PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
DONATA APARECIDA CAMPOS DE BARROS
Dimensões dos Princípios Jurídicos na Teoria do Direito segundo
Willis Santiago Guerra Filho:
Aspectos de uma Contribuição Brasileira à Filosofia do Direito Contemporânea.
Mestrado em Direito
São Paulo2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
DONATA APARECIDA CAMPOS DE BARROS
Dimensões dos Princípios Jurídicos na Teoria do Direito segundo
Willis Santiago Guerra Filho:
Aspectos de uma Contribuição Brasileira à Filosofia do Direito Contemporânea.
Mestrado em Direito
Dissertação apresentada à PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo paraobtenção do título de MESTRE em DireitoConstitucional.Orientador: Prof. Dr. Antonio Márcio daCunha Guimarães
São Paulo 2007
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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletrônico, para fins exclusivos de estudo e pesquisa acadêmica ecientífica, desde que citada a fonte.
São Paulo, 31 de agosto de 2007
Assinatura
____________________________________________________________________
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Donata Aparecida Campos de Barros
Dimensões dos Princípios Jurídicos na Teoria do Direitosegundo Willis Santiago Guerra Filho:Aspectos de uma Contribuição Brasileira àFilosofia do Direito Contemporânea.
Dissertação apresentada à PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo paraobtenção do título de MESTRE em Direito.Área de concentração: DireitoConstitucionalOrientador: Prof. Dr. Antonio Márcio daCunha Guimarães
Aprovado em: _____________
Banca Examinadora
Prof. Dr.___________________________________________________________Instituição:_______________________ Assinatura:_________________________
Prof. Dr.___________________________________________________________Instituição:________________________Assinatura:________________________
Prof. Dr.___________________________________________________________Instituição:_________________________Assinatura:_______________________
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DEDICATÓRIA
Aos meus amados pais Therezinha Campos de Barros e Nelson Morais Barros, que seforam como sempre viveram: juntos!
Ao Alexandre, responsável pela minha maior proeza, meus filhos, que ajudou a escrever aminha história de vida, e que tão cedo se foi.
Aos meus filhos amados Alexandra Barros Clemente e Gustavo Barros Clemente, dos quaissinto orgulho desmedido.
Aos meus irmãos tão grandes amigos, Dora Maria, Leopoldo, Nina, Teresinha, Adilson eGilson, com quem posso contar incondicionalmente.
À minha amiga Tânia Laky de Sousa, mulher guerreira, que está comigo sempre, nasalegrias e nas adversidades.
Aos meus amigos Márcio “Guima”, Rick Sayeg, Andréa, Elzinha e Yara, que meensinaram, durante todos esses anos de convivência diária, o que significa a verdadeira eprofunda amizade.
Ao meu Mestre Maior e amigo Willis Santiago Guerra Filho, pessoa ilibada e generosa,coerente com seus princípios mesmo quando resvala nas convenções, cuja conduta éexemplo de retidão, e que me ensinou a amar a Filosofia “transformadora” do Direito.
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AGRADECIMENTOS
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, por proporcionar aos que querem crescer,as condições favoráveis para conseguir o objetivo.
Aos meus familiares e amigos, que contribuíram para que mais uma etapa, tão importante esignificativa na minha vida fosse cumprida.
Ao Prof. Dr. Fernando Altemeyer Junior, pela paciência em me “ouvir” nas fases maisagitadas do trabalho.
Ao Prof. Dr. Antonio Márcio da Cunha Guimarães, por acreditar ser possível, apesar dospercalços.
À Profa. Dra. Maria Garcia, por suas aulas mistura de amor e competência.
Ao meu Mestre Willis Santiago Guerra Filho, por suas aulas inesquecíveis, que fazem avida valer a pena!
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“Nada te turbeNada te espante
Dios no mudaTodo se pasaLa paciencia
Todo lo alcanzaQuien a Dios tiene
Nada le faltaSolo Dios basta”
Santa Teresa D´Ávila
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RESUMO
O contexto em que se situa o debate actual sobre princípios jurídicos e direitos
fundamentais, central em teoria do direito contemporânea, é o que se pretende mostrar com
a contribuição brasileira dada por Willis Santiago Guerra Filho, segundo o qual, a
fenomenologia ofereceria a melhor preparação para a necessária superação do positivismo
formalista, sem recair em alguma forma igualmente já superada de jusnaturalismo.
Como estudioso do Direito em nosso país, Willis Santiago Guerra Filho encara como um
desafio o imperativo de renovação da ordem jurídica nacional, por ser totalmente nova a
base sobre a qual ela se assenta.
O empenho do Autor é re-interpretar o Direito Pátrio como um todo, à luz da “Constituição
da República Federativa do Brasil”, o que pressupõe uma atividade interpretativa da própria
Lei Fundamental, mas sem o ranço dos “operadores jurídicos” que não se dão conta do
modo objetivante como concebem o Direito, tal como se fosse uma máquina com a qual se
opera, quando se assim o fosse seriam eles as peças dessa engrenagem produtora de um
pseudo-saber, de caráter disciplinador. Admirador de Husserl, que prega nada haver de
conteúdo cognitivo nessa produção de saber, pois conhecimento, para ele, é evidência,
verdade, criadas a partir da intuição, inteira e completamente entendida, que se perde ao ser
rompido o elo com o domínio dos objetos sobre o qual deveríamos ser informados, nosso
Autor parte decididamente para o bom campo da verificação pré-científica, a fim de
valorizar o direito originário dessas evidências, antes desprezadas e, daí, poder-se buscar a
conexão essencial entre as ciências.
Palavras-chave: interpretação constitucional, princípios constitucionais, jusnaturalismo,
positivismo.
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ABSTRACT
The context in which the current discussion is situated about juridical principles and basic
rights, central in contemporary theory of the right, is what we intend to show with the
Brazilian contribution given by Willis Santiago Gerra Filho, according which, the
fenomenology would offer the best preparation for the necessary overcoming of the
formalistic positivism, without relapsing into some form equally already surpassed of
jusnaturalism.
Like scholar of the Right in our country, Willis Santiago Guerra Filho faces like a challenge
the imperative of renewal of the legal national order, because is totally new the base on
which it links.
The pledge of the Author is to re-interpret the Native Right as a whole, according the
“Constitution of the Federative Republic of Brazil”, which presupposes an interpretative
activity of the Basic Law itself, but without the rancidness of the “ legal operators ” who do
not realize in the objective way as they conceive the Right, such as it was a machine with
which it takes place, when if it was like that, they would be the pieces of this producing
gear of a pseudo knowledge, of disciplinary character. Admirer of Husserl, who preaches
that nothing exists of cognitive content in this production of knowledge, because
knowledge, for him, is an evidence and truth, created from the intuition, whole and
completely understood, what is lost to the being broken the link with the domain of the
objects about which we should be informed, our Author goes decidedly for the good field
of the pre-scientific verification, in order to value the original right of these evidences,
before rejected and, from there, the essential connection to be able to search between the
sciences
key words: constitutional interpretation, principles, jusnaturalism, positivism.
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SUMÁRIO
1. TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO ........... 11
2. PÓS-POSITIVISMO: A SUPERAÇÃO DO DIREITO NATURAL E DOPOSITIVISMO .............................................................................................................. 31
3. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE PRINCÍPIOS JURÍDICOS:DA SUBSIDIARIEDADE À NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS ....................... 39
4. A CONTRIBUIÇÃO DE RONALD DWORKIN E SUA CRÍTICA ............................. 60
5. A TEORIA DOS PRINCÍPIOS DE ROBERT ALEXY ................................................ 765.1. Considerações preliminares sobre o Pensamento de Robert Alexy ............................. 765.2. O Conceito de Norma elaborado por Alexy ................................................................ 81
5.2.1. A Estrutura das Normas ........................................................................................... 85
5.2.2. Caráter prima facie ................................................................................................... 94
5.3.1. Dos valores aos princípios ........................................................................................ 95
5.3.2. Críticas ao Critério de Distinção ............................................................................... 98
5.4. O modelo de ponderação proposto por Robert Alexy ................................................ 101
5.4.1. A Ponderação como Elemento da Proporcionalidade ............................................. 101
5.4.2. Os elementos parciais da proporcionalidade ........................................................... 105
5.4.3. A proteção ao núcleo essencial dos direitos fundamentais .................................... 109
5.4.4. A ponderação como um modelo de fundamentação racional ................................. 115
5.4.5. A fórmula da ponderação como resposta à crítica de Jürgen Habermas ................ 118
5.4.6. A fórmula da ponderação assegura a racionalidade? ............................................. 126
6. A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS PARA A NOVA HERMENÊUTICACONSTITUCIONAL .................................................................................................. 130
7. CONCLUSÃO ............................................................................................................. 139
7.1 Teses sobre as Dimensões dos Princípios Jurídicos na Teoria do Direito segundo WillisSantiago Guerra Filho .............................................................................................. 139
8. BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 151
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Dimensões dos Princípios Jurídicos na Teoria do Direito segundo
Willis Santiago Guerra Filho:
Aspectos de uma Contribuição Brasileira à Filosofia do Direito
Contemporânea.
1. Trajetória Intelectual de Willis Santiago Guerra Filho.
Do período inicial de seu labor científico, o que há de mais significativo, para o contexto da
presente dissertação, estaria na Primeira Parte do livro publicado em 1985, "Estudos
Jurídicos - Teoria do Direito, Direito Civil" (Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará),
reunindo trabalhos feitos nessas duas áreas, a teoria do direito e o direito civil. Dentre os
trabalhos de teoria do direito, contidos na referida Primeira Parte da obra, merece destaque
aquele com que se inicia o livro, intitulado "Sobre o Desenvolvimento da Ciência do
Direito". Trata-se de uma recapitulação dos principais momentos da história do pensamento
jurídico, a partir do que se pode formular a hipótese de que o paradigma da ciência jurídica
vem se desenvolvendo desde os seus primórdios, na Antigüidade Clássica, sem demonstrar
rupturas que configurem aquelas revoluções, a que se refere THOMAS S. KUHN em sua
obra já clássica "A Estrutura da Revolução Científica", tendo em vista a situação das
ciências empíricas, especialmente a física.
Um outro trabalho com caráter epistemológico, coligido nesta obra, é aquele que se intitula
"Introdução a uma Hermenêutica Pragmática do Discurso Normativo", onde se propõe um
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modelo de interpretação jurídica operativa (LUIGI FERRAJOLI), a partir da combinação
das duas grandes tradições filosóficas contemporâneas, a analítica e a fenomenológica. É
certo que ambas se apresentam como concorrentes, mas a possibilidade de combiná-las se
dá a partir do interesse fundamental de ambas na dimensão lingüística, a qual se revela
determinante também no estudo do Direito.
Completam a parte de teoria do direito desse que vem a ser o primeiro livro de Willis
Santiago Guerra Filho dois trabalhos sobre a norma jurídica: um dedicado ao seu conceito
enquanto modalidade deôntica, e o outro ao problema de sua legitimação, dos mais diversos
pontos de vista: político, ético, social etc.
Os estudos preparatórios do doutoramento levaram nosso A. a travar contato com a
esplêndida teoria constitucional alemã, do que resultou a elaboração dos trabalhos
enfeixados no seu segundo livro, publicado em 1989, "Ensaios de Teoria Constitucional"
(Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC), intitulados "A Constituição como Processo",
"Metodologia Jurídica e Interpretação Constitucional" e "O Princípio Constitucional da
Proporcionalidade". Nesses trabalhos são introduzidas noções à época pouco discutidas por
nossa teoria jurídica, apesar de tão importantes, especialmente no momento em que se
elaborava entre nós uma nova Constituição: a idéia de que ao lado da interpretação jurídica
tradicional se tem uma interpretação especificamente constitucional, a distinção entre
normas jurídicas que são princípios daquelas que são meras regras, a procedimentalização
do Direito contemporâneo e a necessidade de se postular o princípio da proporcionalidade
como verdadeira norma fundamental em um Estado Democrático de Direito. Neste mesmo
livro, como apêndice, reuni trabalhos publicados na imprensa local na época da
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constituinte, onde defendi, entre outras coisas, que se evitasse elaborar uma Constituição
muito analítica, para não comprometer, desde o início, sua efetividade. O ideal ali
propugnado foi o de que se estabelecessem princípios, instituindo uma Corte Constitucional
para velar pela sua aplicação. O desenvolvimento histórico desses primeiros anos de
vigência parece comprovar o acerto dessas colocações, as quais mereceram também a
aprovação do jurista abalizado que é PABLO LUCAS VERDÚ, Professor Catedrático de
Direito Constitucional da Universidade de Madri, em sua obra "La Constitución Abierta".
A vasta literatura que se vem, mais recentemente, produzindo entre nós, sobre temas
atinentes a princípios e direitos fundamentais, vem igualmente a corroborar o quanto já
escrevia à época o A. cujo pensamento se vai aqui abordar, confrontando-o com o de
outros, de reconhecida importância, no panorama internacional.
Um conjunto de trabalhos que devem ser destacados, especialmente por estarem, ao lado
daqueles por último mencionados - publicados também, em parte, na Revista de Processo,
São Paulo: RT, n. 62, 1991, pp. 122 ss. e n. 95, 1999, pp. 64/84, bem como nos “Estudos
em Homenagem a Miguel Reale”, Antônio Paim et al. (orgs.), Porto Alegre: EDIPUCRS,
2000 e nos Cuadernos de Filosofía del Derecho DOXA, n. 21, vol. II, Manuel Atienza
(ed.), Alicante/Madri: Universidad de Alicante/Centro de Estudios Constitucionales, 1998 -,
na origem da fundamentação teórica da tese de Livre-Docência em Filosofia do Direito,
defendida junto à Faculdade de Direito da UFC, é formado, em primeiro lugar, por artigos e
resenhas de obras em epistemologia jurídica, publicados na prestigiosa revista Archiv für
Rechts- und Sozialphilosophie, órgão oficial da Associação Mundial de Filosofia Jurídica
e Social. Dentre estes trabalhos, um ensaio onde defende a necessidade de se incluir um
número o maior possível de perspectivas no estudo do Direito, a fim de incrementar o grau
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de cientificidade desse estudo. Também em decorrência do doutoramento na Universidade
de Bielefeld nosso A. estabeleceu importante contato com um de seus professores (e
fundadores) mais conhecidos internacionalmente, a saber, o Prof. Dr. NIKLAS
LUHMANN, jurista consagrado, dando ensejo a que se familiarizasse com sua teoria de
sistemas sociais autopoiéticos, a qual se tornou um dos referenciais teóricos para a tese de
livre-docência, e também objeto de outros trabalhos, como aquele publicado na forma de
artigo na Revista Brasileira de Filosofia, n. 62, e o livro “Autopoiese do Direito na
Sociedade Pós-Moderna”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
Há, ainda, um conjunto de trabalhos que originaram a tese de titularidade em Direito
Processual Constitucional, cátedra pioneira em nosso País, defendida junto à Faculdade de
Direito da UFC, hoje publicada com o título “Processo Constitucional e Direitos
Fundamentais”, 1a. ed., São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional
(IBDC)/Celso Bastos Ed., 199; 5a. ed., São Paulo: RCS, 2007. Dentre estes trabalhos, são
referidos os seguintes:
"Sobre o ‘Discurso da Servidão Voluntária’ de Etiénne de la Boétie", in: “Habeas
Corpus”, Fortaleza: Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua da Faculdade de Direito
(UFC), 1983; "Poder, Impotência e Morte na Obra de Canetti e Kafka", in: “O
Saco” - Revista lítero-musical, Fortaleza, 1988; "Teorias Tri- e Multidimensionais
em Epistemologia Jurídica: O Modelo Dreier-Alexy e o Modelo Integrativo
Polonês", in: “Anais do IV Congresso Brasileiro de Filosofia do Direito”, João
Pessoa, 1990; “Prozessuale Durchsetzung von Umweltschutzinteressen im Rahmen
der brasilianischen Verfassung”, in: “Amazônia: Recht und Realität”, WOLF
PAUL/ROBERTO SANTOS (eds.), Frankfurt am Main: Peter Lang, 1993, pp. 163
15
ss.;* “Direito Fundamental à Água e sua proteção”, in: “Águas”, Salvador: Goethe-
Institut/Secretaria do Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de Salvador, 1994,
pp. 269 ss.; “Quem tem medo da Constituição?”, in: “Alter Ágora” - Revista do
Curso de Direito da UFSC, n. 1, Florianópolis: EDUFSC, 1994, pp. 21/22; “Direitos
Humanos, Jurisprudência dos Interesses e o Pensamento Tardio de R. v. Jhering”,
in: “Arquivos do Ministério da Justiça”, n. 183, Ministério da Justiça, Brasília,
DF, 1994; “Estatuto Epistemológico da Pesquisa Jurídico-Dogmática”, in:
“Seqüência” - Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC, n. 27,
Florianópolis: Editora da UFSC, pp. 64/71; “Teoria Geral do Processo: Em que
Sentido?”, in: “Lições Alternativas de Direito Processual”, HORÁCIO
WANDERLEI RODRIGUES (org.), São Paulo: Acadêmica, 1995, pp. 212 ss.;
“Sobre princípios constitucionais gerais: Isonomia e Proporcionalidade”, in:
Revista dos Tribunais, n. 719, São Paulo, 1995, pp. 57 ss.; “Da interpretação
especificamente constitucional”,(28) in: Revista de Informação Legislativa, n.
128, Brasília: Senado Federal, 1995, pp. 255 ss.; “Dereitos fundamentais: teoría e
realidade normativa”, in: Revista Galega de Administración Pública, n. 11,
Santiago de Compostela: Escuela Galega de Administración Pública, 1996, pp. 135
ss.; “Notas em torno ao princípio da proporcionalidade”, in: “Perspectivas
Constitucionais. Nos 20 anos da Constituição de 1976”, JORGE MIRANDA
(ed.), Coimbra: Coimbra Ed., 1996, pp. 249 ss.; “Direitos Subjetivos, Direitos
Humanos e Jurisprudência dos Interesses (relacionados com o Pensamento Tardio
de Rudolf von Jhering), in: “Jhering e o Direito no Brasil”,(21) J. M. LEITÃO
ADEODATO (ed.), Recife: UFPE, 1996, pp. 227 ss.; “Os Princípios da Isonomia e
da Proporcionalidade como Garantias Fundamentais”, in: Ciência Jurídica, n. 68,
Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1997, pp. 297 ss.; “Direitos fundamentais,
processo e princípio da proporcionalidade”, in: “Dos Direitos Humanos aos
Direitos Fundamentais”, WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO (ed.), Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1997, pp. 11 ss.; “Special Features of Comparative
* Uma tradução deste trabalho acha-se publicada na Revista do TRT da 8ª Região,(24)Belém, n. 28, 1995, pp. 21 ss., e em “Amazônia perante o Direito: ProblemasAmbientais e Trabalhistas”, WOLF PAUL/ROBERTO SANTOS (orgs.), Belém: UFPA,1995.
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Procedural Law in Brazil”, in: Zeitschrift für Zivilprozeß International, vol. 3,
Colônia (Alemanha): Carl Heymanns Verlag, 1998, pp. 447/456; “Os Aqueus, a
civilização micênica e os primórdios da democracia”, in: Revista de Estudos
Jurídicos UNESP, Franca (SP), 1998, pp. 115/124. “Sobre la Dimensión
Jusfilosófica del Proceso”, in: Revista de Derecho Procesal, n. 3, Buenos Aires:
Rubinzal – Culzoni Editores, 1999, pp. 575/585. “A Jurisdição Constitucional no
Brasil: Observações a partir do Direito Constitucional Comparado”, in: Anuário
Iberoamericano de Justicia Constitucional”, n. 5, Madri: Centro de Estudios
Constitucionales, 2001, pp. 151/168.
Diz o Prof. Dr. Willis Santiago Guerra Filho:
“Foi com um enfoque, ao mesmo tempo processual e constitucional –logo, de processo constitucional -, enriquecido com a metodologiacomparativa, que desenvolvi minha tese de doutoramento, naUniversidade de Bielefeld, sob a orientação do Prof. Dr. WOLFGANGGRUNSKY, intitulada “Die notwendige Streitgenossenschaft und dieGewährung des rechtlichen Gehörs Drittbetroffener bei Statusurteilen:Eine rechtsvergleichende Untersuchung unter besondererBerücksichtigung des brasilianischen, deutschen und italienischenZivilprozessrecht”. Tratou-se, em verdade, na tese doutorado, porrecomendação do próprio orientador do trabalho, de fazer umaprofundamento da dissertação de mestrado, defendida na PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo, em 1986, com o título "DoLitisconsórcio Necessário nas Ações de Estado". O resultado dessesestudos pode ser resumido como uma interpretação do art. 472, segundaparte, de nosso CPC, que vê ali uma regra para a extensão “ultra-subjetiva” da coisa julgada resultante das sentenças, o que exige aformação de um litisconsórcio entre os que serão diretamente atingidospela sentença, a fim de que se garanta o seu direito fundamentalprocessual de ser ouvido em juízo (Anspruch auf rechtliches Gehör).Essa regra seria de aplicação generalizada, mesmo em ordenamentosjurídicos que não a contemplam explicitamente, como o nosso. O essencial que se pode extrair tanto da dissertação demestrado como da tese de doutorado, recém-mencionadas, encontra-sepublicado aqui no País e no exterior, nos seguintes trabalhos:“Efficacia ultra partes della sentenza, litisconsorzio necessario eprincipio del contraddittorio”, in: “Processo civile e societàcommerciali”, Atti del XX Convegno Nazionale dell’Associazione fra glistudiosi del processo civile, Milão: Giuffrè, 1995, pp. 185 ss.; “Problemeder notwendigen Streitgenossenschaft im italienischen Zivilprozeß”, in:“Anwaltsrecht, Internationales Privatrecht, Rechtshilfe” - Jahrbuchfür Italienisches Recht, n. 9, Strauß et al. (eds.), Heidelberg: C. F.
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Müller, 1996, pp. 145 ss.; “Princípio do contraditório e eficácia ultra-subjetiva da sentença”, in: GENESIS. Revista de Direito ProcessualCivil, n. 3, Curitiba: Genesis, 1996, pp. 712 ss. e Revista Forense, v. 93,n. 337, Rio de Janeiro: Forense, 1997, pp. 401 ss.
O doutoramento obteve sua revalidação nacional, em sintonia com o disposto na legislação
educacional à época vigente no País – fundamentalmente a mesma da atual, neste particular
-, na IES à qual se encontrava então vinculado, a Universidade Federal do Ceará, que
embora não contasse com curso no mesmo nível e na mesma área, possuía outros, na área
de ciências humanas, tendo integrado a Comissão especialmente designada para dar parecer
sobre a tese do Professor do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia, a qual teve
como presidente da Comissão o eminente Prof. Em. Dr. Dr. h.c. PAULO BONAVIDES.
Quanto à carreira acadêmica de Willis Santiago Guerra Filho, além dos títulos já referidos,
vale mencionar que ela se iniciou ainda no período da graduação, quando foi bolsista do
Programa Trabalho/Pesquisa/UFC, em 1980, e monitor do Departamento de Direito
Processual da Universidade Federal do Ceará (UFC), de 1981 a 1982, ano do término do
bacharelado. O magistério no ensino superior teve início em 1984, no Curso de Direito da
Universidade de Fortaleza, onde lecionou até o ingresso no Departamento de Direito
Processual da UFC, em agosto de 1986, onde exerceu de janeiro de 1995 a janeiro de 1996
a função de Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito, em nível de mestrado.
Vale ainda referir que no primeiro período de sua estada na Alemanha, para o
doutoramento, no ano letivo de 1989, foi contratado pela Universidade de Bielefeld como
docente de Língua e Cultura Brasileira.
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A partir de 1996 e durante os próximos quatro anos obteve por duas vezes bolsas de
pesquisa e apoio para participação em congressos no exterior no âmbito do Conselho
nacional de Pesquisa (CNPq). No mesmo período foi Membro do Comitê Assessor na Área
de Direito da CAPES, instituição para qual ainda presto consultoria na avaliação de
projetos individuais e institucionais. Em 1997, no primeiro semestre, exerceu docência
como Professor-Visitante (Gastprofessor) junto ao Instituto de Sociologia e Teoria do
Direito da Universidade de Graz, Áustria. Retornando ao Brasil, foi nomeado Coordenador
do Escritório da UNESCO no Ceará. Em 1998, por meio de concurso público, tornou-se
Professor Titular de Direito Processual Constitucional na Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Ceará, cargo transferido para a Escola de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) em dezembro de 2002, tendo
ali exercido o cargo de Vice-Diretor, nomeado pro tempore, no primeiro semestre do ano
em curso.
Em 2000, foi contratado como Professor Assistente Doutor pela Pontifícia Universidade de
São Paulo para ministrar a disciplina “Filosofia do Direito” no seu Programa de Estudos
Pós-Graduados em Direito. Em seguida, por considerar de extrema relevância, para que se
possa aquilatar o modo como desenvolve nesta IES sua docência e pesquisa, onde a
pudemos acompanhar de perto, nos últimos anos, passo a resumir os cursos dados no
Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da PUC-SP, em nível de mestrado e
doutorado, ofertados para as mais diversas áreas do Programa, no caso da Filosofia do
Direito I, e para a área específica de Filosofia do Direito, nas rubricas II a IV.
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O curso de Filosofia do Direito I é estruturado para oferecer um conhecimento histórico e,
também, atualizado, sobre a ciência especificamente jurídica, discutindo esta cientificidade
mesma, confrontando-a com outras formas de conhecimento, seja científico, seja filosófico,
sem esquecer formas que aparecem mais recentemente, as quais não se deixam reduzir
facilmente aos modelos tradicionais de conhecimento, como é o caso da semiótica e da
teoria de sistemas. Além da bibliografia geral, o curso tem como apoio obras de autoria do
seu responsável, como “Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-moderna. Introdução a
uma Teoria Social Sistêmica”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997; “A Filosofia do
Direito (aplicada ao Direito Processual e à Teoria da Constituição)”, 2ª ed., São Paulo:
Atlas, 2002, e, especialmente, “Teoria da Ciência Jurídica”, São Paulo: Saraiva, 2001.
O curso de Filosofia do Direito II já se propõe a trabalhar mais o aspecto político da
matéria, enquanto filosofia do direito e do Estado, matéria que se destaca no conjunto do
pensamento filosófico, precisamente, com o advento do moderno Estado de Direito. Aqui
as obras de autoria do professor, que mais se recomenda o estudo, são “Teoria Política do
Direito”, Brasília: Brasília Jurídica, 2000, e “Teoria Processual da Constituição”, 2a. ed.,
São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional/Celso Bastos Ed., 2002.
Dando seqüência aos estudos feitos em Filosofia do Direito II, como também pressupondo
a discussão epistemológica da Filosofia do Direito I, o objeto de estudos da disciplina
Filosofia do Direito III é a Teoria dos Direitos Fundamentais, tendo como ponto de partida
a obra assim intitulada, da lavra de Robert Alexy, para discutir problemas atinentes ao
modo adequado de se conceber, interpretar e efetivar direitos em uma ordem jurídica que,
20
como a nossa, assume a fórmula política do Estado Democrático de Direito, a qual implica
um compromisso mais estreito com a pauta valorativa representada pelos direitos (e
garantias) fundamentais. Aqui, é sugerido o estudo inicial de estudos a respeito
desenvolvidos pelo professor, consubstanciados nos seus livros “Introdução ao Direito
Processual Constitucional”, Porto Alegre: Síntese, 1999, refundido em “Processo
Constitucional e Direitos Fundamentais”, 3ª ed., São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional/Celso Bastos Ed., 2003 e, de preferência, a edição mais recente, a 5ª.,
publicada pela Ed. RCS, de São Paulo, em 2007.
