PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP
Francisco Antonio Marques Viana
A UTOPIA CONCRETA E O AINDA-NÃO-CONSCIENTE
NA OBRA DE ERNST BLOCH
DOUTORADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2015
Francisco Antonio Marques Viana
A UTOPIA CONCRETA E O AINDA-NÃO-CONSCIENTE
NA OBRA DE ERNST BLOCH
DOUTORANDO EM FILOSOFIA
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Filosofia, sob a orientação do Prof.
Dr. Antonio José Romera Valverde.
SÃO PAULO
2015
ERRATASUMÁRIOO SONHO ACORDADO, AS TESES SOBRE FEUERBACH E A EMANCIPAÇÃO HUMANA
APRESENTAÇÃO
Destacam-se os estudos de Antonio Rufino Vieira (2007), Princípio
Esperança e a “herança” intacta do marxismo e Ernst Bloch, Marxismo e
Libertação: estudos sobre Ernst Bloch e Enrique Dussel (VIEIRA, 2010); O Enigma
da Esperança: Ernst Bloch e as margens da história do espírito e Ética e Utopia:
ensaio sobre Ernst Bloch, ambos de Suzana Albornoz (2006), Ernst Bloch: marxismo
e liberdade de Luiz Bicca (1982) e Utopia e Direito: Ernst Bloch e a ontologia
jurídica da utopia de Alysson Leandro Mascaro, além de artigos como Ernst Bloch e o
sonho de uma coisa de Carlos Eduardo Jordão Machado. (p. 15)
CAPÍTULO I
A mudança aconteceu com Avicenna que, na Idade Média, opunha-se ao aristotelismo
conservador da Igreja. (p. 57)
CAPÍTULO II
57 Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon (1760-1825), nasceu em Paris, e morreu cercado pela admiração dos discípulos. (p. 97)
Juntou-se a isso, na obra de Bloch, a defesa de um mundo sem corrupção em que a democracia significaria a dignidade humana (p. 136).
86Pelas páginas escritas por Bloch (1974) sobre a filosofia renascentista circulam Marsilio Ficino, autor das primeiras traduções de Platão e Plotino diretamente do grego, imprimindo vitalidade e beleza aos conceitos; (p. 141)
CAPÍTULO III
3.2 A ABERTURA PARA O FUTURO, AS GERAÇÕES E OS ATRIBUTOS MAIS
ELEVADOS DO HOMEM
97Cf. BÍBLIA.Crônicas.Antigo Testamento.1:50.
CAPÍTULO V
INTÉRPRETES DA UTOPIA DE ERNST BLOCH
Bloch, em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), não se refere a nenhum dos
três – Buber, Landauer e Rosenzweig -, mantendoidenticosilêncio em O Princípio
Esperança. (p.226)
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FUTURO COMO ESPERANÇA
155,o homem mau, (p. 268)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SOBRE ERNST BLOCH
MASCARO, Alysson Leandro. Utopia e Direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2008
V614
Viana, Francisco Antonio Marques.
A utopia concreta e o ainda-não-consciente na obra de Ernst Bloch / Francisco Antonio
Marques Viana– São Paulo: PUC / Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2015.
306 f.; 30 cm.
Referências: 275-306
Orientador: Prof. Dr. Antonio José Romera Valverde
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-
Graduação em Filosofia, 2015.
1. Bloch, Ernst, 1885-1977 – Crítica e interpretação. 2. Utopia. 3. Revolução.
I. Valverde, Antonio José Romera, orientador. II. Programa de Pós-Graduação em
Filosofia. III. Título.
CDD 100
BANCA EXAMINADORA
Para aqueles que sonham acordados com um mundo que jamais foi visto.
A Antonio José Romera Valverde, pela sabedoria e entusiasmo;
Ana Affonso, por iluminar a escuridão;
Maria Rita Kehl, pela crença na emancipação do homem.
AGRADECIMENTOS
Acácio Moraes, Alberto Morelli, Alexandre Soriani, Alex Viana, Álvaro Muller,
André Curvello, Carlos José Silva, Cleópatra Viana, Dad Squarise, Denise Monteiro,
Eurico Lima Figueiredo, Francisco Valdério, Ivan Phiffer, Ipojucã Cabral Brito, Leda
Maria Abbês, José Carlos Bicev, Jéssica Silva, José Erivaldo de Oliveira, Leda Abbês,
Lúcia Viana, Maria Aparecida Viana, Marcelo Tognosi, Ney Figueiredo, Nélio Palheta,
Nereu Leme, Patrícia Blanco, Paulo Nassar, Pedro Ferreira de Araújo, Raul Sampaio,
Rita Soares, Rose Amanthéa, Rômulo Nagib Lasmar, Sonia Hass, Susana Serravale,
Tatiana Viana, Thiago Rosa, Ubiratã Muarrek e Verona Oliveira. Um agradecimento
especial aos professores doutores Marcelo Perine e Wolfgang Leo Maar pelos valiosos
ensinamentos e sugestões que clarearam a tentativa de entendimento do pensamento
revolucionário de Ernst Bloch.
El propósito que lo guiaba no era impossible, aunque sí
sobrenatural. Queria soñar um hombre: queria sonãr-lo con
integridad minuciosa e imponerlo a la realidad.
Jorge Luis Borges, Las Ruinas Circulares (2014, p. 18)
Al principio, los sueños eran caóticos; poco después, fueran de
naturaleza dialéctica.
Jorge Luis Borges, Las Ruinas Circulares (2014, p. 18)
RESUMO
VIANA, Francisco Antonio Marques. A utopia concreta e o ainda-não-consciente na
obra de Ernst Bloch. 2015. 306 f. Tese (Doutorado em Filosofia)– Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2015.
O pensamento de Ernst Bloch é complexo, sua obra é extensa e, em geral, tem sido
analisado pelas suas feições messiânicas, utópicas, místicas ou ainda pela sua possível
repercussão na América Latina e pelo ângulo da esperança. Esta tese, investiga a
filosofia blochiana como fonte de renovação e extensão do marxismo, em dois
momentos interligados a uma mesma ideia: a revolução socialista, iluminada pela
libertação do homem do modo de produção capitalista e a construção da vida melhor. O
primeiro momento encontra-se na utopia concreta: uma sociedade igualitária,
humanística, sem a má consciência da divisão de classes e o egoísmo da expropriação
da mais-valia, tendo como sujeito o homem e a sua integração com a natureza. O
segundo momento, consequência do primeiro, tem o seu núcleo no conceito do ainda-
não-consciente e se adensa no homem a partir do sonho acordado com a transformação
da sociedade. Dialeticamente, o caminho para a utopia concreta encontra-se na
conjugação da “corrente fria” do marxismo, a lucidez em realçar a realidade quanto à
submissão ao capital, com a “corrente quente”, o entusiasmo revolucionário com o
ainda-não-consciente. Há, contudo, um ponto de partida para a filosofia utópica que é o
sonhar acordado com a saída da obscuridade em que vive o homem, na procura de
encontrar a si mesmo, na luminosidade do entrelaçamento da teoria e da prática. Nesse
processo dialético-materialista, mediado pela vontade antecipadora, encontra-se a
necessidade de rever os caminhos da filosofia e da psicanálise. Rever significa pensar e
transpor as dificuldades para transformar o socialismo no regime de escolha da
sociedade de massas e que, diante dos imperativos do cotidiano, o homem não deixe de
agir e sonhar, jamais abdique, principalmente, dos valores da igualdade, da fraternidade
e da felicidade na Terra. Com seu início em Aristóteles e no chamado aristotelismo de
esquerda, no pensamento gótico do medievo e na filosofia do Renascimento, a
esperança em Bloch concentra-se no acordar do homem rebelde e na construção da
ordem fundada na liberdade, na convergência da superestrutura com a estrutura e que,
dessa forma, passe-se a viver a verdadeira história, sem que o “estranhamento” da vida
se torne repetição permanente. Se assim ocorrer, a filosofia e a psicanálise irão adquirir
novos saberes, inclusive redescobrindo ensinamentos antecipatórios do futuro na
filosofia anterior a Marx. A utopia concreta e o ainda-não-consciente, nesse ambiente,
terão possibilidades de superar a ilusão dos valores do capitalismo, criando horizontes
de esperança para a construção daquilo que o homem jamais viveu, a sociedade em que
ele será, a um só tempo, sujeito e objeto da construção. O que distingue Bloch do
“marxismo ortodoxo” é o sistema filosófico aberto, de elucidação da essência humana,
sem ideologismo, de mediação com a realidade, sem vínculos com o jogo ilusório do
fetiche das mercadorias, identificado com o homem que transforma as relações entre os
homens e com a natureza, despertando para uma vida melhor. Bloch sonha acordado
com a filosofia da sociedade sem classes em oposição à filosofia da sociedade de
classes.
Palavras-chave: Ainda-não-consciente. Utopia concreta. Sonho. Liberdade.
Capitalismo.
ABSTRACT
VIANA, Francisco Antonio Marques. The concrete utopia and the not-yet-conscious in
the work of Ernst Bloch. 2015. 306 f. Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2015.
Ernst Bloch‟s thought is quite broad, and it is usually analyzed in its messianic, utopian,
mystical, features; or yet, due to its possible repercussion in Latin America and its
hopeful point of view. This Dissertation investigates Bloch‟s philosophy as a source for
the renovation of Marxism, in two moments which are interconnected to one sole
idea: the Socialist revolution, enlightened by the liberation of man from Capitalism, and
the building of a better life. The first moment is to be found in concrete utopia: an
equalitarian, humanistic society, without the ill-consciousness of the division of classes
and the egotism of profit, having man and his integration with nature as its subject. The
second moment, consequence of the first, has its nucleus in the not-yet-conscious
concept and it increases in density in man after he has (been) awakened with the
transformation of society. Dialectically, the road to concrete utopia is to be found in the
conjugation of the cold current of Marxism - the lucidity regarding reality -, with its
warm current - revolutionary enthusiasm. There is, however, a starting point for Utopian
philosophy, which is the Materialist Dialectics of historical man, the incompleteness of
his trajectory, and the exit from obscurity wherein he lives, in search of himself, in the
luminosity of the interlacing of theory and praxis. In such process, mediated by the
anticipating will, one finds the need to review the ways of philosophy and
psychoanalysis. Reviewing means thinking and overcoming difficulties so as to make
Socialism the political regime mass-society chooses so that, faced with the imperatives
of reality, man does not give up acting and dreaming, he does not, especially, relinquish
the values of equality, friendship, and happiness on Earth. With its beginning in
Aristotle and in the Aristotelism of the Left, in the Gothic thought of the Middle Ages,
and in the philosophy of Renaissance, Bloch‟s hope concentrates in the awakening of
rebellious man and in the building upon order starting from liberty, in the convergence
of the superstructure with the structure, thus making it possible for one to live true
history, so that the „estrangement‟ of life does not become permanent repetition. If this
happens, if philosophy and psychoanalysis acquire new knowledge, including the
rediscovery of fore-knowledge [of the future] in Classical Philosophy, concrete utopia
and the not-yet-conscious have the chance to overcome the capitalist illusion, thus
generating horizons of hope for the construction of that which man has never
experienced, a society wherein he is, at once, subject and object of its construction.
What distinguishes Bloch from "Orthodox Marxism" is the open philosophical system,
without ideologism, far from the delusive fetish of merchandise, next to the man who
transforms and awakens to a better life. He dreams awake with a philosophy of a
classless society in opposition to the philosophy of a class society.
Key-words: Not-yet-conscious. Concrete utopia. Day-dreaming. Liberty. Capitalism.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 11
INTRODUÇÃO: ERNST BLOCH E O ILUMINISMO MARXISTA 19
O SONHO CORDADO, AS TESES SOBRE FEUERBACH E A EMANCIPAÇÃO
HUMANA 22
O PRINCÍPIO DA AÇÃO: A UTOPIA CONCRETA 26
DAS POSSIBILIDADES E DO MATERIALISMO DIALÉTICO 33
O MÉTODO E A ÉTICA PARA FRENTE 36
HUMANISMO E FILOSOFIA REVOLUCIONÁRIA 46
O SOCIALISMO COMO SISTEMA PREFERIDO DO HOMEM 48
CAPÍTULO I
DIALÉTICA DA UTOPIA CONCRETA: O HOMEM COMO SUJEITO DA
PRÁTICA TEÓRICA E MEDIADOR DA VIDA MELHOR 52
1.1 ARISTOTELISMO DE ESQUERDA, O CÉU NA TERRA, A MATÉRIA EM
MOVIMENTO, O HOMEM COMO POSSIBILIDADE 56
1.2 DIONISO-APOLO, INCÓGNITA AINDA INSOLÚVEL NA INCOMPLETUDE
HUMANA E NA CURA DA DOENÇA DO CAPITALISMO 62
1.3 DO APOCALIPSE CAPITALISTA À DIALÉTICA DO PROCESSO 65
1.4 FILOSOFIA E UTOPIA: CONSCIÊNCIA E PRÁXIS, UMA MESMA
UNIDADE NA BUSCA DO NOVUM 71
1.5 EM LUGAR DA FILOSOFIA DA SOCIEDADE DE CLASSES, A FILOSOFIA
DA SOCIEDADE SEM CLASSES 76
1.6 “NÓS” ANTES DO “EU” E AS RAÍZES DO FUTURO NOVO 80
1.7 UTOPIA, CONSTRUÇÃO COLETIVA 82
1.8 CIÊNCIA AUTORITÁRIA, CIÊNCIA HUMANISTA 91
CAPÍTULO II
SONHOS DE REFORMAS E OS NOVOS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS
DO TRABALHO NA MEDIAÇÃO UTÓPICA 97
2.1 OWEN, FOURIER E SAINT-SIMON: COMUNISMO FILANTRÓPICO,
PAIXÕES E SOCIALISMO INDUSTRIAL COMO REFORMAS PARA A
VALORIZAÇÃO DO TRABALHO 99
2.2 A UTOPIA SOCIAL CONQUISTA O TRABALHADOR: O IGUALITARISMO
ANARQUISTA PERDE TERRENO PARA A DIALÉTICA MATERIALISTA 105
2.3 SUJEITOS DA MEDIAÇÃO UTÓPICA 111
2.4 COLOMBO, O ÉDEN E OS DESCOBRIMENTOS: A UTOPIA DO NOVO
MUNDO 118
2.5 TRABALHO E ROMANTISMO, PRESSUPOSTOS PARA CONHECIMENTO
E TRANSFORMAÇÃO DA VIDA 121
2.6 LIBERDADE NA ORDEM, A ORDEM NA LIBERDADE 129
2.7 ESPERANÇA PELA MUDANÇA DE VALORES, O HOMEM SEM MEDO DO
HOMEM 135
CAPÍTULO III
SABER DA FILOSOFIA E AS PULSÕES HISTÓRICAS: A PERCEPÇÃO DO
AINDA-NÃO-CONSCIENTE 145
3.1 “DEMORA ETERNAMENTE! ÉS TÃO LINDO !” 151
3.2 A ABERTURA PARA O FUTURO, AS GERAÇÕES E OS ATRIBUTOS MAIS
ELEVADOS DO HOMEM 157
3.3 MONTANHAS DO FUTURO, A FILOSOFIA NA LINHA DE FRENTE 160
3.4 UM OLHAR AGUÇADO SOBRE O INCONSCIENTE 164
3.5 DA TRAGÉDIA AO INTERESSE HUMANO, A FAMILIARIDADE COM O
REAL E O PENSAR LIVREMENTE 168
3.6 PULSÕES, O CONFLITO ENTRE O HOMEM BURGUÊS E O HOMEM
HISTÓRICO 173
3.7 PULSÕES NÃO HOMOGÊNEAS NA SOCIEDADE DE CLASSES 177
3.8 FOME, DESEJOS E VONTADE 183
CAPÍTULO IV
SONHOS DE DESPERTAR: DILEMAS DA INTERIORIDADE E DA
EXTERIORIDADE DO HOMEM REVOLUCIONÁRIO 189
4.1 OBSCURIDADE E LUZ NA CORRENTEZA DO INSTANTE VIVIDO 192
4.2 A DIMENSÃO DO PRESENTE, O ALCANCE DOS TEMPOS DE MUDANÇA 196
4.3 A TRAGÉDIA DA MORTE E A UNIDADE INDIVIDUAL COLETIVA
CHAMADA CONTINUIDADE 203
4.4 UTOPIA DA VIDA E DO FUTURO SEM NEGAR O INEVITÁVEL DA
MORTE COMO RETORNO À NATUREZA 206
4.5 DIÁLOGOS DOS SONHOS E A CRÍTICA À PSICANÁLISE 209
4.6 LIMITES E POSSIBILIDADES DO SONHAR ACORDADO 213
4.7 O HOMEM, MAIS DO QUE UM SER NATURAL, UM SER HISTÓRICO 215
4.8 O DESINTOXICAR DO MUNDO, IMPULSO DA CONCIÊNCIA
SOCIALISTA 219
CAPÍTULO V
INTÉRPRETES DA UTOPIA DE ERNST BLOCH 223
5.1 OS IDEAIS, O REALISMO SOCIALISTA E A LUTA DE CLASSES 229
5.2 FIM DA UTOPIA E O MARXISMO ROMÂNTICO 232
5.3 NA UTOPIA NADA SE PERDE, APENAS A ILUSÃO SE TRANSFORMA 237
5.4 PARA ALÉM DA LUTA DE CLASSES, A HUMANIZAÇÃO DA DIALÉTICA
E O HOMEM SEM DEUS 245
5.5 A METAFÍSICA DO COTIDIANO E ECOSOCIALISMO 254
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FUTURO COMO ESPERANÇA 268
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 275
11
APRESENTAÇÃO
“A utopia é, na sua forma concreta, a vontade testada rumo ao ser do
tudo.”
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 307)
Esta tese objetiva expor e discutir a filosofia de Ernst Bloch sob o prisma da utopia
concreta e do ainda-não-consciente. A pergunta essencial se caracteriza como: por que o
homem, em lugar de antecipar o futuro socialista e a sua emancipação histórica dos meios de
produção, se perde tentando reformar um sistema repetitivo, o capitalismo, que só organiza,
universalmente, a sua própria continuação?
Inicialmente, pensamos que o problema a ser superado se concentrava na imensa
dificuldade de a filosofia transitar de uma visão contemplativa para a prática revolucionária,
como defende Bloch, a partir da tese 11 sobre Feuerbach de Karl Marx. Essa concepção se
revelou incompleta: a dificuldade existe, estende-se ao processo de clarificação de uma
consciência nova e da opção do homem por valores coletivos, o que passa a ser desafio
também da psicanálise em harmonia com o materialismo dialético. Seriam essas as razões de
o socialismo não ser universalmente o sistema preferido pelo homem?
Bloch não se recusa a ver que o homem se encontra limitado no seu despertar, não
apenas pela força do capital, mas, sobretudo, pela teia de valores em que o capitalismo o
envolve, controla e reproduz a sua forma de pensar e agir. Contudo, se nega a aceitar que o
homem seja impotente diante das barreiras que se erguem no caminho da sua emancipação e,
por isso, das possibilidades do acordar para o ainda-não-consciente. Despertar que Bloch
considera, pela sua formação hegeliana, como se fosse o de um escravo que deixa de temer a
morte e se rebela contra o senhor.
Duas obras-chave servem de referência na procura pela elucidação dessa esperança,
que Bloch resume na palavra utopia, tão antiga quanto irrealizada: The Spirit of Utopia (Geist
der Utopie) (BLOCH, 2000) e a trilogia O Princípio Esperança (Das Prinzip Hoffnung)
(BLOCH, 2005; 2006a; 2006b). Em torno delas, giram os conceitos de utopia concreta e do
ainda-não-consciente que, com maior ou menor intensidade, perpassam a obra de Bloch e
fundamentam a dialética materialista de construção, pelo homem, de uma sociedade
igualitária, historicamente, jamais vista.
12
Não se trata, portanto, de um retorno às utopias do passado, mas do avançar para uma
Idade de Ouro a ser conquistada. A filosofia blochiana procura um novo mundo, um espaço
onde a produção possa ser sem a finalidade egoística do lucro e com liberdade, sem conflitos
não repetitivos, nem a ordem ilusória, como no capitalismo. Socialista, se manifesta como
uma filosofia de emancipação na forma de uma sociedade fraternal, de igualdade, com
homens e mulheres vivendo e trabalhando sem as condições alienantes do capitalismo. Bloch
assimila, em paralelo, a ideia de anexar a psicanálise ao marxismo. Vendo a dificuldade do
homem acordar para o socialismo, divisou que o sonho psicanalista era regressivo, enquanto o
sonho socialista estava voltado para o futuro. Havia necessidade de criar uma coincidência
entre os dois movimentos dos sonhos, ambos acordados, para que o homem buscasse a
consciência do que jamais existiu. Não voltar atrás como se a Idade de Ouro da existência
fosse algo a se buscar no passado.
Esse é o alicerce da filosofia blochiana. Despertar não apenas para os males do
capitalismo, mas para os males a que o homem resiste em tomar consciência e resolver, a
começar pela mudança dos valores da sociedade burguesa. No início, seus traços, como na
filosofia marxista, se concentravam nas relações do ainda-não-consciente com o proletariado.
Com o passar do tempo, avançou na direção da Tese 11 sobre Feuerbach, o filósofo como
construtor do mundo, mas com a ideia de ampliar o sujeito revolucionário da classe operária
para todos aqueles que se opõem ao capitalismo. A ideia chave é a ação revolucionária
teórico-prática no devir do mundo. Mas um devir que vá além da revolução social: um devir
que pressupõe, também, uma revolução filosófica do modo de pensar, viver e se relacionar.
Como filosofia política, irrompe no último capítulo de The Sprit of Utopia (Geist der
Utopie), quando Bloch se volta para Marx e o marxismo e critica a política alemã de 1918,
pós a abolição da monarquia e proclamação da república. Na ocasião, a Revolução social, nos
moldes da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, não se concretizou como era esperado1.
Em seu lugar, além da frustração e do fracasso da esquerda, o que aconteceu foi rápida e
sangrenta recomposição de classes, com a juventude privilegiada se revelando com arrogância
sem paralelo na história, as universidades silenciando o senso crítico e os camponeses,
usurários, juntos com a pequena burguesia, se curvando perante a grande burguesia que
ocupou o poder (MÜNSTER, 2001, p. 78-9).
Há uma restauração do antigo regime e Bloch (2000, 267-73) a denuncia invocando a
revolução como alvo da luta de classes. As imagens da filosofia revolucionária de Bloch se
1 Cf. A Revolução Alemã (1918-1923), de Isabel Loureiro (2005).
13
prolongam por toda a sua obra, mas são mais visíveis em O Princípio Esperança. O
propósito, que Bloch reafirma e amplia em Experimentum Mundi, é mostrar a filosofia
materialista-dialética como oposta ao egoísmo e à exploração capitalista. Há dois mundos,
segundo a filosofia de Bloch. Um é o mundo repetitivo das mercadorias. O outro, o mundo
dialético, é o futuro socialista, não repetitivo, para ser semeado pelo homem sem alienação,
com vistas a construção do paraíso na terra. Um mundo futuro.
Mas o futuro não deixa de ser uma incógnita, como vem sendo há mais de dois mil
anos na história da utopia. A novidade é que a utopia concreta possui um novo sujeito
histórico, o homem, que aspira à vida voltada para o bem comum. E envolve o despertar para
as pequenas coisas do dia a dia, no quadro da dialética da existência. A premissa básica é se o
homem apenas aspira a –, tem ou poderia ter vontade de modelar – uma vida nova. Nesse
sentido, Bloch (2005, p. 432) admite que o ―inimigo mais renitente do socialismo‖ não é o
grande capital, mas o próprio homem devido ao temor de superar os valores conhecidos do
capitalismo e inclusive do pensamento ortodoxo do marxismo, infenso à abertura para a
experiência humanística prática. Haveria possibilidades de os valores do homem mudarem?
As premissas secundárias, interligadas à premissa básica, relacionam-se com a
filosofia da esperança no que tange à sua convivência com a ciência marxista e ao espírito
revolucionário no que se refere à juventude dos tempos. A teoria de superação da realidade
vigente estaria correta ou a sua aplicação é que foi incorreta? O homem poderia vir,
efetivamente, a sonhar acordado com um mundo novo não capitalista? Haveria como
controlar as pulsões negativas em favor das pulsões voltadas à vida futura?
São aspectos como esses que justificam a escolha do pensamento de Ernst Bloch como
tema de estudos, em particular num momento de aguda crise do socialismo e da emergência
de uma sociedade seduzida pelo consumo, inclinada a secularizar as ideias marxistas e a
utopia concreta. Não é mistério que, apesar de confrontar um capitalismo cínico, a ideia
comunista perdeu terreno no plano real, simbólico e imaginário. Embora as desigualdades
sociais sejam ―monstruosas e crescentes‖2 (tradução nossa), mesmos nos países mais
desenvolvidos, os revolucionários são ―desunidos e fracamente organizados, largos setores da
juventude popular são seduzidos pelo niilismo, a grande maioria dos intelectuais são servis‖3
(BADIOU, 2010, p. 25, tradução nossa).
2 ―monstrueuses et croissantes‖.
3 ―Les révolutionnaire sont désunis et faiblement organisés, de large secteurs de la jeunesse populaire sont
gagnés par un désespoir nihiliste, la grand majorité des intellectuels son serviles‖.
14
O desafio da filosofia de Bloch, passados 170 anos que Karl Marx escreveu as Teses
sobre Feuerbach e outros 167 de O Manifesto Comunista parece definido: ao combinar a
construção da consciência e delinear a alternativa da utopia concreta, recuperar a ideia
socialista e, como desdobramento, o sentido do comunismo. Talvez, não mais o comunismo
do partido, mas da vontade do homem prometeico e coletivo. Mas é evidente que para que
isso aconteça se terá, antes, de resgatar o pensamento do próprio Bloch.
Os movimentos cambiantes da história contribuíram para que suas ideias não
circulassem universalmente, como aconteceu com Karl Marx e expoentes do Instituto de
Pesquisas Sociais de Frankfurt, como Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Walter Benjamim,
ou da filósofa Hannah Arendt, ela também alemã, mas que não foi marxista. Dado ao escasso
interesse, suas obras hoje são difíceis de ser encontradas nas livrarias de Paris, Roma e Nova
York, além do Brasil.
Não seria exagero dizer que são quase raridades. E não são raridades ainda maiores,
porque, nos anos 1960, a editora alemã Suhrkamp passou a publicar as obras completas de
Ernst Bloch, motivando traduções em inglês, italiano, francês e espanhol. Certamente, o
esquecimento acontece porque o comunismo, na década final de vida de Bloch, estava sendo
tragado pela crítica conservadora e, também, pela esquerda. O marco histórico do período,
além da dissolução da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas -, pode ser a
dissolução em 1991 do Partido Comunista Italiano, que chegou a ser o maior partido de
esquerda do Ocidente, fundado por Antonio Gramsci em 1921.4 Isto sem mencionar o
ostracismo a que foi relegado o tema candente do humanismo, essencial para Bloch, como foi
para Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844.5
No Brasil, seria um quase anônimo ou um ilustre desconhecido não fosse a obra de
Arno Münster e a tradução de O Princípio Esperança quase vinte anos depois da morte de
Bloch. De Münster, pode-se enumerar Ernst Bloch: filosofia da práxis e utopia concreta,
nascido de um curso (1990) no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, além de conferência na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob o
título Ernst Bloch – um Schelling marxista. Há, também, a tradução de Utopia, Messianismo e
Apocalipse na obra de Ernst Bloch.
O começo foi promissor, coincidindo com o momento em que o Brasil, no particular, e
a América Latina, no conjunto, despertavam para a Teologia da Libertação e para a utopia
4 Cf. O Alfaiate de Ulm, de Lucio Magri (2014).
5 Cf. A Crise do Movimento Comunista, de Fernando Claudin (2013); e Tempo Nublado, de Octavio Paz
(1986).
15
socialista, movimentos que iriam recuar, no decorrer das décadas de 1960-1970, por força de
sucessivos golpes militares e sangrenta perseguição à esquerda. Reprimida com feroz
violência, a utopia deixou as ruas e as ideias democráticas de governo para refugiar-se na
clandestinidade. Em lugar da juventude dos tempos, o atavismo de uma época de obscuridade.
Ainda no contexto de liberdade e de ascensão das forças populares, os primeiros
escritos de Bloch chegam ao Brasil na década de 1960, ao mesmo tempo em que havia uma
renovação teórica da esquerda brasileira, com publicações de obras de György Lukács,
Antonio Gramsci, Karl Korsch, Jean-Paul Sartre, Henri Lefebvre, Lucien Goldmann, Walter
Benjamin e Theodor Adorno. O precursor foi o franco-suíço Pierre Furter, com o livro
Dialética da Esperança e, em 1972, a publicação, ambos pela Paz e Terra, de Thomas
Münzer, Teólogo da Revolução de Ernst Bloch.
Mas a dura realidade é que a maioria dos trabalhos de Bloch é desconhecida do grande
público e não foi traduzida no Brasil. Não é preciso ir muito longe para constatar o óbvio: a
obra testamento de Bloch, Experimentum Mundi, foi publicada pela Suhrkamp em 1975. Lá se
vão quatro décadas. Nunca foi traduzida no país. Mesmo a produção acadêmica é tímida.
Destacam-se os estudos de Antonio Rufino Vieira (2007), Princípio Esperança e a
“herança” intacta do marxismo e Ernst Bloch, Marxismo e Libertação: estudos sobre Ernst
Bloch e Enrique Dussel (VIEIRA, 2010); O Enigma da Esperança: Ernst Bloch e as margens
da história do espírito e Ética e Utopia: ensaio sobre Ernst Bloch, ambos de Suzana Albornoz
(2006), além de artigos como Ernst Bloch e o sonho de uma coisa de Carlos Eduardo Jordão
Machado.
De qualquer forma, é comum situar-se a obra de Ernst Bloch, em seu sentido parcial,
evocando, por exemplo, as suas características messiânicas, a rica biografia do autor ou
mesmo pela aparente dubiedade de sua utopia, como faz Habermas (1987) ao definir Bloch
como o ―Schelling Marxista‖. Assim, a sua filosofia polìtica revolucionária, aberta ao
pensamento de Marx e Freud, herdeira de Aristóteles e Hegel, portadora de prático
humanismo e ética real, perde-se no imenso estuário de suas ideias, como assevera, com
propriedade, Stefano Zecchi (1978) em Ernst Bloch: utopia y esperanza en el comunismo.
Martin Jay (1984b) e Pierre Furter (1974), com respectivamente Marxism & Totality e
Dialética da Esperança, assim como Pierre Bouretz, Manuel Ureña Pastor e o próprio Arno
Münster avançam nesta direção, mas não chegam a separar com precisão o rio caudaloso do
pensamento revolucionário do filósofo dos afluentes das suas muitas reflexões e erudição. O
significado desse exercício está na contribuição de Bloch para dar novo conteúdo ao
pensamento marxista contemporâneo e seus desdobramentos futuros.
16
As teses de Bloch (2006a), sobre o humanismo socialista e a necessidade do
socialismo ser a escolha da grande maioria da sociedade como sistema de vida, tornam-se
cada vez mais atuais, porque trabalham a filosofia a partir do homem, das suas experiências,
aproximando-se do concreto, do mundo imanente, e do utópico, o mundo transcendente. Não
que vislumbrem, no socialismo, um mundo perfeito e acabado, mas, um socialismo em
processo de construção. Não como um retorno à antiga Arcádia homérica, mas num avanço
obstinado para construir a Arcádia com as próprias mãos.
Bloch (2006b) alertou, sem rodeios, para os impasses e significados dessa caminhada
no decorrer da sua vida, que podem ser condensados em complexos e agitados capítulos: o
embate contra o fascismo na Alemanha, o longo e duro exílio na Europa e nos Estados
Unidos, o retorno, cercado de grande prestígio, para a Alemanha Oriental, novamente o exílio,
desta vez, na Alemanha Ocidental. Nesse sentido, passou a ser, assim, um permanente rebelde
contra as normas da filosofia marxista oficial. Um filósofo que sonhava com o futuro, mas
que esteve sempre reconciliado com o presente. Sua vida foi a experiência da busca da luz na
obscuridade. Eis, assim, em grandes linhas, as razões e o tema desta tese.
Está dividida em cinco partes, além da Apresentação, Introdução, Ernst Bloch e o
Iluminismo Marxista, e das Considerações Finais, O Futuro como Esperança. A primeira
parte, Dialética da Utopia Concreta: o Homem como Sujeito da Prática Teórica e
Mediador da Vida Melhor, ocupa-se do ―pensamento para a frente‖. Concentra-se nos
fundamentos da utopia concreta, como conquista coletiva, que começa com The Spirit of
utopia (Geist der Utopia) (2000) e culmina com a trilogia O Princípio Esperança (2005;
2006a; 2006b), sempre permeada pela ideia do ainda-não-consciente e a discussão do sujeito
revolucionário e seu alvo. O propósito é traçar o itinerário da filosofia blochiana que, a
despeito da sua extensão e obstáculos, converge sempre para a esperança de mudança. E para
a ideia da utopia como processo dialético.
A segunda parte, Sonhos de Reformas e os Novos Fundamentos Econômicos do
Trabalho na Mediação Utópica da Sociedade Futura, detém-se em investigar aquilo que
distingue o homem transformador da realidade vigente daquele que a ela se acomoda ou
apenas a contempla. Destaca a natureza e os impactos das utopias sociais e da oposição entre
ordem e liberdade. As Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007) emergem como
referenciais teóricas, nas quais onde predominava a contemplação, a filosofia passa a ter, na
práxis e no homem trabalhador, o efetivo sujeito da utopia, os elemento vitais da
transformação do mundo. Enfatiza-se as relações entre o romantismo revolucionário e o
17
trabalho como sujeitos da mediação utópica, além do seu significado em relação ao marxismo
e o processo industrial.
A terceira parte, Saber da Filosofia e as Pulsões Históricas: A Percepção do Ainda-
não-consciente, a partir da utopia marxista, retoma os fios traçados com The Spirit of Utopia
(Geist der Utopie) (2000) até O Princípio Esperança (2005; 2006a; 2006b), tendo como
finalidade levar a filosofia e a psicanálise a se revolucionarem, criarem novos saberes sobre
os sonhos humanos e a despertarem para a realidade do mundo da produção e do capitalismo.
Daí, a necessidade de recorrer a horizontes abrangentes de ideias e alcançar os pressupostos –
o homem rebelde e consciente dos seus desejos – que tornariam possíveis a utopia socialista.
Esses horizontes são sugeridos pela redescoberta do pensamento utópico dos grandes
filósofos e pelo conceito freudiano de pulsões.
Na quarta parte, Sonhos de Despertar: Dilemas da Interioridade e da
Exterioridade no Homem, o tema central é o sonho acordado. Tal como aparece em Bloch
(2005), procura-se discutir o papel da psicanálise na vontade antecipatória humana. Dessa
forma, o sonho dormindo passa a ser como um sonho para trás, enquanto o sonho para a
frente ganha o papel transformador das realidades interior e exterior ao homem. Esse seria o
autêntico sonho revolucionário que Bloch semeia em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie)
(2000) e discute com amplitude O Princípio Esperança como alternativa para que o homem
socialista abandone seus medos de mudança, e os novos valores do marxismo revolucionário
ganhem o cotidiano.
A quinta parte, Intérpretes da Utopia de Ernst Bloch, finalmente, discute a utopia de
Ernst Bloch na visão, entre outros, de Arno Münster, György Lukács, Hans Jonas, Henri
Maler, Herbert Marcuse, Ivan Boldyrev, Jünger Habermas, Martin Jay, Manoel Ureña Pastor,
Theodor Adorno, Pierre Bouretz, Pierre Furter, Stefano Zecchi e Walter Benjamin, além de
Antonio Rufino Vieira e Suzana Albornoz. O propósito é discutir a ideia de uma consciência
nova para o homem com a argumentação de que o ―espanto‖ não se encontra apenas na luta
de classes, mas nos valores de uma sociedade que nega a ―humanização da dialética‖ e resiste
em acordar para a necessidade de antecipar o futuro socialista. Discute-se o sentido de Deus,
da integração do homem com os homens e com a natureza e a visão socialista da ecologia.
No conjunto, a ideia é que o capital não é o grande inimigo do homem, mas sim, o
medo do homem de encarar o futuro, abandonando as ilusões quanto à reforma ou o
aperfeiçoamento do capitalismo. Com essa distinção, Bloch renova o marxismo e expressa
confiança no homem e no materialismo histórico que, na sua análise, identifica o homem
como divino demiurgo da consciência utópica de que a infraestrutura e a superestrutura da
18
sociedade possam vir a coincidir. É essa crença na sociedade, que o faz Bloch virar às costas
ao niilismo e à má consciência capitalista, voltando-se para o bem comum, a utopia da boa
consciência.
Nas Considerações Finais, sob o título de O Futuro como Esperança, é discutido o
alvo essencial do pensamento de Ernst Bloch, com base nas questões que perpassam sua obra:
há possibilidade de realizar a utopia concreta ou o mais importante é a crítica à sociedade
vigente? O homem estaria disposto a despertar para o ainda-não-consciente e abraçar o novo?
Quem são os sujeitos revolucionários? Nas páginas que se seguem, as tendências, a latência e
as contradições das respostas convivem, dialogam e se confrontam em processo que coloca
frente a frente a sociedade vigente e a utopia socialista a ser construída. Talvez, ao final, o que
Bloch entenda como sendo o princípio da esperança utópica, só o homem possa responder, se
vier a se identificar com a utopia revolucionária e transformadora da vida.
19
INTRODUÇÃO: ERNST BLOCH E O ILUMINISMO MARXISTA
O elemento genuinamente humanista da revolução social acabará tirando
de cima da humanidade inteira a coberta da autoalienação.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 444)
―Schelling marxista‖: assim Habermas (1987) definiu Ernst Bloch, em ensaio escrito
em 1960. E, para reforçar a sua tese, repetia um aforismo que acreditava sintetizar o
pensamento blochiano: ―A razão não pode florescer sem esperança; a esperança não pode
falar sem a razão, ambas na unidade marxista – nenhuma outra ciência tem futuro, nem outro
futuro tem ciência‖ (HABERMAS, 1987, p. 61). Pensador singular no panorama filosófico do
século XX, por construir um sistema marxista aberto, Bloch, com The Spirit of utopia (Geist
der Utopie) (2000), foi entronizado no universo da utopia, em 1918, um ano depois da
Revolução de Outubro ganhar contornos de realidade na Rússia. Em 1919, em caráter
informal, ele aderiu ao marxismo por influência do seu amigo e militante comunista, György
Lukács.6
Oficialmente, o marco dessa decisão deu-se em 1921, com a publicação de Thomas
Münzer, Teólogo da Revolução (1973), mas, na vida desse estudioso de Hegel, de ética
kantiana e materialista, o marxismo só passaria a existir mais tarde. Foi no alvorecer dos anos
1930, antes de se exilar na Suíça, pela segunda vez, quando passou a se dedicar por inteiro à
frente popular antinazista. Estava com 45 anos. A partir de então, procurou clarear a ideia
socialista com a chama do humanismo iluminista, mas jamais se filiou ao Partido Comunista e
se, de um lado admirou Lênin ao longo da vida, de 92 anos, jamais admirou os bolcheviques.7
6 Lukács tornou-se comunista em dezembro de 1918, no mesmo ano da publicação de Geist der Utopie. Com a
morte de Lênin, escreveu, um opúsculo sobre o líder bolchevique, comparando-o a Marx pelo pensamento
teórico revolucionário e pela compreensão da teoria econômica do imperialismo monopolista. Lembra que
Lênin comentava, de maneira prosaica: ―Inteligente não é quem não comete erros. Esses homens não existem
e não podem existir. Inteligente é quem não comete nenhum erro fundamental e sabe corrigir seus erros com
rapidez, com leveza‖ (LUKÁCS, 2012, p. 107-8).
7 ―O filósofo é um militante especializado na interpretação dos sinais do nosso tempo. Tem como tarefa
específica distinguir onde está a esperança dos homens e para onde estes conduzem nosso tempo. Posição
penosa por ser crìtica e arriscada; função necessária, para impedir qualquer ilusão mecanicista‖ (FURTER,
1974, p. 27).
20
Diferentemente de Lukács,8 entendia que o intelectual deve ter um engajamento
radical, mas não pertencer à burocracia partidária. Admirador das ideias de Rosa Luxemburgo
e de Karl Liebknecht, que acondicionavam liberdade ao socialismo, jamais deixou de
sublinhar o legado de Hegel para o pensamento marxista, como nunca ocultou a sua
admiração por Hegel e o reconhecimento pelo papel de Ludwig Feuerbach na desmistificação
da religião. A admiração por Hegel, que está na origem da formação de Marx, valeu-lhe
―feroz‖ crìtica da filosofia ortodoxa da Alemanha Oriental, que o acusava de ser hegeliano,
não marxista, com a característica de que não se refugiava no passado, mas no futuro.9
Depois da II Grande Guerra, Bloch voltou dos Estados Unidos para ensinar filosofia
na Alemanha Oriental, na Universidade Karl Marx, por entender que, nos países da União
Soviética, estava o futuro do socialismo. Contudo, nunca admitiu ―submissão intelectual à
censura da ortodoxia partidária‖ e fez de sua cátedra fonte de ―perpétua inquietação e
renovação‖ (FURTER, 1974, p. 24).
Sua visão dialética, graças a Hegel, repousava sobre a afinidade ontológica entre
sujeito e objeto. O saber estava fora do ser, mas também no seu interior. Encontrava-se no ser
(o absoluto) e no saber absoluto (a apreensão da realidade). Na Fenomelogia do Espírito
(1993), o relacionamento entre o ―Absoluto‖ e a tomada de consciência do ser é que torna o
―Absoluto‖ acessìvel e permite o conhecimento de si mesmo, não em termos de interioridade,
mas de um ser em-si e para-si.
Esse salto significaria a desalienação do ser, eliminando a contingência e situando-o
diante da realidade de situações específicas. O principio ontológico fundamental seria a
humanização total do homem. É uma tese que Bloch evoca ao longo de O Princípio
Esperança, se alimentando da seiva dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844
(MARX, 2007) e das Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007). Preconiza que a
sociedade socialista, com a preponderância da qualidade sobre a quantidade, o inverso da
8 Bloch conheceu o filósofo e teórico da literatura húngara György Lukàcs nos colóquios organizados, em
Berlim (1908), pelo filósofo Georg Simmel. A amizade com Lukàcs, que se prolongou por dez anos, é o
início de um rico período de discussões. Desencadeia reflexões que Bloch aprofundaria em O Princípio
Esperança: o pensamento escatológico da cabala, a oposição entre a democracia místico-herética e as
relações entre a juventude hegeliana e Marx, a tipologia da totalidade e do total, a totalidade psíquica do
indivíduo, a metodologia do materialismo dialético. Bloch, que odiava polêmicas, defenderia posições
antirreformistas e, como Lukács, criticou Bernstein e Kautsky, mas evitou tomar partido na discussão entre
Lênin e Rosa Luxemburgo a respeito da democracia operária. Com o passar do tempo, ficou claro que era
partidário de Luxemburgo, ao contrário de Lukàcs, leninista. Foi ferrenho opositor da social-democracia. À
época, Bloch não tinha lido Karl Marx. A filosofia da práxis só irá descobrir com a aproximação com György
Lukács, mas foi fator importante, senão determinante, na redação de The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e
na reformulação das Teses de Marx sobre Feuerbach, quando defende a consciência emancipadora das
massas e critica a economia política de Marx (KARADI, 1986a, p. 72).
9 Cf. Dialética da Esperança, de Pierre Furter, 1974.
21
sociedade capitalista, com a conversão de todos os homens em mercadorias e a sua incipiente
defesa da individualidade, libertaria os conteúdos humanos com efeitos construtivos sobre
toda a sociedade.
Filósofo ateu, não via no saber a procura do perfeito entendimento de Deus, nem o
caráter receptivo-contemplativo, fruto de elaborada concepção mental, mas a compreensão do
homem e de sua realidade universal, suas condições reais e metafísicas, suas relações com a
produção e seus sonhos de mudança. Não procurava somente saber ―quem sou‖, mas quem
―somos‖. Kojève (2002, p. 275-6), na sua Introdução à Leitura de Hegel, partindo da
pergunta de ―quem sou‖, que considera a essência do pensamento de Hegel, chega a duas
percepções: que para alcançar o saber absoluto e, portanto, ser, precisa-se fazer parte de um
estado perfeito, o único que pode realizar o saber absoluto; e, ainda, supõe que todo homem é
filósofo, feito para tomar consciência daquilo que ele é. Bloch (2006b) concebe a sabedoria
do Estado como construção humana, coletiva, mas assimila a concepção hegeliana de que
todo homem pode tomar consciência da filosofia revolucionária e edificar um mundo que
ainda não existe.
Por conseguinte, nasceria um mundo em que o Estado não iria existir, pois perderia a
razão de ser, e a dimensão antecipadora levaria o homem a afirmar permanente interação
superestrutura-infraestrutura. A teoria de produção burguesa passaria a ser puro reflexo de
uma época, da sociedade de classes, e, desse modo, o trabalhador seria alçado ao centro da
produção. Nessa dimensão das possibilidades, a visão de Pierre Furter (1974, p. 28) é
esclarecedora: ―Bloch pertenceu a uma geração que via a revolução como Revolução
‗permanente‘, escaparia aos ‗problemas da institucionalização‘, pelo menos até que o
socialismo estivesse ‗completa e definitivamente‘ instalado no planeta‖.
A realidade confirmou a hipótese de Furter (1974), pois Bloch nunca abandonou o
sonho revolucionário e não se curvou ao burocratismo e à ortodoxia da geração posterior à
linhagem revolucionária de 1917. Quer dizer, não se curvava à impossibilidade do saber se
afirmar sobre as sombras da ignorância, o que, por extensão, significaria negar a própria
filosofia revolucionária. Não se tratava de uma atitude individual, mas da crença na realização
da sabedoria.
Na sua iconoclasta condenação à doutrina burocrática, Furter (1974, p. 49)
demonstrou que a ―[...] esperança não é natural, mas ‗uma insurreição humana contra o
natural‘, um protesto organizado e sistemático contra o deixar ser, contra o conformismo,
contra a evolução normal: que conduzem ao nada do niilismo‖. Por isso, Bloch (2006a)
interessava-se pela determinação do alvo, do ―para quê‖, ―para onde‖ e da práxis. No entanto,
22
não se ateve à gnose marxista das estruturas de transição na antiga URSS para o socialismo e
à renovação do espírito bolchevique.
O SONHO ACORDADO, AS TESES SOBRE FEUERBACH E A EMANCIPAÇÃO
HUMANA
Em Marx, um pensamento não é verdadeiro por ser proveitoso, mas
proveitoso por ser verdadeiro.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 273)
Bloch (2000) projetou sua obra para o campo da tradição hermenêutica, manifestando
preocupação em revelar o que está oculto, em realçar o que pode estar camuflado na
banalidade cotidiana, fazendo surgir esperança onde raramente se poderia garimpá-la. O seu
território de conhecimento estava na percepção do real, no desvendar das pequenas coisas
cotidianas, no ambiente da ilusão ou do que aparentava ser religioso, místico ou messiânico.
A sua totalidade brota de fragmentos, que quando somados significam a abertura para o Noch-
nicht (ainda-não), o que realmente importa, como negação do passado, mas sem que o novo
implique em falta de consciência quanto ao passado.
O Noch-nicht brotaria do fim da incompletude da história humana e da negação da
filosofia do passado, que coloca a história na perspectiva do eterno novo e supera a repetição
do que já existiu com as categorias do ―futuro‖, ―frente‖ e ―novum‖. Diante de um
pensamento que não consegue ―libertar-se de um processo regressivo que, portanto, é incapaz
de superar o imediato do momento sensìvel‖, Bloch, segundo Zecchi (1978, p. 83) define as
estruturas teóricas da ―superação‖ e da ―negação‖ do ―já-conhecido‖. Essa superação-negação
ultrapassa a fenomenologia hegeliana pela ação e também o inconsciente regressivo
freudiano, situando a filosofia moderna no plano das ―ideias claras‖ do dever-ser e condenado
as ―ideias confusas‖ da ―inércia‖, da ―racionalização extrema‖ e das tradicionais relações
entre consciente e inconsciente (ZECCHI, 1978, p. 84-5).
A julgar pela distinção operada por Bloch (2005) o sonho para a frente assinalaria a
fundação de uma nova época, com o sonho acordado determinando o que o homem
utopicamente quer realizar, e a construção de um mundo sem exploração e sem ideologia, um
mundo não mais vazio e em que os afetos seriam objetivos. Nas palavras de Bloch (2005, p.
23
304), o ―ainda-não é tanto mais definido, sua tendência em direção à realização plena é tanto
mais forte, quanto mais objetivamente solucionável tiverem se tornado as tarefas a que se
propôs‖. E o que o ainda-não se propõe é fazer ―fenecer‖ a pré-história humana, projetar o
futuro com imaginação e a criar uma nova estrutura fincada no processo histórico real,
declarar ―guerra‖ ao provisório, elevar o processo-experimento ao âmbito da totalidade, fazer
a utopia avançar (BLOCH, 2005, p. 305-6).
A alternativa contrária seria, paulatinamente, sucumbir à barbárie, não só os
trabalhadores, mas também a burguesia. Sem que a utopia concreta se manifeste, não há
negação, nem antecipação, apenas a crise destrutiva da verdade oficial e institucionalizada.
Uma crise tolerada, sem perspectivas de mudança. A proposta de Bloch é radicalmente
diversa e procura criticar a relação repetitiva entre os homens e os valores capitalistas.
A coincidência sujeito-objeto-sujeito, destacada em O Princípio Esperança (BLOCH,
2005), é igualmente esclarecedora. Com a ideia de separar a ilusão do real, procura alcançar a
gênese de uma filosofia emancipadora e a metafísica de um sujeito ético universal. O sonho
acordado é reflexo desse empenho em elaborar as expectativas da vida cotidiana. Evidencia o
confronto dialético entre o desejo que se choca com o muro da realidade e o desejo almejado
como necessidade utópica.
Como a filosofia blochiana está estruturada no conceito do ainda-não-consciente, sem
a prática não poderia existir o socialismo como ciência e nem a visão humanística real de
Marx. O elemento estruturante de sua obra, apesar do inventário de sucessivas influências, foi
o pensamento de Hegel. Em especial, a categoria das possibilidades abriu-lhe as portas para o
entendimento de Karl Marx e de Sigmund Freud.
A matéria-prima do despertar da consciência encontra-se na superação da dominação e
absorve o sentido do ainda-não-sendo. Concebe a dinâmica revolucionária no reagrupamento
das Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007). Não apenas como mera interpretação
da realidade, mas, sobretudo, como forma filosófica de ação. Certamente, não escolheu O
Manifesto Comunista (MARX; ENGELS, 1998a) por ser este mais uma peça didática,
destinada a difundir conceitos que seriam repetidos pelos trabalhadores, fossem ou não
politizados, tivessem ou não consciência de si e do seu trabalho.
Enquanto, nas Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007), a lógica é a
construção da vida sob o socialismo, em O Manifesto Comunista (1998a), a lógica parece ser
aquela do determinismo histórico. O socialismo era inevitável e viria com o passar do tempo.
Pura ilusão. Pura aparência, frágil diante da realidade em que Bloch viria a considerar o
24
tempo. Pode recuar, mesmo parar, mas que retoma sempre o seu fluxo para a frente
(MÜNSTER, 2001b, p. 362-3).
