto, o espectador na Internet, o qual será chamado doravante de
espectador digital, passa a ser também – mesmo que de forma básica – um trabalhador desse
sistema virtual de entretenimento a partir do instante em que direciona o seu olhar a um
produto imagético digital ao qual está agregada uma ferramenta que quantifica esse gesto por
meio do click. Esse click, no caso, deve ter como resultado a visualização de uma imagem
e/ou vídeo. De fato, encontramos essa característica “básica” do olhar como trabalho
(BUCCI, 2010) nos views do YouTube, mas essa análise pode ser aplicada a qualquer outro
site que trabalhe com uma ferramenta de funcionamento similar à desse site de
entretenimento.
Essa condição de trabalhador do olhar que recai eventualmente sobre o espectador
digital, proporciona uma possibilidade política diferente daquela oferecida pelos aparatos
midiáticos anteriores. O espectador digital tem o seu espaço para atuação dentro desse sistema
midiático na Internet. Porém, essa instância em que o espectador pode de alguma forma
16
Miguel Helft, Fortune Magazine, 25 de julho de 2013: How YouTube changes everything. Disponível em:
<http://money.cnn.com/2013/07/25/technology/youtube-google.pr.fortune/ >. Acesso em: 03 abr. 2014.
17 Publicidade na Web Irá crescer mais de 18% por ano no Brasil, diz PwC. Disponivel em:
<http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2013/06/publicidade-na-web-ira-crescer-mais-de-18-
por-ano-no-brasil-diz-pwc.html>. Acesso em: 20 de abr. 2014.
21
contribuir com o que é produzido na mídia possui regras normativas estabelecidas pelo site e a
adequação a elas é condição fundamental para que o espectador possa expressar-se nesse
ambiente. Há, então, uma liberdade determinada sobre leis estabelecidas. O espectador digital,
antes estigmatizado como passivo, agora tem certa liberdade de expressão. É fundamental
questionar a visão crítica tradicional que suportava o espectador como passivo para podermos
compreender como trabalha o espectador atual, o espectador digital.
22
2. O ESPECTADOR E A SUA EMANCIPAÇÃO
espectador \ô\ - Houaiss
substantivo masculino ( 1677)
1 aquele que assiste a um espetáculo
‹ os e. aplaudiram calorosamente ›
2 aquele que presencia um fato; testemunha, presente
‹ o crime foi na rua, em meio a dezenas de e. ›
3 aquele que observa ou examina (algo); observador.
Do lado oposto ao da tradicional Teoria Crítica18
, que denuncia a passividade do
espectador e o distanciamento de si causado pelas imagens, a proposta aqui é analisar, a partir
da obra O espectador emancipado, do filósofo francês Jaccques Rancière, um outro
entendimento sobre o espectador que hoje está inserido em um renovado ambiente midiático.
O livro de Rancière é elaborado em grande parte sobre exemplos da arte no seu sentido mais
tradicional e formal, a arte aceita como tal pela sociedade, a arte dos museus e centros de
exposições oficiais. Mas ele não se coloca imparcial nesse sentido e abre espaço, no último
capítulo do livro, para falar da visão de Walter Benjamin sobre a fotografia como algo
transgressor e que rompia com a ideia do único na arte, diferente de Charles Baudelaire, que
via a fotografia como algo que minguaria o poder da imaginação criadora e da produção
artística. Rancière contrapõe ambos os autores para citar novas formas de arte que estão nos
museus contemporâneos e que não seguem nenhum caminho estético tradicional. A partir da
análise de Roland Barthes sobre a fotografia de Alexander Gardner, Rancière entende que há
um campo fecundo nos estudos que fluem entre a arte e a não-arte: “A fotografia de Lewis
Payne não é do domínio da arte, mas permite-nos compreender outras fotografias que sejam
intencionalmente obras de arte, ou apresentem simultaneamente caracterização social e
indeterminação estética.” (p. 110). É dessa forma, nas últimas páginas da leitura, que Rancière
introduz a ideia de “imagem pensativa”, à qual chegaremos ao final deste capítulo. Esse
conceito foi elaborado pelo autor para dar forma a essa zona de indeterminação entre a arte e a
não-arte. Sobre essa proposta, esta pesquisa tomou a liberdade de analisar casos de trabalho
estético de participantes da mídia na Internet, em especial as imagens que consideram a
18
A Teoria Crítica se definiu pela orientação ao comportamento crítico, a emancipação intelectual e o
diagnóstico do tempo presente (HORKEIMER, 1930), diferentemente da Teoria Tradicional que, sobre uma
visão empírica, se concentrava em compreender o mundo fenomênico. Baseado no artigo de Max Horkheimer
(1930), Teoria Tradicional e Teoria Crítica.
23
participação do espectador de alguma forma evidente. Passo essencial para chegar ao capítulo
seguinte: “O trabalhador do olhar: influências biopolíticas”.
2.1 Olhar também é agir
Ser espectador é um mal. Olhar opõe-se a conhecer. O espectador, diante da aparência,
ignora a sua forma de produção e a realidade que ela encoberta. Além disso, olhar é o
contrário de agir. Ser espectador é ser inerte e passivo diante daquilo que se olha. Portanto, o
espectador é privado de conhecer e impossibilitado de agir. Sobre esse diagnóstico, o filósofo
Jacques Rancière faz uma análise histórica sobre o papel do espectador a partir do teatro. A
proposta do teatro, por exemplo, seria algo absolutamente ruim, uma cena de ilusão e
passividade que deveria ser eliminada em proveito daquilo que ela impede: o conhecimento e
a ação. Com base nos conceitos de Platão, o teatro é o lugar onde ignorantes são convidados a
ver sofredores. Em Platão, a cena teatral promove um páthos: a doença do olhar subjugado
por sombras. A comunidade correta, portanto, seria aquela que não aceita a mediação teatral.
De acordo com Rancière, essa inversão teve duas soluções antagônicas. A primeira seria
apresentar a esse espectador um espetáculo estranho, inabitual, cujo sentido ele precise
encontrar. Dessa forma, ele teria que assumir um papel de experimentador científico, que
examina algo em busca de suas causas. A segunda fórmula consiste em justamente diminuir
essa distância reflexiva e retirá-lo da posição de observador ao colocá-lo de alguma forma
dentro da ação teatral.
Tais são as atitudes fundamentais que resumem o teatro épico de Brecht e o teatro da
crueldade de Artaud. Para um, o espectador deve ganhar distância; para o outro,
deve perder toda e qualquer distância. Para um, deve refinar o olhar; para o outro,
deve abdicar da própria posição de observador. (RANCIÈRE, 2012, p. 10).
As iniciativas modernas de reforma do teatro o fizeram como um lugar onde o
espectador passivo devia transformar-se em um corpo ativo. Porém, para Rancière, o teatro é
na essência original uma forma comunitária exemplar: “implica uma ideia da comunidade
como presença para si, oposta à distância da representação” (2012, p. 11). O teatro pode ser
associado a uma ideia de coletividade viva, uma forma de constituição estética (constituição
sensível) da coletividade. Pensar o teatro configurado na oposição de uma coletividade viva à
ilusão do espetáculo leva a questões sobre a crítica do espetáculo de Guy Debord (1997).
24
Segundo Rancière, a essência do espetáculo é para Debord a exterioridade: “O espetáculo é o
reino da visão, e a visão é exterioridade, ou seja, desapossamento de si” (2012, p. 12). A
fórmula breve de Debord “Quanto mais se contempla, menos se é” (DEBORD apud
RANCIÈRE, 2012, p. 12) denuncia a contemplação da aparência separada de sua verdade e o
sofrimento produzido por essa separação. O princípio da crítica debordiana está na visão da
verdade como não-separação. Rancière sugere reexaminar o conjunto de pressupostos que
sustentam essa possibilidade, analisando o jogo de equivalências e oposições que lhe dão
corpo: equivalências entre público teatral e comunidade, entre olhar e passividade, entre
exterioridade e separação, mediação e simulacro; oposições entre coletivo e individual,
imagem e realidade viva, atividade e passividade, posse de si e alienação. Para ele, esse jogo
de equivalências e oposições leva a uma oposição maior de culpa e redenção. O teatro se
culpa de tornar os espectadores passivos e entende como missão inverter essa situação
ensinando aos espectadores os meios de deixarem de ser espectadores. Nesse caso, o teatro se
coloca como agente da sua própria supressão.
Rancière apresenta as descrições e propostas de emancipação intelectual como forma
de reformular a questão descrita acima. Para o autor, essa mediação teatral que busca se
autoeliminar é a lógica da relação pedagógica:
... o papel atribuído ao mestre é o de eliminar a distância entre seu saber e a
ignorância do ignorante. Suas lições e os exercícios que ele dá têm a finalidade de
reduzir progressivamente o abismo que os separa. Infelizmente, ele só pode reduzir a
distância com a condição de recriá-la incessantemente. Para substituir a ignorância
pelo saber, ele deve sempre dar um passo à frente e repor entre si e o aluno uma
ignorância nova. (Ibid., 2012, p. 13).
O mestre não é apenas aquele que tem o saber ignorado pelo ignorante, mas aquele
que sabe como e quando torná-lo objeto de saber. Não há ignorante que nada saiba, ele
sempre terá uma bagagem de aprendizagem. Para o mestre, esse saber é saber de ignorante.
De acordo com Rancière, o que sempre faltará ao aluno é o saber da ignorância, o
reconhecimento da lacuna exata que existe entre o saber e a ignorância.
O que a educação formal ensina é que a ignorância não é um saber menor, mas o
oposto do saber. Coloca dessa forma o saber como uma posição e não como um conjunto de
conhecimento. Essa distância separa quem sabe de quem não sabe – o mestre do aluno – e
comprova incessantemente ao aluno sua incapacidade. A essa prática Rancière opõe a da
25
emancipação intelectual. Para ele, a emancipação intelectual é a igualdade em si da
inteligência em todas as suas manifestações:
Desse ignorante que soletra os signos ao intelectual que constrói hipóteses, o que
está em ação é sempre a mesma inteligência, uma inteligência que traduz signos em
outros signos e procede por comparações e figuras para comunicar suas aventuras
intelectuais e compreender o que outra inteligência se esforça por comunicar-lhe.
(RANCIÈRE, 2012, p. 15).
No ambiente social, os homens transpõem a distância de conhecimento entre eles por
meio da comunicação e seus signos. A distância que o ignorante precisa transpor não é a
diferença entre o seu conhecimento e o do mestre. É o espaço entre aquilo que ele já sabe e
aquilo que ele ainda ignora. Isso nos leva a uma distância histórica estabelecida entre
atividade e passividade quando o assunto é o espectador. Rancière questiona: “... o que cria a
distancia não é justamente a vontade de eliminá-la? O que permite declarar inativo o
espectador que está sentado em seu lugar, senão a oposição radical, previamente suposta,
entre ativo e passivo?” (2012, p. 16). Essa organização de opostos cria uma divisão do
sensível e o fortalecimento de uma estrutura que opõe os que têm uma capacidade aos que não
a têm. Para o autor, a emancipação de fato acontece quando se questiona a oposição entre
olhar e agir e o entendimento da estrutura de dominação que lhe dá forma. Olhar é também
uma ação que confirma ou transforma posições. O espectador age quando observa, compara e
interpreta, quando busca dentro de si os conhecimentos necessários para olhar com
consistência o filme que lhe é apresentado, quando compõe sua própria imagem sobre os
elementos da imagem que vê. Assim, o autor coloca o espectador na condição de
“espectadores distantes e intérpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto” (2012, p.17).
Observemos o exemplo abaixo:
26
Figura 6: Outros Tempos (São Paulo, KOSSOY, 1970) da série Viagem pelo fantástico
A imagem acima é do fotógrafo brasileiro Bóris Kossoy. A foto faz parte de um ensaio
que, a partir do imaginário fantástico, explorou as possibilidades de vinculação que a
fotografia tem com o real. Como o próprio autor define, a série fotográfica Viagem pelo
fantástico é um livro de contos sem palavras. O autor buscou fugir à linearidade tradicional
dos ensaios fotográficos e apresentou as imagens de formas desconexas ao longo do livro com
o intuito de oferecer breves encadeamentos reflexivos. As diagramações das imagens foram
feitas às vezes remetendo aos comics ou ao formato do cinema, como é o caso da imagem
Outros tempos. Para tanto, os elementos foram produzidos e contracenaram na imagem assim
como numa produção cinematográfica. Pedaços de corpos artificiais foram dispersos em meio
a um monte de lixo natural, porém com vestígios de objetos produzidos. Kossoy apresenta um
cenário non sense com elementos que provocam dúvidas no espectador acerca de sua
compreensão da realidade. O fotógrafo questiona a condição de veracidade da fotografia ao
apresentar elementos conflitantes com o caráter ficcional em sua obra. Na foto Outros tempos,
o artista propõe correlacionar o que não se correlacionava, mostrar de outra forma aquilo que
era visto, separar aquilo que estava junto. O objetivo notável é o de causar uma ruptura no
tecido sensível das percepções. Esse é o trabalho da ficção. Para Rancière, ficção não é
criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real:
É o trabalho que realiza dissensos, que muda os modos de apresentação sensível e as
formas de enunciação, mudando quadros, escalas ou ritmos, construindo relações
novas entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua
27
significação. Esse trabalho muda as coordenadas do representável; muda nossa
percepção dos acontecimentos sensíveis, nossa maneira de relacioná-los com os
sujeitos, o modo como nosso mundo é povoado de acontecimentos e figuras. (2012,
p. 65).