Por fim, o curso de Filosofia do Direito IV, de certo modo, retoma a questão do curso de
Filosofia do Direito I, em um nível de maior aprofundamento filosófico, a partir de uma
abordagem fenomenológica. Até o presente, que seja de nosso conhecimento, o que há de
maior fôlego publicado a respeito é o texto “Por uma Crítica Fenomenológica ao
Formalismo da Ciência Dogmático-Jurídica”, in:. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza,
2005, p. 311-320, do qual passamos a fazer um resumo. Nosso A. parte do pressuposto de
que o ambiente filosófico brasileiro, apesar de rarefeito, mostra-se extremamente favorável
à recepção do pensamento de Edmund Husserl e seus acólitos, pois como diz ele
demonstrar em estudos preciosos Aquiles Côrtes Guimarães, o esforço de elaboração
filosófica própria despendido por Farias Brito, na derradeira fase de seu labor solitário, ou
seja, na segunda década do século XX, apresentados em “A Base Física do Espírito” (1912)
e em “O Mundo Interior” (1914), demonstram notável convergência com as tentativas
coetâneas daqueles mestres germânicos, assim como as de Ortega y Gasset na Espanha. Por
outro lado, diz ele, Luiz Alberto Cerqueira, em “Filosofia Brasileira: Ontogênese da
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consciência de si” (2002), expõe a genealogia ibérica dessa forma de pensamento,
remontando-a ao período áureo de nossa contribuição à filosofia, ao qual tanto deve a
modernidade, embora não se costume admitir, uma vez que se trata de um movimento
“anti-moderno”, por “ante”-moderno, apesar de coevo ao seu início: aquele caracterizado
como “Segunda Escolástica”. É desse manancial metafísico que brotam figuras como
Francisco de Vitória, Pedro da Fonseca – o “Aristóteles de Coimbra” –, Francisco Suárez e
o nosso Pe. Antônio Vieira, influenciados, através de influxos como aqueles exercidos no
primeiro pelos estudos parisienses tendo professores como Jean Gerson, por pensadores que
são os verdadeiros fundadores da modernidade, em pleno século XIII, a saber, Duns Scot e
Guilherme de Ockham. Neles, apesar de seus pressupostos teológicos, evidencia-se uma
incerteza quanto ao conhecimento meramente humano, como em relação a tudo o que há no
mundo, pela dependência de um Deus onipotente, que tudo pode, mas parece querer antes a
ordem do que o caos, donde se poder perscrutar essa ordem, com o auxílio de signos
intencionalmente produzidos para figurá-la - eis a origem mais remota da filosofia
moderna até chegar, através de Descarte, Hume e Kant, à filosofia analítica e à
fenomenologia, as correntes principais da filosofia contemporânea, em vias de se
reencontrarem.
A fenomenologia também se faz presente em jusfilósofos brasileiros dos mais
significativos, como são Miguel Reale e Lourival Vilanova, sem esquecer aquele mestre,
prematuramente perdido para nós e vitimado pelo expurgo feito pela ditadura militar na
primeira geração de professores da UnB, que foi o baiano A. L. Machado Neto. Da geração
atual, João Maurício Leitão Adeodato, aluno dos dois primeiros, persegue os rastros de
Hannah Arendt e Nicolai Hartmann, discípulos, por seu turno, de Heidegger e Husserl,
22
respectivamente, assim como Lênio Streck, em contato com Ernildo Stein, fertiliza seu
trabalho com insumos heideggerianos. Stein, por seu turno, anuncia-nos para breve uma
contribuição para a filosofia do direito, a qual já pode ser extraída de obras de um outro
grande estudioso de Heidegger entre nós, como é Zeljko Loparic, especialmente em
“Heidegger Réu” (1990) e “Sobre a Responsabilidade” (2003). Na vizinha Argentina, a
fenomenologia inspirou tanto a Carlos Cossio na elaboração de sua teoria egológica, como
também aquele que fundou uma outra escola, a qual hoje se notabiliza mundialmente, como
a “Escola Analítica Argentina”. Refiro-me a Ambrósio L. Gioja, cujo discípulo mais jovem
aclimatou-se em nosso País e naturalizou-se brasileiro, sendo um mestre para tantos de nós.
Refiro-me a Luis Alberto Warat. Já na reflexão hermenêutica de Eros Grau percebe-se o
influxo de mestres diversos destes.
A fenomenologia jurídica, tal como é apresentada Pelo Prof. Dr. Willis Santiago Guerra
Filho no curso em apreço, refere-se à aplicação do método fenomenológico, desenvolvido
por Edmund Husserl, ao estudo filosófico do Direito. O termo fenomenologia,
etimologicamente, significa discurso, ciência ou estudo (logos) do fenômeno, sendo
necessário que se compreenda o significado específico que Husserl atribui a esta noção,
para saber em que se distingue a fenomenologia por ele proposta de outras referências a
esta noção, com a que se encontra na Quarta Parte do Neues Organon (“Novo Organon”),
de Lambert, intitulada Phenomenologie, oder Lehre des Scheins (“Fenomenologia ou
Doutrina da Aparência”), de 1764. Heidegger, ao final da introdução do § 7o. de “Ser e
Tempo”, alude ao aparecimento do termo já constaria na “Escola de Christian Wolff”, ou
seja, no âmbito da metafísica “pré-crítica”. Já em Kant, o termo aparece, mas não em
alguma de suas três “Críticas”, a saber, da razão pura, prática e da faculdade de julgar. O
23
responsável pela distinção entre “nooúmenon”, ou “coisa em si”, e “phainóumenon”, que
são as coisas enquanto objetos do entendimento, irá se referir a uma “fenomenologia” na
Quarta Parte de sua obra Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft (Princípios
Metafísicos da Ciência Natural), onde trata do movimento e da inércia tal como se
relacionam com a representação, enquanto características gerais dos fenômenos. Em Hegel,
com sua “Fenomenologia do Espírito”, de 1807, uma fenomenologia é alçada à condição de
perspectiva filosófica geral, do modo como se desenvolve a consciência do e no mundo.
Com Hartmann, na obra “Fenomenologia da Consciência Moral”, de 1869, a
fenomenologia vai assumir um sentido de pesquisa de fatos psíquicos empiricamente
estudados em suas relações, com uma investigação indutiva dos princípios gerais a que se
pode remetê-los. Tal sentido não deixa de guardar similitude com aquele que terá o termo
“fenomenologia” no âmbito do fisicalismo de Mach e do neo-positivismo da Escola de
Viena, já no século XX, sentido que será transmitido a Wittgenstein, em cujos escritos do
período “intermediário”, entre o Tractatus Logico-Philosophicus e as “Investigações
Filosóficas”, aparecerá o termo com freqüência.
Husserl, por seu turno, irá partir de uma crítica aos limites impostos ao conhecimento pela
filosofia de Descartes, Kant e Hegel, ao afirmar que o pensamento dos citados filósofos não
era “rigoroso”, já que não consideravam devidamente em suas construções a subjetividade
humana, focalizando apenas o objeto. Eles não se atinham ao fato de que as considerações
acerca do objeto eram, elas mesmas, “construções mentais”. A subjetividade, enquanto
consciência intencional, dirigida aos objetos, para Husserl, seria “a primeira verdade
indubitável para se começar a pensar corretamente.” Daí ter ele defendido que, no processo
de consideração da subjetividade humana, é necessário assumir uma “atitude
24
fenomenológica”: já que o homem é um “ser no mundo” e, portanto, participante dele, deve
assumir essa postura e se contrapor a uma “atitude natural” que é aquela de ser “possuído
pelo mundo”, desconfiando de toda e qualquer evidência ou obviedade, sejam aquelas do
senso comum, sejam as das ciências, sendo essa a tarefa própria da filosofia.. Não existe,
portanto, para a fenomenologia, uma relação pura do sujeito com o objeto, visto que a
relação entre o sujeito e o objeto é sempre intencional: o objeto se torna tal a partir do olhar
do sujeito, um olhar que, para além da existência contingente de objetos em particular,
capta sua essência, o que necessariamente lhe constitui, – literalmente, “visão da essência”
ou, no sentido fenomenológico, intuição. Daí que, para a Fenomenologia, o ser é um ser de
relação. Dessa forma, para ela, tanto o ser quanto o mundo só existem na relação ser-
mundo, não fazendo sentido, portanto, como ressalta Heidegger, entender-se o fenômeno
estudado pela fenomenologia husserliana como uma aparência que oculta uma essência
ininteligível, pois esse fenômeno é caracterizado pelo encontro mesmo entre uma
consciência com o que para ela se revela do mundo, enquanto doadora de sentido e, logo,
consistência de objeto a essas “revelações”.
Em seu último grande esforço filosófico, dedicado ao estudo do que denominou “Crise das
Ciências - ou da própria “Humanidade” – européias”, Husserl enfatiza o papel do “mundo
da vida” (Lebenswelt), enquanto conceito que se tem do mundo antes dele se tornar um
campo de investigação da ciência moderna. É a esse conceito que, ao final de sua longa e
profícua trajetória de pensamento, Husserl vai recorrer para nos dar acesso ao campo mais
próprio da filosofia, a saber, a subjetividade transcendental, onde se assentam as condições
de validação de todo conhecimento, inclusive aquele de ordem matemática, lógica e, em
geral, científica. Isso não deixa de ser desconcertante, porque esta Lebenswelt é o campo
25
em que predominam as opiniões comumente compartilhadas, a doxa, e, logo, o campo
propício ao desenvolvimento de saberes de corte dogmático. O referido projeto husserliano
se desdobraria em duas etapas, sendo a primeira negativa, de crítica ao simbolismo e à
transformação alienante das ciências em mera técnica, e a segunda, positiva, por voltada à
clarificação dos conceitos dessas ciências, a fim de fundamentá-las devidamente, sendo
essa a tarefa a ser cumprida por Husserl com o recurso ao conceito de Lebenswelt, na
década de 1930. Aqui vale recordar a doutrina husserliana do conceito, elaborada desde o
período da filosofia da aritmética, sob a influência de seu mestre em filosofia, Franz
Brentano – o mesmo que influenciou diretamente Sigmund Freud, em sua cátedra vienense,
a fazer um trabalho descritivo de fenômenos psicológicos que não deixa de ter afinidade
com a fenomenologia husserliana.
O conceito é uma representação que intenciona o seu objeto. Intencionar, por seu turno, é
tender, por meio de conteúdos dados à consciência, a outros conteúdos que não são dados,
para acessá-los de maneira compreensiva, ao utilizar, para designar objetos, conteúdos
dados que remetem a conteúdos não-dados – permitindo, assim, que nos reportemos a
objetos que não nos são efetivamente dados, por meio de signos, derivados de símbolos,
que são conceitos impróprios, os quais decorrem dos conceitos próprios, originários da
intuição de objetos, cujas marcas distintivas, parciais, estão contidas nos conceitos deste
último tipo, “conceitos mesmo”. Pela operação reiterada com os signos e “signos de
signos”, ad nauseam, é que se constrói o simbolismo, apartado das evidências da intuição
sensível.
26
E é nesse universo simbólico em que se constitui a ciência, sendo o simbolismo o que
possibilita tanto o seu acesso a verdades, superando limites de nossa compreensão finita,
como também sua perigosa alienação na técnica, que a descaracteriza enquanto forma de
conhecimento propriamente dito, assentado em fundamentos e justificativas de seu sentido
e finalidade. Assim, tem-se que, na própria aritmética, mesmo que o cálculo produza
resultados verdadeiros, não se pode confundir tais resultados com o conhecimento
aritmético. Tal divórcio entre cálculo e conhecimento decorre da estrutura interna do
primeiro, que enseja o seu desenvolvimento pelo mecanismo da reiteração das
representações por signos, representações impróprias, que foram originalmente
intencionais, quando nela algo já dado reenvia a algo não dado, reenvio esse que terá sua
natureza alterada pela reiteração recursiva, ao ponto de gerar uma simbolização que não é
representação de nada a não ser dela mesma, e ainda assim serve de base para ulteriores
operações - à medida que se passa a simbolizações em níveis de abstrações cada vez mais
elevados, vai-se perdendo algo dos objetos a que se referem os conceitos, até perdê-los
completamente em símbolos que são signos de signos.
Os signos utilizados nos cálculos matemáticos são desse último tipo, enquanto signos
exteriores, destacados de qualquer substrato conceitual, operando com os quais se
produzem verdades, mas não conhecimento – ao menos no sentido de Erkenntnis -, o que
vale tanto para a matemática como para toda forma de “conhecimento”, de ciência, que a
empregue como instrumento de produção de saber, instrumental esse que nos permite
operar cálculos sem retornar às intuições originárias sobre as quais se assentam. Passa-se,
então, a inventar sempre novos procedimentos simbólicos, cuja racionalidade pressupõe o
valor cognitivo dos símbolos empregados, por meio de uma técnica que se torna cada vez
27
mais perfeita, enquanto se a priva de toda evidência compreensiva. É assim que as ciências
se tornam uma espécie de fábrica de proposições, cada vez mais precisas e úteis, onde se
trabalha como operário ou técnico de produção, produzindo cada vez mais informações,
sem uma compreensão íntima do que se está fazendo, graças ao aperfeiçoamento de uma
racionalidade meramente técnica.
E se isso é assim no campo das ciências naturais, mais grave ainda é a situação no campo
dos estudos jurídicos, onde nem sequer se costuma levantar a pretensão de fazer um
trabalho científico, ostentando os profissionais dessa área, com um certo orgulho, a etiqueta
de “operadores jurídicos”, sem se dar conta do modo objetivante de como concebem o
Direito, tal como se fora uma máquina com a qual se opera, quando se assim o fora, seriam
eles as peças dessa engrenagem produtora de um pseudo-saber, de caráter disciplinador.
Para Husserl, não há nessa produção de saber conteúdo cognitivo algum, pois
conhecimento, para ele, é evidência, verdade, criadas a partir da intuição, inteira e
completamente entendida, o que se perde ao ser rompido o elo com o domínio dos objetos
sobre o qual deveríamos ser informados. Com isso, não se pergunta como as múltiplas
validades pré-lógicas estão fundadas e são fundamentadas em relação às verdades lógico-
teóricas. O real primeiro é a intuição subjetiva e relativa da vida pré-científica – a doxa, que
é tida assim, como enganosa, para a vida científica, mas não para aquela pré-científica, em
que é um bom campo de verificação, donde se dever valorizar o direito originário dessas
evidências, antes desprezadas. Daí, pode-se buscar a conexão essencial entre as ciências
(naturais) e o mundo pré-científico, com suas evidências originárias, quando também
aquelas ciências são formações humanas, que habitam em unidade concreta no “mundo da
28
vida”. Disso decorre a necessidade das ciências e da lógica perderem sua autonomia, ao
serem reconduzidas a esta Lebenswelt, reportando a episteme à doxa e à subjetividade
transcendental, onde se pode captar as estruturas desse nosso mundo, determináveis pelo
fenomenólogo, uma vez determinada as condições de possibilidade do conhecimento –
donde a “transcendentalidade” do sujeito.
Quanto à aplicação da fenomenologia ao estudo do direito, um dos pioneiros nesse campo
foi o próprio filho de Husserl, Gerhart, cujos trabalhos, de conteúdo fortemente personalista
e existencial, foram reunidos sob o título de um deles, “Direito e Tempo” (Recht und Zeit),
onde ele classifica as temporalidades jurídicas como sendo três: 1) tratando do presente, o
Poder Executivo; 2) tratando do passado, o Poder Judiciário e, 3) tratando do futuro, o
Legislativo. Esta linha de investigação fenomenológico-existencial do direito será
perseguida em obras posteriores como a do alemão Werner Maihofer, “Direito e Ser.
Prolegômenos a uma ontologia jurídica” (1954) e a do holandês William A. Lujpen,
“Fenomenologia do Direito Natural” (1965), todos citados pelo Autor ao longo de suas
obras. Guerra Filho também discorre que destino semelhante colheu também aquele que foi
o primeiro a estender a pesquisa fenomenológica ao campo do direito positivo, Adolf
Reinach, com seu trabalho “Fundamentos Apriorísticos do Direito Civil” (1913). Aí não se
trata de estabelecer, ao modo kantiano, condições de possibilidade do conhecimento de
todo e qualquer Direito, mas sim as estruturas essenciais, no sentido fenomenológico,
constitutivas de matérias e figuras jurídicas, que podem se dar de maneira bem diferente ao
serem atualizadas no direito positivo. Este autor vem merecendo uma renovada atenção, a
partir de congresso internacional realizado sobre sua obra, em 1983, estabelecendo
possibilidades de contato entre seu pensamento e aquele de autores contemporâneos da
29
tradição analítica em filosofia – normalmente tida como antagônica àquela dita
“continental”, por ser o continente europeu a região de maior influência da fenomenologia.
Tal perspectiva se encontra mais amplamente desenvolvida em autores de trabalhos já de
1997, na Itália. Uma direção diversa daquela iniciada por Reinach, dita formal, em
fenomenologia jurídica, é adotada por autor, igualmente pioneiro, que foi o vienense Fritz
Schreier, em sua obra “Conceitos e Formas Fundamentais do Direito. Esboço de uma
Teoria Formal do Direito e do Estado sobre base fenomenológica” (1924), onde apesar da
crítica fenomenológica ao dualismo kantiano, se tem uma teoria que, paradoxalmente,
termina coincidindo em grandes linhas com aquela do chefe da Escola de Viena, o
neokantiano Hans Kelsen, a exemplo do que ocorrerá nos trabalhos de vários de seus
discípulos deste e de Husserl. No entanto, Kelsen e sua Teoria pura não se considerará um
precursor da fenomenologia jurídica, repelido pelo próprio, em longa resenha crítica da
obra.
Algo semelhante ocorre em contribuições sul-americanas, como aquelas dos argentinos
Carlos Cossio e integrantes de sua escola, da Teoria Egológica do Direito, ou, mesmo,
curiosamente, no pensamento daquele que seria seu opositor, político e científico, fundador
da importante Escola Analítica Argentina, Ambrósio Gioja. No Brasil, algo semelhante se
verifica, com a recepção da fenomenologia pelo culturalismo de Miguel Reale, em São
Paulo, e pelo logicismo semiótico de Lourival Vilanova, em Recife. Juan Llambías de
Azevedo, autor Uruguaio de Eidética y Aporética del Derecho, de 1940, esforça-se por ser
original, tendo justa divulgação de seu trabalho em 1948, onde procura captar a essência
(eidos) do direito no modo como ele se dá no direito objetivo e coletivo, havendo, segundo
ele, aquele direito que se dá objetiva e solitariamente, em sua singularidade, como
30
preferimos referir a esse fundamental e ainda pouco explorado aspecto do fenômeno
jurídico. A definição essencial do direito como objeto coletivo a que chega a investigação
de Llambías é a seguinte:
“Sistema bilateral e retributivo de disposições posta pelo homempara regular a conduta social de um círculo de pessoas e comomeio de realizar os valores da comunidade”.
Esse objeto de investigação eidética afeta tanto individual como pessoalmente o direito,
focando o autor no esforço de trabalho do que nomeia “disposição jurídica”, compreendida
como conceito superador daquela conhecida dicotomia kelseniana ente norma jurídica e
proposição normativa. Conjugando os dois aspectos fundamentais do direito, nosso A. vai
iniciar a parte de sua obra dedicada à aporética, enquanto investigação de problemas
apresentados pelo direito positivo, tido como mediação entre os valores da comunidade e a
conduta humana, com a seguinte definição: “O direito é um sistema de disposições a
serviço dos valores da comunidade”, postulando uma relação de meio e fim entre direito e
valores, que entendemos deva ser buscada tendo como diretriz um princípio de
proporcionalidade. Tal relação, contudo, é encarada por Llambías como um problema, e do
tipo aporético, ou seja, “sem saída”, bastando que se considere ser a justiça um desses
valores, com toda a variedade de concepções que há a respeito, para que se perceba o que
ele denomina “aporia de justificação”. Llambías conclui descortinando um complexo de
aporias, por trás do que “se abre um mundo de princípios, de valores”, uma pluralidade de
valores individuais e comunitários, entre os quais haveria de ser determinada a autonomia
de uma esfera jurídica. Nesse ponto, em que conclui seu trabalho, referindo que “não
podemos dizer ‘aqui termina’, mas sim ‘aqui começa a filosofia do direito’”, efetivamente,
nos vemos confrontado com o tema da atualidade nesse nosso campo de estudos, algo que
31
vem demonstrado, por exemplo, pelos esforços hercúleos de autores contemporâneos, e
com propostas concorrentes, como são Jürgen Habermas e Niklas Luhmann, ambos
influenciados pela fenomenologia, que ofereceria a melhor preparação para a necessária
superação do positivismo formalista, sem recair em alguma forma igualmente já superada
de jusnaturalismo.
É neste contexto em que se situa o debate atual sobre princípios jurídicos e direitos
fundamentais, central em teoria do direito contemporânea, no qual pretendemos localizar a
contribuição brasileira dada por Willis Santiago Guerra Filho.
2. Pós-positivismo: a superação do direito natural e do positivismo
Um grande momento na história do pensamento jurídico é aquele em que se passou a
reconhecer os princípios como norma jurídica e veio a ocorrer no chamado “pós-
positivismo”, isto é, o período responsável pela superação do positivismo e do direito
natural. Seu grande marco simbólico foi o fim da segunda guerra mundial, que influenciou,
e muito, a revisão das idéias jurídicas predominantes.
A transformação de onde brotou o pós-positivismo se refere ao manejo racional de valores
na atividade jurídica. A aceitação dos valores já afasta o positivismo, enquanto sua
possibilidade de controle racional afasta o jusnaturalismo.
32
Pode-se dizer que o marco dessa mudança foi o fim da segunda guerra, entretanto,
Willis Santiago Guerra Filho assinala que este movimento já se iniciara no período do
entreguerras, com a República de Weimar, cuja constituição representou um compromisso
sobre valores básicos. Não houve um consenso sobre o que significava e como deveriam
ser interpretados ou aplicados estes valores. Rudolf Smend, por exemplo, adotava um
método que se orientava por valores e preservava a função integrativa, já que a constituição
garantia a unidade política e social, no que foi combatido por Carl Schmitt à época.1
Essa fase de discussões, sabe-se, foi interrompida pela ascensão do Nazismo, cujos
integrantes, após o término da guerra, alegaram em sua defesa o estrito cumprimento da lei.
A perpetração de horrores promovida pela segunda guerra exigiu definitivamente mudanças
no direito e em sua interpretação. Primeiramente, pensou-se no retorno ao direito natural,
através da invocação de um direito essencial suprapositivo. Em função da necessidade de
abandono do positivismo, ou ao menos daquele responsável pela suposta justificação do
nacional-socialismo, alguns tribunais alemães seguiram este caminho. Mas, ensina Arthur
Kaufmann, “este ‘renascimento do direito natural’ foi episódico”, afinal, era uma reação
súbita ao positivismo e os juízes, ainda atordoados, não conseguiram desenvolver
imediatamente alternativa melhor.2
1 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva,2001. pp. 117-118.2 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,2004.
33
Foi neste cenário, e com auxílio das doutrinas do entreguerras, que os valores receberam
atenção dos juristas, pois ratificam a norma jurídica como “prescrição de um padrão
avaliativo para a apreciação de casos concretos”3. Mas os valores não são escolhidos
aleatoriamente pelo intérprete em sua aplicação. Ao contrário, foram inseridos no texto
constitucional – portanto, positivados – sob a forma de princípios jurídicos. Willis Guerra
Filho explica que, por isso, “não se trata de recurso a um sistema suprajurídico de valores,
como aqueles desenvolvidos no âmbito das teorias jusnaturalistas, da filosofia moral ou da
religião”4.
Sendo feita de forma mais segura – e até objetiva – que no direito natural, a recepção dos
valores na constituição marca a superação da dicotomia, até então existente, entre direito
natural e positivismo jurídico.
Outro não é o entendimento de Tercio Sampaio Ferraz Jr, que, embora não se refira à
superação, enxerga na recepção dos direitos fundamentais pelas constituições como o
motivo do enfraquecimento da dicotomia analisada. Vale ressaltar que normalmente os
direitos fundamentais se apresentam como princípios constitucionais. Veja-se o que escreve
o autor:
p. 47.3 Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva,2001. p.116.4 Id., ibid., loc. cit.
34
Uma das razões do enfraquecimento operacional da dicotomia pode ser localizadana promulgação constitucional dos direitos fundamentais. Essa promulgação, oestabelecimento do direito natural na forma de normas postas na Constituição, dealgum modo “positivou-o”. E, depois, a proliferação dos direitos fundamentais, aprincípio, conjunto de supremos direitos individuais e, posteriormente, de direitosociais, políticos, econômicos aos quais se acrescem hoje direitos ecológico,direitos especiais das crianças, das mulheres etc. provocou, progressivamente, suatrivialização. Uma coisa se torna trivial quando perdemos a capacidade dediferencia-la e avalia-la, quando ela se torna tão comum que passamos a convivercom ela sem nos apercebermos disso, gerando, portanto, alta indiferença em facedas diferenças.5
Na fase do pós-positivismo6, reconhecem-se elementos morais no conceito de direito, em
contraposição à tese positivista da separação, sem recair-se na subordinação do direito a
uma ordem suprapositiva. Promovem-se, entre outras contribuições, a investigação da
racionalidade prática, o desenvolvimento de teorias da argumentação jurídica, em bases
racionais, que se não reduzem, por óbvio, ao ângulo puramente descritivo ou formal,
característico do positivismo lógico.
Avultam pesquisas sobre a distinção entre regras princípios como espécies normativas,
erige-se nova compreensão acerca dos direitos fundamentais e, logo, da própria
constituição, com importantes reflexos quanto ao princípio da separação dos poderes.
Indagação central, de inexcedível importância, refere-se à compreensão da racionalidade
na argumentação jurídica, em particular na argumentação constitucional, em face dos
problemas relativos à aplicabilidade dos direitos fundamentais, de seu equilíbrio no caso
5 FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 3ª Ed. São Paulo:Atlas, 2001. p. 168.6 Cf. BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, 15. ed., São Paulo: Malheiros,2004, p. 264 e ss.
35
concreto, na determinação de suas possibilidades fáticas e jurídicas, quando se revestem do
caráter de mandado de otimização.
Com efeito, a busca pela determinação de critérios racionais para as decisões jurídicas está
vinculada, de modo intrínseco, à preocupação de afastar o subjetivismo judicial. Ademais, a
própria construção de uma dogmática jurídica depende de uma estrutura de racionalidade,
como discurso jurídico.
No âmbito do positivismo, admite-se a doutrina de legislação intersticial por parte do juiz,
conforme o conceito de textura aberta da norma jurídica, ou de moldura normativa7.
Referida perspectiva voluntarista, infensa a critérios de racionalidade prática, não se
coaduna com o Estado Democrático de Direito, acarretando problemas de legitimidade de
atividade jurisdicional.
A retomada da racionalidade voltada à solução de problemas práticos deve-se,
fundamentalmente, a estudos desenvolvidos a partir da tópica, de origem aristotélica,
destacando-se as obras de THEODOR VIEWEG e PERELMAN8.
VIEHWEG explora a possibilidade de discussão racional para a solução de questões
jurídicas. Consiste a tópica, em linhas gerais, em uma técnica de pensamento orientada ao
7 KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, Trad. de João Baptista Machado, 6. ed., SãoPaulo: Malheiros, 2000, p. 390.8 Cf. ATIENZA, Manuel, As razões do direito: teorias da argumentação jurídica, Trad. deMaria Cristina Guimarães Cupertino, 2. ed., São Paulo: Landy, 2002, p. 59, VIEHWEG,PERELMAN E TOULMIN, através de suas obras, dão origem ao que se entende hoje porteoria da argumentação jurídica.
36
problema. A idéia de sujeitar a argumentação sobre questões jurídicas a critérios de
universabilidade já se encontra em PERELMAN, com seu conceito de auditório universal9,
alicerce para a distinção entre convencer e persuadir.
Exerceu a tópica jurídica notável influxo sobre a metodologia constitucional, com a
elaboração do conceito de concretização, que também é chamado chama de construção da
norma. Mencione-se ainda o método concretista da constituição aberta, do processo público
e aberto de interpretação constitucional. Deve-se salientar que a preocupação básica do
método concretista é tornar racionalmente controlável o processo decisório constitucional.
Considerando-se uma abordagem monológica, deve-se mencionar a teoria dworkiniana, de
acentuado racionalismo, de reconstrução do direito vigente. Contudo, é de se preferir a
perspectiva dialógica da teoria democrática . O paradigma procedimentalista, próprio das
teorias discursivas, terceira via entre absolutismo e relativismo ético, manifesta-se na teoria
da argumentação jurídica de ROBERT ALEXY10, complementar de sua teoria dos direitos
fundamentais. Compreende-se, a partir das noções sucintamente apresentadas, como o
problema da racionalidade está presente, de maneira constante, na teoria do direito atual.