Como processo de emancipação, as Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007)
parecem convergir conscientemente – e não doutrinariamente – para a superação do edifício
da produção capitalista, que sempre foi protegido pela burguesia. Transportam o homem para
a reflexão contra o capitalismo. Manifesta-se com clareza quanto à disposição para se evitar o
―viçoso, o vindouro‖, ―a negação do possìvel‖, temor comum aos sofistas, aos eleatas, aos
estoicos e, inclusive, Leibniz, que ainda conhecia a ―possibilidade‖ como ―disposição natural‖
(BLOCH, 2005, p. 240). Embora sua concepção das percepções mínimas se aproxime da ideia
de inconsciente, Bloch entende essas substâncias pensantes – que existiram na mente, mas
seriam pequenas demais para serem percebidas isoladamente – como sinais da possibilidade
de descoberta, pelo homem revolucionário, do ainda-não-consciente.
As Teses rompem com limitações da consciência da mudança e introduzem, em
definitivo, a possibilidade na história, prosseguindo a linha traçada por Aristóteles e ampliada
por Kant, se bem que cautelosamente, e defendida com veemência por Fichte (―Tu podes,
pois tu deves)‖, este como capacidade e como potência, e Schelling (BLOCH, 2005, p. 241).
As Teses, com concisão, tornam inescapável qualquer tentação romântica quanto às intenções
do capitalismo. Não importa se destruir ou profanar o que for sagrado. O determinante, na
produção capitalista, é ter a mercadoria como ―fetiche‖ – termo derivado dos ritos africanos
de encantamento e magia – e iludir o homem.
Nas Teses, Bloch (2005) encontrou o caminho para romper com o fetiche e,
consequentemente, com a ideia de que o capital é o grande estrategista da sociedade. Dizendo
não ao fetiche, o homem estaria amputando o capitalismo daquele componente mais precioso,
justamente a sua capacidade de se reproduzir em condições aparentemente encantadas. Sem o
ardor do encantamento, o capitalismo seria apenas o imediato e, portanto, sem meios para se
reproduzir.
Na utopia concreta, Bloch (2006b) aspira que a reflexão seja o prólogo da ação. O
homem e a significação do seu futuro, aquele que não se deixa iludir nem ilude, está no centro
das suas atenções. Tanto é assim que, na primeira linha de The Spirit of Utopia (Geist der
Utopie), Bloch (2000, p. 7, tradução nossa) escreve: ―Eu estou por mim mesmo‖.10
Amplia a
questão em O Princípio Esperança: (BLOCH, 2005, p. 13) ―Quem somos? De onde viemos?
Para onde vamos? Que esperamos? O que nos espera?‖ E no autobiográfico Traces (Spuren),
10
―I am by my self‖.
25
também nas linhas iniciais‖, assinala: ―Eu sou. Mas eu não estou em possessão de mim
mesmo. Tal é a origem do nosso futuro‖ (BLOCH, 1968, p. 7, tradução nossa).11
Todas as referências ao futuro, em Bloch (2005), mesmo antes de ser marxista, têm
como propósito básico libertar a humanidade do espartilho da dominação capitalista e
burguesa. A chave da sua filosofia da história e das distinções entre a utopia concreta e as
utopias abstratas, segundo Raulet (1986, p. 270), estava na recriação do sistema produtivo,
reconhecendo, a partir da teoria de Marx, a contradição entre o desejo do homem e a sua
prática. Assim, justificava suas críticas ao capitalismo liberal, a toda e qualquer tentativa de
secularização de Marx e do seu próprio pensamento utópico, o que equivale dizer que
entendia o mundo de forma diversa de Habermas, Deleuze, Guattari e Baudrillard.12
Münster
(1993, p. 82), que é um dos mais conhecidos biógrafos de Bloch, retrata a ―intenção primeira
e fundamental‖ da filosofia blochiana:
Revelar e descobrir a dialética que existe entre uma subjetividade criadora
que ultrapassa seus limites interiores e um elemento exterior, um ‗ao-redor-
de nós‘, que está se aproximando do ‗Eu sou‘. O ‗Eu solitário‘ do mundo da
alienação, do mundo burguês, transformar-se em ‗nós‘, no sujeito coletivo
de uma humanidade liberada, emancipada, voltada à sua própria identidade.
Bloch compreendia, no sentido marxista, o significado da emancipação humana e essa
foi a solução teórica de interpretação do mundo encontrada nas Teses sobre Feuerbach
(MARX; ENGELS, 2007). Para Marx, (1982, p. 243-5), a emancipação humana dependia da
crìtica ―inclemente‖ da sociedade vigente e na procura ―humanista‖ de abolir o interesse
privado em favor do comunismo. O motivo seria uma exigência da razão que sempre existiu:
fazer surgir ―o homem verdadeiro‖, mensageiro da ―verdade social‖ em oposição ao homem
do Estado político e da religião.
11
―Je suis. Mais je ne suis pas en possession de moi-même. Telle est l'origine de notre devenir‖.
12
Jürgen Habermas, crítico tenaz do positivismo, do tecnicismo e cientificismo, renunciou ao marxismo e
fundamenta sua obra na defesa da existência de uma esfera pública, na qual os cidadãos, livres de domínio
político, podem expor idéias e discutí-las. Dedica especial atenção ao Direito e às ações comunicativas, O que
seria o mesmo que associá-lo à hermenêutica jurídica, parte da ciência jurídica que diz respeito ao sistema de
regras para a interpretação das leis (ou normas em geral). A princípio pode-se dizer que a ação comunicativa
é a expressão da validade e eficácia do Direito. Gilles Deleuze e Félix Guattari, escreveram um livro, O que é
filosofia? em que a filosofia revolucionária de Marx e Bloch é esquecida, fixando-se na identidade do
indivíduo para pensar e formular questões, conhecer a realidade, enfim, no diálogo entre a filosofia, a ciência,
as artes e a literatura. Um dos fundadores da revista Utopie, tradutor de Brecht, com formação na cultura
germânica, Jean Baudrillard ganhou evidência pela sua incisiva crítica à sociedade de consumo, à ciência
tradicional e concentrou sua filosofia no conceito de virtualidade do mundo aparente. O filme matriz tem
inspiração em uma das suas obras máximas, Simulacros e Simulação (1981).
26
A emancipação para Marx (1982, p. 345) seria o despertar de ―um sonho em relação a
si mesmo‖ que impede o homem de viver a sua própria ―filosofia crìtica‖ e concretizar suas
próprias ideias de futuro. A emancipação política se concretizaria no momento em que o
Estado e a religião deixassem de mediar as relações do homem e da sua liberdade. Quanto
menciona emancipação política, Bloch (2005) refere-se à elevação do homem, não apenas em
relação à propriedade privada, mas aos liames culturais que possam inibir a sua
universalização.
Mas o sistema filosófico de Bloch ganha dimensões também psicanalíticas com a
categoria do ainda-não-consciente e, antes de chegar a Freud, reuniu vasto elenco de filósofos
que dialogaram com a história no decorrer do tempo. Entre eles, pode-se citar Platão,
Aristóteles, Agostinho, Avicenna, Gioacchino di Fiori, Münzer, Leibniz, Kant, Schelling,
Hegel, Marx, Lukács e, sem rodeios, pode-se acrescentar Benjamin e Marcuse. Isto sem
deixar de citar os utopistas Thomas More, Campanella e Bacon a Owen, Fourier e Saint-
Simon.
O PRINCÍPIO DA AÇÃO: A UTOPIA CONCRETA
A palavra não serve apenas à arte verbal, mas também à comunicação em
consonância com a verdade.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 208)
Avesso ao pensamento ossificado das classes médias, em que a palavra reflete mais
uma bela aparência do que a verdade, Bloch encarnava o estilo erudito, característico do
Bildungsbürgertum, refinada geração de intelectuais de formação clássica e liberal. Com a
mesma agudeza com que se refere a Shakespeare, Nietzsche, Hölderlin, Goethe e Brecht, para
alicerçar reflexões, buscava fontes de inspiração nos contos dos irmãos Grimm, nos romances
de Sinclair Lewis, Upton Sinclair, Edgar Allan Poe, nos contos nada infantis de Hans
Christian Andersen, e remonta à Antiguidade grega e romana, para propagar o sentimento de
antecipação utópica.
Se Marx procurou apreender o homem pela raiz do trabalho, Bloch procurou, sem
negligenciar Marx, apreender o homem pela raiz da utopia concreta e das suas dificuldades de
levá-las à prática. Se Marx concebeu a filosofia social da sociedade industrial, Bloch, a partir
27
de Marx, concebeu a filosofia social do futuro, ambas, também, de difícil realização por
envolver a identificação da verdade como processo dialético. Essas dificuldades foram
rompidas, pela primeira vez, com a Revolução Russa, que trouxe a filosofia de esquerda da
penumbra do fracasso contínuo, para as luzes do êxito e teve o mérito de dar liberdade ao
pensamento de negação do capitalismo. Uma possibilidade, vincada por muitos reveses, como
aconteceu com a esquerda na Alemanha, mas que deu origem à pluralidade dos tempos
modernos.
A comparação com Schelling, feita por Habermas (1987), ocorreu quando Bloch
recomeçava a vida na Alemanha Ocidental, depois de enfrentar os dramas das duas guerras
mundiais e escrever O Princípio Esperança, ponto culminante da sua obra. Elaborado durante
os anos de exílio, nos Estados Unidos, entre 1938 e 1947, e revisto entre 1953 e 1959, o
primeiro volume circulou na Alemanha Oriental, em 1954, com tiragem reduzida. Os dois
últimos volumes foram publicados quando o autor já vivia na antiga Alemanha Ocidental.
Os três livros reúnem 1.372 páginas, 55 capítulos, sendo a divisão em três volumes
uma recriação do método hegeliano de se interrogar quanto à subjetividade, à objetividade e
ao espírito absoluto. Bloch revela-se aberto ao entendimento do homem e a suas contradições,
fosse no mundo capitalista ou no mundo socialista, mas com a esperança de que o homem
seja capaz de negar a imobilidade.
Schelling (2012, p. 227-8), como Bloch, foi um filosofo de múltiplos saberes e que
considerava o homem como ―fundamento imortal da vida‖, ―princìpio da natureza divina‖ e
da ―vontade divina‖, em cuja crença estava não apenas a ―força‖ e ―poder‖ da eternidade, mas
o ―começo da sabedoria‖. A peculiaridade objetiva e enigmática do seu pensamento, que
Bloch absorveu e atualizou, pode ser expressa nesta frase: ―O que é passado é sabido, o que é
presente é conhecido, o que está por vir é pressentido‖ (SCHELLING, 2012, p. 23, tradução
nossa).13
Mas o ponto maior de identidade é que Schelling, em toda a sua obra, de Ideias para
uma Filosofia da Natureza (que começa com a frase ―A filosofia é, do começo ao fim, uma
obra de liberdade‖), ao Sistema de Idealismo Transcendental (―A liberdade é o princìpio que
sustenta todas as coisas‖), Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana
e As Eras do Mundo, está sempre buscando a ―liberdade e a estrutura em convincente filosofia
13
―Ce qui est passé est su, ce qui est présent est connu, ce qui est a venir est pressenti‖.
28
do pós-iluminismo‖.14
Em Les Âges du Monde (2012), Schelling compara a liberdade a Deus
e se pergunta: se não for assim, de onde vem a liberdade?
Por trás da concepção do ―Schelling Marxista‖, formulada não sem refinada ironia
(pelo que Habermas considerava como excessivo utopismo de Bloch), encontram-se o
reconhecimento da persistente atividade filosófica de Bloch em defesa da liberdade, também,
das vastas críticas e incompreensões que acompanharam o seu pensamento. Se deixarmos de
lado o aspecto irônico da comparação, Schelling (2012, p. 170), aquele de Les Âges du Mundo
(Die Weltalter), empolgou Bloch pelo empenho com que se dedicou à integração do homem
com a natureza e pela ideia de ―eterna liberdade‖ que seria o fundamento da própria
necessidade.
Bloch considera o homem, como resume Schelling citado por Münster (1993, p. 82),
―o ápice da natureza e da história‖, embora seja esse mesmo homem ―a coisa mais
incompreensìvel da história‖. No terreno da comparação de Habermas (1987), Schelling
percebia, na natureza, o elo original da vontade dialética do homem no rumo do progresso,
enquanto Bloch teria percorrido a mesma estrada pela visão da utopia como medida de
potência e potencialidades criadoras.
Tanto Schelling como Bloch revalorizaram o ―fundo escuro‖ ou o ―fundo tenebroso‖
da natureza e do homem, respectivamente, para alcançar impulso de potências imanentes,
com a diferença de que Bloch encontra, no conceito de processo, a luz para a ontologia do
ainda-não-ser a procura do aperfeiçoamento do homem. Na análise de Münster, Schelling
inspira-se no conceito aristotélico de potência como dynameion, um horizonte em aberto, e
Bloch converte, para as categorias de possibilidade, ―o ser-em-possibilidade‖, que comporta,
em si mesmo, a antecipação de um futuro, ―ser-para-o-futuro‖ (MÜNSTER, 1993, p. 83).
Foi Schelling, junto com Leibniz, inspirador dos conceitos blochianos do ―mundo em
processo‖ e ―tendência‖, além do conceito do ―ainda-não-ser‖, que fazem parte do Capìtulo I
de O Princípio Esperança (BLOCH, 2005). Segundo Münster (1997, p. 149), o mérito de
Schelling foi ―reatualizar a dimensão mìstica‖ da filosofia da Idade Média, em relação à
potência da natureza e do ser, mas a sua influência na obra de Bloch jamais teve o mesmo
peso que Hegel e Marx. É possível, a julgar pela interpretação de Münster (1997), que a
associação de Bloch a Schelling, por Habermas, tenha suas razões na ontologia blochiana do
ainda-não-ser, guiada pela hipótese do ser-em-possibilidade. Corresponde, guardadas as
proporções, à filosofia schellieana da natureza.
14
Cf. As Origens do Inconsciente: – De Schelling a Freud – o Nascimento da Psique Moderna, de Matt Ffytche
(2014).
29
Contudo, foi graças ao estudo de Schelling que Bloch pôde se defender das acusações
de dirigentes da antiga República Democrática Alemã de que sua filosofia era mística. Essas
acusações, como as de ser ―revisionista‖, surgiram porque Bloch se tornou dissidente da então
RDA. O que ele procurou foi reativar a compreensão dos vínculos entre marxismo e a religião
e lançar nova interpretação sobre o papel de Thomas Münzer na revolução alemã.15
Isto
ganhou nitidez quando Bloch recorreu a Schelling para argumentar que a natureza é um valor
e que conteria ―modelos que ninguém ainda interpretou, ao passo que os da revelação escrita
há muito já foram consumados e interpretados‖ (BLOCH, 2006b, p. 427-8).
O homem estaria entre os modelos da natureza carentes de interpretação. Schelling
(2012) argumenta que não conhecemos outro Deus senão o deus vivente, o homem, e se
perguntava quem seria o homem, quais as conexões entre sua vida espiritual, a vida natural e
o mistério original da sua individualidade. Exatamente, como, por outras palavras, Bloch
(2005) se questiona sobre o sentido da vida e de suas contradições sob o capitalismo.
Schelling foi ao lado de Aristóteles, Leibniz, Kant, Hegel, Marx e Engels um dos
pensadores, além de Goethe, que influenciaram decisivamente a filosofia de Bloch. Deixando
Schelling à parte, Bloch, logo após a Revolução de Outubro, tomou o partido da criticada
filosofia de Hegel graças às suas afinidades como o marxismo e comparou a Fenomenologia
do Espírito (HEGEL, 1993), pelos seus ―horizontes amplos‖ ao Fausto de Goethe.
Naquela ocasião, Lênin também defendia Hegel e a atitude de Bloch foi considerada
uma tentativa de tirar da burguesia a herança de Hegel e trazê-la para o socialismo (PASTOR,
1986, p. 76). Com Schelling, foi diferente. O que estava em questão não eram os fundamentos
metafísicos, mas o próprio sistema filosófico de Bloch. Portanto, de nada adiantou Bloch
tentar associar o pensamento de Schelling às raízes do conteúdo material do mundo, como
não adiantou questionar o sentido natural do bem supremo e discutir filósofos, como
Paracelso e Jakob Böhme, entendendo que as forças religiosas e místicas impulsionam a
consciência revolucionária contra a desumanização capitalista.
15
Cf. Utopia, Messianismo e Apocalipse nas Primeiras Obras de Ernst Bloch, de Arno Münster. O autor
explica que mergulhou nas águas da Idade Média para encontrar a mística do igualitarismo no cristianismo
primitivo: ―Essa herança não pode ser comprimida em fórmulas históricas ou sociológicas, pois, no quadro
de um marxismo corretamente compreendido, marxistas e socialistas não deveriam ter presentes apenas as
leis mais simples do movimento do capital, de sua acumulação e de sua circulação, mas também os velhos
sonhos da humanidade que antecipam anseios autênticos de emancipação enraizados na história popular, os
‗sonhos para a frente‘, que, em certas circunstâncias, podem vir carregados com teor mìstico e religioso. Para
Bloch, a figura de Münzer marca um ponto de cruzamento, no qual confluem a expectativa messiânica
moderna, o anabatismo, o utopismo inspirado no comunismo da comunidade primitiva e um movimento de
sublevação social radical, que assumiu a forma material de violência‖ (MÜNSTER, 1997, p. 194-5).
30
O próprio espírito humanitário é o inimigo nato da desumanização: sim, do
fato do marxismo nada mais ser que a luta contra a desumanização, que
culmina no capitalismo até à sua completa anulação, resulta também e
contrário que o marxismo autêntico de acordo com a sua motivação, sua luta
de classes e seu teor final, nada é, nada pode ser e nada será além do espírito
humanitário. Sobretudo todas as turvações e todos os desvios ocorridos pelo
caminho só podem ser realmente criticados e até mesmo revolvidos dentro
do marxismo; pois ele é o único herdeiro daquilo que, na antiga burguesia
revolucionária, era intencionado em termos de humanidade. E através do
reconhecimento de que a sociedade de classes, em grau extremo a
capitalista, provoca todo o tipo de autoalienação, ele foi o único que avançou
até à raiz eliminável (BLOCH, 2006b, p. 444).
O que colocou Bloch na mira de muitas críticas, por parte da Alemanha Oriental e de
muitas tentativas de compreensão das suas teses até os dias atuais, foi a visão humanística do
marxismo, com ênfase ao elemento humano da revolução social, independente da ortodoxia
bolchevique. Bloch, segundo Pastor (1986, p. 81-5) foi criticado tanto pelo capitalismo, que
tentou secularizar sua doutrina marxista, como pelos países do Leste Europeu, que tentaram
atrelá-lo a uma leitura laica de visões religiosas e místicas anteriores a Marx, como se não
prestasse suficiente atenção aos Manuscritos Econômico-filosóficos de Marx e às bases
hermenêuticas das Teses sobre Feuerbach. Foi característico de Bloch ressaltar o primado da
prática sobre a teoria, diferentemente do ―Espìrito Absoluto‖ de Hegel que se revela sempre
idêntico a si mesmo.
Tanto havia dissonâncias que a ortodoxia bolchevique, além de persegui-lo antes dele
buscar exílio na Alemanha Ocidental, não dava atenção necessária às suas ideias e, ele, por
sua vez, desdenhava das ideias bolcheviques. Bloch (2005) revelava-se hostil ao pragmatismo
e ao praticismo socialista e criticava os bolcheviques por desejar aplicar a filosofia de Marx
sem superá-la. Considerava alienantes as coisas que se institucionalizavam e se tornavam
artificiais e encontrava a alienação não só no capitalismo – o dinheiro, o comércio e a
propriedade privada, o egoísmo –, mas igualmente na obscuridade do ―socialismo de Estado‖.
Quando, no alvorecer dos anos 1930, criticou a propaganda comunista por ser abstrata
e sem fundamento na realidade de operários, soldados e quanto à idealização do sujeito pelos
comunistas alemães, nos anos de ascensão do nazismo, não foi ouvido.16
Otimista quanto à
16
Cf. BLOCH, Ernst. On the Original History of the Third Reich. In: ______. Heritage of Our Times, 1991. p.
117-37. Nesse capítulo, Bloch trata da grande dificuldade de desalienação da esquerda alemã, que alimentou
entusiasmo ilusório quanto ao ―utópico‖ paraìso socialista da República de Weimar e não se deu conta da
força da propaganda nazista que reviveu, na figura da ―Grande Alemanha‖ (Gross Deutschland), o mítico
Frederico II, tido popularmente como o ―imperador perfeito‖. Hitler ocupou o espaço como reconstrutor da
Alemanha, e a esquerda perdeu-se na tarefa de organizar a frente popular, de laboriosa unificação - o que
demandava um tempo inexistente para educação dos militantes -, deixando espaço livre aos nazistas aliarem
o tempo mítico com ilusórias promessas sociais.
31
renovação do marxismo e disposto a defender a inter-relação entre o falar e o pensar para dar
corpo à realidade e aos conceitos de mudança, tentava mostrar que faltava contemporaneidade
à linguagem socialista. Ser contemporâneo seria motivar o povo a pensar para a frente, não
voltar-se para os velhos tempos, nem cultuar a hierarquia e a burocracia. A linguagem não se
tratava de simples uso de palavras ou de discursos, nem de fórmulas matemáticas, mas da
procura da expressão de ideias concretas, filosoficamente realistas.
A defesa do eclético movimento expressionista é um bom exemplo do sentido da
linguagem em Bloch e a percepção do novo em oposição à crise do mundo burguês que, para
ele, tinha sua maior evidência no fascismo. Não negava que o movimento, desde 1922,
contivesse ―sombras objetivamente arcaicas‖ de um anticapitalismo imaturo, mas, ao
contrário de Lukács, entendia que, no expressionismo como reação ao academicismo e uma
arte do tempo de crise, ―o sonho primordial‖ de mudança e a ―luz do futuro se fundem‖
(MÜNSTER, 1997, p. 173). Se abria aos desejos, dava voz ao sujeito que se movimenta na
realidade e continha ―uma carga altamente subjetiva, crìtica e revolucionária‖ (PASTOR,
1986, p. 55).
E, por mais contradições que o expressionismo pudesse ter, não ensombreciam a
dimensão utópica de expoentes como Klee, Kandisky e Chagal (BLOCH, 1991, p. 242). A
valorização do expressionismo por Bloch era explicada pelo seu interesse pelo moderno: a
pintura, o teatro, a técnica artística, a relação dialética entre a decadência e o surgimento do
novo, definição de um conceito revolucionário autenticamente materialista e revolucionário, à
margem da ortodoxia academicista (ZECCHI, 1978, p. 231-9). Foi procurá-lo nos
movimentos sociais revolucionários, representados pelo líder camponês Thomas Münzer.
Os mortos retornam, como num novo gesto, assim em significativo contexto,
portador de novas descobertas, e a compreendida História, formada sob o
influxo impulsionador das idéias revolucionárias, transformada e iluminada
em lenda, tornando-se uma função que não se perde, na plenitude dos seus
testemunhos, anunciados pela Revolução e o Apocalipse (BLOCH, 1973, p.
7).
Na interpretação de Pastor (1986, p. 57), Münzer é a tensão no rumo da sociedade sem
classes, rota dura e espinhosa, mas promissora quanto ao futuro. Representa o expressionismo
social na obra de Bloch e aponta para os debates, de 1935, em defesa da cultura, reação à
ascensão de Hitler. Luckás (que criticou a falta de conexão do movimento expressionista com
o povo e a falta de raízes históricas) e Bloch ficaram em lados opostos; Bloch interpreta o
movimento como busca do encontro com o ―eu‖, da autotranscendência, alimentando-se do
32
espírito do passado, em particular a arte gótica, a fé cristã e o socialismo marxista (PASTOR,
1986, p. 55).
A discussão foi emblemática por demarcar a distância entre o marxismo fechado e o
marxismo aberto ao novo e às mudanças determinadas pela juventude das diferentes épocas.
Movendo-se no terreno do materialismo dialético, Bloch recusava-se a vincular a realidade ao
pensamento puro e não se prendia ao que, aparentemente, possa parecer real. Investigava o
homem e seus conceitos, juízos e modos de pensar com as lentes da história e da natureza,
mas a essência de sua percepção estava em ultrapassar a realidade.
Em Das Materialismus-problem (1972), Bloch define o materialismo como a ―grande
filosofia‖ por encontrar a solução nas contradições, sem que o mundo seja visto como estático
(BLOCH, 1972, p. 134). Em Experimentum Mundi (1975), recorda o exemplo de César ao
atravessar o rio Rubicão para conquistar Roma, tal como registra a história, como exemplo da
incerteza quanto ao futuro de alguém que tinha rompido com o seu passado (BLOCH, 1975,
p. 11). Com isso, propunha-se a superar a lógica do juízo tradicional e analisá-lo como
processo imerso num sujeito que depende não do destino, mas da ação, que não depende de
um juízo, mas que virá a ser a mediação dialética de um juízo e de uma identidade nova.
A discussão em torno do expressionismo demonstra que o pensamento blochiano
transcende a realidade cotidiana. Supera o racionalismo e o idealismo. É teleológico e
dialético. Não é imanente apenas da consciência, mas de algo exterior a ela, traduzida pela
superestrutura e pela a tendência-latência dos acontecimentos. Não admite a passividade, mas
a dialética da atividade. Ante um acontecimento novo, como foi o expressionismo, Bloch não
aceitava as interpretações de que o espìrito do movimento era aquele de ser ―filho do
fascismo‖ (BLOCH, 1991, p. 246).
O tempo, a força mais antiga que se conhece e que preside a existência de todas as
coisas, para ele, é que determinaria a natureza do expressionismo, e este estava apenas
começando. O princípio da ação encontrou referência política na vigorosa oposição de Bloch
ao fascismo, à ―ortodoxia comunista‖ e na não coincidência entre os sonhos de ser do homem
e a superestrutura capitalista.
33
Formulado em outras palavras: todo possível que transcende o meramente
possível de ser pensado representa uma abertura em decorrência de uma base
condicionante ainda não completamente suficiente, ou seja, mais ou menos
insuficiente. Dispondo-se apenas de algumas, mas não de todas as
condicionantes, ainda não é possível deduzir do possível assim constituído o
real, razão pela qual é válido o antigo princípio escolástico: a posse ad esse
non valet consequentia (do poder-ser não decorre necessariamente o ser).
Mas, retornando ao próprio possível factual, de que se trata aqui, ele é
igualmente condicionalidade parcial, mais precisamente, contudo, apenas
conhecimento-reconhecimento parcialmente factual da condicionalidade
(BLOCH, 2005, p. 223).
Assim, Bloch demonstrava a distância que separa as premissas condicionantes do
conhecimento dedutivo, esquematicamente fechado, ―alheio ao mundo‖, do conhecimento
possível, aberto para a investigação e o reconhecimento da incompletude das manifestações
conhecidas (BLOCH, 2005, p. 226). Internas e externas, essas manifestações entrelaçam-se no
tempo e na história e indicam o que pode ser feito e o que pode ser transformado, isto é ―o
possìvel objetivo real‖ (BLOCH, 2005, p. 226).
DAS POSSIBILIDADES E DO MATERIALISMO DIALÉTICO
O homem é a possibilidade real de tudo o que ele tem sido na sua história e
principalmente de tudo o que ainda pode vir a ser no caso de um progresso
sem entraves.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 230)
A expressão ―possìvel real‖ supõe diferentes visões: uma, expressa por Heráclito, é a
contradição dentro das próprias coisas ou dentro do próprio sistema; outra, é a filosofia da
esperança de transformação do mundo que perpassa as expectativas das religiões, permeia
toda a Bíblia, abrange uma reação mista de ―temor, proteção, confiança‖, fundamenta o
―novum da felicidade‖ e se faz presente na metafìsica da ―vitalidade‖ (BLOCH, 2000, p. 198-
9). A sua origem, e também o seu agente realizador, segundo Bloch (2005), é a dialética da
inquietação, aquilo que Aristóteles, citado por Bloch (2005, p. 204), definiu como
―possibilidade real-objetiva da matéria‖ ou a matéria pelo ―sendo-conforme-a possibilidade‖
ou pelo ―sendo-na-medida-do-possível.
Hegel, também citado por Bloch (2005, p. 206-8) referia-se à ―dialética do processo‖ e
Marx definia como a teoria-práxis do desenvolvimento do mundo na ―direção à não-
34
alienação‖. O possìvel real, no dizer de Marx (1982, p. 776) é a ―expressão teórica de um
movimento‖ ou na interpretação de Goethe, ainda na citação de Bloch (2005, p. 220-1), ―a
atmosfera que envolve‖ tudo o que vive, tudo o que é real, um horizonte interior e exterior
que tem como pano de fundo a utopia. ―A possibilidade real envolve até o fim as tendências-
latências dialéticas abertas‖, é, na ―expressão profunda‖ de Aristóteles, ―enteléquia não
planificada‖ (BLOCH, 2005, p. 221).
Nessa concepção, estaria a oposição do materialismo marxista de Bloch do
materialismo anterior a Marx. A diferença entre a possibilidade de o homem construir a
sociedade sem classes da permanência da sociedade de classe estaria na dimensão da
atividade: se a ―Coruja de Minerva‖ voa à noite depois que a história se realiza, o homem
deveria agir durante o dia, à luz do sol, e ser ele o sujeito da própria história e das relações
sociais mais perfeitas. Pois, como ressalta Bloch (2005, p. 221) ―onde não se pode mais nada
e onde nada mais é possìvel, a vida parou‖.
A crítica ao pensamento de Bloch se repetiu com maior ou menor intensidade a
depender das posições que ele assumiu. Em 1938, quando se exilou nos Estados Unidos, em
Nova York, e enfrentou período de grande isolamento e dificuldades financeiras, sobreviveu
graças ao trabalho da sua mulher, Karola.17
Comunista, ela fazia serviços como garçonete em
bares e como assistente nos escritórios de arquitetura, enquanto o marido escrevia.
O cenário agravou-se, porque o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt
discriminou Bloch. Por considerar o filósofo partidário de Stalin, recusou-lhe trabalho e
confiança.18
Karola conquistou a cidadania americana, mas nunca se desvinculou da filiação
17
Bloch casou-se três vezes. A primeira, foi com Else von Stritzky (1883-1921). Escultora, segunda de 12
filhos de uma família rica da cidade russa de Riga, Bloch a conheceu em 1911 e se encantou pela sua
independência, não tendo ela exigido do jovem filósofo qualquer compromisso ou ―reciprocidade erótica‖
(BLOCH, 2011, p. 5). Casara-se em 1913 e, em carta a Lukács, a quem escrevia com ―brutal franqueza‖,
assegurava viver ―felicidade sem limites‖. Nos anos seguintes à morte de Else, Bloch escreveu um pequeno
diário sobre a vida do casal, comparando-a a uma melodia de Schubert, e sobre o sorriso de Else, que ―não
era desse mundo‖, a iluminar seus olhos azuis, abertos (BLOCH, 2011, p. 567). Além de Else, Bloch casou
mais duas vezes. A segunda mulher chamava-se Linda Oppenheimer. O terceiro casamento foi com Karola
Piotrkowska, com quem viveu até ao fim da vida. Arquiteta, engajou-se nas lutas antifascistas e,
posteriormente, nas brigadas internacionais durante a Guerra Civil Espanhola.
18
A atitude de Bloch ante o stalinismo não foi sempre clara: antes de se tornar crítico de Stalin, defendeu os
processos de Moscou nos anos 1936-7, não compreendeu a oposição trotskista na União Soviética contra
Stalin, nem o terror policial, além de ter sofrido críticas pela sua submissão ao Partido Comunista e à
República Democrática Alemã, nos primeiros anos, como professor da Universidade Karl Marx. A
insurreição húngara de outubro de 1956, com a prisão e deportação de Lukács o qual, durante uma semana,
fora ministro da educação do governo provisório, revela um novo Bloch: junto com intelectuais de esquerda
de toda a Europa protestou publicamente, manifestando seu ―desacordo com a repressão sangrenta aprovada
pela República Democrática Alemã e pelos dirigentes em Moscou‖ (MÜNSTER, 1993, p. 88). Em defesa de
Bloch, Furter (1974) argumenta que as ambiguidades do curso da história são tais que, muitas vezes, ―é
difìcil seguir o fio de Ariadne da autenticidade e da verdade‖, o que não impediu o filósofo de discernir, na
35
ao Partido Comunista Alemão, embora a militância fosse proibida na América para
estrangeiros. Aglutinava companheiros, fazia política antinazista e pró-comunista, com nome
falso, num país anticomunista. Bloch também conquistou a cidadania norte-americana, mas
nunca assimilou a cultura americana e a rejeitou com desdém.
As hostilidades contra Bloch recrudesceram, em escalas muito maiores, quando, em
1961, ele iniciou o último exílio na Alemanha Ocidental. De repente, aquele, que era
considerado o grande filósofo da Alemanha Oriental, passou a ser apontado como
revisionista. Vendo seus amigos serem presos, e as pessoas, temerosas da polícia secreta,
voltar-lhe as costas nas ruas, vendo-se impedido de ensinar por imposição da aposentadoria
que lhe proibiu a entrada na universidade e mesmo na biblioteca, descobriu-se sem futuro na
RDA. Estava em Bayreuth, na Alemanha Ocidental, quando decidiu escrever carta ao
presidente da Academia de Ciências da RDA, informando da sua decisão de não retornar.
Tinha 76 anos. A decisão de passar para o Ocidente começou a ser tomada nos dias
que se seguiram à revolta do operariado de Berlim, em 15 de junho de 1953, logo após a
morte de Stalin. Bloch limitou-se, ao contrário de Bertolt Brecht e da esposa Karola, a
defender a renovação do Partido Comunista. Brecht desafiou publicamente o partido. Karola
escreveu carta aos editores do jornal Neues Deutschland, condenando a ―falsa polìtica‖ dos
dirigentes partidários e defendendo a apuração das causas da revolta operária, que se devia
aos erros do Partido Comunista e não à ingerência da Alemanha Ocidental nos negócios
políticos da Alemanha Oriental, na tentativa de desestabilizar o regime.
Novos acontecimentos políticos viriam a ampliar a distância entre Bloch e o Partido
Comunista, precedidos pelas discussões em torno dos vínculos entre as liberdades públicas e
individuais e a filosofia marxista. Essa posição era claramente defendida por Bloch desde os
primeiros cursos de história da filosofia e pareceu reforçar-se com o Relatório Khrushchov,
com a publicação datada de fevereiro de 1956, após o XX Congresso do PCUS.
Foi decisiva também a insurreição húngara de outubro daquele mesmo ano, sufocada
pela República Democrática Alemã e por Moscou. Em Budapeste, 20 mil pessoas morreram.
Bloch protestou publicamente (MÜNSTER, 1993, p. 90). As mudanças no plano da liberdade,
apesar de tímidas, viriam de fato a ocorrer, mas muito adiante com Gorbachev e ao preço da
destruição do socialismo na União Soviética.19
―realidade bruta‖, os sinais que esclarecessem o presente mais profundo e significativo da sua época e
anunciassem o futuro (FURTER, 1974, p. 27-9).
19
Mikhail Gorbachev chegou ao poder, em 1985, como secretário-geral do Partido Comunista. Sua política de
abertura, a perestroika desintegrou a enorme URSS, com 15 repúblicas e 290 milhões de pessoas. A queda
36
A situação deteriorou-se. O nome de Bloch passou a figurar na lista negra da polícia
secreta, a Stasi, sob suspeita de atividades contrarrevolucionárias. Acusações: desvio
ideológico e revisionismo do materialismo histórico e dialético que logo passariam a ser
criticado, publicamente, pelos dirigentes do partido e do Estado (MÜNSTER, 2001b, p. 236-
52). A campanha difamatória culminaria com uma carta aberta dos dirigentes do Partido, em
18 de janeiro de 1957, dirigida a Bloch. Acusação: pretender ensinar a filosofia marxista e
formar pesquisadores com base em princípios não marxistas e não leninistas, a exemplo do
direito natural.
Quando obteve, com sua mulher, um visto de saída para assistir às apresentações de O
anel dos Nibelungos de Wagner, em Bayreuth, resolveu exilar-se. Soube pelos jornais, em 14
de agosto de 1961, que seria construído um muro de 155 quilômetros em Berlim, separando
as Alemanhas. No mesmo dia, seu filho, Jan Robert, ligou de Londres, confirmando sua
decisão de ―desconectar-se‖ da RDA.
Seu próximo destino foi ensinar em Tübingen, cidade universitária com 50 mil
habitantes, situada a 40 quilômetros ao sul de Stuttgart. O Ministério da Educação e Cultura
emitiu-lhe permissão especial para que ensinasse. Assim, admitido como professor visitante
por tempo indeterminado, tornou-se o exilado mais célebre da Alemanha Ocidental. Entre os
estudantes, que lotavam os seus cursos, passou a ser conhecido como o ―profeta marxista
desarmado‖ (MÜNSTER, 2001b, p. 277).
O MÉTODO E A ÉTICA PARA FRENTE
É a privação que concede força ao homem; quem tem de ajudar-se, ajuda.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 273)
Ernst Simon Bloch nasceu em 8 de junho de 1885, em Ludwigshafen, cidade industrial
com um grande porto, de onde ele saiu logo depois que deixou o Liceu, em julho de 1905, e
do Muro de Berlim e a reunificação alemã fizeram parte do ciclo de mudanças e levaram o jornal Der
Spiegel, duas décadas depois, a indagar: ―Mikhail Gorbachev foi o maior reformador do século 20? Ou ele
subiu ao cargo de líder do Partido Comunista, mais ou menos por acaso, apenas para causar o colapso da
União Soviética através de indecisão e medo?‖ (NEEF; SCHEPP, 2011). Disponível em:
<http://www.spiegel.de/international/world/the-mystery-of-mikhail-gorbachev-s-ambiguous-legacy-a-
781043-2.html>.
37
foi estudar filosofia na Universidade de Munique com o professor Theódor Lipps.20
Filho
único de um casal judeu, estreitamente pequeno-burguês, na infância, para fugir do pai, rígido
e sem ambições intelectuais, que rejeitava sua vocação para a filosofia, Bloch atravessava o
rio Reno para ler na biblioteca de Mannheim – cidade vizinha, sofisticada no cultivo da
elegância e da pureza aristocrática, de forte tradição cultural, que ficava na margem esquerda.
Bloch viveu até ao dia 4 de agosto de 1977. Sobrevivente de uma época trágica, que
desafiou o conceito iluminista de racionalidade humana, os funerais de Bloch foram
organizados na cidade de Tübingen, na Alemanha Ocidental, onde vivia exilado, com o
cortejo acompanhado por duas mil pessoas, em sua maioria, estudantes, cujo representante
destacou: ―Ernst Bloch continua a viver, não no balanço da indústria da consciência, não na
hipocrisia dos governantes, não na esperança pessoal, mas na esperança revolucionária‖
(MÜNSTER, 2001b, p. 369). Morreu o homem, ficou a herança genuinamente marxista da
utopia da totalidade humana.21
O seu método é a dialética materialista da transformação revolucionária, mas Bloch o
ampliou ao anexar o estilo do antigo colporteur, o vendedor de livros que ia de porta em porta
como uma biblioteca ambulante. Vivamente interessado pela metafísica, a música, a
psicologia e a teoria do conhecimento, concebe sua ―peculiar concepção filosófica do ainda-
não-consciente‖ em 1907, um ano antes de defender sua tese de doutoramento (PASTOR,
1986, p. 27).
A ênfase do conceito recai sobre a ampliação sucessiva dos temas, como faz com o
ainda-não-consciente: coloca o impulso (Trieb) na primeira linha das características do
20
Em setembro de 1906, mudou-se para a Universidade da pequena cidade de Würzbourg e inscreveu-se no
curso do professor Oswald Külpe, da escola neokantiana. Embora nutrisse admiração pela coragem ética e
política de Lipps, fundador da escola psicológica neokantiana, que protestou publicamente contra a cruel
repressão do regime czarista contra os revolucionários russos no ano de 1905, sentiu que a solidão de uma
cidade menor era mais propícia aos estudos do que em Munique, com seus teatros, cafés e cabarés, uma
espécie de Quartier Latin da Alemanha.
21
Totalidade foi um conceito persistente nas discussões teóricas das primeiras gerações de marxistas do
Ocidente, mobilizando Lukács, Karl Korsch, Antonio Gramsci, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno,
Herbert Marcuse, Leo Lowenthal, Walter Benjamin, Henri Lefebvre, Maurice Merleau-Ponty, Louis
Althusser e, evidentemente, Ernst Bloch. Envolveu marxistas ortodoxos e heterodoxos, leninistas, stalinistas,
trotskistas, idealistas e vicejou pela Europa, tendo como epicentro da comunicação, a New Left Review. No
centro do debate, encontravam-se os fundamentos filosóficos que determinam as relações entre a natureza e a
história. Mas, igualmente, a resiliência do capitalismo, o advento do fascismo, o impacto da psicanálise e de
Freud, além da Gestalt do estruturalismo. Convergiu para uma visão holística, não radical, mas sua influência
política tem sido escassa e pouco contribuiu para frear a desilusão com o comunismo. Como um pêndulo na
cultura marxista, a história do conceito, que tem Bloch como um dos seus fundadores, a partir da experiência
acumulada, projetar-se-á para o futuro e ―ainda não terminou‖ (JAY, 1984b, p. 20). Inclusive porque a
totalidade é parte recorrente e forte do discurso do Ocidente, estando associada aos conceitos de coerência e
ordem, mudança e fragmentação, consenso e comunidade, conflito e contradição. Com o marxismo, o
conceito discutido desde Aristóteles até à sociedade capitalista avançada, ganha nova dimensão social e
prática (JAY, 1984b, p. 21-80).
38
homem, salta para o não-ter (Nicht-Haben), referente a áreas da realidade que permanecem
inacessíveis, e chega ao não (Nicht), que não é o vazio, mas expressão da recriação. Fazia
frente ao processo regressivo com estrutura teórica que negava o que era já conhecido e se
situasse em dimensão mais radical e mais original que aquela de Hegel com o Espírito
Absoluto.
Com relação a Freud, rompeu limites na análise do inconsciente: considerava seus
ensinamentos relevantes, da mesma maneira do que ocorria com Hegel, mas desejava
investigar o inconsciente humano para a frente, não para trás. O ponto de referência era o
sonho acordado e o que nele se podia depreender quanto ao futuro. Sua proposta, segundo
Furter (1974, p. 90) era de que o homem lograsse transformar a ―agitação‖ dinâmica dos
impulsos em ―tendência‖ e identificasse a consciência com o processo, orientando o homem
para o trabalho dialético de crítica construtiva.
A imaginação, como no sonho acordado, teria o papel de abrir brechas na realidade,
explorar as possibilidades de mudança, introduzir o possível dialético no cotidiano. Assim, no
pensamento de Furter (1974, p. 116) é que a consciência antecipadora multiplicaria suas
frentes e o ainda-não iria se tornando realidade e, logo, outro ainda-não, e mais outro e mais
outros, no sentido contrário do niilismo que só atravessa do não ao nada. Dentro dessa
postura, é fundamental o papel do sonho acordado com relação ao sonho dormindo. Freud
defendia a preponderância do sonho dormindo, Bloch se posicionava de maneira inversa.
Na visão de Bloch (2005), um fio categorial puxa o outro, caracterizando a realidade
da matéria como processo e mediação, vendo o não como o ainda-não e o ser não como
tendente à aniquilação, mas como promessa e possibilidade. Para Bloch, o pensamento
utópico não se restringia a simples negação. Era a negação dialética do mundo existente, mas
o ainda-não-consciente que se projetava para o futuro. Nascia das contradições da verdade
oficial, institucionalizada.
A origem do homem existe formalmente, mas ainda não saltou para fora de si. É essa
incompletude que determina os processos históricos, mas que ainda não se situaram no ―ano
zero do inìcio do mundo‖ (BLOCH, 2005, p. 301-29). Bloch sente necessidade de ir além da
esperança na vontade de mudança e se volta para a investigação do que o homem tem dentro
dele e que pode implicar em ação objetiva quando tal dinamismo deixar de ser cego. Imagina
que, nas circunstâncias do despertar, os movimentos irão depender da consciência de si
mesmo, do homem individual e coletivo.
Por isso, Bloch (2006a) trilharia pela análise da utopia desde a Antiguidade e procurou
pensar para além do círculo do imediato das contingências. Referia-se à tirania inconsciente
39
dos valores somada à ideologia capitalista, que mesmo o homem revolucionário não as
percebia. Como agudamente percebe Pastor (1986), Bloch era um ―expressionista‖ que rompe
com o pensamento tradicional, volta-se para o sujeito que constrói a realidade e desenvolve
―aberto e prospectivo‖ sistema em que nada é considerado estranho na procura de levar o
homem a encontrar o seu ―eu‖ profundo (Selbsbegegnung).
Como colporteur, Bloch conta histórias. Histórias mágicas, como os contos de Grimm,
Mesinha-se-arruma, O asno de ouro e Porrete dentro do saco, em que a fantasia muda a
realidade e os fracos se tornam fortes, porque a mesa se arruma sozinha, o burro expele peças
de ouro e o porrete se torna uma arma mágica, serve para que o pobre, que se tornou rico,
sobreviva no mundo.
Conta histórias de Andersen, de Edgar Allan Poe e Kipling, também com a mágica
modelando a felicidade e a vida ideal nas lâmpadas de Aladim, nas suas terras imaginárias,
seus paìses das maravilhas, suas cidades misericordiosas ―onde o pobre descarrega o seu fardo
e o doente esquece o que é chorar‖. Mas sem que os personagens deixem de ser utópico-
sonhadores (BLOCH, 2006a, p. 346-53).
Remonta a tempos bem mais antigos que a Idade Média. Visita a arte do circo, com
tudo acontecendo à luz da iluminação, espetáculo que diverte, mas que não deixa de ser a
utopia popular da alegria; e conta histórias do romance popular, a colportagem, que denuncia
a ―velhacaria burguesa‖, mas que não deixa de falar de libertação. Eram castelos de ar, mas
castelos de ar sonhadores.
Conta histórias de sonhadores ambiciosos, de Ícaro a César, de Circe, Midas, Ceres a
Leonardo da Vinci. Histórias de jovens gênios, talentosos, que contam experiências luminosas
e criam os recipientes plenos de futuro, expressões de inquietação, de intuição e de incubação
da capacidade humana de realizá-las. Critica, e critica com veemência, os discursos que
desacreditam o homem. Condena o ceticismo, a doença conservadora, clarifica a possibilidade
de acesso ao futuro pela ação, celebra o agora do existente, o que se está realizando.
Viver significa de fato estar presente; não quer dizer apenas antes ou depois,
antegosto ou totalidade ―pós-gosto‖. Significa colher o dia, no sentido mais
simples e mais fundamental; significa assumir uma atitude concreta em
relação ao agora. Porém, pelo fato de nosso estar-presente mais próximo,
mais próprio, incessante, não ser tal coisa, nenhum homem vive realmente,
justamente por esse lado não (BLOCH, 2005, p. 288).
40
Bloch seguirá as pegadas de Goethe para chegar ao coração do mito de Pandora22
e de
Ulisses de Dante para se opor à repetição não dialética da volta a Ítaca de Ulisses de Homero.
Seguirá Marx, em particular as Teses sobre Feuerbach os Manuscritos Econômico-
Filosóficos de 1844 para anunciar: ―A humanidade socializada, aliada a uma natureza
mediada por ela, significa a reconstrução do mundo como pátria e como lar‖ (BLOCH, 2005,
p. 282). Impossível separar o método narrativo de Bloch do método marxista de clarificação
da luta de classes. Eles se influenciam e se interpenetram. São sujeito e objeto da confiança de
Bloch no homem revolucionário.
A estrada blochiana rumo ao materialismo dialético começa aos 15 anos, em 1900,
como ele registra em Traces (Spuren): ―O que se chama de Deus nada mais é do que a soma
infinita da matéria, da força e da razão (inconsciente)‖23
(BLOCH, 1968, p. 58, tradução
nossa). A consciência, a seus olhos, não passaria de uma iluminação do espaço vazio, como a
luz na noite, tendo atrás de si um dínamo obscuro.
As iluminações originais são aristotélicas e da esquerda aristotélica e têm sustentação
no conceito do ser-em-possibilidade. Surgem do interesse de Bloch pela teoria do
conhecimento na contraposição entre a sua forma passiva (Abbildlehre), que supera o
princípio de que a identidade é igual à consciência; e a forma ativa (Erzeugungstherie), que se
efetiva na teoria da produção. Ao reagrupar as Teses de número 5, 1 e 3 de Marx sobre
Feuerbach, concebe que o conceito de atividade, acentuado por Marx, na Tese 1, origina-se da
teoria idealista do conhecimento e, foi desenvolvida na era moderna burguesa, mas que isso
ocorre por exigência da mais-valia. Demócrito, o primeiro grande materialista, que deu o tom
da teoria do conhecimento até Marx, foi influenciado pela sociedade escravista que, na Grécia
Antiga, desconhecia o conceito de trabalho (BLOCH, 2005, p. 252).
Antes de Marx, Hegel, na Fenomenologia do Espírito, tratou seriamente a questão.
Segundo Marx, foi Hegel quem primeiro conseguiu captar o conceito epistemológico do
trabalho (BLOCH, 2005, p. 252). Mas o confronto entre o conhecimento realista e passivo
com o conhecimento ativo, idealista ou não, em Bloch, parte do aristotelismo e de sua
22
Cf. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (s/d). No Capítulo VII, O delírio(p. 31-7), o
personagem sonha que é levado por Pandora a uma viagem e, fascinado, percorre os flagelos da história,
inclusive o cativeiro dos hebreus, questiona o egoísmo humano e assiste ao desfilar dos séculos, num
―turbilhão‖, cada um trazendo a sua ―porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de
erro‖, na decifração da eternidade. Um cortejo que retrata o passo da vida e se transforma com a
regularidadecom a qual o calendário faz a história, mas que é sinônimo de esperança e mudança, como em
Bloch. A diferença é que Pandora surge no sonho dormindo, não no sonho acordado.
23
―Ce qu‘on appelait Dieu n‘était plus que la somme infinie de la matière, de la force et de la raison
(inconsciente)‖.
41
esquerda, com o conceito de matéria e o duplo sentido da dinâmica passivo-ativo, concebendo
ser simultaneamente ―possibilidade e potência‖ (BLOCH, 2008, p. 55; MÜNSTER, 2001a, p.
190).
Para Bloch (2006a), esse encontro inicial com o materialismo é parte da aproximação
de pensadores ativos, a exemplo de Avicenna e Münzer. Assim, a esquerda aristotélica é um
processo que chega a Marx e Lênin. Alimenta um comportamento não contemplativo e
fundamenta o elemento factual e estrutural dos acontecimentos. Converge, como Bloch
(2006b) chama a atenção, constantemente, para a interação entre a infraestrutura e a
superestrutura da sociedade, com a superestrutura criando condições para o modo de
produção dominante e mascarando contradições tanto na produção como na política e na
filosofia.
Colocada a filosofia blochiana na perspectiva de uma superestrutura nova, em que se
encontre um equilíbrio entre as forças de produção e as relações de produção e entre os
homens, pode-se compreender, como ressalta Bloch (2005, p. 290), porque o ―socialismo
necessita de teóricos para ativar o movimento de mudança e sair da zona de silêncio‖, surda à
música do existir incógnito, o aparentemente oculto, que ―impulsiona o conteúdo do próprio
existente‖. O ―existir incógnito‖ e o ―oculto‖ correspondem a coincidência, no mundo
burguês, da superestrutura com a ideologia da classe dominante que aspira ao poder, não à
valorização do trabalho e do homem.
Bloch (2005) argumenta que Aristóteles, mais do que o precursor do materialismo e da
esperança, foi o filósofo que primeiro pensou o homem como processo dinâmico e
possibilidade prática. Embora não pensasse na sua emancipação, em relação à sua autonomia
da sociedade de classes da Antiguidade, procurou dar substância à harmonia entre as
necessidades e a liberdade humana. Portanto, trouxe a filosofia para a realidade humana e a
reflexão em torno do mundo real. À semelhança de Marx, Aristóteles teria visto o homem
como a raiz do homem, mesmo tendo possuído escravos e visto a escravidão como necessária
ao mundo grego.