A análise acima parece ser algo destinado aos mestres, longe dos entendidos como
ignorantes comuns. Porém, de alguma forma, o espectador digital consegue desenvolver a
percepção desse dissenso quando isso se apresenta nas imagens que permeiam os ambientes
midiáticos na Internet. Exemplo interessante de contrastar com a foto de Boris Kossoy é a
repercussão das fotos em que aparece a modelo brasileira Nana Gouvêa após a passagem de
um furacão por Nova York em outubro de 2012. A modelo, que mora na cidade, resolveu
fazer um ensaio fotográfico sensual diante do rastro de destruição deixado pela
supertempestade que deixou Nova York em estado de calamidade:
Figura 7: Ensaio fotográfico para o site EGO, publicado em 30/10/2012
Figura 8: Ensaio fotográfico para o site EGO, publicado em 30/10/2012
Fonte:
http://ego.globo.com/famosos/noticia/
2012/10/nana-gouvea-registra-em-
fotos-danos-do-furacao-sandy-em-
ny.htm
Fonte:
http://ego.globo.com/famosos/noticia/
2012/10/nana-gouvea-registra-em-
fotos-danos-do-furacao-sandy-em-
ny.htm
28
As imagens trouxeram à tona um dissenso, uma inadequação de elementos num
cenário real, que foi rapidamente percebida pelos espectadores do site de notícias em que o
ensaio foi publicado. A imagem da atriz sedutora diante da destruição ocasionada pelo
furacão causou uma ruptura estética ao olhar dos espectadores que apresentaram nas redes
sociais digitais a sua percepção desse dissenso. Fotomontagens parodiando o evento passaram
a circular nas redes sociais.
Figura 9: Montagem feita sobre a fotografia “A Guerra do Vietnan”
anônimo (Facebook, 2012 )
Figura 10: Montagem feita sobre a fotografia do desastre aéreo ocorrido
Imagens da atriz recortadas do trabalho original foram aplicadas em diversas
fotografias de catástrofes históricas mundiais, escancarando o reconhecimento do público de
Fonte: https://www.facebook.com/pages/Nana-
Gouv%C3%AAa-em-todas-as-
trag%C3%A9dias/161070087370987?id=16107
0087370987&sk=photos_stream. Acesso em :12
dez. 2013.
Fonte: https://www.facebook.com/pages/Nana-
Gouv%C3%AAa-em-todas-as-
trag%C3%A9dias/161070087370987?id=16107
0087370987&sk=photos_stream. Acesso em
:12 dez. 2013.
29
uma situação real que de tão incomum foi vista por alguns como ficção, uma fotomontagem
real no sentido de reunir elementos não passíveis de aproximação pelo senso comum. Algo
surrealista, assim como a foto do ensaio de Boris Kossoy. Nesse caso, o espectador
transformou a passividade do apenas “olhar” o ensaio fotográfico protagonizado pela atriz no
“agir” para produzir uma nova proposta de imagem sobre algo pré-concebido, incluindo aí a
reflexão necessária ao espectador-produtor da paródia para contrapor as duas situações. Numa
análise desse caso sob os conceitos de mestre e ignorante de Rancière, é possível refletir sobre
a tradição crítica que posiciona a mídia como “mestre” e o espectador como “ignorante”: as
mídias oferecem conhecimento aos espectadores como ignorantes. Estes, por sua vez, não
conseguem afastar-se do fluxo de conteúdo incontrolável e hipnótico emitido por aquelas para
se conscientizarem do tamanho da sua ignorância, do seu não-saber. Por meio da busca pela
apresentação de algo desconhecido e ignorado pelo senso comum até aquele momento, a
mídia recria a todo tempo, de forma sistêmica, a distância que a separa do seu público19
.
Para Rancière, a emancipação intelectual acontece quando o espectador age tal como o
aluno ou o mestre. Quando observa e seleciona, transforma algo associando-o à sua história
ou aos seus conhecimentos adquiridos. Ao espectador digital, usuário das mídias sociais e
participativas, foi concedida a possibilidade de participar nas mídias quando lhe convém e
nelas demonstrar a igualdade de condições de criação e de pontos de partida de conhecimento.
A questão não é transformar passividade em atividade, mas compreender que:
Ser espectador não é a condição passiva que deveríamos converter em atividade. É nossa
situação normal. [...] Não temos que transformar os espectadores em atores e os ignorantes
em intelectuais. Temos de reconhecer o saber em ação no ignorante e a atividade própria ao
espectador. Todo espectador é já ator de sua história; todo ator, todo homem de ação,
espectador da mesma história. (RANCIÈRE, 2012 p. 21).
A emancipação parte do questionamento da oposição entre olhar e agir e da estrutura
de dominação e sujeição que criam essa incompatibilidade. Consiste em entender a lógica
dominante que cria essa divisão do sensível, essas oposições que determinam capacidades e
incapacidades. Para Rancière, a palavra emancipação significa: “... o embaralhamento da
fronteira entre os que agem e os que olham, entre indivíduos e membros de um corpo
coletivo” (2012, p. 23).
19
Para mais informações sobre os processos sistêmicos de comunicação nas mídias: Amanda Aggio (2012), O
olhar complexo e sistêmico aplicado à comunicação: a Teoria Sistêmica de Niklas Luhmann, Intercom 2012 -
http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2012/resumos/R33-0162-2.pdf
30
2.2 A teoria crítica e a política nas produções artísticas contemporâneas
Para entender o espectador, é necessário ir além do objeto e entender o ambiente
imagético em que ele está inserido. Esse processo de conhecimento pode ser iniciado a partir
do entendimento do sistema de pensamento crítico que prevaleceu nos últimos tempos. Para
muitos autores, a teoria crítica que denuncia o sombrio da realidade escondido por trás das
imagens é algo ultrapassado. Segundo eles, hoje não haveria qualquer avesso desconhecido
para opor às representações contemporâneas. Rancière coloca-se contrário a essa posição
desde o princípio, pois os conceitos e procedimentos da tradição crítica estão ainda em vigor
na visão dele. Se quisermos realmente fazer uma verdadeira crítica da crítica, é preciso levar
em conta a persistência de um “modelo de interpretação e a inversão de seu sentido” (2012, p.
27). É no campo das artes que Rancière aponta a forma mais persistente e evidente de
mecanismos baseados na teoria crítica original. Com a proposta de reunir elementos
contrastantes e conflitantes, muitas representações artísticas procuram mostrar a realidade
oculta aos espectadores como forma de conscientizá-los sobre o sistema de dominação
presente no retratado. É o caso do exemplo abaixo, utilizado pelo autor no livro em questão.
Figura 11: Josephine Meckseper, Sem título, 2005
31
Na imagem, um grupo de manifestantes portando cartazes políticos é visto ao fundo,
enquanto uma lata de lixo que transborda seu conteúdo pelo chão fica em primeiro plano. O
título da imagem é Sem título, o que, na análise de Rancière, implica no sentimento do artista
de que a imagem fala por si mesma, dispensando um título. O conflito numa mesma
superfície de elementos heterogêneos suscita a lógica do pensamento crítico: “Continuam
denunciando a incapacidade de conhecer e o desejo de ignorar. E cravam sempre a culpa no
coração da negação. Essa crítica da tradição crítica, portanto, ainda emprega seus conceitos e
seus procedimentos” (RANCIÈRE, 2012, p. 34). Diante da imagem dos manifestantes
marchando contra a guerra frente às latas de cerveja e Coca-Cola consumidas por eles ao
longo do evento, Rancière questiona o marxismo e o apresenta como um saber desencantado
do espetáculo e do reino da mercadoria. Uma sabedoria pós-marxista apresenta uma
humanidade ocupada em um consumo frenético, dentro de uma lei de dominação que se
apropria do que se opõe a ela:
Por um lado, portanto, há a ironia ou a melancolia de esquerda. Esta nos insta a
confessar que todos os nossos desejos de subversão obedecem também à lei de
mercado e que só nos comprazermos com o novo jogo disponível no mercado
global, o da experimentação ilimitada de nossa própria vida. Mostra-nos absorvidos
no ventre do monstro onde mesmo as nossas capacidades de prática autônoma e
subversiva e as redes de interação que poderíamos utilizar contra ela servem ao novo
poder da besta, o da produção imaterial. A besta, dizem, impõe seu império sobre os
desejos e as capacidades de seus inimigos potenciais, oferecendo-lhes pelo melhor
preço a mais apreciada das mercadorias, a capacidade de experimentar a vida como
um solo de possibilidades infinitas. Assim, oferece a cada um o que este pode
desejar: reality shows para os cretinos e maiores possibilidades de autovalorização
para os espertos. Essa, segundo nos diz o discurso melancólico, é a armadilha na
qual caíram os que acreditavam em derrubar o poder capitalista e deram-lhe, ao
contrário, meios de rejuvenescer alimentando-se das energias contestadoras.
(RANCIÈRE, 2012, p. 35).
Portanto, para o autor, é falso dizer que a tradição da crítica social e cultural está
esgotada. Ela se encontra viva em sua forma invertida, estruturando o discurso dominante. O
frenesi causado pela leitura crítica das imagens e sua dissimulação feita por Roland Barthes
(Mitologias) e Guy Debord (Sociedade do espetáculo) inverteu-se na década de 1980 com a
afirmação de que já era possível distinguir imagem e realidade. Essa inversão faz parte de um
processo social global concebido como um processo de autodissimulação: “O segredo oculto
nada mais é, afinal, que o funcionamento óbvio da máquina” (Ibid., p. 45). O autor sugere
uma mudança de direção no sentido de desvincular a lógica emancipadora da lógica crítica da
captação coletiva. Afastar-se do círculo vicioso da lógica crítica e supor os incapazes como
capazes, assim como a inexistência de qualquer segredo oculto nas representações imagéticas
32
que as transformariam em realidade e vice-versa. Desenhar uma nova topografia do possível,
pensar hipóteses insensatas: “... há mais que procurar e mais que encontrar hoje na
investigação desse poder do que na interminável tarefa de desmascarar os fetiches ou na
interminável demonstração da onipotência da besta” (RANCIÈRE, 2012, p. 49).
A questão que envolve a produção imagética contemporânea não é o entendimento de
posicionamentos morais ou éticos das mensagens transmitidas pelo dispositivo representativo,
mas a compreensão do dispositivo20
em si:
Sua fissura põe à mostra que a eficácia da arte não consiste em transmitir
mensagens, dar modelos ou contramodelos de comportamento ou ensinar a decifrar
as representações. Ela consiste sobretudo em disposições dos corpos, em recortes de
espaços e tempos singulares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, na
frente ou no meio, dentro ou fora, perto ou longe. (Ibid, p. 55).
A eficácia estética é apresentada pelo autor como uma das formas de eficácia da arte.
De forma paradoxal, trata-se de uma eficácia da própria separação, da descontinuidade entre
as formas sensíveis por meio das quais os espectadores se apropriam do produto artístico.
Baseada em uma distância estética, a eficácia da arte tem como princípio a suspensão de
qualquer relação de causa e efeito entre a intenção do artista, a forma sensível de arte
apresentada e o olhar do espectador. Como forma de exemplificar essa disjunção, Rancière
cita a estátua Torso do Belvedere21
. Essa obra de arte rompe com as representações artísticas
tradicionais ao apresentar uma estátua desprovida das características que definem o modelo de
beleza e o caráter exemplar de uma figura. Sem rosto e sem membros, a Torso não ilustra
nenhuma fé, nenhum movimento social. Não incita qualquer correção de costume nem se
dirige a um público específico. Essa estátua é oferecida do mesmo modo despretensioso como
são oferecidos atualmente os ready-made. O museu, concebido como um recorte do espaço
comum e forma de visibilidade, apresenta o Torso enquanto obra de arte e pode, com tal
autoridade, acolher no futuro qualquer objeto ordinário que se oponha às formas artísticas
tradicionais. Os teatros, museus e vídeos têm como efeito divisões de espaço e tempo e
formas de representação do sensível, antes de se referirem ao conteúdo de qualquer obra.
20
Dispositivo no sentido dado por Foucault (2000), p. 244: “um conjunto decididamente heterogêneo que
engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não
dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre esses elementos.”
21 Belvedere é o nome da galeria do Vaticano em que a obra de arte foi instalada. A obra é datada do século I
A.C. (Wikipédia)
33
O dissenso provocado pelo choque de sensorialidade, este último produzido pela
tradicional arte crítica, não tem como fim certo sua tradução na compreensão das razões das
coisas, nem o despertar de um impulso de mudar o mundo. Há, é fato, a contribuição para
novas formas de percepção e experiência do sensível, a passagem de um mundo sensível a
outro mundo sensível. Porém, as finalidades da arte crítica sustentaram-se enquanto o sistema
de pensamentos que ela supostamente favorecia era suficientemente forte para sustentá-la. O
dissenso que regia as performances da arte crítica tradicional encontrou um contexto
contemporâneo de consenso. Consenso entre uma forma de representação do sensível e o
regime que o interpreta:
Significa que, quaisquer que sejam nossas divergências de ideias e aspirações,
percebemos as mesmas coisas e lhes damos o mesmo significado. O contexto de
globalização econômica impõe essa imagem de mundo homogêneo no qual o
problema de cada coletividade nacional é adaptar-se a um dado sobre o qual ela não
tem poder, adaptar a ele seu mercado de trabalho e suas formas de proteção social.