Consideramos de todo oportuno e conveniente realizar um estudo sobre a temática exposta,
investigando-se, segundo a contribuição de diversos autores, os limites e possibilidades da
racionalidade prática, com ênfase nos problemas relativos aos direitos fundamentais.
9 PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie, Tratado da argumentação: a novaretórica, Trad. de Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 34.10 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005.
37
Embora a tópica jurídica tenha tido a virtude de impulsionar novos estudos, fundados na
possibilidade de discussão racional sobre questões jurídicas, devem-se apontar suas
deficiências como esboço de teoria da argumentação jurídica. Ao estabelecer a primazia do
problema sobre a norma, ao tratar os princípios jurídicos como simples pontos de partida da
argumentação, a tópica acaba por enfraquecer a normatividade das constituições, porquanto
desconsidera a força normativa especial dos princípios constitucionais. A tópica jurídica
não se dá conta das condições restritivas da argumentação jurídica, tampouco oferece
conceitos sobre a estrutura dos argumentos. Sobre os pontos fracos da tópica, ALEXY
assevera que “Essas deficiências consistem no menosprezo da importância da lei, da
dogmática e do precedente, em não oferecer uma introdução na estrutura profunda dos
argumentos, bem como na insuficiente precisão do conceito de discussão”. Na metodologia
constitucional, a tópica manifestou-se em intensidades distintas.
Não obstante o caráter democrático do método da constituição aberta, com o alargamento
dos intérpretes da constituição, o excessivo valor conferido ao aspecto político da
constituição, em comparação à sua normatividade, pode levar a situações de incerteza,
insegurança e perda de eficácia jurídica e estabilizadora.
Na perspectiva da tópica constitucional limitada pelo sistema, pelas normas constitucionais,
procura-se dar um passo adiante na afirmação da importância da constituição formal, com a
definição de um procedimento de concretização, marcado pela influência da pré-
compreensão, de origem na hermenêutica filosófica de matriz heideggeriana-gadameriana,
ao mesmo tempo em que se permite explicar a mudança do significado de disposições
38
constitucionais, sem alteração formal do texto, a demonstrar o caráter constitutivo da
realidade sobre as normas constitucionais.
Na metódica estruturante de FRIEDRICH MÜLLER, parte-se da distinção entre programa
da norma e área da norma, propondo-se um modelo de norma constitucional, balizado
racionalmente em diversas etapas de raciocínio. O referido método concretista recebe
críticas por parte de ALEXY, porquanto o conceito estruturante de norma constitucional é
inconciliável com a teoria da norma adequada à teoria estrutural dos direitos fundamentais.
A teoria dos direitos fundamentais de ALEXY, estreitamente ligada à sua teoria da
argumentação jurídica, não propõe uma teoria material da constituição, mas explica, com
base na distinção analítica de regras e princípios, a estrutura dos problemas da dogmática
jusfundamental, atestando-se a presença de valorações.
Destina-se a argumentação jurídica, precisamente, ao controle dessas valorações adicionais
ao material jurídico dotado de autoridade, a saber, a lei, a dogmática jurídica e os
precedentes judiciais.
O conhecimento da estrutura dos direitos fundamentais é indispensável para responder-se
ao problema da (im)possibilidade de uma única resposta correta, nos casos difíceis, a
atestar os limites da argumentação jurídica, como teoria discursiva, de indicar qual solução
deve ser adotada. Nesse caso, a tópica continua útil, como técnica de raciocínio onde não há
soluções conclusivas. Parece-nos, ainda, a respeito, de todo pertinente, a teoria
habermasiana, que tem nítidas relações com o método da constituição aberta de
39
HÄBERLE, a propor que o conteúdo dos direitos, na atividade desempenhada pelas cortes
constitucionais, venha a receber a influência da discussão pública dos cidadãos, da razão
comunicativa, que servirá de medida para a legitimidade das decisões envolvendo os
direitos fundamentais.
Sobre as teorias racionais da argumentação contemporânea, destacam-se as teorias de NEIL
MACCORMICK e ROBERT ALEXY, como teorias padrões da argumentação jurídica.
A teoria da argumentação de ALEXY, não obstante seus méritos, não deixa de receber
observações críticas, como as de ATIENZA, atinentes à teoria do discurso em geral e, em
particular, à teoria do discurso jurídico, nos seus aspectos conceituais e ideológicos, como
veremos em seguida. Importa, contudo, antes de mais nada, examinar agora a questão dos
princípios jurídicos, ponto nodal de todo o desenvolvimento que aqui se pretende
acompanhar.
3. Desenvolvimento Histórico do Conceito de Princípios Jurídicos: Da subsidiariedade
à normatividade dos princípios.
O papel conferido aos princípios jurídicos até meados do século XX mal chegava ao de um
coadjuvante na ciência jurídica e sua importância era menosprezada eminentemente pelas
concepções dos últimos séculos acerca do direito.
40
O tratamento dado era inadequado não por um problema dos princípios em si, mas pelo que
se respondia à pergunta “o que é o direito?”. As mais diversas respostas não contemplaram
o caráter obrigatório à aplicação dos princípios jurídicos. Quando muito, reconheceu-se a
subsidiariedade de sua aplicação, como será explicado adiante.
Assim, a compreensão do caminho que levou à normatividade dos princípios só pode ser
bem sucedida se for feita a análise das fundamentações doutrinárias que antecederam o
atual estágio da ciência jurídica. Optou-se por começar pelo positivismo, que deu sua
contribuição através da normatização dos princípios gerais do direito, sem desprezar,
contudo, a necessária participação das teorias do direito natural.
Tércio Sampaio Ferraz Jr, com apoio no pensamento de Niklas Luhmann, descreve a
positivação do direito como a uma conseqüência da teoria clássica da divisão dos poderes e
da neutralização política do Judiciário, que representa uma tentativa de separação entre
política e direito. Passou a ser do Legislativo o dever de produção do direito, que seria
modificado sempre que houvesse mudança na legislação. Assim, a institucionalização da
mutabilidade representa a positivação do direito.11
Positivação possui, conforme o mesmo autor, um sentido filosófico e um sociológico. Com
o primeiro entende-se a positivação como o ato de vontade que estabelece um direito, que
41
acarreta na tese segundo a qual “o direito é um conjunto de normas que valem por força de
serem postas pela autoridade constituída e só por força de outra posição podem ser
revogadas” 12. O sentido sociológico implica a compreensão do fenômeno de valorização da
lei votada pelos parlamentos, decorrente da necessidade de segurança da sociedade
burguesa.
A mutabilidade, porém, não foi imediata e pacificamente aceita. A ela se contrapôs a
chamada Escola Histórica. A.L. Machado Neto apresenta a origem deste movimento
exatamente como uma reação ao modelo que se consolidava no início do século XIX. Seu
surgimento é devido à presença das idéias românticas no direito, através da postura
conservadora que acarretava na defesa da “valorização do costume, manifestação
espontânea (irracional) do espírito nacional (nacionalismo) e de caráter medievalizante e
feudal (conservadorismo, reacionarismo)”.13
Gustav Hugo foi o principal autor a lançar estas idéias. Foram os usos e os costumes que
estabeleceram o direito, sendo estas as fontes do direito, e não, a vontade de Deus ou um
contrato entre os homens. As idéias de Hugo foram desenvolvidas por seu aluno Savigny.
11 FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 3.ed. São Paulo: Atlas,2001, pp. 73-74.12 FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 3.ed. São Paulo: Atlas,2001. p.74.13 MACHADO NETO, A.L. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5.ed. SãoPaulo: Saraiva, 1984. p. 26.
42
Savigny entendia que o “espírito do povo” era o objeto principal de estudo do direito, ao
invés da lei positivada. Por isso, Savigny afirmava que o estudo deveria ser voltado para os
institutos de direito, que expressam relações concretas, a partir das quais eram elaboradas
as regras. Tais institutos, explica Tércio Sampaio Ferraz Jr, eram entendidos como um
conjunto orgânico repleto de elementos que se desenvolvia constantemente. Entretanto,
esclarece o mesmo autor, essa organicidade deveria ser buscada no “caráter complexo e
produtivo do pensamento conceitual da ciência jurídica elaborada pelos juristas desde o
passado”14.
Para Savigny, as regras eram constituídas através da orientação pela intuição do instituto
jurídico. Para aplicar uma regra, deve-se retornar também ao nexo orgânico, já que a lei
corresponde a apenas uma parte deste nexo.
A contribuição de Savigny, ao invés de gerar o aprofundamento do estudo histórico do
direito, conduziu ao desenvolvimento de uma ciência jurídica que se pautava pelo estudo de
um sistema lógico, como se fosse uma pirâmide de conceitos, como explica Karl Larenz15.
Esta teoria foi desenvolvida por um aluno de Savigny, Puchta, para quem a idéia de sistema
determinava que os conceitos situavam-se numa ordem verticalizada, na qual os conceitos
inferiores subsumiam-se aos conceitos superiores e referendavam seu conteúdo.
14 FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 3.ed. São Paulo: Atlas,2001. p.76.15 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1997. p. 23.
43
Logicamente, então, haveria um conceito superior e último do qual se deduziriam todos os
outros. Para Puchta, o conceito supremo é oriundo da filosofia do direito, pois, se fosse
inferido dos outros conceitos, redundaria num ciclo vicioso. Karl Larenz identifica este
vértice da pirâmide como o conceito kantiano de liberdade.16
Puchta entendia que direito é aquilo que se subordina ao conceito supremo e, por elaborar
um fundamento suprapositivo, não se pode equipará-lo imediatamente ao positivismo, já
que também o legislador deveria incluir apenas conceitos que se harmonizassem com o
conceito supremo.17
Ao pensamento de Puchta, que ficou conhecido como Jurisprudência dos conceitos18,
Willis Santiago Guerra Filho relaciona cinco conseqüências:
(1º) A ordem jurídica passa a ser vista como um sistema fechado e pleno, comautonomia e independência perante a realidade social, uma realidade a se,portanto. (2º) Não há lacunas no ordenamento jurídico, por ser sempre possível asubsunção lógica a princípios ou conceitos devidamente construídos. (3º) Aatividade judicial de aplicação do Direito é “automática”, por ser escrava dessasubsunção silogística. (4º) O ensino jurídico torna-se um treino no manejo deconceitos desvinculados da realidade prática. (5º) O isolamento e a especializaçãotécnica da elaboração jurídica, excluindo a consideração de outra ordem qualquer,terminam por favorecer a manutenção do status quo, protegendo-o de embatesideológicos e sociais.19 (grifos no original)
16 Id., ibid., loc. cit.17 Id., ibid., p. 26.18 Aqui, o sentido do termo “jurisprudência” é “ciência do direito”, assim como em“Jurisprudência dos interesses” e “Jurisprudência dos valores”, como ensina LARENZ,Karl. op. cit. p. 1.
44
Assim, Puchta se desvinculou da relação entre as regras e o instituto jurídico, que foi
substituída pelo processo lógico dedutivo. A Jurisprudência dos conceitos foi responsável
por lançar os pilares para o formalismo jurídico, que prevaleceu por várias décadas.
Não obstante sua importância, as doutrinas que sucederam a Jurisprudência dos conceitos
não lograram êxito na tentativa de superá-la em definitivo, como o Movimento do Direito
Livre e o Sociologismo Jurídico. Ao contrapô-la, estabeleceram as razões para que Hans
Kelsen desenvolvesse sua Teoria Pura do Direito, como escreve A. L. Machado Neto: “a
babel epistemológica que o sociologismo eclético instalou no plano da ciência jurídica teria
de, necessariamente, provocar uma reação purista”20. A pertinência da Teoria Pura para este
trabalho está em sua grande influência no pensamento jurídico do século XX e na visão
positivista sobre princípios jurídicos, que será analisada mais adiante.
Lembra Arthur Kaufmann que Hans Kelsen pertenceu ao positivismo lógico do Círculo de
Viena, para o qual “apenas tem sentido e é compreensível o que pode ser ‘verificado’
logicamente”21. A Teoria Pura almejava ao mesmo tempo acentuar a opção lógica da
Jurisprudência dos conceitos e consagrar o afastamento do direito natural. Como assinala
Marília Muricy, “preocupado (...) em eliminar o risco ideológico do jusnaturalismo que
ameaçava o rigor científico de prática do jurista, Kelsen vai buscar, na matriz Kantiana da
19 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva,2001. p 33.20 MACHADO NETO, A.L. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5. ed. SãoPaulo: Saraiva, 1984. p. 26. p. 42.21 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,2004.
45
‘razão pura’, eficiente cobertura epistêmica para seus propósitos”22.Kelsen pretendia
desenvolver uma teoria que bastasse a si mesma, ou seja, que fosse auto-suficiente23. A
pureza da ciência jurídica se alcançaria através de um olhar exclusivo para seu objeto, apto
a “libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos” , como afirma seu
fundador, sendo este seu maior princípio metodológico24. Como conseqüência, a Teoria
Pura precisava se afastar dos valores, seja pela aversão ao direito natural ou pela descrença
na objetividade dos valores. É o que se chama “ceticismo axiológico” da Teoria Pura25.
Uma das premissas da Teoria Pura do Direito é a distinção entre os juízos de ser e os juízos
do dever ser. Os primeiros são enunciados sobre acontecimentos que se verificam, enquanto
os segundos correspondem aos enunciados sobre acontecimentos que devem se verificar.
Abordando o tema, afirma Kelsen:
A distinção entre ser e dever-ser não pode ser mais aprofundada. É um dadoimediato da nossa consciência. Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é– ou seja, o enunciado através do qual descrevemos um ser fático – se distingueessencialmente do enunciado: algo deve ser – com o qual descrevemos umanorma – que da circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assimcomo da circunstância de que algo deve ser se não segue que algo seja.
p. 21.22 MURICY, Marília. Racionalidade do Direito, Justiça e Interpretação. In: BOUCAULT,Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). Hermenêutica Plural. SãoPaulo: Martins Fontes, 2002. p. 107.23 Cf. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação. 3.ed. Riode Janeiro: Renovar, 2003. p. 109.24 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 1-2 .25 Cf. MURICY, Marília. Racionalidade do Direito, Justiça e Interpretação. In: BOUCAULT,Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). Hermenêutica Plural. SãoPaulo: Martins Fontes, 2002. p. 116.
46
Com o escopo de garantir ao direito objeto e método próprios, Kelsen entendeu que à
ciência do direito competia um complexo de normas (dever ser), diferentemente das
ciências de fatos, como a sociologia e psicologia (ser) e das proposições de natureza ética
ou religiosa.26
Ao recusar o direito natural, Kelsen lançou-se ao estudo da estrutura do direito positivo –
estudo formal, portanto. Já que, para ele, o conteúdo das normas jurídicas não é dado
previamente, estas poderiam assumir qualquer sentido. A validade de uma norma não seria
garantida por seu conteúdo, mas pelo cumprimento de uma forma específica para sua
produção.
Karl Larenz, entretanto, afirma que a objeção mais relevante que deve ser feita à Teoria
Pura é justamente o ponto de partida da teoria de Kelsen: a distinção absoluta entre ser de
dever ser. Para Kelsen, um dever ser só pode ser reconduzido a outro dever ser (uma norma
só pode encontrar sua validade em outra norma). A unidade do conjunto normativo se
garante porque todas as normas podem ser reconduzidas a uma última norma – a norma
fundamental hipotética.27
26 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: FundaçãoCalouste Gulbenkian, 1997. p. 93.27 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1997. pp. 98-99.
47
O escalonamento hierárquico de normas, que sustenta a teoria do ordenamento jurídico,
implica a busca de validade numa norma superior. Isto é, para verificar a validade de
determinada norma, faz-se imperioso ascender à norma do patamar elevado. E assim é feito
com todas as normas que apareçam acima. Contudo, este exercício conduziria ao infinito,
se não houvesse uma norma que pusesse fim à busca da validade. Acontece que se esta
norma tivesse sido posta por uma autoridade, seria questionada qual norma superior
conferiu competência para tal autoridade e não se encontraria nunca a norma última.
Portanto, a norma fundamental é identificada como uma norma necessariamente
pressuposta, que não poderá ter sua validade questionada.
A norma pressuposta de Hans Kelsen foi elaborada em analogia a um conceito da teoria do
conhecimento de Kant. Ela é a “condição lógico-transcendental” para o conhecimento das
normas postas, na medida em que permite à Teoria Pura “uma interpretação não
reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido subjetivo de
certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas descritíveis em
proposições jurídicas”28. Esta norma fundamental pressuposta remete ao cumprimento
daquilo que prescreve a Constituição.
É bom ficar claro, todavia, que não é a Constituição a própria norma fundamental, porque
aquela é uma norma posta. Além disso, a norma fundamental (pressuposta) não possui
qualquer interferência no conteúdo que tem tal Constituição. A não interferência no
48
conteúdo da constituição fica clara quando Kelsen afirma que “não importa a questão de
saber se esta ordem jurídica efetivamente garante uma relativa situação de paz dentro da
comunidade por ela constituída”29.
Após ter sido descrita a norma fundamental hipotética, retoma-se a crítica formulada por
Karl Larenz. Dizia-se que a Teoria Pura não conseguiu separar integralmente o ser do dever
ser. A ordem jurídica deveria se validar unicamente através de um juízo de dever ser,
entretanto, ela não consegue, justamente em sua norma fundamental, se desvencilhar de um
juízo de ser30.
Para dar consistência à Teoria Pura, seria necessária uma última norma, mas, já que não
poderia ser posta, ela deveria ser pensada (pressuposta). Nas palavras de Kelsen, ela “é
logicamente indispensável para a fundamentação da validade objetiva das normas”31. No
entanto, a ciência positivista só é capaz de constatar que a norma é pressuposta como
fundamental através da “interpretação de uma ordem coercitiva globalmente eficaz como
um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas”32. Sobre o tema, é indispensável o
comentário de Karl Larenz:
28 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 225.29 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 225.30 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1997. p. 99.31 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 227.32 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 227.
49
O acto de pensamento que legitima a ordem jurídica, a postulação da normafundamental, encontra assim, em último termo, a sua verdadeira justificação nofacto de funcionar como tal um certo ordenamento coercivo: isto é, o ‘dever ser’resulta efectivamente, pela via travessa do postulado teorético da ‘normafundamental’, de um ser, que, como tal, é para Kelsen alheio ao sentido e ao valorda (mera) facticidade!33
O sistema da Teoria Pura não conseguiu se armar unicamente em estruturas de dever ser. A
norma fundamental, que deveria ser uma pura expressão de dever ser, termina rendida a um
juízo de ser para validar todas as normas postas – o fato de uma ordem funcionar como
coercitiva justifica o sistema. Em outras palavras, a tentativa de construção de uma ciência
completamente normativa esbarrou precisamente na norma suprema.
Com o início das codificações isto é, a tentativa de elaborar um conjunto completo das
normas de uma determinada área do direito, mormente, o direito civil, os princípios
jurídicos receberam maior relevância, pois passam a ser caracterizados como fonte
normativa subsidiária. Não se trata ainda de reconhecer nos princípios uma verdadeira
norma jurídica que deve ser sempre observada. Ao contrário, tem-se o posicionamento
historicamente anterior ao descrito – os princípios são inseridos para assegurar o ideal de
completude do ordenamento jurídico.
A idéia de completude faz crer que um dado ordenamento jurídico é capaz de regular todas
as situações fáticas, ou seja, não há caso que não possa ser solucionado por uma norma
oriunda deste ordenamento. A situação inversa é encontrada naqueles ordenamentos que
33 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1997. p. 99.
50
têm lacunas, isto é, ocasiões em que não se descobrem, no sistema, nem normas proibitivas
nem normas permissivas.
Norberto Bobbio explica que, ao lado da coerência e da unidade, a completude é a terceira
qualidade que caracteriza o ordenamento jurídico que se pretende sistemático. A
completude é a resposta para o anseio de segurança, uma vez que, com ela, restaria proibido
o juízo de non liquet, em que o juiz não julga a causa. Além disso, a completude procura
garantir que as decisões serão proferidas sempre com base no direito posto, excluindo,
portanto, qualquer saída para o direito natural.34
Com base nestas afirmações, percebe-se a relação entre o ideal de completude do
ordenamento e o positivismo jurídico, enquanto realizador de um projeto de sistema
formalmente fechado. Eis o motivo da designação deste período de “segunda fase da
teorização dos princípios”, por Paulo Bonavides.35
A menção aos princípios nos códigos modernos, como foi dito, funcionava unicamente
como garantidora da completude do ordenamento. Aos intérpretes era dada a tarefa de
34 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ed. Brasília: Editora UnB,1999. p. 118.35 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros,2006. p. 262. A primeira fase, vale ressaltar, corresponde ao jusnaturalismo. Por umaquestão metodológica optamos por lhe fazer referência mais adiante.
51
aplicá-los quando houvesse uma lacuna. Significa dizer que os princípios só seriam
utilizados quando faltasse alguma norma para o caso.
Mesmo sendo um garantidor da completude do sistema, os princípios a que se referiam o
código civil italiano foram postos em dúvida por alguns doutrinadores: a lei trazia à tona os
princípios de direito natural ou Direito Positivo? Riccardo Guastini aponta para a
controvérsia surgida na Itália sobre a expressão “princípios gerais do direito” posta no
código civil de 1865. Alguns entenderam que era feita alusão aos princípios de direito
natural, ou seja “os princípios de justiça que se supõem comuns a todo ordenamento (em
todo momento e em todo lugar)”36.
Por outro lado, Bobbio destaca que o legislador italiano do código civil de 1942 optou por
uma expressão que remetesse ao direito positivo, “princípios gerais do ordenamento
jurídico do estado”37. A solução usada para saber quais são os princípios de direito positivo
é esclarecida por Riccardo Guastini: os princípios que podem ser expressos ou derivados de
disposições positivas formuladas nas fontes de direito são considerados de direito
positivo.38
36 GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Barcelona: Gedisa, 1999. p. 154.37 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ed. Brasília: Editora UnB,1999. pp.156-157.38 GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Barcelona: Gedisa, 1999. p. 154.
52
Vale ressaltar que o método de preenchimento de lacunas através dos princípios foi
largamente recepcionado no direito e na doutrina brasileira. Mas a solução adotada foi um
pouco diferente.
Eduardo Espínola entendia que primeiramente deviam ser aplicados os princípios gerais do
direito nacional, para só então, se não resolvessem a questão, utilizar o que chama de
princípios universais de direito, ou seja, aqueles que “se deduzem do espírito legal, da
ciência jurídica, da prática judiciária dos atuais povos cultos”39. Nota-se que a formulação
não é muito precisa, ainda mais porque o autor não esclareceu o que significava um
princípio.
Também Clóvis Beviláqua optou pela utilização de um conceito que não se restringiu aos
princípios de direito positivo ou apenas aos direitos nacionais. O autor chega a fazer
menção ao direito natural e à equidade, ao indicar o caminho para solucionar o problema
das lacunas do direito.40
Carlos Maximiliano, em obra clássica, organiza melhor sua descrição dos princípios.
Afirma o autor que todo conjunto de regras é a síntese, o substrato de um complexo de
máximas, por conseguinte, princípios superiores. Se o legislador parte desses princípios
39 ESPINOLA, Eduardo. Breves Anotações ao Código Civil Brasileiro. vol. I. Salvador:Joaquim Ribeiro, 1918. p. 38.
53
para elaborar as normas, quando o intérprete percebe a insuficiência do ordenamento, cabe-
lhe o regresso aos princípios para poder solucionar o caso. A atividade é descrita assim por
Maximiliano: “sobe aquele [o intérprete] gradativamente, por indução, da idéia em foco
para outra mais elevada, prossegue em generalizações sucessivas e cada vez mais amplas,
até encontrar a solução colimada”41. Esta visão sobre os princípios configura, como se verá
adiante, um dos conceitos que foi utilizado para tentar compreender sua essência: princípios
são normas mais gerais, com alto grau de abstração.
Vê-se que, mesmo não havendo consenso sobre o que seriam os princípios, na transição
entre o século XIX e o século XX, sua função era meramente subsidiária. A mudança deste
pensamento passou pela atualização do conceito de norma jurídica, como se apresenta a
seguir.
A norma jurídica no início do século XX era enxergada essencialmente pela estrutura
daquilo que hoje correntemente se chama de regra, ou seja, um enunciado lingüístico
disposto à semelhança do juízo hipotético da lógica, se A, logo B, onde se encontram a
prótase e a apódose. Aquela contém os pressupostos para verificação de uma conseqüência
e esta, a própria descrição da conseqüência. Karl Engisch explica que, na norma jurídica, a
prótase corresponde à hipótese legal – a descrição de uma conduta – e a apódose a uma
40 BEVILÁQUA, Clóvis. Theoria Geral do Direito Civil. 2.ed. Rio de Janeiro: FranciscoAlves, 1929. p. 47.41 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Porto Alegre: Livrariado Globo, 1925. p. 300.
54
conseqüência jurídica. Ambas são formulações abstratas que não se confundem com a
situação da vida.42
Era este o pensamento predominante. Dessa estrutura surgia a obrigatoriedade, ou seja, da
enunciação de uma conseqüência jurídica. Os princípios jurídicos, por outro lado, jamais
possuíram tal estrutura, daí a dificuldade de compreender do que se tratava.
Não obstante a dificuldade, alguns juristas perceberam a necessidade de dar contornos de
normatividade àquelas formulações genéricas, que não previam conseqüências jurídicas e
muitas vezes não estavam escritas nos instrumentos legislativos, logo, para a maioria, não
estavam positivadas.
Um dos primeiros autores a explorar a temática dos princípios foi o italiano Giorgio Del
Vecchio, que, no intento de romper o rigor positivista, proclamou a remissão do código
civil italiano de 1865 ao direito natural43. Del Vecchio não segue a tese de que estes
princípios são obtidos pela via de generalizações sucessivas das normas já existentes.
42ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 9. ed. Lisboa: FundaçãoCalouste Gulbenkian, 2004. pp. 54 e 55.43 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo:Malheiros, 2006. p.260-261.
55
Acontece que, para o jurista, isso configura o método da analogia. Isso não basta, porque a
generalização das normas existentes não é suficiente para resolver todos os casos.44
Del Vecchio disparou contra um dos pilares do ordenamento jurídico – a completude – já
abordada acima. Para o autor, deve-se admitir a existência das lacunas, que em alguns casos
não serão preenchidas de outro modo, a não ser pelo expediente do direito natural. Isso não
implica, contudo, o desprezo pelo sistema positivo, ao contrário, Del Vecchio sustentou que
a previsão do código civil abrange o direito natural. Todavia, ainda que o código civil tente
restringir os princípios gerais ao direito positivo, como tentou o código italiano de 1942, o
uso do direito natural era incontornável, “dada a necessidade de o juiz resolver todas as
controvérsias possíveis”45.
Este entendimento não foi pacificamente recebido na época, uma vez que o direito natural
causava ojeriza no início do século passado. É indispensável, nesta fase do trabalho,
rememorar alguns tópicos do direito natural.
44 DEL VECCHIO Giorgio. Lições de Filosofia de Direito. vol. II. 3.ed. Coimbra: ArmenioAmado, 1959. p.109.45 DEL VECCHIO Giorgio. Lições de Filosofia de Direito. vol. II. 3.ed. Coimbra: ArmenioAmado, 1959. p. 111.
56
Machado Neto ensina que, durante a Idade Média, os fundamentos do direito natural foram
a inteligência e a vontade divina, reflexos óbvios de uma cultura sob forte influência da
crença religiosa e da fé.46
Porém, o processo de secularização da idade moderna exigiu a renúncia das raízes
teológicas dominantes até então. A razão humana deu lugar à vontade divina na legitimação
do pensamento. Foi Hugo Grotius, explica Machado Neto, quem considerou pioneiramente
que, supondo a inexistência de Deus, “os preceitos do justo e do injusto continuariam
válidos, uma vez que, como as idéias claras de Descartes e as verdades matemáticas, eles
têm seu fundamento nas leis imanentes à razão humana”47.