O próximo passo, na estrada do materialismo dialético, deu-se por meio da visão
anticapitalista do inìcio do século XX. Nasce da ―morte de Deus‖, ideia nietzschiana de livre
circulação à época da formação de Bloch. Essa crise metafísica, corolário do abandono do
mundo por Deus, esse ―desencantamento do mundo‖, empurrou Bloch para um ―misticismo
intelectual‖ influenciado por pensadores da Idade Média, como Eckhart, Böhme, Gioacchino
di Fiori, além da cabala (DESPOIX, 1986, p. 25).
Buscava preencher a lacuna entre o homem e Deus, sendo Deus a consciência interior
42
do homem que havia se dissipado e que deveria estar presente na ―experiência vivida‖, na
―filosofia‖, na experiência individual do encontro de si e do coletivo, no ―espìrito‖ e na
escatologia histórica (RAULET, 1986, p. 272-8). No ainda-não-consciente coexistem o
espírito renovador do marxismo e da psicanálise.
São múltiplos os liames conceituais que derivam desta conjugação: tendência latência,
pensar é ultrapassar, práxis, antecipação, função utópica, e a pátria humana. Em Hegel,24
Bloch encontra a essência da dialética e os postulados da unidade do homem com a natureza,
o que irá levá-lo aos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e às Teses sobre
Feuerbach.
Em Kant, Bloch depara-se com o paradigma ético, parte inerente da atividade humana
total e do casamento da humanidade, se vier a acontecer, com o futuro socialista. Sente-se
atraído, a ponto de citar Kant cerca de 37 vezes em O Princípio Esperança (outras 16 vezes
em The Spirit of Utopia e 17 vezes em Experimentum Mundi), pelo discurso moral da
igualdade, da dignidade da vida moral e pela desconfiança com que Kant trata a benevolência
e em oposição à boa vontade que estaria para o kantismo como a amizade esteve para o
aristotelismo. Mas a sua ética está longe de ser kantiana.
Bloch não é um defensor do iluminismo liberal, como foi Kant, e questiona os ideais
românticos da burguesia, considerando-os conformistas e sem vínculos com os ideais
comunitários. Ele considera o ―imperativo categórico‖ algo ―puro‖, mas coberto por uma
máscara ―inamistosa‖ que faz ―um rosto tão bonito‖ assumir uma ―aparência tão sevara‖
(BLOCH, 2006a, p. 421-2). Referia-se à formalidade do dever, sem o conteúdo da prática:
―Por causa da miséria alemã, a razão prática de Kant carece de prática verdadeira, contudo,
por princìpio, ele aciona o alarme contra a espoliação‖ (BLOCH, 2006a, p. 421-2).
Não se concentra apenas na crítica ao imperativo categórico, mas não nega o valor de
Kant ao considerar o homem como fim, não como meio, o que para Bloch só pode ser
24
No livro Sujet-Objet: éclaircissements sur Hegel (Subjekt-Objekt: Erläuterungen zur Hegel), escrito nos
Estados Unidos, Bloch discute Hegel em profundidade. Considera-o construtor de um ―palácio bem
decorado‖ pela ciência e vasto saber, com a ―universalidade‖ impressa pela filosofia e não apenas ―uma vila
imperial‖ do conhecimento. Desde Aristóteles, no domìnio do espìrito, ninguém tinha escrito um conjunto de
obras tão abrangente, embora boa parte delas tivesse sido publicada pelos seus discípulos e amigos. Isso
impediu a clara compreensão da sua filosofia e colocou, inclusive, em questão, a autenticidade de seus
escritos. Interessa a Bloch o método dialético hegeliano revelador das contradições entre a burguesia com a
Restauração e a sua imobilidade. Critica Hegel por considerar que o logos vem do coração, da experiência e
da alma. Conhece-te a ti mesmo – a fórmula socrática expressa por Hegel como dimensões cósmicas, em
lugar de considerá-la como processo – é para Hegel o retrato da ação. Bloch não se alinha com o pensamento
da Restauração, quer dizer o ―eu‖ reacionário, expressão do individualismo burguês, esquivo ao ―eu
revolucionário, e proporcionou a relativa vitória das forças do antigo regime sobre os jacobinos de 1893 e
sobre o que a filosofia das luzes via com aversão na tradição aristocrático-burguesa‖ (BLOCH, 1977a, p. 36-
8).
43
alcançado na sociedade sem classes, porque, na sociedade burguesa, é cultivada a relação
senhor-servo: ―[...] nenhum proletário pode querer que a máxima do seu agir possa ser
pensada como princípio de uma legislação geral, que também inclua os capitalistas. Isso não
seria moralidade, mas traição a seus irmãos‖ (BLOCH, 2006a, p. 425).
Foi, porém, Kant, nos idos da formação de Bloch, que o despertou para a atitude
crítica e o motivou a condenar o neokantismo pela tentativa de excluir da filosofia as
tendências materialistas, as quais Bismark, no seu ódio ao comunismo, proibiu nas
universidades alemãs. A desconfiança intrínseca com relação à prática das ideias de Kant, fez
de Bloch, ao analisar as contradições do imperativo categórico, precursor daquilo que deve
presidir as relações humanas, a ética prática. Inviabiliza-se num mundo dominado pelo
capital, pela ilusão, pela falsificação e pela ―defraudação‖, que Hegel chamou de ―reino
animal intelectual‖, mas é viável num mundo de solidariedade das forças sociais (BLOCH,
2006a, p. 426).
Certamente, a condenação dos valores capitalistas deriva dessa rejeição ao kantismo
doutrinário que ele definia como ―fantasia objetiva‖ à época em que, aos 22 anos, formulou o
conceito de ―ainda-não-consciente‖ e, também, conceitos como ―ainda-não‖, ―latência‖,
―tendência‖ e ―utopia‖ (MÜNSTER, 1997, p. 59-60). Foi um processo crítico ao neokantismo
iniciado nas duas primeiras décadas do século 20, mas que, por meio de Kant, abriu-lhe os
olhos para a tese da antecipação do futuro.
Se a doutrinação do neokantismo fomentava o embate autoritário contra a
compreensão da história, Kant acendeu a fagulha do pensamento ético que une a consciência
contra a opressão. A esse respeito era necessária, para Bloch, uma ação prática, ampliando o
tema da ética para todos os homens, fazendo do amanhã e do mundo a medida a modelar pela
experiência.
Também supera a ética iluminista que conduz ao cognitivismo, o individualismo e o
universalismo (ROUANET, 1992, p. 149). Sim, a ética blochiana é cognitivista, porque
prescinde da religião como guia moral e, igualmente, é universalista, por entender que o
respeito à humanidade é um valor universal, mas não é individualista no que se relaciona a
colocar o homem acima da coletividade e das suas obrigações com relação à pólis. O homem
ético, além das obrigações comuns, não orientadas para a centralidade da autorrealização do
indivíduo, o hedonismo e o egoísmo, é aquele que sonha com o futuro.
Em Bloch, o indivíduo não é um átomo isolado, um ser soberano capaz de se sobrepor
às leis e estabelecer critérios soberanos do bem e do mal. O homem é o universal, mas o
procedimento de universalidade começa pela organização social. O processo não mais
44
conduziria à dicotomia entre a natureza e o costume, mas para um mundo em que o
eudemonismo fosse comum a todos e a eticidade fosse a consciência moral solidária.
Contra o individualismo, a ética discursiva, a ética normativa e a ética do
individualismo absoluto, a ética socialista da igualdade e do progresso coletivo, levada à
prática para criar uma sociedade humana. Uma filosofia ética de liberdade, com o propósito
de criar uma sociedade sem classes e criar condições para a existência do humano-universal.
Em Bloch (2006b), nada existe de ingênuo ou meramente sonhador na defesa desse caminho.
A começar que ele não é eurocêntrico, isto é, não pensa o mundo a partir da Europa, mas com
o horizonte universal. Conhecimento, compreensão e engajamento do filósofo na libertação
humana estão inter-relacionados, sendo mobilizador para a reflexão dialética sobre ―o ainda-
não-ser, sobre o Novo‖.25
Nada converge para a restauração repetitiva do mesmo. Tudo se
volta para a revolução e à construção do mundo sob o signo da liberdade, igualdade e
fraternidade.
Em The Spirit of Utopia (2000), em Traces (1968) e em O Princípio Esperança (2005;
2006a e 2006b), há persistente fascínio pela ética kantiana. Mas a ética blochiana inclina-se
para o que favorece a libertação do homem. É uma ética da ―ação desinteressada‖. Permeia a
ideia do apocalipse, que varreria do mundo o capitalismo e faria o homem despertar para a
―mediocridade‖ imposta por ―medìocre‖, que é o pensar apenas em si mesmo (BLOCH, 2000,
p. 235).
Em Traces, Bloch (1968), ao demarcar as fronteiras do seu pensamento da ética de
Kant, compara o homem a uma criança que, no ventre da mãe, possui seus órgãos formados,
mas que ainda não desenvolveu habilidades morais. Volta ao tema em O Princípio Esperança
ao sublinhar que, no homem, ―o conteúdo da esperança ainda é menor que o anseio‖
(BLOCH, 2006b, p. 462).
A sua utopia amplifica o limite da realidade até o ser possível. Os homens não são o
que são, mas o que podem ser. A práxis e a ética não são zonas autônomas. Estão interligadas
pela vontade de mudança. Altera-se, então, por completo, o princípio ético burguês: ética é
transformação. Seu paradigma inicial pode se assentar na ética da responsabilidade kantiana,
mas se desenvolve na ética de um mundo novo, um homem novo. É uma ética que alargaria o
mundo humano para a luz e faria a vida coincidir com a imanência humanística no sentido
25
Cf. Marxismo e Libertação de Antonio Rufino Vieira (2010, p. 112), no que se refere aos vínculos do
pensamento blochiano e à Filosofia de Libertação latino-americana. ―A superação da alienação é base real
para que o homem se realize enquanto liberdade. Como o conceito de homem não é abstrato, mas concreto,
ele aplica-se diretamente às classes sociais, de modo especial àquelas que têm o seu ser negado, subsumido
pelo capital dependente. A Filosofia, nos países dominados, portanto, é chamada para outro compromisso,
exigindo de si um novo estatuto epistemológico, uma nova atitude polìtica, um novo conceito de homem‖.
45
―radicalmente progressista‖, tornando ―o desenvolvimento da riqueza da natureza humana
como fim em si mesmo‖ (BLOCH, 2006b, p. 372).
A sua reorganização das Teses de Marx sobre Feuerbach tem essa perspectiva. Na
Tese 2, o pensamento escapa da ―generalidade‖ e da ―abstração‖ para se fixar nas relações
entre teoria e prática, o que lembra, como ressalta Bloch, os estoicos, que tinham a lógica
como ―mero muro, a fìsica como mera árvore e a ética como fruta‖ (BLOCH, 2005, p. 265).
O ato de pensar e agir incentiva o homem a transformar o mundo (Tese 2) e fazer da ética o
cerne dessa transformação.
Além da riqueza interior do homem como fim, não como meio, a descoberta de Kant,
por Bloch, ocorre na Universidade de Würzbourg, onde, por dois anos, Bloch estudou
profundamente Kant e a epistemologia pós e neokantiana.26
Isto o impulsionou à ‖esperança
ativa, distinta de toda a confiança cega e passiva no futuro‖ (MÜNSTER, 2001b, p. 278).
É com a disposição de intervir no mundo que Bloch propõe uma ética revolucionária,
tema que, por estranho que possa parecer, encontra-se ―ausente do pensamento filosófico
contemporâneo e também do marxismo‖ (tradução nossa)27
mas presente na ―dimensão ética
dos anos 1920‖ e nos ―últimos escritos de Rosa Luxemburgo‖, em que se encontram
colocadas as palavras ―ideal‖ e ―socialismo‖ (PALMIER, 1986, p. 262).
A ética, em Bloch (2006a), é a ética do repensar da religião, da tecnologia, das
relações de produção e do repensar do próprio homem. Não comporta ilusões. Não é uma
ética normativa. Desenrola-se nas categorias do ainda-não-consciente, da totalidade do ser e
no pressuposto filosófico do mundo como processo. É a ética que associa a negação de Deus e
do destino à autodeterminação humana e ao futuro. Floresce na ―corrente quente‖ do espìrito
revolucionário. É uma escolha, tendo como objetivo final a felicidade humana e a convivência
coletiva. Fundamenta-se na categoria da possibilidade. Envolve a dialética do ainda-não e o
entusiasmo do dever-ser. Explica a simpatia de Bloch pelo romantismo revolucionário e pelo
poder dialético da Utopia de More. Completa-se com a totalidade do ser e a conexão entre
todas as coisas.
26
Nas universidades alemãs, entre 1870 e 1914, predominava o neokantismo e o pensamento oficial
representado por Hegel. Também predominava a influência de Nietzsche, além da mística alemã de Jacob
Boehme e Eckhart de Hochheim, mais conhecido como mestre Eckhart (MÜNSTER, 1993, p. 55-6). Na
Universidade, o tema da tese de Bloch, defendida em 1908, foi Heinrich Rickert e o problema da
epistemologia moderna – Estudos Críticos sobre Rickert e o Problema da Teoria Moderna do Conhecimento
(Kritische Erläutern Geb über Rickert und das Problem der Modernen Erkenntnis).
27
―Il est étrange de constater que ce thème est aujourd‘hui a peu présent de la philosophie contemporaine aussi
bien que du marxisme.‖
46
HUMANISMO E FILOSOFIA REVOLUCIONÁRIA
A filosofia marxista é a do futuro.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 19)
Foi pela estrada do materialismo dialético que Bloch chegou a Marx e à crítica da
metafísica do materialismo passivo. Ele é herdeiro de um tempo em que o socialismo era a
vanguarda. Na Europa, os revolucionários mantinham vivo, na lembrança, o massacre da
Comuna de Paris em 1871,28
ocorrido 14 anos antes do nascimento de Bloch e sete anos antes
da proibição por Bismark, de organizações socialdemocratas e revolucionárias. Lenin, por
influência da Comuna, ao formar o governo provisório de 1905, anunciou que pretendia
chegar ao poder e construir uma sociedade socialista moderna, de massas, pós-burguesa, pós-
capitalista. E não somente fazer uma aliança com a social-democracia russa.29
Nos seus anos de formação, o que era revolucionário, nas artes e na literatura, deveria
ser também na política, e a juventude escolhia deliberadamente a insegurança da pobreza à
segurança burguesa. A intelectualidade tomava partido do movimento operário, em ascensão,
e abriam-se horizontes para a esquerda, antes relativamente marginal, de tendência anarquista
ou sindicalista. Foi nessa atmosfera em que Bloch abraçou a filosofia da esperança.
Nas décadas seguintes, não se deixaria abater pelos reveses do socialismo. Também,
escapou da tentação original do messianismo e do misticismo. Sua utopia tornou-se
materialista. Nada desprezou do humano, com exceção da total recusa do niilismo. Recorreria
às utopias, assim como ao estoicismo e ao cristianismo, para discutir o sentido da vida e
projetar uma nova ordem em que a liberdade e a juventude dos tempos dialoguem, se
encontrem na ontologia humana. Localizava, no materialismo dialético, o eixo da
compreensão e da antecipação do mundo a partir de si mesmo. Considerava-o como o zênite
da filosofia política alemã, mas se perguntava: se o homem é uma incógnita, como poderia
prevalecer a objetividade?
28
A comuna prolongou-se de 2 de setembro de 1870 a 28 de maio de 1871. Ao menos 40 mil pessoas, entre
homens, mulheres e crianças, ao final, foram detidos e jogados em prisões e fortes parisienses. Houve 13.450
condenações. Na ―Semana Sangrenta‖, a última da revolução, Paris foi incendiada, 20 mil parisienses
morreram, entre eles, 17 mil executados. A feroz repressão foi ordenada pelo presidente Adolphe Thiers
(LÖWY, 2009b, p. 24-35).
29
Fundado em 1898, o Partido Operário Social Democrata Russo, baseado na teoria revolucionária de Marx e
Engels, dividiu-se nas facções inconciliáveis Bolcheviques (maioria) e Mencheviques (minoria). Lenin, que
em 1902 publicou suas teses em Que Fazer? estava no centro da divisão. Almejava ir além de reivindicações
salariais e jornadas de trabalho, com a revolução operária.
47
A essa questão, ele responde com a esperança no homem. Bloch (2006b) divide os
pensadores em duas grandes famílias: perecíveis e imperecíveis. Os pensadores perecíveis,
com suas ideias coercitivas e disfarçadas com o falso véu da universalidade, decalcam a face
bolorenta da morte e dos interesses de classe, recorrendo ao medo. Os pensadores
imperecìveis ―indicaram para o maravilhoso‖ (BLOCH, 2006b, p. 496). Não julgam a utopia
pelo seu grau de irrealismo, mas pela sua capacidade de negar a realidade e despertar
entusiasmo. Os pensadores imperecíveis diferem da ideologia, porque não constroem ilusões,
mas a esperança de futuro.
A antecipação utópico-concreta não se encontra, portanto, na reforma do capitalismo,
nem na aceitação sem crítica da ideia marxista. Está na noção de processo e mediação, no
controle das pulsões humanas negativas e na orientação para o desabrochar do espírito, está
no sonhar acordado no fim de uma era, a capitalista, e o início de outra, socialista despida de
mistificações, manipulações e dominação.
O futuro é enigmático? Sim. Mas a tendência-latência do despertar socialista também
é real. Ao contrário dos marxistas tradicionais, Bloch (2005) resgata o pensamento utópico e
vê em Marx um pensamento aberto à crítica e à práxis renovadora. Utopia, práxis e renovação
fazem parte, para Bloch, de uma mesma dialética hegeliana-marxista, de um princípio de
antecipação do futuro.
Como assinala Münster (1997, p. 150), o caminho de Bloch para a filosofia marxista é
o mesmo percorrido por Lukács, Lefebvre ou Althusser, ―apesar do desgaste do dogmatismo e
do estatismo‖, o caminho que conduz aos fundamentos filosóficos, a bases teóricas novas,
quer dizer: ao homem que tem esperança, que quer transformar o mundo, com as
potencialidades imanentes da natureza, em um planeta habitável.
Sob o prisma do marxismo humanista e dialético, o prefácio de O Princípio Esperança
é explicativo: Bloch (2005) critica o ―marxismo ortodoxo‖, critica a filosofia por não se
interessar pela utopia e critica, ainda, a ausência de futuro que separa o plano do pensamento
do plano da prática. Se o homem contém obscuridade, é necessário, na teoria filosófica de
Bloch, tentar compreender o porque das suas ações e o porque dessa obscuridade permanecer
a permeá-lo.
Isso explicaria o sentido da filosofia marxista e a emergência de Marx como precursor
do futuro a ser resgatado: ―A filosofia terá consciência do amanhã, tomará partido do futuro,
terá ciência da esperança. Do contrário, não terá mais saber‖ (BLOCH, 2005, p. 17). Como
não há verdades eternas sobre os homens e suas ações, como as ideias e as atitudes não são
isoladas da superestrutura, fica evidente que a filosofia precisa mudar. Se a filosofia muda,
48
muda também a superestrutura, a ideologia dominante e a institucionalização da vida que é a
própria alienação.
O SOCIALISMO COMO SISTEMA PREFERIDO DO HOMEM
Toda meta, atingível, atingível ou não atingível, delirante ou subjetivamente
sensata, precisa nascer primeiro no espírito.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 164)
O Princípio Esperança, na interpretação de Furter (1974), nasce da necessidade de
aperfeiçoar o saber revolucionário. Foi o ―fio de Ariadne‖ que Bloch encontrou para alertar
quanto à possibilidade do ressurgimento do fascismo e do percurso a vencer para evitar sua
repetição, não como ―simples petição de princìpio‖, mas como ―mola‖ ou ―espiral‖ que possa
reanimar o passado e orientar o presente (FURTER, 1974, p. 66-7). Seria como chamar os
vivos para uma nova vida. O que ontem não foi concretizado, a exemplo da revolta
camponesa, liderada por Münzer, hoje poderia acontecer, na sociedade de massa, se os
homens mobilizarem todas as suas forças (FURTER, 1974, p. 194-5).
A procura desse saber, por Ernst Bloch (2005), estendeu-se à psicanálise pela
necessidade de despertar o homem para o socialismo. Separando os sonhos diurnos das
pequenas fantasias cotidianas e das ilusões, fossem elas tuteladas pela burguesia ou nascidas
no interior do próprio homem, confiava na possibilidade do homem vir a sonhar com uma
vida melhor e com a rebeldia prometeica. ―Que os sonhos diurnos se tornem ainda mais
plenos, o que significa que eles se enriquecem justamente com o olhar sóbrio – não no sentido
da obstinação, mas sim no de se tornar lúcido‖ (BLOCH, 2005, p. 14).
Bloch também descobriu Freud e desenvolveu os conceitos de ―inconsciente‖ e
―ainda-não-consciente‖ nos primeiros tempos da amizade com Lukács e os colóquios de
Georg Simmel. Conhecia o conceito de ―presente vivido‖, originário dos textos filosófico-
religiosos, de Kierkegaard, que em O Princípio Esperança alcançariam a maturidade com a
dialética da ―obscuridade‖ e ―luminosidade‖ humanas.
Aqui, também, é total a recusa em aceitar soluções parciais. Condena a psicanálise,
limitada ao universo burguês, por não contribuir com o despertar da rebeldia. Relaciona os
bens, inclusive o bem comum, à critica ao materialismo passivo ―por excluir de si mesmo a
49
história humana‖, ao passo que o materialismo histórico assim é denominado por não
descartar ―a finalidade da vontade‖ (BLOCH, 2006b, p. 412).
Bloch (2006b, p. 418) argumenta que a única coisa importante para o fim da alienação
―é a matéria latente-utópica do sujeito descoberto do mundo‖. Com a psicanálise, a tese
blochiana é similar: não é possível discutir o homem fora da sociedade e das relações de
produção. Há, no homem, um tesouro interior a ser desvendado, e esse tesouro a classe
dominante ignora ao transmutar o homem em mercadoria e ao absolutizar a ―vitrine
iluminada‖ da ilusão (BLOCH, 2005, p. 331-3).
A questão da psicanálise é crucial para Bloch, porque está ligada a um tipo de sonho
peculiar, o sonho acordado, mas que é sufocado pelo sonho desejante das vitrines abarrotadas
de mercadorias, pelos ―chamarizes‖ da publicidade e pelo engodo que são a ―aparência de
abundância‖ e reduzir a felicidade à imagem ―sedutora‖ de mercadorias em exposição. Assim
como a filosofia precisa ser revolucionária, em Bloch, a psicanálise também, dado ao papel do
despertar ainda-não-consciente na utopia.
Essas seriam as interrogações quanto à via revolucionária em Bloch. Pelo papel que
reserva na utopia concreta para Münzer e More, a violência revolucionária estaria na
linhagem utópica blochiana. Inclusive, porque, como Marx,30
Bloch (2006b) não considera o
movimento socialista e comunista violento, mas sim o capitalismo, guiando-se por estas
palavras de Brecht: ―O comunismo não é radical: radical é o capitalismo; o comunismo é o
meio-termo‖ (BLOCH, 2006b, p. 307).
As críticas que faz ao anarquismo, aos bolcheviques e pela condenação ao
voluntarismo nos volumes II e III de O Princípio Esperança (2006a; 2006b) na mesma trilha
aberta por Marx e Rosa Luxemburgo, além da ideia de que a utopia não precisa ser imediata,
mas concreta, são indicativas, porém, de que Bloch (2006a) caminha em outra direção.
Considera prioridade a consciência coletiva e o encontro do homem com a consciência, não a
violência sem alvo ou a impaciência.
A mudança deu-se quando ele ultrapassa a visão mística, alinhada com a visão do
apocalipse em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) (2000) e do misticismo russo de
Dostoiévski (2008) e caminhou para a dialética materialista. O Vor-Schein blochiano, essa
preocupação de desvendar o pré-aparente, de ver o futuro nas pequenas coisas, de nada
descurar, é o que distingue Bloch e lhe imprime atualidade. Ele quer desvendar o ainda-não-
consciente, ―a paisagem do desejo‖ da sociedade sem classes e de uma cultura ―autêntica‖ a
30
Cf. O Capital de Karl Marx (2008).
50
partir da cultura popular, sabedor de que a cultura capitalista é ―incapaz‖ de respeitar as
massas e de por limite às suas próprias ambições (ZIPES, 1986, p. 292-4).
É o que o leva a escrutinar os contos de fadas e o ―final feliz‖ como caminhos
dialéticos e afirmar contradições. São mediações concretas entre o que é ilusório e o que é
real, o que permite ao homem ter percepções diferentes já que o real e o ideal não coincidem.
São indicações de novas possibilidades de mudança dos costumes. Podem ser encontradas nas
ideias avançadas de Walter Benjamin (2006) (O Autor como Produtor) e na magia dos irmãos
Grimm, como em toda a herança cultural humanística, que precisa ser popularizada e inserida
na marcha do mundo. Aberta e de traços utópicos, às vezes, difíceis de ver, germinam no
ventre da cultura capitalista dominante.
As finalidades humanas estão, portanto, unidas numa mesma esperança, num mesmo
choque entre a obscuridade e a luminosidade e num mesmo despertar para a substância
prometeica. São afinidades da filosofia de Bloch com a filosofia de Marx, que se encontram
na disposição de dissipar as sombras que envolvem a vida do homem. E não se limitam a
diferenciar o homem da natureza pela sua capacidade de produzir ferramentas, mas por serem
igualados por meio do trabalho, da liberdade e do domínio do que diz respeito às necessidades
humanas, sem serem disfarçadas pelo desejo de lucro e pelas ideias ilusórias de que o
capitalismo é o efetivo sistema universal.
Foi a procura de uma nova visão do mundo, sem mitificações do homem, que fundiu a
trajetória pessoal de Bloch ao seu itinerário como singular filósofo marxista. Faltava, diante
das resistências do capitalismo, sempre a se repetir, a definição pelo homem consciente
daquilo que ele deve fazer para concretizá-la. Marx (1982) estabeleceu a relação entre a teoria
e a prática de um modo que uma se torna estéril sem a outra.
O pressuposto de Bloch (2006b) é favorecer esse movimento perpétuo, tendo como
alvo tornar o socialismo o sistema desejado pelos homens, ampliar sua prática, renovar sua
teoria. Romper com a relação formal e mecanicista entre sujeito e objeto, discutindo a
mediação histórica do homem e a realidade circundante. Tornar consciente a ontologia do
ainda-não-consciente e as categorias ontológicas do presente – sobretudo a tentação de voltar
ao passado, a totalidade humana e a possibilidade de olhar para a frente – são claramente
perceptíveis na utopia concreta.
Mas tornar a consciência socialista realidade, exige educar o homem para tornar-se
livre e, também, mobilizá-lo para mudar seus valores na prática. Como assinala Bloch (2005,
p. 28): ―O ser que condiciona a consciência, assim como a consciência que trabalha o ser,
compreendem-se em última instância somente a partir de onde e para onde tendem. A
51
essência não é o que foi, ao contrário: a essência mesma do mundo situa-se na linha de
frente‖.
52
CAPÍTULO I
DIALÉTICA DA UTOPIA CONCRETA: O HOMEM COMO SUJEITO DA
PRÁTICA TEÓRICA E MEDIADOR DA VIDA MELHOR
A verdadeira gênese não se situa no começo, mas no fim, e ela apenas
começará a acontecer quando a sociedade e a existência se tornarem
radicais, isto é, quando se apreenderem pela raiz. Porém, a raiz da história
é o ser humano trabalhador, produtor, que se remodela e ultrapassa as
condições dadas. Quando ele tiver apreendido a si mesmo e ao que é sem
alienação, surgirá, no mundo, algo que brilha para todos na infância e onde
ninguém ainda esteve: a pátria.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006, p. 462)
Em 1918, Ernst Bloch, em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie),31
situava o futuro
socialista como caminho para o pleno aperfeiçoamento do homem. Recorria à Idade Média, à
época gótica, para propagar o sentimento comunitário e despertar o homem à ação. No
capìtulo final, ―Karl Marx, Morte e Apocalipse”, concebe que as relações entre o interior e o
exterior do homem não encontrariam equilíbrio sem o apocalipse anticapitalista, símbolo do
fim do mundo burguês e nascimento do mundo socialista.
As noções de presente e futuro eram mediadas pelo conceito do ainda-não-consciente
(Noch-Nicht-Bewusste), destinado a despertar o homem para os desejos submersos da
consciência, as luzes do conhecimento real e aquilo que não estava claramente consciente nas
conexões entre a utopia concreta, pulsões, desejos, vontades, sonhos e, principalmente, os
sonhos despertos. Essa determinação de libertar o homem, fruto da face revolucionária da
filosofia alemã e do despertar de Bloch para a psicanálise o acompanharia por toda a vida e
influenciou toda a sua concepção utópica.
O que poderia emergir se o homem alcançasse o patamar de consciência jamais
conhecido e socialmente deixasse de adorar os falsos ídolos? Não se tratava de libertar-se dos
recalques, na terminologia freudiana, mas de resgatar um senso de realidade original, como,
por exemplo, a desalienação das pessoas procurando amar e ter amizade umas pelas outras em
31
O título é uma paródia de O Espírito das Leis de Montesquieu. Inicialmente, seria Musik und Apokalypse. A
música ocupa um terço do livro, republicado em versão revisada por Bloch em 1923. Em 1960, Herbert
Marcuse lembraria que Bloch influenciou sua geração pelo realismo dos conceitos. Adorno leu Geist der
Utopie no último ano escolar, ficou encantado pela ―fórmula mágica e proposição teórica‖ do trabalho
(GEOGHEGAN, 1996, p. 15-6).
53
lugar de adorar a Deus e o fetiche das mercadorias. O ainda-não-consciente confluiria para a
transformação humanística, sem empobrecimento quanto à antecipação utópica.
Em 1954, 36 anos depois do The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), em O Princípio
Esperança, Bloch voltou ao conceito do ainda-não-consciente, porém de maneira diferente.
Trazia agora observações minuciosas a respeito da consciência, da pré-consciência e da
realização humana, com a possibilidade definida como ―tudo o que encontra as condições
dadas em proporções suficientes‖ e a realidade atrelada ao ―tótum utópico‖, às conquistas
parciais e às condições de existência dominante (BLOCH, 2005, p. 203-4). Colocá-las na
mesma sincronia, pressupunha a não resignação à obscuridade. Nos desejos a serem
despertos, circulavam os sonhos acordados a serem exteriorizados.
O que caracteriza o amplo espaço de vida ainda aberta e incerta do ser
humano é a possibilidade do assim velejar em sonhos, que são possíveis
sonhos diurnos, muitas vezes, do tipo totalmente sem base na realidade. O
ser humano fabula desejos: é capaz disso e em si mesmo encontra material
suficiente, mesmo que nem sempre seja do melhor, do mais durável
(BLOCH, 2005, p. 194).
O homem, em Bloch, não se basta porque oculta sonhos não decifrados, que deveriam
ser objetos coletivos em direção ao futuro. Interpretando as correntes ―quente‖ e ―fria‖ da
análise marxista, entendia serem indispensáveis para a compreensão da engrenagem
capitalista, mas seria necessário tomar a dianteira. Se o mundo estava inconcluso era porque a
compreensão do homem também estava inconclusa. O marxismo desvendou as ideologias,
revelando as categorias superestruturais inerentes a diferentes épocas, tornando evidente que,
por ser também uma ideologia, no futuro, iria desaparecer.
A concretização do marxismo será, portanto, a história do seu ocaso. A exigência para
concretizá-lo ultrapassa a análise fria da realidade visível e se relaciona às correntes do
marxismo com o que o homem guarda no seu inconsciente de horizonte possível. Torna-se
premente, porque a dimensão da superestrutura não é estática e põe em relevo a necessidade
de claridade quanto à consciência, exige o rastrear, no passado, a presença da utopia, sem que
se rejeite, mecanicamente, toda a superestrutura da sociedade de classes. É o exercício da
dúvida que poderá, sem ceder ao economicismo ou ao historicismo, separar o que são
características utópicas de tendência e latência do que são fantasias utópicas.
54
Daí provém o forte recurso ao ser humano humilhado, escravizado,
abandonado, feito desprezível, daí provém o recurso ao proletariado como
ponto de transbordo para a emancipação. O alvo permanente sendo a
naturalização do ser humano, a humanização da natureza inerente a matérias
em desenvolvimento. A matéria derradeira ou o conteúdo do reino da
liberdade apenas se está acercando na construção do comunismo, que é o seu
único espaço, sendo que em lugar algum ela se faz presente. Isto é líquido e
certo. Todavia, igualmente líquido e certo é o fato de esse conteúdo se
encontrar no processo histórico e o marxismo representar a sua consciência
mais aguçada, a sua reflexão mais prática (BLOCH, 2005, p. 205).
Bloch (2005, p. 159) avaliava que a ideologia da classe dominante, embora não seja
referência na filosofia, nas ciências e nas artes, reproduz as ilusões e as aparências de maneira
continuada. Encoberta pelas ―névoas de uma má consciência interesseira‖, pode ser
identificada pelo idealismo revolucionário, mas sem o resfriamento dos ímpetos e
entusiasmos, o movimento revolucionário se voltaria ao jacobinismo, condenado por ele em
The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) (2000), sem unificar a totalidade das vontades pelo
método dialético (BLOCH, 2005, p. 152). Isso exigiria o aquecimento das análises em torno
do homem, mas sem se deixar enredar na cultura do interesse econômico ou da utopia
abstrata. Não se trata apenas das condições materiais de vida, mas da tendência ―humano-
materialista, materialista-humana‖ (BLOCH, 2005, p. 207).
Em vista disso, revestia-se de fundamental interesse que o marxismo ampliasse o
conceito de ser-em-possibilidade, limitado à classe operária, para envolver o sujeito
revolucionário, qualquer que fosse, que aspirasse à liberdade. Na medida em que a visão
totalizante se aperfeiçoasse, a coincidência entre utopia e ideal tenderia a ―nascer primeiro no
espìrito‖ da sociedade, despindo-a da ―má consciência‖ e do ―subconsciente arcaico‖. Não
regrediria ao passado, como a criança faz com o pai, mas se projetaria para a frente (BLOCH,
2005, p. 165). Seria o ―front da matéria, ou seja, da matéria para a frente‖, a mudança
evidente para o ―fim da autoalienação‖, a abertura materialista para a ―direção da liberdade‖
(BLOCH, 2005, p. 205).
Há ideais norteadores da vida correta fortemente contrastantes. Há uma
teoria de ponderação dos valores, uma teoria dos critérios do ideal,
ricamente nuançada, que vai dos sofistas e de Sócrates até Epicuro e o
estoicismo. Em Kant, o ideal aparece em todos os sentidos, tanto no da
pressão quanto no da unidade da orientação finalística e no da esperança.
Kant designa o próprio filósofo como um mestre do ideal e a filosofia como
uma instrução no ideal. Uma vez mais como pressão, como afronta, o ideal
aparece no imperativo categórico da lei moral: a dignidade do ser humano,
que exige respeito, nessa lei encontra-se em oposição a todas as pulsões
naturais (BLOCH, 2005, p. 166).
55
Como o ideal surge como esperança, quer dizer, o bem supremo da razão prática,
poderia ser também o atalho para o ainda-não-consciente. Há duas faces do realmente
possìvel, resumindo: a matéria ―sendo-conforme-a-possibilidade e a matéria ―sendo-em-
possibilidade‖. Na história, a sua origem estaria na possibilidade de apreensão da necessidade
de mudança pelo ser humano trabalhador; e na natureza se configuraria na dinâmica da
mudança com a humanização da natureza. A base dialética se assentaria na explosão da
―inquietação‖ (BLOCH, 2005, p. 202-6).
Logo, a categoria objetal ―possibilidade‖ revela-se também
predominantemente como aquilo que ela não pode ser por si mesma, mas
sim pela intervenção promotora dos seres humanos naquilo que ainda pode
ser mudado: como possível conceito de salvação. Ela revelou-se, em parte,
todavia, igualmente como possível conceito de desgraça, e isso justamente
devido ao poder-fazer-diferente, mas também devido ao poder-tornar-se-
diferente contido nele, que abre espaço, na mesma medida, para uma
guinada para o pior, conforme a precariedade que pode residir justamente na
mutabilidade, nesse caso, na instabilidade de uma situação dada. Essa
precariedade, como constitutivo negativo da possibilidade objetal, abrange
desde o acidente que pode ocorrer até a irrupção do inferno fascista, que
residia e ainda reside como possibilidade no último estágio do capitalismo
(BLOCH, 2005, p. 230).
Uma vez mais encontra-se em Bloch a distinção entre o caráter ―salvìfico‖ da
esperança e o caráter ―funesto‖ da mudança que, para deixar de ser precária, exigiria que a
finalidade socialista começasse a se tornar realidade. A mudança, compreendida como
vontade de poder-ser-diferente chamada de possibilidade, opera quando há possibilidade do
novo, oposto à contingencia negativa. Esta é a exigência para que a possibilidade real seja
encarada como real, que ―abarque simultaneamente o ventre e a fecundação, a vida e o
espírito, unidos na matéria, sendo que o ventre permanece fértil, a tendência-latência do que
realiter pode vir a ser não está terminado no substrato material‖ (BLOCH, 2005, p. 233). Esse
é, no entender de Bloch (2005, p. 234) a definição correta do dynámei ôn aristotélico, passível
de constante mudança, que repercute no materialismo dialético.
O sonho diurno favorece as possibilidades de mudança a níveis sem paralelo no sonho
noturno. Se no sonho noturno o inconsciente fala, mas precisa ser interpretado, o sonho
acordado é o próprio pensamento em ação, podendo evitar que o alvo se mantenha distante.
Exatamente, o equilíbrio da análise das correntes ―quente‖ e ―fria‖ do marxismo. Desse modo,
o marxismo do ―calor‖ adquire as feições da teoria-práxis, podendo levar o mundo para a não-
mais-alienação das possibilidades da sociedade sem classe e do trabalho livre. Possibilidades
reais da totalidade de criar, a partir do calor do entusiasmo, ―um tipo humano mais elevado do
56
que aquele que toma as coisas como são‖ (BLOCH, 2005, p. 219). Possibilidades que a
filosofia pode acolher como o ―rigor do conceito e a seriedade das associações‖ no sentido de
abrigar o homem e suas questões, mostrar a distância em que o homem se encontra do ser real
pleno, revelar as dimensões, sem relativismos, da imagem ativa da esperança (BLOCH, 2005,
p. 237-8).
1.1 ARISTOTELISMO DE ESQUERDA: O CÉU NA TERRA, A MATÉRIA EM
MOVIMENTO, O HOMEM COMO POSSIBILIDADE
Como poderiam ser diferentes as propriedades da matéria portadoras do
futuro? Não há verdadeiro realismo sem a verdadeira dimensão dessa
abertura.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 234)
As referências iniciais do materialismo, em Bloch (2008), estavam no diálogo com
Aristóteles e a esquerda aristotélica (Aristotelische Linke). Essa é essencialmente a abordagem
adotada em Avicenne et la gauche Aristotélicienne, obra em que Bloch discute a originalidade
do materialismo que viria a nascer na Idade Média, a partir do pensamento de Aristóteles e
converge para aquela que foi ―a convicção fundamental‖ do Iluminismo: se cultivar a razão, o
homem não precisaria de qualquer outra fé (BLOCH, 2008, p. 20).
A denominação de esquerda aristotélica nasce do fato de Avicena trazer o pensamento
materialista de Aristóteles para a Terra, contrariando a visão oficial da Igreja. A visão terrena
do ser-em-potência aristotélico, como forma (―causa final, forma final‖) é que, embora parece
ser uma expressão não contemporânea do medievo, fez, segundo Bloch (2008, p. 25), surgir a
ideia de esquerda. Concerne a ―influência da esquerda aristotélica sobre a anti-Igreja‖ no que
concerne à doutrina da criação, à teoria religiosa e ao espírito ativo do homem, que se
projetaria para os séculos XVII e XVIII (BLOCH, 2008, p. 43-53).
Foi Aristóteles quem definiu a ―matéria mecânica‖, inerte, resistente à transformação,
mas também foi quem elaborou o conceito de possibilidade-real-objetiva, que faz da
possibilidade de mudança uma ―tendência no seu percurso‖ (BLOCH, 2005, p. 204). Em
outros termos, Aristóteles considerou a matéria como ser-em-possiblidade (dynámei ôn), o ser
fecundo, origem das transformações do mundo. Mas Aristóteles definiu essa categoria
57
principal da sua filosofia como elemento passivo, vindo da sua forma não do interior da
matéria.
A mudança aconteceu com Avicenna32
que, na Idade Média, opunha-se ao
aristotelismo conservador de Tomás de Aquino. Considerando a matéria como universal e
dinâmica, vendo a matéria em possibilidade como a vontade criadora, Bloch (2005) entendeu
que o movimento era interior à matéria e não apenas fruto das circunstâncias. Avicenna e a
esquerda aristotélica defendiam que a sociedade, os comerciantes que percorriam o mundo e a
liberdade de pensamento eram os termômetros para verificar a extensão do confronto entre o
bem e o mal, o confronto entre o povo, os religiosos e a aristocracia islâmica (BLOCH, 2008,
p. 11-13). Com isso, recusavam o pensamento estático, recusa essa que só ganharia grande
dimensão muito depois, com a dialética real de Hegel, e pregavam o conceito categorial
―possibilidade‖ ―quase inteiramente em terra virgem‖ (BLOCH, 2005, p. 239).
Fugindo à concepção de que o homem existia para servir a Deus, Avicenna
desenvolveu ―materialismo original e vivo ao extremo‖, à margem do cristianismo, que
serviria de fonte ao Iluminismo (BLOCH, 2008, p. 9). Com Aristóteles, que cita quase tão
frequentemente quanto Goethe e Marx em O Princípio Esperança, Bloch encontra,
igualmente, Averróes e Avicèbron, renovadores do pensamento aristotélico. Um, Averróes,
por considerar que o homem não precisava de deus algum; o outro, Avicèbron, por divisar, na
matéria, categoria universal.
Entendia Avicenna que ―a mais alta encarnação do espìrito humano‖ não era o profeta
Maomé, mas Aristóteles, sendo que a iluminação do profeta não significa a iluminação
original ou razão e se confundia com as formas iniciais de educação dos mitos e parábolas
(BLOCH, 2008, p. 14). Bloch, além de Avicenna, absorve Aristóteles também na ideia da
possibilidade, ―não como abstração vazia da reflexão-em-si, e igualmente como um
movimento-em-si da realidade‖, uma realidade real, totalmente envolvida pela ―realidade já
constituìda‖ (BLOCH, 2005, p. 242).
Avicenna desejava intervir na gênese do futuro. Na visão de Bloch, Aristóteles,
contudo, já considerava que a luz, como a matéria, ―muda de cores efetivamente‖ e via
também a matéria em possibilidade que se conformaria de acordo com as condições do
32
Avicenna é o nome em latim de Abu Ali al-Husayn ibn Abd Allah Ibn Sina. Rica, a família iniciou-o nos
estudos de aritmética, geometria, lógica e astronomia. Nascido em 980, em Afshana, perto de Bukhara,
frequentou a Universidade de Bagdá, onde estudou filosofia e medicina, começou a carreira, como médico,
aos dezoito anos. Escreveu noventa textos, sendo o principal, Kitab al-Shifa, o livro da cura, tratado de
lógica, psicologia, física, matemática e metafísica. Foi médico-filósofo, não monge; naturalista, não um
teólogo e absorveu a liberdade de que desfrutava a sociedade árabe que, à época, corria a Europa para trocar
mercadorias. Viveu até 1037. Lutou contra a ortodoxia do clero e frequentou a sociedade Irmãos da Pureza,
erudita, fundada em 950, para repelir o misticismo, o ―ópio do povo‖ (BLOCH, 2008, p. 16).
58
percurso (BLOCH, 2008, p. 66). Não era passiva, mas o lugar de novas esperanças, pois era
determinada não pela ―matéria bruta‖ (a potencialidade), mas pela ―forma‖, a realidade (a
atualidade).
A transfusão feita pelo aristotelismo de esquerda foi a ativação dessa possibilidade,
que, mais tarde, influenciaria Leibniz (a matéria ―dotada de forte vitalidade‖), Schelling (a
matéria como natureza, ―força viva que se autoproduz‖) e Hegel (a natureza como o reino da
matéria, como objetivação da ―ideia perfeita e completa em si mesmo‖) (PASTOR, 1986, p.
168). No processo da história, a matéria foi também colhida por Marx, Engels e Lenin, tendo
o materialismo dialético como ponto mais elevado.
Assim, independente das nuanças que, teoricamente, possam separar Aristóteles da
esquerda aristotélica, surgiu uma matéria muito diferente da mecanicista, a matéria do
materialismo dialético, para a qual o ―frio‖ e o ―calor‖ são lados interligados da análise rìgida
e do entusiasmo. É nesse campo que germinam simultaneamente teoria e prática. Contra a
mera matéria, que tudo absorve, contra os sistemas fechados que oprimem o pensamento e a
ação, a possibilidade de ter a luz original e, esse sujeito, na visão do aristotelismo de
esquerda, encontrava-se no homem que toma o lugar de Deus e se transforma no criador.
Sob esse princípio, o aristotelismo de esquerda irá superar, no medievo, a escolástica
de Tomás de Aquino e se opor à sociedade feudal de classes e sua teologia. Aquino buscou
subordinar o homem às formas de um corpo e uma alma separadas do mundo, em função de
um céu onde estariam livres e de unidade dogmática entre Aristóteles, a Bíblia e o dogma
religioso (Agostinho não tinha lugar nessa conjugação).
Avicenna e os aristotelistas de esquerda pregavam o inverso, explicando o mundo pela
vida terrena e o tempo, recusando a doutrina de Criação (BLOCH, 2008, p. 36-45).
Argumentavam que se a matéria fosse mecânica, estática, como pretendia a escolástica, não
haveria metamorfoses. Daí, Bloch (2008, p. 57), considerar as formas primeiras da matéria
como ―formas essencialmente vivas‖. No fermentar da esquerda aristotélica, Bloch encontra a
utopia da matéria: se nela existem possibilidades reais de mudança, a matéria deixa, também,
de ser ―uma utopia abstrata‖ (BLOCH, 2008, p. 61). O trabalho do homem é feito dessa
mesma argamassa: é forma na aparência, mas criação em sua realidade.
59
O realmente possível principia como germe em que foi disposto o vindouro.
O que nele está pré-formado procura desdobrar-se, todavia não como se
anteriormente não existisse, comprimido no espaço possível. O próprio
―germe‖ ainda se encontra diante de muitos saltos; no próprio
desdobramento, a ―disposição‖ desdobra-se em pontos de partida sempre
renovados e mais precisos de sua potentia-possibilitas. Logo o possível real
no germe e na disposição nunca é algo pronto de modo estanque, que, como
algo existente em forma diminuta, apenas tivesse de concluir o crescimento.
Ao contrário, ele preserva sua abertura como desdobramento que realmente
significa evolução, não como mero despejamento ou evacuação. A potentia-
possibilitas reiteradamente faz com que a raiz original e a origo, fenômeno
em processo permanente, tornem-se originárias num novo nível, com
conteúdo latente renovado (BLOCH, 2005, p. 235).
O ―ainda-não‖ é a medida blochiana da realidade e aponta para as possibilidades reais
do futuro. A epistemologia blochiana permitiria abandonar a perspectiva burguesa de reduzir
a superestrutura à infraestrutura para que se mantenham os privilégios de classe e superar a
fratura expressas pela produção capitalista. Bloch (2006b) relativiza a ideia romântica de que
a sociedade é determinada pelas ideias, destaca a autonomia da superestrutura que procura
fazer prevalecer os interesses da classe dominante, volta-se para as interações mediadoras que
promovem mudanças na superestrutura e possibilitam o surgimento de nova superestrutura,
tal como aconteceu com o ocaso do feudalismo e com a Revolução Francesa.
É fácil ver que muita página ainda pode ser virada. Um ainda-não existe em
toda a parte; tanta coisa ainda não está consciente para o homem, tanta coisa
ainda não chegou à existência do mundo. Mas não haveria nenhum dos dois,
se eles não pudessem mover-se e voltar-se para o caráter aberto (BLOCH,
2005, p. 238).
Desse modo, mais do que expressão de ideias, a filosofia entra frequentemente em
conflito com os modos de produção e as relações de produção, desmascarando contradições
reais e abrindo novas possibilidades para a existência. Como adverte Bloch (2006b, p. 102-3),
neste caso, ―o sujeito é como revestido com os elementos do prado, da mata, de montanhas
azuladas, das roças e dos povoados, da cidade rica em miniaturas, da correnteza e dos
tesouros remotos que traz consigo‖. Seu olhar sobre as coisas mudam e o ―eu‖ recomeça de
maneira renovada.
É no recomeço que Bloch deseja chegar com o conceito do ainda-não-consciente, o
eixo do seu pensamento. O ainda-não (Nicht-Noch) é imanente ao mundo. O ―não‖ (Nicht) é o
princípio do movimento em direção ao objeto, o fator de progresso mediante sua utilização
dialética – a história em movimento. Segundo Bloch (2005, p. 283), é por causa do ―não‖ que
se ―sente que se vive‖, o que corresponde ao conteúdo do recém-vivido, ainda não consciente,
60
ainda não percebido. Se o ―não‖ constitui a origem, o ―ainda-não‖ prenuncia um grande
avanço, identifica o processo da história como opção do homem. Caracteriza a ―tendência no
processo material‖, mas esse espaço aberto ainda não cobra do homem o seu ser verdadeiro,
não se situa no ―ponto zero do inìcio do mundo‖ (BLOCH, 2005, p. 283).
O inìcio do mundo novo irá surgir na forma do ―ainda-não-consciente‖ que seria o
último degrau do novo, não como o tudo (Alles), mas como totalidade (All). Não como ―tudo‖
porque a libertação do homem não se dá em oposição ao nada, nem acena com a
concretização imediata dos sonhos acordados. Mas se reveste da superação das experiências,
abolindo a dicotomia trabalho-mercadoria, libertando-a, pela sua vontade, da ―mera fixação
onìrica romântica‖ (BLOCH, 2006a, p. 308-10). O tudo não é uma experimentação
temporária, uma ruptura permanente. Então se teria uma nova ontologia do ser, se teria a
similitude do ―homem que caiu em si com o seu mundo‖ e tornou-se exitoso com a utopia,
deixando o seu espaço transitório e passando a ter estado duradouro (BLOCH, 2005, p. 307).
Nada pode ocorrer no plano abstrato, mas no plano real. Quando o homem olha ao
redor, encontra sempre a possibilidade de transformar o conteúdo da sociedade, e esse limiar
pode ser traduzido pelo que já foi realizado em toda parte, o que Bloch (2006a, p. 23) chama
de esperança no despertar da ―consciência utópica afiada‖. Na órbita desse conceito, abre-se o
solo fértil para a mediação das categorias, tais como: práxis utópica, sonho acordado, sonho
dormindo, desejo, vontade utópica, felicidade, imanência, latência, mediação e processo. Ou,
no dizer de Bloch (2005, p. 238-9), a ―categoria do possìvel‖, tão falada quanto indefinida
pela filosofia, mas que, remontando ao aristotelismo de esquerda, não deixa de ser ―possìvel
real‖, uma ―possibilidade em aberto‖.
Bloch (2005), em O Princípio Esperança, passa a conceber a práxis como a ação, com
a finalidade da mudança da sociedade pela elevação da consciência revolucionária. Existe,
segundo ele, uma tendência histórica de relegar a ―categoria do possìvel‖ a um plano
secundário: ―O tempo todo parece que se quer evitar refletir sobre o viçoso, o vindouro. Até
mesmo os sofistas, para quem tudo o que era firme tornou-se intelectualmente oscilante, não
extraíram do possìvel, além do escárnio‖, de tal modo que poderia existir ―tanto o tudo‖
quanto o ―nada‖ (BLOCH, 2005, p. 240).