(RANCIÈRE, 2012, p. 67).
Nesse cenário, o contraste de elementos heterogêneos na arte crítica não encontra
analogia no contraste político de mundos sensíveis opostos. Não há poderes opostos para
contrastar. A crítica é assumida e a única saída é adaptar-se a ela. Volta-se para si mesmo por
meio de uma retórica ultrapassada que denuncia os mecanismos do capital, do poder e do
espetáculo repetidamente. A subversão de elementos de entretenimento, por exemplo, faz
parte do mesmo dispositivo que os apresenta. Personagens da Disney subvertidos e mangás
distorcidos fazem parte há tempos desse contexto:
Figura 12: Gottfried Helnwein (2007)
The Disaster of War 19
Figura 13: Gottfried Helnwein (2003),
American Prayer
De acordo com o autor, a proposta do modelo estético atual propõe eliminar a
mediação entre a produção de dispositivos visuais e as mudanças nas relações sociais, a partir
34
do momento em que os próprios dispositivos se apresentam como propostas de relações
sociais. O autor cita a tese de Nicolas Bourriaud22
e o conceito apresentado por ele de estética
relacional: a superação da produção artística de objetos para ver (a inauguração da arte
como produtora de relações sociais e formadora de comunidades; a arte como meio para
manifestações, jogos, filmes e outros conteúdos estéticos que produzam relações). É o que
podemos ver concretizado nos ambientes midiáticos na Internet. O espectador digital em
muitos momentos passa a ser produtor estético como forma de se relacionar com os outros
presentes no ambiente digital, assim como assume o papel de curador ao selecionar e validar a
produção artística de alguém diante de uma trama relacional. Em um cenário consensual, o
espectador digital tende a avaliar a produção imagética com base em uma retórica globalizada
e homogênea, assim como o material produzido por ele deve firmar-se sobre essa mesma base
conceitual. O produto representativo é um trabalho de espectador endereçado sobre uma tela a
outros espectadores.
2.3 Acusar, não. Compreender os acusadores
Revelar a realidade de um sistema de dominação por meio das mesmas ferramentas de
divulgação de produção estética condena aquilo que está sendo mostrado à lógica que elas
denunciam. Para Rancière, o simples fato de olhar as imagens que delatam o real de um
regime estético e político já coloca o espectador como cúmplice nesse regime. A análise da
campanha Kony 2012 (cap. I) e os efeitos esperados nessa produção podem exemplificar essa
questão. Ao iniciar o vídeo de divulgação da campanha, o espectador é impactado por
imagens que retratam as mudanças benéficas impulsionadas no ambiente social pelas recentes
tecnologias digitais e as possibilidades de interatividade e expressão individual permitida por
essas novas ferramentas. Diante de imagens que demonstram uma visão política preocupada
com o poder de comunicação em massa acessível a um público nunca antes participante, o
produtor do vídeo apresenta a sequência de imagens que se seguirá como uma
“experimentação” e condiciona o seu êxito à atenção do espectador. Espera-se que as imagens
causem um resultado já esperado pelo autor do filme. A partir desse ponto, inicia-se o
22
Nicolas Bourriaud. Esthétique relationelle Les Presses du reél, 1998, p.29
35
processo crítico tradicional de disposição de imagens que contrastam realidades diversas,
considerando a vida que leva uma criança nascida nos Estados Unidos da América à de um
garoto que participou dos horrores da guerra civil em Uganda, na África. As imagens de
milhares de crianças amontoadas e amedrontadas pela possibilidade de serem sequestradas
por um guerrilheiro que transforma meninos em soldados da causa que defende e meninas em
escravas sexuais, seriam a realidade intolerável que, contrastada com a felicidade do menino
estadunidense, abriria os olhos daqueles que gozam do conforto de um país desenvolvido.
Tudo isso para engajar o espectador na luta proposta pelo produtor. De fato, a imagem do
sofrimento das crianças ugandenses é difícil de suportar, mas não há razão para que ela torne
os que a veem conscientes da realidade mundial gerida por um sistema político capitalista que
tem como uma de suas lógicas a exclusão social para a sua manutenção. A reação comum a
imagens desse tipo é virar o rosto, não olhar. Ou apontar os problemas de guerra e a
insanidade do homem. Para que as imagens tenham efeito político, o espectador deve estar
ciente dessa realidade global, do funcionamento do maquinário capitalista, sentir-se culpado
por estar olhando aquilo e nada fazer. Em resumo: “... deve sentir-se já culpado de olhar a
imagem que deve provocar o seu sentimento de culpa. [...] Tal é a dialética inerente à
montagem política das imagens” (RANCIÈRE, 2012, p. 85). Agir seria a única saída para o
“mal da imagem” e a culpa do espectador. Porém, ele continua sendo bombardeado por
imagens atrás de imagens. Esse paradoxo tem uma razão para Rancière: “... se não olhasse
imagens, o espectador não seria culpado. Ora, ao acusador importa mais a demonstração de
sua culpa do que sua conversão à ação” (2012, p. 87).
A estrutura estética da campanha Kony 2012 se fortalece ao usar, além da imagem
visível e a narrativa da palavra, dois tipos de representação, a prova e o testemunho. Os
horrores de guerra em Uganda ocorreram, é fato, não haveria necessidade de imagens que o
comprovassem. Se partirmos da definição de imagem como duplo, colocamo-la
automaticamente oposta à unicidade do real e amenizadora, ou até mesmo anuladora do
horror que elas representam: “A prova é que olhamos essas fotografias, ao passo que não
suportaríamos a realidade que elas reproduzem” (Ibid., p. 89). A testemunha é questionada
pelo produtor do filme e fala apenas por esse motivo. O foco é apresentar a voz de uma pessoa
que presenciou o ocorrido, o intolerável do acontecimento, independente do conteúdo da sua
fala.
36
A imagem é construída por relações entre o visível e o invisível, a palavra dita e a não
dita. A voz faz parte desse processo de construção da imagem e transforma um acontecimento
sensível em outro. Quando o narrador do vídeo faz a promessa à testemunha após o relato de
terror pelo qual ela passou – “Nós vamos pará-los” – o uso do “nós” inclui automaticamente o
espectador no prometido e eleva consideravelmente a sensação de culpabilidade do espectador
com o que está sendo apresentado. E o narrador completa: “Porque aquela promessa não é
apenas sobre o Jacob (garoto ugandense) ou sobre mim, é ainda sobre você”, referindo-se
diretamente ao espectador. O narrador deixa clara a importância daquele que assiste ao vídeo
na realização da promessa feita pelo produtor à testemunha.
De forma bem elaborada, o produtor coloca na sequência uma conversa com seu filho
de 5 anos, Gavin. Nela, ele explica de forma breve a questão social e política que se passa em
Uganda e pede ao garoto sua opinião sobre o que deve ser feito. Ao explicar a situação ao
menino, o produtor se posiciona como “o cara que pára os homens maus”. Quando o produtor
pergunta à criança o que deve ser feito, ela responde dentro do mesmo discurso: “Nós
devemos pará-lo”. Fica implícita nessa passagem a intenção de apresentar ao espectador o
propósito da causa de forma tão obviamente clara e verdadeira que mesmo uma criança
consegue compreendê-la. O produtor em seguida mostra imagens de suas tentativas de
conseguir ajuda do governo norte-americano para resolver a prisão do guerrilheiro ugandense
Kony. Todas elas foram recusadas. Apresenta então a divulgação do rosto e do nome do
guerrilheiro pelo mundo como a única forma de impedir sua atuação. Dessa forma, haveria
uma rebelião internacional contra Kony e a situação representada. Mas como essa revolta
aconteceria? O que mudaria? Pessoas de outros países se arriscariam no país africano para
capturar o criminoso? Governantes se sensibilizariam com a divulgação daquela situação ao
ponto de interferir na política alheia? Nesse ponto do filme, o espectador já está tão envolvido
pela sequência de imagens e pelo discurso apresentado que não se sentir culpado por nada
fazer e não querer engajar-se na causa é algo para poucos, apenas para aqueles que
conseguem ver a produção com um olhar analítico e panorâmico no sentido de entender a qual
regime estético e político a reprodução se baseia. Ao projetarem a imagem intolerável dos
horrores da guerrilha em Uganda, o olhar do espectador foi capturado e qualquer distância
crítica fica comprometida. Nesse momento, o produtor usa uma estratégia crucial para o
sucesso dessa campanha humanitária que foi recorde em views na Internet: após ver a
sequência imagética de contrastes chocantes e sentir-se de certa forma culpado por não
37
conhecer a questão, não saber sobre os horrores da situação representada e/ou não fazer nada
a respeito, o narrador e produtor, um dos donos de uma ONG estadunidense, apresenta ao
espectador a possibilidade de comprar itens de divulgação da causa: braceletes, cartazes,
folders, placas de jardim, um “kit de ação” – como foi chamado pela organização – que, se
comprado em massa e utilizado pelo consumidor, traria à luz a sombria atividade do
guerrilheiro Kony. Cada bracelete acompanha um número de série que coloca o novo ativista
como parte de um numeroso grupo de pessoas engajadas em mudar o cenário apresentado.
Além disso, o espectador, que pode virar consumidor, ativista e ainda mudar uma grave
situação social sem sair de casa, tem a possibilidade de contribuir mensalmente para a ONG
cujo slogan de campanha é Join our army for peace.
Para Rancière, a voz que estimula a culpa denuncia
... a inversão da vida que consiste em ser consumidor passivo de mercadorias que
são imagens e de imagens que são mercadorias. Diz que a única resposta a esse mal
é a atividade. [...] A virtude da atividade, oposta ao mal da imagem, é então
absorvida pela autoridade da voz soberana que estigmatiza a vida falsa na qual ela
sabe que estamos condenados a nos comprazer (2012, p. 87).
A transformação do acontecimento de guerra em ícone midiático e sua aplicação em
produtos de desejo é a lógica da crítica tradicional absorvida pela máquina do espetáculo e
separada de nós mesmos. O olhar político de mudança se esvaece junto com a possibilidade
do consumo de algo que lhe diminuirá a culpa. O espectador se vê diante da rara possibilidade
de agir frente a uma representação pictórica, mesmo que seja consumir e/ou compartilhar o
vídeo.
O objetivo, ao fazer essa análise da campanha Kony 2012, não é acusar os acusadores,
mas compreendê-los. Deve-se olhar a imagem como pertencente a um dispositivo de
visibilidade que parte de um regime regulatório dos corpos e da atenção que lhe será dada.
Aquilo que chamamos de imagem é um elemento num dispositivo que cria certo
senso de realidade, certo senso comum. [...] O sistema de informação é um “senso
comum” desse tipo: um dispositivo espaço-temporal dentro do qual palavras e
formas visíveis são reunidas em dados comuns, em maneiras comuns de perceber, de
ser afetado e de dar sentido (Ibid, p. 99).
A campanha Kony 2012 optou por seguir o senso comum de representação do
intolerável, associando-o à possibilidade de agir pelo consumo. Um modelo adequado ao
modelo de pensamento consensual capitalista e que fatalmente levou o produto a um sucesso
não visto antes na Internet. Para isso, usou o dispositivo de visibilidade YouTube, respeitando
38
suas regras, formatos e canais, determinando as possibilidades de ação dos espectadores pelas
ferramentas que disponibiliza. Optou pelo uso clássico da imagem intolerável que traça “ uma
linha reta do espetáculo insuportável à consciência da realidade que ele expressava e desta ao
desejo de agir para mudá-la” (RANCIÈRE, 2012, p. 100). Mas há uma nova consciência a
respeito da capacidade política das imagens sobre uma crítica desse esquema lógico-linear. As
imagens não determinam, mas contribuem para novas configurações possíveis do visível, do
dizível e do pensável, desde que não antecipem seu sentido e seu efeito. A resistência à
antecipação é ilustrada por Rancière por meio das fotos feitas pela artista francesa Sophie
Ristelhueber. Uma paisagem uniforme e apática parece retratar o comum.
Figura 14: Figura : Sophie Ristelhueber, WB #3, 2005
Ristelhueber optou por um cenário fotográfico diferente do costumeiramente
apresentado quando o assunto é retratar as questões entre israelenses e palestinos (o Muro da
Cisjordânia, ícone midiático desse problema). A artista preferiu retratar pequenas barreiras
construídas com os meios ao alcance em estradas do interior do país, de um ponto de vista que
torna o obstáculo parte da paisagem. Na análise de Rancière, a fotógrafa produziu um
deslocamento do recorrente afeto da indignação para um afeto mais discreto que seria a
curiosidade, a vontade de ver mais de perto. Para o autor, “as imagens mudam nosso olhar e a
paisagem do possível quando não são antecipadas por seus sentidos e não antecipam seus
efeitos” (RANCIÈRE, 2012, p. 102).