Nelson Saldanha anota que o conceito de direito natural foi modificado para se adequar à
nova interpretação do mundo, do homem e do poder. É por isso que, sendo uma variável
histórica, a noção de direito natural se relaciona com a experiência jurídica. Uma visão
exclusivamente formal não admitiria que o conceito de direito natural – enquanto conceito
metafísico – fosse formulada com apoio na experiência jurídica. Entretanto, explica o autor,
“com freqüência as construções metafísicas têm que ver com situações vividas e com
formas de experiência, e é isto que lhes dá seu significado humano”48.
46 MACHADO NETO, A.L. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5.ed. SãoPaulo: Saraiva, 1984. p. 26. p. 17.47 MACHADO NETO, A.L. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5.ed. SãoPaulo: Saraiva, 1984. p. 26. p. 17.48 SALDANHA, Nelson. Ordem e Hermenêutica. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.304.
57
Como ensina Paulo Bonavides, o direito natural tratava os princípios gerais de direito como
axiomas jurídicos, oriundos da razão, que visava o direito idealmente justo49. Por sua vez, o
positivismo refuta duramente as teses do direito natural, conforme foi visto, por exemplo,
na descrição do pensamento de Hans Kelsen. Por este motivo a doutrina de Del Vecchio foi
fortemente criticada – propor um retorno ao direito natural, que, para alguns, configura
inclusive um momento pré-científico do conhecimento jurídico50.
Reconhece-se em Del Vecchio papel importante no pensamento jurídico, ao se colocar
contra o positivismo. Falhou, entretanto, em sua opção pelo direito natural, ao sustentar os
princípios gerais de direito em termos axiomáticos.51
Também importante foi o jurista Jean Boulanger, a quem Paulo Bonavides chama de “o
mais insigne precursor da normatividade dos princípios”52. Boulanger foi um dos primeiros
a identificar os princípios como uma espécie do gênero norma e que se diferencia da outra
espécie – as regras.
49 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros,2006. p. 261.50 Cf. MACHADO NETO, A.L. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5.ed. SãoPaulo: Saraiva, 1984. p. 26. p. 18.51 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo:Malheiros, 2006. p.261-262.52 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros,2006. p. 266.
58
A arguta observação de Boulanger foi a diferenciação entre princípios e regras desde sua
natureza. Defendia Boulanger que a generalidade de um princípio é distinta da generalidade
de uma regra. Em uma regra, a generalidade se manifesta sobre um número indeterminado
de pessoas, mas é especial por reger determinados atos ou fatos que ela mesma especifica.
Por outro lado, a generalidade de um princípio significa que ele abrange inúmeras
aplicações indefinidas.53
Outro autor que colaborou para o reconhecimento da normatividade foi Vezio Crisafulli,
que, além de utilizar o conceito de generalidade, entendia que princípio é a norma de onde
derivam logicamente as normas particulares54. Acrescentou ainda que os princípios têm
especial importância na interpretação de outras normas, devido a sua função no sistema.55
Por fim, o jurista Joseph Esser foi outro dos que mais colaboraram para o debate sobre os
princípios. Eros Roberto Grau esclarece que Esser insistiu na distinção entre norma e
princípio, pois estes não configurariam mandamentos propriamente, mas causa e
justificação destes. Apesar disso, seriam direito positivo, não autônomos, porém, uma
condição de funcionamento das regras56.
53 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo:Malheiros, 2006. p.267.54 Cf. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação doDireito. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. pp. 169-170.55 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo:Malheiros, 2006. p.273.56 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação doDireito. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 159.
59
Paulo Bonavides esclarece que partiu de uma reflexão de Feuerbach, segundo a qual é
necessário sair do positivo para a ele retornar, a metodologia que Esser elaborou para poder
superar simultaneamente a completude do sistema positivista e o pensamento axiomático
jusnaturalista.57
As posições de Esser não ficaram alheias às críticas. Hans Kelsen foi bastante incisivo ao
formular sua análise do pensamento de Esser.
Kelsen entendia que princípios da moral, política e costume influenciam a produção do
direito. Um caso judicial, por exemplo, pode ser influenciado por estes princípios, mas seu
fundamento de validade está no princípio jurídico-positivo-formal da coisa julgada. Estes
princípios só podem ser chamados de princípios do direito enquanto influenciam a
produção das normas jurídicas, mas não possuem caráter jurídico. Kelsen dizia que tais
princípios não estão positivados só por influenciarem a produção de normas.58
Kelsen critica Esser por ele aceitar que um princípio pode ser princípio de direito antes de
ter caráter de direito positivo. Como Esser recusa a justificação pela via do direito natural, a
57 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros,2006. p. 271.58 KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1986.p.146.
60
resposta está na materialização institucional por atos jurídicos do Legislativo, da
Jurisprudência ou da vida jurídica. Tal processo Esser denomina como “transformação”,
representando a superação do direito positivo e do natural acima apresentada.59
Kelsen, por sua vez, não se convence da superação do direito natural e assinala que a teoria
da “transformação” na verdade corresponde a uma teoria do direito natural, pois pressupõe
somente uma Justiça, o que torna fracassado o objetivo de Esser.60
Sistematizando este novo quadro, Riccardo Guastini divide em três as funções dos
princípios – produção, interpretação e integração do direito. Quanto à produção, um
princípio circunscreve, do ponto de vista substancial, a competência normativa de uma
fonte subordinada àquela que estabeleceu o referido princípio.Quanto à interpretação do
direito, os princípios são empregados para justificar a interpretação “conforme à
constituição”, ou seja, aquela que determina qual interpretação de determinado dispositivo
respeita a constituição. Por fim, quanto à integração do direito, Guastini descreve a função
clássica dos princípios, já presentes desde os princípios gerais do direito, ou seja, preencher
lacunas quando não houver regras específicas para um caso.61
59 KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1986.p.153.60 KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1986.pp.155-156.61 GUASTINI, Riccardo. Das Fontes às Normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 199-203.
61
Esses são, assim, os sustentáculos da nova hermenêutica constitucional, que será analisada
adiante. Antes, porém, cumpre examinar o autor considerado decisivo no desenvolvimento
e consolidação da teoria dos princípios jurídicos, Ronald Dworkin, a quem se dedica o
próximo tópico.
4. A contribuição de Ronald Dworkin e sua crítica
O trabalho desenvolvido por Ronald Dworkin na teoria do direito, especificamente na
questão dos princípios jurídicos, influenciou fortemente as discussões jurídicas das últimas
décadas. Um dos autores que buscou nas idéias de Dworkin alguns fundamentos para seu
trabalho foi Robert Alexy. A relação existente entre o pensamento dos dois será
apresentada mais adiante, quando for analisada a obra de Alexy.
Dworkin elaborou suas idéias sobre princípios tendo como contraponto o pensamento de
Herbert Hart, mormente o livro “O conceito de direito”, que Dworkin utilizou como
orientador das idéias positivistas que ele combatia. Seu modelo no qual se encontram
inseridos os princípios jurídicos é o opositor daquele chamado por ele de “modelo de
regras”, atribuído a Hart.
Contra o positivismo, Dworkin imputa-lhe três teses centrais que o definem.
62
A primeira sustenta que o direito é um conjunto de regras que é utilizado com a finalidade
de determinar qual comportamento será punido ou coagido. Essas regras são identificadas a
partir de testes que analisam o modo como foram formuladas, em detrimento de seu
conteúdo. Esse método distingue as regras válidas – que passaram no teste de pedigree –
das regras espúrias.62
A segunda tese expressa a discricionariedade judicial: se algum caso não encontrar no
direito uma regra que apresente solução, a autoridade pública competente deverá julgar
com base em seu discernimento pessoal. Com isso, ultrapassa-se as fronteiras do direito em
busca de outro padrão solucionador.63
A terceira tese apresenta a atuação do juiz como legislador posterior ao fato legislado. Isso
ocorre porque ter uma obrigação jurídica significa dizer que alguém deve fazer ou se abster
de fazer alguma coisa em função de uma regra que o determina. Entretanto, para aqueles
casos que não existem regras, o juiz, ao exercer sua discricionariedade, cria a obrigação
após a situação fática se realizar.64
62 Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes,2002. pp. 27-28.63 Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes,2002. p. 28.
63
Com base nestas três teses, Dworkin tece suas críticas ao positivismo de Hart. Este último
defende que, em face da complexidade do sistema jurídico, as regras assumem tipologia
dual, ou seja, se dividem em duas classes: regras primárias e regras secundárias. As
primárias exigem que seres humanos adotem ou deixem de adotar condutas específicas.
Nas palavras de Hart, “as regras do outro tipo são em certo sentido parasitas ou secundárias
em relação às primeiras: porque asseguram que os seres humanos possam criar, ao fazer ou
dizer certas coisas, novas regras do tipo primário, extinguir ou modificar regras antigas”65.
Há ainda a função cabida às regras secundárias de determinar os modos de incidência ou
fiscalizar a aplicação das regras primárias. Enfim, a regra secundária existe em função das
primárias, para organizá-las.
Outro conceito essencial à teoria de Hart é o da regra de reconhecimento. A distinção entre
regras jurídicas e regras sociais ficou clara desde quando as comunidades desenvolveram
uma regra secundária portadora de critérios capazes de identificar quais regras são
especificamente jurídicas. A essa regra Hart deu o nome de “regra de reconhecimento”,
cujas exigências variam conforme a complexidade do sistema jurídico. O critério
identificador, segundo o autor, “pode consistir no fato de terem sido legisladas por um certo
órgão ou pela sua longa prática consuetudinária ou pela sua relação com decisões
judiciais”66.
64 Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes,2002. p. 28.65 HART, Herbert L.A. O conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1986. p. 91.66 HART, Herbert L.A. O conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1986. p. 105.
64
H. L. A. Hart, em“ Positivism and the Separation of Law and Morals”, in: Id. “Essay in
Jurisprudence and Philosophy”, Oxford: Clarendon Press, 1993 [1983], manifesta logo no
princípio do texto sua intenção de situar o tema da distinção positivista entre o Direito tal
como é de sua avaliação moral, de como deveria ser, no âmbito da história das idéias. E,
realmente, ao longo da primeira parte, procura alinhar os defensores da idéia e, de outro
lado, seus opositores, tanto nos EUA como na Inglaterra. Dentre os defensores, é concedida
primazia a John Austin, que defendeu a tese com radicalidade maior do que a do chefe da
escola na qual ele é inserido, a saber, Bentham e o utilitarismo, respectivamente.
A distinção proposta entre o direito e a moral não implica um desconhecimento de que
ambos se influenciem mutuamente. Na segunda parte do texto em apreço, quando passa a
considerar as críticas a este posicionamento, Hart adianta, já no princípio, que Bentham e
Austin teriam centrado, equivocadamente, sua atenção no modo com aquela distinção se dá
no nível das leis em particular, desconsiderando, assim, peculiaridades que aparecem tanto
em um nível mais concreto, em que elas são aplicadas, por meio de decisões judiciais,
como também em um nível, por assim dizer, “macro”, em que se passa a considerar a
desconformidade do sistema de regras como um todo, em relação a padrões morais,
levando a descaracterizá-lo enquanto um sistema jurídico.
Hart alerta ainda para um aspecto de fundamental importância, que costuma ser
desconsiderado pelos críticos da tese separatista: a circunstância de que ele aparece em um
contexto teórico mais amplo, na tradição utilitarista, ao qual pertencem também a ênfase na
importância da análise conceitual sem que isso signifique invalidar os estudos feitos nas
65
dimensões social e histórica, bem como a teoria imperativista sobre a natureza da norma
jurídica, que a define como uma ordem: seria importante, segundo Hart, que não se
descartasse a possibilidade de sustentar alguma dessas teorias sem, ipso facto, sustentar
todas elas ao mesmo tempo, para que se possa identificar o positivismo. É assim que nosso
A., embora considerando-se um positivista, não endossará a teoria imperativista, mesmo em
alguma versão mais suavizada, que a “despsicologizam”, “sociologizando-a”, ao substituir
a noção de “ordem” por aquela de “hábito da obediência”. Apesar de dedicar a quase toda a
segunda parte de seu estudo a refutar a doutrina imperativista, Hart reconhece que
propostas recentes, no âmbito da filosofia moral analítica, de tratar assertivas normativas
como formas de um discurso prescritivo, guardam conexão com esta doutrina tradicional
(p. 58 ) – que, a rigor, se pode remontar, modernamente, a Hobbes, na própria tradição
inglesa -, mas procede a sua refutação, sem concordar, no entanto, com argumentos como o
do jusfilósofo escandinavo Hägerström, que negava à concepção das normas jurídicas como
um comando a possibilidade de, através delas, se conferir direitos subjetivos.
Na terceira parte de seu estudo, Hart leva em conta as críticas oriundas do movimento
realista norte-americano, iniciado nos anos de 1930, não sem antes enfatizar a importante
contribuição ofertada pelo mesmo, especialmente no que tange o papel da elaboração
judicial do Direito, ao definir o significado das palavras empregadas pelas normas, em face
de situações concretas – com o que estariam antecipando a “reviravolta pragmática” da
filosofia, enquanto filosofia da linguagem. Aqui Hart introduz sua célebre imagem da “zona
de penumbra” que existe em torno das normas, ou melhor, do seu significado (p. 64), que
não pode, por isso, ser simplesmente deduzido do seu texto, mas exige a consideração do
contexto de aplicação. A desconsideração deste aspecto, por conta de seu “formalismo” ou
66
“literalismo”, faria com que a tradição utilitarista incorresse em erro, ao postular a
separação entre o Direito e a Moral, pois nessa “zona de penumbra” estaria a interseção
entre eles. Ocorre, porém, que não se poderia, segundo Hart, confundir o formalismo da
teoria jurídica com aquele dos que aplicam o Direito. Desse formalismo não se pode acusar
os utilitaristas, mas antes autores como Blackstone e Montesquieu, com sua exigência de
estrita obediência dos juízes aos ditames da lei, pois Austin os incitava a agirem como
legisladores, sempre que se dessem lacunas normativas e indeterminação no sentido
normativo. Também, a crítica a uma forma mecânica de realizar a subsunção de casos
concretos às normas, considerando-a má, já pressupõe a distinção entre Direito e moral,
pois dificilmente se poderá negar que o resultado desta aplicação, por mais danoso que seja
de um ponto de vista social ou outro qualquer, possa ser descartada como injurídica. Ao
mesmo tempo, é possível avaliá-la de acordo com padrões jurídicos mesmo, e não, apenas,
por aqueles morais, cabendo ao juiz extrair da ordem jurídica tais padrões – eis um
momento em que a argumentação de Hart nos evoca colocações que, posteriormente,
Ronald Dworkin faria, pretendendo superar o positivismo do primeiro. No final dessa
terceira seção, Hart chama atenção para a ênfase exagerada que os realistas fariam da “zona
de penumbra”, vendo-a presente a todo momento, o que termina obscurecendo o “núcleo de
significado inquestionável” (the core of central meaning – p. 72) que teriam as normas –
para expressar em termos dworkianos, parece que Hart está nos lembrando que só diante de
“hard cases” aparece a penumbra, autorizando juízes a buscar uma interpretação mais
ampla, menos literal, do Direito.
Na quarta parte de seu texto, Hart se debruça sobre os argumentos que inspiraram em
Gustav Radbruch, jusfilósofo alemão, sua proposta de “retorno ao jusnaturalismo”, quando
67
confrontado com os horrores nazistas, perpetrados com a exigência de respeito à lei, como
uma conseqüência do positivismo e sua insistência na distinção entre o Direito e a moral.
Inicialmente, Hart relembra que na tradição utilitarista, por sua vinculação aos ideais
liberalistas, sempre se estimulou uma postura crítica diante da legislação, chegando-se a
defender o direito de resistência, mas não como uma objeção de consciência, como propõe
Radbruch, e sim em nome do princípio utilitarista da busca da maior felicidade do maior
número possível de pessoas, no exercício das liberdades democráticas, incrustadas na lei,
especialmente em nível constitucional.
Na quinta parte do ensaio, então, Hart vai indicar que o modo de ser do Direito em uma
sociedade complexa como a nossa vai exigir que ele seja dotado de certas características
necessárias, para a administração mesmo do Direito, tais como a objetividade e
imparcialidade, considerados princípios naturais de um procedimento da justiça enquanto
instituição (natural procedural justice – p. 81), o que não significa assumir alguma forma
de jusnaturalismo. Também, nessa parte do trabalho, logo no início, Hart propõe que se
desloque a consideração da natureza coativa do Direito, expresso pela sanção, bem como o
problema de sua eficácia social, de uma referência a normas isoladas para o sistema delas
considerado em sua totalidade, como ordem jurídica ou sistema de regras.
Na conclusão do texto, Hart defende uma posição cognitivista em relação ao discurso
normativo, considerando possível a discussão racional a respeito de valores, tanto no
âmbito da moral como do Direito, sem que isso signifique que se deva suprimir a distinção
entre eles, pois provar a iniqüidade moral de uma certa norma jurídica não teria o condão
de retirar-lhe essa característica, a da juridicidade, pois aí se estaria já confundindo os
68
planos da racionalidade com aquele fático, no qual se assenta o Direito, enquanto uma
prática social, um certo “jogo de linguagem” (Wittgenstein).
Dworkin entende que a regra de reconhecimento de Hart não funciona para os princípios,
porque suas origens não se encontram em decisões do poder legislativo ou judiciário, mas
numa compreensão do que é apropriado que foi construída pelos profissionais e
comunidade ao longo do tempo.67
A regra de reconhecimento é responsável também pela unificação do sistema jurídico, uma
vez que reúne em torno de si somente as regras que tenham algo em comum, uma
característica geral.68
A partir destas características, Dworkin lança suas críticas ao positivismo, por considerar o
modelo insuficiente. Uma das falhas, adverte o autor, é a consideração apenas de regras. É
necessário considerar no direito a existência também de princípios, que diferem destas
últimas quanto ao modo de sua aplicação.
Dworkin, consoante sua elaboração amplamente conhecida, descreveu a aplicação das
regras pela maneira do “tudo ou nada”: “dados os fatos que uma regra estipula, então ou a
67 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.64.68 HART, Herbert L.A. O conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1986. p. 105.
69
regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e
neste caso em nada contribui para a decisão”69. As regras têm uma peculiaridade, a
existência de exceções. Mas tais exceções integram a regra e devem ser sempre elencadas,
para tornar completo o enunciado de uma regra.
Um princípio, por sua vez, não estabelece nenhuma condição para sua aplicação, ou seja,
não prevê a descrição de uma conduta que, se ocorrer, impõe uma conseqüência. Princípios
simplesmente enunciam uma razão apta a direcionar uma decisão. Diferentemente das
regras, um princípio não se sujeita à enumeração de exceções, porque, em inúmeros casos,
um outro princípio poderá afastar a aplicação daquele primeiro. E arrolar esses casos é
impossível, uma vez que não se sabe quais virão a existir, enquanto que, nas regras, sabe-se
previamente quais são as exceções a seu enunciado.70
Para Dworkin, essa impossibilidade de conhecimento prévio de todas as exceções de um
princípio decorre de uma dimensão que só os princípios têm: a dimensão do peso. Quando
dois princípios se encontram num caso concreto e indicam caminhos distintos para
solucioná-lo, o intérprete deve resolver em função da “força relativa” de cada um deles.
69 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.p.39.70 Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes,2002. p.41.
70
Dworkin defende que o choque de duas regras, ao contrário, implica considerações externas
a ela, ou seja, não se analisa um suposto peso de cada uma. A solução é determinada
conforme outras regras do sistema que estabelecem o modo de solução do conflito, que
levará a que uma delas seja declarada inválida, o que também não acontece com os
princípios.71
Sobre o conceito de princípio utilizado por Dworkin, deve-se esclarecer que o termo
comporta duas acepções. A acepção genérica, aqui utilizada, inclui os princípios em sentido
estrito e as “políticas”72. Estas últimas são “aquele tipo de padrão que estabelece um
objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou
social da comunidade”, incluídos os objetivos negativos, isto é, a proteção de um “status
quo” contra mudanças maléficas. Os princípios em sentido estrito, por outro lado,
representam exigências da justiça, eqüidade ou outra dimensão da moralidade, ao invés de
um objetivo coletivo73.
Quanto à moralidade tocante aos princípios, Dworkin a refere como um conjunto de
critérios que avaliam se um argumento é ou não moral. Mas um juízo moral deve ser
fundado em fatos comprováveis pela experiência ou pela ciência e que seja coerente com
71 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.p.43.72, Ricardo Libel Waldman chama a atenção para que a tradução mais próxima do termo“policies” talvez seja “políticas públicas”, apesar de reconhecer que, no português,relaciona-se mais a ações concretas do que a objetivos. A Teoria dos Princípios deRonald Dworkin. Revista Direito e Justiça. vol. 25, ano 24. Porto Alegre, 2002. p. 122.
71
seus juízos, o que não os confundem com mera opinião. Estes critérios, como anota Ricardo
Libel Waldman, “está em que reduzem, se não extinguem, as possibilidades de um
relativismo moral sem limites, embora não se queira com isso dizer que existem valores
morais metafísicos e preexistentes a tudo, nem que todo o direito está de acordo com a
moral”74.
Willis Guerra Filho assinala, porém, que esta divisão já foi superada, na doutrina alemã,
através do reconhecimento da dupla dimensionalidade dos direitos fundamentais, afinal,
interpretar princípios indica que se trabalha com algum direito fundamental. A primeira
dimensão, subjetiva, indica algum direito individual protegido, já a segunda, objetiva,
relaciona-se a um valor almejado pela comunidade75. Vale repetir que neste trabalho usa-se
o sentido genérico de Dworkin.
Regressando à análise do positivismo, Dworkin posiciona-se contra a defesa do poder
discricionário do juiz, cujo sentido permite que ele, ao julgar um caso em que já esgotou as
regras a sua disposição, possui o poder de julgar sem estar obrigado por quaisquer normas
oriundas da lei. Citando casos dos tribunais americanos, Dworkin defende que não existe
poder discricionário, pois, se não encontrar uma regra adequada, o juiz deve decidir com
base nos princípios jurídicos.
73 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.36.74 WALDMAN, Ricardo Libel. A Teoria dos Princípios de Ronald Dworkin. Revista Direitoe Justiça. vol. 25, ano 24. Porto Alegre, 2002. p. 124.
72
Os positivistas opõem três objeções a esta tese. A primeira é a suposta falta de
obrigatoriedade dos princípios, que é contestada por Dworkin através do argumento de que
não existe, no caráter lógico de um princípio, nada que impeça sua obrigatoriedade. A
segunda expressa a impossibilidade de um princípio prescrever um resultado particular,
entretanto, apesar de não ser conclusiva, o princípio aponta a direção da decisão do juiz. A
terceira objeção se refere à autoridade e ao peso de um princípio, que seriam controversos.
Reconhecendo que não se pode demonstrar o peso ou a autoridade de um princípio como se
faz com uma regra, ao fazer menção ao Congresso ou a um tribunal autorizado, Dworkin
defende que os princípios são avalizados por um conjunto de práticas e outros princípios,
onde a história legislativa e judiciária se juntam “com apelos às práticas e formas de
compreensão partilhadas pela comunidade”76.
Finalizando a exposição sobre a obra de Dworkin, cabe apresentar sua tese sobre os casos
difíceis. Tais casos são aqueles em que o juiz se depara com a falta de regras apropriadas
para julgar. Aqui, os positivistas, conforme Dworkin, aceitariam um poder discricionário do
juiz – como já foi visto. Entretanto, nestes casos a conduta correta seria a análise e
aplicação de princípios jurídicos.
75 GUERRA FILHO, Willis Santiago Sobre Princípios Constitucionais Gerais: Isonomia eProporcionalidade. Revista dos Tribunais, v. 719, São Paulo, 2002. p. 60.76 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.p.58.
73
Neste momento, faz-se necessário utilizar a distinção de Dworkin entre princípios e
políticas, pois, nos casos difíceis, trabalha-se com o sentido estrito ao afirmar que os
princípios jurídicos é que devem ser aplicados. É que, nesta acepção, a palavra “princípios”
refere-se à proteção de um direito individual, uma garantia de liberdade, em oposição aos
objetivos coletivos, representados pelas “políticas”.
Sem desconsiderar sua importância, a teoria de Dworkin foi contestada por diferentes
autores. Um deles foi Riccardo Guastini, que traça suas objeções às concepções que
superariam em definitivo o direito natural e o positivismo.
O professor italiano defende que a filosofia do direito elaborada por Dworkin é fundada em
idéias jusnaturalistas mescladas com a concepção formalista do positivismo clássico. Para
Guastini, a idéia de Dworkin de que os indivíduos têm direitos antecedentes à legislação
viria do direito natural. Além disso, a impossibilidade de demarcar uma clara linha que
separa o direito da moral também seria jusnaturalista. Por outro lado, surpreendentemente,
há na teoria de Dworkin também uma dimensão formalista, qual seja a idéia de que o
direito – uma mescla de normas positivas e princípios morais – é completo e coerente, de
modo que os casos admitem uma solução correta.77
77 GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Barcelona: Gedisa, 1999. pp. 282-283.
74
No rastro da crítica anterior, Guastini entende que o antipositivismo de Dworkin, ao ligar o
direito e a moral, não disponibiliza caminhos para a verificação empírica da importância
relativa dos princípios e por isso, ficam a cargo de argumentações morais. Essa postura
tentaria justificar a prática corrente na corte suprema norte-americana e em muitos tribunais
constitucionais europeus, onde haveria uma tendência a valorar a justiça substancial de leis
questionadas, ao invés de interpretar textos constitucionais.78
Todavia, parece-nos que a crítica de Guastini não considera a necessidade de se interpretar
o direito com também dos valores. Entretanto, tais valores ganham juridicidade através de
sua normatização como princípios. A interpretação principiológica necessariamente não se
desvincula da dimensão valorativa, porém, não fica condenada à pura moral do intérprete,
pois este partirá do direito, isto é, dos valores que foram positivados na seara
constitucional.
Há, ainda, as objeções levantadas por Genaro Carrió, o qual se colocou contra as posições
que Dworkin imputou a Hart. São nomeadamente quatro as críticas de Carrió que
interessam a este trabalho.
A crítica inicial defende que Hart nunca sustentou que todo direito é direito legislado.
Segundo Carrió, Dworkin atribuiu a Hart um posicionamento que ele nunca expressou. Para
78 GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Barcelona: Gedisa, 1999. p. 284.
75
fundar sua crítica, Carrió apresenta algumas normas que não são provenientes do legislador,
como os costumes, as regras extraídas das decisões judiciais e a própria regra de
reconhecimento, que pode ser considerada integrante do direito.79
A seguir, Carrió expõe uma crítica que já fizera em 1971 na monografia “Princípios
jurídicos e positivismo jurídico”, mas que Dworkin, ao respondê-la em 1972, não rebateu
consistentemente. A objeção contra Dworkin corresponde a sua suposta não compreensão
do conceito de Hart sobre as regras, ou seja, em seu ataque ao positivismo jurídico,
Dworkin não considerou realmente o modelo de regras apresentado em “O conceito de
direito”.80
Na obra de Hart, conforme Carrió, “regra” assume dois sentidos: o primeiro é relacionado à
regra específica, em que se exige uma conduta determinada, o segundo, por sua vez,
contém um dever geral, sem especificar qualquer conduta devida. Neste segundo cabe
também o mandamento que Dworkin utiliza para exemplificar os princípios – o brocardo
“a ninguém é dado se beneficiar da própria torpeza”. Isto, por si só, já é deveras grave
contra a exposição de Dworkin, afinal, ele buscou atingir o modelo de Hart por sua
insuficiência. Ainda quanto ao conceito de regras, Carrió defende que não é verdade que
elas se apliquem apenas segundo o modo do “tudo ou nada”, porque, devido a sua textura
79 CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguaje. 5.ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2006. p.351.80 CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguaje. 5.ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2006. p.352.