Mas a matéria é a própria possibilidade. Leibniz, segundo Belaval (2005, p. 281-5),
considerava a matéria "incompatível" com a "inércia", mas entendia que na sua forma e
substância necessitava de direção para que a alma e o corpo se unissem e se tornassem
realidade inteligível. Como a Dinâmica não poderia ser separada da Metafísica, lembra
Belaval (2005, p. 286-90), é preciso engendrar a ação, transformando-a em "impetuosidade ou
61
força viva" da criação. Não que a matéria necessitasse dessa união para existir, mas sem esta
não teria a unidade da organização.
Para melhor se fazer entender, Belaval (2005, p. 314), cita um pensamento de Epicuro:
"Os pés não são feitos para marchar, mas os homens marcham por que têm pés". Por analogia,
Leibniz colhe na matéria a reserva de autodeterminação do homem que, pela ação, exprime
sua forma imanente de transformar a vida e da possibilidade de criar uma única humanidade.
Esse efeito não é alcançado porque o homem vive imerso na sensação de que o mundo é um
caos, ignorando suas forças, mas que, na visão de Leibniz, segundo Belaval (1996, p. 332): o
mundo é uma "grande ordem" cósmica, acondicionado em uma "pequena desordem".
Transposta para a vida, a ideia de Leibniz é que o homem pode "encontrar prazer" com
a "felicidade do outro" e encontrar "virtudes da filosofia" no ―direito‖ e no ―dever moral‖
(BELAVAL, 2005, p. 336). Para Schelling (2012, p. 86-7), a matéria, ―força original‖ do ser e
―hostil a limitações‖, era dotada de ―movimento eterno‖. Corpo e matéria eram conceitos
―confusos‖, mas ―vivos‖ e ―independentes‖ que caracterizavam, no homem, a ―mais alta
expressão vital (SCHELLING, 2012, p. 225).
Schelling, na análise de Markus Gabriel (2013, p. 36), que concebe o homem como
Deus, pertencente ao interior e não ao exterior de Deus, mas na qualidade de criador voltado
para o bem e não para o mal, "porque Deus é a vida e não somente um ser". A esperança da
utopia blochiana segue por esta rota: a ideia do futuro como poder-ser (Sein-Können) e
antecipação da eternidade.
Mas a visão da imobilidade da matéria teima em ser a regra. Pensadores como
Aristóteles e os aristotelistas de esquerda, bem como Leibniz, ―o único grande pensador do
possìvel desde Aristóteles‖, são exceções porque romperam com a concepção estática da
matéria (BLOCH, 2005, p. 240). Mudaram essa concepção com a ideia do ser em movimento,
com a interpretação do real como possibilidade de mudança, tal como faz Ovídio nas
Metamorfoses (BLOCH, 2005, p. 240).33
Mas na filosofia não deixou de existir temor e
cautela quanto às categorias possibilidade, realidade e necessidade do ideal histórico
(BLOCH, 2005, p. 241).
33
Ovídio, 43. a. C-17 ou 18 d. C.
62
1.2 DIONISO-APOLO, INCÓGNITA AINDA INSOLÚVEL NA INCOMPLETUD E
HUMANA E NA CURA DA DOENÇA DO CAPITALISMO
No ato de imaginar, como no ato de pensar, há um ato de intencionar.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 73)
Para Bloch (2006a), quanto mais distante o homem estiver do prazer falsificador da
contemplação, mais próximo estará da experiência vivida, da realidade e do materialismo
histórico, da revolução. Onde termina o materialismo inerte, começa o materialismo dinâmico
e dialético. O materialismo utópico de Bloch (2006a) tem a sua origem e o seu topos nesse
ponto de mudança em que a força da matéria em movimento impeliria a utopia a se realizar.
A experiência vivida favorece a análise da realidade, sem exercício de profecias ou
utopias abstratas. Como a utopia concreta existe para ser realizada, inexiste conteúdo
científico na separação entre a contemplação e a ação. Como não há conteúdo humano na
dicotomia Apolo-Dioniso. São dualismos desprovidos de prática revolucionária.
Dioniso nada é além de procurador daquilo que, no ser humano, arde e não
está resolvido, continua sendo o fogo obscuro do abismo. Apolo nada é além
da definição progressiva do material em fermentação dionisiacamente,
caracterizado, como o abismo nas alturas, que foi levado às alturas. Ambos
estão inacabados como o conteúdo humano a que se referem e para o qual
estão a caminho; aqui, na vontade e na carne; lá, no espírito. O ser humano
ainda não foi encontrado nem como dionisíaco nem como apolíneo, sua
incógnita ainda é tão grande que tanto o canto dionisíaco como o apolíneo e
a respectiva imagem do desejo anterior a ele têm quanto não têm razão. A
vontade impulsiva e o espírito oscilam, e aquilo que eles formam
alternadamente, na totalidade dialética, terá apenas um único nome. Será o
último Apolo e o primeiro Dioniso, assim desaparecem as duas alternativas
(BLOCH, 2006b, p. 33-4).
O valor libertador da unidade Dioniso-Apolo e sua completude seriam como curar a
sociedade enferma de uma doença grave. Restaurando a vida nova em que a infância fosse
despreocupada, não houvesse a luta por moradia e alimentação saudável, o homem poderia
ser pleno. Sem curar as doenças do capitalismo, o homem não poderá andar ereto, porque ―a
própria sociedade está suja e doente, e precisa de atenção clìnica‖ (BLOCH, 2006a, p. 28).
A imagem da restauração da saúde Bloch trouxe da realidade histórica: no capitalismo
é a capacidade de trabalhar, enquanto, na Idade Média, a ausência de saúde foi pensada como
63
fruto do pecado. Quem tinha boa saúde era visto como pessoa de poucos pecados. Na
Antiguidade, a visão era mais simples: saúde era a ausência de doença.
Construir a saúde é arte do modelar da vida e da sociedade. A enfermidade não é culpa
do indivíduo, mas do grupo. Quando Malthus atribui os males da sociedade aos males da
superpopulação e influenciou Darwin e o conceito da luta darwiniana pela sobrevivência,
dava a entender que o controle da natalidade era a salvação da humanidade. Não é o que
pensa Bloch. Na Terra existe lugar para todos, e a vida seria muito distinta se fosse
administrada pelo ―poder da satisfação das necessidades‖ e não pela administração das
―necessidades do poder‖ (BLOCH, 2006a, p. 29).
No capitalismo, a saúde significa lucro. A ideologia do poder é de que todos devem
ser saudáveis e desfrutar da liberdade para serem saudáveis se assim desejarem. Nada mais
ilusório. Bloch vai encontrar a necessidade da saúde sucessivamente no estoicismo e seus
hábitos da convivência saudável com a natureza, em La République de Platão (2007), na
Utopia de More (1999), na Cidade do Sol de Campanella (2001), na Nova Atlântida de Bacon
(2008), até Marx e Engels (2007) com as Teses sobre Feuerbach.
O itinerário para o homem é extenso, como antecipa Bloch (2006a, p. 28): ―[...] sem
dúvidas, não será percorrido no contexto da produtividade e no empreendimento capitalista,
pois a saúde visa a ser desfrutada e não consumida‖. É uma saúde que, como lembra O
Manifesto Comunista (MARX; ENGELS, 1998a), implica não na sucessão de
desenvolvimentos individuais, mas no ―desenvolvimento de todos‖ (BLOCH, 2006a, p. 31).
Por conseguinte, a saúde social depende do valor dado à vida, desintoxicada da cultura
do lucro, sem as circunstâncias tortuosas do nascimento à idade adulta, da velhice à morte.
Desembaraçar-se do magnetismo insalubre do lucro é tarefa acima da linha do horizonte
individual. Na vida historicamente material, a totalidade social e dos indivíduos evoca a
história da exploração do homem pelo homem. Daí, para o futuro, a sociedade não dialética
projetar apenas sombras: na sociedade capitalista, a pretensa ubiquidade da sua existência é a
negação do devir.
Com a sedução do lucro, vieram a devastação da natureza, o egoísmo, a inautencidade
da vida. Há muita praticidade, pouca humanidade: não há mediação entre o homo faber
burguês, medido na balança da produtividade, e o sujeito da história, o ser humano – o
trabalhador humanizado desalienado. A utopia concreta, com a metáfora da restauração da
saúde, resignifica o objetivo do marxismo e do processo utópico do homem humanizado: ―O
possível não sendo totalmente condicionado, é o não-consumado‖ (BLOCH, 2005, p. 244).
64
Há medo na esperança e esperança no medo, mas o homem é capaz de fazer preponderar a
esperança.
A busca da esperança não comporta o egoísmo e se volta para as características
coletivas de uma sociedade nova. Bloch ensina que a utopia não pode existir sem romantismo
revolucionário, mas não pode igualmente prescindir da análise das possibilidades da ―corrente
fria‖ da realidade. O romantismo foi ―um hino à genialidade‖ em contraste com as regras, a
sanidade, a racionalidade iluminista, no dizer de Isaiah Berlin (2015, p. 89). Sua virtude
encontra-se no arrebatamento a que se dedica na construção de uma sociedade melhor.
Trata-se de visão sincera e profunda da realidade. Bloch rejeitava a destruição de uma
cultura pela outra. Fez desmoronar a ideia de uma vida perfeita e entendia que os ideais de
vida dos mais elevados podiam ser alcançados em todos os lugares ao mesmo tempo. O seu
postulado básico era a ação que abre espaço para outra ação, caso contrário, nada teria sentido
(BERLIN, 2015, p. 105-8). O Sturm und Drang foi emblemático. Sua conotação é múltipla.
Sturm é sinônimo de tempestade, dilúvio, confusão. Drang significa élan, desejo, paixão.
Bloch, na sua porção romântica, dispõe-se a ultrapassar as verdades estabelecidas.
Mas ensina que essa corrente quente do pensamento (Wärmerstrom), originária do estudo
filosófico da natureza, com raízes na esquerda aristotélica, na Idade Média, em Goethe e no
marxismo, não pode desprezar a corrente fria do pensamento marxista (Kälterstrom), essa
oriunda da física quantitativa de Galileu, Newton e Kepler, do materialismo francês do século
XVIII e do materialismo alemão do século XIX. São contrárias, mas complementares.
Bloch (2006b) ensina mais: a esperança utópica é integrada pela base filosófica da arte
de viver, do bem viver, pelo tempo livre, pelo otimismo militante e pelo desenvolvimento
saudável do homem, fios revolucionários no labirinto da vida. A cultura do lucro não finda
pela oposição abstrata. Há obstáculos imensos nas possibilidades de realização do futuro.
Talvez, o principal deles seja a possibilidade do ainda-não. Conceito, em termos filosóficos,
pouco ―rastreado ontologicamente‖, permanece no domìnio da lógica formal: pode ser dito,
mas não pensado, porque predomina a cultura contemplativa (BLOCH, 2005, p. 238). Não
seria o processo permanente da práxis humana o imperativo da vida?
O possível e, consequentemente o ainda-não, são interpretados como determinação do
conhecimento, não do objeto real. Não fosse assim, o homem e seu trabalho não seriam
separados da transformação do mundo e o homem trabalhador, ―pivô da história‖, não seria
―alienado, reificado e subjugado em prol do lucro de quem o explora‖ (BLOCH, 2005, p.
246).
65
O homem, nessas condições, oscila entre a suposição, a irrealidade, o subjetivo, a
cautela, a abstração vazia, sem citar a distância que é levado a viver da infinidade de
possibilidades. Precisaria não ser fundado na ontologia supostamente acabada do ser
existente, mas do ser-ainda-não-existente. Essas ideias são cristalinas nas Teses sobre
Feuerbach analisadas por Bloch (2005), ao longo de 36 páginas, no livro I de O Princípio
Esperança.
É como se o possível e o impossível não representassem quase nada para a filosofia e
mesmo a mediação do vindouro fosse quase supérflua. Isso torna direta e transparente a
enorme distância entre o ainda-não-consciente e a possibilidade-realização do torná-lo
consciente. A visão blochiana, em nada pessimista, não elimina o alvo contemporâneo da
utopia: nascer e se realizar pela ação histórica não egoísta, alcançar um futuro em que o
homem, ao despertar para o ainda-não-consciente, possa conquistar.
1.3 DO APOCALIPSE CAPITALISTA À DIALÉTICA DO PROCESSO
A utopia concreta situa-se no horizonte de toda realidade.
A possibilidade real envolve até o fim as tendências–latências dialéticas
abertas.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 221)
Nos anos que separam The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) de O Princípio
Esperança, Bloch cultivou a revolta da esperança, no começo, com a união do marxismo e da
Bíblia. As razões estavam na dramaticidade da Primeira Grande Guerra, que sacrificou
milhões de vidas nos campos de batalha em benefício da burguesia. Terminada a guerra, as
portas estariam abertas para o começo da revolução por imposição do obsoletismo da velha
ordem e pela impossibilidade de qualquer Restauração nos moldes do que aconteceu no
passado com a Revolução Francesa.
A esperança estava na Rússia revolucionária, que superara o romantismo de Münzer e
purificara o marxismo do ―entusiasmo abstrato do mero jacobinismo‖ (BLOCH, 2000, p.
236). Apegar-se ao passado, para a Europa, significava a morte. A guerra emperrara as
engrenagens do Estado conservador e deveria apressar o seu ocaso. O princípio da igualdade
entre os homens correspondia, na proporção inversa, ao fundamento da superestrutura
capitalista do homem considerado rebanho.
66
Bloch (2000, p. 242-3) entendia a revolução contra a ordem capitalista como processo
de libertação do operariado e realização da filosofia. Mas, à época de The Spirit of Utopia
(Geist der Utopie), tratava-se mais de apelo moral, menos do desenvolvimento revolucionário
contra a exploração e a brutalidade. Seria o imperativo da construção da fraternidade e do
paraíso terreno com o fim do capitalismo. Invertia-se o conceito de liberdade: a liberdade
seria anterior ao indivíduo e a sua manifestação estaria no encontro do homem consigo
mesmo. Resultaria na força coletiva.
Teoricamente, por aquela época, a resposta à problemática utópica estava no
Apocalipse, não na revolução. Bloch (2000, p. 271-8) condenava não só o capitalismo, mas se
posicionava contra o ―militarismo‖, o ―feudalismo‖ e o ―utopismo abstrato‖. E via, no
Apocalipse, um ―ato de não conformismo da natureza‖ com a ausência de razão para viver,
faltava-o ao homem alienado, ao homem que perdera o sentido da verdade. Pensava o mundo
pela reinterpretação do Apocalipse, pela revolução humana contra a natureza das coisas, pela
procura do que ainda ―não é‖, mas ―deve ser‖. Era uma epistemologia autêntica, mas que ele
só a desenvolveria em O Princípio Esperança, com o realinhamento das Teses sobre
Feuerbach.
Ele, já naquela época, desejava colocar o homem além da criação do real. A utopia
mais do que interpretação da realidade, era a invenção do futuro, um futuro em que o homem
tivesse a esperança de dizer, como numa inscrição antiga, que ele cita em The Spirit of Utopia
(Geist der Utopie): ―Eu estou surpreso por ser feliz como eu sou‖ (BLOCH, 2000, p. 276).
Não parecia ter dúvidas de quanto o homem poderia ser feliz se rompesse com os ―tabus‖ e os
―demônios‖ da ―teocracia‖ e do capitalismo (BLOCH, 2000, p. 133).
O telos não era o reino de Deus, mas o reino do homem que permitiria romper com a
estrutura metafìsica do Estado. O capìtulo ―Karl Marx, a Morte e o Apocalipse” (BLOCH,
2005) evoca o momento inaugural da mediação, que se encontraria no cristianismo primitivo,
no sentido de primeiro, com a travessia de Moisés, anterior a Cristo, para libertar os escravos
do jugo do faraó e erguer a Canaã revolucionária. Era a metáfora do encontro do homem com
a sua exuberância interior. Tornar o ainda-não-consciente em consciente era a incontornável
questão à espera de resposta (BLOCH, 2000, p. 229).
Se o homem não sabia para que vivia, se ele desejava entender o essencial da
realidade, o método filosófico apontava não para a sua ―benevolência‖ com a acumulação e a
mediocridade, nem para a ética metafísica ou a invenção lógica da alma, mas para a totalidade
67
do despertar (BLOCH, 1988, p. 275-8). O movimento da história almejava não o messias,
mas a purificação do homem.34
Com o passar do tempo, o desafio utópico inicial ganhou amplitude na obra de Bloch.
A filosofia utópica tornou-se revolucionária. As relações sociais degradantes precisavam
transformar-se em relações dignificantes. As abstrações da ―ideia‖ e do ―espìrito‖, de origem
hegeliana, tornaram-se ―pensamento real‖, experiência vivida da realidade. A liberdade
interior cedeu lugar à força coletiva.
Moisés e a Canaã irrealizada remeteram Bloch à crueza da luta de classes e da divisão
de classes: passaram a ser demiurgos do conflito com o mundo passado, do Egito de Ptah a
Marduque, na Babilônia, com o mundo presente, porque a estrutura de dominação pela
religião clarificou-se (BLOCH, 2006b, p. 354). Nascente entre os agricultores, foi a luta de
classes que tornou o deus visível da igualdade, própria da travessia do deserto, no deus
invisível do judaísmo e do cristianismo, o deus da justiça e do reino. Mas de uma justiça e de
um reino nunca alcançável. Logo, a antiga dominação foi recriada e a igualdade entre os
homens, durante a travessia do deserto, dissolveu-se.
O ponto de partida e de chegada de Ernst Bloch, o homem humano, floresceu. O
homem é incognoscível, podendo ser tudo ou não ser nada, mas pela porta entreaberta da
esperança pode ser belo e humano. Não conhece limites, embora seu saber seja limitado e
carente de aperfeiçoamento. O tudo, em Bloch, é a vontade de fazer. Condensa os escritos
norteadores, a dimensão moral, imortalidade do criar, como fez Hölderlin que, doente,
concebeu o seu Empédocles eterno, porque associa os seres à metamorfose libertadora.35
A
latência, quando explode em realidade, é a sedimentação do princípio de mudança. As
estruturas modificam-se. A rebeldia ganha livre curso. O escravo se rebela contra o senhor. A
utopia concreta ganhou o significado de refletir que o homem não é pleno, deseja vir a ser.
Não é pleno porque as relações de produção impedem a transformação dos indivíduos,
o que só ocorrerá com a queda da classe dominante e a transformação do homem econômico
no homem comunitário. A categoria do vir-a-ser ganhou, então, sentido da práxis da vida
34
O sonho dos alquimistas era restaurar a condição paradisíaca original. Alquimistas e milenaristas procuravam
transformar metais em ouro, metáfora do novo ser humano. O sonho alquímico esteve disseminado por todas
as culturas desde 700 d.C., embora seja possível que remonte da Era do Bronze. Foi a utopia ―mais ousada e
mais mitológica‖ da tecnologia e perdurou até o século XVIII (BLOCH, 2006a, p. 198). A alquimia não
encontrou ouro, mas foi a estrada para a química moderna.
35
Friedrich Hölderlin (1770-1843), poeta de substancial conteúdo político, escreveu A Morte de
Empédocles.Filósofo, político e taumaturgo grego, lutou ativamente pela democratização da pólis e o
encontro com a natureza.
68
revolucionária para superar, principalmente, a interseção entre a obscuridade do instante
vivido e a obscuridade do futuro.
A obscuridade torna-se mais intensa assim que não só nós, mas também a
outra página, a página virada permanece indefinida, logo, assim que nos
voltamos para o futuro, o qual, na medida em que ele se constituiu como o
novo, sobretudo em termos lógicos, nada representa além da nossa
obscuridade ampliada, da nossa obscuridade por ocasião do engendramento
do seu ventre, na ampliação da sua história seguinte; e ele igualmente se
fortalece em vista de Deus como o problema do radicalmente novo, que não
apenas deve tornar-se visível para nós para existir, de tal modo que o
processo do mundo como um todo se reduziria elasticamente a uma relação
de movimento entre duas realidades ―separadas‖, mas que está cônscio de si
mesmo apenas como esperança, como ser-não-para-si, que, igual a nós,
encontra-se no não acontecido obscuro, no ainda-não real (BLOCH, 2005, p.
293).
Bloch recorre a Deus no sentido metafórico. Para ele, o homem é Deus e, portanto,
não precisa de um Deus exterior a si mesmo. Coloca o problema da matéria36
que, iluminada,
associa-se ao novum e ao ultimum e ganha vida no ventre do tempo pela dinâmica do
movimento. A imagem invoca o despertar do homem para a enorme resiliência da cultura
capitalista. O processo de revelação dessa característica e compreensão da totalidade
socialista é acompanhado pela atividade humana, atitude ―revolucionária‖ ―prático-crìtica‖,
tal como escrito em as Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007). O despertar do
homem para o seu papel na história marca a fronteira entre movimento e repouso, entre o
pulso da vida de agora e a vida do devir, entre a alienação e a desalienação.
O ainda-não real ao qual Bloch (2005, p. 233) se refere não é objeto subjetivo, mas a
realidade objetiva que precisa ser clarificada, fecundada – a realidade do que pode vir a ser
determinada na matéria. Na filosofia da práxis revolucionária, os postulados mais conhecidos
são a penúria material, o conhecimento e a consciência, mas o campo efetivo a transformar-se
é aquele dos valores. Sem o culto aos valores revolucionários, à ética da transformação,
principalmente, não há contemporaneidade. Predomina a percepção não das luzes do tempo
vivido, mas do seu escuro. Pelo movimento revolucionário e pela elucidação dos mecanismos
de dominação é que ―Deus e a matéria tornam-se idênticos‖ (BLOCH, 2005, p. 233).
36
A matéria é fator determinante do nascimento da filosofia. Relaciona-se ao conceito de ―forma‖, de
―espìrito‖, de ―força‖, de ―energia‖ ou até de ―número‖. Em Marx, o materialismo histórico surge com A
Ideologia Alemã. ―O primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de
indivìduos vivos‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 41). Cai o império da religião, a produção humana ascende na
interpretação do mundo.
69
A obscuridade é um ponto de passagem que, mediado pela iluminação, no entender de
Bloch (2006b), revela o acerto ou o erro do pensamento utópico. Pode impedir que o homem
fique cego ou ofuscado pelas luzes e possa perceber as trevas das diferentes épocas. Como
obscuridade, o risco de fracasso na revolução é irreversível. A construção do socialismo não é
alvo perfeito. Nem inexorável. Para Bloch (2006b), não existe determinismo histórico. Ele
encontra o alvo na busca do mundo novo, mas nada pode garantir que esse desejo seja
verdadeiro ou falso. Há sempre dúvidas quanto ao efetivo alvo da esperança.
Trata-se de ruptura do processo histórico. A ruptura transcende os graus a que possam
ser elevadas as previsões quanto à prática e, também, à teoria. As relações econômicas não
podem ser ignoradas, mas não se concentram no campo preponderante de batalha. Este situa-
se na superação da necessidade e, ao mesmo tempo, na construção da vida real. As utopias
antigas – a Ilha dos Feacos de Homero, o Jardim do Éden da Bíblia, a Terra Prometida dos
Santos na Índia – pressupunham terras da felicidade que precisariam ser descobertas. Na
utopia concreta, a Terra da felicidade precisa ser construída pelo homem.
A categoria do possível, ainda que tão bem conhecida e a toda hora utilizada,
constituía uma crux em termos da lógica. Dentre os conceitos que, no
decorrer dos séculos, foram elaborados e levados a um grau de precisão pela
filosofia, essa categoria é a que até agora permaneceu a mais indefinida.
Com certeza, é a que menos foi rastreada ontologicamente: por isso, ela
ocorreu tradicionalmente quase só na lógica formal. Mesmo quando a
doutrina das categorias se ocupa com o possível, este é considerado,
preponderantemente, apenas como determinação do conhecimento e não do
objeto (BLOCH, 2005, p. 238).
O pressuposto para transformar a latência da possibilidade em utopia concreta seria
fazer com que o homem rebelde tivesse maior influência que o homem conservador e o
homem em aperfeiçoamento. Como o mundo é planejado para que o homem não pense e, não
pensando, fique cada vez menos rebelde, o homem é cada vez menos intenso. Produz,
consome, mas se mantém distante do cuidado com a natureza e das inquietações.
A utopia concreta interdita, por outro lado, o niilismo. Não é a mesma coisa que o
conservadorismo, mas seu irmão gêmeo. Na concepção niilista,37
Deus abandonou o mundo e
nada mais existe para ser feito. ―Há mais alegria e coisa boa a se esperar de um nazista
convertido do que de todos os cìnicos niilistas‖ (BLOCH, 2005, p. 432). O niilista carece da
37
O niilismo é a ausência de sentido para os valores tradicionais, partindo do silogismo: se Deus – a verdade, o
princípio – morreu, então tudo é permitido. O termo, derivado do latim nihil, nada, aparece na Revolução
Francesa, com aqueles que teimavam em não tomar partido, não sendo a favor nem contra. Com Nietzsche e
a ―morte de Deus‖, alcança o seu mais alto grau. No século XX, o niilismo ganha conotação da grande
doença na civilização ocidental. Se as coisas não são vividas, onde estaria a lógica da vontade?
70
vontade de ação. Não se movimenta. ―É um pessimista incondicional‖, mais nocivo do que o
otimista ―condicionado artificialmente‖, porque não acredita em nada (BLOCH, 2005, p.
432). O niilismo, para Bloch, é o vazio, ―transformando o mero nada do futuro capitalista
num nada absoluto-inevitável para que fosse totalmente impedido o olhar para um mundo
transformável, para o futuro socialista‖ (BLOCH, 2006b, p. 242).
Estrangeiros ao dever ser da utopia, a contemplação e o niilismo sabotam a práxis.38
Ao negar a mudança, fazem do desejar e da vontade potências passivas. Levam o homem a
estacionar nas relações sociais dilacerantes. O niilismo não implica o conhecimento. A
antinomia entre mudanças radicais, contemplação e niilismo encontra-se na raiz da
incompletude da vida humana.
Em meio a essa pletora de realidades, Bloch transitou da teoria do Apocalipse para a
teoria revolucionária, mas sem jamais considerá-la absoluta. Romantismo, idealismo,
humanismo abstrato e o concreto cedem lugar ao desejo de mudança para além das exigências
morais burguesas e do reformismo. Dentro desse contexto, virar as costas para a prática é se
curvar ao poder da estrutura capitalista de se repetir e se perpetuar.
A advertência feita por Bloch (2005), ao agrupar as Teses 2 e 8 de Marx e Engels
(2007) sobre Feuerbach, enfatiza: a teoria em função da práxis para adiante, coloca a filosofia
e o futuro em perspectiva, tendo a ética revolucionária como âmago. O tema já se fazia
presente em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), quando Bloch (2000) considera que o
período gótico, mais do que a antiga Grécia e o antigo Egito, devotou-se à descoberta da
maturidade do homem e acendeu a chama dos primeiros românticos alemães (BLOCH, 2000,
p. 22-31).
Foi uma época em que a utopia de Bloch estava carregada de linguagem mística e de
religiosidade, mas já se distinguia do romantismo conservador pela mensagem de que o
desafio utópico do socialismo consistia em procurar soluções racionais para problemas
racionais. Em O Princípio Esperança, seria ainda mais enfático. A utopia concreta exige
abandonar linhas salvacionistas: deixar de lado o altruísmo, o misticismo, a filantropia de
interesse capitalista, a nostalgia, a ―fé inventada‖, o ―amor inventado‖ e o ―idealismo
retrógrado‖.
38
Die Praxis, termo traduzido da palavra grega praxis significava, no século XVI, realizar uma ação. Kant irá
recorrer ao termo para opor teoria e prática, definindo a praktische como produto da razão. Fichte e Hegel
irão considerar a praxis como atividade moral-prática de transformação (moralisch-praktische), o que
corresponde à atividade. Marx interpreta a prática como a autotransformação material do homem na procura
da sua libertação, mesmo nas condições alienantes. A prática revolucionária (Revolutionären Praxis) é a
atividade prático-crítica voltada para a mudança das circunstâncias do trabalho humano.
71
Em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), a ideia de mediação é clara: na Primeira
Grande Guerra, homens foram massacrados por ideais medíocres, mas a vida nova renasceu.
A textura dos sonhos vencia a obscuridade dos campos de batalha. O ainda-não-consciente
insinuava-se na memória daqueles tempos. A utopia concreta estava à procura do âmago do
homem. ―Não há pensamento sem privações, porém a constante estupefação com algo o faz
avançar‖ (BLOCH, 2006a, p. 426). Isso é o que distingue o homem revolucionário: ele não se
curva à ―estupefação‖, ele se rebela em profundidade, ele se expressa pela ação, pela busca de
relações humanas mais perfeitas.
1.4 FILOSOFIA E UTOPIA: CONSCIÊNCIA E PRÁXIS, UMA MESMA UNIDADE NA
BUSCA DO NOVUM
As velhas utopias eram doutrinárias porque aliaram seu modo de ser, rico
em fantasias, sim, fantástico, com o estilo de pensamento racionalista da
burguesia.
Ernst Bloch, O Principio Esperança (2006a, p.134)
Bloch concentra-se no não-alvo: a construção da sociedade nova não é feita com
indignação sentimental e abstrata. Enquanto as utopias abstratas dedicaram ―nove décimos de
seu espaço à descrição do Estado do futuro‖, Marx fez exatamente o contrário e, por isso,
escreveu O Capital e não ―Convocação para o Socialismo‖ (BLOCH, 2006a, p. 175).
Não pinta um paraíso na Terra, mas desvenda o mistério da obtenção de
lucros e o mistério, quase mais complicado, da distribuição dos lucros. Marx
aplica a lei do valor, enunciada por Ricardo, à mercadoria da força de
trabalho. Descobre a dialética da mercadoria pela via do valor de troca e
dentro dela. Compreende que o lucro é uma mais-valia extorquida e que a
curiosa taxa média de lucro constitui a base para a solidariedade de classe
dos capitalistas. Dessa maneira, fundamenta a dialética da história, que leva
a tensões, utopias, revoluções, sendo primeiramente dialética material
(BLOCH, 2006a, p. 175).
Esse pressuposto recria o papel da filosofia na sociedade de classes. Em vez da
investigação das causas primeiras ou dos primeiros princípios do espírito humano, Bloch
procura a transformação material da vida, a filosofia como expressão da necessidade da
prática, não mais como designou Feuerbach um ―empirismo especulativo e mìstico‖ (MARX,
72
1982, p. 463). No lugar do estudo da sabedoria e de todas as coisas que o homem pode saber,
Marx enfatiza a filosofia de total revolução emancipadora, a filosofia que se identifica com a
ciência da revolução socialista,39
o princípio de construção de uma história nova.
Em vez de negar os nexos entre o marxismo e a filosofia, reduzindo-os a uma crítica
científica da sociedade, tal como fez o marxismo ortodoxo, Bloch examina ampliá-los,
tornando-os indissoluvelmente associados à prática. Entende como Marx (1982, p. 1537,
tradução nossa) que ―o mundo se tornará filosófico quando a filosofia se tornar terrestre,
interesse e paixão de cada um e de todos‖.40
Bloch procurou ampliar o sentido da ideia
marxista da filosofia como transformação do mundo, não só como intérprete: a coincidência
da consciência com a realidade e com o sonho revolucionário, considerando-a como
característica da dialética materialista. Marx (1982, p. 1537-82) considera a filosofia ética
como ―imperativo categórico‖ para a transformação do mundo, enfatizando que o filósofo não
deve se restringir ao pensamento, mas abraçar todas as atividades humanas, deixando de ser
―suprimida e conservada‖ numa ética vazia. Precisa mudar de papel, ser a filosofia da
revolução.
A transformação filosófica está associada a um saber incessante a respeito da
conjuntura; pois, mesmo que a filosofia não seja uma ciência própria acima
das demais ciências, ela é, isto sim, a ciência e a consciência próprias do
totum em todas as ciências. Ela é a consciência progressiva do totum
progressivo, já que este totum não está estabelecido, ele próprio, como
factum, mas lida com o que ainda não veio a existir unicamente no
gigantesco contexto do devir. A transformação filosófica é, assim, uma
transformação segundo a medida da situação analisada, tendências dialéticas,
das leis objetivas, da possibilidade real (BLOCH, 2005, p. 277).
A transformação filosófica está ao alcance do homem porque exige a unidade teórico-
prático, com a supressão do que é acentuadamente prático ou acentuadamente teórico. Não é
uma transformação impossível. Exige que se abandone a ideia de uma filosofia autárquica ou
contemplativa, o mesmo que uma filosofia meramente interpretativa, em que o alvo prioritário
seja a filosofia da revolução tendo no bem comum o seu alvo prioritário.
39
A expressão socialismo científico foi cunhada por Engels em série de artigos publicados no
Vorwärts(Adiante), órgão central da social-democracia alemã, de 1876 a 1878 e reunidos no livro Do
socialismo utópico ao socialismo científico, como resposta aos ataques de E. Dühring, docente da
Universidade de Berlim, que ao aderir ao socialismo em 1875, publicou um livro com coléricos ataques a
Karl Marx. Em três alentados volumes, Dühring compôs sistemas completos da filosofia, da economia
política e do socialismo, além de uma História Crítica da Ciência Política.
40
―Le monde deviant philosophique quand la philosophie deviant terrestre, affaire et passion de chacun et de
tout le monde.‖
73
Na visão de Bloch (2005), que deixou de ser apocalíptica, a matéria passa a ocupar o
lugar do ―Espìrito‖ hegeliano e a dialética compreende a unidade sujeito-objeto da harmonia
teórico-prático da filosofia de transformação do mundo. Com essa percepção do valor da
prática, Bloch transfere o papel de mediador do partido para a experiência do homem
trabalhador e abre espaços à visão do todo social utópico. Faz da prática a própria expressão
direta da teoria.
A consciência torna-se um movimento, o ainda-não-consciente torna-se uma aspiração
revolucionária inseparável do processo revolucionário. Rompe com a noção mecanicista de
que a história possui suas próprias leis, reivindicando a função prática das Teses sobre
Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007). De maneira indireta, Bloch demonstra a
impossibilidade de construção do socialismo em um só país e, também, critica a idealização
da teoria como saber puro que bastaria ser aplicado para que a realidade se transformasse.
Foi assim que Bloch seguiu os passos de Marx e Engels, da utopia apocalíptica para a
ciência da história, mas estabelecendo os limites da ciência e os horizontes do aprendizado a
conquistar a partir da prática. Filosofia, conhecimento material da realidade e sonhos
revolucionários trilham a mesma rota, pois não se tratava de simplesmente descrever o
fenômeno utópico, e sim, construí-lo. O futuro emergiria não só da antecipatória sociedade
sem classes, na visão de Marx (1982), e do reino da liberdade, na concepção de Engels
(2005); mas da utopia social do ainda-não-consciente.
Assim como rechaçou os devaneios dos utopistas, Marx também renunciou aos
devaneios filosóficos e, nas palavras de Franz Mehring (2003, p. 21-5), ao superar ―o
diletantismo filosófico‖, abriu ―novos e amplos horizontes‖ para a consciência humana, dando
real conteúdo ao espìrito grego. Deixou de lado a abstração da ―autoconsciência‖ e da
filosofia da natureza, espelhada nos deuses e na religião, para mirar-se no materialismo e no
homem. Reinterpretou a perspectiva filosófica do epicurismo, do estoicismo, do ceticismo e
do hegelianismo, os primeiros como centro do sistema materialista da Antiguidade, o último
com a crítica ao direito (MARX, 1982, p. 785-808; 900-5). Negou, como acontece em A
Sagrada Família (MARX; ENGELS, 2003), a identidade mística do pensamento e do ser,
concentrando-se nos conceitos de ―comunismo de massa‖ e de ―proletariado de massa‖ como
movimento prático e material dos trabalhadores (LÖWY, 2002, p. 160-1).
Era na mediação entre a exploração e a revolução que Marx encontrava a capacidade
das massas operárias de desfrutar da ―liberdade‖, em sentido materialista, de fazer valer suas
necessidades ―não através do poder do indivìduo concreto, mas sim, através do poder da
sociedade‖, ou seja: ―Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as
74
circunstâncias humanamente‖ (MARX; ENGELS, 2003, p. 150). Do socialismo utópico,
saltou para o comunismo materialista e com a continuidade, em âmbito filosófico, no
entendimento de Löwy (2002), do materialismo do século XVIII para a doutrina do
humanismo real.
Dessas premissas, Bloch (2005) extraiu a mais veemente das suas argumentações
quanto ao ainda-não-consciente – a evidência de que o homem precisa tornar consciente a
construção do socialismo. Na teoria marxista, a prática é mais do que uma demonstração de
crença no homem e na sociedade sem classes, mas uma coincidência sujeito-objeto. Agir é
acreditar, e acreditar é transformar. Nada é estanque, nada é dissociado do todo. Ser racional é
compreender a estrutura de classes e o relacionamento com ela. Ser racional é entender o
processo histórico, analisar situações e transformá-las. Isso exige mudança de valores e a
superação de tensões entre as forças produtivas e as forças da economia política.
O socialismo como ideologia do proletariado revolucionário é pura e
simplesmente boa consciência, relacionada com o movimento compreendido
e a captada tendência da realidade. Contudo, à relação dessa ideologia
verdadeira com o aspecto antecipador na má consciência da ideologia
anterior, aplica-se à seguinte sentença de Marx (a Ruge, 184341
): ‗Nosso
lema de campanha deve ser, portanto: reforma da não consciência não por
meio de dogmas, mas da análise da consciência mística, à qual ainda falta
clareza. Ficará evidenciado, então, que o mundo, há muito, possui o sonho
de uma coisa da qual ele só precisa da consciência para possuir realmente.
Ficará evidenciado que não se trata de um grande travessão entre o passado e
o futuro, mas da efetivação das ideias do passado (BLOCH, 2005, p. 154-5).
O escrito de Marx, datado da primeira metade do século XIX, quando o socialismo
tateava à procura de uma saída luminosa para a escuridão capitalista, parece pertencer aos
dias atuais. Que Bloch procure estabelecer uma linha de continuidade entre o passado e o
futuro, não é propriamente a novidade. Caracteriza o novum o entendimento de que o homem
necessita construir, uma sociedade livre e igual. Teria duplo aspecto: a mediação dentro do
capitalismo e a mediação dentro do socialismo, uma para superar o sistema, a outra para
41
Berlin (2007, p. 85-6) traça um retrato elogioso e cáustico de Arnold Ruge: jornalista talentoso, mas
pomposo e irritável, um radical hegeliano descontente, mas que, depois de 1848, tendeu gradualmente ao
nacionalismo reacionário. Perseguido pela censura na Alemanha, mudou-se para Paris e convidou Marx, a
quem admirava, embora fosse 16 anos mais velho, para editar o Jornal Deutsch-Französische Jahrbücher. Ao
contrário de Marx, que sempre cultivou ―soberana indiferença ao dinheiro‖, Ruge era excessivamente
apegado ao dinheiro, era avaro. Foi Ruge quem encomendou a Marx o ensaio para o seu jornal sobre a
Filosofia do Direito de Hegel (MEHRING, 2003, p. 62-99). Marx afastou-se de Ruge ainda no exílio nos
anos de Paris. Ruge era quem mediava o diálogo entre Marx e socialistas conhecidos, como Proudhon, Louis
Blanc, Cabet e fouerristas da Democracia Pacífica por intermédio de Victor Considerant (MARX, 1982, p.
1349).
75
afastar-se dos traços da sua cultura. Acima do duelo entre a ―boa‖ e a ―má consciência‖, há
―uma cultura de efeito continuado‖ da sociedade de classes que carece ser rompida.
A má consciência por si só não seria suficiente nem mesmo para dourar o
invólucro ideológico do que ocorreu. Por si mesmo, ela não teria condições
de produzir uma característica mais importante da ideologia: a harmonização
prematura das condições sociais. Seria ainda menos possível compreendê-la
como meio do substrato cultural sem o seu encontro com a função utópica.
Tudo isso ultrapassa, notoriamente, tanto a má consciência quanto o
fortalecimento até apologético da respectiva infraestrutura social. Da mesma
forma, sem as funções utópicas ideológicas de classe teriam chegado a ser
meramente ilusões passageiras, e não modelos na arte, na ciência e na
filosofia. E é exatamente esse excedente que forma e mantém o substrato da
herança cultural, como sendo aquele amanhã que está contido não só nos
tempos primordiais, mas também, num nível mais elevado, em pleno dia a
dia de uma sociedade e, parcialmente, na penumbra da sua ruína (BLOCH,
2005, p. 155).
Contra a cultura capitalista, faz-se necessário afirmar nova consciência. Essa postura
exige uma transição dialética, que Bloch (2006b) não apenas reconhece, como admite exigir
ação transformadora contínua e a fé na capacidade humana de cultivar valores universais. Se
o braço longo do capitalismo alcança o homem na fábrica e na sensação de liberdade ao
dormir, nas férias e no esporte, no convívio com a família e nas relações de troca, nas guerras
e nos desejos, sem que o homem perceba, o socialismo precisa caminhar no sentido inverso e,
na sua práxis, mostrar que os homens não são mercadorias, que o ser humano não existe para
competir entre si, mas para ser a si mesmo, não alienado.
É fácil desejar transportar-se para longe de um lugar ruim. Mas a trilha para
sair dele é menos óbvia, ainda precisa ser aberta. O terreno plano que se
estende para todos os lados é tão difícil para o caminho certo quanto o
montanhoso, com flagrantes bloqueios. Daí o desgarrar-se, uma das
condições mais amargas, além de peculiar. Ela reside no prolongamento do
querer, ao qual falta, ou ainda falta o poder no prolongamento do broto que
nunca evolui realmente para a flor. O desgarrado encontra-se entre o desejo
permanente e o caminho não permanente ou que não se revela. Porém o
perigo a que o desgarrar-se expõe ao viandante, o perigo de perecer, perfaz
também o tributo ao novo (BLOCH, 2006a, p. 299).
O novo é o broto que se transforma em flor, o sonho que transforma em lugar de se
desgarrar da realidade. A função utópica é justamente esta: arrancar a cultura socialista da
mera contemplação e levá-la a galgar os cumes da esperança humana. Portanto, a via
inescapável para o socialismo seria essa: construir, na consciência humana, a imagem da boa
consciência voltada para o futuro. É nesse contexto que pode ser compreendido, como
76
metáfora de moldura muito mais ampla, a citação da carta de Marx a Ruge. E a vontade
blochiana de concretizar o novo.
1.5 EM LUGAR DA FILOSOFIA DA SOCIEDADE DE CLASSES, A FILOSOFIA DA
SOCIEDADE SEM CLASSES
Um bom conteúdo não se enfraquece ao ser corrigido. Ao passo que os
autênticos ruminantes têm diante de si de forma cada vez mais insossa o que
certa vez fora um alimento melhor ou ao menos fresco.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 448)
Sem apologia da sociedade socialista, Bloch (2006a) enfatiza a esperança na dialética
das utopias antigas com a utopia marxista. A dialética é o prólogo e o alicerce do seu sistema
filosófico – no passado a revolução burguesa, no futuro a emancipação do homem. A
dialética, como definiu Marx (1982, p. 851), derruba as ―figuras autônomas e precipita tudo
no oceano da eternidade‖. Esse ìmpeto, para Bloch (2006b), situa-se no confronto entre as
possibilidades de transformação e a repetição. Segundo Bloch (2006b), a dialética, no seu
intercâmbio com o mundo prático, conciliaria o homem com a categoria da finalidade e
orienta na satisfação das necessidades.
Não há concessões ao que Bloch (2006b) define como ―empirismo raso‖ da ―ortodoxia
marxista‖, nem à reforma do capitalismo por desconhecer o significado das relações de
produção, da propriedade privada, da luta de classe e do processo histórico que modela as
diferentes formas de alienação. Também, não há concessões ao ―espìrito humanitário‖, que
não passaria de uma versão ―trivializada‖ da solidariedade operária ou uma versão ―kitsch‖ do
comunismo, pois a ―humanização‖, por muito tempo, tem sido ―malograda‖ ou ―impedida‖
pela sociedade de classes (BLOCH, 2006b, p. 448).
No final do Livro II, de O Princípio Esperança, Bloch (2006a) revela-se obstinado:
não aceita a possibilidade da terceira via para o socialismo, como não entende o socialismo de
Estado como socialismo autêntico. Pode acontecer a abolição da propriedade privada e da
economia de mercado, mas não haverá o definhar do Estado (BLOCH, 2006a, p. 456). Sem o
definhar do Estado, o aparelho de poder continuará a existir. E, o que é pior, a se reproduzir.
O Estado é onde reside o poder multiplicador da ideologia da classe dominante. Se o Estado
não desaparece, a emancipação humana é adiada.
77
Ao lado do capitalismo, em Bloch (2006b), contracenam o socialismo de Estado e o
capitalismo de Estado. Não têm como objeto a utopia em seu conteúdo. No socialismo de
Estado, apenas se sonha com a utopia. Não há movimento para a frente. Grassa a aparência
coletivista, mas a economia, governada de cima, apenas pode alegar o crescimento do
capitalismo para ―dentro do socialismo‖ (BLOCH, 2006b, p. 452).
No capitalismo de Estado, o que persiste é a dominação autoritária. O que muda do
capitalismo de Estado para o socialismo de Estado é a relação com o mercado e a sensação de
liberdade. O homem, no socialismo de Estado, não se defronta com as relações de troca,
deixando este papel para o Estado. Embora a veia utópica reapareça constantemente no
decorrer do processo histórico, não foi por acaso que o socialismo utópico se desintegrou. No
capitalismo, as relações de troca são tarefas dos homens de negócios. A utopia é uma
miragem.
A filosofia, por meio da práxis, necessitaria romper as cadeias que a ligam à educação
burguesa para promover a aliança entre a teoria marxista e o movimento do homem
trabalhador. Não poderia existir filosofia revolucionária sem a abolição da pobreza e da
cultura capitalista. Foi esse o terreno de possibilidade que Bloch tornou fértil e a ideia da
utopia concreta. Exigia prática, não só teoria e propaganda. Sem a práxis, autopia não
consegue transpor os limites especulativos.
Bloch (2006a, p. 418), ao tratar da práxis, acolhe o conceito de Marx de que a
contemplação não passa de ―radiante repouso‖. Sem a prática, pode existir o conhecimento,
mas não a transformação. No entendimento da realidade e da prática transformadora, a
palavra-chave é processo. Onde está o ser humano, de acordo com Bloch (2006b), deveria
estar a filosofia do processo, não exclusivamente em pensamento, mas como práxis.
Processo, categoria basilar na filosofia blochiana, remete ao ambiente humano
mediado pelo homem pretendido – no início, o homem rebelde, aquele que não fundou
nenhuma religião e apenas trouxe o fogo para o homem. Trata-se de Prometeu que, na visão
de Ésquilo, almejou partilhar com ―os seres humanos todos os bens reservados aos deuses‖
(BLOCH, 2006a, p. 295). E ele simboliza a mistura do socialismo e da rebeldia romântica.
O raiar de uma aurora em que a epistemologia revolucionária é construída no espaço
entre o desejável e o possível, entre a utopia e a necessidade objetiva. Em todas as situações, a
linha da ética é aquela que determina a vida melhor. ―A âncora que submerge até ao fundo é,
ao mesmo tempo, a âncora da esperança‖ (BLOCH, 2005, p. 163). Equivale dizer que o ideal
norteador pode submergir, mas volta à superfície, mais revigorado, se o homem possuir alvo e
consciência.
78
Bloch (2005) realça categorias processuais, reflexos gerais, em lugar de categorias de
transmissão, simples reflexos do ser, como destaca Kant (2010) na Crítica da Razão Pura
quantidade, qualidade, relação, modalidade. São categorias processuais, aquelas reveladoras
da objetividade real, da possibilidade do ―ser em utopia‖. Conceitos como ―matéria
processual‖, ―processo natural‖ e ―qualidade processual‖ aproximam Bloch (2005) de
Schelling (2012) do período romântico, das Eras do Mundo, muito cultivado quando do The
Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e do interesse pela doutrina schellinguiana das
potencialidades (MÜNSTER, 1997, p. 146-7).
O processo é multiforme e se desenvolve por etapas, podendo haver avanços e recuos,
concentrados nos movimentos da história. Não no horizonte do passado, como o ―Espìrito
Absoluto‖ de Hegel ou a matéria mecânica desde Demócrito, mas no horizonte do futuro. O
processo é, assim, o ser em possibilidade, aberto para o novo. O novo, em Bloch e em Marx,
está na inversão do papel da filosofia: em lugar da filosofia da sociedade de classes, a
filosofia da sociedade sem classes (BLOCH, 2005).
Segundo Marx (1982, p. 843), a filosofia é aquela que procurar desvendar os mistérios
por trás do ―mundo visìvel‖: desenvolve-se ao mostrar que o mundo é dividido em partes e
encontra a sua totalidade ao revelar o significado dessas partes no seu conjunto. Bloch
(2006b, p. 450) retoma essa ideia ao tratar, de maneira recorrente, do tema da ilusão e
argumenta que a filosofia, como a ciência, foi enriquecida por coisas ―jamais vistas, jamais
pensadas‖, a exemplo do par de conceitos ontológicos ―dynamis-entelequia‖ e matéria-forma,
concebidos por Aristóteles. É pelo impulso do novo que a filosofia não se seculariza.
A filosofia, nesse quadro, não é uma especulação individual, é a procura do possível
na totalidade do pensamento. É mais do que o amor pelo conhecimento e a sabedoria, mais do
que o homem em potência aristotélico. É o homem em movimento, característica imanente do
processo social, controlado pelo homem. Eis o objetivo supremo do processo na filosofia
blochiana: inaugurar uma nova sociedade.
Não é um modelo moral ou ideal, mas o retrato do amálgama teórico-prático em que
acondiciona a utopia concreta. Bloch (2005) discute as características do processo nas Teses
sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007) e também em O Capital (MARX, 1965),
entendendo a filosofia como revolucionária, porque a transformação do mundo concebe o
―desenvolvimento relativamente alto da força de trabalho‖ e a mudança da superestrutura: ―O
que se reconhece aqui é que, humanamente, sempre se deve partir da alienação‖ (BLOCH,
2005, p. 256).
79
Considera que o homem rebelde, revolucionário, não deve estacionar onde
estacionaram a filosofia de Feuerbach e o materialismo mecânico: na autoalienação, em
relações sociais dilacerantes, no desencanto e na negação da dialética da história. Desfecho
pálido, sem força para ir adiante; ensaio que se perde na tentativa de decifração do homem,
que, sendo teoricamente não mediada, resume-se na ―coisa para nós‖, não na práxis
teoricamente conquistada (BLOCH, 2005, p. 264).
A práxis conquistada é a ontologia do homem criador, do homem sensual, do homem
da felicidade, no sentido prometeico, artista-arquiteto-construtor do belo, rival de Deus, mas
que se encontra em processo (BLOCH, 2006a, p. 364). Não significa que a noção do pode-ser
seja ―apenas lìquida‖, uma ―tolice‖, ―diáfana‖, ―contrassenso‖, não seja uma caracterìstica
humana, a exigir abordagem rigorosa no rumo da esperança (BLOCH, 2005, p. 222-3).
A utopia é, na sua forma concreta, a vontade testada rumo ao ser do tudo;
nela, atua, portanto, o páthos do ser, que, anteriormente, esteve voltado para
uma ordem do mundo, até uma ordem do supramundo, bem-sucedida,
supostamente já fundada de modo bem-acabado. Porém, esse páthos age
como um páthos do ainda-não-ser e da esperança do summum bonum que
está nele (BLOCH, 2005, p. 307).
A forma concreta da utopia procura o pensamento ―lìmpido‖, sem obscuridade,
fazendo do invólucro transitório dos acontecimentos o tecido permanente do futuro, sem
almejar o sistema perfeito, mas que é a chave transcendente do novum (BLOCH, 2005, p.