39
2.4 A pensatividade da imagem
Ser pensativo é uma característica exclusivamente destinada aos seres humanos. Ao
criar o conceito de “imagem pensativa”, Rancière não pressupõe que a imagem pense, mas
que ela seja objeto de pensamentos. A imagem pensativa “... encerra pensamento não
pensado, pensamento não atribuível à intenção de quem a cria e que produz efeito sobre quem
a vê sem que este a ligue a um objeto determinado” (2012, p. 103). A palavra pensativa traz
consigo uma carga de passividade, sem deixar de pressupor certa atividade que demanda o ato
de pensar. Para o autor, o conceito de imagem pensativa marca uma zona de indeterminação
entre arte e não-arte, passividade e atividade, pensamento e não-pensamento. Rancière coloca
a fotografia como a prática que melhor ilustra esses opostos. Inicialmente acusada de
transgressora e possível eliminadora do poder criativo e imaginativo da arte por estudiosos
como Baudelaire, a arte da reprodução mecânica na contemporaneidade passou a ocupar o
lugar das obras de arte tradicionais em museus e exposições, além de monopolizar as formas
de comunicação social nas mídias digitais. Retomar as fotos da atriz Nana Gouvêa (cap. 2,
subtítulo 1) para exemplificar o conceito de imagem pensativa parece um caminho reflexivo
interessante. Alguns pontos de indeterminação tornam as imagens do ensaio fotográfico da
atriz singular. O primeiro diz respeito ao cenário que o ambienta: Gouvêa está representada
diante de situações de caos e destruições causadas pelo furacão em poses sensuais
padronizadas. A indeterminação está no contraste entre a estética do corpo curvilíneo da
modelo e a imagem da destruição de uma cidade. Há um questionamento a respeito do
propósito do registro: a beleza da atriz ou os problemas causados pela passagem do furacão?
A incoerência gritante dos elementos retratados levanta outra indeterminação sobre a escolha
dos elementos e o responsável por ela: isso parte de uma decisão do fotógrafo a respeito do
impacto e comercialização da imagem, ou de uma pauta pré-estabelecida pela mídia que
encomendou a sessão fotográfica, ou de uma decisão da própria pessoa representada (ou
talvez de tudo isso junto)? A última indeterminação é a atitude da personagem. Moradora da
cidade arrasada pelo desastre natural, é impossível notar em sua postura corporal e em seu
semblante qualquer pesar ou preocupação com o fato. Esse emaranhado de indeterminações é
o que caracteriza a pensatividade da imagem. Consiste na impossibilidade de criar uma
identificação entre a imagem socialmente determinada para uma sessão fotográfica de uma
40
atriz e a imagem de uma modelo retratada em um cenário atípico, demonstrando uma postura
despreocupada diante de algo aterrorizante. Nesse caso, o título que acompanha o trabalho
fotográfico e que normalmente esclarece dúvidas sobre o conjunto imagético representado,
apenas reforça a incoerência quando diz: “Nana Gouvêa registra em fotos danos do furacão
Sandy em NY”. O ensaio definitivamente não é somente um retrato da destruição deixada
pelo furacão na cidade de Nova York. A pensatividade da imagem é aquilo que “resiste ao
pensamento, ao pensamento daquele que a produziu e daquele que procura identificá-lo”
(RANCIÈRE, 2012, p. 124). As fotos de Nana Gouvêa receberam inúmeras críticas e causou
indignação em grande parte dos que as viram. O estranhamento sobre o trabalho fotográfico
foi gerado por todas as indeterminações que ele apresentou e deu origem a uma série paródica
sobre o ensaio feita por alguns participantes de redes midiáticas na Internet (já citada neste
capítulo, subtítulo 1). Sem qualquer intenção daquele que a produziu, esse trabalho mudou
definitivamente o estado de passividade de alguns espectadores para atividade. Seria esse um
exemplo do que Jacques Rancière procurou explicar e esclarecer ao longo do seu livro?
Quando ele centralizou seus esforços em expor o ideal de representação estética para que se
possa esperar dos espectadores outro tipo de estado que seja diferente da famigerada
passividade, era esse o resultado esperado? É esse tipo de estranhamento, de pensamento
suscitado nos espectadores que foge às intenções do produtor artístico que concretizaria o
conceito de imagem pensativa? Tudo indica que sim.
2.5 Entre
O livro O espectador emancipado é conciso e denso o bastante (na profundidade de
seu conteúdo) para que seja criticado no sentido de buscar contrapor seus conceitos aos de
outros autores. Porém, uma conversa conceitual com outras obras é possível com o intuito de
enriquecer achados. Assim como Rancière, o filósofo Georges Didi-Huberman também faz
uma análise de objetos de arte para discutir o ponto central de seu trabalho: O que vemos, o
que nos olha. Em seu livro, com o nome da questão principal que o direciona, Didi-Huberman
apresenta de que forma, mesmo na arte minimalista, pensada inicialmente de forma
41
tautológica23
em relação ao que se vê, algo além nos salta aos olhos: “...de que modo os
enunciadores tautológicos referentes ao ato de ver não conseguem se manter até o fim, e de
que modo o que nos olha, constantemente, inelutavelmente, acaba retornando no que
acreditamos apenas ver” (Didi-Huberman, 2010, p. 61). Artistas do movimento minimalista,
como Donald Judd e Robert Morris, colocavam-se a favor de uma imagem sem detalhes, de
uma Gestalt instantânea. Para Judd, “as coisas essenciais são isoladas (alone) e mais intensas,
mais claras e mais fortes” (apud Didi-Huberman, 2010, p. 54). O grande ideal da tautologia
what you see is what you see se traduzia na busca pela imagem esvaziada de toda conotação,
de toda pensatividade – já fazendo referência ao termo de Rancière. Nenhum mistério,
nenhuma distância: “Eliminar toda forma de antropomorfismo era devolver às formas – aos
volumes como tais – sua potência intrínseca” (Didi-Huberman, 2010, p. 60). Porém,
constantemente os objetos minimalistas são definidos, até mesmo por seus criadores, por
adjetivos que realçam a simplicidade visual do objeto. Judd, sobre a sua obra: “As formas, a
unidade, [...] a ordem e a cor são específicas, agressivas e fortes” (apud Didi-Huberman,
2010, p. 62). Ao usar adjetivos para descrever sua obra, Judd recorre ao mundo
fenomenológico da experiência e, mais que isso, à qualidade de ser. Isso implica que a força
do objeto minimalista foi pensada de forma intersubjetiva, frente ao seu espectador. Já Morris
reconhecia que “a simplicidade da forma não se traduz necessariamente por uma igual
simplicidade na experiência” (apud Didi-Huberman, 2010, p. 63).
Dessa maneira, independentemente da forma com que o objeto é apresentado, há uma
experiência que envolve o lugar dos corpos, as dimensões e posicionamentos: “Há relações
que envolvem presenças, logo há sujeitos que são os únicos a conferir aos objetos
minimalistas uma garantia de existência e de eficácia” (Didi-Huberman, 2010, p. 66).
Portanto, há uma brecha teórica no conceito de arte minimalista segundo a qual aquilo que se
vê é aquilo que se vê:
... a contradição entre “especificidade” e “presença”, a contradição entre a
transparência semiótica de uma concepção tautológica da visão (what you see is
what you see) e a opacidade fatal de uma experiência intra ou intersubjetiva
suscitada pela exposição mesma dos objetos minimalistas (Ibid., p. 71).
23
Do grego tautó, o mesmo, e logos que significa razão. Em filosofia é utilizado para designar algo que nada diz
ou que repete uma conclusão. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar,
1997.
42
Essa contradição traz à tona dois tipos de evidência: a evidência ótica, de um lado, e a
evidência da presença, de outro. O embate entre elas é baseado, segundo Didi-Huberman, na
tautologia da imagem, que estabelece o objeto de ver, o ato e o sujeito do ver. Para o autor, o
objeto, o sujeito e o ato de ver nunca se fixam no que é visível. O ato de ver não pode ser
reduzido a um maquinário automatizado e imparcial:
Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma
operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo
olho traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo
momento julgar-se o detentor. Essa cisão, a crença quer ignorá-la, ela que se inventa
um mito equivalente de perfeição (uma perfeição inversa, imanente e imediata em
seu fechamento) (2010, p.77).
A crença de que fala Didi-Huberman seria algo que pode ser influenciado pela
tradição crítica de que fala Rancière? Crença já absorvida pelo espectador e que funciona
como um inconsciente coletivo que se estabelece em segundo plano no ato de ver: a névoa
daquilo que nos olha? Essa crença não seria composta apenas do regime crítico que permeia a
sociedade, mas de outras tantas influencias exercidas sobre o espectador, algo que o faz
superar o que vê. De qualquer forma, assim como Rancière, Didi-Huberman também se
posiciona contra a bipolaridade da crítica tradicional para propor o novo: o entre.
Os pensamentos binários, os pensamentos do dilema são portanto incapazes de
perceber seja o que for da economia visual como tal. Não há que escolher entre o
que vemos (com sua consequência exclusiva num discurso que o fixa, a saber: a
tautologia) e o que nos olha (com seu embargo exclusivo no discurso que o fixa, a
saber: a crença). Há apenas que se inquietar com o entre. Há apenas que tentar
dialetizar [...]. É o momento em que o que vemos justamente começa a ser atingido
pelo que nos olha – um momento que não impõe nem o excesso de sentido (que a
crença glorifica), nem a ausência cínica de sentido (que a tautologia glorifica). É o
momento em que se abre o antro escavado pelo que nos olha no que vemos (2010, p.
77).
Assim como Didi-Huberman, Rancière também sugere o afastamento dos
pensamentos binários quando propõe a fuga do círculo vicioso do discurso crítico, assim
como o entendimento da lógica pedagógica que separa o mestre do ignorante e constrói uma
razão dualística para justificar as diferenças. Não há uma inquietação explícita por parte de
Rancière com o ato tautológico de ver as imagens. Porém, essa busca pelo entre de que fala
Didi-Huberman é identificável no conceito de pensatividade da imagem de Rancière: uma
imagem que fuja dos padrões da crítica e provoque o impensado, que provoque o surgimento
do novo. A arte minimalista seria um exemplo da imagem pensativa de Rancière? Para Didi-
Huberman, a arte minimalista oferece uma operação dialética que possibilita escapar ao
dilema da crença e da tautologia. Ao vê-la, aquilo que nos olha surge sem os conflitos
43
encontrados em algo que apresenta uma mensagem explícita. Nesse caso, é necessário
concatenar o que nos olha e a mensagem apresentada no objeto, procedimento desnecessário
diante da arte minimalista.
Didi-Huberman não demonstra em seu livro preocupação com a intenção do produtor
da imagem, não considera questões políticas que envolvam sua produção. Seu foco está na
inquietude que elas provocam no ato de ver e na aura que as acompanham. Aura no sentido de
Benjamin: “Uma trama singular de espaço e tempo” (Ein sonderbares Gespinst Von Raum
und Zeit)24
, o espaçamento do acontecimento único que cercaria o espectador:
A aura seria portanto como um espaçamento tramado do olhante e do olhado, do
olhante pelo olhado. Um paradigma visual que Benjamin apresentava antes de tudo
como um poder de distância: “Única aparição de uma coisa longínqua, por mais
próxima que possa estar” (einmalige Erscheinung einer Ferne, so nah sie sein mag).
(DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 147) (cit. BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN p.
147).
O impacto da imagem do objeto e a fuga de algo ao olhar: “Sob nossos olhos, fora da
nossa visão” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 148). Didi-Huberman também coloca a aura
como um poder do olhar atribuído ao olhado: “Isso me olha” (Ibid., p. 148). Nas análises do
autor, Benjamin entendia aura como um conjunto de imagens que, surgidas da memória
involuntária, formariam uma espécie de constelação em torno da imagem original. E assim na
aura se cruzam o poder do olhar com a força da memória. Quando essa trama simbólica é
tecida sob um objeto visível, algo literalmente aparece como um acontecimento visual único e
lhe confere uma qualidade de quase sujeito: aquilo que me olha. Esse acontecimento daria à
aura um caráter de experiência estética, no sentido do desejo em que “o que uma pintura
oferece ao olhar seria uma realidade da qual nenhum olho se farta25
” (BENJAMIN apud
DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 149) e no sentido religioso de valor de culto em que algo
longínquo e inacessível dá forma às imagens cristãs. Esse longínquo seria o poder do olhar
que o crente oferece ao objeto, como se olhasse para seu próprio deus e como se ele o olhasse
criando uma dialética de olhares.
24
W. Benjamin. Petite histoire de la photographie (1931), in L’homme, le langage et la culture, Paris, Denoël,
1971 (Ed. 1974), p. 70.