76
aberta, não se pode imaginar que uma regra seja tão detalhada a ponto de determinar
previamente sua aplicação a um certo caso, sem que, no momento efetivo de aplicação, se
possa fazer uma nova escolha diante das outras regras – também de textura aberta.81
Também atinente ao conceito de regra, Carrió considera possível, consoante a teoria de
Hart, que se decida com base no peso relativo de cada regra. A dimensão de peso não é
exclusiva dos princípios e freqüentemente utilizam-se regras de modo gradual82. Neste
particular, aliás, Carrió é acompanhado por Eros Grau.83
A terceira oposição de Carrió contra Dworkin é atinente à visão de Dworkin sobre a regra
de reconhecimento proposta por Hart. Para ele, não é possível que esta regra reconheça
princípios, porque seu método identifica as normas jurídicas apenas a partir da forma como
foram criadas, sem analisar seu conteúdo. Por esta razão, tal regra de reconhecimento não
contemplaria os princípios. Entretanto, segundo Carrió, os critérios de validade jurídica
advêm das práticas de uma comunidade, particularmente dos juízes e, complementarmente,
da aceitação, pela população, dos resultados desta prática. Conseqüentemente, nada impede
que os critérios usados possam validar também os princípios.84
81 CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguaje. 5.ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2006. p.352.82 CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguaje. 5.ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2006. pp.352-353.83 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação doDireito. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 168.84 CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguaje. 5.ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2006. p.354.
77
Por fim, a quarta crítica elaborada contra as teses de Dworkin se refere à discricionariedade
judicial. Carrió anota que as considerações de Dworkin foram feitas sem analisar as
publicações de Hart após 1960, ou seja, deixou à margem duas obras da década de 1960.
Ao decidir os casos difíceis, os juízes aplicam “critérios de relevância” que dependem de
fatores complexos, além de sopesar argumentos de força equivalente, sempre fundados em
matérias jurídicas. Não equivale a dizer – assinala Carrió – que os juízes atuam
discricionariamente ou que pratiquem legislação judicial. Diante da complexidade, não
seria apropriado abordar a ecisão como única resposta correta, em que pese também não se
tratar de discricionariedade judicial.
Diante das críticas sofisticadas de Carrió, é induvidoso que a teoria de Dworkin merece ser
relida. Não fica prejudicada, porém, a colaboração especial do jurista americano. Como
anota José Alcebíades de Oliveira Jr, sua diferenciação entre regras e princípios, além de
bem elaborada, influenciou o pensamento jurídico contemporâneo e incrementou o debate
sobre o pós-positivismo e os direitos fundamentais, com lembra85. Ademais, possui um
lugar de destaque na nova hermenêutica constitucional, que passamos a examinar.
5. A Teoria dos Princípios de Robert Alexy
5.1. Considerações preliminares sobre o Pensamento de Robert Alexy.
78
Robert Alexy, jurista alemão, elaborou sua teoria dos direitos fundamentais com apoio
numa bem estruturada tipologia das normas jurídicas, cujas espécies são regras e princípios.
Tal tipologia foi essencial para a construção de sua teoria dos direitos fundamentais, como
será apresentado adiante.
Antes de abordar esses temas, contudo, faz-se necessário apresentar resumidamente as
idéias do autor sobre o direito e sua metodologia.
Alexy desenvolveu suas teses com base na superação da dicotomia existente entre direito
positivo e direito natural. Tanto assim que, ao dissertar sobre o problema do conceito de
direito, considera três características principais sem as quais há o risco de se cair ou no
positivismo ou no jusnaturalismo.86
Para ele, quem deseja saber qual conceito de direito é correto ou adequado precisará
relacionar três elementos: o da legalidade conforme o ordenamento, o da eficácia social e o
85 OLIVEIRA Jr, José Alcebíades de. Casos Difíceis no Pós-positivismo. In: BOUCAULT,Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). Hermenêutica Plural. SãoPaulo: Martins Fontes, 2002. pp.212-213.86 ALEXY, Robert. El Concepto y la Validez del Derecho y Otros Ensayos. Barcelona:Gedisa, 1994. p. 21.
79
da correção material. Sem a conjugação dos três, entende Alexy, obter-se-á um conceito de
direito positivista ou jusnaturalista.87
É positivista o conceito de direito que for descrito apenas com a legalidade ou a eficácia
social, sem haver, portanto, a idéia de correção material. Por sua vez, o direito natural
elabora um conceito de direito baseado unicamente em sua correção material. Quanto ao
positivismo, há também variações de seu conceito, as quais dependem da ênfase que é dada
aos dois elementos – legalidade e eficácia – e à relação existente entre eles.
Afastando as nuances de cada visão positivista apresentadas por Alexy, que não cabem nos
propósitos deste trabalho, é necessário compreender que o conceito de direito utilizado pelo
autor, que segue abaixo, abrange a legalidade, a eficácia e a correição,
El derecho es un sistema de normas que (1) formula uma pretensión decorrección, (2) consiste em la totalidad de las normas que pertenecen a umaConstitución em general eficaz y no son extremadamente injustas, como asítambién em la totalidad de las normas promulgadas de acuerdo com estaConstitución y que poseen um mínimo de eficacia social o de probabilidad deeficacia y no son extremadamente injustas y al que (3) pertenecen los principios ylos otros argumentos normativos em los que se apoya el procedimiento de laaplicación del derecho y/o tiene que apoyarse a fin de satisfacer la pretensión decorrección.88
Neste conceito encontram-se os três elementos referidos acima. A preocupação com o a
correção material, agregada da legalidade e da eficácia social, caracteriza, no entender de
87 ALEXY, Robert. El Concepto y la Validez del Derecho y Otros Ensayos. Barcelona:Gedisa, 1994. p.21.
80
Robert Alexy, a superação do positivismo jurídico. Neste ponto exerce função importante
justamente o reconhecimento da valoração na ciência jurídica, sem, contudo, ignorar sua
racionalidade.89
Quanto à dogmática jurídica, ciência do direito em sentido estrito, Willis Santiago Guerra
Filho anota que o modelo desenvolvido por Alexy, em consonância com os ensinamentos
de seu professor Ralf Dreier, corresponde a uma abordagem de uma determinada ordem
jurídica positiva sob a perspectiva de três dimensões diferentes.90
As dimensões são observadas a partir de três atividades da ciência do direito em sentido
estrito: (1) a descrição do direito vigente, (2) análise sistemática e conceitual e (3)
desenvolvimento de propostas para solucionar casos problemáticos. Assim, as três
88 ALEXY, Robert. El Concepto y la Validez del Derecho y Otros Ensayos. Barcelona:Gedisa, 1994. p. 123.89 A racionalidade no conceito de direito de Alexy não é um tema livre de críticas. EmÉtica e Retórica, 2. ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2006, p.329 e seg, JoãoMaurício Adeodato afirma que Alexy tenta unificar as tradições positivistas ejusnaturalistas. É positivista a idéia de que o direito justo é resultado de procedimentos,sem serem aprioristicamente fixados; por outro lado, é jusnaturalista a idéia de que asregras desse procedimento não são construídas pelo direito positivo, mas são postas defora para dentro, por terem intrinsecamente válidas. Entretanto, seriam racionais apenasaqueles procedimentos que seguem as regras descritas pela teoria da argumentação deAlexy. Adeodato aponta, ainda, que o problema de Alexy reconhecer uma conexão entreo direito e a moral não está na conexão em si, mas, na predeterminação do conteúdomoral a partir de critérios válidos em si mesmos, como o critério racional. Assim, apretensão de correção parte da idéia de que é possível conhecer objetivamente oconteúdo moral correto do direito.90 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva,2001. p. 67
81
dimensões que possui a ciência do direito são: a empírico-descritiva, a analítico-lógica e a
prático-normativa.91
Na dimensão empírico-descritiva, efetua-se o conhecimento de uma ordem jurídica
positivamente válida92.É também o momento de descrição da prática dos tribunais93. A
analítico-lógica tem a função de examinar os conceitos jurídicos e as relações entre as
diferentes normas, além de se dedicar também à estrutura do sistema jurídico94. A dimensão
prático-normativa vai além da descrição e conceituação, atingindo o campo da orientação e
crítica da prática jurídica, mormente da pratica judicial. Cumpre indagar, num caso
concreto e sob o direito positivo válido, qual a decisão correta95. Aqui, abre-se espaço para
o estudo de “questões relativas a valores” que foram mal resolvidas pelo conjunto
normativo e exigem o exame crítico. Para tanto, é necessário que os conceitos estejam
claros e o sistema formado por eles demonstre coerência.96
A dimensão analítica tem íntima relação com a Jurisprudência dos conceitos, pelo dever de
analisar os conceitos jurídicos, suas combinações e posição no sistema. A compreensão
91 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005. pp.244-245.92 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p.30.93 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005. p.245.94 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p.30.95 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p.32.
82
exaustiva dos conteúdos dos conceitos garantiria a total compreensão e segurança na
aplicação do direito97. Esse modelo foi criticado, mas não significa que mereça o desprezo
total. Ao contrário, Alexy entende que ele é útil, mas também insuficiente e, por isso,
representa apenas uma das dimensões da ciência jurídica, que se torna completa com o
ingresso das outras duas dimensões.
A fim de exemplificar este modelo jurídico, auxilia o estudo das diferentes abordagens do
princípio da proporcionalidade feito por Luís Virgílio Afonso da Silva, cada uma
correspondendo a dimensões diferentes. Diz o autor que, para examinar por completo a
proporcionalidade, é necessário, em primeiro lugar, analisar detalhadamente o conceito
técnico-jurídico de proporcionalidade, especialmente diferenciando-a de conceitos
tangentes (dimensão analítico-lógica). Em seguida, é necessário questionar qual a relação
entre a proporcionalidade e o direito positivo brasileiro, para que seja possível, inclusive,
exigir sua aplicabilidade (dimensão empírico-descritiva). Por último, deve-se, com base nos
resultados obtidos através das outras duas dimensões, fornecer uma resposta para o
problema enfrentado, ou seja, a proporcionalidade na prática brasileira (dimensão prático-
normativo).98
96 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva,2001. p. 6897 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005. p.247.98 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais, v.798. São Paulo, 2002. p.24.
83
Alheio a este exemplo, em que se buscou uma análise a partir das três dimensões, o jurista
pode se orientar por investigações apenas em uma das dimensões, priorizando-a. Além
disso, assinala Willis Guerra Filho, as dimensões mostram a interdependência entre fato,
valor e norma. A ênfase maior em um deles marca as diferenças entre as abordagens
jurídicas ao longo da história. Por exemplo, o enfoque analítico foi prestigiado pela
Jurisprudência dos conceitos, como já se disse, e pelos estudos de Hart e Kelsen. O enfoque
empírico, por outro lado, foi priorizado pelo Movimento do Direito Livre e pelas Escolas
históricas, sociológicas e realistas, enquanto que o axiológico predominou na
Jurisprudência dos interesses, teorias da justiça e direito natural.99
5.2. O Conceito de Norma elaborado por Alexy
Alexy preparou seu conceito de norma tendo em vista sua importância para a compreensão
dos direitos fundamentais. Como foi visto, após a segunda guerra mundial, as constituições
intensificaram a tendência de inserção de valores em seus textos.
O conceito de norma obviamente não poderia se restringir ao modelo tradicional. Alexy
desenvolveu um conceito de norma e sua respectiva tipologia para tentar pôr fim a algumas
dúvidas, para suplantar as dúvidas existentes sobre a diferenciação de princípios e regras.
99 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva,2001. p. 69.
84
Alexy elaborou um conceito – denominado conceito semântico – cujo ponto de partida é a
diferenciação entre norma e enunciado normativo: a norma é o significado de um
enunciado normativo. A necessidade de diferenciá-los é vista no fato de que uma única
norma pode ser expressa através de inúmeros enunciados, além de se poder expressar
normas sem haver enunciado, como, por exemplo, as normas produzidas por um
semáforo.100
A identificação de uma norma deve ser feita a partir de sua própria análise, e não, da
análise do enunciado que a expressa. O critério definidor de uma norma se encontra nos
modais deônticos, cujas diferentes espécies podem ser resumidas no conceito de dever-
ser.101-102
O conceito semântico adotado por Alexy não se confunde com o conceito de sua validade.
Significa que, apesar de se poder conciliar o conceito semântico com diferentes teorias de
validade da norma, o conceito semântico não estabelece critérios para saber quando uma
100 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 51.101 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 52.102 Sobre o assunto, em Curso de Direito Tributário,16.ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p.343, Paulo de Barros Carvalho ensina que o modal deôntico é o elemento diferenciadorentre o dever-ser interproposicional e o dever-ser intraproposicional. Aquele correspondeà ligação entre a hipótese normativa e a conseqüência jurídica, enquanto este “entrelaçao sujeito pretensor ao sujeito devedor”, relação que existe nas regras de comportamento.O dever-ser intraproposicional se triparte, segundo o autor, nos modais obrigado,permitido e proibido. O entendimento de Paulo de Barros Carvalho quanto à presença domodal deôntico apenas nas regras que descrevem um comportamento não se
85
norma é válida. O jurista sugere três teorias como exemplos: a)sociológica, onde fatos
sociais são examinados para reconhecer normas válidas, como a obediência habitual ou o
sentimento de obrigatoriedade, b)jurídica, que reconhece válida a norma produzida por uma
autoridade cuja competência foi estabelecida por uma norma superior e c)ética, onde o
fundamento de validade é moral.103
O conceito semântico não toma como pressuposto nenhuma dessas teorias da validade, mas
também não as rechaça. Entretanto, para que elas possam dizer que uma norma é válida,
antes é preciso dizer o que é uma norma. E, para isso, Alexy entende que o conceito
semântico é o mais apropriado. 104
Alguns autores vêem neste conceito semântico grande semelhança na noção de Kelsen
sobre norma, na medida em que este também já fazia uma estrita separação entre ser e
dever ser. É o caso, por exemplo, de Thomas da Rosa de Bustamante105. Inclusive, o
próprio Alexy reconhece tal semelhança, desde que seja feita uma ressalva quanto ao
compatibiliza com as idéias de Alexy, porque este defende que o modal está presente emqualquer tipo de norma – inclusive nos princípios.103 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 57-58.104 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p.59.105 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Sobre o Conceito de Norma e a Função dosEnunciados Empíricos na Argumentação Jurídica segundo Friedriech Müller e RobertAlexy. Revista de Direito Constitucional e Internacional, n. 43. São Paulo, 2003. p.106.
86
elemento volitivo kelseniano (norma como produto de um ato de vontade), que não é
incluído no modelo de Alexy.106
Acerca das normas de direito fundamental, elas podem ser divididas em dois grupos, as
normas diretamente estatuídas pela constituição e as normas a elas adscritas. O primeiro
grupo é fácil de se entender, pois a ele correspondem as normas textualmente postas na
constituição. O segundo, porém, é resultado de uma interpretação que procura tornar mais
precisa uma norma diretamente estatuída no texto. É o resultado de uma interpretação que
torna mais claro o dispositivo constitucional.107
O exemplo fornecido por Alexy parte do enunciado da constituição alemã, art. 5º, § 3º, “a
ciência, a pesquisa e o ensino são livres”, para formar o enunciado “a ciência, a pesquisa e
o ensino devem ser livres”. A abertura semântica de seus termos levou o Tribunal
Constitucional Federal daquele país à formulação de um enunciado adscrito que foi
utilizado como fundamento de uma decisão – “o estado tem o dever de possibilitar e
promover o livre cultivo da ciência livre e sua transmissão às futuras gerações, facilitando
os meios pessoais, financeiros e organizacionais”. Estes enunciados, portanto, também
expressam normas de direito fundamental. 108
106 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 50.107 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 70.108 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 67-68.
87
O problema das normas fundamentais adscritas é descobrir qual o critério que permite
reconhecer as normas adscritas. Para Alexy, uma norma adscrita é válida quando pode
oferecer uma fundamentação jusfundamental correta, ou seja, dependerá da argumentação
empregada e não há definido um procedimento que conduza a um único resultado.109
5.2.1. A Estrutura das Normas.
As normas podem se estruturar sob duas formas, regras ou princípios, o que implica
repudiar a diferenciação feita antigamente entre normas e princípios. O que é uma regra e o
que é um princípio, no entanto, representa a grande questão a ser discutida.
Canotilho enumerou cinco critérios encontrados na doutrina para diferenciá-las: a) grau de
abstração – princípios possuem grau maior do que as regras; b) grau de determinabilidade
na aplicação – os princípios precisam de mediação para ser aplicados, enquanto as regras
possibilitam aplicação direta; c) fundamentabilidade no sistema das fontes de direito – os
princípios localizam-se hierarquicamente em altos patamares (como os princípios
constitucionais) ou tem importante função estruturante no sistema jurídico; d) proximidade
da idéia de direito – princípios são radicados na idéia da justiça, para Dworkin, ou na idéia
109 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 71.
88
de direito, para Karl Larenz, enquanto as regras podem ser normas com caráter apenas
funcional; e) natureza normogenética – princípios são fundamento de regras.110
Alexy sustenta a tese de que princípios e regras são normas com base no argumento de que
ambos expressam um dever ser. Portanto, ambos podem ser apoiados por um modal
deôntico111. Esta sentença simples ancora o resultado das discussões de décadas anteriores
acerca da normatividade dos princípios. Todas as diferenças indicadas por Alexy
descrevem os dois sob o gênero “norma”, do qual regras e princípios são espécies. Para o
autor, a diferença entre os dois não é de grau, mas, uma diferença qualitativa.
A novidade da teoria de Alexy, ao distinguir princípios e regras, localiza-se no conceito de
princípio: uma norma que ordena que algo seja realizado na maior medida possível, dentro
das possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios constituem o que Alexy denomina
“mandados – ou mandamentos – de otimização”. É bom anotar que mandamento se refere
tanto a permissão quanto a proibição.112
110 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional de Teoria da Constituição. 2.ed.Coimbra: Almedina, 1998. p. 1034-1035.111 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 83.112 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002.p. 86.
89
Os princípios devem ser cumpridos no maior grau possível, estando limitados pelas
possibilidades fáticas e também pelas possibilidades jurídicas, que correspondem aos
princípios e às regras opostas.113
Este conceito de princípio foi criticado por Aarnio e Sieckmann, pois não seria capaz de
diferenciar regras e princípios. O mandado de otimização não seria um mandado cujo
cumprimento se faz em diferentes graus, ao contrário, sua aplicação teria o mesmo caráter
definitivo das regras. É que um princípio só poderia ser cumprido ou não, o que
demonstraria que sua estrutura é a mesma de uma regra.114
A suposta objeção levou Alexy a aperfeiçoar sua teoria. Esclarece o autor que é preciso
diferenciar os “mandados que são otimizados” e os “mandados de otimização”. Os
primeiros são os objetos da ponderação, que podem ser identificados como um dever ser
ideal. O dever ser ideal é aquilo que deve ser otimizado e por meio da otimização é
transformado num dever ser real. Já os mandados de otimização situam-se num metanível,
onde é estabelecido o que é feito com os objetos. Estes mandados determinam que os
objetos – mandados que são otimizados – devem ser realizados na maior medida possível.
Sendo assim, é este mandado de otimização que, ao invés de dever ser otimizado, deve ser
113 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 86.114 Cf. ALEXY, Robert. Tres Escritos Sobre los Derechos Fundamentales y la Teoríade los Principios. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2003, p. 107-108 etambém ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 55.
90
cumprido, como as regras. Mas não se confunde com o princípio. Este, sim, deve ser
otimizado.115
Faz sentido falar em princípios como mandados de otimização para expressar melhor o
aspecto prático envolvido na ponderação e o aspecto teórico que envolve sua conceituação.
Por isso, o conceito de princípio pode ser visto como as duas faces de uma moeda: de um
lado, o objeto que deve ser otimizado e de outro, a determinação de otimizar.116
Manteremos neste trabalho a expressão “mandado de otimização”, por já estar reconhecida
como o cerne da proposta de diferenciação de Alexy, mas tendo sempre em vista a
duplicidade que envolve o conceito de princípio. Aliás, em seus escritos recentes Alexy
tem optado também pela denominação já consagrada.
As regras, por outro lado, são normas que devem ser cumpridas ou não. Isto é, seu
cumprimento só pode ser feito de forma integral, não há hipótese de ser cumprida
parcialmente. O modo de aplicação descrito por Dworkin – tudo ou nada – foi usado por
Alexy em sua teoria, que agregou o conceito de princípios como mandados de otimização.
115 ALEXY, Robert. Tres Escritos Sobre los Derechos Fundamentales y la Teoría delos Principios. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2003. pp. 108-109.116 ALEXY, Robert. Tres Escritos Sobre los Derechos Fundamentales y la Teoría delos Principios. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2003. p. 110.
91
Esta diferenciação ganha importância quando examinados os embates que ocorrem entre
regras e os embates entre princípios. Tanto regras quanto princípios, ao se chocarem,
conduzem a respostas diferentes. A solução, contudo, é distinta para as duas espécies de
normas – esse o motivo para ser denominado de conflito o embate entre as regras e de
colisão o embate entre princípios.
Quando regras indicam resultados diferentes, só existem dois caminhos para resolver a
questão: pelo menos uma das regras é declarada inválida ou é introduzida uma cláusula de
exceção em uma delas. Esta última situação afasta a necessidade de invalidação de uma
regra, permitindo que excepcionalmente ela deixe de ser aplicada.117
A invalidação de uma regra é feita eliminando-se do ordenamento jurídico a regra
invalidada. A validade jurídica não comporta gradação, pois uma norma é válida ou não é
válida. Sempre que são verificadas situações em que duas regras cabíveis exprimem juízos
de dever ser contraditórios entre si, é necessário que uma delas seja declarada inválida, a
não ser que seja possível a introdução de uma cláusula de exceção. A invalidação de uma
117 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002, p. 88. Em exemplo sugerido, Alexy faz referencia aduas normas escolares: uma proíbe os alunos de saírem da sala antes de soar o sinal eoutra ordena que os alunos abandonem as salas caso o alarme de incêndio toque. Nestecaso, é introduzida uma cláusula de exceção e, quando toca o alarme de incêndio, nãodeve ser cumprida a primeira norma. A invalidação de qualquer uma conduziria a umasituação esdrúxula: os alunos estariam autorizados a sair da sala em qualquer instante oudeveriam nelas permanecer se houvesse um incêndio.
92
regra segue critérios clássicos para solução de antinomias, como “norma posterior derroga
norma anterior” ou “norma superior derroga norma inferior”.118
Com os princípios, a solução é encontrada de maneira diferente. Ao colidirem, um dos
princípios deve ceder frente ao outro, ao invés de ser invalidado ou haver sido introduzida
uma cláusula de exceção. Sob certas circunstancias, alguns princípios têm preferência sobre
outros, uma vez que certo princípio terá maior peso do que outro no caso concreto. Esta é
precisamente a diferença em relação ao conflito de regras. É que tais conflitos são
resolvidos na dimensão de validade, enquanto que as colisões são resolvidas na dimensão
de peso.119
Em colisão, princípios indicam soluções diferentes. Não se pode declarar inválido, por
exemplo, um princípio que consagra um direito fundamental expressamente previsto por
uma constituição. A solução para o conflito só será encontrada ao observar as
circunstancias do caso concreto. Sempre considerando a realidade do caso, Alexy propõe o
118 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 88.119 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 89.
93
estabelecimento de uma relação de precedência120 condicionada, isto é, examinando o caso,
encontram-se condições sob as quais um princípio precede o outro.121
Alexy sustenta que a colisão de dois princípios P1 e P2 acarretam em juízos concretos
contraditórios, como “está autorizado” e “está proibido”. A solução pode ser encontrada
através do estabelecimento de uma relação de precedência de um frente ao outro. Se fosse
considerada também a hipótese de haver uma precedência absoluta de um princípio frente
ao outro, existiria quatro soluções possíveis. Nestas relações, P indica a relação de
precedência e C, as condições sob as quais um princípio precede o outro122:
(1) P1 P P2(2) P2 P P1(3) (P1 P P2) C(4) (P2 P P1) C
Em (1) e (2) há relações de precedência absoluta de um princípio sobre o outro. O Tribunal
Constitucional da Alemanha, entretanto, não aceita essa possibilidade para os casos de
colisões de princípios de direito constitucional. Em (3) e (4) há relações de precedência
condicionada, ou seja, a precedência existe desde que sejam verificadas certas condições.
120 A tradução espanhola utiliza exatamente o termo precedencia. Não se deve confundircom algum tipo de critério de anterioridade de um princípio em relação ao outro. Paramelhor elucidação, vale ressaltar que o termo transmite a idéia de preferência.121 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 92.122 O exemplo e sua representação são do próprio Alexy, Teoría de los DerechosFundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 92.
94
Para a fixação destas condições, o Tribunal se vale do peso de cada princípio, para saber
qual é o mais importante e, com isso, resolver o caso.123
Assim, enuncia-se num caso concreto uma condição que expressa uma precedência de um
princípio, a qual pode ser escrita nos termos de que sempre que uma ação satisfaz a
condição C, determinado princípio será priorizado em relação a outro. Pode-se perceber que
esta é uma formulação de uma regra, ou seja: se verificadas as circunstancias de preferência
descritas por C, deve ser realizada a conseqüência jurídica do princípio priorizado.124
Esta é a chamada “lei de colisão”, que representa um dos principais fundamentos da teoria
dos princípios de Alexy. É um reflexo da característica de otimização dos princípios e da
inexistência de prioridades absolutas entre eles. Através de uma ponderação – que será
examinada em detalhes no capítulo seguinte – se soluciona o conflito entre princípios, os
quais são também chamados pelo Tribunal Constitucional Alemão de valores. A relação
entre valores e princípios será examinada abaixo.
A regra que se extrai de uma aplicação da ponderação de princípios, para Alexy, integra o
rol das normas adscritas, que foram acima delineadas. Assim acontece, porque uma regra
de condição de precedência, desde que resulte de uma argumentação jusfundamental
123 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. pp. 92-93.
95
correta, implica uma norma com descrição de uma hipótese que faz subsumir uma decisão,
como se fosse uma regra expressamente prevista na legislação. Essa regra configura,
portanto, uma norma de direito fundamental adscrita.125
A fim de esclarecer as questões teóricas indicadas aqui, apresenta-se como exemplo um
caso resolvido pelo Tribunal Constitucional Alemão.
No caso Lebach, uma emissora de televisão exibiria um documentário sobre o assassinato
de soldados. Uma pessoa que foi condenada por ser cúmplice do delito grave e estava na
iminência de ser solta entendeu que o documentário, no qual eram mostradas fotos suas,
colocaria em risco um direito à personalidade, mormente, sua ressocialização, direito
fundamental inscrito na constituição daquele país. Em contraposição, impedir a veiculação
do documentário implicaria o cerceamento da liberdade de informação, outro direito
fundamental protegido pela constituição. Representado o primeiro por P1 e o segundo por
P2, percebe-se que direcionam a soluções distintas: este garante a exibição e aquele, sua
proibição126.
124 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 94.125 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p.98.126 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 95.
96
Deve-se decidir qual dos princípios deve ceder à aplicação do outro, já que não é o caso de
invalidação de um direito fundamental, e, conseqüentemente, sua exclusão do ordenamento
jurídico. Também não existem relações de precedência absoluta, logo, o caminho para
solucionar o caso é a ponderação dos princípios.
O Tribunal entende que, em condições de informação atual sobre crimes (C1), há
precedência da liberdade de informação (P2), ou seja, (P2 P P1) C1. Esta relação de
precedência se aplica quando houver atualidade da informação. Portanto, é uma regra que
se aplica sob esta condição. Todavia, o caso Lebach se refere à veiculação de uma
informação que já foi divulgada amplamente no período de acontecimento do crime, bem
como da condenação do réu. Haveria uma repetição de notícia que não atende a interesses
atuais de informação, à custa do direito de ressocialização, prejudicada também pela
comoção que seria causada diante da gravidade do delito. Por esta razão, o caso não se
enquadra em C1, já que existe outra situação fática. Nela (C2), o tribunal entendeu que a
repetição de informação antiga não tem peso maior do que o direito à ressocialização do
preso, portanto, o direito à personalidade do criminoso, neste caso, tem precedência em
relação ao direito à informação, isto é: (P1 P P2) C2. Esta condição de precedência (C2) é
dividida em quatro condições – repetição, falta de interesse atual, delito grave e,
conseqüentemente, perigo para ressocialização.127
127 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 97.
97
Deste enunciado de precedência, (P1 P P2) C2 ,surge a regra que determina aplicação da
conseqüência jurídica (J) estabelecida pelo princípio P1, isto é, a proibição da exibição do
documentário: C2 J. Esta regra corresponde a uma norma de direito fundamental
adscrita.
5.2.2. Caráter prima facie
Regras e princípios possuem, na visão de Alexy, um diferente caráter prima facie.