293). O homem, para Bloch (2005), é assim: o sol em movimento, sem que esse movimento
tenha necessariamente o conteúdo imaginado. Certamente, por causa da inclinação ilusória
para dizer ―eu‖ antes de dizer ―nós‖.
Em Bloch (2006b), nada se situa mais próximo do ―nós‖ do que a sociedade sem
classes e a libertação do ―legado titânico‖ do mal, que impede o homem de despertar para o
coração livre do puro Dioniso, deixar de camuflar o ―temìvel‖ por trás da ―máscara do belo‖,
acordar para o problema do ―para-onde‖ caminhar e do ―para-quê‖ existir, fundados na
vontade do ―para-diante‖ que retrata, em última análise, uma ―nova Terra‖, um ―utopicamente
proposto‖ (BLOCH, 2006b, p. 284-90).
80
1.6 ―NÓS‖ ANTES DO ―EU‖ E AS RAÍZES DO FUTURO NOVO
O pensamento para frente já há muito está na ordem do dia e pode ser ouvido.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 246)
Antes, muito antes, de Thomas More, Owen, Fourier e Saint-Simon fazerem os
primeiros esboços da futura comunidade socialista, na Antiguidade, podia-se ouvir Aristóteles
dizer: ―Amigos têm tudo em comum‖ ou ―os bens dos amigos são comuns‖ (BLOCH, 2006a,
p. 44). Considerava que o círculo dos amigos é menor que a menor das polis, mas que
vislumbrava, na amizade, o liame da concórdia, dos direitos comuns e do Estado.
A amizade produz, sem coerção, o que a justiça só pode exigir, efetiva
aquela concórdia em que não ocorre mais a lesão dos direitos recíprocos,
portanto, em que não há mais razão alguma sequer para pensar em justiça.
Assim, uma vez mais, como já no caso do princípio do inter amicos omnia
communiaI, a utopia aristotélica da amizade precede a do Estado, a
concordância política, um bem indiscutível, que não podia ser apresentada
nem pela sociedade dos escravistas, encontrou, na amizade, seu refúgio
(BLOCH, 2006b, p. 45).
Embora fosse árduo harmonizar a amizade entre escravocratas, Aristóteles
considerava indispensáveis o bem-querer, a concórdia e o bem-fazer. Nas utopias anarquistas
e federativas, advêm, por iniciativa do homem, da amizade em pequenas comunidades e
seitas, além do princípio da colonização da América do Norte, como gérmen da dissolução da
ordem social tradicional. Entre os precursores, Aristóteles, com sua plêiade de amigos,
dialoga com gerações de pensadores e profusões de sonhos, os mais díspares e esplendorosos
que cresceram através dos séculos.
Havia, naquele tempo, La République de Platão (2007), a primeira grande utopia, e
que veio a influenciar Thomas More e Campanella, sendo frequentemente citada nos idos do
Renascimento, e As Ilhas do Sol de Jâmbulo, em número de sete, sem escravos, nem senhores.
O quadro completa-se com a utopia estoica, que tinha as figuras dos seus realizadores no
conquistador Alexandre, e no filósofo Zenão, este com a Politéia, e a concepção da
fraternidade universal, sob o império romano (BLOCH, 2006a).
Na ideia de filósofo da Antiguidade, predominava o ideal de vida não violenta,
comunal e racional, com o cultivo da interioridade e do senso fraternal. A Bíblia também
falava da utopia do reino do amor ao próximo, da ―felicidade e riqueza para todos,
81
caracterizada como riqueza socialista‖ (BLOCH, 2006a, p. 54). Na economia capitalista,
como na escravista, a amizade tornou-se onírica, mas não efetiva. As utopias antigas soavam
vazias ou desimportantes, incompletas ou foram transformadas em forças originais para outras
utopias.
Bloch (2006a) não se descuida da variedade de utopias, mas não deixa de criticá-las.
Faz objeção à Antiguidade pela ambição da ―frugalidade‖, restrita ao desejo de fruição
compartilhada da felicidade, da convivência civilizada e da liberdade individual. ―A vida
social deve ser tão pouco imperativa quanto perambular pela praça‖ (BLOCH, 2006a, p. 49).
Em certa medida, repetia a máxima de Sólon: ―O desejável para nós não é a riqueza, mas a
virtude, e somente ela facilita a vida comunitária‖ (BLOCH, 2006a, p. 38).
Os tempos antigos com broa de centeio, leite e beterrabas eram os únicos
saudáveis, naturais, e pessoas que aderem abertamente a eles, convivem
entre si com a mesma facilidade que os saciados. Entre pessoas sem
necessidades também se torna supérfluo quase todo o trabalho, basta bater
um pouco de água para que o nadador despido se mantenha na superfície. E
uma cidade de tonéis, nos quais vivem as pessoas livres não requer muito
esforço para que se mantenha sem inveja. Acima de tudo, a pessoa, nessa
frugalidade, dorme sem sobressaltos à noite, anda ereto de dia, porque não se
demora na proximidade de acontecimentos sobre os quais não tem poder
(BLOCH, 2006a, p. 39).
Em Platão (2007), a utopia considera a particularidade antecipatória dos tempos
modernos, a ambição da ordem.42
O Estado, em La République, seria, no olhar de Bloch
(2006a), o centro organizador da vida e a encarnação da harmonia política. Seu modelo era o
de Esparta e a panaceia da autoridade, com homens austeros e uma casta superior, os
filósofos, e um conselho de anciões, a gerúsia, com leis construtivas, mas direcionadas a uma
hierarquização do homem.
A sua arquitetura corresponderia a um Estado-policial, ainda na interpretação de Bloch
(2006a). Em nome da sensatez e da virtude da obediência, teria se isolado do futuro: La
République esquece os desejos profundos, esquece as novas dúvidas, esquece a rebeldia. As
42
Na perspectiva do bem comum, Platão (2007) concebe o rei-filósofo ou o estadista, educado na filosofia,
capaz de levar o mundo das ideias para a realidade prática, dedicado a utilizar a inteligência para dar ordem
às coisas. Sábio em pensamento e ação, rígido de caráter, flexível na união da vontade enérgica e na
moderação, seria como um tecelão: usa o fio rígido e o fio flexível na trama para garantir a felicidade. A
educação era o elemento mediador. Tratava-se de uma espécie de comunismo inspirado na simplicidade de
hábitos. Emanação de um Estado ideal para tempos de crise, não um Estado absoluto. Como assinala o livro
VII de La République (PLATÃO, 2007), o surgimento do Estado perfeito dependeria deque a filosofia
descesse à caverna para iluminar os homens. A filosofia, a ciência e a justiça dariam sustentação ao bem, mas
este não dispõe de definição precisa, nem em La République, nem em qualquer outra obra escrita de Platão.
Em La République, possivelmente, é o ideal de justiça.
82
atenções voltam-se para uma Constituição perfeita. Pintam-se os sonhos sociais com as tintas
da ―abstração e do amor‖, ―nada nela haveria de ser difìcil‖ (BLOCH, 2006a, p. 36).
Com a supressão de qualquer desejo libertacionista, a predominância do Estado,
regido pelas leis e a ordem, ditadas por uma estratificação social, continua a negar-se a
promover a liberdade. Desse modo, os filhos seguem a profissão dos pais e não há
possibilidades de ascensão social. Ignora-se o que Leibniz chamaria de ―possibilités
éternelles‖, com os sonhos sociais antecipadores (BLOCH, 2006a, p. 37).
A crítica de Bloch a Platão parece ser de rejeição total, mas não é. Bloch (2006a), ao
longo de O Princípio Esperança, cita referências utopizantes, cerca de meia centena de vezes,
e outras cinco vezes em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) (2000), colhidas de Platão.
Em Sócrates, que fala pela voz de Platão, Bloch encontra o argumento de que o homem é bom
e ninguém, voluntariamente, pratica injustiças, mas por causa das circunstâncias. Bloch
assinala, explicitamente: Sócrates ―não saberia dizer se a morte é um mal, mas sabia que
cometer uma injustiça é um mal‖ e, com isso, liberta o homem da sua origem ―obscura e,
muitas vezes, tosca‖ (BLOCH, 2006a, p. 420).
Bloch (2006a, p. 419) recorre ainda a Platão para argumentar: a virtude pode ser
ensinada e aprendida como saber do bem. Para Bloch, Sócrates, por meio de Platão, entendeu
a vocação histórica do homem: ―ensinar e aprender a virtude‖ (BLOCH, 2006a, p. 421). Ao
examinar o pensamento de Platão e os estamentos de La République – produtivo, defensivo e
docente, as três castas do Estado platônico –, o que Bloch não encontra sentido é que, a
despeito da ausência de conteúdos revolucionários, Platão não tenha cessado de influenciar
também as utopias de caráter comunista. Em particular, no Renascimento, quando ele foi
considerado precursor do socialismo e na revolta camponesa liderada por Münzer.
Em consequência, reconstruiu-se, no grande idealista, praticamente a ―ideia‖
da utopia social, como sendo sem classes e estamentos. Analisando de perto,
alimentava-se, no contexto de Esparta, o sonho desejante de um reino
eclesiástico medieval, sim, clerical e militar, em lugar de uma construção
socialista. E muito antes de a liberdade encontrar seu romance de Estado, A
República de Platão idealizou utopicamente a ordem. Uma ordem espartana
perfeita, com seres humanos como pedestais, muros, janelas, na qual todos
possuem apenas a liberdade de ser sustento, proteção e iluminação para o
edifício articulado segundo a hierarquia (BLOCH, 2006a, p. 44).
Certamente, Bloch interpretou a utopia de Platão pela dimensão da ordem e da
hierarquização dominante em La République e relegou a dimensão dialética do bem comum e
da justiça. Mas Bloch não passa por cima da imensa sabedoria platônica, nem se subtrai ao
83
estudo de La République, porque seria se subtrair à própria filosofia. Critica-a, discute-a no
que existe de peculiar, toma posições que destacam a utopia concreta, como negar a
hipostasia, o Estado, a preponderância da ciência sobre o indivíduo e concebe o socialismo
como processo em que a ordem resulte da liberdade.
É possível que a crítica direta à utopia platônica seja uma forma indireta de criticar o
socialismo de Estado soviético por ter sido uma sociedade burocratizada. Dessa perspectiva,
pode ser assimilada a aversão à La République, àquela que Bloch considera a ―primeira e
célebre utopia‖ (BLOCH, 2006a, p. 34). A utopia platônica, no entender de Bloch, tornou-se o
símbolo da imposição da ordem.
Da crítica aos conceitos de Estado, hierarquia e ordem em Platão, Bloch passa à crítica
aos estoicos43
e ao reino do amor ao próximo, anunciado na Bíblia. Na utopia estoica, as
fragilidades do conceito do vir-a-ser encontram-se no caráter reformista e na concepção
fraterna do universo romano. A seguir, vem a utopia do reino de Deus. Nela, na versão
conservadora da Igreja, o vir-a-ser foi simbolizado pela De Civitate Dei agostiniana e estava
circunscrito ao céu. O Estado terreno pertencia ao mal e como a vida correta estava à deriva,
só encontraria recompensa na Cidade de Deus.
O sagrado almejado conviveu com o mal não sagrado. O mesmo Estado a que
Agostinho distinguiu é o Estado que ele despreza com a utopia intemporal de A Cidade de
Deus. Elevava a Igreja acima do Império, mas se rendia à reverência, acolhendo ―a tensão
entre a noite e a luz‖, como limitação polìtica (BLOCH, 2006a, p. 59). Chegava a admitir a
escravidão, rejeitada por quase todos os estoicos, na tentativa de conciliar as relações da
Igreja com o Estado, embora não deixasse de ser uma utopia da fraternidade, com os homens
utopizados como irmãos e a proposta de uma nova Terra regida por Deus.
43
Os estoicos difundiram o igualitarismo ainda no terceiro e no segundo séculos antes da era cristã, com a
descrição das sete ilhas da bem-aventurança. Seus habitantes desfrutavam de perfeita saúde, inteligência e
força. Viviam até à idade de 150 anos. Criado por Deus, o esplendor do sol era para desfrute por todos os
homens que, na Idade de Ouro, viveram em ―estado de igualdade‖ (COHN, 1970, p. 189). A Idade Média
assimilou a doutrina do igualitarismo, mas passou a identificar a sua não existência com o pecado original e a
corrupção humana. O homem rico deveria usar sua fortuna para restaurar o igualitarismo e a sociedade
natural. Criar homens livres e não promover a opressão, a escravidão e a pobreza.
84
A Civitas Dei era literalmente concebida como um pedaço do céu na Terra,
tanto sob o aspecto da felicidade quanto, sobretudo da pureza que, embora
não transforme os seres humanos em anjos, faz deles santos, ou seja,
segundo a doutrina católica, transforma-os em algo mais. Ao sombrio
pessimismo de Agostinho quando contempla a vida do Estado mundano,
contrapõe-se uma espécie de otimismo clerical ardoroso, porém abridor de
espaços, e também secularizável na época posterior da Civitas Dei,
alicerçado sobre a existência de santos e seu crescimento na Igreja. Despir-se
das obras do velho Adão, revestir-se de Cristo, em suma, a esperança por
renascimento espiritual de um número sempre expressivo de pessoas,
tornou-se, assim, a questão política utópica do Estado de Deus de Agostinho
(BLOCH, 2006a, p. 62).
No momento em que aborda as utopias de Thomas More e Bacon, a noção da utopia
blochiana amplia-se com a preponderância do homem ante os desígnios dos deuses e se
multiplica nos efeitos da revolução científica. Em More, as raízes da utopia emergem como
forças do futuro na ideia de um novo ser e, com Bacon, segundo Bloch (2006a), fica evidente
que o pressuposto da perfeição deve ceder lugar à superação de fronteiras. É o que faz a
ciência e o que faz o conhecimento, inspirando progressos no ambiente social e natural.
A consciência da imperfeição do progresso é que aproxima o homem da perfeição. A
consciência revolucionária, no entender de Marx (1982, p. 463), promove a consciência que o
homem tem de si mesmo na igualdade da prática e a sua consciência da realidade. Provoca
mudanças nas relações de produção, revela o trabalhador, não o capitalista, como quem
produz mercadorias e delas deve colher os frutos. ―O rumo ao melhor é primordialmente um
caminho humano, e isso significa aqui um caminho ousado‖ (BLOCH, 2006b, p. 136). Não é
mágico, é o real em que o ―arco entre o eu e o nós só se fechará quando o modo de produção
coletivo tiver se revelado definitivamente contra o modo privado de apropriação e troca‖
(BLOCH, 2006b, p. 53).
O que poderá fechar o arco do modo produtivo ―é o alvo de conteúdo utópico, que,
tanto no ser-consigo-mesmo quanto no ser-em-conjunto chama-se elucidação da incógnita
humana, identificação do nosso si mesmo e do nosso nós‖ (BLOCH, 2006b, p. 54). Intrìnseco
ao tótum da sociedade sem classes, encontra-se o cuidado com o conteúdo humano ainda
incompleto na sociedade burguesa. É a sociedade, não mais o homem individualmente,
responsável pela sua própria perfeição. A alienação não mais se projetaria acima da
identificação dos indivíduos com seu mundo.
As utopias de More e de Bacon são demonstrações transparentes dessas
possibilidades. Onde antes havia a glória de Deus, materializou-se, pela visão da Utopia
(MORE, 1999) e da Nova Atlântida (BACON, 2008), a glória da comunidade dos homens e
85
das possibilidades de igualdade e progresso. Florescia o totum da sociedade em que o
interesse individual e coletivo se encontravam.
Na sociedade sem classes, esse ―alvo‖ é o elemento vital da superestrutura
determinada pela estrutura básica, a constituição econômica, que rege as relações entre os
homens. A essa superestrutura, Marx (2007) dá o nome de ideologia, valores do sentido do
bem que podem ser racionalizados. A primeira ênfase, o princípio ético, encontrar-se-ia nos
fins humanos, as discordâncias, sem coerção, ficariam no plano dos meios. O Estado, como
preconiza Bloch, se extinguiria sob o socialismo por ausência de quem coagir ou dominar.
1.7 UTOPIA, CONSTRUÇÃO COLETIVA
A utopia só trabalha em prol do presente a ser alcançado.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 308)
Bloch (2006a) busca o ethos da utopia como emancipação do homem em Thomas
More,44
na transição da Idade Média para o Renascimento. E o ethos da revolução científica
em Bacon. Em More, personifica a liberdade, tão perseguida na Europa à época; em Bacon,
antevê a ciência e o humanismo como fundamentos de uma igualdade justa e antecipatória.
Contrariamente a More e a Bacon, Tommaso Campanella inscreve-se na antecipação da
44
A utopia é a ilha de Nenhum Lugar, Nehures, república protegida por altas montanhas, que o fictício
navegante-filósofo Rafhaël Hitlodeu, no longo diálogo que mantém com o ilustre Thomas More (1478-
1535), enaltece pelas virtudes da Constituição e afirma existir em alguma parte do Novo Mundo. São 54
cidades-estados, cada uma com 100 mil habitantes, regidas por poucas leis e escassas punições, pois não
existem mais incentivos ao crime. Em Nehures, predomina a união do humanismo cristão com o platonismo,
o aristotelismo, o estoicismo e o epicurismo. O cristianismo revela-se no culto ao divino, na partilha dos
bens, no respeito à vida e à natureza. A ilha evoca a perfectibilidade humana, mas não é um paraíso. Há
problemas como a fome e a desobediência. É construção dinâmica, ao longo do tempo. O platonismo surge
no interesse pelas boas leis e pela boa Constituição, pelo interesse na educação e pelo saber. A ordem e os
princípios normativos são a alternativa para a desordem e a dissolução. A classe dirigente, responsável pelo
estudo das ciências, não descende das famílias preeminentes, é escolhida pelos seus méritos. Na sua vertente
aristotélica, predominam o cuidado com o justo, a comunidade natural e a cidade ideal do livro VII da
Política. More é um filósofo cristão, mas a sua utopia é terrena. O centro da vida não é o mercado, como na
Inglaterra de Henrique VIII, com a acumulação capitalista em ascensão, mas o homem. A ética precisa ser
interiorizada e não apenas limitada à observância das leis. As reservas de metais e pedras preciosas são
abundantes, mas apenas utilizadas no comércio exterior. Preciosos são os metais de valor imanente, como o
ferro, e as colheitas, que, quando escassas, causam mortes pela fome. O estoicismo apresenta-se na
preponderância dos valores do ser sobre as coisas materiais. Os utopianos cultuam a sabedoria. A riqueza era
interior, não material. More revela-se convicto de que a finalidade da política é o bem comum (Cf. MORE et
al., 1987, p. 83-234).
86
ciência, mas rejeita o protagonismo primordial do homem. A arquitetura é arrojada, mas o
homem é refém da imposição da ordem e da burocracia.
A Cidade do Sol (CAMPANELLA, 2008) não conhece a propriedade privada, nem
ricos e pobres, não há mais-valia, mas não contém a percepção da multiplicidade humana e
sua incompletude. Nela, a utopia cede lugar a um mundo dado, como ―o todo do movimento
que não se move‖ (BLOCH, 2005, p. 306). É um Estado papista, totalmente diferente da
utopia liberal-federativa de More (1999).
Bloch (2006a) desenvolve suas reflexões lançando pontes entre a utopia de More e a
de Marx, um, Marx, considerando a liberdade como valor fundamental, outro elegendo como
valor essencial à paz conservada pela ordem.45
More, vivendo na Inglaterra sacudida pela
oposição entre o humanismo republicano e monarquista, com sua obra, imprime e funda a
utopia moderna. Marx, que escreveu quando a Europa vivia os impactos da Revolução
Industrial inglesa e quando o operário sentia na pele o fato de não controlar os
acontecimentos, trabalha com o intento de que a sociedade industrial ultrapasse o antigo
conceito de natureza humana, exige nova consciência dos indivíduos em relação à
racionalidade produtiva, o que, inevitavelmente, acabaria conduzindo ao socialismo. Introduz,
na filosofia, a superioridade da revolução social sobre a política. Não encontra outra
possibilidade para superar os problemas sociais e conceber a alma humana universal. O
operário, em Marx (1982), e o elemento ativo, não passivo, da Revolução.
More, segundo Bloch (2006a), supera o platonismo de La République, o mito da Idade
de Ouro, os relatos bíblicos do paraíso e o simbolismo profético milenarista de Gioacchino di
Fiore. Apesar de limitar sua utopia às dimensões de uma ilha, acolhe a harmonia da
convivência entre os homens e destes com a produção, antes, considerada pouco relevante.
Olhava as idealizações do passado, não como utopias menores, mas tentando aceitar que os
sonhos do florescimento social só podem germinar no socialismo. Havia, na Utopia, um
sujeito ativo, os despossuídos da Inglaterra.
45
Em O Capital (MARX, 1965), Livro I, Marx citarà Utopia de More como fonte de referência efetiva e, de
Bacon, menciona The Essays or Counsels Civil and Moral e The Reign of Henry VII. More e Bacon
fundamentam a tese marxiana de que as ―leis atrozes‖ são feitas no surgimento do capitalismo para
expropriar os despossuídos, como as multidões sem trabalho, fugitivos ou ladrões, rotulados como
―vagabundos‖, que, em número de 72.000, foram executados na Inglaterra por Henrique XVIII. Ou
poderosos como o clero que, também na Inglaterra, tiveram grande parte de suas terras expropriadas na
transição da Idade Média para o Renascimento. No princípio da acumulação primitiva do modo de produção
capitalista, as leis foram feitas contra camponeses e assalariados, estes nascidos na última metade do século
XVI, obedecendo unicamente à lógica do capital. A espoliação, a pilhagem de terras comunais e a usurpação
das propriedades, inclusive da Igreja, que foi a maior proprietária de terras na Inglaterra, foram a regra, não a
exceção. Foi assim que o trabalhador transitou da sua ―idade de ouro‖ para a ―idade de ferro‖ (MARX, 1965,
p. 1174-1201).
87
A visão marxista de emancipação é muito mais abrangente, mas é igualmente
fundamentada no mundo dos homens, tendo como sujeito o ser trabalhador.46
Derivava não da
natureza humana abstrata e, sim, moldada pelas relações de produção. Para que existisse a
emancipação do homem, a sociedade precisaria romper não só as barreiras do gênero ou de
raças,47
mas a barreira de classes. Foi o que fez Marx retomar e ampliar a força do conceito de
emancipação do homem vindo do Iluminismo. Não se tratava mais de abstração literária,
como em More, mas de sujeito real, de centralidade na vida produtiva (BLOCH, 2006a, p.
146).
A utopia marxista soava como apelo à construção da vida melhor. Nunca ao retorno ao
passado e, muito menos, à construção de uma guilda socialista. O capitalismo era o elemento
dominante, mas se acreditava que os dias de mudança estavam fermentando como resultado
das contradições da burguesia, se estas fossem eliminadas pela revolução proletária.
Na ilha da Utopia, More condena, a despeito de aceitar a escravidão, a ―liberdade
neofeudal dos prìncipes da indústria e dos monopólios‖, que reivindicavam liberdade para
explorar, expropriar e cerzir uma democracia capitalista plutocrática com escassas
congruências (BLOCH, 2006a, p. 83-4). Define a nova sociedade nos moldes do comunismo
primitivo, ―pista livre para o laborioso, fim das diferenças de estamentos‖, sem propriedade
privada e com o sonho da vida melhor envolto no postulado de que a ilha da utopia era ―o
lugar em que os seres humanos de fato se encontram‖ (BLOCH, 2006a, p. 70).
No traço eminentemente transformador da Utopia, Bloch (2006a, p. 71) condensa
nesta frase: ―A natureza talhou a todos nós da mesma madeira, para que um possa reconhecer
no outro sua semelhança, ou melhor: seu irmão‖. É uma percepção de matriz na comunidade
aristotélica de amigos e combina, pela primeira vez, ―liberdade pública e tolerância com a
economia coletiva‖ (BLOCH, 2006a, p. 74). Se os homens cultivassem a amizade, pregada na
Antiguidade por Aristóteles, haveria coesão e entendimento na vida cotidiana.
46
Bloch define a emancipação universal do trabalho e das relações de troca como condição essencial a todas as
emancipações parciais. ―Eu não sou nada e eu deveria ser tudo‖, escreve Marx (1982, p. 394) em Crítica da
Filosofia do Direito de Hegel. Ao emancipar-se, o homem deixa de ser um indivíduo egoísta e abstratamente
independente para ser parte da sociedade (MARX, 1982, p. 396-7). São as mesmas teses blochianas.
47
Para Bloch (2006a, p. 147), o feminismo e o sionismo só têm futuro na revolução social. Cita que More
demandava a ―equiparação total‖ entre mulheres e homens, tal como fariam a escritora George Sand e
Fourier, atrelando a emancipação feminina à emancipação da sociedade. Com o movimento sionista, não era
diferente: a Canaã do povo judeu passava pelo socialismo, alternativa capaz de sanar ódios, ressentimentos e
discriminações. A metáfora de Canaã é a comunidade dos indivìduos. ―O sionismo desemboca no socialismo
ou não desemboca em lugar algum‖ (BLOCH, 2006a, p. 166). Em A Questão Judaica, Marx (1982) critica os
judeus-alemães por desejarem igualdade no Estado cristão, sem pensar no futuro da humanidade e se
aferrando à convicção de ser o povo eleito. Em suma, é questão teológica, duplamente ―cìnica‖ por envolver
cristianismo e judaísmo, mas que não questiona o papel do Estado como mediador da liberdade e da
espontaneidade humana, nem a elevação do homem sobre todas as religiões (MARX, 1982, p. 352-5).
88
Seu conteúdo expressa-se nesta pergunta formulada por More: se somente pela
privação os seres humanos são tornados maus, ―por que puni-los tão duramente?‖ (BLOCH,
2006a, p. 74). A pergunta desdobra-se em crìtica contundente às leis dominantes: ―Prepara-se
a forca para os ladrões quando se deveria, muito antes, providenciar que eles tivessem sua
subsistência para que ninguém caísse na cruel obrigação de primeiro ter de roubar e depois
morrer‖ (BLOCH, 2006a, p. 74). Na sequência, Bloch revela More como o juiz da nobreza e
advogado do socialismo:
Como é grande o número de nobres que vivem no ócio como zangões,
sustentados pelo trabalho dos outros, e que os explora até o sangue; além
disso, reúnem em redor de si um enxame de preguiçosos e parasitas [...].
Onde ainda existir a propriedade privada, onde todas as pessoas medirem os
valores pelo critério do dinheiro, dificilmente será possível um dia
empreender uma política justa e feliz (BLOCH, 2006a, p. 74-5).
Os utopianos de More atingiam o coração do Estado ao se oporem a qualquer luta ou
guerra de poder, ao não se arrogarem, por lei constitucional, a cultuar qualquer religião que
fosse prejudicial ao homem e ao prefigurarem o Iluminismo com a organização de uma
sociedade em que o homem era o ser humano para o ser humano, sem dominação e sem
exploração.
No seio de forças capitalistas apenas incipientes, antecipava-se um mundo
futuro e mais que futuro, tanto o da democracia formal, que desencadeia o
capitalismo, quanto o da democracia humana concreta e material que o
elimina. Pela primeira vez, combinou-se a democracia em sentido humano,
no sentido da liberdade pública e tolerância, como a economia (facilmente
ameaçada pela burocracia e mesmo pelo clericalismo). Diferentemente de
todos os sonhos coletivistas anteriores do Estado ideal, em Thomas Morus*,
a liberdade está inscrita no coletivo e a democracia autêntica, concreta,
humana torna-se seu conteúdo. Esse conteúdo faz da Utopia, em seções
substanciais, uma espécie de obra liberal de memória e reflexão do
socialismo e comunismo (BLOCH, 2006a, p. 74).48
More, no entendimento de Bloch, foi precursor do comunismo, entendimento
partilhado por Agnes Heller (1982, p. 288-9), que vislumbrava o Renascimento abandonar o
paraìso privado de Adão e Eva em favor do ―grande paraìso comum da humanidade‖, Ureña
Pastor (1986, p. 253), Ernst Bloch: un futuro sin dios?, recorre a palavras semelhantes para
lembrar que o comunismo primitivo, como ―forma suprema‖ do ordenamento polìtico-
econômico, é o ―valor fundamental‖ da utopia de More, a primeira descrição na Idade
48
Forma alatinada, literariamente conhecida Thomas More.
89
Moderna do ―sonho democrático comunista‖, mas faz duas observações pertinentes: o amor
de More pela comunidade cristã primitiva e o ―feitiço‖ que o platonismo exerceu em todos os
autores renascentistas. Exatamente, a comunidades de bens e o sentimento de ordem. Ureña
Pastor encontra em Bloch (2006a) a descrição sìntese da liberdade: ―Um mìnimo de trabalho e
um máximo de alegria.‖
Na Utopia, More extingue a nobreza, estabelece a igualdade e suprime o Estado
autoritário na crença na liberdade, no culto ao mìnimo de ―trabalho e Estado, com um
máximo de alegria‖ e com conceitos pré-marxistas de consciência de classes e da mais-valia
(BLOCH, 2006a, p. 77). Desprendido do solo que alimentava novas relações de produção e,
assim, fomentava a expansão capitalista e o ocaso das cidades-estados renascentistas, More
(1999) condensou ―os sonhos de ideais democrático-comunistas‖ na abolição da propriedade
privada, da tolerância religiosa e da democracia coletiva, concreta, humana (BLOCH, 2006a,
p. 74-5). Esse conteúdo faz da Utopia, em questões substanciais, ―uma espécie de obra liberal
de memória e reflexão do socialismo e do comunismo‖ (BLOCH, 2006a, p. 74).
Nem mesmo o cristianismo parece conter, para os utopianos, um
―pensamento mais devoto‖. Aceitam, preferencialmente, a religião cristã
apenas ―porque ouviram que Cristo teria sancionado a organização
comunista dos seus discìpulos‖. No mais, todas as religiões são admitidas,
numa grandiosa tolerância unificadora, e também a adoração do sol, da luz,
da lua e dos planetas. Os utopianos concordam acerca de um culto comum,
que cada partido complementa segundo sua concepção e por meio de formas
culturais específicas. A Utopia é o eldorado da liberdade religiosa, para não
dizer: o panteão de todos os deuses (BLOCH, 2006a, p. 76).
Com a Utopia, o homem renascentista distanciou-se do teocentrismo e se aproximou
do humanismo socialista, passando a ser considerado como capaz de construir o próprio
destino com a argamassa da razão, do entusiasmo e da vontade. Esses aspectos conduzem à
evidência de que o homem vale por si próprio, independente das origens da classe social e dos
privilégios. O fundamento da utopia transforma-se do ―não lugar‖ ou ―lugar nenhum‖ na
ruptura com a sociedade vigente e a construção de uma sociedade nova.
Aos poucos, as utopias deixaram de ser uma ilha para se universalizarem e refletirem o
homem de princípios reais numa época em que os monarcas exigiam fidelidade total e os
dissidentes eram torturados ou decapitados. Simbólico o exemplo de More (1999): o
venerando chanceler foi condenado à morte e teve sua cabeça exposta em Londres, acusado
de traição, por não ter reconhecido o monarca Henrique VIII como chefe da Igreja Anglicana.
90
Para Bloch (2006b), o essencial, naqueles momentos transformadores, estava na
identificação do homem com o olhar para a frente, o Lebenswelt, o mundo-da-vida. A vida
que existia antes da ciência – sem ilusões, sem reducionismos – sai da sombra para a luz. E já
então ganha sentido, não como pregava o Novo Testamento, humildade e atividade envoltas
na mìstica de ―estar liberto em Deus‖, mas na ―libertação em relação a Deus‖ (BLOCH,
2006b, p. 304-5). Não o olhar para o alto, o céu e sua infinitude. O olhar para a Terra.
Não parece significativo para Bloch o acontecimento histórico de que More morreu
defendendo a propriedade privada, alinhando-se com a igreja papal e a sociedade de classes.
Como não há relevância na hipótese de que a porção comunista da Utopia se deve à influência
de Erasmo de Rotterdam e a uma possível falta de sinceridade quanto às antecipações sociais.
Ao analisar a Utopia, Bloch comenta as contradições da obra e as discrepâncias entre a vida
do chanceler More e a sua visão da sociedade utópica comunista. Mas lhe chama atenção a
condenação da velha Europa e do Estado de classes (BLOCH, 2006a).
Há, porém, impurezas que não condizem com a narrativa utópica concreta – a
anomalia ou o padrão do escravismo desde a Antiguidade, guerras moralmente justas, a
renúncia monástica pelos prazeres da vida e o elogio ao prazer do trabalho doloroso, punição
ao adultério com a ―mais severa escravidão‖ (BLOCH, 2006a, p.76). São nevoeiros com
propensão a se dissipar quando comparados à luminosidade que, ―malgrado todas as suas
impurezas, a Utopia é, e continua sendo, o primeiro retrato mais recente de sonhos de ideais
democráticos-comunistas‖ (BLOCH, 2006a, p.74).
A Utopia antecipou o sonho blochiano do homem como sujeito histórico de um
mundo novo. Não deixou, também, de antecipar os dilemas futuros da sociedade comunista,
como os problemas econômicos. O que iria mudar, em síntese, é que a utopia da emancipação
marxista não se permite aprisionar num romance, nem numa ilha. Antevê ―reviravolta na
tomada de consciência de transpor o concreto‖ (BLOCH, 2005, p.15). Preenche esse espaço,
não só a esfera do humanismo revolucionário – a extensão do ―poder produtivo‖ à classe
trabalhadora, uma ―luz nova‖ do materialismo dialético (MARX, 1965, p. 1569)49
–, mas
encontra-se na força do antagonismo da ciência meramente autoritária contra a ciência
humanística, intimamente vinculada ao progresso real, não dogmático, da humanidade.
49
O humanismo revolucionário corresponde ao conceito expresso em O Capital de homem integral, totalmente
desenvolvido, com as máquinas ocupando o lugar dos homens na produção (MARX, 1965, p. 1675). Ao
reagrupar as Teses sobre Feuerbach (4, 6, 7, 9 e 10), Bloch (2005) define o humanismo revolucionário como
aquele que se propõe a anular completamente a alienação, incentivando o homem a descobrir a vida pela
prática e, na prática, ―a imanência do seu pensamento‖ (p. 261-5). Considera incipiente o conceito de
humanismo revolucionário como é ainda incipiente o conceito de ―filosofia da revolução‖, porque o homem
se sente ―impotente‖ para evitar que todo o pensamento se transforme em mercadoria (BLOCH, 2005, p.
279).
91
1.8 CIÊNCIA AUTORITÁRIA, CIÊNCIA HUMANISTA
Ainda está muito distante o forno do qual surgem com sucesso as novas
coisas úteis.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 208)
Na luta constante contra as utopias abstratas e autoritárias, Bloch desloca o conceito
de utopia para a natureza das relações sociais e a realidade material do homem. Mas recorre
às antecipações subjetivas quando revelam ser tendências concretas da realidade. O propósito
é demonstrar que a filosofia marxista não nutre aversão pela utopia, como Marx sugere em O
Manifesto Comunista,50
mas que o pressuposto central é de que a utopia seja concreta. Nessa
relação entre a utopia concreta e a mera abstração se situam as utopias de Campanella e
Bacon.
Astrológica e antimaterialista, a utopia de Tommaso Campanella,51
com o progresso
amparado na ordem, transmite a ilusão de futuro sem tumultos e sem oposições, distante da
experiência democrática e sequer da acepção de conto de fadas. De feições absolutistas, suas
possibilidades escapam ao curso da história e ao conceito de futuro com a utopia se
50
O Manifesto Comunista, a obra mais crítica de Marx à utopia revela-se, ironicamente, a sua obra mais
utópica. Concebe a revolução burguesa na Alemanha, às vésperas de se concretizar, como ―o prelúdio
imediato de uma revolução proletária‖ (MARX; ENGELS, 1998a, p. 69). Subestima a capacidade de
renovação do capitalismo e a universalidade do operariado ao afirmar que ―a subjugação do operário ao
capital, tanto na Inglaterra como na França, na América como na Alemanha, despoja o proletário de todo o
caráter nacional‖ (MARX; ENGELS, 1998a, p. 49). E considera que a burguesia compromete a existência
dos pequenos comerciantes, pequenos fabricantes e camponeses como camadas médias, sendo evidente que
―é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante e de impor à sociedade, como lei
suprema, as condições de existência de sua classe‖ (MARX; ENGELS, 1998a, p. 50). A verdade da
burguesia é a contradição e essa contradição é que a levaria ao desastre: ―Tudo que era sólido e estável se
desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem
ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens‖ (MARX; ENGELS, 1998a, p. 43).
51
Escrita no cárcere, onde Campanella (1568-1639) viveu 27 anos e foi sete vezes vítima de torturas, A Cidade
do Sol foi revisada em 1613 e publicada, em latim, em 1623, com o título Civitas Solis. Corresponde ao
relato minucioso feito pelo viajado genovês, Gubernator Geneunsis, ao seu anfitrião. No imaginário de
Campanella, a cidade abaixo da linha do Equador, erguida numa colina, faz do Estado a imagem de Deus.
Dominada pelo templo do sol, reunia sete grandes círculos concêntricos, cada um com o nome de um dos
sete planetas, separados por sólidas muralhas que se comunicavam entre si por quatro vias e quatro portas
pesadas de ferro e orientadas por pontos cardeais. Surge num ambiente político em que a Igreja celebrava a
paz católica entre Espanha e França para enfrentar o inimigo comum: a reforma luterana. Duas datas capitais:
1542 – o Concílio de Trento se arrasta por três anos. A Itália, embora contra a Reforma, vinha se esforçando
para acabar com a dominação espanhola; 1559 – em 3 de abril, é celebrada a paz católica entre França e
Espanha para combater a Reforma luterana. Os jesuítas passam a ofensiva contra os reformistas na Itália
meridional, que corresponde praticamente a toda a Itália, grassa a opressão política. A ação da Igreja e das
grandes potências europeias caracteriza-se pela política de influência territorial. A Inquisição opõe-se à
expansão mercantil, econômica e financeira. Os jesuítas, empenhados em conter a Reforma, promoveram as
Missões do Paraguai. O sentido era realizar ações para manter as expectativas messiânicas.
92
constituindo em sua base social e sendo ―a manifestação mais prática dos desejos humanos‖
(BLOCH, 2006a, p. 37). Sendo ―finito e limitado‖, o ser precisa de Deus para lhe dar amor,
força, saber e protegê-lo (BLOCH, 2006a, p. 62). A Cidade do Sol germinou quando a
produção artesanal transitava para a manufatura e corresponde à consonância entre o interesse
burguês e a monarquia.
Civitas Solis era a representação da concentração de poder em mãos do soberano e
procurava afirmar a filosofia natural e moral, subtraindo, do ser humano, ―a possibilidade de
escolha e a própria liberdade‖ (BLOCH, 2006a, p. 81). Campanella vai justificá-la com o
argumento de que o mundo era mau, que a sociedade não funcionava, que ninguém sabia o
seu lugar, que o sol era deus e que a ciência necessitava de um Estado-Sol. Abolia a liberdade,
incentivava a superstição (BLOCH, 2006a, p. 71-2).
Antes de tudo, Campanella acreditava que a Civitas Solis pudesse ganhar textura de
realidade. Diferentemente de More, o Estado utópico em Campanella representa a liberdade
como trunfo da ordem. Não um despertar social. Viver sem atrito significava que o ser
humano iria se contentar em viver escravizado. Regida no invólucro metafísico dos astros,
condenando qualquer ruptura com os espaços demarcados, associados à ordem autoritária e à
felicidade, A Cidade do Sol tangencia as ilhas dos estoicos pela ausência de conflito, mas o
sol da liberdade não refulge. Predominam a ―dramaticidade da hora certa, da localização
certa, da ordem correta de todas as coisas e pessoas‖ (BLOCH, 2006a, p. 79).
A Cidade do Sol traz o fardo da imobilidade do tempo: em Campanella, os seres
humanos, ontologicamente, existem para permanecer em seus lugares e, neles, ficarem
inertes. Não reivindicam a pulsão vital da expressão. A vida é ―utopizada em termos de
socialismo estatal‖, e os sonhos são os mesmos das grandes potências dominantes da época –
França, Espanha e Inglaterra –, tendo o Estado como a imagem de Deus (BLOCH, 2006a, p.
79).
Bloch (2006a) entende que Campanella foi uma exceção, ao lado de Bacon, ao
antecipar avanços técnicos na arquitetura ―ainda não existentes‖, como no desenvolvimento
da imprensa escrita, que preencheria a história do mundo com ―mais histórias do que o mundo
anteviu em quatro mil anos‖ (BLOCH, 2006a, p. 210). A diferença é que Campanella fundou
a tecnologia a serviço do Estado autoritário, concebendo o futuro como uma ―catedral
fortemente hierarquizada‖ que a tudo envolvia com seu manto de ordem (BLOCH, 2006a, p.
62).
Bacon nunca teve tal intenção. Ele, como a Inglaterra, absorveu o espírito desbravador
de Colombo, e sua filosofia estava fortemente influenciada pelo avanço do saber, que
93
considerava a verdadeira fonte de poder (BLOCH, 2006a, p. 115). O conhecimento, segundo
Bacon (2008), deveria servir ao homem, ao aperfeiçoamento do mundo e à utilização da
natureza. Considerava a palavra ―técnica‖ como palavra mágica, mas não uma magia
supersticiosa. Uma magia de sonho, separada de toda a superstição.
Bacon foi o primeiro a falar do mitológico Prometeu como um rebelde da técnica, da
inventividade, multiplicador ao infinito do poder criativo do homem (BLOCH, 2006a, p.
146). É com esse olhar que Bloch (2006a) entende a utopia de Bacon. Preparava o terreno
para a futura Revolução Industrial. Não perseguia ilusões. Perseguia uma utopia totalmente
histórica.
Bloch (2006a) identifica a Nova Atlântida de Bacon52
com a possibilidade do
humanismo tecnológico. Seria o inverso da Atlântida platônica, metáfora da cidade injusta,
governada despoticamente, fundada por Posídon e destruída por castigo de Zeus.53
Na utópica
Bensalem, homem e técnica caminham lado a lado com refinado sentido de integração,
prosperidade e harmonia. Seus cidadãos são cientistas, tolerantes e igualitários. No livro II de
O Princípio Esperança, Bloch (2006a) reconhece a força prodigiosa da invenção que irrompe
dos subterrâneos da Idade Média e do Renascimento para modelar os laboratórios imaginários
da ―ilha inteligente‖, perdida na imensidão do Pacìfico.
Bacon cortou as amarras restritivas da natureza do seu tempo, da história humana,
―das diferentes Tróias em chamas‖ e da ―mitologia do destino‖ (BLOCH, 2006a, p. 210).
Sonhando com o equilíbrio entre a vida ativa e contemplativa, consciente de que a
humanidade deveria caminhar rumo à abundância, não se deixar prender pelas tragédias das
52
Na Nova Atlântida, ficção filosófica inacabada de Francis Bacon (1561-1626), o vir-a-ser se identifica com o
mundo da ciência. Bacon, nesta obra, publicada em 1627, 111 anos após a Utopia, de More, e apenas quatro
anos após A Cidade do Sol, de Campanella, propõe uma filosofia nova para um mundo novo. Nascido em
Londres, período em que a Inglaterra se firmou como potência marítima, acreditava que, no Renascimento, a
sociedade estava construindo uma nova história, que o homem estava destinado a afirmar a si mesmo e,
graças ao poder da imaginação, não retrocederia à Antiguidade. A liberdade do ―filósofo da técnica‖ ou da
―ciência aplicada à indústria‖, estava na ―substituição da velha filosofia por uma outra superior‖ (BACON,
2008, p. VIII).
53
O nome ―atlantes‖ evoca a arrebentação e o desfazer-se das espumas do mar. Eram os atlantes, na origem, os
filhos de Atlas. E Platão, ao concebê-los, filhos do Céu e da Terra, os humanos primeiros, filhos dos filhos do
Céu, não do Homo sapiens, de estatura grandiosa e feito nas mesmas proporções. Platão mantém-se fiel à
magia mítica e cria Atlântida parecida com La République (2007), mas habitada por guerreiros e guardiões,
famosos em toda a Europa e Ásia ―pela beleza dos seus corpos e por todas as virtudes de suas almas, e eram
os mais ilustres de todos os homens da época‖ (PLATÃO, 2009, p. 199). Não eram cientistas, como não
podiam ser, pois a ciência, em Platão, estava na ordenação do cosmo e de todo o existente (LABORDA,
2005, p. 120-1). Se pela episteme vemos o mundo, pela ciência, saberíamos como é este mesmo mundo.
Nessa maneira de ver, as invenções não estavam em questão. As preocupações estavam assentadas nas
soluções para os problemas primeiros, tendo o ―Bem comum‖, a ―alegoria do sol‖ e o ―mito da Caverna‖ no
epicentro das coisas inteligíveis e não inteligíveis, no coração daquilo que é e não é explicado pela
matemática. Eram, assim, os atlantes sacerdotes, pastores, caçadores, lavradores, criadores. Viviam em terras
absurdamente férteis e ricas em metais, ouro em abundância.
94
epidemias e carestias, procurava um alvo para o saber, não o saber pelo saber. Uma Atlântida,
―em que tudo serve ao ser humano, serve-lhe para o melhor‖ (BLOCH, 2006a, p. 207).
O escrito de Bacon representa, mesmo nos tempos subsequentes, a única
utopia de nível clássico que atribui um valor decisivo às forças produtivas
técnicas da vida melhor. De qualquer modo, ao contrário da vida real, nas
utopias, nem sempre o mundo das máquinas e o mundo socioeconômico
aparecem relacionados. Nesse ponto, a Nova Atlântida de Bacon teria
merecido ser imitada, de modo a suscitar a elaboração de obras que
correspondessem seriamente à evolução técnica e suas possibilidades
imanentes (BLOCH, 2006a, p. 209).
Na Casa de Salomão, onde pulsa o coração da ilha, há recursos para produzir chuva
artificial, neve e o ar da montanha. São produzidas novas espécies de plantas, frutas, animais,
minerais artificiais, materiais de construção, remédios e cabos de longa distância. Na Casa de
Salomão, havia máquinas de voar, máquinas a vapor, turbinas de água. Os atlantes
imaginaram o telefone, o submarino, o microscópio e o microfone (BLOCH, 2006a, p. 208-
9). O que o rei Salomão imaginava fazer com o uso da magia, os cientistas da utopia de Bacon
fazem por meio da técnica.
Eles dedicavam-se a experimentos, não à magia, tronco ancestral da ciência. Bacon,
sabia que os contos de fadas podiam se tornar realidade não pela mudança das palavras ou da
forma narrativa, mas pela progressão do particular para o geral, pela observação da natureza e
pela fundamentação metodológica. A filosofia, na Nova Atlântida, projetava-se para além da
invenção em benefício do progresso humano. Com Bacon, o mítico Prometeu, no sentido do
conhecimento, torna-se humano. Com More, a utopia deixa de ser arcaica e se volta para o
futuro. Com Campanella, a utopia não sai do lugar e permanece imóvel, recua, volta-se para
trás.
A Cidade do Sol corresponde, na narrativa de Bloch (2006a), ao país das maravilhas.
Encontra-se na luta contra o dragão (São Jorge, Apolo, Siegfried), na libertação da donzela
presa pelo dragão (Perseu e Andrômeda), no arquétipo do apocalipse religioso ―vingador e
redentor‖ e nas irrupções, de caráter não libertador, não humanizador, do ―antigo chão mìtico
da fantasia‖, que não fazem sonhar com o futuro (BLOCH, 2005, p. 161-2). Os sonhos
emanados da Utopia de More e da Nova Atlântida de Bacon anunciam o encontro dos ideais
com a função utópica; e da dança em torno da árvore da Revolução Francesa, arquétipo novo,
vida latente no final do Fidélio:54
―Louvado o dia, louvada a hora‖ (BLOCH, 2006a, p. 462).
54
Fidélio (em alemão, Fidelio), única obra teatral de Beethoven, foi apresentada, pela primeira vez, em 20 de
novembro de 1805, em Viena, no momento em que tropas de Napoleão invadiam e ocupavam a cidade.
95
Louvados o dia e a hora da liberdade, igualdade e fraternidade, permanentemente
presentes na utopia rejuvenescedora do socialismo. Como princípio, Bloch (2006a)
transforma a possibilidade em esperança. Busca acordar o homem para o significado de viver
uma época, como ele viveu, ―a primeira a possuir os pressupostos socioeconômicos para uma
teoria do ainda-não-consciente e do que está relacionado a ele no que-ainda-não-veio-a-ser do
mundo‖ (BLOCH, 2005),
O marxismo, sobretudo, foi o pioneiro em proporcionar ao mundo um
conceito de saber que não tem mais como referência essencial aquilo que foi
ou existiu, mas a tendência do que é ascendente. Ele introduz o futuro na
nossa abordagem teórica e prática da realidade. Esse conhecimento da
tendência é necessário para rememorar, interpretar e revelar as mensagens
que até o não-mais-consciente e o existente podem continuar nos enviando,
além de ser necessário para reafirmar sua eterna vigência. Dessa maneira, o
marxismo resgatou o núcleo racional da utopia e o da dialética na tendência
ainda de cunho idealista, trazendo-os para o concreto (p. 141).
Pela utopia concreta, Bloch separa o final feliz ilusório e o final feliz autêntico,
orientado pela postura crítica e pela luz das possibilidades (BLOCH, 2005, p. 432-3). Separa a
crença passiva no avanço automático das relações sociais e a fé no processo histórico, com ou
sem alienação, com avanços e recuos. Em Bloch, não há dialética petrificada, não há
purificação apenas pela técnica ou pela ciência. A alienação do homem, com relação à
natureza, reflete a alienação social do homem, produto de ―liberação extremada das forças
produtivas‖ (BLOCH, 2006a, p. 460).
Bloch (2006a) diagnostica que as utopias, além da interpretação das possibilidades
futuras, criam relações de vasos comunicantes entre o sentimento revolucionário e os heróis
trágicos, como Prometeu, o valoroso titã que na mitologia foi acorrentado por Zeus no
Cáucaso (onde todos os dias uma águia ou abutre devorava o seu fígado que, também todos os
dias, regenerava-se, permitindo suplício sem fim), mas, que não capitulam diante do medo, do
sofrimento e do chamado destino. Por isso, Prometeu Acorrentado de Ésquilo (1977)
encontra-se, na avaliação de Bloch (2006b, p. 295-6), no centro da tragédia grega, fazendo de
todas as demais ―variações‖ do drama do titã a raiz da rebelião de Dioniso e do homem.
O passo seguinte da revolta prometeica está na ambivalência crucial do homem de
abraçar e negar Deus: combina religião e ateísmo, sonha com o futuro, mas apaga-se à
repetição dos valores da sociedade existente, nega o mundo burguês das máquinas, mas o
Revisada em 1814, a ópera se passa em uma prisão durante a Revolução Francesa e celebra o vigor da
liberdade e da esperança (LOCKWOOD, 2005, p. 296-303).
96
cultua como sinônimo de progresso; e se contradiz ao querer tomar nas mãos a realidade das
causas sociais, limitando-se, porém, a manter-se como uma ―esfinge encoberta‖ mudando
apenas pela metade a natureza da vida (BLOCH, 2006a, p. 250). Mas as ambivalências do
processo histórico não impediram que a partir das utopias de More e de Bacon, o homem
deixa de ser criação de Deus para nascer da dialética da história. As chamadas utopias sociais
irão confirmar tal evidência.