25 W. Benjamin. Sur quelques thèmes baudelairiens, art. Cit. , p. 196.
44
É contra essa aura, que também era entendida como ilusão por Benjamin – “A
ausência de ilusão e o declínio da aura são fenômenos idênticos”26
(BENJAMIN apud DIDI-
HUBERMAN, 2012, p. 153) – que a modernidade irá se definir. Segundo Didi-Huberman, a
reprodutibilidade moderna e a possibilidade de manipulação de imagens propõem um poder
de proximidade, visto pelo modernismo militante como a perda da aura, o desaparecimento da
beleza. O autor entende que a aura de Benjamin é o espaço para a dialética, instância onde
deve ser superado o dilema da aura como campo de desejo e cultual, assim como se deve
ultrapassar a questão da perda da aura na modernidade. Deve-se entender essa dupla distância,
esse duplo olhar “em que o olhado olha o olhante” (2010, p. 160) como a distância na
experiência sensorial, aquela que dialetiza e se desdobra: a imagem dialética. Assim, o
conceito de imagem dialética de Didi-Huberman se aproxima novamente com o termo
imagem pensativa cunhado por Rancière. Ambos se constituem como uma fuga do dilema
dual e um espaço para pensar:
A pensatividade da imagem é então essa relação entre duas operações que põe fora
de si mesma a forma pura demais ou o acontecimento carregado demais de
realidade. Por um lado, a forma dessa relação é determinada pelo artista. Mas, por
outro, é só o espectador que pode fixar a medida da relação, é só o seu olhar que
confere realidade ao equilíbrio entre as metamorfoses da “matéria” informática e a
encenação da história de um século (RANCIÈRE,2012, p. 122).
Ao ler a citação acima, é possível pensar que se trata de uma citação de Didi-
Huberman em seus estudos sobre o ver e o olhar, mas é uma fala de Rancière em seu livro
sobre o espectador. De certa forma, Rancière e Didi-Huberman se complementam no que diz
respeito ao espectador e aos mecanismos do “olhar” que o cercam: Rancière com foco no
espectador e nas questões políticas que o impactam; Didi-Huberman com atenção no ato de
ver e nos processos que ele encadeia.
Outro ponto de proximidade entre Didi-Huberman e Rancière é o reconhecimento da
importância dos dispositivos no estudo da imagem. Para Rancière, mais importante que
considerar questões éticas e morais na produção das imagens, é entender os dispositivos por si
sós. Para o autor, a eficácia da arte não está em transmitir mensagens ou dar modelos de
comportamentos. Ela está de fato na disposição dos corpos e definições de espaços que
definem maneiras de ser. E é exatamente isso que Didi-Huberman faz com excelência ao
concentrar seus esforços de entendimento sobre as peças de arte e a questão imagética em sua
26
W. Benjamin, Zentralpark. Fragments sur Baudelaire. (1938), Charles Baudelaire, p. 237.
45
essência. Ele desenvolve seu estudo sem levar em conta o perfil do espectador que vê aquela
produção e concentra-se no que aquele dispositivo pode trazer à tona, em quais são as
possibilidades de visibilidade, independentemente de quem as vê. Didi-Huberman, ao fazer
seu primeiro achado teórico sobre a arte minimalista e sua relação inevitável com o subjetivo,
infere que, independentemente da forma que dá consistência à obra apresentada, ela será uma
experiência que envolve o lugar dos corpos e uma relação de presença.
A crença religiosa deu o tom para a arte nos tempos da pintura e da escultura,
passando para a busca pela tautologia na era dos ready-made e do minimalismo como forma
de superação do regime anterior. Com base em Rancière e Didi-Huberman, o que se pode
notar agora é a procura de algo novo, algo entre os mundos possíveis, algo que ultrapasse os
achados anteriores. Apesar de esses filósofos exemplificarem o conteúdo de seus livros
exclusivamente com a arte socialmente aceita nos centros de exposições e museus, os
conceitos desenvolvidos por eles são não apenas possíveis de serem aplicados à produção
imagética geral como também recomendáveis por abordarem elementos presentes nos dois
cenários, a saber: o produtor, a imagem/objeto e o espectador. Suas teorias enriquecem as
análises midiáticas que acabam por se estabelecer, na maior parte das vezes, em uma mesma
seara de autores. Compreender as teorias expostas nos livros desses dois filósofos franceses
permite reposicionar o entendimento do espectador para algo fora dos padrões críticos
habituais, além de conceituar e clarificar os processos de produção imagética que envolvem o
“ver” e o “ser olhado” pelos objetos culturais. Tudo isso para direcionar a atenção às mídias
contemporâneas que operam através do olhar. Dessa maneira, talvez fique mais fácil entender
de que forma alguns meios de comunicação contemporâneos capturam esse olhar e o
posicionam como parte do sistema que o alimenta. Mas de que forma os dispositivos de
imagens operam atualmente? Como a questão do olhar se dá com a rápida evolução das
mídias na última década? Qual o jogo de forças que lhe dá forma?
46
3. O TRABALHADOR DO OLHAR: INFLUÊNCIAS BIOPOLÍTICAS
3.1 A competência do olhar
Em pouco mais de uma década, o rápido surgimento de novas tecnologias gráficas
reconfigurou as relações entre o espectador e os modos de representações. Os novos
ambientes visuais fabricados por computadores dissociaram o processo da visão do
observador humano (as câmeras vigiam e identificam pessoas sem a interferência humana).
Para o historiador de arte e estudioso do sentido da visão no contexto das reproduções
artísticas, Jonathan Crary, não há uma história autônoma da visão e por isso é irrelevante
entender se a percepção ou a visão mudam ao longo do tempo. Para o autor:
O que muda é a pluralidade de forças e regras que compõem o campo no qual a
percepção ocorre. E o que determina a visão em qualquer momento histórico não é
uma estrutura profunda, nem uma base econômica ou uma visão do mundo, mas,
antes, uma montagem coletiva de partes díspares em uma única superfície social.
[...] Nunca houve e nunca haverá um observador que apreenda o mundo em uma
evidência transparente. Em vez disso, há diferentes arranjos de forças, menos ou
mais poderosas, a partir dos quais as capacidades de um observador se tornam
possíveis (CRARY, 2012, p. 16).
Em seu livro Técnicas do observador: visão e modernidade no século XX, Crary
aborda os aparelhos ópticos não como modelos de representação, mas como “lugares de saber
e de poder que operam diretamente no corpo do indivíduo” (Ibid., p. 17). O autor defende a
concepção de tecnologia feita por Gilles Deleuze, em que as ferramentas são consequências
das combinações criadas na sociedade que as possibilitou27
. As exigências econômicas que
surgiram no século XIX impulsionaram a racionalização e o controle do espectador,
inaugurando um campo de possibilidades para novas experiências de representações visuais:
A modernização torna-se uma incessante e autoperpetuante criação de novas
necessidades, novas maneiras de consumo e novos modos de produzir. O
observador, como sujeito humano, não é exterior a esse processo, mas imanente a
ele. Ao longo do século XIX, o observador teve de operar cada vez mais em espaços
urbanos fragmentados e desconhecidos, nos deslocamentos perceptivos e temporais
das viagens de trem, do telégrafo, da produção industrial e dos fluxos da informação
tipográfica e visual (Ibid., p.20).
27
“Uma sociedade se define por seus amálgamas, não por suas ferramentas [...]. As ferramentas só existem em
relação às combinações que possibilitam ou que as tornam possíveis.” Gilles Deleuze e Feliz Guattari, A
Thousand Plateaus: Capitalism and Schzophrenia, (Minneapolis, 1987), p. 90 (apud Crary, p. 17).
47
Crary cita o trabalho de Jean Baudrillard em La société de consommation (1970) para
lembrar que a revolução burguesa no final do século XVIII teria formulado o direito do
homem à igualdade e à felicidade. No século XIX, mensurar a felicidade tornou-se necessária
para demonstrar que o direito a ela havia sido alcançado. Essa análise quantitativa da
felicidade deveria ser feita em termos de objetos e signos, algo que pudesse ser visualizado e
percebido. Portanto, o espectador passou por uma adaptação ao habituar-se a perceber a
realidade como feita de objetos, ou seja, mercadorias. De acordo com o autor, a modernidade
para Baudrillard está relacionada à capacidade dos grupos detentores do poder de superar o
“exclusivismo dos signos” e promover a sua proliferação. Nesse campo de distribuição de
signos e objetos produzidos em série, estão a fotografia e as técnicas correlatas. A fotografia
torna-se parte de um campo de consumo e circulação onde se encontra o espectador. A foto
passa a ser um componente importante de uma “nova economia cultural de valor e troca”
(CRARY, 2012, p. 22).
Fotografia e dinheiro tornam-se formas homólogas de poder social no século XX.
Ambos são sistemas totalizantes que englobam e unificam os sujeitos em uma
mesma rede global de valoração e desejo. [...] Ambos são formas mágicas que
estabelecem um novo conjunto de relações abstratas entre indivíduos e coisas, e
impõem essas relações como sendo o real. Por meio das economias do dinheiro e da
fotografia – distintas, mas que se interpenetram –, um mundo social é representado e
constituído exclusivamente por signos (Ibid., p. 22).
Esse renovado contexto social deu origem a um novo sujeito28
. Um sujeito que passa a
ser um dos elos da cadeia que sustenta a economia imagética e tem seu valor por isso. Nesse
contexto, Crary coloca a visão como parte de um processo de controle e adequação dos corpos
(Ibid., p. 26).
Os aparelhos ópticos do século XIX envolveram, não menos que o panóptico,
ordenamentos dos corpos no espaço, regulações das atividades e o uso dos corpos
individuais, que codificaram e normatizaram o observador no interior de sistemas
rigidamente definidos em termos de consumo visual. Trata-se de técnicas para
administrar a atenção, para impor uma homogeneidade perceptiva com
procedimentos que fixaram e isolaram o observador [...] (Ibid., p. 26).
28
Sujeito no sentido dado por Foucault: com base na fisiologia (ser que fala), na biologia (ser que vive) e na
economia (ser que trabalha). O sujeito que se reconhece a partir das relações de poder. Objeto de conhecimento
da ciência e objeto para si próprio: “Se quisermos analisar a genealogia do sujeito na civilização ocidental, é
preciso considerar não apenas as técnicas de dominação, mas também as técnicas de si”. (FOUCAULT, 2004ª, p.
65). Apenas como informação complementar, o registro de uma entrevista concedida por Foucault demonstra a
dedicação do autor sobre o conceito de sujeito: “Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do
meu trabalho nos últimos vinte anos. Não foi analisar o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal
análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os
seres humanos tornam-se sujeitos. (RAIBOW & DREYFUS, 1995, p. 231).
48
Nos estudos do autor, o sentido da visão ganhou autonomia com a reorganização
industrial do corpo no século XIX. O tato, parte integrante do conceito de visão nas teorias
clássicas da visão nos séculos XVII e XVIII, passa a ser considerado de forma isolada.
Entender a visão de forma individual foi condição essencial para a concepção de um
espectador pronto para o “consumo ‘espetacular’”. Técnicas disciplinares no sentido de
“recodificar a atividade do olho, ordená-la, elevar sua produtividade e impedir sua distração”
(CRARY, 2012, p. 32) surgiram com as novas demandas capitalistas de produção. A partir do
século XIX, a ciência da visão passará a abarcar o entendimento fisiológico do sujeito além
do conhecimento anteriormente exclusivo dos processos mecânicos da transmissão óptica.
Nessa época o foco da ciência passa para o homem e sua constituição geral:
O lugar da análise não é mais a representação, mas o homem em sua finitude. (...) Aí
se descobria que o conhecimento tinha condições anátomo-fisiológicas, formava-se
pouco a pouco na nervura do corpo, nele tinha uma sede privilegiada; suas formas,
em todo caso, não podiam ser dissociadas das singularidades de seu funcionamento;
em suma, havia uma natureza do conhecimento humano que lhe determinava as
formas e podia, ao mesmo tempo, ser-lhe manifestada nos seus próprios conteúdos
empíricos (FOUCAULT, 1970, apud CRARY, 2012, p. 75).
Questões como consciência de uma figura ou imagem, representação e subjetividade
passam a povoar os estudos científicos acerca do sujeito humano e seus sentidos. Os
conhecimentos filosófico e fisiológico unem-se nas reflexões acadêmicas: “Foi a descoberta
de que o conhecimento era condicionado pelo funcionamento físico e anatômico do corpo,
talvez ainda mais importante, dos olhos” (Ibid, p. 82).
Para Crary, mesmo a fisiologia, em seus estudos sobre as funções orgânicas, sinalizava
o surgimento de novas formas de poder. Um poder que considerasse as questões fisiológicas,
além das filosóficas. E para essa questão ele cita Foucault:
Quando o diagrama de poder abandona o modelo da soberania em favor de um
modelo disciplinar, quando ele se torna o ‘biopoder’ ou a ‘biopolítica’ dos povos,
que controla e administra a vida, é de fato a vida que surge como o novo objeto de
poder (FOUCAULT, 1970, apud CRARY, 2012, p. 82).
A obra de Michel Foucault, em especial o livro O nascimento da biopolítica, apresenta
um estudo de como a revolução econômica e seus novos processos coincidiram com formas
inovadoras de administrar o social. Mecanismos de poder passam a controlar os trabalhadores
por meio da subjetividade29
, com base no acúmulo de conhecimento sobre os sujeitos
29
Subjetividade tal como compreendida por Félix Guattari: um processo de construção com múltiplos
componentes heterogêneos resultantes da apreensão humana. Valores e sentidos são registrados de forma
49
(medicina, educação, psicologia etc.). Como foi visto, não é possível entender cada sentido
como um canal isolado de sensações. O espectador é único e global nesse aspecto.