Enquanto um princípio determina que algo seja realizado nas máximas medidas possíveis,
levando em conta as possibilidades fáticas e jurídicas, uma regra válida impõe sua
determinação de maneira exata, a não ser que haja uma cláusula de exceção. Os conflitos de
princípios, por não serem resolvidos no âmbito da validade, exigem a observação das
razões de um e outro princípio, para saber qual será afastado.128
O caráter prima facie dos princípios é diferente, pois suas determinações só são definitivas
inicialmente, antes que haja o conflito. Configurado o conflito, a resposta sobre sua
realização ou não só sairá após a ponderação.
Alexy diferencia seu modelo daquele apresentado por Dworkin, pois a descrição das regras
pelo modo de aplicação tudo ou nada não é suficiente. A este caráter Alexy acrescentou a
98
possibilidade de inserção de uma cláusula de exceção. Acontece que as cláusulas de
exceção, diferentemente do que sustenta Dworkin, não são teoricamente enumeráveis.129
Se um princípio é afastado quando um princípio oposto tem peso maior do que ele, uma
regra não é afastada apenas porque o princípio que a sustenta tem peso menor que o
princípio oposto. Exige-se argumentação suficiente para justificar também o afastamento
dos princípios que exigem o cumprimento das regras. Assim, o caráter prima facie de uma
regra é maior quando é maior o peso dos princípios formais que determinam que as regras
de um ordenamento devem ser cumpridas. Somente se não tivessem nenhum peso tais
princípios formais, haveria equiparação entre o caráter prima facie dos princípios e das
regras.130
5.3.1. Dos valores aos princípios.
Alexy sustenta que há duas características em comum que ligam imediatamente princípios e
valores. De um lado, assim como se fala em conflito e ponderação de princípios, fala-se em
conflito e ponderação de valores. De outro, cumprir-se parcial ou gradualmente um
128 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 99.129 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 100.130 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 100.
99
princípio é equivalente à realização gradual dos valores. Alexy anota que o Tribunal
Constitucional Alemão fez inúmeras referências a princípios como sendo valores131.
Com base na classificação de conceitos práticos elaborada por G H von Wright, Alexy
defende que o princípio se diferencia porque está no nível deontológico, enquanto que o
valor está no nível axiológico.132 Vejamos, em apertada síntese, a classificação de von
Wright.
Os conceitos práticos se dividem em três grupos: antropológicos, axiológicos e
deontológicos. Conceitos antropológicos abordam a vontade, o interesse, a necessidade e as
ações. Os conceitos axiológicos, por sua vez, têm como questão essencial o que é bom. Os
variados conceitos axiológicos se modificam conforme os critérios que qualificam algo
como bom. Por fim, os conceitos deontológicos podem ser ligados a um conceito deôntico
fundamental, o de mandado ou dever ser. Assim, essa divisão permite enquadrar os
princípios na classe dos conceitos deontológicos e os valores na classe dos conceitos
axiológicos.133
Esta classificação é útil para diferenciar, num primeiro olhar, princípios de valores. Porém,
a relação que guardam entre si exige uma elucidação mais minuciosa.
131 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. pp. 138,139.132 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 141.133 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 140 e 141.
100
Primeiramente é bom diferenciar o que tem um valor daquilo que é um valor. Quem diz que
algo tem um valor expressa um juízo de valor. Mas não é o objeto deste juízo de valor que
corresponde ao valor, e sim, o critério de valoração que permite tal juízo134. Por exemplo,
se é utilizado o critério segurança para avaliar um brinquedo para crianças, aquele que não
tiver peças pequenas poderá ser valorado como bom. O brinquedo bom não é o valor, mas o
critério de valoração – segurança. A estes critérios correspondem os princípios.
Concluindo, a diferença entre princípios e valores é que o modelo de valores indica o que é
melhor, enquanto o modelo de princípios indica o que é devido – diferença presente nos
níveis axiológico e deontológico respectivamente.
Muito controversa é a construção de uma ordem hierárquica de valores. A tentativa esbarra
inicialmente na impossibilidade de formação de um catálogo exaustivo de valores. Ainda
pior é a pretensa elaboração de uma ordem abstrata e com vinculação absoluta. O mesmo
vale para os princípios jurídicos que constituem direitos fundamentais, pois se exigiria, de
imediato, que uma tal ordem desconsiderasse por completo o caso concreto e não pudesse
ser relativizada à luz das peculiaridades fáticas. Esta configura uma ordem rígida. Alexy,
entretanto, alerta que é possível desenvolver uma ordem fraca ou flexível, que, ao invés de
desconsiderar, prestigia a ponderação. Para tanto, baseia-se nas preferências prima facie
101
que têm certos princípios ou valores e também numa rede de preferências construídas sobre
decisões concretas. As preferências prima facie são conhecidas através das cargas de
argumentação concebidas a favor de certos princípios, por exemplo, princípios que
consagram a liberdade e a igualdade. Uma rede de preferências é formada com apoio das
decisões de um tribunal, que ao longo do tempo expressou preferências de alguns de
princípios em relação a outros. A vantagem desta ordem é que ela poderá sempre ser
reavaliada em face de um caso concreto e não afasta a importância da ponderação para
solucioná-lo.135
5. 3.2. Críticas ao Critério de Distinção
Humberto Ávila, ao elaborar sua teoria dos princípios, formulou algumas críticas contra os
critérios utilizados pela doutrina para distinguir regras e princípios. Alguns destes
encontram assento na teoria de Alexy e, por isso, merecem ser examinados.
Inicialmente, é questionada a maneira de aplicação de uma regra, que, segundo Dworkin e
Alexy, é feita de modo tudo ou nada, apesar deste último complementar a tese com a
possibilidade de inclusão de uma exceção.
134 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 146.135 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 156 e 157.
102
Humberto Ávila defende que o modo de aplicação de uma regra pode ser alterado em
função da análise das circunstâncias do caso, através de um processo de ponderação de
razões e contra-razões. Ainda que a regra preveja a aplicação absoluta da conseqüência por
ela estabelecida, nada impede que o aplicador se depare com razões contrárias que se
sobrepõem em alguns casos. Ávila exemplifica com a interpretação que o Supremo
Tribunal Federal fez do caso em que afastou a presunção de violência em relação sexual
praticada com menor de 14 anos. Com efeito, o artigo 224 do Código Penal estabelece que
se presume a violência nos casos de relação sexual praticada com pessoa que não é maior
de 14 anos. No caso analisado, levando em conta a aquiescência e a aparência física e
mental da vítima, o tribunal entendeu preliminarmente que não se configurou o tipo penal
em virtude das características fáticas não previstas pela norma.136
Em casos como estes, Humberto Ávila sustenta que a conseqüência jurídica prevista pela
regra pode deixar de ser implementada, em função da existência de razões superiores
àquelas que justificariam a aplicação da regra. Isso afasta o entendimento de que regras são
aplicadas de modo tudo ou nada e, conseqüentemente, fica prejudicado o critério de
distinção entre princípios e regras, já que também estas precisam de um processo de
interpretação que decide, após análise dos elementos fáticos, quais conseqüências serão
realizadas.
136 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 37.
103
A não realização das conseqüências previstas por uma regra só pode ser confirmada se,
após o exame de aspectos concretos, houver razões suficientes para afastar a
obrigatoriedade de uma regra. Neste particular, o entendimento de Humberto Ávila
assemelha-se bastante com o de Robert Alexy, pois este, consoante demonstrado acima,
afirma que a admissão de exceções a uma regra exige que sejam afastados os princípios
formais que exigem o cumprimento das regras do ordenamento. Nisso consiste, inclusive, a
maior força do caráter prima facie das regras137. Ávila anota que é possível a consideração
de elementos específicos de cada situação para deixar de aplicar as conseqüências previstas
em determinada regra, desde que seja feito “com uma fundamentação capaz de ultrapassar a
trincheira decorrente da concepção de que as regras devem ser obedecidas”138. Por este
motivo, entendemos que tal entendimento se aproxima daquele defendido por Alexy, pois
também reconhece a necessidade de superação do princípio que determina a aplicação das
regras através da carga de argumentação. A diferença, contudo, situa-se na previsão de um
método de ponderação, que Alexy não faz.
É sobre a ponderação que incide outra crítica de Humberto Ávila. Para o autor, a
ponderação não é utilizada exclusivamente em casos de aplicação de princípios: opera
também no âmbito das regras. Acontecem ponderações de regras quando seu conteúdo
pode ser superado por razões contrárias. Essas razões contrárias devem ser suficientemente
fortes para justificar o descumprimento de uma regra. Tais situações não estão todas
137 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 100.138 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2003. p.41.
104
previstas no ordenamento jurídico e, por isso, exige-se a ponderação. Ávila expõe seu
argumento nos seguintes termos:
O processo mediante o qual as exceções são constituídas também é um processode valoração de razões: em função da existência de uma razão contrária quesupera axiologicamente a razão que fundamenta a própria regra, decide-se criaruma exceção. Trata-se do mesmo processo de valoração de argumentos e contra-argumentos – isto é, de ponderação.139 (grifo no original)
Assim, percebe-se que Ávila defende a mesma posição que Genaro Carrió já divulgava
alguns anos antes, isto é, que uma dimensão de peso não é exclusividade dos princípios,
pois também aparecem na aplicação de regras:
Los conflictos entre reglas no siempre pueden resolverse negando la validez deuna de ellas. No es infrecuente que una decisión – que bien puede asumir laforma de un compromiso – deba fundarse en el ‘peso’ relativo de cada regla en elcontexto del caso concreto de que se trata. La dimensión de peso no es propiedadexclusiva de pautas tales como la que establece que ‘no debe permitirse quealguien se beneficie con su propia conducta ilícita (lato sensu)’.140
Portanto, é fácil perceber que no centro da maioria das questões problemáticas aparece um
tema comum que precisa ser examinado: a ponderação. O conceito de Alexy, seus efeitos e
a crítica à racionalidade que lhe apóia serão vistos pormenorizadamente no item seguinte.
5.4. O modelo de ponderação proposto por Robert Alexy
5. 4.1. A Ponderação como Elemento da Proporcionalidade
139 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 46.140 CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguaje. 5.ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2006. p. 353.
105
A ponderação para Robert Alexy é um método representado pela aplicação de um dos
elementos parciais da proporcionalidade. Vale ressaltar que as sub-divisões da
proporcionalidade são também denominadas de modo diferente, como sub-princípios e
máximas parciais. Importante é frisar que se tratam, sempre, da adequação, da necessidade
e da proporcionalidade em sentido estrito. A este último elemento corresponde a
ponderação. Para chegar nela, contudo, é imperioso percorrer o caminho dos outros
elementos da proporcionalidade – adequação e necessidade.
Um dos mais importantes princípios que o pós-positivismo consagrou foi o da
proporcionalidade, pois sua importância é revelada na proteção dos direitos fundamentais.
A harmonia entre tais direitos só pode ser alcançada através da aplicação da
proporcionalidade, uma vez que o intérprete se depara com uma constituição que representa
um conjunto axiológico plural, cujos princípios entram em embates a todo instante. O
melhor caminho encontrado pelo direito para solucionar estes confrontos é a utilização da
proporcionalidade.
A idéia de proporção está intimamente ligada ao direito. A proporção é encontrada na
relação entre meio e fim, pois sempre haverá uma medida questionada, cuja finalidade
também será avaliada para que se possa aplicar corretamente a proporcionalidade. O
questionamento que se faz de uma medida tem como base outro princípio, que foi atingido
e precisa, nas máximas possibilidades, ser efetivado.
106
Esta busca constante de harmonização representa a importância da proporcionalidade.
Paulo Bonavides relaciona seu surgimento com a modificação da idéia de Estado de
Direito, pois, primeiramente, este era entendido, no apogeu do direito positivo, sob a ótica
do princípio da legalidade, o qual, após a segunda guerra mundial, cedeu lugar ao princípio
da constitucionalidade, que “deslocou para o respeito dos direitos fundamentais o centro de
gravidade da ordem jurídica”141. Como os direitos fundamentais estruturam-se
eminentemente sob a forma de princípios e estes são, para Robert Alexy, mandados (ou
mandamentos) de otimização, sua aplicação exige um novo modelo – a proporcionalidade.
O reconhecimento da proporcionalidade, entretanto, já foi questionado na doutrina,
devido à suposta não previsão na ordem jurídica brasileira. É verdade que a Constituição
brasileira lhe não atribui menção expressa, como fez o constituinte português na carta de
1976. Entretanto, tal fato não lhe retira a imperatividade. Essa, aliás, é a opinião da maioria
da doutrina, que têm se esforçado para justificar sua presença em nosso direito.
Paulo Bonavides entende que o princípio está previsto em diversas disposições da
Constituição, como, por exemplo, os incisos V, X, e XXV do art. 5º; os incisos IV, V e
XXI do art. 7º; o inciso IX do art. 37; inciso V do art. 40 e inciso VIII do art. 71.É também
decorrente do Estado de Direito e da unidade da Constituição. Por fim, baseia ainda a
positividade no § 2º do art. 5º, uma vez que a Carta Magna não exclui outros direitos e
141 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros,2006. p. 398.
107
garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados 142. Estes dois últimos também
são compartilhados por Willis Santiago Guerra Filho.143
Luís Virgílio Afonso da Silva chama atenção para o Estado de Direito como opção de boa
parte da doutrina, além de ser esta a linha seguida, na Alemanha, pelas decisões do Tribunal
Constitucional.144
Todas estas teses foram muito bem construídas e são suficientes para sustentar a presença
da proporcionalidade no Brasil. Não obstante, a idéia que nos parece pôr fim à discussão é
defendida por Robert Alexy. O autor defende que a chamada “máxima” da
proporcionalidade (como foi traduzida na versão espanhola de sua Teoria dos Direitos
Fundamentais) é uma dedução da aceitação dos direitos fundamentais como princípios, ou
seja, é uma conseqüência lógica incontornável145. Partindo de sua definição de princípios
como mandados de otimização, isto é, normas que determinam que algo deve ser efetuado
no maior alcance possível, conforme as possibilidades fáticas e jurídicas, chega-se
inevitavelmente à proporcionalidade.146
142 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo:Malheiros, 2006. pp.434-436.143 Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e DireitosFundamentais. 4.ed. São Paulo: RCS Editora, 2005. pp. 114-115.144 Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dosTribunais, v. 798. São Paulo, 2002. p. 42.145 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. pp. 112-113.146 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. pp. 86-87.
108
O papel desempenhado no direito constitucional atual é tão destacado que Willis Guerra
Filho vislumbra na proporcionalidade a norma fundamental da ordem jurídica, já que ela
permite a convivência de princípios divergentes e viabiliza sua aplicação sempre
observando a situação fática. Além disso, a proporcionalidade é capaz de atender à
necessidade de validação não apenas “de cima para baixo”, mas também “de baixo para
cima”, na medida em que a proporcionalidade pode dar “um salto hierárquico”, ao sair do
ponto alto da pirâmide em direção a sua base, onde irá validar normas individuais
resultantes de decisões de conflitos concretos. 147
A peculiaridade de sua aplicação faz Humberto Ávila defender que a proporcionalidade não
é nem regra nem princípio, mas, postulado. Não cabe desenvolver profundamente as idéias
deste autor, visto que o objeto do estudo é a obra de Robert Alexy, mas vale ressaltar que,
para o autor brasileiro, a proporcionalidade é uma metanorma, pois estabelece a estrutura
de aplicação de regras e princípios. Quando deixa de ser aplicada, violada não é ela, mas a
norma de primeiro grau – uma regra ou um princípio – que clamava por sua utilização. A
violação à proporcionalidade, portanto, seria apenas elíptica.148
Por fim, é importante deixar claro a diferença entre proporcionalidade e razoabilidade. A
tarefa não é complicada, porque não são dois temas que se confundem teoricamente. Luís
109
Virgílio Afonso da Silva lembra que alguns autores, apesar do reconhecimento da origem
distinta (germânica e anglo-saxônica, respectivamente), tratam-nos como
correspondentes149. Willis Guerra Filho, porém, já alertou que proporcionalidade e
razoabilidade, além de origens diferentes, têm propósitos e estruturas que não se
identificam. A razoabilidade dispõe-se apenas à vedação do absurdo, sem a finalidade de
harmonizar concretamente direitos fundamentais, em prestígio à inserção dos mais diversos
valores na constituição, além de não possuir uma estrutura encadeada com elementos
específicos de aplicação, como acontece com a proporcionalidade.150
5. 4.2. Os elementos parciais da proporcionalidade
A aplicação da proporcionalidade é realizada segundo a utilização de seus três elementos
parciais – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Deve-se ressaltar
que a utilização dos elementos parciais deve ser feita de forma concatenada, ou seja, uma
ordem deve ser obedecida. Só se decide com base na proporcionalidade em sentido estrito,
se já tiverem sido superadas, nesta seqüência, a adequação e a necessidade. É por essa razão
que Luís Virgílio Afonso da Silva afirma que se pode estabelecer entre os três elementos
uma relação de subsidiariedade.151
147 Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da Proporcionalidade e Teoria doDireito. Revista Jurídica da Universidade de Franca, v. 3, n. 4, 2000. p. 202.148 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 80.149 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais,v. 798. São Paulo, 2002. pp. 28 e 29.150 Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da Proporcionalidade e Teoria doDireito. Revista Jurídica da Universidade de Franca, v. 3, n. 4, 2000. p. 209.151 Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dosTribunais, v. 798. São Paulo, 2002. p. 34.
110
Uma peculiaridade é encontrada em Alexy. A maioria dos autores entende que a
proporcionalidade é um princípio. Alexy, entretanto, reconhece que a proporcionalidade
não pode ser considerada um princípio no modo como este é definido por ele. É que a
proporcionalidade, em seus três elementos, não é nunca ponderada frente a um princípio.
Ela não se submete ao regime dos princípios, que às vezes prevalecem e, às vezes, não. A
proporcionalidade deve ser sempre aplicada e seus elementos parciais devem sempre ser
satisfeitos, tendo sua não satisfação a conseqüência da ilegalidade. Este modo de aplicação
é típico das regras e, para ser coerente em relação a sua teoria, é como regra que os
elementos parciais da proporcionalidade são catalogados por Alexy.152
Como foi dito, Alexy defende a existência da proporcionalidade como uma conseqüência
inevitável do reconhecimento dos direitos fundamentais, que, sob a forma de princípios,
devem ser realizados nas máximas medidas possíveis. Estas “máximas medidas possíveis”
correspondem, para Alexy, às possibilidades fáticas e jurídicas. Fáticas são as
possibilidades referendadas pelos elementos parciais – ou subprincípios – da adequação e
da necessidade, enquanto que as possibilidades jurídicas são representadas pelo elemento
da proporcionalidade em sentido estrito.153
152 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 112, nota 84.153 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. pp. 112-113.
111
O primeiro deles é a adequação, que exige aptidão do meio escolhido para promover um
determinado fim. Acompanhando as decisões dos tribunais alemães, muitos autores
conferem à adequação o sentido de aptidão para “realizar” um fim. Essa, porém, não é a
melhor interpretação que se faz do Tribunal Constitucional alemão, pois este defende que
adequado é o meio que “fomenta”, “promove” o fim e não, aquele que o realiza154. Será
inadequado, portanto, aquele que não servir à promoção do fim perseguido pelo princípio.
Adiante é feito o exame da necessidade do meio escolhido. Se na adequação a análise se faz
com observância apenas do meio escolhido, na necessidade, deve-se realizar um juízo
comparativo. Este elemento da proporcionalidade exige que, quando o meio escolhido
restringe outro direito fundamental, sejam buscados meios alternativos que não atinjam este
outro direito fundamental. Vejamos o exemplo de Robert Alexy, que envolve somente dois
princípios e dois sujeitos (estado e cidadão): existem, no mínimo, dois meios, M1 e M2, que
são igualmente fomentadores do fim F, tendo em vista o princípio P1. Entretanto, M2 afeta
menos, ou não afeta, aquilo que exige a norma de direito fundamental com caráter de
princípio, P2. Assim, para P1, não faz diferença que se escolha M1 ou M2, mas P2 não pode
suportar M1 ou M2. Com respeito às possibilidades fáticas, P2 será fomentado em uma
medida maior se for escolhido M2. Portanto, do ponto de vista da otimização referente às
possibilidades fáticas, somente M2 está permitido, enquanto M1 está proibido.155
154 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais,v. 798. São Paulo, 2002. pp. 36-37.
112
A escolha acima indicada de M2 será simples, caso o meio não afete, de modo algum, o
princípio P2. Entretanto, ainda que M2 seja mais benéfico a P2, se o meio escolhido afetar
de alguma maneira o princípio contraposto, o elemento da necessidade não será suficiente
para resolver a questão, somente para indicar qual meio restringe menos P2. A solução ao
problema se dará no âmbito de aplicação do último elemento, que leva à verificação das
possibilidades jurídicas.
O elemento apto a resolver esta colisão é a proporcionalidade em sentido estrito, que, para
Robert Alexy, corresponde ao mandado de ponderação. Deve-se analisar se a importância
do princípio fomentado pelo meio escolhido é suficientemente grande para justificar a
intensidade da restrição ao princípio contraposto. O autor propõe que a ponderação seja
feita com base na atribuição escalonada de grau à intensidade da intervenção no princípio
contraposto. Da mesma maneira, deve-se atribuir grau de importância ao fomento do fim
almejado pelo princípio. Por causa disso, estará justificada a intervenção que tiver grau
menor que o grau de importância atribuído. Por outro lado, será desproporcional a restrição
que tem um grau de intervenção superior ao grau de importância156.
A possibilidade – jurídica – de fomentar um princípio dependerá precisamente do princípio
oposto, isto é, se é possível e em que intensidade pode ser restringido. A ponderação é uma
155 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. pp. 113-114.156 ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, Ponderação e Racionalidade. Revista deDireito Privado, n. 24. São Paulo, 2005, p. 340 e ss.
113
exigência da lei de colisão, descrita acima, que não aceita restrições de direitos
fundamentais sem a adoção de um método racional. Portanto, daí surge a justificativa de
Robert Alexy de que a proporcionalidade “é dedutível do caráter de princípio das normas
de direito fundamental”157.
A proporcionalidade tem uma relação direta com o ótimo de Pareto, figura utilizada na
economia para expressar a idéia de que uma posição pode ser melhorada, sem que outra
piore. É esta ilustração econômica que Alexy utiliza para demonstrar que o objetivo a ser
perseguido, quando princípios colidem, é a solução ótima, ou seja, aquela que não tem mais
como ser melhorada.158
Surge no momento da ponderação a possibilidade de autorizar restrições a um direito
fundamental. Estas restrições devem ser pautadas, para alguns autores, pela observação do
núcleo ou conteúdo essencial dos direitos fundamentais, que passamos a analisar.
5. 4.3. A proteção ao núcleo essencial dos direitos fundamentais
A proteção ao núcleo essencial dos direitos fundamentais floresce ao lado das discussões
sobre os limites existentes para restrição de um direito fundamental. Um destes limites é
157 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 112.158 ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid:Colegio de Registradores de la Propriedad, Mercantiles y Bienes Muebles de España,2004. p.40.
114
exatamente a aplicação da proporcionalidade. Os autores alemães denominaram “limites
dos limites” o elenco de proteções contra as restrições tão intensas que levariam ao
esvaziamento ou supressão de um direito fundamental. Neste rol de limites é incluído o
núcleo essencial dos direitos fundamentais, também chamado de conteúdo essencial dos
direitos fundamentais. Diferentemente da brasileira, algumas constituições consagraram
expressamente a proteção ao núcleo, como a constituição alemã.159
Willis Guerra Filho ensina que o núcleo essencial de um direito fundamental consiste num
âmbito que não pode ser violado, mesmo nas situações de colisão entre princípios, em que
haverá de se restringir um deles160. Mesmo que precise fomentar um outro princípio, o
intérprete não pode desrespeitar o núcleo essencial.
Humberto Ávila entende que a proteção ao núcleo é verificada em decorrência do princípio
da proibição de excesso, e não, como um dos aspectos que devem ser considerados pela
aplicação da proporcionalidade. É que, entende o autor, o respeito ao núcleo não importa
159 Ana Paula de Barcellos, Ponderação, Racionalidade e Atividade Jursidicional, Riode Janeiro: Renovar, 2005, pp. 139 e 140, indica algumas constituições que fazemmenção expressa à proteção ao núcleo essencial. São elas: Constituição Portuguesa, art.18; Constituição Espanhola, art. 53; Declaração de Direitos da África do Sul (Bill ofRights), art. 36; Constituição do Timor Leste, art.24 e Carta dos Direitos Fundamentais daUnião Européia, art. 52.160 GUERRA FILHO, Willis Santiago Sobre Princípios Constitucionais Gerais: Isonomia eProporcionalidade. Revista dos Tribunais, v. 719. São Paulo, 2002. p. 59
115
análise de justificação do meio pelo fim, mas apenas a observação da preservação de um
mínimo de eficácia do princípio.161
Discutem os autores sobre o objeto da proteção ao núcleo essencial: seria protegido pelo
núcleo o direito subjetivo individual ou a garantia objetiva? Duas teorias tentam responder
essa questão – a objetiva e a subjetiva. A primeira entende que a proteção do núcleo
corresponde à disposição normativa do direito fundamental, ou seja, deve ser resguardada a
garantia geral e abstrata prevista no texto normativo. Por sua vez, a teoria subjetiva entende
que a proteção do núcleo essencial abarca o direito subjetivo do particular. Robert Alexy
entende que, embora os problemas decorrentes da proteção ao núcleo essencial sejam mais
facilmente resolvidos com apoio da teoria objetiva, deve ser adotada também a teoria
subjetiva – sem exclusividade de uma das duas – em função do caráter de direitos
individuais dos direitos fundamentais162. A mesma posição é defendida por Canotilho, para
quem a opção unilateral por uma das duas teorias traria efeitos indesejáveis à aplicação:
A solução do problema não pode reconduzir-se a alternativas radicais porque arestrição dos direitos, liberdades e garantias deve ter em atenção a função dosdireitos da vida comunitária, sendo irrealista uma teoria subjectivadesconhecedora desta função, designadamente pelas conseqüências daíresultantes para a existência da própria comunidade, quotidianamente confrontadacom a necessidade de limitação dos direitos fundamentais mesmo no seu núcleoessencial (ex: penas de prisão longas para crimes graves, independentemente de
161 ÁVILA, Humberto. Conteúdo, Limites e Intensidade dos Controles de Razoabilidade, deProporcionalidade e de Excessividade das Leis. Revista de Direito Administrativo, n.236. Rio de Janeiro, 2004. pp. 377-378162 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. pp. 287-288.
116
se saber se depois do seu cumprimento restará algum tempo de liberdade aocriminoso).163
Existe, ainda, outra discussão doutrinária que indaga se a proteção ao núcleo é absoluta ou
relativa. De acordo com a teoria absoluta, o núcleo essencial jamais poderia ser restringido
e sua fixação seria feita abstratamente. Também chamada de teoria do núcleo duro, esta
visão determinaria qual conteúdo já estaria protegido, antes mesmo de se realizar a
ponderação. Essa idéia é criticada porque tal núcleo abstrato não existe pronto e seria
ilusório acreditar que o intérprete poderia conhecê-lo previamente164. Com efeito, é difícil
sustentar que uma interpretação pode ser feita com uma norma cujo conteúdo já foi
fornecido e tornado imutável, sem nem mesmo tomar conhecimento do caso concreto.
De outro lado, tem-se a teoria relativa, que sustenta que o núcleo essencial será conhecido
apenas após o processo de ponderação. Logo, o núcleo será conhecido mediante a análise
do caso concreto, sem definição prévia e abstrata. A crítica que se faz contra a teoria
relativa sugere que a entrega do núcleo à ponderação pode levá-lo ao esvaziamento,
justamente aquilo que ele visa proibir.
Canotilho novamente coloca-se contra a adoção unilateral de uma das teorias, uma vez que
conduzir o núcleo à ponderação é demasiadamente perigoso. Além disso, optar-se pela
teoria absoluta determinaria a desconsideração de defesa de outros direitos, liberdades e
163 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional de Teoria da Constituição. 2.ed.Coimbra: Almedina, 1998. p. 419.
117
garantias, os quais são aptos para justificar a relativização de um direito fundamental165.