97
CAPÍTULO II
SONHOS DE REFORMAS E OS NOVOS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DO
TRABALHO NA MEDIAÇÃO UTÓPICA
A Terra se tornou bastante conhecida, porém, o Eldorado, buscado por
Jasão como por Colombo, ainda não foi encontrado.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006, p. 305)
Se os sonhos de mudanças utópicas foram abundantes em fantasias, não faltou também
a abundância de ideias, com tentativas de antecipações, até o despertar para a sociedade sem
classes. Analisando sob esse prisma, as utopias sociais da Antiguidade e a pós-Utopia de
More tiveram seu desaguar natural nas utopias da era industrial, com Owen,55
Fourier56
e
Saint-Simon.57
À miséria dos camponeses dos séculos anteriores, somaram-se os operários
55
Os 87 anos de vida de Robert Owen (1771-1858) podem ser divididos em dois capítulos: no primeiro, foi
pioneiro na indústria escocesa de fios de lã, amealhando fortuna e prestígio até a idade de 46 anos; a seguir,
torna-se sinônimo de utopia social e socialismo. Leitor contumaz, piedoso ao extremo, dedicou-se ao estudo
dos estoicos, incluindo Sêneca, das condições de vida dos operários e das reformas sociais. Escreveu extensa
obra, com livros e artigos que somam mais de mil páginas. Era uma espécie de ―messias ateu‖, na definição
de Gregory Claeys (OWEN, 1993a, p. xxxi). Acreditava na educação coletiva das crianças, com ―forte senso
de comunidade‖ (OWEN, 1993a, p. iv). Era veementemente contrário ao trabalho infantil e à violência,
inclusive contra os animais. Foi o pai fundador do cooperativismo. Sua influência estendeu-se,
posteriormente, ao Partido Trabalhista, à responsabilidade social das elites europeias e a utopistas, como John
Ruskin e William Morris.
56
Charles Fourier (1772-1837), a exemplo de Saint-Simon, também viveu as frustrações da Revolução
Francesa. Dos anos de 1789 a 1794, extraiu os elementos fundamentais de seu pensamento: a ideia da utopia,
o desejo de ultrapassar soluções puramente políticas e a convicção de que tinha missão providencial a
cumprir. Seu mundo utópico concentrava-se na Harmonia, organização de comunidades em Phalanges, nome
que deriva de antigas unidades de combate gregas. Aos seus integrantes, era garantida alimentação, roupas,
assistência às crianças e educação. O trabalho era um divertimento e precisava refletir a paixão das pessoas.
A marcha da história fez Fourier despertar para os caminhos imprevisíveis da realidade e mostrou a
capacidade burguesa de impor sua ordem, de restabelecer um regime mais forte e mais centralizado que o
Ancien Régime, que se volatilizou com a execução de Luís XVI. A exemplo de Saint-Simon, Fourier fez
parte de um punhado de descontentes que não se rendeu à retórica da demagogia e à acomodação da política.
Em 1799, percebeu que a civilização não é o destino do homem? e que a sociedade feliz e harmoniosa
poderia existir.
57
Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon (1760-1825), nasceu em Paris, em 1760, dez anos antes de
Fourier, e morreu dez anos depois dele, cercado pela admiração dos discípulos. Saint-Simon postulava elevar
a dignidade humana. Apaixonou-se pela Antiguidade nos anos de formação escolar e, aos 19 anos, como
capitão, partiu para a América, onde desde o primeiro momento anteviu o nascimento de uma ―república de
trabalhadores, sem rei nem castas‖ (BELAVAL, 1973, p. 124, v. 1). Lutou pela independência americana,
viajou pelo México, foi prisioneiro dos ingleses e retornou à França aos 23 anos, com a patente de coronel.
Sua vida foi a metáfora do fim e do começo de uma era. Durante a Revolução Francesa, financiava, com
recursos próprios, cursos públicos para populares. Fez fortuna com especulação de terras e financeira,
intermediando a venda de propriedades expropriadas da Igreja pela Revolução. Caiu em desgraça por ser de
98
que sonharam com a libertação nos idos da Revolução Francesa e, de repente, viram-se
abandonados pela burguesia vitoriosa.
O camponês servo da gleba tinha uma vida bastante dura, o cálice do
sofrimento parecia estar cheio. Mas mesmo a pior época da camponesa
medieval é suplantada pelos primeiros operários de fábrica. As antigas
fábricas eram a mesma coisa que as galés. Um proletariado faminto, sem
repouso e desesperado era acorrentado às máquinas. O lucro do empresário
não conhecia controle nem pausa. Dezoito horas ou mais durava a jornada
diária de trabalho, uma sujeira sem igual (BLOCH, 2006a, p. 111).
O movimento para mudar esse quadro começou com um médico britânico, socialista
ricardiano, de nome Charles Hall que, em 1805, lançou o livro The Effects of Civilization.
Pregava o retroceder da civilização industrial e a volta da economia agrária, mas com a
divisão das terras em partes iguais para os camponeses. O propósito, do ponto de vista de Hall
era neutralizar as formações de monopólios que fazia os ricos cada vez mais ricos e os pobres
cada vez mais pobres. Não mereceu atenção nem dos ricos, nem dos pobres (BLOCH, 2006a).
Com o empresário Robert Owen, foi diferente. Vendo a miséria do trabalhador
crescer, ele, que se tornou um dos primeiros utopistas do século XIX, argumentava que ―um
trabalhador bem nutrido e satisfeito precisa da metade do tempo para produzir a mesma
quantia de trabalho e coisa melhor do que escravo de galé‖ (BLOCH, 2006a, p. 111). Não
defendia a destruição das máquinas, mas a partilha dos bens produzidos, eliminando-se os
lucros advindos do trabalho não remunerado.
O exemplo prático estava na sua fábrica modelo de New Lanark, na Escócia, onde
Owen elevou a vida dos operários e introduziu padrões morais por meio da educação,
organizou a produção com participação coletiva, aumentou salários e diminuiu a jornada de
trabalho. Iniciou, assim, o que considerava o reino da felicidade e da virtude, espaço paralelo
aos liberais, alinhados com a tese da rápida expansão da economia, e aos radicais,
organizados para defender a reforma da constituição com o estabelecimento do sufrágio
universal, a supressão do protecionismo e das leis de exceção que proibiam as coalizões
operárias.
origem aristocrática e foi preso. Libertado, passou a investir no comércio e na indústria. Em 1798, sonhou em
organizar uma casa bancária. Faliu. Naquele mesmo ano, abandonou os negócios para dedicar-se à filosofia.
―Filósofo inventivo‖, pensava uma nova concepção filosófica, um novo sistema social, uma nova religião
(MUSSO, 2006, p. 19).
99
2.1 OWEN, FOURIER E SAINT-SIMON: COMUNISMO FILANTRÓPICO, PAIXÕES E
SOCIALISMO INDUSTRIAL COMO REFORMAS PARA VALORIZAÇÃO DO
TRABALHO
A obra dos autênticos sonhadores sociais foi diferente, honesta e grandiosa.
Assim precisa ser entendida e guardada no coração, com todas as
debilidades de sua abstração e de seu otimismo demasiado expedito, mas
também com sua incessante insistência em paz, liberdade, pão. E a história
das utopias evidência: o socialismo é tão antigo quanto o Ocidente, sim,
bem mais antigo no arquétipo que sempre o acompanha: o período áureo.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 138)
Owen (1993a, p. 66) acreditava que o homem não era livre porque o meio em que
vivia não lhe proporcionava liberdade. Se fosse educado, e essa era a primeira tarefa da
sociedade, agiria racionalmente, não praticaria injustiça ou maldade e desenvolveria sua
capacidade física e mental a favor da comunidade. O segundo ponto: no livro The Social
System (1993b), Owen volta-se da previdência social para o socialismo; em The Book of the
New Moral World (1993c), caminha para a solução reformista, mas condena as greves e a luta
pelas liberdades políticas.
Não pregava a revolução, mas a conciliação: que os industriais, parlamentares,
ministros e governantes renegassem o capitalismo por reconhecimento das suas mazelas e
amor humanitário. E que a aristocracia e os governos combatessem as leis que incentivavam a
pobreza, a desigualdade e, igualmente, patrocinassem a felicidade da raça humana. As
instituições eram responsáveis pela formação do caráter dos homens desde a infância.
Definia-se, publicamente, como ―amigo dos pobres e da classe trabalhadora‖ (OWEN, 1993d,
p. 187).
A alquimia dos projetos e atitudes fez dele um ―comunista filantrópico‖ e um lìder
reformista que procurou organizar a sociedade a partir da distribuição dos lucros, não da
produção e da mais-valia (BLOCH, 2006a, p. 112). Pensava organizar a sociedade em
cooperativas, sem propriedade privada, mas esbarrou nas limitações das escalas de produção.
Suas referências maiores eram o economista David Ricardo58
e a sua teoria do valor
do trabalho, além de Thomas More e a unidade grega entre o poder da mente e o poder do
58
David Ricardo (1772-1823), economista clássico inglês, inspirou-se na doutrina utilitarista, muito apreciada
por Owen e, com seu método analítico, lançou as bases da moderna economia. Marx foi largamente
influenciado por Ricardo, em particular na teoria do valor. Owen o considerava Ricardo um liberal, de ideias
sólidas, com quem manteve múltiplas divergências (OWEN, 1993a, p. 157).
100
corpo, que nenhum outro povo da Antiguidade logrou conquistar, algo que os romanos, nos
dias de glória do regime republicano, tentaram imitar, mas que nenhuma nação moderna
jamais alcançou. A degeneração a esse respeito repercutiu na ―imperfeição fìsica de uma
porção da população‖ e na ―imperfeição intelectual de outra porção‖, gerando ignorância,
doença, miséria e decadência moral (OWEN, 1993c, p. 62). Acreditava superar a imperfeição
física, intelectual e moral, removendo as suas causas, com o exercício das faculdades naturais
do homem.
O seu objetivo maior era aperfeiçoar o homem, ―soerguê-lo purificado da sujeira das
fábricas‖, e construir uma ―nova humanidade‖, tendo como filosofia social a neutralidade
ética do trabalhador que seria ―alegre e bom‖ se as condições de produção fossem humanas
(BLOCH, 2006a, p. 113). Os paradigmas mais evidentes estavam nas tentativas de construção
de grupos federativos de trezentas a duas mil pessoas, que só existiram em New Harmony, no
estado norte-americano de Indiana. Fundada em 1824, a colônia instalou-se em regiões
desérticas, desfrutando de liberdade total: não havia propriedade individual, nem religião,
nem laços legais nas relações sexuais. Embora estivesse partindo do zero para construir as
relações de produção, fracassou.
Como também fracassou a condenação de Owen ao matrimônio que, junto com a
propriedade privada e a religião positiva, formariam, segundo ele, a ―trindade do mal‖
(BLOCH, 2006a, p. 113). Nada traziam de positivo para o ser humano, a exemplo do
matrimônio que representaria, como qualificou, ―a escravidão vitalìcia sexual‖ (BLOCH,
2006a, p. 113). Diferentemente de Bloch, Owen acreditava na reforma do capitalismo e na
possibilidade do trabalhador organizar-se independentemente do Estado, comprometido com
o capital. O perfil que Bloch (2006a) traça de Owen é de um utopista a-histórico: ele
considerava que, se as circunstâncias estivessem em ordem, o homem também estaria em
ordem. Recusava-se a enxergar que as estruturas estavam acima das circunstâncias.
Essa era a forma de cura diagnosticada por Owen para a sociedade: pequenos grupos
reunidos em unidades federadas, sem divisão do trabalho, sem separação da economia rural e
urbana, sem burocracia. Seria o reino pedagógico de uma humanidade futura, contrapondo ―a
longa noite imóvel‖ da vida interior ao raiar de um novo dia. Era, como admite Bloch
(2006a), uma utopia ingênua, mas já prefigurava o valor do trabalho e a supressão do livre
mercado.
Fourier, como Owen, pouco voltado para a defesa dos interesses de classe, revelou-se
dialético: na sua utopia, demonstrou não acreditar na mudança do mundo como obra da
burguesia, nem pelas conquistas ou pela força. E, embora não tivesse conhecido Hegel e fosse
101
mais de uma geração anterior a Marx, percebeu que a miséria nascia da abundância, e esta era
o ―reverso dialeticamente necessário do esplendor capitalista, instituìda por ele, inseparável
dele, crescente com ele‖ (BLOCH, 2006a, p. 114).
A percepção levou Fourier a antever o fim da livre concorrência e a formação de
grandes monopólios. As barreiras das guildas estavam ruindo, e Fourier alimentava a
esperança de que a organização cooperativista da sociedade pudesse pressionar por estágios
posteriores aos monopólios para produção e distribuição de bens. Daí, ter projetado, como
Owen, pequenas comunidades, os phalanstères (falanstérios), sem abolição completa da
propriedade privada.59
Em lugar de reformar o homem, como pretendia Owen, Fourier
aspirava transformar a sociedade para satisfazer as paixões humanas e combater a hipocrisia.
Não concordava com a exploração do homem pelo homem, mas entendia ser
necessária a constituição de ―fortunas módicas‖ para a preservação do equilìbrio entre a
individualidade e o coletivo (BLOCH, 2006a, p. 115). Do choque entre as comunidades e a
propriedade privada, a ilusão burguesa seria expulsa e, gradativamente, haveria
transformações reais no mundo.
A utopia de Fourier encarregou-se de antecipar o futuro: o trabalho, não mais do que
duas horas, movido pela paixão, a indústria harmonizando o mundo material, o mundo moral-
afetivo harmonizando o mundo social e o mundo intelectual harmonizando as leis da ordem
universal. ―Sem pobreza e sem aquela subdivisão que seleciona o próprio ser humano‖, a
comuna era o retrato da construção da felicidade, ―semelhante à jovem América de Walt
Whitman, mas sem capitalismo‖ (BLOCH, 2006a, p. 116).
Na direção oposta do a-histórico Owen e do dialético Fourier, com ambos procurando
equilibrar a vida individual com a coletiva, Saint-Simon, com suas construções lógicas e o
culto ao industrialismo, com suas jornadas de trabalho reguladas, como as de Campanella e
com engenheiros e técnicos controlando o mundo, envolveu-se com a utopia centralista. Era
um utopista normativo, também não dialético, que considerava o proletariado de então
―totalmente passivo e não emancipado‖, devendo ser liderado pelos industriais. E, em
particular, pelos banqueiros capazes de privar ―reis e parasitas feudais do dinheiro‖, podendo,
pela sua capacidade administrativa e pelo papel de representantes centrais da moderna
economia, prestar ―auxìlio ao povo‖ na ―comunidade industrial do povo‖ (BLOCH, 2006a, p.
119).
59
―O falanstério era para Fourier uma verdadeira alucinação. Ele o via por toda parte, na civilização e na
natureza‖ (BENJAMIN, 2007, p. 673).
102
Saint-Simon ―utopizou" o trabalhador, o industrial e o banqueiro: desprovido da
consciência de Fourier, não olhou em torno para ver o rastro de miséria deixado, na Europa,
pelo capital. Acreditava na Revolução Industrial com a mesma convicção que acreditava no
socialismo industrial. Odiava e amava o feudalismo. Seu projeto industrialista era antifeudal,
mas sua oposição ao liberalismo era fonte de veneração duradoura à Idade Média e à
instauração de uma nova ordem hierárquica que abolisse o caos e a anarquia. Em sua opinião,
o homem, para ser feliz, necessitava de ordem social, mais do que qualquer outra coisa, e a
prosperidade produzida pela indústria devolveria à humanidade um padrão de ordem só
encontrado na Idade Média.
Não tinha em vista um objetivo reacionário, na análise de Bloch (2006a, p. 121), mas
―visava a reprogramar o liberalismo, a fim de alcançar, através dele, o valor humano dos laços
sociais‖. Estava convicto de que épocas passadas, no caso a Idade Média, não se restauram,
mas que o lugar do feudalismo e o da igreja podiam ser ocupado pela indústria e pela ciência.
Pregava o retorno da unidade europeia.
Saint-Simon apenas acreditava que a extorsão total do fraco não era
essencial ao ―sistema industrial‖: por isso, sendo abolido o direito de herança
e outras formas senhoriais de auferir renda sem trabalhar, as bênçãos do
industrialismo poderiam começar de imediato (BLOCH, 2006a, p. 120).
Ele dividia a sociedade em dois grandes grupos: os banqueiros e os ociosos. Os
banqueiros marchariam unidos pelo trabalho aos industriais, agricultores, cientistas e
operários e se distinguiriam daqueles que não trabalham – os militares e o clero – pela
capacidade de produção. Sintetizou sua visão de mundo em três obras marcantes:
Reorganização da Sociedade Europeia (1814), Sistema Industrial (1821) e O Novo
Cristianismo (1825).
As qualidades de Saint-Simon esvaziam-se por ele ser contrário à revolução social e
conceber, no Estado industrial, a ―Igreja da inteligência‖, rejuvenescida pelo espìrito do
cristianismo (BLOCH, 2006a, p. 120). Dessa forma, tendeu mais para o lado de Campanella
do que de More. Arrebatado pelo conceito de ordem, limitou-se a mascarar ou reformar os
vícios da sociedade burguesa.
Em Saint-Simon, a revolução seria a revolução na indústria. O vir-a-ser da liberdade
foi unicamente social, orientada para o alvo comum da produção, que, acreditava, não viveria
crises tìpicas do capitalismo. Admirava a ―capacidade administrativa‖ dos banqueiros,
acreditava que o poder da riqueza advinda do trabalho era ―mais progressista que a riqueza do
103
poder baseado na tradição feudal‖ e entendia que a ―organização‖ dos grandes
empreendimentos se revelava mais socialista do que a associação de pequenos produtores.
Essa posição, Bloch (2006b, p. 120-1) interpretou como sendo uma crítica a Fourier, além de
evidência do ―romantismo liberal‖ saintsimoniano, sem perceber o que essa atitude continha
de reacionária. Assim, agia porque visava, por meio do liberalismo, a restaurar os laços
sociais.
Saint-Simon acrescentou, na era das fábricas e do romantismo, o papa
industrial e determinadas correspondências nos laços sociais que
continuariam atuando e que, antes, não existiam: as correspondências entre
socialismo e a organização eclesiástica. Independente disso, reina aqui o
páthos da organização social, que ainda significa: uma indústria estatal
social, formulada de maneira esplendidamente liberal. A utopia de Saint-
Simon está significativamente mais próxima de Campanella que Morus e
apresenta todas as vantagens, e também todos os perigos, de uma ideia
coletiva, que, na organização centralizada, não vem equipada de elementos
federativos e democráticos, sim, que não constrói solidariamente com eles a
rigorosidade da própria organização (BLOCH, 2006b, p. 123).
O papa industrial é uma referência direta ao forte centralismo de Saint-Simon. Guiado
por um ―sumo sacerdote social‖, a inteligência dos mais capazes, que colocaria o ―páthos da
ordem mistificada‖ no lugar da liberdade manchesteriana de empreender (laissez-faire,
laissez-aller), e pelo casamento ―altamente paradoxal‖ entre o reacionarismo e o socialismo, a
utopia de Saint-Simon submetia a produção a um controle e supervisão únicos, procurando se
manter imune aos supostos ―caos e anarquia‖ (BLOCH, 2006a, p. 121).
Nesse passo, o governo e a indústria seriam como uma religião, com seus dogmas,
seus mistérios e seus sacerdotes. A prática da exploração, com Saint-Simon, saía da órbita da
superestrutura industrial para ter a sua origem no hábito feudal do senhor de explorar o servo.
A nova ―igreja industrial‖ não mais permitiria que isso acontecesse. Não foi o que fez o
liberalismo, na análise de Bloch: no início, convergiu para o oposto ao feudalismo, mas logo
se colocou em seu lugar e adotou meios ―igualmente impiedosos de opressão‖ (BLOCH,
2006a, p. 120).
À linhagem dos utopistas sociais, claramente centralista, Bloch (2006a) adiciona ainda
Cabet60
e Louis Blanc. Cabet, com seu ideário de ordem, mas acreditando também na força
60
Cabet era um igualitário, avesso à violência e às revoluções, defensor de um comunismo de inspiração em
Cristo. Na sociedade de Cabet, não deveria existir nem propriedade privada, nem sistema monetário. De
origem jacobina, converteu-se ao comunismo pela leitura da Utopia de Tomas More. Considerava a
democracia burguesa um estágio de transição necessária. Seu livro Viagem a Icária, publicado em 1842, na
França, alcançou grande êxito popular. Era inspirado nas sagradas escrituras cristãs. Mehring considera-o a
expressão do ―moralismo utopista‖ (MEHRING, 2003, p. 77-85). Viagem a Icária é um romance filosófico
104
das tensões sociais entre ricos e pobres, e suas Icárias, ―edifìcio unitário altamente industrial,
sustentado por uma poderosa nação de trabalhadores‖ (BLOCH, 2006a, p. 116-7). Cabet, em
1840, utilizou a palavra communiste, em oposição às communités partialles.61
No seu
programa, enaltecia a indústria e a sua força revolucionária.
Louis Blanc, da escola de Saint-Simon, confiava em poder trocar as instituições
capitalistas, inclusive os bancos, por instituições do Estado, instituições socialistas,
eliminando a concorrência e fazendo do Estado o senhor da produção. Blanc, jornalista e
polìtico, que influenciou Proudhon e Bakunin, autor do aforismo ―De cada um segundo sua
capacidade, a cada um segundo suas necessidades‖ (Organization du Travail, 1839),62
contribuiu para a descoberta da vida operária na França e a organização dos trabalhadores em
cooperativas, sindicatos e comitês. Procurava influenciar a alta burguesia na melhoria das
condições de trabalho e o operariado na defesa da organização de um sistema parlamentar
democrático, por meio do sufrágio universal. Tentava pensar a República o Estado e a
interdependência com o trabalho.
Na Revolução de 1848, ano da publicação de O Manifesto Comunista, ano que
demarcou a separação histórica entre operários e burgueses, Blanc interrogou a sociedade a
respeito do sentido das palavras Liberdade, Igualdade e Fraternidade, herdada da Revolução
Francesa, num ambiente em que grassava o desemprego e no qual os direitos do trabalhador
precisavam ser reconhecidos e ampliados, o que lhe valeu longo exílio na Inglaterra e
ambientado na imaginária Icária, pais desenvolvido com mais de um milhão de habitantes, organizado em
torno de quatro princìpios: ―viver‖, ―trabalhar‖, ―a cada um segundo suas necessidades‖, ―a cada um segundo
seus talentos‖. Expressa a convicção de que a futura sociedade socialista não poderá vir pela revolução e,
sim, pela vontade da maioria, a exemplo do que aconteceu em Esparta, com Licurgo, 549 anos a.C, quando
os ricos abandonaram voluntariamente suas terras, dividindo-as igualmente entre a população. Eram 39.000
cidadãos que possuíam 39.000 porções de terra, sem direito de aliená-las (MEHRING, 2003, p. 470-474).
Esse é o ideal que Cabet traz para o século XIX, recorrendo, além das ideias de Louis Blanc, também as
teorias de Fourier, Owen e Saint-Simon e a reconstrução do pensamento filosófico, desde Platão. A tese é a
mesma de Marx: a propriedade privada é a fonte da desigualdade e precisa ser suprimida para que a
humanidade progrida. A diferença está na escolha da via para o socialismo. No final da viagem, a conclusão
é que Icaria progride porque é sob todos os aspectos um pais comunista: conta com uma ciência, uma
doutrina, uma teoria e um sistema (MEHRING, 2003, p. 556).
61
A invenção da palavra socialismo é atribuída a Pierre Leroux, seguidor de Saint-Simon. Teria sido usada,
pela primeira vez, no jornal Le Globe em 1832 e, na mesma década, pelos discípulos de Owen, na Inglaterra.
Seus partidários buscaram inspiração, num primeiro momento, em A república de Platão, no comunismo das
seitas da Idade Média e nos utopistas do Renascimento, em especial Thomas More e Campanella. A Utopia
de More mereceu mais atenção por denunciar os primeiros sintomas da acumulação capitalista e por pregar a
abolição da propriedade privada, o significado universal do trabalho, a igualdade de direitos e riqueza, a
organização da produção pelo Estado e a erradicação da pobreza e da exploração (KOLAKOWSKI, 1990, p.
187-8). Leroux nasceu em 1797, foi tipógrafo e fundador do jornal Le Globe, porta-voz do sansimonismo
(LEROUX, 2009, p. 13).
62
―De chacun selon ses facultés à chacun selon ses besoins‖.
105
condenação à deportação. Blanc reagiu negativamente ao O Manifesto Comunista de Marx e
Engels.
A revolução da classe operária era estrangeira ao seu pensamento. Como ao sentido da
palavra ―organização‖ era estrangeira a planificação da economia. ―Organização‖ era a união
dos trabalhadores para pressionar e participar da República. Defendia o socialismo de um
Estado servidor.63
Remetia ao impasse ainda presente: reforma ou revolução? Em 1870, se
opôs ao levante da Comuna de Paris, mas condenou a violência da repressão e, já de volta, à
politica francesa defendeu a anistia dos integrantes do movimento.
Louis Blanc viveu 71 anos. Criticava Saint-Simon, segundo Bloch (2006a) por querer
construir um capitalismo de Estado, não um socialismo de Estado. Seu itinerário não passou
de um ―mascaramento do capitalismo de Estado como socialismo de Estado‖, porque não se
fundamentava na revolução social. Era como o mestre Saint-Simon, um centralista. Como
aconteceu com o mestre, sua obra se deteriorou.
2.2 A UTOPIA SOCIAL CONQUISTA O TRABALHADOR: O IGUALITARISMO
ANARQUISTA PERDE TERRENO PARA A DIALÉTICA MATERIALISTA
Fato é que o utópico, em última análise, não é nada se não aponta para o
agora e não busca o seu presente derramado. Como um presente autêntico,
não mais um como um presente composto do agora, do recém-decorrido e
do simultâneo do espaço envolvente. Com certeza, o agora meramente
imediato, transitório, é muito pouco; ele desaparece e dá lugar ao próximo,
porque nada nele chegou a ser bem-sucedido.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 307)
Na contraluz da história, o realismo de Bloch faz refletir utopias dialéticas e não
dialéticas. As utopias não dialéticas recorrem ao discurso de transformações profundas, mas
de conteúdo incipiente. Além de Owen, Saint-Simon, Cabet e Louis Blanc, Bloch analisa
outros utopistas, de diferentes estaturas, mas que não lograram avançar ou avançaram por um
momento e foram relegados a plano secundário. Não lhes faltava talento para pensar, mas
possibilitavam a ilusão de reformar o capitalismo.
63
Cf. Louis Blanc Un Socialiste en République, de Charruad Benoît (2008).
106
É o caso de Weitling,64
auxiliar de artesão, que Bloch (2006a) define como ―uma das
últimas cabeças utópicas puras‖, que, no dizer de Franz Mehring, ―lançou por terra a barreira
que separava os utopistas ocidentais da classe trabalhadora‖ (BLOCH, 2006a, p. 130), mas
que, como Proudhon, também irrealista, era não dialético. Nele, a ―amargura e a esperança‖
brotavam da experiência pessoal. Viveu na Alemanha quando a classe trabalhadora ensaiava a
organização e, como o francês Babeuf,65
lembrava a antiga voz proletária em defesa da
igualdade real. Nunca foi anarquista. Era um puro que ―avistou a Terra Prometida‖ quando
Marx e Engels apenas começavam a torná-la acessível às grandes massas (BLOCH, 2006a, p.
133).
Weitling pregava, como Babeuf, uma república de iguais, imensa família de irmãos.
Sofreu influências de Saint-Simon e Proudhon, e o seu lema, ―Todos os homens são irmãos‖,
traía um socialismo lírico, diverso do socialismo militante de Marx, com a expressão
―Proletários de todas as nações, uni-vos‖, extraìda do Manifesto Comunista (BLOCH, 2006a,
p. 131).
Weitling vislumbrava um paraíso de trabalhadores jamais alcançável. Proudhon,66
um
utopista individual, anarquista, tornou-se famoso na França pelo escrito O Que É a
Propriedade? E ele próprio respondia: um roubo. A seguir, amenizou o conceito e concedeu à
propriedade ―uma origem mais simpática‖, como registra Bloch, ao explicar a visão de
Proudhon: ―A propriedade tem sua raiz na natureza do ser humano e na necessidade das
coisas‖ (BLOCH, 2006a, p. 124). Proudhon ligou-se à ideia da partilha coletiva da
64
Wilhelm Weitling foi um ―comunista primitivo de caráter evangélico‖, na definição de Kolakowski, ―cético
quanto às chances de revoluções não violentas‖, que mistura lúcida crìtica à Bìblia com ―mórbida pretensão
messiânica‖, no dizer de Rubel (MARX, 1982, p. CIX); é mais um cristão primitivo, um reformista, que
apresentava Cristo como um comunista, contrário à opressão e à injustiça. Repudiava a propriedade privada.
65
François Noël Gracchus Babeuf (1760-1797), jornalista, mais conhecido como Gracchus Babeuf, foi
condenado à morte em 27 de maio de 1797, pela guilhotina, acusado de liderar a Conspiração dos Iguais. O
movimento procurou mobilizar o povo francês em prol da continuidade da Revolução, até que se tornasse
uma revolução popular. Em maio de 1796, o movimento foi reprimido, e Babeuf preso, acusado de
conspiração. Julgado, não renegou a sociedade igualitária, mas negou o complô. Não houve protestos quanto
à sua execução. Babeuf morreu ―envolto pelo silêncio‖ (MOLON, 2002, p. 87). Marx (1982) considera
Babeuf um pioneiro na compreensão de que o socialismo exigia a superação da propriedade privada, mas
definia os babovistas como ―materialistas incultos, pouco civilizados‖ (MARX, 1982, p. 572). Na
historiografia da Revolução, ocupa ―um lugar desproporcional‖ ao papel que nela desempenhou: apareceu
em cena tardiamente, sem participar de momentos decisivos nas assembleias revolucionárias, tendo a sua
conspiração destinada a derrubar o regime burguês, sendo facilmente descoberta e tendo despertado
―indiferença do público‖ (FURET; OZOUF, 1988, p. 191).
66
Contra Proudhon, Marx escreveu Miséria da Filosofia. Condenava-o por limitar-se a ―imagens poéticas‖
quando abordava as contradições do capitalismo. E o definia como ―filósofo e economista da pequena
burguesia da cabeça aos pés‖, acusando-o de estar abaixo dos comunistas, ―porque não possui nem coragem
nem luzes para se elevar, sequer especulativamente, acima do homem burguês‖. Contrário ao Estado polìtico,
como Fourier e Owen, foi criticado por Marx pela sua resistência ao comunismo, que Proudhon considerava
uma espécie de escravidão (MARX, 1982, p. 93).
107
propriedade, com a ressalva de que esta deveria ser pequena para não se transformar em
instrumento de opressão. De certa forma, implicava a extinção gradativa do socialismo. O
ímpeto revolucionário inicial dissipou-se, cedendo lugar à preservação da lógica de produção
burguesa.
Contudo, Proudhon atinha-se aos princípios do anarquismo – a recusa ao direito
burguês, o respeito à individualidade, à coerção e às leis do Estado e à ajuda mútua, embora
deixasse de pé o contrato livre entre produtores independentes ou supostamente
independentes –, incompatível com qualquer desigualdade entre as pessoas, derivado do
liberalismo abstrato do século XVIII. Confundia a palavra de ordem com o fundamento real:
ignorava o fundamento econômico da sociedade com o fermento das contradições, mas
aspirava à propriedade, com os desdobramentos do valor, crédito e poder.
Ao pregar a autonomia individual, Proudhon inaugurou o sistema social com núcleo
nas classes médias, na ilusão de poder suprimir, de uma vez, o capitalismo e o proletariado,
sendo primeiro o capitalismo pela ação do proletariado e, depois, o proletariado pela
autoeliminação da sociedade sem classes. Puro equívoco, porque, como compreendeu Marx, é
impossível suprimir a sociedade de classes sem superar a propriedade privada, o que impede a
existência de qualquer princípio filosófico de coletividade (BLOCH, 2006b, p. 125).
Quase que, na mesma linhagem de Proudhon, Bloch trata de Mikhail Bakunin,
também anarquista. Não por ele ter sido o ―terror da burguesia‖, propagando a ação violenta
como rumo para destruir o Estado. Não por ter sonhado com uma organização livre de
trabalhadores. Não por nada ter conseguido como o seu prazer pela destruição, salvo o
fortalecimento do Estado conservador, que ele considerava opressor político. Sim, por ele ter
sido um utopista não dialético, alimentado pelo ódio abstrato ao poder, que se caracterizou
pelo isolamento das massas e pela ilusão de colocar o direito burguês a seu favor. Acreditava
que a simples supressão da autoridade era suficiente para instaurar a fraternidade e a
igualdade de classes.
Foi parte de um igualitarismo que caducou na sociedade industrial por não acordar
para os fundamentos econômicos do Estado. As palavras de Bakunin, impregnadas por
divagações idealistas-vitalistas de poder individual, dissolvem-se no conformismo e na
mediocridade de uma democracia de classe média, em que a ―mazela principal‖ não era o
capital, mas o Estado (BLOCH, 2006a, p. 128).
A dialética materialista trilhou a direção contrária: o sujeito revolucionário seria a
massa de trabalhadores. Em Bloch, não seria o único sujeito, mas de base predominante. A
coluna do utopismo estava partida, na interpretação blochiana, e o materialismo dialético
108
ocupava-se exatamente do ponto da fratura, sem ódio abstrato pelo poder, nem o culto à
ideologia individualista, nem o lirismo político.
O encontro com a contemporaneidade dos meios de produção exigiu o despertar, como
defendeu Marx, do proletariado para a crueza da realidade (BLOCH, 2006a, p. 129).
A fome força ao trabalho, mas este nos esgota da mesma maneira como a
fome. O empresário, ávido por obter lucro, não sabe o que é esse tipo de
trabalho, o do servo. Os artistas e pesquisadores tampouco o sabem por
outras razões. Porque ele é corveia imposta à força, imposta para fins
alheios. Conhecem essa corveia em toda sua árida extensão somente o
proletariado e o empregado (BLOCH, 2006a, p. 438).
Ao lembrar a difícil experiência do operário e do empregado, Bloch (2005) procurou
reafirmar a clareza do alvo a alcançar. O alvo instiga, traz o ―otimismo militante‖ para as
categorias do ―front‖, do ―novum‖ e do ―ultimum‖, redobrando a ―coragem e o saber‖, mesmo
quando este é cego para o futuro, foi derrotado ou vê o futuro como algo ―fechado em si
mesmo‖, inacessível (BLOCH, 2005, p. 196). O alvo serve, acrescentava Bloch (2005), como
antídoto contra o otimismo falso e o otimismo não-utópico, o qual favorece a indecisão, não a
ação concreta, desligando-se da realidade e pendendo mais para o golpismo e o isolamento do
que para a mudança efetiva da realidade.
Nem tudo o que é sabido é igualmente reconhecido, muito menos quando se
trata de algo recente. Assim, o conceito de novidade, tão estreitamente
ligado ao front, tampouco se encontra numa boa situação. O novo se
movimenta psiquicamente no âmbito do primeiro amor, e também, no da
sensação de primavera. Apesar disso, este último praticamente não
encontrou um pensador. Ele preenche repetidamente esquecido, as vésperas
de grandes acontecimentos, abrangendo uma reação mista altamente
característica de temor, proteção, confiança. Fundamenta, no prometido
novum da felicidade, a consciência do advento. Perpassa as expectativas de
quase todas as religiões, na medida em que de fato é possível entender
corretamente a consciência de futuro primitiva, inclusive do antigo Oriente.
Permeia toda a Bíblia, desde a bênção de Jacó até o Filho do Homem que
renova tudo, e até o novo céu e a nova terra. Apesar disso, a categoria novum
nem de longe foi caracterizada de maneira adequada, e não encontrou espaço
em nenhuma cosmovisão pré-marxista (BLOCH, 2005, p. 198-9).
Bloch não se voltava para a luta apenas contra o imobilismo, mas, contra a anti-
possibilidade do ―novum como um todo‖, que desloca os vìnculos entre o inìcio e o ultimum
como se não fizessem parte de um mesmo ciclo de mediação (BLOCH, 2005, p. 200). O seu
argumento decisivo era quanto a permanência do vazio, mesmo a teoria metafísica da
vitalidade podia chegar à vertigem, mas não ao desfecho do processo do novum (BLOCH,
109
2005, p. 199). Consequentemente, se inexiste o novum, a dialética torna-se estéril, e a origem
das coisas deixa de ser o agente realizador. Sem a definição do alvo, os percursos sempre
levam e levarão a nenhum lugar. Mas o novum genuíno é o horizonte da utopia. Ele é o
elemento que destrói as estruturas que o aprisionam, que impede que o ultimum, que
sobrevive em religiões que marcam um prazo para que as coisas aconteçam, se repita e cria
possibilidade reais de mudança.
A partir de Marx, superou-se o caráter abstrato das utopias; a melhoria do
mundo acontece como trabalho em e com a correlação dialética das leis do
mundo objetivo, com a dialética material de uma história compreendida e
conscientemente produzida (BLOCH, 2006a, p. 138).
Com Marx, a utopia ―ganha chão, algo como pés e mãos‖, incorpora a unidade da
esperança: ―Tanto mais inconfundivelmente se torna consistente e vigente o sonho concreto, e
tanto mais eficazmente funcionou seu conteúdo realizado e opera seu conteúdo não realizado
na realidade‖ (BLOCH, 2006a, p. 177). A frase expressa a postulação de Marx quanto a
unidade da esperança, da noção de processo, do realismo e do entusiasmo. Os pés e as mãos
relacionam-se com o caminhar da metamorfose histórica. Simbolizam a universalidade do
homem e a sua conformidade com o mundo, a liberdade a sua totalidade. O conteúdo
realizado é o trabalho, o conteúdo não realizado encontra-se na permanência da sociedade de
classes. O novum encontra-se na origem da nova sociedade sem classes.
Contudo, o que ninguém pode fazer é tirar o mérito dos sonhadores, em qualquer
época. Bloch (2006a) lembra que os utopistas sociais, apesar do fraco relacionamento com o
proletariado, empenhavam-se na ação de mudar. Foram incessantes na perseverança por paz,
liberdade e pão. Não existisse o ingrediente do sonho, a ideia socialista não seria tão antiga
quanto o Ocidente, e a história das utopias não o acompanhariam no tempestuoso horizonte de
possibilidades (BLOCH, 2006a, p. 138).
Forem eles, os sonhadores, que tiraram a Idade de Ouro das páginas da mitologia e das
narrativas históricas para a realidade. O mito da Idade de Ouro – abundância, beleza,
juventude, saúde, despreocupação, lazer, prazeres físicos e intelectuais – é uma representação
pagã ou judaica da felicidade que, ao longo da história, alterna a procura do paraíso no céu e
na terra (MINOIS, 2011, p. 3). Originalmente, nasce com Hesíodo no século VII a.C., com o
poema épico Teogonia Trabalho e Dias, que fala de uma ―raça de ouro‖ que vivia feliz longos
anos de juventude devido à ausência de doença. Foi no reinado de Cronos, deus ambíguo que
110
devorava os filhos, mas distinguia os homens com a generosidade dos frutos da terra,
inexistindo, portanto, necessidade de trabalhar.
A ―raça de ouro‖ teria desaparecido graças à Pandora (todos, pan, dons, dôron ou dom
de todos os deus) que, com ciúmes da felicidade dos homens, trouxe para a terra todos os
males, inclusive a esperança. Mas, desde Hesíodo e Ovídio, na Antiguidade, do Renascimento
às utopias sociais do século XVIII, o mito da Idade de Ouro se mistura com o sonho de
sociedades livres e pode representar um momento que passou, como um momento ainda por
acontecer. Sonho que se traduz na procura do éden nas Américas (riquezas e liberdade, mas
ambas conquistadas pela concorrência incruenta), na revolução das Luzes (a ideia de
progresso, a busca da felicidade como direito inalienável), na felicidade burguesa, tão
―denegrida‖ quanto ―cobiçada‖ e na revolução dos ―sans-culottes‖ que entrelaça o sonho da
igualdade aos sonhos de liberdade e fraternidade (MINOIS, 2013, p. 313).
No socialismo blochiano, a felicidade está no futuro e é simbolizada pela libertação do
homem dos meios de produção. Mas quando olha para trás e reflete sobre os riscos do
caminho percorrido, Bloch encontra as marcas de uma mesma imagem: os utopistas
procurando caminhos para trazer o futuro para a terra. Pandora de Hesíodo como dotada do
mal da esperança, se perdeu no imaginário humano, cedendo lugar à figura da transformação,
da completude do homem com muitas fechaduras, mas com a possibilidade de construir as
chaves para abri-las ou simplesmente arrebentá-las. Estamos diante, assim, da Pandora de
Goethe, mito que encontra coesão na possibilidade, ligado quanto a isso, ao entusiasmo e à
vontade.
Esse, apesar de todas as incompletudes ou incoerências, é o alvo, pós Marx, dos
utopistas. O salto dialético, se comparado ao alvo dos utopistas do passado, estaria na utopia
concreta: incorpora valores das utopias abstratas e delas se distingue não por concentrar-se na
substância da sociedade futura, mas por analisar a estrutura. Combina razão e esperança, ação
ativa do sujeito revolucionário e consciência, processo concreto e antecipação real do bem
comum. É polimorfo, mas a sua unidade está no olhar para o infinito futuro.
111
2.3 SUJEITOS DA MEDIAÇÃO UTÓPICA
O real é processo e processo é mediação vastamente ramificada entre o
presente, o passado pendente, sobretudo, o futuro possível.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 194)
A realidade das utopias é a realidade objetiva da mediação ao longo das épocas. O
possível, no pensamento filosófico de Bloch, divide-se em objetivamente-possível e o
possível-real: o primeiro corresponde aquilo cuja ocorrência possa ser cientificamente
esperada, como o movimento do ser; o possível real, em contrapartida, significa, tudo o que
ainda não está concluído no âmbito do objeto, mas pode ser concluído, como a mudança
revolucionária.
O tema da mediação emerge em termos dialético-materiais no sentido de que a cada
transformação da realidade os limites das possibilidades de mudança se ampliam. E, com ele,
novos fermentos de antecipação passam a compor a realidade, resultam em novo elã para a
utopia. Como evidência do possível-real, Bloch cita o caso da Rússia que não esperou tornar-
se capitalista para fazer a Revolução socialista. O caminho para o alvo foi dado pela
combinação do frio e do calor antecipatório, com forte sentimento da categoria das
possibilidades.
No princípio, era a ilusão. Não foi Pandora de Hesíodo a primeira mensageira mítica
da falsa esperança da Idade de Ouro?67
Prometeu também não foi visto, na Antiguidade, como
rebelde fracassado e incapaz de trazer para a humanidade toda a riqueza dos céus como
pretendia? Os deuses tornavam-se o arquétipo da ordem, enquanto a esperança e a rebeldia,
mediadoras da mudança revolucionária, seriam condenadas até encontrarem a antítese da
narrativa de Hesíodo em Pandora e em Prometeu ambos de Goethe.
Na paisagem que foi se adensando, os sujeitos da mediação utópica sucederam-se.
Encontram-se na simbologia de Ulisses, de Homero e de Dante, Moisés e Aristóteles,
Avicenna e os aristotelistas de esquerda, em Gioacchino di Fiore e o teólogo Thomaz Münzer,
67
Na Antiguidade, a julgar pelo relato de Hesíodo, o homem seria aquele ser sem forças e sem independência
com relação aos deuses. A revelação brota da caixa de Pandora e surge, entre os gregos, como presente
mortal de Zeus à humanidade para puni-la por ter acolhido o titã Prometeu, insubordinando-se contra a
ordem divina. Trazida à terra pela sedutora Pandora, quando a caixa é aberta pelo ingênuo Epimeteu, dela
voam os males da fome às preocupações, das doenças às deformidades, da angústia ao medo; mas Zeus,
aparentemente compassivo, fecha a tampa antes que a esperança escape, talvez por entendê-la frágil, um mal
igual a todos os outros. Por trás dessa visão, o homem é joguete sem forças para empunhar as rédeas do
próprio destino. Ser sem autonomia, sem arbítrio da sua existência.
112
em Colombo e na esquerda hegeliana, em Marx e no valor do trabalho, em Lenin e nos
bolcheviques.
Ulisses é a metáfora da vida na Antiguidade e na Idade Média. Encontra-se na origem
do homem concreto. O fundo humanista, que palpita em Homero e Dante, transpõe o homem
do conformismo com o desígnio dos deuses à paixão pela liberdade. No volume III de O
Princípio Esperança, o Ulisses homérico volta ao lar após vinte anos fora de Ítaca, para ir
lutar na guerra de Tróia, mas é o Ulisses de Dante que parte da mesma Ítaca para conquistar
novos mundos.68
Ulisses de Homero simboliza o homem ainda não consciente, a imagem do crepúsculo
grego; Ulisses de Dante é esperança autêntica do homem novo, de consciência revolucionária,
a imagem do homem inconformado, o totum da universalidade. É o homem que não se
encontra no passado, mas que se projeta para o futuro.
Um, Ulisses homérico, o homem individual, o herói ardiloso conhecedor de mundos,
navegou no sul do corpo de Circe, Calipso e Nausícaa, enfrentou a fúria dos titãs, de Posídon,
lutou com a própria hybris, desceu ao mundo da morte, o Hades, fez a viagem de circum-
navegação em torno de si próprio. O outro, o Ulisses de Dante, filho do período gótico,
homem propenso a se libertar das relações de produção, afloraria em Marx e vai sendo
plasmado paulatinamente.
Em Dante, Ulisses é mais do que o viajante singular e antecipa o humano real:
Colombo e os navegadores do século XVI. Ultrapassa o homem que, fatigado de batalhas,
retorna ao lar para encontrar a paz com a espada e o elmo pendurados na parede, por trás do
fogão como adereços, para se transformar no homem que ousa transgredir seus limites. Vai
além do navegante, como o Ulisses histórico, que sai em viagem para cumprir a profecia do
vidente Tirésias – que, no Hades, incumbe-lhe da tarefa de fazer sacrifícios a Posídon, em
grego clássico Poseidōn – para realçar o homem seguidor da própria vontade (HOMERO,
2003b, p. 119 et seq.).
Fascinantes Ulisses de Homero e de Dante corporificarem o bem comum: ilusório, em
Homero, por curvar-se ao desejo dos deuses, e verdadeiro, em Dante, por nascer da
68
Dante Alighieri conta que Ulisses, já envelhecido, reuniu antigos companheiros, deixou o filho e a Penélope
dileta. Lançou-se ao mar para ―conhecer o mundo, e dos homens os vìcios e o valor‖. Transpôs as colunas de
Hércules, alcançou o centro do hemisfério austral, avistando, na noite, uma ilha na forma de uma única
montanha e foi tragado pelo mar: ―Cinco vezes reaceso e cancelado fora o lume que a lua de baixo banha,
depois do fundo passo ultrapassado/ quando surgiu-nos diante uma montanha, pela distância, escura, e alta
tanto que nunca eu conhecera outra tamanha/ Nossa alegria logo volveu-se em pranto, que um remoinho dela
levantou, e feriu o lenho numa fronteira canto/ Três vezes, co‘a água toda, ele rodou; na quarta, erguida a
popa, fui arrojado proa abaixo, como a alguém agradou/ até que o mar foi sobre nós fechado‖ (ALIGHIERI,
1998, p. 181-6).
113
consciência. Destacam-se como opostos, mas complementares por significarem a classe
detentora do poder e a emancipação da classe dominante por não ter mais que representar
papéis. Serão protagonistas da dialética do consciente finito e do consciente infinito, a
repetição do mesmo e a construção do futuro.
Colombo não é mítico, mas de carne e osso. Ele explora a Terra, não planetas e
estrelas. Ele pertence a um tempo em que a Terra ainda era tida como o centro do universo,
era pré-Copérnico. Mas era, igualmente, pós-Copérnico, ao fecundar a conquista de novos
horizontes. Fez realidade os sonhos da utopia do éden perdida em algum lugar da Índia. Não
se moveu apenas por desejos econômicos, pelo sonho do ―paraìso terrenal‖.
A metáfora do homem rebelde, revolucionário, pode ser concebida a partir do conflito
entre o Ulisses de Homero e o de Dante. Mas seria uma modelagem incompleta. Vico confere
ao sábio Ulisses, o sujeito da Odisseia, a capacidade de entrever os limites da sua existência:
ele é prudente, tolerante, mas é também dissimulado, enganador, implacavelmente violento.
Dois tipos de caráter, uma indagação: quem é o homem? Seria Ulisses o emblema da concreta
experiência da história? Para onde, em o Ulisses de Homero, apontaria a seta do tempo, o
passado ou o futuro? Ou, como parece aflorar do próprio Vico, Ulisses como retrato-síntese
do homem caminharia para ―frente‖ e para ―trás‖, tornando, assim, inconstante a sua
mediação utópica (VICO, 2005, p. 597-657).
Há outros sujeitos da utopia a se misturarem com as diversas visões de Ulisses e a
conceberem relações do homem com o mundo, a reclamarem a crítica da filosofia e o
despertar da fantasmagoria da individualidade em contraste com a construção do homem
coletivo. A tarefa da utopia blochiana é destruir o mundo ilusório e propor que o homem crie
uma forma de vida social em que sejam excluídas as injustiças e as contradições econômicas e
sociais. As dimensões desse sonho exigem não que a utopia seja projetada para o amanhã,
mas que se realize na superação cotidiana da cultura. Não é outro o intento de Bloch ao
inventariar a história das utopias.
Aristóteles foi redescoberto na Europa na mesma ocasião em que Lutero, na
Alemanha, realizava com sucesso a Reforma da Igreja, mas rejeitava a filosofia aristotélica de
que o homem podia ser justo e trazia, no seu interior, o sentimento ético de práticas virtuosas.
Entendia que o homem não poderia ser ―autossuficiente‖ na vida temporal e que dependia de
Deus para existir (KNIGHT, 2007, p. 698-702). A revolta camponesa liderada por Münzer e o
questionamento quanto à possibilidade da salvação no céu, contribuíram para que, nos séculos
seguintes, o aristotelismo se expandisse na Alemanha.
114
O interesse deriva da efetiva relação entre a teoria e a prática na filosofia aristotélica –
que Aristóteles foi originalmente buscar em Platão e Sócrates, além de Heráclito, Parmênides,
Empédocles, Anaxágoras e Demócrito – e que viria a influenciar não apenas Marx, mas
Hegel, a esquerda hegeliana, o kantismo de esquerda (KNIGHT, 2007, p. 49-50). Com
Aristóteles, a filosofia grega tornou-se prática, e o homem é reabilitado como criador das
relações com o mundo (KNIGHT, 2007, p. 1044).
Segundo Bloch (2008), Aristóteles e o aristotelismo de esquerda são essenciais para a
compreensão dos sujeitos históricos da utopia, não somente das utopias sociais desde Thomas
More até William Morris, mas o conjunto de sonhos históricos que se projetam de Platão,
com La République, à Bíblia e A Cidade de Deus de Agostinho. Avicenna e o pensamento
aristotélico de esquerda proclamavam que o homem era matéria e que sua inteligência
provinha de matéria superior, tornando-se universal, não particular (BLOCH, 2008, p. 28-33).
Bloch movimenta-se até Aristóteles atraído pela forma que pode imprimir a potência
indeterminada à matéria. Ao buscar a transformação, o homem deixaria de ser um escravo da
natureza, que aprendeu a copiar e deixaria de ver a natureza também como sua inimiga a ser
dominada e destruída. A nova visão repercutiu na filosofia da natureza da Idade Média e do
Renascimento. A mediação pelo movimento da matéria estaria na transformação daquilo que
a natureza oferece ao homem de acordo com suas necessidades e criatividade, mas sendo o
homem modelador qualitativo das formas, sem mecanicismo.
A utopia concreta inscreve sua práxis no solo promissor da possibilidade. Não é o
―carpe diem, esse estar-aì meramente aparente e superficial‖, expresso no desfrute da
eternidade do momento e que, ―aterrissa, na melhor das hipóteses, em resignação‖ (BLOCH,
2006b, p. 406). O momento é imperfeito. Traz, no seu interior, a infusão das contradições
burguesas e as impurezas do mecanicismo e do senso comum, em conflito com a cultura da
elevação e da liberdade.