3.2 O ambiente que originou a Biopolítica de Foucault
Michel Foucault, em sua obra O nascimento da biopolítica, faz uma extensa
historiografia econômica e política, oferecendo uma profunda análise das formas de poder e
suas mudanças no tempo. Por economia política, entende-se de forma mais ampla e mais
prática todo método de governo capaz de assegurar a prosperidade de uma nação. Para
Foucault, a economia política é também uma reflexão geral sobre a organização, a
distribuição e a limitação dos poderes numa sociedade. A economia política é
fundamentalmente o que possibilitou assegurar a autolimitação da razão governamental.
Razão governamental como a instrumentalização da força de um Estado, da articulação de
técnicas de saber, de controle e de coerção. E o que é essa autolimitação do Estado? Pode-se
entender pelo contraste com a forma de governamentalidade do príncipe. A sabedoria do
príncipe, na tradição, era a forma de poder soberana que se baseava nas presunções do
príncipe, com base nas leis divinas, sobre os direitos e deveres dos súditos. Os prudentes
conselheiros que outrora definiam os limites de sabedoria em função da presunção do príncipe
já não têm nada a ver com os especialistas econômicos que, na contemporaneidade, se
encarregam de dizer a um governo quais são os mecanismos naturais que ele manipula. Com a
emergência do mercantilismo30
e seu jogo econômico que sempre encontra um resultado
desfavorável em algum sentido (o enriquecimento é sempre à custa do outro), a razão
governamental passa a encontrar no mercado sua base de veridição e limitação. São os
processos mercadológicos que determinarão os limites dessa razão governamental. Esse
mercado, baseado na troca, precisa de certa liberdade para funcionar: liberdade do mercado,
liberdade do vendedor e do comprador, livre exercício do direito de propriedade. Essa razão
singular e tornam-se matéria-prima para a expressão dos afetos vividos. A produção de subjetividades é um
processo orgânico onde ao mesmo tempo que o sujeito acolhe os elementos de subjetivação em circulação, ele os
emite. (GUATTARI & ROLNIK, 1996, p. 31 a 47).
30 Mercantilismo – conjunto de práticas econômicas desenvolvido na Europa da Idade Moderna, entre o séc. XV
e o final do séc. XVIII. Caracterizou-se por uma forte intervenção do Estado na economia. Consistiu numa série
de medidas tendentes a unificar o mercado interno e teve como finalidade a formação de fortes Estados-
nacionais (HUNT, E. K. História do pensamento econômico; Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 44).
50
governamental que só pode funcionar se existe efetivamente certo número de liberdades, é o
que Foucault chamou de Liberalismo:
A nova arte governamental vai se apresentar, portanto como gestora da liberdade,
não no sentido do imperativo “seja livre”, com a contradição imediata que esse
imperativo pode trazer. O liberalismo formula simplesmente o seguinte: vou
produzir o necessário para tornar você livre... É necessário, de um lado, produzir a
liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se estabeleçam
limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças etc. (2008, p. 89).
A liberdade no regime liberal vai servir de reguladora e, para tanto, tem de ser
produzida. A liberdade é algo que se fabrica a cada instante: “O liberalismo não é o que aceita
a liberdade. O liberalismo é o que se propõe fabricá-la a cada instante” (FOUCAULT, 2008,
p. 89).
Outra consequência desse liberalismo e dessa arte liberal de governar é a formidável
extensão dos procedimentos de controle, de pressão, de coerção que vão constituir uma
espécie de contrapartida e de contrapeso das liberdades. De acordo com Foucault, Bentham,
no fim da vida, apresenta o célebre panóptico como a própria fórmula de um governo liberal.
Isso porque, no fundo, o que o governo deve fazer é dar espaço a tudo o que pode ser a
mecânica natural tanto dos comportamentos como da produção. Deve dar espaço a esses
mecanismos e não deve ter sobre eles nenhuma outra forma de intervenção, pelo menos em
primeira instância, a não ser a da vigilância.31
Foucault aponta uma crise do liberalismo por volta dos anos 1925 – 1930, levada por
equívocos nos dispositivos que produziam liberdade e que, eventualmente, produziam
exatamente o inverso. De acordo com o autor, as políticas econômicas intervencionistas
elaboradas entre os anos 1930 e 1960 levaram a reavaliações e reestimações na forma de
governar.
Um neoliberalismo surge com exigências pós-guerra, como a de reconstrução, isto é,
reconversão de uma economia de guerra numa economia de paz, reconstituição de um
potencial econômico destruído, exigência de objetivos sociais que evitassem a repetição do
que acabara de acontecer, a saber: o fascismo e o nazismo na Europa.
31
Jeremy Bentham, filósofo e jurista inglês, elaborou o conceito de panóptico em 1789 como modelo de prisão
para a reforma de encarcerados (Wikipedia). Esse conceito foi explorado nos estudos de Foucault como um
conjunto de dispositivos disciplinares que permitem a vigilância e o controle social.
51
No liberalismo do século XVIII, o mercado era definido e descrito a partir da troca, a
troca livre entre dois parceiros que estabelecem por sua própria troca uma equivalência entre
dois valores. O modelo e o princípio do mercado eram a troca, e a liberdade do mercado, a
não-intervenção de um terceiro, de uma autoridade qualquer. Ora, para os neoliberais, o
essencial do mercado não está na troca. O essencial do mercado está na concorrência. De
resto, os neoliberais não fazem mais que seguir toda uma evolução do pensamento, da
doutrina e da teoria liberal no decorrer do século XIX: “Praticamente, admite-se em quase
toda a teoria liberal, desde o fim do séc. XIX, que o essencial do mercado é a concorrência,
isto é, que não é a equivalência, mas a desigualdade” (FOUCAULT, 2008, p. 161).
Com o neoliberalismo, rompe-se com a ideia “naturalista” dos liberais, isto é, o que
considera que o mercado seja definido pela troca, o que é de qualquer modo uma espécie de
dado natural, algo que se produz espontaneamente e que o Estado deveria respeitar. Pois, de
fato, a concorrência, em seu jogo, em seus mecanismos e em seus efeitos positivos que
identificamos e valorizamos, não é em absoluto um fenômeno natural:
A concorrência possui uma lógica interna, tem sua estrutura própria. Seus efeitos só
se produzem se essa lógica é respeitada. É, de certo modo, um jogo formal entre
desigualdades. Não é um jogo natural entre indivíduos e comportamentos (Ibid., p.
163).
O liberalismo, se é possível assim dizer, conduz à igualdade, à massificação das
relações a partir de um regime de troca, de algo pontuado com naturalismo econômico. O
Neoliberalismo vai se situar dentro de uma política ativa e extremamente vigilante:
O mercado e a concorrência não são mecanismos naturais e automáticos, mas o
resultado de uma construção que tem necessidade de uma multiplicidade de
intervenções, notadamente estatais, para existir e funcionar. Para poder laisser
faire32
, é preciso intervir muito [...] O governo neoliberal deve agir sobre a própria
sociedade na sua trama [...] (LAZZARATO, 2011, p. 18).
Num regime de poder existem as ações ordenadoras; ações que, para Foucault, têm por
função intervir nas condições do mercado, mas nas condições mais fundamentais, mais
estruturais, mais gerais. O mercado é um regulador econômico e social geral, o que não quer
dizer, entretanto, que ele seja um dado natural, podendo ser encontrado na base da sociedade.
Essa política que age sobre a população é apresentada por Foucault como política de moldura,
a qual não pode adotar a igualdade como objetivo; ao contrário, ela deve deixar a
32
Expressão que defende o princípio liberal da não interferência no mercado (Wikipédia).
52
desigualdade agir. O jogo econômico e os resultados de desigualdade que ele apresenta são
uma forma reguladora geral da sociedade a que todos devem se prestar. Da desigualdade entre
sujeitos, surge a política social individual: atender às pessoas individualmente dentro da
sociedade. Trata-se, portanto, não de um governo econômico, mas de um governo neoliberal
da sociedade:
Pelo governo da sociedade deve-se garantir que o mercado seja possível. Dessa
forma, o valor de troca constituiria, ao mesmo tempo, a medida e o critério geral dos
elementos, o princípio de comunicação dos indivíduos entre si (FOUCAULT, 2008,
p. 200).
Nessa passagem, Foucault reconhece a centralidade da comunicação nos processos
econômicos e políticos. E, se o autor considera a desigualdade como forma reguladora política
e econômica do neoliberalismo, podem-se eventualmente encontrar na comunicação forças
irregulares e posicionamentos desiguais.
Para que o mercado seja possível e que a troca e a concorrência sejam uma realidade, é
preciso que exista a comunicação entre os sujeitos, mesmo que desregulada. Comunicação
baseada nos sujeitos e nos “discursos de verdade” que permeiam suas relações de poder:
Não há exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que
funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos submetidos à produção da
verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade
(FOUCAULT, 2000, p. 28-29).
Pois bem: como se daria tal crítica mediante a situação social na qual estamos imersos
na atualidade?
3.3 Biopolítica
As mudanças nas práticas governamentais no final do século XIX e início do século
XX evidenciaram a Foucault a importância das tecnologias de poder nesse novo contexto
político. Num tempo em que a razão deve justificar o poder, a atenção governamental acaba
voltando-se para a saúde, a higiene, a natalidade, aos costumes etc. Esse contexto de
modificações nas técnicas de poder dá forma e fortalece as instituições que mediarão o social
e o governamental (escolas, hospitais, penitenciárias). Esse conjunto de instituições e práticas
53
de controle da vida, Foucault denominou governamentalidade33
. A população passa a ser a
ferramenta para o exercício do poder que a governa. A esse mecanismo Foucault deu o nome
de biopolítica. Ao contrário dos poderes tradicionais que se utilizavam do medo da morte
como forma de governar, a biopolítica trabalha com a vida e seus cuidados. Com o foco na
população, o biopoder controla os indivíduos por meio da correção de comportamentos, não
mais com a punição.
O conceito de biopolítica, que permeia a sociedade disciplinar e se estende até os dias
de hoje, põe em foco as análises das práticas políticas de dominação e evidência da verdade.
A genealogia do poder concentra-se exclusivamente nas práticas de subjetivação individual e
do grupo social. Da sabedoria do príncipe, passando pelo disciplinamento dos corpos
operantes na economia, até a existência do poder em seu caráter biológico-social, Foucault
opta não pela análise no nível da teoria política, mas antes no nível dos mecanismos, das
tecnologias de poder. As teorias sociais ficam em segundo plano e a caracterização das
tecnologias de poder segue como foco principal desse estudo. O autor parte de uma análise do
poder disciplinar no século XVIII, nascimento da Revolução Industrial na Europa, em que os
corpos precisariam ser disciplinados com o intuito de ficarem dóceis e aptos ao sistema de
produção vigente. As instituições sociais ainda nos conduzem a essa sujeição. Na tecnologia
disciplinar, a busca da sujeição é feita por meio da objetivação que incide sobre o corpo
individual. Trata-se de uma técnica específica que torna os sujeitos ao mesmo tempo objetos e
instrumentos de suas práticas. No início do século XIX, a necessidade de aperfeiçoar as
técnicas de disciplinarização deu impulso a um novo posicionamento do poder de Estado, o
poder sobre o homem-espécie, sobre a conduta de vida dos indivíduos.
A biopolítica passa a regulamentar o social por meio de questões de saúde pública,
controle de natalidade, longevidade, velhice, espaço público. Ou seja, de outra forma, o social
passa a regular a política. Nessa racionalidade de Estado, é preciso controlar de forma sutil os
processos biopolíticos. Mais que isso, é interessante permitir que o próprio social vigie o
social. Oferecer ferramentas de vigilância que permitam a esse regulador da
governamentalidade exercer a sua função. As tecnologias contemporâneas que deslocam o
33
Foucault, M. (1978). A governamentalidade. Em Michael Foucault, Microfísica do poder (pp. 277-293). Rio
de Janeiro: Graal
54
poder para o campo virtual determinam uma forma de poder estabelecida por Gilles Deleuze
(1992): a sociedade de controle.
Não mais, apenas, o confinamento e a vigilância que sequestram a vida do indivíduo
e da massa à qual ele pertence, mas o controle, que na virtualidade do real modulam
ilimitadamente a vida. Estamos na vergonha e no intolerável, “estamos entrando nas
sociedades de controle, que funcionam não mais por confinamento [não que os
mesmos ainda não persistam], mas por controle contínuo e comunicação
instantânea” (DELEUZE, 1992, pg. 216).