Daniel Sarmento afirma que a escolha correta é a da teoria relativa do núcleo essencial, por
se adaptar melhor às decisões constitucionais mais complexas166. Por sua vez, Ana Paula de
Barcellos sustenta que não está excluída a possibilidade de se refletir abstratamente e com
base em precedentes judiciais, para que a doutrina possa construir os sentidos de cada
direito. Isso levaria ao estabelecimento de parâmetros capazes de identificar os aspectos
essenciais de cada direito e suas possibilidades de restrição. Esse trabalho não construiria
um núcleo duro e permanente, mas consistente e histórico, com certa proteção aos direitos
fundamentais.167
Por fim, há a posição de Robert Alexy, mais complexa e condizente com seu pensamento
acerca dos princípios. Ao invés de impor ao princípio da proporcionalidade –
nomeadamente à ponderação – um limite adicional à restrição de direitos fundamentais, a
garantia do núcleo essencial, consagrada na constituição alemã, art. 19, §2º, é mais uma
razão em favor do princípio. Para o autor, a idéia de que existem direitos que nunca são
afastados por razões superiores, em certa medida, está correta. No entanto, esse pensamento
absoluto se baseia na teoria relativa, pois, em sua visão, quanto mais se deixa de realizar
um princípio, mais forte ele se torna. Isto é, a força das razões que justificam a não
realização tem de aumentar tanto quanto aumenta a intervenção. Assim, quanto maior uma
164 Cf. BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e AtividadeJursidicional, Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pp. 142-144.165 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional de Teoria da Constituição. 2.ed.Coimbra: Almedina, 1998. p. 420.166 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio deJaneiro: Lúmen Júris, 2002., p. 113.
118
intervenção, mais difícil será sua justificação. A partir deste raciocínio, percebe-se com
grande segurança que existem condições de um princípio sob as quais nenhum princípio
oposto terá preferência, ou seja, nenhum princípio oposto poderá intervir. Citando Peter
Häberle, Robert Alexy entende que tais condições definem o “núcleo da configuração
privada da vida” 168. Entretanto, o caráter absoluto de sua proteção está intimamente ligado
à relação entre os princípios – eis, então, a justificativa para a proteção absoluta se basear
na teoria relativa. Em circunstâncias normais, é tão alto o grau de segurança da proteção
que é possível falar de uma proteção absoluta – que decorre sempre das relações entre
princípios. Portanto, conclui o autor que o núcleo essencial dos direitos fundamentais não
impõe nenhuma limitação adicional à ponderação, ao contrário, decorre de sua utilização.169
O núcleo essencial, para alguns autores, se confunde mesmo com a dignidade da pessoa
humana. Willis Guerra Filho, por exemplo, defende que no núcleo essencial “se acha
insculpida a dignidade humana”.170 Este entendimento não é pacífico. Já foi visto que a
própria existência de um núcleo sempre protegido é controvertida entre os autores. Aqui, a
idéia parece mais compreensível do que a defesa de um núcleo essencial em cada direito
fundamental, porque estaria proibida uma restrição a um direito fundamental que fosse tão
intensa a ponto de atingir um indivíduo em sua dignidade.
167 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jursidicional,Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 145.168 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 291.169 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. pp. 290-291.170 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da Proporcionalidade e Teoria do Direito.Revista Jurídica da Universidade de Franca, v. 3, n. 4., 2000. p.197.
119
Ingo Wolfgang Sarlet defende a tese de que a dignidade não necessariamente se confunde
com o núcleo essencial dos direitos fundamentais por duas razões. A primeira delas é que
nem todos os direitos têm um conteúdo em dignidade e a segunda, porque a garantia do
núcleo essencial ficaria esvaziada caso este fosse identificado totalmente com o conteúdo
em dignidade.171
Mesmo questionada, parece irrefutável que a ponderação não pode ser cumprida sem estar
presente a observação da dignidade da pessoa humana. Não se pode aceitar que, após a
realização de uma ponderação de princípios, o resultado da restrição de um deles seja tão
grave que interfira na dignidade da pessoa humana. Se isso ocorresse, estaria sendo
incotornavelmente ferido um direito fundamental – e, por mais simples que pareça a
afirmação, se é fundamental não pode ser afastado integralmente. Como conseqüência, a
ponderação estaria sendo utilizada somente para tentar legitimar um procedimento em que
se praticou a mais grave violação de um direito fundamental.
5. 4.4. A ponderação como um modelo de fundamentação racional.
Foi visto acima que, conforme a lei de colisão proposta por Alexy, sob circunstâncias
determinadas, um princípio específico precede outro e suas conseqüências são aplicadas.
No entanto, a lei de colisão, por si só, ao formular um enunciado de preferência, não
171 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e DireitosFundamentais na Constituição Federal de 1988. 4.ed. Porto Alegre: Livraria doAdvogado Ed, 2006. p. 119.
120
garante racionalidade à ponderação. Com efeito, este seria um modelo de mera decisão,
entregue exclusivamente a concepções subjetivas. A este modelo Alexy pretende opor um
modelo de fundamentação, que asseguraria sua segurança, ou seja, sua racionalidade.
O autor explica que ambos os modelos, de decisão e de fundamentação, levam à criação de
um enunciado de preferência condicionado. A diferença é que o modelo puro de decisão
não é racionalmente controlável, enquanto que o outro pode ser fundamentado
racionalmente. Esta é, para Alexy, o caminho que possibilita a racionalidade de uma
ponderação de princípios.172
Ana Paula de Barcellos organiza em dois vetores as críticas à racionalidade no âmbito das
decisões jurídicas: a capacidade de demonstrar conexão com o sistema jurídico e a
racionalidade propriamente dita da argumentação, especialmente quando existem várias
hipóteses de conexão com o sistema jurídico. O primeiro dos vetores está fincado no Estado
de Direito, que não admite que as decisões judiciais sejam proferidas de maneira arbitrária.
O segundo, porém, é mais complicado, pois, além de exigir que as decisões sejam
proferidas com base em argumentações racionais, espera que também sejam racionais
aquelas decisões em que se vislumbram inúmeras possibilidades racionais e ligadas à
172 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 158.
121
ordem jurídica. A autora adiciona também a necessidade de justificação, isto é, a
explicitação das razões pelas quais uma das decisões foi escolhida.173
São precisamente as dificuldades da racionalidade da ponderação que Alexy tenta
solucionar desde sua Teoria dos Direitos Fundamentais. Ele não se baseia, todavia, na
divisão racionalidade/justificação esquematizada por Ana Paula de Barcellos, ao contrário,
o problema da justificação está inserido na racionalidade da decisão resultante de uma
ponderação.
O propósito de racionalidade, aliás, relaciona a Teoria dos Direitos Fundamentais de Alexy
a sua Teoria da Argumentação Jurídica, uma vez que esta busca fundamentar racionalmente
as decisões jurídicas, principalmente, as valorações que são feitas174. Para tanto, o jurista
desenvolve um conjunto de regras da argumentação aptas à racionalização das decisões
jurídicas. A ponderação, como técnica específica, também deve seguir algumas regras que
lhe conferem racionalidade.
A ponderação consiste, como foi dito, no processo de avaliação das possibilidades
jurídicas, ou seja, as possibilidades que um princípio tem de ser realizado dependem
diretamente das possibilidade de intervenção num princípio contraposto. Dessa constatação,
173 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisidicional,Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 43-45.
122
feita a partir de decisões do Tribunal Constitucional da Alemanha, Alexy formulou uma lei
que se aplica a todas as ponderações de princípios, a chamada “lei da ponderação”, que
prescreve que quanto maior é o grau da não satisfação de um princípio, maior deve ser a
importância da satisfação do outro.175
Alexy destaca que a ligação entre a ponderação e a teoria da argumentação jurídica, acima
referida, é encontrada no momento em que a lei da ponderação indica o que deve ser
fundamentado racionalmente, rebatendo à critica de que essa lei seria uma “fórmula
vazia”.176
5.4.5. A fórmula da ponderação como resposta à crítica de Jürgen Habermas
O modelo que une princípios a valores sofreu forte crítica de Jürgen Habermas, que acusa
as propostas teóricas de Alexy – entre elas, a ponderação – de irracionalidade.
A carência de racionalidade na ponderação, para Habermas, é a conseqüência de uma
construção problemática que tenta entrelaçar princípios a valores, especialmente a posição
que é exposta pelo Tribunal Constitucional da Alemanha em suas decisões. O autor afirma
174 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005. p.38-40.175 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 161.
123
que a constituição alemã, ao invés de ser interpretada como um sistema de regras
estruturado através de princípios, é compreendida nos moldes de uma “ordem concreta de
valores”177.
Habermas defende que normas se distinguem de valores, porque estas obrigam
indistintamente seus destinatários, enquanto aquelas são preferências compartilhadas
intersubjetivamente, que podem ser realizadas através de uma conduta direcionada a um
fim. As normas devem ser compreendidas como igualmente boas para todos, os valores, por
outro lado, têm seu sentido adotado por certos âmbitos ou grupos. Além disso, ao passo em
que normas não podem se contradizer, pois, para serem válidas, devem estar contidas num
setor coerente (o sistema), os valores podem concorrer entre si e convivem com diversas
tensões. O pensamento do autor sobre a distinção pode ser resumido no seguinte fragmento:
Normas e valores distinguem-se, em primeiro lugar, através de suas respectivasreferências ao agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, através dacodificação binária ou gradual de sua pretensão de validade; em terceiro lugar,através de sua obrigatoriedade absoluta ou relativa e, em quarto lugar, através doscritérios aos quais o conjunto de sistemas de normas ou de valores devesatisfazer. Por se distinguirem segundo essas qualidades lógicas, eles não podemser aplicados da mesma maneira.178
Com o apoio dessa conceituação, Habermas sustenta que ao adaptar valores sob a forma de
princípios jurídicos e assim realizá-los, o Tribunal Constitucional, estaria se transformando
numa instância autoritária, pois, quando os princípios colidem, todas as razões podem ser
176 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstúdiosPolíticos y Constitucionales, 2002. p. 167.177 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol.1. 2.ed.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 315178 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol.1. 2.ed.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 317
124
utilizadas como argumentos e persecução de fins, o que leva ao enfraquecimento da
compreensão deontológica de normas – entre elas, os princípios. Assim, a obrigatoriedade
fica preterida em nome das possibilidades de otimização.179
A crítica ao tribunal inevitavelmente atinge o processo de realização destes
princípios/valores, a ponderação, cujo discurso Habermas entende ser “frouxo”180. Uma vez
que a aplicação de princípios fica entregue a todos os tipos de argumentos, a ponderação
seria um método que não admite controle racional, o que gera, inclusive, a crítica da
transformação em um tribunal autoritário.
Alexy não ficou inerte à crítica formulada por Habermas. Para ele, a melhor resposta a ser
adotada é aquela que demonstra que a ponderação pode ser empregada de forma racional. O
ponto de partida de Alexy é defender que a lei da ponderação expressa os graus de afetação
dos direitos que estão em discussão, através da exigência de que as razões que justificam
uma intervenção devem ser tanto maior, quanto mais forte seja a intervenção181. Esta
fundamentação da ponderação, para Alexy, é visualizada em três aspectos e serve para
conduzir a sustentação da racionalidade da ponderação, que foi criticada por Habermas. Os
três momentos são descritos por Alexy da seguinte forma:
179 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol.1. 2.ed.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 321180 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol.1. 2.ed.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 315181 ALEXY, Robert. Tres Escritos Sobre los Derechos Fundamentales y la Teoría delos Principios. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2003. pp. 130-131
125
La objeción de Habermas en contra la teoría de los principios estaríaesencialmente justificada, si no fuera posible emitir juicios racionales, en primerlugar, sobre las intensidades de las intervenciones en los derechos fundamentales;en segundo lugar, sobre los grados de importancia de la satisfacción de losprincipios; y, en tercer lugar, sobre la relación que existe entre lo uno y lo otro.182
Com a finalidade de expor em detalhes a racionalidade da ponderação, Alexy empenhou-se
na elaboração da “fórmula da ponderação”, também chamada de “fórmula peso”, cuja
função é descrever a solução de colisões entre princípios. Tentaremos, de modo conciso,
apresentar esta fórmula.
O primeiro passo a ser dado é definir o grau do não cumprimento ou prejuízo de um
princípio e, em seguida, a importância do cumprimento do outro. Este modelo é
contemplado com a utilização de pelo menos dois graus, um leve e um grave. Alexy sugere,
porém, a utilização de uma “escalação triádiaca”, que oferece os graus “leve”, “médio” e
“grave”, aos quais nos reportaremos como grau “l”, “m” ou “g”, respectivamente. Tais
graus são utilizados para descrever a intensidade da atuação do intérprete em um princípio,
seja para expor a intervenção ou a importância de realização. Aqui, o termo “intervenção”
serve tanto para os princípios que exigem uma ação positiva, quanto para os princípios que
exigem uma omissão. Isto é, um princípio que prescreve uma ação positiva sofre uma
intervenção quando a ação não é cumprida integralmente, por outro lado, um princípio que
182 ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid:Colegio de Registradores de la Propriedad, Mercantiles y Bienes Muebles de España,2004. p. 49
126
exige uma omissão sofre uma intervenção quando a omissão não é completa, mas,
parcial.183
Diante disso, pode-se chamar de “IPi” a intensidade da intervenção num princípio “Pi”. A
intervenção é necessariamente avaliada de forma concreta e por isso é bom explicitar a
concretude agregando a IPi as circunstancias do caso concreto em que Pi tem preferência
sobre outro princípio. Essas circunstâncias foram representadas, ao abordar a lei de colisão,
por “C”. Assim, a intensidade da intervenção num princípio esclarece melhor seus três
aspectos se representada por “IPiC".
Por concreta, a intervenção se distingue do peso abstrato que tem Pi, o qual será
representado por “GPiA”184. O peso abstrato de um princípio é o peso que possui
relativamente a outros princípios, independentemente de confrontos concretos. Desde já, é
bom deixar claro que o peso abstrato não é a única responsável pela solução de um conflito
concreto, afinal, caso isso fosse imaginado, o que foi dito até agora sobre o pensamento de
Alexy entraria em contradição. Alexy entende que muitos princípios não têm pesos
abstratos perceptivelmente diferentes, entretanto, alguns são visivelmente diferentes, como
183 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007. p. 138184 “G” representa peso (Gewicht, em alemão), enquanto “A” serve para reforçar que estavariável se refere a peso abstrato.
127
a superioridade do direito à vida em relação à liberdade de atuação, como a liberdade de
profissão.185
Uma crítica pode ser formulada à visão dos pesos abstratos, pois é bastante complicada
uma tentativa de organização destes pesos abstratos e, na maioria dos casos, jamais haverá
consenso sobre superioridades abstratas. Apesar disso,como Alexy entende que os pesos
abstratos dos princípios são iguais em grande parte das situações, pode-se descartá-los,
porque tal igualdade não influencia a decisão final.
O passo seguinte é a avaliação da importância do cumprimento do outro princípio, “Pj”, que
se constrói a partir da análise da intervenção em Pi. É que deve ser questionado quão
prejudicial seria para Pj, se Pi não sofresse uma intervenção, ou, nas palavras de Alexy, “a
importância concreta de Pj é calculada segundo isto: quão intensivamente a não-intervenção
em Pi intervém em Pj”. Isto é, faz-se um exame com base numa suposição, que corresponde
à “intensidade de uma intervenção hipotética por não intervenção”186. Alexy representa esta
importância do cumprimento através da notação “IPjC”, cujos aspectos I e C são análogos
aos da variável IPiC.
185 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007. pp.138-139186 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007. p.141.
128
Assim, são estas duas variáveis que servirão como objeto da avaliação dos graus l, m ou g.
O passo seguinte será correlacionar estas avaliações. Terá preferência aquele princípio cujo
grau for mais forte, sabendo-se que g é maior que m, que, por sua vez, é maior que l.187
Esta análise pode também ser feita através de representação numérica, adotando valores, ao
invés de l, m e g. Alexy sugere a utilização de 1,2 e 4, com os quais é possível ilustrar o
peso de Pi em relação a Pj, portanto, um peso concreto chamado de “Gi,j”. Este peso
concreto Gi,j é o resultado da divisão dos valores que representam o a intensidade de
intervenção IPiC e a intensidade do não cumprimento IPjC188. A montagem da fórmula é a
seguinte:
IPiC
Gi,j = __________
IPjC
Nota-se que o peso concreto de Pi será maior quando o resultado da divisão for maior que 1,
como ocorre, por exemplo, quando os pesos de IPiC e IPjC são 4 e 2 respectivamente. Por
outro lado, o peso concreto de Pj será maior quando o resultado da divisão for menor que 1,
o que ocorre, por exemplo, quando os pesos são 1 e 4.
Esta é a base de uma fórmula mais ampla que é designada como fórmula da ponderação ou
fórmula peso, na qual se encontram, além das intensidades de intervenção, os pesos
187 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007. p.143.188 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007. p.145.
129
abstratos dos princípios colidentes e os graus de segurança das suposições empíricas sobre
a realização e a não realização dos princípios.189
Como foi dito, quando os pesos abstratos são iguais, eles não devem ser considerados,
porque sua igualdade não interfere na decisão final. O mesmo vale para as outras duas
variáveis. A terceira variável – grau de segurança das suposições empíricas sobre a
realização e a não realização dos princípios – corresponde à possibilidade de certeza
referente às hipóteses teórico-empíricas proferidas pelo tribunal acerca da realização de
cada princípio. Esta variável tem a função de esclarecer qual o grau de confiabilidade que
possuem as suposições que o tribunal faz para determinar a intensidade de intervenção de
um princípio quando entra em colisão com outro. Pode ser, por isso, representada por
“SPiC” e “SPjC”. A ela também podem ser relacionados os valores numéricos 1, 2 e 4,
correspondentes respectivamente ao grau “não-evidentemente falso”, “plausível” e
“certo”190.
Assim, as três variáveis de cada princípio devem ser multiplicadas e, em seguida, divididas
pelo resultado da multiplicação das três variáveis do princípio oposto, como se compreende
na fórmula abaixo:
IPiC . GPi A. SPiC
Gi,j = ________________________
189 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007. p.146190 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007. p.150
130
IPjC . GPj A. SPjC
A mesma fórmula vale para os casos em que mais de dois princípios colidem, adicionando-
se apenas as três variáveis referentes a cada princípio isolado.191
Esta resposta de Alexy à critica formulada por Habermas indica a construção de uma
fórmula muito bem esquematizada, o que leva Cláudio Pereira de Souza Neto a afirmar que
ela “tem o mérito inegável de chamar a atenção do aplicador do direito para aquilo que
efetivamente deve ser considerado na atividade de ponderação”, pois, ao excluir a aplicação
intuitiva, explicita as questões que abordou e fortalece a racionalidade da atividade da
ponderação.192
A utilização de um artifício matemático certamente não é recebida pacificamente pela
teoria do direito, mas é necessário esclarecer que Alexy utiliza a fórmula para ilustrar a
estrutura da ponderação praticada no Tribunal Constitucional da Alemanha, ou seja, “um
modelo para reconstrução racional do ‘balanceamento’ de princípios jurídicos em colisão”,
como anota Luis Fernando Schuartz193. A esquematização serve à demonstração da
racionalidade do processo.
191 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2007. p.152192 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Ponderação de Princípios e Racionalidade dasDecisões Judiciais. Boletim Científico da ESMUP, n.15. Brasília, 2005. p. 220.
131
Thomas Bustamante entende que a fórmula contempla a pretensão de Alexy de elaborar
uma ponte entre a teoria da argumentação jurídica e a ponderação de princípios. Além
disso, toda a ponderação fica entrelaçada, com suas etapas estreitamente ligadas, a fim de
alcançar o resultado ótimo. Sobre a fórmula, o autor indica quatro aspectos louváveis:
Esta [a fórmula da ponderação] representa a justificação interna da argumentaçãojusfundamental, destacando-se porque: (1) revela quais são as principais variáveisque interferem no resultado das ponderações jurídicas (intensidade da restriçãoem Pi, grau de satisfação de Pj, peso abstrato de cada um dos princípioscolidentes, segurança das premissas empíricas utilizadas na argumentação); (2)propões um modelo triádico de classificação e valoração das duas primeirasvariáveis do processo de ponderação[...]; (3) propõe modelo semelhante para avaloração dos argumentos empíricos que têm lugar na argumentação jurídica[...]; e (4) procura representar formalmente as relações entre cada uma dasdimensões da ponderação.194 (grifos no original)
Apesar de reconhecermos que a fórmula estabelece uma proposta plausível de organização
da ponderação, é preciso indagar se ela efetivamente é suficiente para garantir a
racionalidade tão questionada.
5.4.6. A fórmula da ponderação assegura a racionalidade?
Não se pode negar o mérito da tentativa de Alexy de apresentar um caminho a ser trilhado
pelos intérpretes que se deparam com um conflito de princípios.
193 SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade. Rio de Janeiro:Renovar, 2005. p. 218194 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Princípios, Regras e a Fórmula de Ponderaçãode Alexy: um modelo funcional para a argumentação jurídica? Revista de DireitoConstitucional e Internacional, n. 54. São Paulo, 2006. p. 96
132
A aproximação da matemática é o reflexo de uma teoria que foi construída com amparo do
pensamento econômico, uma vez que utiliza o recurso de busca de soluções ótimas dentro
do quadro de possibilidades fáticas e jurídicas. O equilíbrio encontrado pelo “ótimo de
Pareto” indica que não se pode alterar o estado sem a geração de perdas, ao passo que os
estados diferentes do ótimo podem ser incrementados com a percepção de benefícios e sem
geração de perdas. Na opinião de Luis Fernando Schuartz, isso se deve à afinidade que
Alexy supõe existir entre a racionalidade da aplicação de princípios e a racionalidade dos
processos decisórios de agentes econômicos. Todavia, assinala o autor, o grande problema
é a pressuposição de que existe um ótimo a ser perseguido nos juízos sobre a
constitucionalidade de práticas que realizam princípios jurídicos. 195
Luis Fernando Schuartz assinala que o raciocínio econômico que sustentava a teoria de
Alexy foi superado pelas concepções atuais, ditas neoclássicas, pois os agentes econômicos
no capitalismo nem conseguem maximizar as decisões, nem devem tentar fazê-lo. O
reconhecimento da economia como um ambiente complexo e de elevada incerteza entende
como racional aqueles comportamentos que adotam “rotinas estratégicas e padrões de
comportamento relativamente estáveis”, que não se confundem com comportamentos
conservadores. Assim, escreve o autor, “a univocidade da solução ótima cede passo à
multiplicidade e heterogeneidade das soluções subótimas ou (...) ‘satisfatórias’ “196.
195 SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade. Rio de Janeiro:Renovar, 2005. p. 193
133
Então, essas modificações no pensamento econômicas determinam uma nova interpretação
da teoria de Alexy. A questão central atinge as soluções ótimas: Luis Fernando Schuartz
defende que não é possível, caso se acredite em sua existência, conhecer as tais soluções. E
mais: a busca de um resultado ótimo não pode funcionar como uma busca até o infinito,
isto é, um ponto ideal que orienta os intérpretes. Mais correto é o reconhecimento de um
convívio com as incertezas relacionadas à pluralidade de soluções não-hierarquizáveis, que
devem ser assumidas como integrante da democracia.197
Uma vez que a ponderação representaria o meio adequado para alcançar as soluções ótimas,
sua fórmula também é alcançada pelas críticas formuladas. Com efeito, a reconstrução
teórica da prática adotada pelo tribunal, que é empreendida pela fórmula, tenta incrustar em
seu objeto um caráter racional que ele não tem198.
Pode-se dizer que o problema da racionalidade fica sem uma grande resposta de Alexy,
porque ele entendeu que este seria resolvido dentro da estrutura da ponderação, ou seja,
uma construção detalhada e coerente, que, aliás, ele conseguiu fazer, seria capaz de
responder à critica de que o método é irracional. Entretanto, a dificuldade não se encontra
na estrutura da fórmula desenvolvida, mas em como é possível acessar racionalmente no
âmbito dos valores numéricos que são conferidos a cada uma das variáveis da fórmula. Em
196 SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade. Rio de Janeiro:Renovar, 2005.p.200-201197 SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade. Rio de Janeiro:Renovar, 2005. p.202
134
outras palavras, como justificar que a atribuição dos valores 1, 2 ou 4 é racional? Alexy não
explica como a atribuição destes valores pode ser racionalmente justificada.
Luis Fernando Schuartz entende que o grande vazio que Alexy deixa na resposta à crítica
de Habermas está em outro aspecto: a ponderação deixa margem para o crescimento
perigoso de juízos irracionais, já que os argumentos funcionalistas podem prevalecer sobre
os argumentos normativos199. É que Habermas entende que princípios possuem maior força
de justificação do que valores, pois possuem obrigatoriedade geral, devido ao seu sentido
deontológico, ao passo em que os valores, por causa do sentido axiológico, devem ser
inseridos numa ordem transitiva de valores, caso a caso. Então, como não existem critérios
racionais para esta inserção, a interpretação de princípios como valores – de modo
transitório e conforme ordens de precedência – permite decisões arbitrárias. 200
Para Habermas, a partir do momento em que um tribunal adota ordens flexíveis de valores,
aumenta o risco de juízos irracionais. Assim, há uma diferença defendida pelo autor entre
obrigatoriedade geral dos princípios e uma obrigatoriedade, sustentada por Alexy, que é
relativizada em função de relações de preferência, as quais, contudo, coloca em risco o
caráter deontológico em face de análises funcionais.
198 SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade. Rio de Janeiro:Renovar, 2005. p. 219199 SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade. Rio de Janeiro:Renovar, 2005. p. 183200 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol.1. 2.ed.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. pp. 321-322
135
Como contraponto, Habermas sugere um modelo em que os princípios – sem esquecer que
eles dão forma a direitos fundamentais - são levados a sério em seu sentido deontológico e
“não caem sob um análise dos custos e vantagens”201. Para tanto, o tribunal precisa
demarcar, num determinado caso concreto, qual ação deve ser exigida num determinado
conflito, ao invés de escolher algum valor. Habermas reconhece que “relações podem
deslocar-se segundo as circunstâncias de cada caso”, mas o deslocamento é conduzido pelo
dever de encontrar entre as normas aplicáveis prima facie aquela que se enquadra melhor à
situação, tendo como limite a preservação da coerência do sistema202. O intérprete deve ser
conduzido pelo sentido deontológico do princípio e não, pelo sentido teleológico daquilo
que alcança seus desejos.
Assim, as criticas de Habermas parecem pertinentes, apesar de entendermos que não
nulificam a teoria de Alexy. Sem dúvidas, a ponderação descrita por Alexy foi uma
conquista que permite tentar atingir a maximização da realização de princípios, sem
precisar recorrer à invalidação de um deles. A importância histórica deste método é
indiscutível e ele foi o único encontrado pelo direito até o início deste século que se
adaptou à concepção de que normas não são apenas regras. Contudo, a objeção de
Habermas parece deixar claro o perigo que a ponderação pode acarretar. Ainda assim, sua
proposta não nos parece ser uma alternativa completa, pois não aprofunda os meios que
201 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol.1. 2.ed.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 322.
136
viabilizam a descoberta da norma “que se adapta melhor à situação de aplicação descrita de
modo possivelmente exaustivo e sob todos os pontos de vista relevantes”203.
6. A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS PARA A NOVA HERMENÊUTICA
CONSTITUCIONAL
Hermenêutica constitucional é um tema grandioso, tanto em sua importância, quanto na
extensão de seus variados aspectos. Para não incorrer no risco pretensioso de querer
abordá-la completamente e não alcançar grandes resultados, cumpre esclarecer que
interessa para este trabalho o papel que desempenham os princípios nesta nova
hermenêutica constitucional, o que já é muito significativo.
O direito constitucional passou por mudanças relevantes nos últimos séculos e seu estágio
atual é chamado por alguns de “neoconstitucionalismo”. Ana Paula de Barcellos anota que,
do ponto de vista material, dois elementos são característicos do neoconstitucionalismo:
primeiro, a incorporação explícita de valores e opções políticas, sobressaindo-se os que
dizem respeito aos direitos fundamentais, além, em segundo lugar, da expansão de conflitos
entre as opções normativas e filosóficas postas na constituição.204
202 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol.1. 2.ed.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 323.203 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol.1. 2.ed.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. pp.322-323.204 BARCELLOS, Ana Paula. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controledas Políticas Públias. Revista de Direito Administrativo, n.240. Rio de Janeiro, 2005. p.85.