Para o aristotelismo de esquerda, a crítica ao irrealismo tornou-se inevitável. A
felicidade, apontada para o céu, tornou-se o seu alvo. Defendia a ativa presença humana,
exigia o utopismo da felicidade na Terra. Sua mediação influenciou o comunismo quiliasta
nos últimos séculos da Idade Média. O prior calabrês Gioacchino di Fiore foi o rebelde
prometeico do alvorecer desse tempo de esperanças. Encorajava os homens a se emanciparem
pelo amor à liberdade e ao próximo, pela concretização de uma sociedade humana, não pela
espera do Juízo Final. Condenava a corrupção da Igreja, considerando o zelo evangélico como
115
indispensável para o surgimento de uma nova era espiritual.69
Não se confinou na pregação
contra as desigualdades econômicas. Tocou o sentimento de amor ao próximo da comunidade
e os vínculos fraternos entre os homens, e que influenciaram o espírito revolucionário
bolchevique.
Gioacchino di Fiore preconizava a extinção da Igreja e do Estado e sonhava trazer a
De Civitate Dei agostiniana para a Terra, a comunidade ética, conhecida como a utopia do
terceiro reino. O primeiro foi o reino do Pai, do Antigo Testamento, sulcado pelo temor e pela
lei. O segundo foi o reino do Filho, do Novo Testamento, do amor e da Igreja dividida entre
clérigos e leigos. O terceiro reino, que estava para acontecer, seria aquele do Espírito Santo ou
da iluminação coletiva, ―numa democracia mìstica sem senhores e nem igreja‖ (BLOCH,
2006a, p. 64).
O reino dos pobres foi o elemento mediador. Rompia com o conformismo estoico e
transpunha, da filosofia para a prática, o sonho da Terra Prometida e do amor ao próximo
ensinado pela Bíblia. Da mesma maneira, condenava o luxo, os espoliadores e a escravidão.
Evocava, em Jesus, o fundador de uma nova comunidade social, sem dar trégua aos inimigos
e sem hesitar em usar o chicote. Não aceitava a pregação da Igreja tradicional de que a vida
podia ser contemplada, jamais conquistada.
Esses princípios opunham a vida comunal ao reino dos príncipes e dos reis, da igreja e
da burguesia comercial, mas continham uma lógica. Estavam acondicionados no sentimento
fraternal e na coesão das pessoas, tornavam arcaicos os laços de sangue e família, os vínculos
da época. A base econômica, para que a sociedade viesse a se desenvolver, estava vinculada à
abolição da pobreza. Desmascarava o caráter contraditório do capitalismo nascente e da Igreja
na sua propensão para humilhar e oprimir o homem. ―Enfeitam os altares e o pobre sofre
amarga fome‖ (BLOCH, 2006a, p. 53).
A utopia de Gioacchino di Fiore era a riqueza igualitária para todos. Sonhava com a
história, não com a transcendência no céu. ―Destituiu a teologia do Pai, relegou-a a era do
medo e da escravidão, mas dissolveu Cristo em uma comuna‖ (BLOCH, 2006a, p. 67). A luta
joachimnista era pelos princípios sociais cristãos. Alinhava-se contra as contemporizações da
Igreja, e as suas alianças com a sociedade de classes, aì incluìdo o ―suposto direito natural da
propriedade e mesmo a ‗santidade‘ da propriedade privada‖, um princìpio social central da
Igreja, que pregava a salvação no céu (BLOCH, 2006a, p. 67).
69
Cf. A Perfectibilidade do Homem, de John Passmore, 2005.
116
A diferença entre a De Civitate Dei de Agostinho e o terceiro reino de Gioacchino di
Fiore estava na concretude: a utopia agostiniana pregava a transcendência, a utopia de
Gioacchino era terrena, e ele sonhava em levá-la ―ao paraìso com o corpo vivo, não apenas
como espìrito‖ (BLOCH, 2006a, p. 65). Não era acidental para a filosofia de Gioacchino di
Fiore que a sociedade não segregasse o pecado e não houve, na sua pregação, nenhuma fuga
para o céu e para o além.
A sociedade cultuava o pecado por oprimir o homem e, por isso, para purificar o corpo
precisar voltar ao estado original paradisíaco. Universal, a utopia joachimnista estava fundada
na abolição da riqueza e da pobreza, na ―percepção do espìrito fraterno‖ nos diferentes credos
(BLOCH, 2006a, p. 66). Seu comunismo dissolveria a liderança de Jesus, o messias de uma
nova Terra, na comuna.
Como continuador de Gioacchino di Fiore, Thomas Münzer70
também se apoiou nas
Sagradas Escrituras e entendeu que os camponeses alemães, rebelados contra os príncipes,
pretendiam o reino de Deus na Terra. ―Deveis saber‖, lembra Bloch referindo-se às palavras
de Münzer no escrito Da Fé Fingida – que enaltece o testemunho do cristão autêntico –, ―que
eles atribuem essa doutrina ao prior Gioacchino e o chamam de Evangelho eterno com grande
escárnio‖ (BLOCH. 2006a, p. 66-7). O escárnio viria incendiar a rebelião na Alemanha e
também os Diggers, agrocomunistas ingleses.
Como em Gioacchino di Fiore, o elemento mediador em Münzer foi a harmonia social
cristã, originária dos primeiros tempos do cristianismo. Mas havia uma diferença: para
Münzer, antes da nova era de igualdade e justiça, as autoridades existente precisavam ser
exterminadas. Foi o que disse aos príncipes, era o que pregava nos seus sermões. Veio a
guerra. Dai em diante, Münzer surgiria como ―um comunista revolucionário‖, na definição de
BLOCH (1973, p. 17). Na Idade Média e no Renascimento, Gioacchino e Münzer, pelas
70
O Renascimento é geralmente visto como uma época de criatividade, poesia e ―renovação da humanidade
como jamais tinha acontecido antes‖ (BLOCH, 2006a, p. 9). A sua outra face, a rebeldia milenarista, vive
prisioneira do esquecimento. Thomas Münzer é, certamente, o personagem mais visível desse período. Filho
único, nasceu em 1488 ou 1490 em Stolberg, na Thuringia. Seu pai parece ter sido enforcado, vítima da
arbitrariedade de um senhor feudal. Sua mãe, por estar na miséria, foi hostilizada: os habitantes da cidade
queriam expulsá-la. ―Para ele, tudo foi difìcil, desde o inìcio. Quase abandonado, cresceu o sombrio jovem‖
(BLOCH, 1973, p. 9). Mestre em Teologia, profundamente versado em grego e hebraico, sentia-se atraído
pelas leituras filosóficas. Aderiu à causa de Lutero, antes de conhecê-lo, ao ler, em 1517, as famosas teses
contra as indulgências fixadas na igreja de Wittenberg. Considerava Cristo um mortal, profeta e mestre, que
pregava um panteísmo próximo do ateísmo e negava a infalibilidade e o caráter revelador da Bíblia. Feito
prisioneiro pelos príncipes, após uma batalha em que liderou 8.000 homens, foi torturado e decapitado.
Estava com 38 anos. Dos seus comandados, 5.000 morreram (ENGELS, 1977, p. 101-10). As revoltas
camponesas se desenvolveram em ondas sucessivas nos anos de 1424-1425, envolvendo, no início, em 1424,
os montanheses da Floresta Negra e os planaltos da Suábia. No ano seguinte, propagou-se pela Alsácia e
Áustria. Estima-se que 130.000 camponeses foram mortos enforcados, decapitados, passados no fio da
espada, apunhalados ou sob tortura (ENGELS, 1977, p. 111).
117
vicissitudes decorrentes das utopias fracassadas e pelo alcance das suas ideias, abrem opções
para o conceito de utopia concreta. Ambos se inspiraram em Deus, mas um deus
condicionado pela noção de matéria, não hipostasiado.71
O pressuposto objetivo em Münzer é a exploração dos camponeses alemães pelos
príncipes e a opressão do povo pelo Estado eclesiástico. O pressuposto subjacente localiza-se
na exploração que persiste e se amplia com o sistema capitalista. Münzer era revolucionário,
porque rejeitava o servilismo e ―não tratava o proletariado como canalha‖ (BLOCH, 2006a, p.
79). O proletariado era, então, força nascente.
O espírito de homens liderando homens contra os senhores não predominou somente
nas guerras camponesas. Foi o mensageiro da boa nova da revolução bolchevique, o momento
da nova mediação dialética.72
Não mais dentro do capitalismo, mas no socialismo, repetindo,
assim, no plano metafórico, o momento inicial da Utopia de More em que uma revolução põe
fim à ordem antiga e começa uma nova era. No ciclo histórico que se iniciava, as relações de
produção, com a abolição da economia política, tornam-se símbolo definitivo da possibilidade
humana de não alienação.
A indicação da possível realidade futura estava nas Teses sobre Feuerbach, com esta
observação: ―[...] a essência humana não é algo abstrato, interior a cada indivìduo isolado. É,
em sua realidade, o conjunto das relações sociais‖ (BLOCH, 2005, p. 259). A incompletude
persistiu, mas, nos passos da utopia concreta, a mediação do trabalho imprimiu sua marca,
enriqueceu e renovou os horizontes de mediação no domínio do possível-real. Permitiu pensar
a sua contemporaneidade e a sua universalização. Pandora, como Prometeu, se converteriam
nos demiurgos da futura Idade de Ouro.
71
Bloch refere-se à hipóstase como ilusão do Deus ―onipotente‖, ―salvador‖, situada na ―mitologia de Deus‖ e
da irrealidade de um mundo sem salvação condenado a ser uma ―máquina para produzir deuses‖ (BLOCH,
2006b, p. 373-4). O conceito de hipóstase é de complexa explicação. Era uma emanação, e o emanado
concebido por meio da analogia como o ―refletido‖, os platonistas multiplicam o seu número, embora
conservem, na maior parte dos casos, a estrutura triádica que se fundamentava na suposta sucessão da
unidade, da processão e da conversão. Platônicos e cristãos aproximam-se no paralelismo das trindades do
Uno, da Inteligência e da Alma do Mundo e a do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No cristianismo,
corresponde ao que existe na pessoa divina. Chama-se a união da natureza divina de Cristo com a Sua
natureza humana. Os neoplatonistas introduziram as hipóstases subordinadas a cada uma das hipóstases
inteligíveis. Inteligência gera, assim, as hipóstases: o ser, a vida, o intelecto ou a inteligência (MORA, 2004,
p. 1345-6).
72
Segundo Passmore (2005, p. 438-9) Gioacchino di Fiori antecipou muitos problemas da filosofia com a sua
visão tripartite da história e a análise das profecias de perfeição humana, influenciando, além de Münzer,
Schelling e Auguste Comte.
118
2.4 COLOMBO, O ÉDEN E OS DESCOBRIMENTOS: A UTOPIA DO NOVO
MUNDO
É fácil desejar transportar-se para longe de um lugar ruim. Mas a trilha
para sair dele é menos óbvia, ainda precisa ser descoberta.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 299)
A Utopia de More coincide com a descoberta do Novo Mundo. Com as descobertas
geográficas, abria-se um novo ciclo de esperança. Se o descobridor personificou a avidez por
lucro, a ambição de ir sempre mais longe e a transposição de uma antiga cultura para novas
terras, de fantástica dimensão, foi igualmente o arauto das possibilidades de concretização da
utopia edênica, do renascimento do sonho com o velo de ouro e do paraìso terrestre. ―Quando
Colombo zarpou para as Índias, tinha em mente até um éden real. Não causa surpresa, a partir
dessa perspectiva, que descobertas trouxessem consigo tanto sonhos quanto transformações‖
(BLOCH, 2006a, p. 302).
As terras que viria a descobrir, apareciam como lugares que escondiam por trás das
florestas ―algo incógnito‖, o Eldorado procurado no passado por Jasão, repleto de tesouros,
serpentes, dragões, fadas e frutos mágicos (BLOCH, 2006a, p. 304-5). Colombo conhecia as
fantasias em torno do Éden-Eldorado, entre elas, a lenda da fonte de juventude, mas por elas
se deixava embalar pelos exageros do novo céu e da nova Terra, como se deixava embalar
pelo sonho com os reinos mágicos que, à época, estariam nas Índias como em qualquer parte
da Ásia, da África e da costa do Atlântico. E os geógrafos ajudavam movendo a localização
do Éden de um lugar para outro, fazendo do paraíso na terra a essência dos relatos utópicos e
a própria confirmação do Éden bíblico.
Colombo sonhava com as concepções correntes desde a Idade Média de que o Éden
existia e se encontrava em algum lugar da terra. Em carta aos reis da Espanha, escrita no
Haiti, em outubro de 1498, chegou a admitir encontrar-se no lugar onde se situava o paraíso
terrestre e que ―estaria muito próximo do céu‖ (BLOCH, 2006a, p. 326-7). Alimentando
―ideias mágicas‖ comuns à literatura filosófico-teológica, pelo menos até Campanella, ele se
inseriu na linha da descoberta do ―Paraìso Terreal‖, o Éden, na definição de Sérgio Buarque
de Holanda em Visão do Paraíso (2010). As possibilidades das novas rotas marítimas, a
realização efetiva da utopia das descobertas, são representadas pelo Novo Mundo que se
estendeu da América espanhola ao Brasil português. Atingiu-se, graças aos sonhos dos
119
descobridores, os confins do interior do rio São Francisco e da Amazônia, do Peru, do Haiti e
das Américas.
Os sonhos eram guiados pelas luzes das utopias do Éden e as utopias geográficas
descritas por Bloch (2006a, p. 304-5) no livro II de O Princípio Esperança, e que deram suas
contribuições para as utopias sociais, embora o paraíso procurado desde Alexandre, na
Antiguidade, jamais tivesse sido encontrado. É nesse ponto que se concentra a tensão dialética
entre o real e a fantasia.
Contava-se que mares de lama e trevas inundavam o Atlântico, como na Antiguidade
as lendas gregas cercavam os lugares de ―lendária despreocupação‖ com monstros e águas
perigosas em torno da ilha dos Feacos e dos Bem-aventurados, e o mar coagulado que
cercaria as colunas de Hércules (BLOCH, 2006a, p. 308). No Atlântico, proliferariam os
mares fétidos, de recifes invisíveis e ilhas demoníacas, armadilhas da geografia do inferno. O
Éden estaria atrás de um ―cinturão de terror‖ (BLOCH, 2006a, p. 311).
Às lendas sinistras, Bloch contrapõe, com fulgor paradisíaco, o sonho tangível da terra
prometida. Contrapõe o paraíso do Antigo Testamento e a fragrância do jardim encantado do
Éden que ultrapassa suas fronteiras e dissipa as brumas da ilusão por inexistirem monstros na
espreita em ―aromáticos bosques‖ ou ―águas perigosas‖ cercando o paraìso, mas o que existia
era o trabalho dos homens, erguendo Canaã como ponto de atração (BLOCH, 2006a, p. 309-
12).
O utópico social não ficava, assim, à margem desse fluxo incessante de fantasias.
Revelou-se dialético pela grandeza das expedições e pelas utopias políticas que se sucederam
aos descobrimentos. Revelou-se concreto pelas paisagens arquitetônicas, a ocupação dos
espaços do continente americano, a pintura, a música, a literatura. No século XVI, o arquiteto
foi considerado ―rival de deus‖ e o poeta definido não como o narrador de algo aparentemente
inexistente como faz o pintor, mas como alguém que ―cria e funda como um outro deus‖
(BLOCH, 2006a, p. 364).
As novas terras faziam sonhar com uma paisagem terrena do futuro. Encontravam no
espírito criador a infinitude humana. Colombo demonstrou que o paraíso não estava restrito a
montanhas inacessíveis, como imaginava Dante, nem se encontrava cercado de mares de
algas, nas Índias. Não era feito de ilhas santas, como se imaginava na Antiguidade, nem
ficava para além das colunas de Hércules, também como pregavam as lendas da Antiguidade.
Eram paraísos terrenos que todos podiam alcançar.
As descobertas absorviam múltiplas utopias: das utopias médicas às utopias técnicas,
arquitetônicas e sociais. O horizonte da terra foi ―imensuravelmente ampliado‖ e com ele
120
prolongou-se a linha da ―Terra humanizável‖ (BLOCH, 2006a, p. 325). Mas o mundo
permaneceu dividido em classes e a ideia de um novo céu e uma nova Terra foi adiada,
aguardando o pleno futuro. ―A intenção do paraìso terrestre, portanto, dirigiu-se a um espaço
áureo ainda a ser aguardado no mundo que desemboca no delta do mundo‖ (BLOCH, 2006a,
p. 345).
Quanto mais distante do irrealismo da ilusão, do sedativo da inércia, do mero prazer
da contemplação, quanto mais distante do terror infundido pelos mitos, mais o homem se
aproxima da plenitude do real (BLOCH, 2006a, p. 363-4). Embora a geografia dos
descobrimentos não tenha resultado no paraíso da Terra humanizada, no Novo Mundo,
revelou-se ―o livro da Natureza‖, que teria sido ―escrito por Deus‖. Inclusive os mais
realistas, no entendimento de Buarque de Holanda, consideram que as descobertas trazem no
seu bojo ―um sentimento vivo de simpatia cósmica‖ (HOLANDA, 2010, p. 118).
O eco desse pensamento converteu terras antes incógnitas em ―visão premonitória e
futurista‖ que ganharam fundamento na geografia ―fantástica‖ do Brasil e das Américas
(HOLANDA, 2010, p. 118-9). A utopia do ―Paraìso Terreal‖ estava transformando o mundo e
o mundo se transformando com a utopia do ―Paraìso Terreal‖. Nos séculos seguintes, os
ideais limítrofes do sonho do paraíso terrestre de Colombo com a sua negação pela realidade
se transformaram em janelas abertas para o futuro, principalmente no embate pela valorização
do ser humano.
O niilismo da burguesia em declínio, ao desvalorizar o homem, deixa a vida sem
alternativas, mas ao contrário, a utopia, mantém o lastro da possibilidade objetiva como
prolongamento das terras a desbravar. Essas terras se materializavam no trabalho e o seu Éden
estaria na conquista de uma sociedade em que as ilusões se dissipassem e a superestrutura e a
infraestrutura social fossem uma coisa só.
Já em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), Bloch mencionava o socialismo como
indissociável desse grande plano civilizatório. A sua unidade mais significativa como utopia
social da iluminação estava na ―antecipação‖, seja em ―conformidade com as forças de
produção, seja primordialmente também como consideração das radical-totais séries de
propósitos humanos e de sua posição em relação a um universo mediado‖ (BLOCH, 2006b, p.
476). Mas uma antecipação no âmbito do possível novum, concernente ao espaço
dialeticamente aberto: a práxis.
121
2.5 TRABALHO E ROMANTISMO: PRESSUPOSTOS PARA CONHECIMENTO E
TRANSFORMAÇÃO DA VIDA
Nas coisas há uma atividade, em que nossos interesses ainda podem ser
tratados, uma linha de frente, em que nosso futuro, justamente este, pode ser
decidido.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 284)
Eis duas nascentes do pensamento universal para a frente: o trabalho humano e o
romantismo revolucionário. O trabalho é o elemento objetivo, relativiza a incerteza quanto ao
futuro e encontra, na sociedade, o reflexo luminoso do mundo futuro. Não é a primeira luz,
mas a luz persistente, aquela que resgatou o ―núcleo racional da utopia e da dialética‖,
trazendo-o para o concreto (BLOCH, 2005, p. 141). O romantismo revolucionário é a via de
acesso do presente no rumo do futuro ou, na definição de Löwy, ―a descoberta do futuro nas
aspirações do passado‖ (LÖWY, 2009a, p. 11-27). A Revolução Francesa e a Revolução
Industrial são essenciais para o entendimento do conceito: na primeira, pelo ―grande
idealismo‖ e a perspectiva de ―um milênio de fraternidade‖; na segunda, pelo espìrito criticou
que despertou quanto a ―era do maquinismo‖ e ao ―apequenamento‖ do trabalhador industrial
(LÖWY; SAYRE, 2015, p. 151-85). Nas duas, a palavra chave é idealismo.
A trajetória de Bloch até o romantismo revolucionário suscita ambiguidades. Löwy
(2015, p. 244), reconhece a grandeza de O Princípio Esperança por amalgamar num mesmo
―alento filosófico os pré-socráticos e Hegel, a alquimia da Renascença e as sinfonias de
Brahms, a heresia ofita e o messianismo de Sabbatai Zevi,73
a filosofia da arte de Schelling e
a política marxista, as óperas de Mozart e as utopias de Fourier‖. Mas um dos paradoxos que
aponta – o primeiro é que o livro fala pouco do futuro, embora o texto seja voltado
inteiramente para o futuro – é o tratamento dado ao romantismo.
73
Sabbatai Zevi (1626-1676), rabino cabalista do século XVII, que se apresentava como messias. Um ―semi-
enganador‖, na definição de Bloch (2006b, p. 268), que assinava decretos em tom ―altamente blasfemos‖:
Ich (eu, tradução nossa), o Senhor vosso Deus Sabbatai Zevi, que vos conduziu para fora do Egito‖.
Pressentindo que perdia seguidores, sentindo-se em perigo, aderiu ao islamismo e morreu como porteiro de
um harém. Bloch trata de Sabbatai Zevi no contexto de denúncias de falsos messias: a passadeira inglesa
Anna Lee, que se fazia passar por Cristo; o cocheiro italiani David Lazaretti, para quem agricultores
construíram uma igreja; Joseph Smith, fundador dos mórmons, que teria, com ajuda de Deus, como
proclamava, desvendado os sinais misteriosos que escondiam a única e autêntica Bíblia. O contexto é a falsa
visionaridade, o ocultismo, a clarividência e as ditas ―aptidões mediúnicas‖ que envolvem os aspectos os
mundos subterrâneos das religiões (BLOCH, 2006b, p. 266-76).
122
Para Löwy (2015), Bloch não desvenda o lado revolucionário do romantismo alemão e
não o faz porque se atem a ―crìtica – feroz! – a Zivilization‖. O inventário de obra de Bloch,
certamente, se enriquece com essa crítica – e ele não deixa de assestar seu arsenal crítico
contra a maquinaria, a submissão da natureza pelo capitalismo e a técnica, características
próprias do romantismo –, mas não parece ser esse o alvo fundamental. O que sugere atenção
é que Bloch tende a subordinar a ―corrente quente do marxismo‖, o Romantismo
Revolucionário, à corrente fria, a racionalidade, e isso não parece um erro, mas uma atitude
prudente.
O romantismo não entende a utopia, nem mesmo a sua própria, mas a utopia
que se tornou concreta entende o romantismo e se inclui nele, enquanto e na
medida em que o arcaico e a história contêm, nos seus arquétipos e obras,
algo cuja voz ainda não se fez ouvir algo que ainda está em vigor. Assim,
seja no processo da rememoração ou no processo do esquecimento, a
consciência mais avançada não opera num espaço submerso, mas no espaço
aberto, no do processo e de seu front. Esse espaço, porém, é preenchido
exclusivamente com a aurora para a frente, inclusive, nos seus exemplos
provindos do passado e seu significado permanente: ele está preenchido pela
vitalidade de um ainda-não-ser possível de consciência e de ciência
(BLOCH, 2005, p. 141-2).
Talvez por isso, Bloch, como assinala Löwy, mantenha ―distância crìtica‖ com relação
a Ruskin e Morris, pensadores românticos, anticapitalistas e, sem dúvidas, geniais, mas cujas
utopias estariam voltadas para trás. Bloch não condena o progresso, nos moldes do
romantismo tradicional, com os olhos voltados para o passado que sempre volta. Ele olha para
o progresso o futuro, planejado, de face humana. O mundo com a qual sonho é, sem nenhuma
dúvida, a pátria (Heimat), também como lembra Löwy. Mas não é a pátria tradicional, a pátria
pangermanista, tal como impôs Bismarck ou a pátria que encarne qualquer dominação
econômica ou da natureza. Sim, a pátria humana, que ele assim descreve:
[...] a raiz da história é o ser humano trabalhador, produtor, que remodela e
ultrapassa as condições dadas. Quando ele tiver apreendido a si mesmo e ao
que é seu sem alienação, surgirá no mundo algo que brilhe para todos na
infância e onde ninguém esteve ainda: a pátria (BLOCH, 2006b, p. 462).
Deslocada do contexto, a palavra ―pátria‖ flutua. Perde o seu vìnculo primordial com a
riqueza da existência humana. O futuro, igualmente, não precisa ser referido a cada estante.
Dispensa a palavra específica. Bloch sonho não com o Zukunft, mas com o Zukunft in der
Gegenwart. Não é um exercício futurista, como fizeram John Ruskin e William Morris, mas
123
um futuro que brota no dia a dia do homem. O novum, como a sociedade sem classes de
Marx, não deixa de ser um sonho romântico, mas é um sonho romântico possível, um sonho
real. Como foi o sonho do aristotelismo de esquerda ao trazer a utopia do céu para terra e
inverter o sentido da vida: não mais para servir a Deus, mas para servir ao homem. Na obra de
Bloch, o futuro e o novum são como o sangue que circula no corpo humano, pode não ser
visível, mas é o sol da vida.
É possível que críticas como a de Löwy, contribuam para a visão de que Bloch seja
um filósofo messiânico ou, na melhor das hipóteses, ambiguamente marxista. Lima Vaz
(1983, p. 150) ao estudar as correntes fundadoras do marxismo colhe em Kolakowski duas
informações preciosas: que para o pensamento de Marx contribuíram a visão do
aproveitamento das conquistas da ciência e o romantismo revolucionário. Em socorro de
Lima Vaz, Kolakowski (1978, p. 115- 32) critica as utopias normativas da história, a realidade
estritamente racional e reconhece que Marx, assim como Hegel, aboliu a distinção entre a
previsão do futuro e o desejo de criá-lo.
Prever o futuro não é como prever um ―eclipse solar‖,74
mas exige prever o espírito da
história. E isso não acontece com base apenas racional. Quando aborda o tema, recorda que
Lukács, interpreta, sem desejar, que Marx ao delinear sua obra, talvez estivesse falando
propriamente da ―consciência mitológica, profética e utópica‖75
que não se confundia com o
materialismo dialético (KOLAKOWSKI, 1978, p. 129). A característica da consciência
utópica estaria no conteúdo, não na forma; a previsão do futuro seria enganadora por causa da
tradição mítica-profética da identidade divina sujeito e objeto, não como uma expressão do
conhecimento. E o conhecimento implica no reconhecimento das forças e das fragilidades.
Essa é a realidade: Bloch não ganha evidência apenas pela erudição. Em Bloch, o
romantismo e o romantismo revolucionário são eventos singularmente vivos em conteúdo.
Münzer foi a primeira estrela no firmamento do romantismo revolucionário e, graças a ele,
houve reviravoltas de grandes dimensões na forma de enfrentamento das classes dominantes.
Antecipou-se em dois séculos do romantismo do século XVIII e tornou-se o prenúncio de um
movimento que transformaria a ética e a política moderna. O conceito do mundo como
atividade criativa, central no romantismo, faz eco na admiração romântica pelos mártires e
aqueles que se sacrificam em nome de um ideal. Bloch não os menospreza pela virtude
74
―éclipse de soleil‖.
75
―[...] à proprement parler la consciência mytologique, prophétique et utopique chez Marx‖.
124
espiritual, sincera e intensa, considerando a motivação atributo necessário ao espírito
revolucionário.
Essa atitude renova os valores de liberdade e felicidade, opondo-se ao individualismo
e à passividade niilista. Löwy (1985) em Le Romantisme Revólutionnaire de Bloch et Lukács
destaca os traços mais vivos do romantismo revolucionário: a crítica à civilização industrial
burguesa, a reflexão sobre o passado, mas com o pensamento voltado para um mundo novo,
de conteúdo anticapitalista, a valorização da ética e notadamente o sonho utópico. Em Revolta
e Melancolia, Löwy (2015), volta ao tema com visão muito mais ampla. Refaz os caminhos
de Marx, Rosa Luxemburgo e Lukács na controversa rota do romantismo. Marx, em O
Manifesto Comunista, rompe com o ―romantismo juvenil‖ dos tempos em que foi
influenciado pelo hegelianismo de esquerda e pela Naturphilosophie (Filosofia da Natureza)
de Schelling, mas não perdeu a marca da crítica romântica ao capitalismo. Não era um
romântico, mas foi graças ao romantismo, explica Löwy (2015, p. 130) que pôde melhor
perceber a sua dívida intelectual para com a filosofia das Luzes e com a economia política
clássica nos seus ―limites e contradições‖. Essa peculiaridades ficam muito nìtidas em os
Manuscritos de 1844 e em O Capital nas acusações quanto ao caráter ―desumanizante‖ do
capitalismo.
Em Rosa Luxemburgo, que como Marx é, na aparência, o oposto do Romantismo,
Löwy (2015, p. 136) identifica nas suas obras ―componente românticos inegável‖ que se
manifesta no ―interesse apaixonado‖ pelas comunidades pré-capitalista, que ela designa como
―sociedade comunista primitiva‖, presente em seu pensamento econômico. ―Para ela,
portanto, trata-se de encontrar e ―salvar‖, no passado primitivo, tudo o que possa, ao menos
até certo ponto, prefigurar no socialismo moderno em atitude típica da visão romântica
(revolucionária)‖ (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 132).
Os escritos de Rosa Luxemburgo sobre esse tema são muito mais do que um
vislumbre erudito de história econômica: sugerem uma maneira diferente de
conceber o passado e o presente, a historicidade social, o progresso e a
modernidade, cuja afinidade com certos aspectos do romantismo
revolucionário é significativa. Ao confrontar a civilização industrial
capitalista com o passado comunitário da humanidade, Rosa Luxemburgo
rompe com o evolucionismo linear, o ―progressismo‖ positivista e todas as
interpretações insipidamente ―modernizadoras‖ do marxismo que
predominava em sua época (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 137).
Lukács escolhe o caminho não do comunismo primitivo, mas do universo grego
homérico, o Renascimento, a espiritualidade literária e a religiosidade russa, o misticismo
125
cristão, hindu ou judeu, elementos que, na visão de Löwy (2015, p. 137-8) revelam, de
maneira ―flagrante‖, a sua atitude romântico-revolucionária. Em História e consciência de
classe, Lukács parece, na interpretação de Löwy (2015, p. 139), se afastar do romantismo,
mas é só na aparência: o romantismo se faz presente, sobretudo, quando compara ―a
submissão capitalista de todas as forma de vida à mecanização e ao cálculo racional com ‗o
processo orgânico da vida de uma comunidade‘ com a aldeia tradicional‖. Na realidade,
entende que o livro ―é inspirado em ampla medida pela sociologia alemã de matriz
romântica‖.
Esse percurso atormentado e contraditório, do qual ainda não temos todas as
chaves, revela o pensamento de Lukács, assim como Hans Castorp, o herói
do seu romance favorito – A montanha mágica -, que oscila constantemente
entre dois polos: o de um ―Settembrini progressista‖ e o de um ―Naphta
revolucionário‖.76
Não foi dado a Lukács superar as antinomias de seu
próprio pensamento por uma síntese dialética que superasse a contradição
entre romantismo e capitalismo (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 149).
Bloch fez parte dessa corrente de pensamento, sobretudo nas suas obras primeiras. Na
reedição nos anos 60 de Thomas Münzer, Teólogo da Revolução apresenta Marx e Münzer
como ―romantiques révolutionnaires‖ e defende a tese de que entre ambos existe uma linha de
continuidade revolucionária (LÖWY, 1985, p. 108-9).
Thomas Münzer é analisado por Löwy como uma obra romântica em que Bloch vai
encontrar a comunidade cristã em meio aos camponeses alemães e se afasta do período gótico
por passar a considerar que na época gótica o povo era oprimido pelo Estado eclesiástico.
A articulação entre romantismo e marxismo, persistente também em Lukács, segundo
Löwy (1985), não é contraditório com o pensamento de Marx e surgiu na obra de Bloch entre
1917 e 1923. A corrente do romantismo revolucionário foi inaugurada, prossegue Löwy
(1985) por Rousseau com a nostalgia do passado – incentivando o romantismo
revolucionário, mas com um olhar para a frente, o que contrastou com o crescimento de uma
vertente reacionária do romantismo tendo como palavra de ordem a luta contra a superação do
capitalismo.
Socialmente, o Romantismo pode ser inócuo, mas, em termos revolucionários, irradia
a negação do que é obsoleto e ultrapassado, com a instigação ao conflito e à mudança.
Conduz para fora das circunstâncias inatas, bem como para fora daquelas que estão postadas
76 Pacifista, Setembrini, é o adepto fiel do progresso, da civilização e do humanismo. Naphta, o jesuíta de
família judaica, é um personagem fortíssimo: nacionalista que advoga o valor da guerra, anuncia o conflito
mundial que se aproximava. As longas mas profundas discussões entre Naphta e Setembrini concretizam
também a oposição entre o tradicional e o moderno, o conservador e o progressista.
126
em torno da vida (BLOCH, 2006b, p. 137). Mas o romantismo não é, como se possa imaginar
uma corrente estética ou literária, se tratando, na definição de Löwy (1985), de um
―verdadeiro Weltanschauung (Visão de Mundo), com manifestações em todos os campos da
vida.
O romantismo revolucionário, portanto, é arauto da metamorfose humana. Originário
de causas econômicas principalmente, une-se, numa mesma ―linha de fogo‖, com a utopia
concreta de rebeldia e transgressão. ―Sofrimentos amargurados‖ ―felicidade impedida‖ e
―sonhos acordados‖ adiados pela insuficiência do mundo, não acontecem apenas no ―mundo
do amor‖, como no Jovem Werther de Goethe, mas pertencem à ―embriaguez‖ revolucionária
da juventude, como foi o ―tumulto reivindicatório‖ do Sturm und Drang alemão. Os ventos
libertários pareciam anunciar a Revolução burguesa, que não aconteceu por falta de uma
burguesia, na Alemanha, para apoiá-la, mas confluiu para o ―transbordamento utópico‖ e o
despertar para o interesse humano (BLOCH, 2006b, p. 57-9). Havia ―a força iniludìvel da
empolgação‖, havia a sinceridade do novo e havia identidade da juventude com a
―metamorfose‖ (BLOCH, 2006b, p. 68).
O romantismo burguês, como foi o Sturm und Drang, se esvai. Precisa ir além do ideal
de transformar a sociedade e fundar-se na afinidade com a vida visível, mas, nesse ir além,
termina por se conformar à ordem estabelecida e fracassa. O romantismo revolucionário
também fracassa, mas o seu legado é diferente, porque não se funda no indivíduo perfeito e,
sim, na idealização: tem ânsia de ação, é ―otimismo militante‖ da sociedade humanizada, é a
própria filosofia desse otimismo, a esperança, culminando por renovar a razão revolucionária
(BLOCH, 2005, p. 197).
A linha divisória dos antagonismos entre o romantismo e o romantismo revolucionário
tenderia, na visão de Bloch (2006b), a volatilizar-se à medida que os horizontes da nova
sociedade se concretizassem, como topos da humanidade e como espaço de superação da luta
de classes. A significação do romantismo e da transformação da sociedade crescem juntas e se
interpenetram ao diálogo com a utopia. Nessa escalada, o trabalho emancipador, como
expressão do espírito humano, emerge como o mediador universal.
As gerações transmitem umas para às outras o sentido do trabalho, não somente com
relação às forças de produção, mas nas relações dos homens uns com os outros. Nunca pelo
conhecimento sensorial, que é limitado. A produção desenrola-se mesmo sem a compreensão
do significado social do trabalho, em particular, o trabalho árduo, o Ergon, que Hesíodo
considerava uma contingência humana, e Marx como uma necessidade a ser vencida.
127
Bloch (2006b, p. 411), como Marx, entende que, sem o trabalho, nada pode ser
compreendido na história: ―O trabalho, mais que a matéria-prima e seu teor substancial, é que
gera todos os valores‖. Fourier no seu léxico – que incluiu definições do amor à felicidade, da
morte à música –, ao falar do valor do trabalho, considerava-o ―insuportável‖ e sugeria torná-
lo tão ―atraente como os bailes e espetáculos‖ (SAMPAIO, 1996, p. 37).
Sem o valor do trabalho, a história favorece o ilusionismo, com incidência em
compartimentos individuais e atos heróicos, sendo responsável pelo esmaecimento da
realidade. ―Para Marx, o ser humano trabalhador, essa relação sujeito-objeto existente em
todas as circunstâncias, é parte determinante da base material‖ (BLOCH, 2005, p. 259).
Explica: ―O trabalho é certamente o objeto mais importante existente no mundo que envolve
os homens‖ (BLOCH, 2005, p. 255).
O meio da primeira humanização foi o trabalho, o solo da segunda é a
sociedade sem classes, sua moldura é uma cultura cujo horizonte é
circundado exclusivamente por conteúdos de esperança bem fundada, como
sendo o ser-em-possibilidade mais importante, o ser-possibilidade positivo
(BLOCH, 2005, p. 208).
Diante do valor do trabalho, erguem-se os pressupostos para que o ser humano comece
a conhecer a fundo a vida que o cerca. E tome consciência de que a sua mediação não pode
ser anulada, porque a produção é cada vez mais central na construção da liberdade e na crítica
ao conceito capitalista de ordem. Prevalece, nitidamente, o conceito da ―pura coerção e da
restrição‖ quando a ordem deveria ser o ―suporte imanente‖ da sociedade (BLOCH, 2006a, p.
86).
O homem e seu trabalho tornam-se, desse modo, elementos decisivos no
processo do mundo, sendo o trabalho um instrumento de humanização
mesma; sendo as revoluções parteiras da sociedade vindoura, da qual a atual
está grávida; sendo a coisa para nós, ou seja, o mundo, a pátria mediada, em
função da qual a natureza se apresenta como possibilidade que mal foi
tocada, que apenas foi franqueada. O fator subjetivo disso foi a potência não
encerrada de mudar as coisas, o fator objetivo é a potencialidade não
encerrada da alterabilidade do mundo no quadro das suas leis, de suas leis
que, no entanto, também podem variar regularmente sob novas condições.
Os dois fatores estão constantemente entrelaçados, em interação dialética
(BLOCH, 2005, p. 244-5).
Fatores objetivo e subjetivo ocupam os espaços de possibilidades reais da história. A
potencialidade subjetiva é o elemento transformador e realizador; a potencialidadeobjetiva
significa o que é transformável e também realizável. Juntas, explica Bloch (2005, p. 245),
128
condensam a ―potência-potencialidade‖ da matéria em processo, o que tornaria visìvel a
produção consciente da história. Assim, é possível ter consciência de que as riquezas não são
medidas pela quantidade e sofisticação das mercadorias, mas pela capacidade dos homens de
asproduzirem. Se o comunismo resultaria da socialização do capital, é porque este é uma
ficção, um valor abstrato, enquanto o trabalho humano é o construtor da produção. Reúne a
subjetividade e objetividade da realização, o possível real e o novum.
Por isso, é o trabalho vivo, cimento da união dos que produzem. Impulsiona o homem,
no seu processo de desalienação, de se aproximar daquilo que produz. Essa é uma das críticas
do marxismo ao capitalismo: o homem é impedido de se aproximar daquilo que produz,
reduzido ao valor de troca. O ―fetichismo‖ encarrega-se de anular o significado do trabalho
coletivo, fazendo o homem imaginar que a riqueza é igual às mercadorias.
Na extensa galeria de mediação, o romantismo revolucionário torna-se imprescindível,
pois guarda a esperança. Aparece, de um lado, em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie),
com a época gótica, a época de ouro da Idade Média, e em Thomas Münzer, Teólogo da
Revolução, com sua herética espiritualidade milenarista. O romantismo revolucionário
encontra-se, de outro lado, em O Princípio Esperança com a identificação de Bloch com a
causa dos pobres e escravizados, além da inabalável confiança no futuro.
Em Bloch, o comunismo agrário e camponês, religioso, herético e popular, leninista e
bolchevique, aurora dos novos tempos no passado, cede lugar à utopia revolucionária da
sociedade industrial e de massas, juventude dos novos tempos. Nas diferentes épocas, a
mediação do trabalho mantém-se desafiadora nas suas linhas de força. A comunidade
tradicional torna-se, com O Princípio Esperança, a sociedade moderna. Ganhou novo alcance
o protagonismo rebelde das massas. Cerrava-se o ciclo do trabalho sem voz, dominado, quase
imóvel. Ao despertar para a sociedade burguesa, se abria cotidianamente à mudança. A
desesperança escapa da inércia, o homem sente-se propenso a abrir os olhos para o arquétipo
utópico do bem supremo.
129
2.6 LIBERDADE NA ORDEM, A ORDEM NA LIBERDADE
A essência da liberdade é carregada pela vontade, pelo elemento intensivo-
emocional que visa a irromper e se realizar irrestritamente. A essência da
ordem, por sua vez, tem a seu favor o elemento lógico perfeito, a
compreensibilidade do que se tornou bom ou foi bem-sucedido.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 87)
A liberdade pode ser esquecida pela ―miopia da luta diária e os mìseros triunfos nessa
luta‖, mas não corresponde a uma caricatura desenhada pela ordem (BLOCH, 2005, p. 432).
Na tensão entre a liberdade e a ordem, o realismo está em questão. Se o homem despertar para
a verdade ilusória, o capitalismo não poderá manter escondida a sua personalidade obscura, a
sua personalidade falsa, a ordem como argumento para negar a liberdade.
Na utopia blochiana, a liberdade flui da juventude dos tempos, em regiões utópicas,
como foi o ímpeto de revolta que a Revolução Francesa levou para dentro das massas e as
impeliu para derrubar a aristocracia de maneira ―especialmente contundente‖, que não
aconteceu na Alemanha: ―[...] economicamente atrasada, politicamente não treinada, os
sentimentos não se ligaram sem mais nem menos ao Iluminismo burguês oficiail‖ e logo o
que se viu foi o rosto do Estado policial (BLOCH, 2006b, p. 58). O engajamento da França à
Revolução trouxe, como desafio, a prática da liberdade, igualdade e fraternidade, de
conteúdos reais, que jamais se concretizoupor inteiro, porque a Revolução não aboliu a
propriedade privada. Na Alemanha faltou mediação utópica e o romantismo revolucionário do
Sturm und Drang se esgotou, como se dilaceradopela águia (ou abutre) de Zeus – que torturou
Prometeu no rochedo –, reativando esse mitológico símbolo da repressãono encarceramento
da liberdade pela ordem.
Seria nesse momento, se aqueles conceitos não se transformassem em lei, mas não em
prática libertadora, que deveria entrar em cena o conceito de libertar-se de ―algo‖ (Freiheit zu
Etwas). Englobaria a liberdade psíquica, a liberdade ética, a liberdade de ação e a liberdade de
olhar o mundo para a frente. Como ideias, liberdade, igualdade e fraternidade, são de fácil
compreensão e podem ser entendidas como o desejo humano de construir sua identidade.
Estavam presentes no cristianismo primitivo e na aliança entre burgueses e operários para
derrubar a aristocracia. A barreira da dificuldade encontra-se na prática de libertar-se da
herança cultural burguesa, como assinala Marx em O 18 Brumário de Luiz Bonaparte ao
referir-se às ―ilusões‖ de Cromwell e Robespierre. Protagonizaram revoluções vitoriosas, mas
130
ocultaram de si mesmos a herança burguesa que limitava suas lutas (MARX, 2011, p. 118-
26).
Esse fio histórico enreda o homem e seus valores. Pode ser visto como um direito
natural, tanto como um corpo estranho à sociedade burguesa e da sua superestrutura jurídica,
mas na filosofia blochiana, a liberdade, a igualdade e a fraternidade são conquistas da
sociedade. Exigem luta permanente pela dignidade humana e da amplitude do conceito de
liberdade. Encerram o contraste entre o desejo do ideal burguês e a sua concretização.
Preludiam, para Bloch (2006b), que o nascimento da verdadeira história do homem
ainda não aconteceu, mas que as filosofias voltadas para o passado e o niilismo não resultam
em pressões dialéticas. A história, em processo, abre-se para o ainda-não que pode alcançar a
plenitude (a totalidade final) como desembocar no nada. Esse desfecho preocupa Bloch. Ele
se interessa em construir o futuro com os saltos de qualidade da vida presente. O sistema
filosófico blochiano faz parte desse propósito, objetiva o tempo-espaço e o inscreve nas
categorias de causalidade, processo e finalidade.
Não é por coincidência, que Bloch (2005) se refere à práxis revolucionária e ao ainda-
não-consciente ou que Hegel lembrava que o ―Espìrito‖ precisava superar a natureza e que
Marx destacava a ―humanização da natureza‖. Estão tratando de que a natureza parece ser
sinônimo de equidade, mas é a história humana que precisa caminhar nessa direção. A
diferença é que Bloch supõe ser possível influenciar o processo histórico se transformar o
conhecimento imperfeito das coisas e se converter o ―poder ser‖ em ―poder ser‖. Isso depende
da vontade humana, mas pode ser pensada como ―o possìvel objetivo real‖ (das objektiv-real
Mögliche).
Esse conceito não é inviável. ―O realmente possìvel principia com o germe em que foi
disposto o vindouro‖ (BLOCH, 2005, p. 235). Daì, o homem e seu trabalho serem ―elementos
decisivos‖ no processo histórico do mundo, sendo o trabalho ―um instrumento de
humanização‖ (BLOCH, 2005, p. 244). Esse processo não se completou, mas existe como
tendência histórica. Pode, portanto, ser mediado, desde que não fique prisioneiro de
construções abstratas. O sentimento de liberdade surpreendeu, por exemplo, Tocqueville ao
descobrir que, na América do Norte, nos idos de 1835-40, quando escreveu De la Démocratie
en Amérique, existia um coletivo burguês que, em nome da liberdade, equilibrava a balança
da individualidade e dos negócios (BLOCH, 2006b, p. 49).
No socialismo, o coletivo sem classes busca a liberdade por meio do utópico aberto de
modo que possa existir a equivalência do ―nós‖ com o indivìduo, no lugar da alienação
(BLOCH, 2006b, p. 55). A ordem exige, como disse Sócrates, a ―habilidade da parteira para
131
trazer a criança à luz‖ (BLOCH, 2006a, p. 86). Assim que deixa de ser um jogo e preserva sua
caracterìstica de organização do ―reino da liberdade e da liberdade como reino‖ (BLOCH,
2006a, p. 87). Contrapõe-se à ordem burguesa que se sustenta em uma série de
eventualidades, tais como felicidade do lucro e destino, natureza humana e vocação humana,
direito natural e propriedade privada. A liberdade e a ordem concreta, pela ligação dialética,
procuram fazer da vontade humana o seu conteúdo. É isso que submeteria a ordem à
liberdade.
Em Marx, a liberdade faz-se presente no centralismo democrático, como lembra
Bloch, a ―organização conjunta de processos produtivos, é o plano comunitário unificado de
informação e do cultivo humano‖, nos moldes da Utopia de More (BLOCH, 2006a, p. 88).
Inexistindo a liberdade isolada da superação do domínio do capital, a desordem mascarada na
aparência de ordem ergue sucessivas barreiras à solidariedade e amizade social.77
Mas existiria, teoricamente, a liberdade concreta, a começar pela liberdade dos
homens socializados, transformados em produtores e que utilizariam a razão para realizar suas
trocas com a natureza e com outros homens em condições dignas (MARX; ENGELS, 2007, p.
93-106). Sem correlatos com a ilusão, sem que a realidade exiba a máscara da representação,
a liberdade conduzirá o homem para a causa do futuro. Transcender o abismo da
inconsciência, do sonho de perfeição e funde o querer humano com ―montanha‖ a ser
conquistada como expressão da realidade coletiva-individual (BLOCH, 2005, p. 433).
A busca dessa atmosfera de liberdade não pode se limitar à negação da estrutura
dominante, senão se perderia no labirinto da determinação do esclarecimento particular, não
na construção do universal. Deslizaria para uma comunidade ética, situando-se mais para o
―decreto do que constatação‖, tal como fizeram Fourier e Owen ou convergindo para as
construções lógicas no estilo de Saint-Simon, desejosas de substituir a emperrada máquina
social da burguesia por uma máquina perfeita, portanto, impossível de existir (BLOCH,
2006a, p. 134).
Inverter a sociedade da ordem pela sociedade da liberdade é uma exigência prática. A
subordinação da ordem à liberdade só se concretizará, porém, se a dialética materialista tomar
para si a transformação do homem real para que este transforme a sociedade, colhendo os
77
Em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie), Marx
defende a tese de que, na sociedade burguesa, a liberdade é ilusão, enquanto a ordem traduz a vontade
do Estado. Abstrata na forma, de conteúdo real na dominação, é elemento da existência, da conciliação e
permite camuflar os conflitos reais (MARX, 1982, p. 864-79). Além de tornar a filosofia dependente da
classe dominante, deixando-a entregue aos ―favores do poder governamental‖, esconde, sob o manto do
estado político, a barbárie da propriedade privada, que faz do direito, exceção e, do privilégio, a regra
(MARX, 1982, p. 879-97). De ―espìrito romano‖ e ―alma germânica‖, faz do Estado a propriedade privada,
faz da confiança o formalismo (MARX, 1982, p. 996-1018).
132
frutos não só da libertação da sociedade burguesa, mas de si mesmo. Dessa forma, o conceito
de liberdade-ordem, em Bloch, aparece como um espaço de transformação superestrutural.
Como conceito transformador, não fala a linguagem dos heróis salvadores. É o desafio
dos fundadores do futuro. Nasceu e se aperfeiçoou do choque entre as forças econômicas que
brotam da Revolução Francesa e o antigo sistema de trocas. A sociedade ainda feudal recuou
e, em seu lugar, o comércio em larga escala e a manufatura se desenvolveram modelando a
liberdade individual.
A rebeldia foi condenada com sua exigência de submissão do homem ao Estado na
ordem temporal e, também, pela sua concepção do homem como ser decaído (BLOCH,
2006a, p. 239-4). Em nome da ordem, a Revolução Francesa viria a separar o direito da
moral, emancipando as leis das convicções interiores e opondo a sociedade solidária e a
felicidade de ser cidadão, o que Sócrates definia como ―a grande felicidade‖ à sociedade em
que o homem é o lobo do homem por direito (BLOCH, 2002, p. 60-9).
Bloch (2006b) pensa no mundo sem a semeadura das ilusões, com a liberdade
prometeica renovando a existência. Vislumbra um mundo sem confrontos entre ordem e
liberdade, sem que o sentido da antecipação seja algo irrelevante. Rejeita o entendimento de
que o homem, para ser livre, precisa ser um homem de negócios, dispor de privilégios e da
segurança burguesa. O homem de negócios considera o Estado como se fosse seu, e sua
ordem só pode ser rompida em uma hipótese: se o interesse individual estiver ameaçado. Essa
é a gênese da ordem no sistema burguês. A sua lógica volta-se para a produção e o lucro, não
para os direitos do homem.
No mundo da ordem, o homem é excluído. A ordem tornou-se um positivismo, invade
todas as instâncias da vida, da sistematização da filosofia à arquitetura, da limpeza,
pontualidade à opressão e às diferenciações de classe. Para além da justificativa de ter sido
construída, acondiciona seu valor no propósito de excluir da vida manifestações de emoção.
Caracterizam a ordem, a aparência e, supostamente, a eliminação do acaso.
O ponto comum de todas as manifestações da liberdade é a vontade de não
serem determinadas por algo alheio ou alienante à vontade, mas o ponto
comum das manifestações da ordem é o valor de esta ter sido construída, de
se ter desembaraçado de qualquer situação em que a emoção ainda se
justificava. É esse elemento, alçado e chegado a seu lugar, sim, é essa
característica de reino que explicita, em mundos menos problemáticos que o
político, que jazem menos no maligno, o melhor repouso e que o explicita
como a melhor coisa (BLOCH, 2006a, p. 87).