É possível afirmar que, nesse cenário político-econômico, baseadas num processo de
autorregulação constante, as mídias são uma importante, ou mesmo essencial, ferramenta de
governamentalidade. Elas possibilitam a constituição da sociedade civil que se autorregula e
produz em seu seio a razão governamental. E, nesse contexto, podem-se incluir as mídias no
hall de elementos que dão forma ao dispositivo biopolítico34
. O papel da comunicação é
também apresentado por Deleuze como fundamental nesse tipo de sociedade. Por meio dela,
ele concebeu como possíveis alguns conceitos centrais em seus estudos sobre essa formação
social de controle. O autor apresenta uma análise dualística das condições pertencentes à
sociedade disciplinar, contrastadas com as da sociedade de controle. Por exemplo, a passagem
da assinatura à senha. Não é mais suficiente assinar o nome, é preciso ter a senha de acesso. O
sujeito passa a ser dividual, ou seja, separado de si mesmo. Na sociedade disciplinar, trabalha-
se por meio de moldes, de forma analógica. No controle, os processos se desenrolam por
sistemas numéricos e a capacidade de variação das informações possibilita a fuga dos moldes
impostos pelas instituições sociais e a constituição de uma modulação, de um campo de
possibilidades de controle. O estudioso da comunicação Aidar Prado (2013) questiona a
escolha feita por Deleuze para o nome dessa sociedade que se instituía (sociedade de
controle), já que se pode notar a busca pelo controle desde as tecnologias disciplinares. O
autor, então, prefere chamar esse novo período de “era das convocações, cujo primeiro
momento Debord nomeou sociedade do espetáculo” (2013, p. 28). Rodeado de tecnologias
midiáticas, o sujeito contemporâneo se encontra constantemente em interatividade com os
34
Dispositivo no sentido dado por Foucault em sua obra História da sexualidade, especialmente em A vontade
de saber: “... um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a
rede que se pode tecer entre estes elementos.” (2000, p. 244)
55
enunciadores do dispositivo biopolítico. Esse processo pode ser apenas de input e output ou
mais complexo, em que o enunciador passa a realizar análises simbólicas:
Nesse caso, o enunciador não faz cálculos referenciais que auxiliem o tráfego entre
dois pontos geográficos (a exemplo de um GPS, que por meio de uma informação
fornecida apresenta o resultado solicitado35
), mas sim entre dois pontos simbólicos,
numa escala temporal. Onde você está hoje em termos da administração de sua vida
financeira (ou de sua vida amorosa, ou dos cuidados com seu corpo, etc.) e aonde
você quer chegar? “Esse lugar” almejado é construído a partir de serviços e produtos
disponíveis no mercado. [...] No mundo contemporâneo há uma infinidade de
enunciadores, que, além de informar e responder às demandas dos usuários, também
nos convoca para programas específicos, apoiados em atividades e serviços
oferecidos no mercado (PRADO, 2013, p. 10-11).
O autor ainda complementa: “A convocação oferece, portanto, não uma satisfação
pura e simples para uma necessidade ‘natural’, mas dá forma a uma demanda latente,
fazendo-a expressar-se num querer cultural...” (2013, p. 12). Nesse contexto, Prado coloca as
mídias como dispositivos convocadores de primeira ordem no capitalismo contemporâneo. A
contrapartida da convocação é a encarnação. Uma vez que o discurso é encarnado, o
espectador se torna o emissor que vivencia o discurso pelo qual ele foi convocado.
É possível dizer, então, que o espectador se torna a mídia da mídia? Nessa direção,
Prado coloca a vida como espetáculo e cita oportunamente Guy Debord (1997):
O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
mediada por imagens. Não se trata aí do abuso de um mundo de visão, mas uma
visão de mundo que se objetivou e da “tendência a fazer ver (por diferentes
mediações especializadas)” (PRADO, 2013, p. 78 ) (DEBORD apud PRADO, 2013,
p. 78).
Um novo cenário artístico e midiático se desenvolveu nos últimos tempos e, com ele, a
possibilidade de um sujeito renovado. A inauguração de formas de poder biopolíticas
acompanhou o lançamento das mídias digitais que permitem a livre participação do usuário. O
controle dos corpos está mais sofisticado e a ordenação social por meio dos sentidos,
facilitada nas tecnologias informáticas.
35
Parênteses explicativo meu. Feito sobre exemplo dado pelo próprio autor no livro em questão.
56
3.4 O espectador digital como trabalhador do olhar. A existência como
remuneração.
Na biopolítica, o poder é deslocado para o sujeito econômico ativo. Foucault (2008)
parte da seguinte análise: as pessoas trabalham para ter um salário. O salário é uma renda, do
ponto de vista do trabalhador. O que é uma renda? Uma renda é simplesmente o produto ou o
rendimento de um capital. E, inversamente, todo capital será chamado, de uma maneira ou de
outra, de uma fonte de renda futura. O salário é, portanto, a renda de um capital. É o conjunto
de todos os fatores físicos e psicológicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou
aquele salário. Do ponto de vista do trabalhador, em termos econômicos, o trabalho comporta
um capital, isto é, uma aptidão, uma competência, uma “máquina”. Essa decomposição do
trabalho em capital e renda induz, evidentemente, a certo número de consequências
importantes. Em primeiro lugar, sendo o capital assim definido como o que torna possível
uma renda futura, renda essa que é o salário, pode-se concluir que se trata de um capital que é
praticamente indissociável de quem o detém. A aptidão a trabalhar, a competência, o poder
fazer alguma coisa, tudo isso não pode ser separado de quem é competente e pode fazer essa
coisa:
Em outras palavras, a competência do trabalhador é uma máquina, mas uma
máquina que não se pode separar do próprio trabalhador, o que não quer dizer
exatamente, como a crítica econômica, ou sociológica, ou psicológica dizia
tradicionalmente, que o capitalismo transforma o trabalhador em máquina e, por
conseguinte, o aliena. Deve-se considerar que a competência que forma um todo
com o trabalhador é, de certo modo, o lado pelo qual o trabalhador é uma máquina,
mas uma máquina entendida no sentido positivo, pois é uma máquina que vai
produzir fluxos de renda. [...] Na verdade, essa máquina tem sua duração de vida,
sua duração de utilizabilidade, tem sua obsolescência, tem seu envelhecimento. Não
é uma concepção da força de trabalho, é uma concepção do capital-compétence, que
recebe, em função de variáveis diversas, certa renda que é um salário, uma renda-
salário, de sorte que é o próprio trabalhador que aparece como uma espécie de
empresa para si mesmo. Uma sociedade feita de unidades-empresas. (FOUCAULT,
2008, p. 310).
Essa unidade-empresa apresentada por Foucault seria o homo oeconomicus, que, na
concepção clássica, é o homem da troca, é um dos dois parceiros no processo de troca. No
neoliberalismo, o homo oeconomicus não é em absoluto um parceiro da troca. Ele é um
empresário, e um empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo
seu produtor e a fonte de sua renda.
57
Mas quando pensamos no homem-empresa, apesar das subjetivações às quais ele é
levado pela governamentalidade, entendemos que ele é também sujeito de desejos e
satisfações individuais. Ainda na obra de Foucault (2008), encontra-se uma passagem sobre a
teoria de consumo de Gary Becker que diz:
Não se deve acreditar que o consumo consiste simplesmente em ser, num processo
de troca, alguém que compra e faz uma troca monetária para obter um certo número
de produtos. O homem do consumo não é um dos termos de troca. O homem do
consumo, na medida em que consome, é um produtor. Produz o quê? Pois bem,
produz simplesmente sua própria satisfação. E deve-se considerar o consumo como
uma atividade empresarial pela qual o indivíduo, a partir de certo capital de que
dispõe, vai produzir uma coisa que vai ser sua própria satisfação (FOUCAULT,
2008, p. 311).
Apesar da base político-econômica do social, o homo oeconomicus busca
essencialmente o prazer, a satisfação. Para o filósofo italiano Giorgio Agamben (2009), todos
os dispositivos e, portanto, também os midiáticos, têm em suas raízes “um desejo demasiado
humano por felicidade” (p. 17). Para Prado (2013), vivemos a lógica do capitalismo flexível
“em que mesmo a informação mais séria deve ter seu lado lúdico” (p. 75). Olhar, diferente de
escrever e ler, não requer qualquer aprendizagem, é algo nato. Não é preciso saber gramática
ou ortografia, nem tampouco reconhecer os símbolos da linguagem. Olhar é livre de qualquer
regra normativa. Olhar pode anestesiar. Certo grau de subjetivação ou modulação é assumido
pelo espectador quando há alguma satisfação naquilo que vê. Ver também é tido como
verdade. Pode-se duvidar de algo que alguém disse, algo que alguém escutou, mas quando
alguém diz “eu vi”, pouco se questiona. É claro que o olho de cada um influencia a imagem
vista, como vimos em Rancière e Huberman. Desse posicionamento também comunga
Eugênio Bucci, estudioso da comunicação. Ele dá uma definição inusitada ao olhar quando o
define como trabalho e acaba por nos levar novamente ao primeiro parágrafo desta seção, em
que falamos sobre a definição, feita por Foucault, de trabalho, capital e renda. Para o autor:
Olhar é trabalhar. Mais propriamente, o olhar, a instância que dá o tecido do
“espetáculo do mundo” 36
, é trabalho. Olhar é trabalhar, menos no sentido biológico
ou fisiológico, e mais no sentido social. No sentido cultural e econômico: o olhar
constrói o sentido e o valor da imagem (BUCCI, 2010, p. 290).
Dessa forma, uma imagem existe não no momento em que foi concebida, mas a partir
do instante em que são captadas pelo olhar: “Elas existem no olhar – ou não existem”
(BUCCI, 2010, p. 290). Ao considerar os produtores de imagens (fotógrafos, pintores, 36
Segundo Bucci, a expressão é de Merleau-Ponty.
58
artesãos, entre outros) sob influência da demanda do público ao qual seu trabalho se destina, é
importante considerar a concepção das imagens como algo, a certo grau, previamente
estabelecido.
O olhar fabrica a imagem como signo e como mercadoria. A imagem passa a ter valor
apenas após o olhar do suposto consumidor. Por esse ângulo, o consumidor é o “operário da
figura que vê” (BUCCI, 2010, p. 291).
Ele trabalha (opera, produz, fabrica) a inserção da figura que vê na instância do
imaginário. A síntese final do significado das imagens, que pertence ao imaginário,
vai se concluir apenas no instante em que o suposto consumidor olha para ela,
autorizando o encadeamento de significantes visuais que ela se propõe a
(re)combinar. Consumir imagens é consolidar seu significado. Na mesma medida,
consumir imagens é também fabricar seu valor 37
(BUCCI, 2010, p. 291).
Para Bucci (2010), as imagens são mercadorias não corpóreas: embora não tenham sua
dimensão física como valor, referem-se a um significado corpóreo – assim como o signo de
uma marca faz emergir inúmeras significações que se remetem à mercadoria. E o signo, para
o autor, fala sobretudo ao desejo, e não à necessidade. O capital imprime valor à mercadoria
primeiramente com sua versão não corpórea e seu conjunto simbólico possível, desde que
captado pelo olhar do consumidor.
Ao importar os conceitos de significante/significado das ciências da linguagem e
comunicação, o autor faz uma reflexão sobre a relação do sujeito com a mercadoria, corpórea
e não corpórea. Para ele, o valor da mercadoria é o seu significante:
O valor de troca, valor que se materializa no instante em que é arrancado ao trabalho
humano, valor que deixa de pertencer ao trabalhador para inscrever-se na
mercadoria, age como o significante sobre o significado que se expressa no valor de
uso da mercadoria (BUCCI, 2002, p. 58).
Para Bucci, a mercadoria é imagem. Esse posicionamento é resguardado pela análise
da obra O capital de Karl Marx, feita pelo autor. Nela ele encontra uma brecha teórica na
concepção da mercadoria como exclusivamente dimensão material:
A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual, pelas suas
propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas
37
Nota do autor na citação apresentada (BUCCI, 2010, p. 291) – “Tanto é assim que a indústria do
entretenimento inventou fórmulas de remunerar o olhar. O que a publicidade compra não é apenas a atenção do
potencial consumidor do produto anunciado, mas um fragmento do olhar social, fungível, que fabricará a
condição de signo reconhecível para aquela marca ou mercadoria. Sem a compra dessas fatias de olhar o signo
não ganha ingresso no repertório comum ou, dizendo de outro modo, no imaginário”.
59
necessidades, se ela se origina do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa
(MARX, 1985, p. 45 apud BUCCI, 2010, p.292).
Bucci situa a imagem na categoria de mercadoria e, diante dessa citação de Marx,
define mercadoria como algo que satisfaz necessidades físicas e psicológicas do consumidor.
Com base nessas considerações, podemos dizer que as imagens divulgadas nos sites de
entretenimento na Web são mercadorias. Sendo mercadoria, e obviamente essa definição está
dentro de um sistema econômico capitalista regido pela troca, de que forma o espectador paga
por ela, já que não estamos falando de um serviço monetizado? É possível afirmarmos que o
pagamento é feito pelo depósito do seu olhar na mercadoria produzida? Além disso, quais
necessidades essa mercadoria-imagem atende? Se considerarmos que o espectador está a todo
tempo olhando imagens nesses sites sem saber previamente o que está por vir (ao optar por
iniciar uma projeção, o espectador está sujeito ao que surgir, independentemente de suas
preferências), é possível deslocarmos das imagens aquilo que o satisfaz nesses ambientes
digitais. Pode-se considerar a satisfação apenas do prazer de olhar? Existe um prazer no olhar,
ou existe um prazer no que olhamos? Se o espectador inserido nos ambientes digitais de
entretenimento na Internet não sabe ao certo o que será ali reproduzido, talvez sua satisfação
esteja em algo além.