137
Terminada a segunda guerra mundial, inúmeras nações inseriram em suas constituições
valores que representariam um consenso mínimo a ser respeitado. De imediato, discutiu-se
acerca de sua juridicidade. Como visto, a discussão não parece ter mais sentido, isto é,
negar a normatividade destes valores, que são princípios. Com efeito, Ana Paula de
Barcellos sustenta que uma das características formais do neoconstitucionalismo é
precisamente a normatividade da constituição, portanto, todas suas disposições são normas
e possuem imperatividade205.
A hermenêutica constitucional, então, ajustou-se para interagir com os princípios jurídicos,
que são, normalmente, a espécie normativa utilizada para a consagração dos direitos
fundamentais. E não existe, conforme Manoel Gonçalves Ferreira Filho, tema mais
importante no direito contemporâneo que o dos direitos fundamentais206. Este trabalho
voltou-se para a análise dos princípios jurídicos, mas não haveria sentido em fazê-lo, senão
porque os direitos fundamentais, muitas vezes como prescrição de valores, recebem
normatização pela via dos princípios, que clamam por uma interpretação adequada.
Para se adaptar à fase atual, a hermenêutica constitucional precisou se renovar. O direito já
não poderia se servir somente dos clássicos métodos de interpretação, uma vez que as
necessidades se modificaram a partir, principalmente, da diferenciação entre princípios e
205 BARCELLOS, Ana Paula. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controledas Políticas Públias. Revista de Direito Administrativo, n.240. Rio de Janeiro, 2005. p.84. Além desta, escreve a autora, são também características a superioridade daconstituição e a centralidade da carta no sistema jurídico.
138
regras. A necessidade de uma nova hermenêutica exigiu a elaboração do que Willis
Santiago Guerra Filho chama de “interpretação especificamente constitucional”, sem
precisar descartar os métodos clássicos. É preciso, nas palavras do autor, “empregar outros
recursos argumentativos, quando, com o emprego do instrumental clássico da hermenêutica
jurídica não se obtenha como resultado da operação exegética uma ‘interpretação conforme
à Constituição’ ”207.
Estas modificações surgiram com o desenvolvimento de vários métodos de interpretação
propostos por diferentes autores e, de uma forma pacificamente aceita entre os juristas,
através dos princípios de interpretação constitucional propostos por Konrad Hesse e
abraçados por J.J. Gomes Canotilho. Tais princípios não representam a positivação de
valores, mas novos cânones ou critérios de interpretação.
Vejamos, resumidamente, quais são estes cânones: 1) O principal é o princípio da unidade
da constituição, que determina que uma norma não deve ser interpretada isoladamente, mas
sempre em conexão com toda a constituição 208, buscando harmonizar as tensões
206 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Os Direitos Fundamentais. ProblemasJurídicos (...). Revista de Direito Administrativo. n.203, Rio de Janeiro, 1996. p. 1-2.207 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e DireitosFundamentais. 4.ed. São Paulo: RCS Editora, 2005. pp. 73-74. A favor também danecessidade de uma interpretação especificamente constitucional, COELHO, InocêncioMártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1197. p. 77-78, em função da peculiar presença dos princípios na constituição.208 Cf.HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional na República Federal daAlemanha. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p. 65.
139
existentes209. 2) O segundo é o princípio da concordância prática: ao aplicar a constituição,
deve-se interpretar as normas constitucionais de modo a não sacrificar nenhuma delas210. 3)
Segundo o terceiro cânone, a conformidade constitucional 211, os intérpretes da constituição
não podem alterar a distribuição das funções estabelecidas pela constituição. 4) O critério
do efeito integrador significa que a resolução de problemas constitucionais priorize os
pontos de vista que melhor conservem a unidade política. 5) De acordo com o critério da
força normativa da constituição, deve ser dada preferência às soluções que, na medida em
que atualizam a interpretação constitucional, garantem sua maior eficácia212. 6) O princípio
da interpretação conforme a constituição afirma que uma lei não deve ser declarada
inconstitucional quando ela puder receber uma interpretação em consonância com a
constituição213. Por esta razão, as interpretações que contrariam a constituição devem ser
afastadas214. 7) Por fim, o princípio da máxima efetividade expressa a necessidade de
priorizar a interpretação que dê maior eficácia às normas constitucionais, sobretudo no
âmbito dos direitos fundamentais215.
209 Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional de Teoria da Constituição.2.ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1097210 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional na República Federal daAlemanha. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p. 66211 Na tradução para o português, acima citada, optou-se por “exatidão funcional”.212 Cf. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional na República Federal daAlemanha. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p. 68. Em trabalho que se tornouum clássico do direito constitucional, A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris, 1991, Konrad Hesse já defendia a força normativa (jurídica) daconstituição, opondo-se ao pensamento de Ferdinand Lassale, segundo o qual aconstituição jurídica estaria limitada à constituição real, representante dos fatores reais dopoder dominante.213 Cf. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional na República Federal daAlemanha. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p. 71.214 Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e DireitosFundamentais. 4.ed. São Paulo: RCS Editora, 2005. p. 80.215 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional de Teoria da Constituição. 2.ed.Coimbra: Almedina, 1998. p. 1097 e GUERRA FILHO, Willis Santiago. ProcessoConstitucional e Direitos Fundamentais. 4.ed. São Paulo: RCS Editora, 2005. p. 79.
140
Já que estes novos critérios de interpretação foram desenvolvidos também em função do
reconhecimento dos princípios jurídicos, cabe indagar sobre o que os autores entendem
como “princípios constitucionais”.
Canotilho divide os princípios constitucionais em quatro categorias. Inicialmente, são
princípios jurídicos fundamentais aqueles que foram “historicamente objetivados e
progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção
expressa ou implícita no texto constitucional”216. Eles têm função de interpretação, de
integração, de conhecimento e aplicação do direito positivo. Ao seu lado, há os princípios
políticos constitucionalmente conformadores, que consagram as opções políticas
fundamentais, onde se encontram os princípios definidores da forma e estrutura do Estado.
Os princípios constitucionais impositivos, por sua vez, impõem aos órgãos do Estado a
realização de fins e tarefas. A estes correspondem as normas programáticas. Por último, há
os princípios-garantia, que instituem diretamente garantias negativas ou positivas para o
cidadão.217
Jorge Miranda classifica os princípios constitucionais em três categorias: princípios
axiológicos fundamentais, princípios político-constitucionais e princípios constitucionais
216 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional de Teoria da Constituição. 2.ed.Coimbra: Almedina, 1998. p. 1038.217 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional de Teoria da Constituição. 2.ed.Coimbra: Almedina, 1998. pp. 1040-1041.
141
instrumentais. A primeira categoria corresponde aos valores inseridos no texto
constitucional, que o autor considera uma “ponte de passagem do Direito natural para o
Direito positivo”218. A segunda representa os limites imanentes do poder constituinte, os
limites específicos da revisão constitucional e os conexos a estes. Na última categoria
enquadram-se os princípios referentes à estruturação do sistema constitucional, isto é,
possuem caráter formal, como o princípio da fixação de competência e da tipicidade219.
Sobressai-se nesta nova hermenêutica constitucional o tema da interpretação plural, como
conseqüência necessária de constituições que estabelecem diferentes princípios que
colidem entre si a todo instante. Esta ordem constitucional, para poder realizar tantos
princípios, não pode ficar entregue a poucos grupos de intérpretes, afinal, se os princípios
consagram valores às vezes distantes, é de se esperar que a diversidade axiológica também
seja representada por um amplo conjunto de intérpretes.
Neste sentido, Peter Häberle afirma que a interpretação constitucional esteve durante muito
tempo reduzida a uma “sociedade fechada”, que era composta principalmente por juízes.
Em contrapartida, à luz da democratização da interpretação constitucional, deve haver uma
“sociedade aberta”, onde se encontram cidadãos, grupos, potências públicas e também
218 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 5.ed. Coimbra:Coimbra Ed., 2003. p. 257.219 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 5.ed. Coimbra:Coimbra Ed., 2003. pp. 257-258.
142
órgãos estatais.220 O mesmo caminho segue Gilmar Mendes, ao sustentar que “o
reconhecimento da pluralidade e da complexidade da interpretação constitucional traduz
não apenas uma concretização do princípio democrático, mas também uma conseqüência
metodológica da abertura material da Constituição”221.
Contra a pluralidade de intérpretes surge a crítica da dissolução da unidade da constituição,
que é rechaçada por Häberle com o argumento de que a unidade é resultado da “conjugação
do processo [de interpretação] e das funções de diferentes intérpretes”222. Inocêncio
Mártires Coelho também entende que a unidade e a ordem jurídica se preservam e são,
inclusive, reforçadas pela interpretação plural, pois possibilita a racionalização das
divergências interpretativas.223
Como conseqüência para a hermenêutica constitucional, Häberle entende que o juiz deixa
de agir isoladamente, pois a interpretação é feita também por outros participantes. Além
disso, já que a interpretação não é feita somente nos tribunais, mas em todos os espaços
220 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio FabrisEditor, 2002. p. 11.221 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: hermenêuticaconstitucional (...). Revista dos Tribunais, v.766. São Paulo, 1999. p. 15.222 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio FabrisEditor, 2002. p. 33.223 COELHO, Inocêncio Mártires. As Idéias de Peter Häberle e a Abertura da InterpretaçãoConstitucional no Direito Brasileiro. Revista de Direito Administrativo, n.211. Rio deJaneiro, 1998, p.127. Marcelo Galuppo, Hermenêutica Constitucional e Pluralismo, In:SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (coord.); Hermenêutica eJurisdição Constitucional, Belo Horizonte: Del Rey, 2001, pp. 58-59, porém, partindo deum conceito diferenciado de pluralismo, entende que a interpretação plural e o Estado
143
onde participam as forças pluralistas, a esfera pública desenvolve uma força normatizadora,
que influenciará a corte constitucional, afinal, esta deve interpretar a constituição em
conformidade com sua atualização pública. Outra conseqüência se relaciona aos princípios
e métodos de interpretação constitucional, que, preservados seus significados, recebem
nova função: “eles disciplinam e canalizam as múltiplas formas de influência dos diferentes
participantes do processo”224.
Com isso, sabendo-se da importância que têm as considerações da nova hermenêutica
constitucional, ou interpretação especificamente constitucional, como a prefere denominar
Willis Santiago Guerra Filho, para concluir a presente dissertação, passa-se a expor o seu
pensamento sobre os princípios jurídicos, de maneira resumida e organizada na forma de
uma axiomática, a fim de demonstrar como é profundamente conexo com o que se disse até
aqui, bem como as perspectivas que abre para o desenvolvimento do assunto, de
importância inexcedível, na atualidade, em matéria de filosofia (e teoria) do direito, ao
apresentar idéias inovadores e, por isso mesmo, em diversos momentos contrastantes com
aquelas até aqui expostas, avançadas por autores de proa no cenário nacional e
internacional.
Democrático de Direito não são compatíveis com os pressupostos da unidade e ordem deuma interpretação sistemática do direito.224 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio FabrisEditor, 2002. pp. 41-44.
144
7. Conclusão
7.1 Teses sobre as Dimensões dos Princípios Jurídicos na Teoria do Direito segundo
Willis Santiago Guerra Filho.
145
1. O princípio é uma norma jurídica que positiva um valor (relativizando-o e
horizontalizando-o, ao retirá-lo de uma ordem hierárquica qualquer em que se encontre,
seja ela uma ideologia, uma religião ou alguma concepção ética).
1.1.1. Os princípios pressupõem normas jurídicas de outros tipos para serem aplicados.
1.1.2. Além de princípios as normas jurídicas podem ser regras.
1.1.2.1. As regras jurídicas podem ser primárias ou secundárias.
1.1.2.2. Regras primárias referem-se a fatos em geral, prescrevendo conseqüências
jurídicas que decorrem de sua ocorrência, situando-se em um plano de
direito material.
1.1.2.3. Regras secundárias referem-se a fatos relacionados com a elaboração de
regras primárias, tendo nítido caráter procedimental.
1.1.2.4. As regras jurídicas podem variar em graus de generalidade e abstração.
1.1.2.5. As regras gerais vinculam uma classe indeterminada (mas determinável) de
indivíduos.
1.1.2.6. As regras abstratas referem-se a fatos hipotéticos.
1.1.2.7. As regras menos gerais e abstratas referem-se a indivíduos determinados e
fatos concretos.
1.1.2.8. As regras mais gerais e abstratas situam-se em patamar mais elevado na
estrutura escalonada do ordenamento jurídico.
1.1.2.9. Há uma diferença deontológica (“deverendo”225) entre regras e princípios.
1.1.2.10. É incomensurável a diferença de generalidade e abstração de regras e
princípios, pois a mais geral e abstrata das regras ainda se reporta a um fato
146
hipotético, enquanto os princípios não referem fatos, pois explicitam valores,
que nas regras estão implícitos.
1.2. Em caso de conflito (abstrato) entre regras (antinomia normativa) ou de lacuna
(ausência de regra) recorre-se a regras (secundárias) que se refiram a tais fatos.
1.2.1. O conflito (concreto) entre princípios é resolvido com a prevalência (no caso
concreto) de um ou alguns dos princípios em conflito em relação a um outro ou
aos demais, respeitando-lhes o conteúdo essencial, ou seja, sem violar-lhes o
núcleo intangível.
1.2.1.1. Em caso de conflito entre princípios recorre-se a um princípio de
proporcionalidade.
1.2.1.2. O princípio de proporcionalidade determina que se busque a realização
máxima possível (jurídica e faticamente) do conjunto de princípios em que
se fundamenta o ordenamento jurídico.226
1.2.1.3. O princípio de proporcionalidade requer processo para ser aplicado.
1.2.1.4. O princípio de proporcionalidade é uma garantia (de direito) fundamental,
ou seja, é um direito fundamental em sentido amplo, um direito fundamental
processual.
1.2.2. O princípio da proporcionalidade não é um critério ou um cânone da chamada
nova Hermenêutica Jurídica ou interpretação especificamente constitucional,227
pois é uma norma jurídica, positiva, vinculantes de condutas, enquanto estes
225 Palavra construída por analogia a différend, “diferendo”, proposta pelos pós-estruturalistas franceses (Deleuze, Derrida, Lyotard etc.) para caracterizar a diferençaontológica entre Ser e ente, tematizada na filosofia heideggeriana.226 Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Baden-Baden: NOMOS, 1985, p. 100.
147
cânones ou critérios são padrões de pensamento, a serem adotados de acordo
com a discricionariedade do intérprete.
1.2.2.1.1. Correlato ao princípio da proporcionalidade é o cânone ou critério
hermenêutico-constitucional da concordância prática ou harmonização.
1.2.2.1.1.1. Os cânones ou critérios hermenêutico-constitucionais são uma
transposição para o plano heurístico ou cognitivo de princípios
fundamentais do Estado de Direito e Democrático.
1.2.2.1.1.2. Há contradição entre os princípios fundamentais do Estado de Direito e
Democrático, assim como entre os cânones ou critérios hermenêutico-
constitucionais, que se resolve com o emprego dos princípios de
proporcionalidade e da concordância prática ou harmonização,
respectivamente.
1.2.2.1.1.2.1. A contradição entre os princípios fundamentais do Estado de Direito
e Democrático se mostra já na origem histórica completamente
diferente de ambos, sendo o primeiro moderno e o outro antigo.
1.2.2.1.1.2.2. A contradição entre os princípios fundamentais do Estado de Direito
e Democrático também se revela na incompatibilidade entre ambos,
se pensados radicalmente, pois o primeiro determina submissão e
obediência à legalidade, enquanto o outro não admite nenhum
condicionamento ao poder legítimo do titular da soberania.
227 O desenvolvimento desses novos cânones se deve principalmente à Escola deconstitucionalistas liderada por Konrad Hesse, sendo de se destacar a colaboração,nesse particular, de Friedrich Müller.
148
1.2.2.1.1.3. A instituição jurídica do Estado de Direito e Democrático é um requisito
político da validade teórica da hermenêutica constitucional e de uma
Teoria (jurídica) dos Direitos Fundamentais.
1.2.2.1.2.1. A política democrática e o conhecimento científico são convergentes, pois
ambos se baseiam na prevalência de argumentos confrontados em uma
discussão aberta e pautada pela busca da liberdade de constrangimentos
ideológicos.
1.2.2.1.2.2. Democracia e ciência compõem a super-ideologia de nosso tempo.
1.2.2.2.1. Para captar e bem estudar os direitos fundamentais em suas múltiplas dimensões
é preciso uma teoria que seja igualmente multidimensional, superando os
reducionismos praticados por outras teorias, que melhor seriam denominadas
como doutrinas, por lhes faltar o devido compromisso com as regras do jogo
científico.
1.2.2.2.2. Uma teoria científica requer o cuidado com aquilo que Robert Alexy, na esteira
de seu professor Ralf Dreier (donde denominarmos o modelo que propõe
Modelo Dreier-Alexy), denomina dimensão analítica ou conceitual, na qual se
burila o instrumento simbólico da investigação e da transmissão dos
conhecimentos obtidos, os quais são “formatados” também por este simbolismo,
que pode ser desenvolvido independentemente, até de maneira matemática.
1.2.2.2.3. Para se ter uma abordagem científica faz-se necessário igualmente uma base
empírica, um campo experimental, e esta experiência, na área jurídica, é
constituída historicamente, tanto em um eixo diacrônico, na história de um
direito nacional ou na história geral dos direitos, como em um eixo sincrônico,
149
em que se tem o direito comparado e a comparação no âmbito de um mesmo
sistema.
1.2.2.2.4. Uma teoria científica, por ser também jurídica, tem de avançar para além do
formalismo analítico e do realismo fático, indo ao encontro da dimensão
axiológica, ainda que de maneira conjectural (no sentido de Miguel Reale e Karl
Popper) e crítica (especialmente do ponto de vista ideológico), a qual se
configura, na denominação do Modelo Dreier-Alexy, como dimensão
normativa. Aqui, a teoria fornece elementos para a constituição de doutrinas,
que passam a constituir a dimensão empírica, retroa-alimentando de maneira
circular, recursiva, autopoiética (no sentido de Niklas Luhmann) a teoria,
prestando-se, assim, à expansão do Direito, pela proposta de soluções para seus
problemas mais difíceis, os quais, em geral, podem ser traduzidos como
problemas em colidem princípios e direitos fundamentais, a serem resolvidos
pela incidência de um princípio dos princípios (no sentido husserliano), que é o
princípio da proporcionalidade.
1.2.3.1. O princípio da proporcionalidade possui característica que o assemelha às
regras jurídicas, por permitir a subsunção do conflito entre outros princípios,
fornecendo solução para esse problema maior do Direito, sem que disso
resulte a possibilidade de lhe atribuir, paradoxalmente, a natureza de uma
regra.
1.2.3.2.1. O princípio da proporcionalidade, sendo um princípio com a estrutura de
regra e por ter natureza processual é uma condensação da ordem jurídica
escalonada em três níveis, o das regras, o dos princípios e o dos
150
procedimentos, como é próprio da ordem jurídica de um Estado Democrático
de Direito.
1.2.3.2.2. A norma jurídica, de caráter constitucional, que consagra o princípio da
proporcionalidade, por ser um princípio, pode ser implícita, como ocorre entre
nós.
1.2.3.2.3. A norma jurídica que consagra o princípio da proporcionaldiade pode ser
considerada a verdadeira norma fundamental, sem caráter hipotético, nem
fictício, como preconizou Kelsen.
1.3. Não há conflito entre regras e princípios, pois os princípios não se reportam a
fatos, ainda que hipotética e abstratamente.
1.3.2.1. O conflito aparente entre regras e princípios deve ser tratado como uma colisão
entre o princípio (ou princípios) donde derivam tais regras com os demais
princípios envolvidos.
1.4. Princípios jurídicos não são de se confundir com princípios gerais do
direito.228
1.5. Princípios gerais de direito não são consagrados em normas positivas, sendo
revelados pela doutrina.
1.5.2. A doutrina dos princípios gerais de direito é jusnaturalista, pois são princípios
considerados válidos em geral, isto é, em toda ordem jurídica.
1.5.2.1. Princípios gerais de direito são indicados por normas postas em nosso
ordenamento jurídico que prevêem o modo de se colmatar lacunas, evitando o
non liquet.
228 Nesse sentido, cf. Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 5ª ed., São Paulo:Malheiros, 1994, cap. 8, pp. 228 ss.
151
1.5.2.2. Princípios gerais de direito são a última possibilidade de que o órgão judicial
deve lançar mão para pronunciar a norma individual e concreta que é a
sentença, em caso de lacuna, pois antes deve recorrer à analogia e ao costume,
aí incluída a jurisprudência, enquanto costume judicial.
1.5.2.3. Assim como o costume, também os princípios gerais de direito, em ordens
jurídicas de sociedades hiper-complexas como as (pós- ou hiper) modernas
estão em desuso,229 pois tanto o excesso como a insuficiência de regras podem
ser melhor resolvidas pela aplicação daquelas normas igualmente positivas que
são os princípios jurídicos.
2. Os direitos fundamentais têm seu núcleo essencial intangível definido pela
determinação de respeito à dignidade humana.
2.2. A dignidade humana é ofendida quando um sujeito é tratado como objeto por
outro sujeito.
2.2.2. A dignidade humana implica na igualdade de todos perante a lei (isonomia
distributiva).
2.2.2.1. O princípio (fundamental estruturante) do Estado de Direito decorre da
dignidade humana.
2.2.2.2. O princípio (fundamental geral) da legalidade decorre do princípio
(fundamental estruturante) do Estado de Direito.
2.2.3. A dignidade humana implica em tratar desigualmente os desiguais (isonomia
comutativa).
229 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna,Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
152
2.2.3.1. O princípio (fundamental estruturante) do Estado Democrático decorre da
dignidade humana.
2.2.3.2. O princípio (fundamental geral) da legitimidade decorre do princípio
(fundamental estruturante) do Estado Democrático.
2.3. O respeito à dignidade humana requer o respeito do ser humano enquanto
indivíduo, partícipe de diversas coletividades, inclusive aquela maior, enquanto
espécie planetária, natural e social.
2.3.2.1. Às diversas gerações de direitos humanos, em um eixo diacrônico, histórico,
com tendência universalista e caráter mais ético-político, correspondem
dimensões dos direitos fundamentais, em um eixo sincrônico, comparativo,
com tendência mais local, comunitarista e caráter efetivamente jurídico-
positivo.
2.3.2.2. São três as dimensões básicas dos direitos fundamentais, considerando os seus
titulares.
2.3.2.2.2. Na primeira dimensão o titular do direito fundamental é o sujeito
individualmente considerado e a este direito corresponde um dever de
abstenção.
2.3.2.2.3. Na segunda dimensão cabe a titularidade do direito fundamental a sujeitos
coletivos ou difusos de dada comunidade política e a este direito corresponde
um dever de prestação.
2.3.2.2.3.1. Na terceira dimensão o titular do direito fundamental, seu sujeito, é a própria
comunidade política e a este direito corresponde um dever de participação
ou solidariedade.
153
2.3.2.2.3.2. Ente naturais e pessoas jurídicas podem se fazer representar na comunidade
política para serem sujeitos de direitos (e garantias) fundamentais.
2.3.3. Os direitos fundamentais têm outras duas dimensões, uma publicística e outra
privatística, considerando-se o pólo passivo da relação jurídica fundamental.
2.3.3.1. Na dimensão publicística, os direitos fundamentais se exercem perante o
Estado, como os direitos subjetivos públicos.
2.3.3.2. Na dimensão privatística, os direitos fundamentais se exercem perante
particulares, como os direitos da personalidade.
2.3.3.3. A diferença dos direitos fundamentais em relação aos direitos subjetivos
públicos e os direitos da personalidade reside na circunstância dos primeiros
terem sempre as duas dimensões, publicística e privatística, exercendo-se tanto
perante o Estado como perante terceiros.
2.3.4. Os direitos fundamentais têm também mais duas outras dimensões, uma
material e outra processual, garantística, que se combinam com as duas
dimensões por último mencionadas, do que resultam quatro novas dimensões.
2.2.3.1. Há, portanto, uma dimensão garantística privatística e outra publicística, dos
direitos fundamentais em sentido amplo, que, a rigor, são as garantias fundamentais, assim
como há duas dimensões materiais dos direitos fundamentais, direitos fundamentais em
sentido estrito, uma privatística e outra publicítica, respectivamente.
2.3.4.1.2. As garantias institucionais não são de se confundir com os direitos
fundamentais, embora a elas se aplique o regime jurídico desses últimos,
correspondendo elas à sua dimensão garantística privatística.
2.3.4.1.3. Garantias institucionais distinguem-se de garantias dos institutos por serem as
primeiras de natureza publicística e as outras, privatística.
154
2.3.4.1.3.1. Garantias institucionais distinguem-se de garantias dos institutos da mesma
forma como se distingue a dimensão publicística da dimensão privatística
dos direitos fundamentais.
2.3.4.1.3.2. Garantias institucionais existem para preservar a existência de instituições
públicas (ou publicísticas) como o judiciário e os estabelecimentos de
ensino, necessárias à consecução de direitos (e garantias) fundamentais.
2.3.4.1.3.3. Garantias dos institutos existem para a preservação de instituições privadas
(ou privatísticas) como a família e os “modos de criar, fazer e viver” (art.
216, inc. II, CR), diretamente relacionadas com o núcleo essencial intangível
dos direitos fundamentais.
2.3.4.1.4. Direitos e garantias fundamentais têm a mesma natureza jurídica.
2.3.5. Os direitos fundamentais têm ainda outras duas dimensões, uma subjetiva e
outra objetiva.
2.3.5.1.2. Em sua dimensão objetiva os direitos fundamentais não são direitos subjetivos,
mas determinações para a organização do poder na (e da) comunidade política
que os adota.
2.3.5.1.3. Como os direitos fundamentais não são apenas direitos subjetivos mas
contemplam um vasto espectro de situações subjetivas outras e, mesmo, dele
promanam situações jurídicas objetivas, a figura jurídica que melhor
corresponde à sua natureza jurídica é a do status.
2.2.5. Os direitos fundamentais possuem uma dimensão epistêmica, onde se
mostram como diretrizes para se conhecer o Direito, especialmente em se tratando
daquele adotado em um Estado que se propõe a ser uma Estado Democrático de
Direito.
155
2.4. A intangibilidade do núcleo essencial dos direitos (e garantias) fundamentais
impede que normas de direitos fundamentais (NDF), que têm a natureza de
princípios jurídicos, tenham eficácia absoluta.
2.4.2. Não se admite cargas de eficácia diferenciadas para NDF.
2.4.3. NDF não pode ser norma programática.
2.4.4. A ausência de regra concretizadora de NDF não pode impedir sua aplicação
imediata, isto é, sua concretização – se necessário, pela incidência do princípio
da proporcionalidade.
2.4.4.1. A concretização de NDF se dá por meio de um processo constitucional.
2.4.4.1.2. O processo constitucional tutela direta ou indiretamente, mediata ou
imediatamente, direitos fundamentais.
2.4.4.1.3. O processo constitucional que tutela direta e imediatamente direitos
fundamentais é um processo subjetivo e concreto instaurado pelo exercício de
ações constitucionais que são garantias fundamentais.
2.4.4.1.4. O processo constitucional que tutela indireta e mediatamente direitos
fundamentais é um processo objetivo e abstrato de controle da
constitucionalidade para garantir a higidez da ordem jurídica, da qual derivam
os direitos fundamentais.
2.5. Dos direitos fundamentais derivam situações jurídicas subjetivas e estruturas
objetivas de poder.
2.5.2. As estruturas objetivas de poder em um Estado de Direito e Democrático só se
justificam enquanto instrumentos de realização dos direitos e garantias
fundamentais
156
2.5.3. Nas situações jurídicas subjetivas derivadas de direitos fundamentais podem se
encontrar pessoas físicas ou jurídicas, entes singulares ou coletivos, humanos
ou simplesmente naturais.
2.5.4. A implementação de direitos e garantias fundamentais em um Estado de
Direito e Democrático requer a atuação de uma jurisdição constitucional
diferenciada estrutural e funcionalmente da jurisdição ordinária.
157
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