Ao colocarmos o espectador como trabalhador do olhar, estamos enxergando essa
posição pelo ângulo do detentor das imagens. A produção imagética terá seu valor
determinado pelo número de olhares que a captam. Nesse sentido, pode-se inferir que aquilo
que satisfaz o espectador é a remuneração do seu trabalho (trabalho do olhar). O espectador é
remunerado pela sua força de trabalho e não pelo trabalho em si. Sobre a mercadoria que
produz não lhe é dado total direito. Sem ser proprietário do produto de seu trabalho, ele se
reduz à condição de detentor da força de trabalho, pela qual ele também passa a ter um valor,
uma remuneração, colocando-o dessa maneira em um patamar de igualdade com a mercadoria
produzida. O sujeito só existe quando o capital lhe institui esse valor. Trabalhar pressupõe a
existência de um trabalhador produtivo que se reconheça como tal ao cumprir as regras de
trabalho estabelecidas. Para Foucault (1985), a sujeição (controle e dependência) a outros
permite a construção de uma identidade e de um conhecimento de si. Submeter-se seria a
condição inicial para a existência38
. Se tomarmos essa concepção para analisarmos o trabalho
38
“Butler (1997) é uma das autoras que se interessou pelo tema, estudando como nos constituímos como
sujeitos, a partir da incorporação de normas sociais, tentando estabelecer um diálogo conceitual entre Foucault e
Freud. Para ela, a idéia de Foucault de que o sujeito é formado em sua sujeição, a partir das relações de poder,
60
voluntário39
realizado pelo espectador digital no YouTube ou em qualquer outra mídia que
funcione de forma similar, podemos questionar se a “remuneração” desse trabalhador do olhar
que opera na Internet (aquilo que o satisfaz) seria a confirmação de sua existência40
. A
contabilização das ações do espectador (views) proporciona-lhe uma sensação de existir diante
daquilo que, de alguma forma, ele alterou (mesmo que seja a mudança de dígitos). De certa
maneira, o espectador digital possui uma fração do poder distribuído aos incontáveis olhares
disponíveis e que podem determinar certo valor a um produto imagético.
O conceito trabalhador do olhar nos aproxima do conceito cunhado por Foucault, o
homo oeconomicus, unidade-empresa, sujeito portador do capital-compétence que coloca o
espectador na condição de máquina geradora de renda. Suas competências lhe dão mais ou
menos valor diante do capital. Dessa forma, o olhar pode ser visto como uma das capacidades
passíveis de renda do sujeito economicamente ativo na contemporaneidade e pela qual ele é
constantemente convocado e estimulado. Remunerado com o prazer na confirmação de sua
existência por meio da possibilidade de mudar algo e da sujeição a um mecanismo de poder
que lhe confere a possibilidade de construção da sua identidade e do conhecimento de si, o
espectador digital segue como trabalhador do olhar nas mídias de entretenimento na Internet,
sem qualquer intenção de parada.
encontra ressonância no processo descrito por Freud em relação à formação das instâncias psíquicas. Em ambos,
o sujeito carrega o paradoxo da submissão a outros por meio do controle e dependência (sujeição), ao mesmo
tempo em que esse assujeitamento permite a construção de uma identidade, pela consciência ou conhecimento de
si mesmo”. (RAMMINGER, T. & NARDI, H., 2008)
39 Voluntário no sentido de fazer de boa vontade, sem interesse em qualquer remuneração material.
40 Existência no sentido exclusivo de estar vivo, ser.
61
CONCLUSÃO
Quanto mais visualizações apresenta um vídeo disponibilizado no YouTube, mais
valor monetário ele contabiliza. Nos meios de entretenimento que permeiam a Internet,
quanto mais olhares sobre uma representação imagética, maior valor monetário terão a mídia
e seu produtor. O espectador digital é o trabalhador voluntário de uma forma inaugural de
economia. Trabalho travestido de qualquer outra coisa que não se pareça com uma cansativa
jornada de labuta. Para esse, não há trabalho no que faz, apenas prazer em olhar.
Ao imaginar que se diverte, o humano trabalha – pelo seu olhar e também no olhar
onde entra em cena o “espetáculo do mundo”. A crença de que se diverte é essencial
a essa forma avançada de trabalho na indústria do imaginário (BUCCI, 2010, p.
299).
Ao ver as imagens produzidas (neste estudo: a campanha Kony 2012, o ensaio
fotográfico de Nana Gouvêa, os quadros de Helwein, as imagens políticas de Rancière e a arte
minimalista de Didi-Huberman), o espectador recorre àquilo que o olha, como disse Didi-
Huberman; recorre à aura daquilo que está representado, para lembrar Benjamin. A percepção
da imagem é condicionada a subjetividade do espectador e repercute em suas ações,
principalmente quando faz parte de um sistema de governamentalidade que a sustenta. Os
sentidos humanos, incluindo a visão, são captados pelo dispositivo biopolítico que os controla
por meio da subjetivação. O sucesso alcançado pelo vídeo da campanha Kony 2012 evidencia
o impacto das imagens no procedimento dos espectadores. A produção está inserida no que
Rancière apresenta como tradição crítica do pensamento. Diante desse contexto, o espectador
encontra imagens que expõem a realidade de forma dualística, opondo opostos que revelam a
culpa de quem as vê. Apenas olhar o filme da campanha já coloca o espectador como parte
dele. As imagens apresentadas de forma a cooptar a subjetividade do observador o anestesiam
e o impedem de qualquer outra ação que não a de vê-las e/ou compartilhá-las. Ultrapassar a
dualidade reflexiva é defendido por Rancière e Didi-Huberman. É preciso encontrar o entre
(Didi-Huberman) ou a imagem pensativa (Rancière) como forma de sair da concepção
tradicional de que é preciso ensinar algo ao espectador tido como passivo. Não é o espectador
que é passivo, mas sim o conjunto de ideias sustentadas pelo modelo tradicional do
pensamento crítico dominante que o entende dessa forma. Olhar é também agir. Ao olhar,
refletir, lembrar, associar, o espectador também atua. Não há problema em ser espectador,
pois quem opera também o é eventualmente. A questão é compreender o funcionamento do
62
sistema de pensamento crítico tradicional para ultrapassá-lo. Baseado no sistema econômico
capitalista, os dispositivos absorvem e invertem tudo o que se opõe a ele. Os símbolos e as
imagens de luta e de oposição ao sistema dominante passam a ser cultuados pelo capital,
retirando o efeito de qualquer tentativa de crítica. O rosto de Che Guevara estampado em uma
camiseta deveria representar o ideal da luta armada que comandou, mas seu uso foi
massificado e transfigurado em qualquer coisa contracultural, desvinculado da revolução
política que liderou. Converteu-se em um dos símbolos mais reproduzidos mundialmente para
uso artístico, simbólico e publicitário a ponto de ser reconhecido por uma revista
estadunidense como uma das celebridades (celebridade!) mais importantes do século XX41
. A
apropriação da imagem do guerrilheiro latino pelo sistema de pensamento dominante pode
passar despercebida e por isso Rancière coloca a importância de se entender a máquina.
Conhecer o funcionamento do dispositivo e os mecanismos de poder dos quais é dependente
torna-se mais central que o estudo da imagem em si.
A obra de Foucault esclareceu o funcionamento de mecanismos de poder e,
consequentemente, o entendimento da captação mercadológica do olhar. A biopolítica permite
compreender uma ordenação sutil dos corpos e o controle político dos sentidos. Passando pelo
entendimento dos sistemas econômicos liberal e neoliberal, é possível entender que na
economia é preciso laisser faire, ou seja, permitir que ela funcione de forma relativamente
independente. Ela deve se autorregular e, para isso, o controle dos sujeitos é essencial. É
preciso indicar as formas de vida possíveis para que a economia prospere e a política
reverbere. Num contexto sugestionado, controlar é necessário. Ferramentas para vigiar o
social fazem parte do contexto governamental contemporâneo. O sujeito se estabelece como
instrumento de poder quando ele se torna responsável por cuidar de si e vigiar os demais.
Mais que isso, o sujeito é o que Foucault chama de capital-compétence de si mesmo. Seu
corpo e seus sentidos passam a ter um valor monetário na sociedade econômica. Assim, olhar,
além de ser um canal de controle e subjetivação, é remunerado por ferramentas de
entretenimento na Internet. Esses mecanismos são dispositivos biopolíticos evidentes. Neles é
possível identificar grande parte dos processos biopolíticos descritos por Foucault. O estudo
relacionado à view do YouTube trouxe à tona – além das questões foucaultianas de
subjetivação, controle e poder – a reflexão sobre a remuneração desse trabalhador do olhar,
41
DORFMAN, Ariel. Heroes & Icons - Che Guevara.. Time, 14 de junho de 1999
63
uma remuneração que pode ser indicada como a satisfação do espectador digital em confirmar
a sua existência a partir da sujeição a algo que lhe possibilita a construção e o reconhecimento
de sua identidade. O olhar é contabilizado e monetizado por meio da view, o que coloca esse
sentido como ferramenta de trabalho no âmbito social. Pode-se questionar se isso já não é
algo antigo, já que toda forma de representação tem seu valor pelo volume de olhares que
atrai (a audiência da TV, por exemplo, é a contabilização dos aparelhos ligados em
determinado programa). Porém, dois pontos são novos e revolucionários: primeiramente, a
contagem agora é de olhares, ou seja, individualizada por pessoa e/ou por ação (quantas
máquinas acessaram aquilo e/ou quantas vezes o espectador assistiu àquela representação).
Em segundo lugar, o espectador também pode produzir para outros espectadores. A produção
feita também pode ser monetizada pelo site de entretenimento e tornar-se para ele uma fonte
de capital. Para isso, é preciso que o produtor atraia espectadores. Ele só será embolsado se
atingir certo número de views. Novamente, o espectador que oferecia seu trabalho por meio
do olhar passa a ter outra posição de trabalho, agora como captador de olhares. Ele passa a
trabalhar para a máquina, para o dispositivo. Porém, há fissura nesse processo biopolítico. O
produtor independente não tem uma determinação pré-estabelecida pelo site de
entretenimento sobre o conteúdo de sua produção. Ele pode desenvolver suas ideias e
apresentá-las no site, desde que siga as normas de conduta gerais estabelecidas pela mídia. De
qualquer forma, há uma abertura para algo novo, uma certa liberdade concedida ao direito de
criação e de expressão, ao menos até esse momento.
Há também outra questão que pode ser objeto de uma investigação futura: como se
estabelecem os deficientes visuais em um mundo que promove as pessoas pelo olhar? Sem a
possibilidade de oferecer o seu olhar para os produtos imagéticos na Internet, essa deficiência
exclui seus portadores do mundo virtual. Há formas de incluí-los nos processos econômicos
dos sites de entretenimento na Web? Isso é necessário?
Além disso, é de extrema importância refletir sobre a nova geração de pessoas, os
chamados nativos digitais. Tudo o que foi apresentado neste estudo foi possível por partir de
uma visão que consegue comparar um mundo sem dispositivos digitais e um mundo com eles.
Esses dispositivos que agem diretamente no corpo podem ser sentidos por aqueles que
sentiam seus corpos livres desses mecanismos. Porém, a pessoa que nasce em um ambiente
tecnológico digitalizado talvez não consiga identificar esses mecanismos que estarão tão
absorvidos por seus corpos que poderão ser compreendidos como um dado natural. Seria o
64
ponto alto da máxima de Marshall McLuhan (1964): “Os meios de comunicação como
extensão do homem”. Se considerarmos tecnologias ainda pouco difundidas como o Google
Glass, essa hipótese torna-se muito próxima de comprovação. O dispositivo é polêmico, a
começar pela escolha do nome dado a esse produto. A Apple detém o domínio
googleglass.com, porém também detém o domínio googleeye.com (algo constatado em rápida
pesquisa no site DomainTools). Teria o produto um grau de conexão com o corpo tão alto a
ponto de a própria empresa não saber ao certo se o produto complementa (glass) ou sobrepõe
o sentido da visão (eye)? Ou alguma ferramenta inovadora ainda estaria por vir? Ver as
imagens comerciais no site do Google Glass chega a assustar nativos de uma geração que
assistia a Blade Runner como a representação de uma situação tão distante que talvez não
chegassem a ver (isso se ela de fato se realizasse).
Figura 15: Fonte (site googleglass.com, 2014)
Enfim, pensar a capitalização do olhar nos ambientes midiáticos na Internet pode se
desdobrar em uma preocupação com o entendimento de corpo, mais especificamente da visão,
pela geração que tem o idioma digital como sua língua materna. A infância está sendo
negligenciada nas mãos de cuidadoras tecnológicas (iPads já são utilizados como babás
virtuais). Como se dá a captação dos olhares infantis pelos dispositivos digitais biopolíticos?
Como as novas tecnologias digitais influenciam a constituição da visão nessa nova geração?
Como será a “janela da alma”42
dos adultos que essas crianças se tornarão?
42
JARDIM, João & CARVALHO, Walter (2001). Janela da Alma: documentário brasileiro feito a partir da
preocupação de um dos seus diretores (João Jardim) de que questões relacionadas à constituição física do olho
poderiam influenciar a personalidade e a vida dos seus portadores.
65
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