133
A liberdade, além de valorizar a emoção, tende a ser coincidente com a ordem
concreta e não mera representação que escapa à realidade e ao sonhar com o futuro: a vontade
manifesta da sociedade determina o êxito social, não as aparências. Uma coisa é ter o direito
de ser egoísta, de pertencer à sociedade burguesa, outra são os direitos do cidadão.78
Essa
identificação não é tácita. Nela, a ordem chega pelo entendimento entre os homens, não pela
imposição: ―Apenas a vontade de liberdade tem conteúdo, o termo ordem não possui
conteúdo próprio‖ (BLOCH, 2006a, p. 88-9).
Desse modo, o percurso do processo consciente da realidade é, de modo
crescente, o da perda do ser estático, fixado e até hipostasiado, o processo de
um nada crescentemente percebido, então certamente da utopia. Esta, então,
abrange totalmente o ainda-não, bem como a dialetização do nada do
mundo: ela, no entanto, tampouco escamoteia, no possível-real, a alternativa
aberta entre o nada absoluto e o tudo absoluto. A utopia é, na forma
concreta, a vontade testada rumo ao ser do tudo: nela, atua, portanto, o
páthos do ser que, anteriormente, esteve voltado para uma ordem do mundo,
até uma ordem do supramundo, bem-sucedida, supostamente fundada no
mundo já acabado (BLOCH, 2005, p. 307).
Bloch (2005) acrescenta que a chave para o reino da liberdade situa-se na consciência
não alienada de fazer da ordem a melhor sociedade possível para o Homo homini homo (o
homem ser humano para ser humano). Não é a ordem estática, nem a ordem daqueles que
temem as mudanças do mundo. Seria uma ordem empolgante, não uma ordem voltada apenas
para os interesses do pragmatismo comercial ou a uma sociedade despida de senso
humanístico.
Talvez, por isso, Marx escreveu, de forma ―concisa e antitética‖, a Tese 11 sobre
Feuerbach: ―Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de diferentes formas;
trata-se, porém, de transformá-lo‖ (BLOCH, 2005, p. 271). A frase é crucial. Designa a
diferença radical da filosofia marxista das suas antecessoras. Não significa que todos os
filósofos tivessem sido, até então, contemplativos. Quer dizer que o suporte da transformação
do mundo encontra-se na filosofia materialista, de Demócrito e Epicuro aos materialistas
franceses do século XVIII (La Mettrie, D'Holbach e Diderot) aos materialistas alemães,
anteriores a Marx e Engels, tal como Feuerbach. A Tese 11 significa que a filosofia deixava
78
Bloch refere-se a essas questões Droit Naturel et Dignité Humanine (Narurrecht und menschliche Würde),
citando A Questão Judaica e A Sagrada Família de Marx. Destaca que as mudanças acontecerão quando o
cidadão se descobrir como força política e portador da liberdade socialista (BLOCH, 2002, p. 212-4).
134
de ser condenada à não realização para se realizar. Essa concepção rompe as muralhas do
idealismo e abre as portas para a criatividade.79
Com as Teses sobre Feuerbach, Marx, segundo Bloch (2005), trouxe para a filosofia a
primeira grande dimensão da potência-possibilidade humana de andar ereto ao ver, no ser
humano trabalhador, a raiz concreta da transformação. O que antes era possibilidade em
latência, tornou-se realidade possível, imagem do desejo (Wunschbild), ideal humano
concreto.
Pelas Teses, o homem não seria mais explicado por si mesmo, mas pelas relações da
sociedade de classe. E a liberdade seria erguida a um novo patamar de compreensão: seria a
liberdade para criticar a propriedade privada e o egoísmo do lucro que isola o homem da
totalidade social e o degrada por torna-lo solitário. Não só a liberdade para o indivíduo
egoísta, mas para todos os homens. Não o direito natural do homem, mas a comuna de
liberdade.80
Nessa linha, assinala o rejuvenescimento do direito natural com o direito materialista e
utópico. O parâmetro do direito natural rousseauniano instalou o conceito de razão nas
relações sociais, mas Bloch (2006a) o critica não tanto pela falta de horizonte revolucionário
para conciliar a ordem social com a liberdade e dignidade do homem, mas pela sua visão ser
anterior ao proletariado da grande indústria. Abarcou a filosofia do seu tempo, mas não podia
conter a luz utópica dos tempos futuros. Não deixou de ser uma porta de entrada para a
dignidade humana, uma porta que rompe com a imobilidade que envolvia o tema desde os
antigos gregos e que, na visão de Bloch (2002, p. 231), se transforma numa vontade eterna
quando, com Marx, fica evidente de que o homem não é naturalmente bom ou mau.
A visão de que o homem é bom não foi monopólio de Rousseau, mas envolveu
também os anarquistas. Para eles, todo o mau provinha da Igreja e do Estado, dogma inverso
79
O Idealismo Alemão data de 1871 com a publicação da Crítica da Razão Pura e se prolonga por meio
século até à morte de Hegel. Entre seus principais pensadores estão também Fichte e Schelling. Em seu
conjunto, abriram passagem para Marx, a fenomenologia, o existencialismo, a teoria crítica e o pós-
estruturalismo, influenciando, ainda, a filosofia analítica e a tradição filosófica europeia e americana. Nasceu
da reação de Kant ao ceticismo de David Hume (1711-1776). Pretendia, na visão de Kant, suplantar o
dogmatismo com ―uma filosofia verdadeiramente moderna que estabeleceria e asseguraria os limites da
cognição racional e da ação‖, de conteúdo ―radicalmente‖ igualitário e libertador (DUDLEY, 2013 p. 13-26).
Schelling, na sua crìtica ao Idealismo alemão, deu ―impulso e direção‖ à filosofia pós-hegeliana, ao
considerar que a filosofia de Hegel era ―incapaz de oferecer valores que possam guiar a vida humana‖
(DUDLEY, 2013, p. 2).
80
Bloch trata do direito natural também em livro específico, Naturrecht und menschliche Würde
(Direito natural e Dignidade Humana, tradução nossa). O livro foi publicado em 1961. A luminosidade do
tema emana da sua obra. Faz-se presente com intensidade em O Princípio Esperança, com a defesa da
destruição de todas as relações em que o homem seja degradado, escravizado ou desprezado, prática que será
banida da Terra quando o homem for senhor da sua vida.
135
ao pecado original. No marxismo, não haveria o sentimento especulativo, sim o não-existente
utópico a ser conquistado com a prática. Falta, alerta Bloch (2002), erradicar a ilusão de que a
burguesia possa aspirar que o homem seja livre e que tenha uma vida fora do trabalho, que a
burguesia tenha o mais vago interesse numa filosofia da natureza que não seja vazia de
conteúdo real. A realidade se encontra no terreno da desalienação humana e só a esperança de
mudança é que pode acender as luzes utópicas do amanhã.
2.7 ESPERANÇA PELA MUDANÇA DE VALORES, O HOMEM SEM MEDO DO
HOMEM
Os homens, assim como o mundo, carregam dentro de si a quantidade
suficiente de futuro bom; nenhum plano é propriamente bom se não contiver
essa fé basilar.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 433)
Se os homens são iguais perante a natureza, por que não o seriam perante os homens?
O problema da natureza merece protagonismo especial na obra de Bloch. Em Droit Naturel et
Dignité Humanine (Narurrecht und menschliche Würde), as reminicencias mitológicasda
comuna primitiva , sem Estado, sem guerras, onde imperavam as normas não escritas, estão
no direito natural de epicuriano e dos estoicos – que destacavam a dignidade da eudemonia –
e chegam a Roma com a tese embalada nas ideia, herdadas do estoicismo, de generosidade,
igualdade e aliança fraternal de classes (BLOCH, 2002, p. 22-31). Em O Princípio
Esperança, simboliza a incompletude da ―casa humana‖, onde a parte concluìdaombreia com
a parte inconclusa, mas com flagrante disposição do homem de dominar a natureza. Homem e
natureza se misturam em meio a um mesmo desafio de navegar nos rios do futuro e situar, no
caso do homem, a vontade de mudar no lugar do simples desejo ou da imobilidade.
Se de um lado Bloch descreve o homem como um ser sozinho, mas próximo de si
mesmo ou que, dialeticamente, assume sua alienação e pode ver através dela, de outro lado, a
natureza aparece como o sìmbolo do sentido ―natural‖ do bem supremo na vida humana.
Bloch fundamenta-se em observações de Pitágoras, Platão, Galileu, Paracelso, Jakob Böheme,
Leibniz, Kant, Schelling e Marx ou ainda em Vasari, Cézanne e Picasso. Mas não se afasta
dessa necessidade humana de ser igual aos outros homens, mesmo que disso não tenha
consciência. E de viver integrado à natureza, o que nos dias atuais se denominaria de
136
ecosocialismo, a integrar socialismo e ecologia contra o caráter destrutivo (e niilista) do
capitalismo.
E em O Princípio Esperança, Bloch (2006b, p. 433) procura uma análise ampla: ―A
natureza fala a nós figuradamente nas suas belas formas e o dom da interpretação de sua
escrita cifrada nos foi concedido no senso moral‖. E, depois, cita Galileu:
O verdadeiro livro da filosofia é o livro da natureza, que está sempre aberto
diante dos nossos olhos. Ele, no entanto, está escrito com letras diferentes
daquelas do alfabeto; as letras são triângulos, quadrados, círculos, esferas,
cones, pirâmides e outras figuras geométricas (BLOCH, 2006b, p. 434).
Esses pensamentos têm suas raízes em Pitágoras e Platão, com suas investigações em
torno de uma escrita da natureza composta de números, mas foi quem Paracelso estudou
sobretudo sob a perspectiva da natureza do ser humano, ainda segundo Bloch.
Paracelso diz no livro Paramirum: ―O que na Terra é ferro, no ser humano é
a bìlis, no céu é Marte‖: essa correspondência astrológica proporcionou,
neste caso, a coesão aos arquetípicos-coisas, de cima para baixo, de baixo
para cima, perpassando o cosmos, ou melhor, proveu o fundamento para a
sua analogia supostamente objetal. Entretanto, da mesma forma, cada
―natureza‖ mantém a sua autonomia, a da sua assinatura, que para Paracelso
designava o aspecto morfológico ora do gênero, ora do ―caráter‖ individual.
Jakob Böhme, seu discípulo em muitos aspectos, escreve no livro De
signatura rérum o seguinte sobre esse caráter bem delineado: E não há coisa
nenhuma na natureza das que foram criadas, que não revele também
exteriormente a sua forma interior. É assim que reconhecemos, na força e na
conformação deste mundo, como a essência se revela na parição de uma
metáfora, de modo que vemos tal coisa nas estrelas e nos elementos, tanto
em criaturas como em árvores e ervas (BLOCH, 2006b, p. 434-5).
As assinaturas reveladoras do interior e do exterior do homem, como acontece na
natureza, é o que Bloch procura ao voltar-se para Paracelso e o legado pitagórico. De sorte a
estabelecer correspondência na morfologia da natureza com a necessidade do bem comum, o
chão primeiro do homem, de ―sua essência, de longinquidades profundas‖ (BLOCH, 2006b,
p. 439). Os argumentos são utilizados para assinalar um acontecimento histórico carregado de
futuro bom: embora jamais tenha alcançado a igualdade real entre os homens, o direito natural
clássico, na sua integração com as utopias, cumpriu parte do seu papel transformador. No
longo curso da história, iluminou a queda do despotismo dos príncipes, do despotismo
patriarcal e do despotismo esclarecido.
Juntou-se a isso a defesa de um mundo sem corrupção em que a democracia
significaria a dignidade humana. Aquilo que havia de racional no conceito irradiou-se nas
137
forças políticas da Revolução Francesa, imbricou-se com os bens materiais e foi absorvido
pelo Estado burguês como proteção da propriedade. Mas causou impactos em meio ao
trabalhador e sua organização e se tornou parcial, porque não avançou do direito individual
para o universal. Misturou-se com o direito à propriedade privada dos meios de produção,
com o direito à livre concorrência, aos monopólios, porém não tomou partido dos humilhados
e se tornou a matriz do direito da sociedade burguesa. Essa foi a sua limitação, como de resto
da própria Revolução Francesa.
Ao tratar dessas realizações incompletas, Bloch argumenta que, na sociedade
socialista, o direito positivo irá desaparecer, por força da abolição da sociedade de classes.
Seria um pensamento utópico concreto. A beleza humana deixaria a caverna dos artifícios
para se apresentar ao sol da existência. No ambiente de dignidade, a boa alimentação, a
moradia e a educação fariam parte de uma ―infância despreocupada‖ (BLOCH, 2006a, p. 17).
Da Revolução Francesa, o direito natural herdou aquilo que Bloch define como
―museu dos postulados jurìdicos‖ (BLOCH, 2002, p. 223). Limitou-se, na sua versão clássica,
ao direito positivo. A fórmula consagrada na consigna jacobina de Liberdade, Igualdade,
Fraternidade tornou-se abstrata. Reduziu-se a um direito intangível da vida humana,
individual.
Marx (1982) condenou essa limitação e reivindicava da Escola Histórica do Direito81
tributária do direito alemão medieval da servidão e do Estado, não um relativismo, mas um
direito efetivo, comum a todos os homens, com o Estado cedendo lugar à ―comunidade de
interesses‖ (MARX, 1982, p. 1661).82
Nesse particular, distinguia o direito natural do ancien
régime, do direito natural de Kant, que era a autêntica contribuição da filosofia alemã à
Revolução Francesa, produzida pelo sentimento de ―uma dignidade nova‖ (BLOCH, 2002, p.
225). Mas essa não chegou a existir.
O elemento decisivo para o futuro – a mudança de valores pela práxis – não foi
alcançado. Vejamos um exemplo ilustrativo, citado por Bloch (2006a, p. 106-16), Fichte, no
81
Surgida no início do século XIX, na Alemanha, sob a influência do romantismo que influencia a
preponderância da razão história sobre a razão abstrata, a Escola Histórica do Direito foi precursora do
positivismo normativista. Nas palavras de Ureña Pastor, simbolizou a renúncia da burguesia, a ―todo intento
de construção jurídica nacional, o que trouxe consigo a acomodação ao que estava dado e inconcluso‖
(PASTOR, 1986, p. 360).
82
Na sua crítica à Escola Histórica do Direito, Marx argumenta que nada na natureza autoriza o homem a
explorar outros homens e que a propriedade privada dá base à servidão (MARX, 1982, p. 225-9). Em A
Sagrada Família, considera os direitos inerentes aos homens e o Estado, portanto, não pode ser confundido
com a humanidade, como não se pode confundir emancipação política com emancipação humana. O homem
é essencial e base de todas as atividades e condições humanas, não permitindo a confusão de meios humanos
com meios políticos para a sua emancipação (MARX, 1982, p. 519-28).
138
escrito O Estado Comercial Fechado (Das Geschlossene Handelstaat), elaborou uma utopia
social confinada num estado fechado, de felicidade socialista, em que o direito natural se
resume no lema ―viver e deixar viver‖. Não individualista, o Estado não defendia a
propriedade privada e, para ter o domínio da terra, o camponês precisa cultivá-la. O homem
poderia dispor do seu corpo, da propriedade, desde que a torne produtiva, e da liberdade,
sendo esta limitada pelos próprios indivíduos. A terra tem que ser concedida pelo Estado, e o
direito à produção regeria as relações entre os homens.
Era como se fosse um retorno às antigas guildas, uma utopia anticapitalista regressiva,
o que não se encontrava totalmente ausente na nostalgia do medievo de Saint-Simon
(BLOCH, 2006a, p. 106). Pensamento equivocado, segundo Bloch (2006a), não deixou de ter
seu lado positivo pelo sentimento humanista. E por ―desmascarar‖ a ―harmonia de interesses‖
da oferta e da procura, pressuposta por Adam Smith na livre concorrência – em lugar da ―livre
luta de interesses" –, além do fato de Fichte, em sua utopia, pregar a extinção do exército, da
nobreza feudal e a organização dos trabalhadores.
Fichte reduzia drasticamente os lucros do comércio e, em seu socialismo de Estado,
considerava o ―Estado absoluto‖, incentivava a ―arte da razão‖ e a ―harmonia de indivìduos
educados, moralmente emancipados como reino das belas almas‖ e do socialismo num único
país, a saber a Alemanha (BLOCH, 2006b, p. 109). Sonhava em criar uma ―comunidade de
eruditos‖ cooperativas de produção de trabalhadores, lastreando a transição futura para o
socialismo.
Diferentemente da utopia de Fichte, os valores da burguesia continuam a se impor e,
entre outras razões, existiu o fato da juventude continuar sendo educada nos moldes da Escola
Histórica do Direito, que ensinava a aceitação da realidade tal como ela é considerando-a
como a fonte do exercício da razão. Não se alcançou a liberdade, pretendida por Lenin, de que
a cozinheira fosse capaz de ―Governar o Estado‖ (BLOCH, 2006a, p. 109). Fichte carecia de
premissas políticas para tal, mas não a consideraria impossível: concebia a gestão do Estado
como decorrente de um plano racional.
É entre esses dois polos – a aceitação da realidade como ela é e o engajamento na
transformação da realidade – que o pensamento de Bloch se instaura como força de
expressão. Exprimir não significa apenas constatar, compreender, mas anunciar ativamente a
consciência da dicotomia da necessidade de liberdade e transformação ou da ordem e da
resignação. O que Bloch desejava exprimir era: o socialismo não pode se resumir à nação
germânica. Afinal, a utopia concreta acredita ou não acredita no progresso humano? A base
da esperança de Fichte poderia ser o homem alemão, que ele acreditava conter o ―gérmen‖ do
139
aperfeiçoamento humano, mas a utopia de Bloch era universal: entre o individuo e a
humanidade, ficava com a humanidade (BLOCH, 2006a, p. 109).
Bloch (2006b) debruça-se também sobre utopias de futuro pós-marxista como News
from Nowhere (2002) de William Morris.83
O autor repudiava o capital, por considerá-lo
imoral e sem estética humana, como era contra toda forma de mecanização da existência.
Considerava o capitalismo ―feio‖, ―destrutivo‖, ―não natural‖ e defendia um ―socialismo
artesão, um socialismo de produção caseira‖, partindo da percepção de que as fábricas eram
―a totalidade da peste da Idade Moderna‖ e teriam que ser afastadas (BLOCH, 2006b, p. 168-
9).
Morris prega nada mais que a radical mudança de valores, mas Bloch (2006a) o
interpreta, como um utopista ―voltado para trás‖, que visava ao progresso por meio do retorno
ao campo, sem ―intenção polìtica revolucionária‖ (BLOCH, 2006a, p. 169). Era um
romântico, mas regressivo. Como John Ruskin, seu amigo e referência, não era reacionário,
segundo Bloch (2006b, p. 169), mas visava ―o progresso a partir de um posto abandonado: a
reação agrária e artesã em prol de um recomeço revolucionário‖.
Bloch (2006a) cita, também, o americano Edward Bellamy.84
Em Looking Backward:
2000-1887 (traduzido como Daqui a Cem Anos: revendo o futuro), narra a história de um rico
homem de Boston que é soterrado, mergulha em sonho magnético e, ao despertar, no ano
2000, encontra uma América igualitária, sem favelas, bancos, bolsas de valores, tribunais e
sem a circulação de dinheiro. Bloch considera Morris parte da intelectualidade ―ingênua e
sentimental, de cunho neogótico e revolucionário a um cìrculo restrito‖, que deseja um
―capitalismo retificado‖ em lugar de superá-lo; com Bellamy, quase a mesma acidez: não há
intenção reacionária no romancista, mas a utopia é a versão do socialismo centralista limitado
aos ―desejos tìpicos do pequeno burguês bitolado‖ (BLOCH, 2006a, p. 167-9).
83
William Morris (1834-1896), escritor de muitas habilidades, nascido na Inglaterra, era arquiteto, desenhista e
artesão inovador. Ativista político, estava interessado em saber como a sociedade iria mudar, título do
capítulo XVII de News from Nowhere (Notícias de lugar nenhum), seguindo as indagações formuladas por
Thomas More e William Blake. Como seu mestre, John Ruskin, estava comprometido a criticar o mundo à
sua volta. Ao contrário de Ruskin, procurava criticar o socialismo no interior do socialismo. Foi um
revolucionário político, um dos socialistas mais conhecidos da Inglaterra. Rejeitava a guerra e a violência.
Era cético quanto aos modelos de progresso gradual. Seus personagens eram inocentes, mas ambivalentes
quanto aos visitantes. Talvez, por não esquecerem as lições da história (MORRIS, 2002, p. 11-49).
84
Edward Bellamy (1850-1898) foi educado nos Estados Unidos e na Alemanha. Estudou direito, economia e
foi jornalista. Começou a publicar ficção em 1879 e foi inspirador de um movimento socialista que prometia
justiça econômica, inovação tecnológica, trabalho universal e igualdade social. Considerava a tecnologia o
antídoto contra o darwinismo capitalista (BELLAMY, 1996, p. V-VI). Procurou comparar o século XIX ao
século XXI, abrindo-se ao novo: a Idade do Ouro estava no futuro, não no passado.
140
Enquanto criticava Morris e Bellamy, Bloch também não podia deixar de reconhecer o
inconformismo que os diferenciava daquilo que na Alemanha foi denominado do
―romantismo resignado‖ ou ―Kathedersozialismus” (―socialismo de cátedra‖). Löwy (2015)
o identifica na virada do século XIX para o século XX nos cìrculos do ―mandarinato
universitário‖, caracterìsticos de uma época em que as relações industriais apareciam como
irreversíveis, sem possiblidade de retorno à época pré-capitalista. A partir e então o embate
romântico se daria entre cultura e civilização (Kultur e Zivilisation). A ideia de Gemeinschaft
como organismo vivo e preponderante tinha se volatilizado. Bloch percebeu a mudança dos
tempos. Como percebeu a emergência do romantismo liberal (reformista) e do romantismo
conservador (que ambicionava a imobilidade do mundo).
Bloch (2006a) não se deixa iludir pelas palavras, nem pelos sonhos. As duas utopias
românticas – Morris e Bellamy – diferem, é verdade, das utopias conservadoras de Carlyle,85
partidário do neofeudalismo individualista que, apesar da ―rejeição ao mundo industrial‖,
apelava à filantropia dos exploradores, comuns a todos os planos pré-marxistas de melhoria
do mundo (BLOCH, 2006a, p. 170-1). Carlyle, para Bloch, sofria com a expansão das
fábricas, mas como Saint-Simon considerava o operariado frágil na sua organização, embora
vivesse em outra época, justamente quando o operariado despertava e entrava em choque com
a burguesia.
Morris e Bellamy ainda se diferenciavam de utopias futuristas como aquela de H. G.
Wells, no século XX, com a idealização de uma Arcádia em que socialistas burgueses,
democráticos, assumiam o poder e, seguindo a escola liberal-burguesa, faziam os homens
viverem como deuses (BLOCH, 2006a, p. 171-2). É um idílio futurista, Man like Gods, mas
como as utopias burguesas terminam em ―disparates‖, resume-se a um capìtulo ―exótico‖ na
história das utopias sem o germinar da utopia social. Teoricamente, segue a utopia de
Proudhon e o socialismo se limita aos meios de pagamento, já que o capital é abolido e não
produz mais-valia ou juros.
Há outras utopias reformistas, como o livro Progress and Poverty de Henry George
que pregava o confisco da terra sem prejudicar os ganhos do capital industrial e comercial.
Bloch (2006a) não os considera alquimistas do novum. Não via neles o esplendor da terra dos
85
Thomas Carlyle (1795-1881), tradutor de Wilhelm Meister de Goethe, escreveu a História da Revolução
Francesa, que marca o inìcio da sua trajetória como escritor. Bloch o considera ―muito moral‖, no princìpio,
―patriarcalista‖, mais tarde, tendo influenciado com seu pensamento o ―culto ao Führer‖, sendo o primeiro a
estabelecer a relação líder-seguidor na sua utopia reacionária e tardia do neofeudalismo industrial (BLOCH,
2006a, p. 170). Concebia o liberalismo como a ―raiz de todo o mal‖, imaginando ―aguçada‖ consciência de
classe do proletariado.
141
fracos, de Canãa ou do jardim do éden, mas um graal rodeado por antigos tabus. Paliativos
―ridicularizados‖, como aconteceu com o ―socialismo do coração‖ de Bellamy, nada mais do
que a indisposição para admitir as ―contradições‖ entre capital e trabalho a que se referiu
Marx (BLOCH, 2006a, p. 173).
Na reverberação das utopias, Bloch (2006a) condena os que se ―esquivam‖ de
localizar o duelo entre o capital e o trabalho, entre a era do ―pequeno cidadão‖ e dos ―grandes
lucros‖, entre a ―superprodução‖ e o ―emprego garantido‖ e a ―utopia social sem brincadeira e
descaminho‖, que seria a utopia concreta da revolução resultado das utopias antes e depois de
Marx (BLOCH, 2006a, p. 163-4). Distingue a voz da dialética materialista no mundo em
ebulição e em movimento antecipatório, visível ou não. Ouvi-las, visualizá-las, torná-las
realidade exige o abraçar do espírito do novum e das luzes no que se refere ao valor humano.
O esclarecimento que falta nessas vozes é ―a rejeição do homem à tutela que ele
próprio se impõe‖ (BLOCH, 2002, p. 9). Desdobra-se no despertar da percepção do homem
para a realidade de que o capitalismo é restrito, há muito exaurido, sem vínculos com o
conceito filosófico da antecipação e da realidade, mas é dessa não antecipação que a
sociedade burguesa se nutre.
A filosofia marxista é a do futuro, portanto também a do futuro no passado.
Ela, assim, nessa consciência de linhas de frente unidas, teoria-práxis viva
tendência compreendida, teoria-práxis afeita ao evento, conjurada com o
novum. E permanece sendo decisivo o seguinte: a luz em cujo brilho o todo
como processo inconcluso e retratado e promovido chama-se docta spes,
esperança compreendida em termos dialético-materialistas. O tema
fundamental da filosofia, de uma filosofia que permanece e é enquanto vem
a ser, é a pátria que ainda não veio a ser, ainda não alcançada, assim como
ela está se formando, construindo-se na luta dialético-materialista do novo
com o velho (BLOCH, 2005, p. 19-20).
A filosofia do vir a ser não se encontra vigorosamente em curso, porém existe para
aqueles que têm o novum diante de si. Essa tendência é identificável facilmente em Bloch
(2006a) quando encontra na filosofia da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento
elementos da mediação utópica. No Renascimento,86
o trabalho perdeu o caráter degradante
86
Pelas páginas escritas por Bloch (1974) sobre a filosofia renascentista, circulam Marsilio Ficino, autor
das primeiras traduções de Platão e Plotino diretamente do grego, antes feitas a partir do árabe,
imprimindo vitalidade e beleza aos conceitos; Tommaso Campanella, autor de A Cidade do Sol em cuja
filosofia une os conceitos de poder, sabedoria e amor, além da doutrina do Estado baseado na ordem que
influenciou o centralismo político espanhol; Paracelso, nascido Theophrastus Bombastus Paracelsus von
Hohenjeiom e Jakob Böheme: um médico e filósofo itinerante, o outro sapateiro culto, ambos dedicados a
estudar o homem e suas relações com a natureza, ambos confiantes do que o homem conduzirá o mundo à
sua essência autêntica; o filósofo Francis Bacon, autor de Nova Atlântica e Novum Organum, que Bloch
definiria como o renascentista dos novos tempos; e, ainda, Giambattista Vico, mesmo não pertencendo
142
que ostentava nas sociedades escravistas da Grécia e da Roma Antiga, o que ele não nega,
deve-se à burguesia e ao capitalismo. Dos avanços, os mais expressivos seriam as mudanças
das bases do comércio e a ascensão da indústria e, como consequência, o amadurecimento do
valor do indivíduo.
O fenômeno renovador acontece no teatro, na pintura, na música, nas descobertas de
Cristóvão Colombo e Fernando de Magalhães, nos avanços da ciência e na vitória do
postulado heliocentrista. Ao descobrir as novas dimensões do homem e valorizá-las, o
Renascimento desafia os céus a trazer o paraíso para a terra, na forma da revolução
camponesa liderada na Alemanha por Münzer e nas viagens de circunavegação à procura do
antigo Éden.
A ponta de lança do princípio da esperança em Bloch (2006b) é a crença de que a
utopia vive no mundo: ―À distância, as coisas já acontecidas tornam-se menores, as esperadas
tornam-se maiores. Elas se alimentam da necessidade que se tem delas e crescem pelo fato de
encontrarem um ponto final‖ (BLOCH, 2006b, p. 367). Isto, filosoficamente, corresponderia à
proximidade da utopia, só que sem o ponto final dada à infinitude dos sonhos humanos.
A palavra utopia expandiu-se e foi banalizada no curso do tempo, tendendo a perder o
sentido e ser relegada a um plano inferior pela tecnologia e pela vigorosa ofensiva
conservadora e niilista. No passado, quando Bloch (2005) cunhou a expressão ―utopia
concreta‖, significava o nascimento de um mundo novo. Ao contrário da distinção entre
socialismo utópico e socialismo cientifico, na clássica definição de Friedrich Engels,
procurava unir as duas vertentes. A procura convicta de desenvolvê-la em The Spirit of
Utopia (Geist der Utopie), Thomas Münzer, Teólogo da Revolução e em O Princípio
Esperança, motivou Bloch a beber das teorias revolucionárias de Gustav Landauer (La
Révolution) e das experiências de Thomaz Münzer, da cultura romântica alemã e de certas
tradições culturais judaicas, como o profetismo e o messianismo (LÖWY, 2007, p. 165-7).
Com a dissolução da URSS, tornou-se sinônimo da impossibilidade, do irrealizável, de
algo sem base na realidade. Tornou-se, fonte da corrente filosófica da distopia, um mundo
estagnado pelas pesadas cortinas do autoritarismo, do totalitarismo, da ausência de liberdade,
do poder elitizado e da violência banalizada. Mas essas são situações provisórias, não
definitivas, decorrentes dos impasses do socialismo. Talvez, não uma secularização, nem um
cronologicamente ao Renascimento, que com sua obra maior, a Ciência Nova, influenciou Hegel e Marx,
com a tese de que ao homem é dado apenas o conhecimento da história feita pelo próprio homem. Em
consequência, apenas a história como ciência pode ser conhecida como exata. O painel filosófico
renascentista completa-se com os pensamentos de Galileu Galilei, Thomas Hobbes e Nicolo Machiavel (Cf.
La Philosophie de la Renaissance, de Ernst Bloch, 1974).
143
retorno repetitivo, mas, sim, um questionamento criativo e renovador. Para que essa
renovação se efetive, a liberdade não pode ser esquecida, o que se entrega ao olhar sobre Rosa
Luxemburgo nesta citação de Bloch: ―Não há democracia sem socialismo, não há socialismo
sem democracia‖ (BLOCH, 2002, p. 240). Havendo democracia e socialismo, haveria,
naturalmente, liberdade e ordem.
Em Bloch, o homem é o criador da própria história. E na ascensão da burguesia,
encontram-se os germes sua negação do sistema que impõe, tais como o direito natural à
igualdade e à riqueza do poder baseada no trabalho. A utopia concreta torna-se, desse modo,
convite imperecìvel à visão da ―realidade como realidade‖ (BLOCH, 2006b, p. 462). ―O
amanhã‖, entende Bloch (2006b, p. 461), ―vive no hoje e sempre se está perguntando por ele‖.
A pergunta repete-se e ganha formas diferentes em diferentes épocas. Das utopias da
Antiguidade e da Idade Média ao confronto entre a Utopia de More e a Civitas Solis de
Campanella, as utopias sociais do amanhecer do século XIX e a filosofia marxista. Como
retrato da antecipação da história humanizada, fica o espaço da possibilidade de que ―o
homem se sentirá em casa‖ ao estar no mundo (BLOCH, 2006a, p. 477).
Estar no mundo significa despertar, não se deixar levar pela corrente alienante do
niilismo e da distopia. Significa mais, como escreve Bloch (2006b): não suspender a ―antìtese
congelada lucidez-entusiasmo‖, colocando ambos no ―mesmo patamar e permitindo que
cooperem, em prol da antecipação exata da utopia concreta‖ (BLOCH, 2006b, p. 454).
Lucidez e entusiasmo se somam.
A liberdade humana se desenvolve como horizonte permanente da utopia concreta e
do romantismo revolucionário. Só assim, com essa união, a história do socialismo irá avançar
e se revelar rica em conteúdo, libertando-se do servilismo, da divisão do trabalho, tornando-se
ele mesmo, o socialismo, ―necessidade vital‖ (BLOCH, 2006b, p. 455). O aprendizado
prático-teórico da conjugação lucidez-entusiasmo, expulsa o elemento irracional da vida que
não pode persistir: a estrada inexplorada do ―para quê‖. Como não há questionamento do que
se faz, o que exigiria o homem perguntar para quê, para onde e por que, torna-se mais fácil
sonhar que se é humano sem ser, ensinar o marxismo sem praticá-lo, falar de ter fé sem que a
fé exista. E se torna cômodo considerar que o destino é inevitável, desconhecer que o novo é
uma possibilidade. Retira-se o futuro da realidade, deixa-se o não-mais-ser, a inação.
Transitará o homem da imobilidade para o movimento?
144
O inimigo mais renitente do socialismo não é apenas, como é compreensível,
o grande capital, mas igualmente a quantidade de indiferença, a ausência de
esperança; se não fosse assim, o grande capital estaria isolado. Senão não
haveria, apesar de todas as falhas na propaganda, essa delonga para que o
socialismo inflame a esmagadora maioria, cujos interesses estão do seu lado
sem que ela o saiba. Portanto, o pessimismo é a paralisia pura e simples, ao
passo que o otimismo mais degenerado até pode ser a anestesia da qual ainda
se pode acordar (BLOCH, 2005, p. 422).
Bloch (2006b) se propõe a ampliar o conceito de consciência revolucionária, a rever
os vínculos entre a filosofia marxista, a psicanálise e o sentido do sonhar com uma vida
melhor. Sugere que existem opções para ignorar a realidade, tão eficientes quanto aquelas que
se dispõem a revelá-la. Nesse jogo de luz e sombra, ambiciona construir uma sociedade nova
a partir da livre e consciente vontade dos homens. Sua esperança é promover o encontro
dialético entre a utopia concreta, o romantismo revolucionário e a liberdade na construção da
ordem.
A gênese, como avalia, se situa no fim e não no princípio, porque a gênese é o
despertar da consciência para o que antes nunca existiu. Transita da treva interior do
inconsciente para a luz do conhecimento. É possível que, ao despertar para a realidade, o
homem descubra, como propõe Bloch (2006b), que o inimigo mais renitente do socialismo
não é o capital, mas a liberdade. O homem teme o despertar para a própria liberdade. Esse
ainda é o epicentro dos desejos ainda-não-conscientes, alvo da utopia blochiana. Uma utopia
que se propõe a uma ruptura total com a sociedade de classes e que, além da filosofia,
ambiciona mudar também a psicanálise e a entronizar o sonho acordado na vida do homem
rebelde.
Por isso, a nova gênese está no fim. Para o capitalismo a gêneseé o grande instante do
começo porque define as certezas absolutas, a desigualdade entre os homens, as verdades
estabelecidas, a ficção do final feliz, o otimismo indolente, o zombar do novo e a realidade da
ilusão que se recorta, desaparece e rescussita em outra ilusão, e mais autra, num ciclo
repetitivo. Na utopia concreta é justamente o inverso: a realidade se reveste de vontade
totalizadora e se propõe a destruir as ilusões, denunciar as imposturas do poder capitalista e
criar o mundo real. Há lugar para o romantismo, o idealismo, o sonho acordado, mas são as
imagens das ações do presente que escrevem a história da sociedade do porvir.
145
CAPÍTULO III
SABER DA FILOSOFIA E AS PULSÕES HISTÓRICAS:
A PERCEPCÃO DO AINDA-NÃO-CONSCIENTE
O futuro não virá como fatalidade sobre o ser humano, mas o ser humano
virá sobre o futuro e ingressará nele como o que é seu.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 196)
A partir da filosofia marxista de transformação do mundo, condensada nas Teses sobre
Feuerbach, Bloch situa o futuro da filosofia num contexto em que inexistem rotas
alternativas. Se o passado foi caracterizado pela ausência de conceito que definisse o
horizonte da utopia, agora, a filosofia necessitaria explorar a antecipação do futuro, fronteira a
ser desbravada e que separa o homem da sua plena potencialidade. Um dos contextos
apresentados em defesa dessa ideia é a questão formulada em The Spirit of Utopia (Geist der
Utopie) quanto ao lugar onde genuinamente o homem se encontra.
Bloch (2000, p. 168-73) recorda que desde a guerra dos gregos contra os persas, desde
a destruição de Cartago pelos romanos, desde as cruzadas e os campeões do Santo Sepulcro,
desde a época gótica e a escolástica, a história intelectual (Geistesgeschichte) do ocidente,
encontra-se tingida de sangue sempre que trata da utopia e que a filosofia nada pode fazer
porque não consegue ainda superar a incompletude do mundo. Desde Marx, o povo e a
filosofia não são mais termos isolados, o socialismo deixou de ser uma ideia pura, nascida em
meio à filosofia materialista, para ser um processo, uma práxis, e há um sujeito revolucionário
definido, o operário, mas há uma incógnita a ser decifrada e esta não é apenas teórica, Se
encontra no choque entre o ―eu‖ e o ―nós‖, entre os valores da sociedade vigente e os valores
da sociedade futura, podendo ser identificada na necessidade de expansão da consciência.
Marx, ao encaminhar-se para a emancipação proletária, rompeu com o idealismo
jovem-hegeliano e fundamentou-se no materialismo francês do século XVIII, segundo Löwy
(2012, p. 136), tendo como horizonte o socialismo e o comunismo de massa. Encontrou
dificuldades para estabelecer a unidade teoria e prática, alvo que teria alcançado nas Teses
sobre Feuerbach. Uma das ideias-força, baseada na Tese 3, é a educação do proletariado para
a prática da revolução. Contudo, a realidade teima em resistir à teoria e o dilema da unidade
não mìstica entre a ―cabeça‖ e o ―coração‖ persiste, sobretudo por incentivo da ideia da
146
transição pacífica para o socialismo que foi o que pregou Robert Owen. Bloch, com o ainda-
não-consciente, se propõe a superar o dilema e amplia, às dimensões do mundo, o sujeito
revolucionário.
A Bloch (2005, p. 118-9), interessa escrutinar a questão. Seguindo o curso da
elaboração da consciência para ele, a juventude merece lugar ativo: ―A boa juventude acredita
que tem asas e que tudo o que é direito aguarda a sua chegada ruidosa, e até é constituído por
ela [...] Os anos verdes estão repletos de alvoreceres para a frente‖. Se a época for
revolucionária, a juventude se alimenta da fome de vida plena e as asas permitem voar para a
transgressão polìtica, com ―fermento utópico especialmente forte‖ e para a liberdade que toma
nas mãos as causas sociais (BLOCH, 2006b, p. 143). Como a vontade se torna mais aguçada
quanto mais claramente o homem se torna consciente, o embrião da vida futura se desenvolve
em meio à vida presente e, nesse processo, os sonhos para a frente vão se tornando mais
nítidos.
Resta saber se os sonhos se dirigem para metas imaginárias ideais ou metas habituais,
separadas pelo maior ou menor grau de perfeição ou pela ilusão quanto ao caráter que possam
exibir e venham a ser corrigidos ou não. Ou se subsiste o olhar sobre o que ainda não está
claro. Por isso, o ideal é formulado de modo mais preciso que a ideologia (pela sua natureza
tende ao ―ocultamento‖) e os arquétipos que, frequentemente, mostram a ―esperança no
abismo, no ―abismo do arcaico‖ (BLOCH, 2005, p. 166-71).
Os ideais não são de forma alguma, segundo Bloch (2005, p. 168-9), indiferentes ao
real, mas exigem mediação concreta para que depurem as tendências de almejar a perfeição
do mundo, para que sejam arrancados do imobilismo, da abstração e do formalismo do seu
conteúdo. Fora disso, o que resta é ausência de vida no interior – e ainda mais exteriormente –
ao homem. Oportunismo e hipocrisia se somam para produzir apenas grandes palavras: dever-
fazer, o verdadeiro bem, e o belo, exigência e pressão pertencem ao ideal como fascínio, além
da ―mentira‖. Mas são ingredientes de farsa quando desconhecem o limite dos fatos. Como
em A Casa de Bonecas e Fantasmas de Ibsen, como cita Bloch, são palavras ocas de um tema
que apaixona a burguesia: ideal.
Quanto ao ainda-não-claro, Bloch (2005, p. 173) apresenta uma apreciação crítica
crucial: ―Se ele aparece em linguagem poética, as palavras desta linguagem até podem ser
plenamente sensitivas e atuais, mas reverberam como se fossem ditas num salão‖. As próprias
palavras são afetadas pelo ainda-não-claro do objeto. Pode-se dizer, escreve Bloch (2005, p.
173), lembrando palavras de Goethe, metaforicamente: ―Poesias são vidraças pintadas‖. A
alegoria dissipa o claro-escuro? Possui uma comparação simbólica, mas não é uma resposta
147
em linha reta. Em sua avaliação, no Capítulo 15 de O Princípio Esperança, Bloch demonstra
que o anseio de antecipação ainda se mistura com o distanciamento e ocultamento exigindo
iluminação gradativa do que neles ainda não se encontra definida. Porém, permanece a
consciência em latência. O ainda-não-claro, diferentemente do ideal, é uma incógnita. Mas a
antecipação revolucionária teria algo a dizer.
O que ela tem a dizer é simultaneamente algo velado que se revela e algo
revelando-se, abrindo-se, mas que ainda se fecha, porque – também no
símbolo – o tempo ainda não está maduro, o processo ainda não está ganho,
a coisa (o significado) acrescentada a ele ainda não foi definitivamente
produzida e decidida. Há, portanto, um encontro da função utópica tanto
com a alegoria quanto com o símbolo fundado na própria matéria dos
mesmos. Trata-se aqui do próprio significar objetivo, no qual a função
utópica se encontra (BLOCH, 2005, p. 175).
A expansão e os entraves da consciência atenuam o choque entre a Revolução e a
transição pacìfica para o socialismo? Entre o ―eu‖ e o nós? Em que condições? Se em Spirit of
Utopia (Geist der Utopie) Bloch, assinala que a marcha da utopia tem sido manchada de
sangue pelos seus opositores, Schelling (2012) em Les Âges du Monde encontra na
inconsciência as origens de mistérios que produziram a separação entre o mundo do Olimpo e
o abismo do Hades, a identificação das religiões com camadas de cultura arcaica e a dialética
da liberdade e necessidade.
Para ele, participar do que a natureza continha de cega, obscura e de sofrimento, exigia
que o homem se elevasse ―à mais alta consciência‖ (SCHELLING, 2012, p. 214).87
Assimilasse ―iluminações do espìrito‖88
que correspondessem ao inteligível e ordenável no
―edifìcio do mundo‖.89
A loucura, que desagrega, assim como o idealismo e o espírito das
épocas novas foram surgindo pouco a pouco sem que o homem tivesse foras para evitá-las ou
as percebesse imediatamente (SCHELLING, 2012, p. 224). Os elementos mais graves da vida
primeira teriam sido Força e Poder e foram esses princípios irracionais da origem que
aprisionaram Prometeu, amigo dos homens, num rochedo e o sacrificaram (SCHELLING,
2012, p. 227). Reconhecer esse princípio, seria para Schelling, tão importante como
reconhecer o fundamento irracional da vida, a personalidade e o ser em si e para si mesmo.
Explicaria as reações, sangrentas, ao socialismo?
87
―l‘elever à la plus haute conscience‖.
88
―illuminations d ‗l esprit‖.
89
―l‘édifice du monde‖.
148
As fontes de choque entre a individualidade e a coletividade, Bloch vai investigar de
maneiras diferentes. Em The Spirit of Utopia trará à tona a simbologia da morte de Cristo, a
subjetividade ética de Kant, a riqueza da filosofia da história de Hegel, em contraste com a
prática dialética da anamnese, os labirinto em que a crença no homem se perdem e se
recuperam para voltar sempre ao ponto de partida, o ainda-não-consciente. Pois o conflito do
homem entre o ser e o vir-a-ser é real, exige que a filosofia se expanda, que envolva a ruptura
com a escuridão. Outra faceta é que em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) Bloch trata da
psicanálise e do inconsciente freudiano. O ainda-não-consciente, como mostrou Leibniz, pode
estar ―armazenado‖ no homem, pode ter suas ―raìzes espirituais‖, tal qual delineia Freud, mas
permanece sendo um ―segredo primordial‖, um conhecimento possìvel, ainda não visto
(BLOCH, 2000, p. 187-96).
Mais do que um ―armazenamento‖ ou ―raìzes espirituais‖, uma ―inadequação‖ à
realidade, como argumenta Bloch (2000), o ainda-não-consciente seria uma questão: por que
permanece oculto em sombras? Questões que Bloch formula em The Spirit of Utopia: por que
o homem pensa sempre no agora e não no processo? Por que o conceito de Deus é separado
da vida? E por que a esperança vive nas sombras, sem que o homem sonhe com a Pandora de
Goethe? (BLOCH, 2000, p. 198-202).
Essas questões são retomadas em O Princípio Esperança e irão nutrir, em parte, o
conceito de ―boa nova‖ e a promessa de Canaã, por Moisés que seria, na definição de Bloch
(2006b, p. 318), ―a consciência da utopia na religião, da religião na utopia‖. Nesse caso, o
mundo surge como construção humana e a revolução do êxodo não surge do céu, que é alto,
mas da terra. Como Canãa, em seu ―esplendor inexplorado‖, a religião é a utopia que permite
comunicar o ―totalmente-outro‖, com o Egito do faraó escravista, sendo Canãa, o ―polo
positivo‖ da boa nova da libertação do povo judeu.
Com Moisés, assim como Zoroastro (que viveu por volta de 600 a.C. na antiga Pérsia)
e o fidalgo Buda, Bloch procura exemplos de homens que tentaram terminar com o
sofrimento de outros homens. Mas é Moisés que desponta como o fundador originário da boa
nova e da utopia do reino. Jesus e o cristianismo viriam a encarnar a o ―centro da humanidade
ideal‖, mais do que Zoroastro e Buda, não por olhar para o homem existente, mas pela ―utopia
de um ser humano possìvel‖, tendo vivido ―exemplarmente‖ a fraternidade escatológica e se
dedicado voluntariamente à pobreza (BLOCH, 2006b, p. 343-4). Contudo, Jesus, que morreu
na cruz, foi um rebelde, mártir e a liberdade que pregou tem ponto de referência com Moisés
na filosofia do reino que será a mesma Gioacchino di Fiori e sua doutrina do terceiro reino.
149
A verdade ideal de Deus é constituída unicamente pela utopia do reino, e o
pressuposto para esta é exatamente que não permaneça nenhum Deus nas
alturas, já que de qualquer modo não há nenhum lá nem nunca houve [...]
Mas como eram poderosas as forças que estabeleceram um lado de lá. Por
muito, muito tempo, pareceu bem natural que o mundo fosse perpassado por
espíritos vindos de baixo e de cima. Com que tenacidade conservou-se, nas
pessoas que tiveram uma educação conservadora e assim permaneceram, a
imagem do entronizado além. Muito hábito e falta de seriedade concorriam
para isso, mas justamente o hábito doa algo de sensações vagas, de modo a
pareceram mais volumosas do que seriam se seriamente consideradas. De
fato hoje ninguém mais, nem mesmo a pessoa mais piedosa, acredita em
Deus com a mesma intensidade que há duzentos anos até o mais tíbio, sim,
até o cético acreditou nele (BLOCH, 2006b, p. 374-5).
A rigor, o despotismo do além-terra prolongou-se até o Iluminismo do século XVIII.
Mas, o conteúdo da esperança semeado pela religião persistiu mesmo após as críticas de
Feuerbach à religião, embora o ateísmo, como reino da liberdade, tenha se tornado parte da
utopia humana concreta e o problema tenha deixado de se chamar ―Deus e, sim, reino‖
(BLOCH, 2006b, p. 377). A consciência do significado profundo do ateísmo se deu de
maneira gradual. Modernamente, esse rumo da consciência não poderia ser trilhado sem o
conhecimento do que passou e, nesse sentido, Bloch (1973, p. 190) recorre ao flagelo de
Münzer e a sua relação com a revolução: ―Uma noite transmite o saber à outra‖, como ele
lembra, e isso significa que o sol depois de longa noite surge na sua origem verdadeira: ―a
palavra correta no dia claro‖.
Foi o que Münzer buscou ao pregar e rezar em alemão para que o povo compreendesse
as mensagens e não atribuísse poderes mágicos às palavras em latim, outrora usadas nas
pregações. É o que Bloch procura fazer ao defender que somente os homens sejam capazes de
encontrar e chave da utopia e do porvir, procurando erguer, com suas mãos, o paraíso
terrestre. Não deseja nada hermético no novo. Olha para o futuro, mas quer antes ver o agora,
pois o agora não é o meramente ―imediato‖, ―transitório‖, seria muito pouco; o agora, é mais
do que a arte verbal, do que a narração de uma Ilíada, uma Odisséia, um paraíso de Milton90
perdido e reencontrado, é mais do que o instante vivido, é a ―eternização da utopia‖ (BLOCH,
2006b).
90
John Milton, autor de O Paraíso Perdido, era humanista, expoente do classicismo, político que se alinhou
com Oliver Cromwell durante o período republicano inglês. Fluente em latim e grego, destacou-se como
libertário, intelectual de vastos talentos. Nasceu em Londres em 1608. Viveu 66 anos. Por duas décadas
dedicou-se à vida pública. Completamente cego, ditou a sua obra prima, O Paraíso Perdido, poema épico em
dez cânticos, considerado no mesmo patamar de Homero, Virgílio, Dante Alighieri e Camões. Inicialmente,
pensou em narrar a lenda do Rei Artur, mas terminou a escrever uma obra universal que envolve a tentação e
queda do primeiro homem. Escreveu também o livro Areopagítica, precursor da liberdade de imprensa,
publicado sem licença prévia, em desafio à lei e à censura na Inglaterra.
150
Em termos gerais, Bloch poderia sintetizar o real nesta reflexão: ―O mundo ainda não
atingiu sua meta nem mesmo nas suas estruturas pretendidas como ideais e que fazem parte
da linha para frente; assim, cada ideal, ainda possui um mais elevado acima dele, uma escala
até chegar no bem supremo‖ (BLOCH, 2006b, p. 401). Como cada passo precisa olhar para o
amanhã que potencialmente contém, a razão, de acordo com Bloch (2006b, p. 309) estaria
contida na visão do escritor Jean Paul91
, ao lado de Goethe, o grande mestre da literatura
alemã: ―O presente está algemado ao passado como de resto os presos a cadáveres, e o futuro
puxa numa outra ponta; um dia, porém, ele será livre.‖
Há, em consequência, imensa e dissimulada barreira a vencer no interior da própria
filosofia, que não age imediatamente sobre aquilo que o homem pode fazer – a potência
transformadora –, mas antes sobre a impotência, o que não teria capacidade para fazer.
Predomina a renovação para dentro de si mesmo, não para o novum. Na filosofia de Bloch, o
exemplo clássico dessa hegemonia é a fênix que se queima e se renova, mas ao estilo
tradicional: ―Ela retoma o ensino heraclitiano e estoico do incêndio do mundo, segundo o qual
o fogo de Zeus resgata o mundo para dentro de si mesmo‖ (BLOCH, 2005, p. 201).
O exemplo dialético: o Fausto de Goethe revolve o mundo exterior e atravessa ―tanto
o mundo quanto o céu‖ para livrar-se dos demônios da servidão (BLOCH, 2006b, p. 96-7).92
Fausto, ―o transgressor de limites por excelência‖, enriquecido pelo ―experimentado‖, é a
progressão prometeica do homem. É a simbologia do homem que nasceu para ver, não para
tatear na cegueira da escuridão, do homem que não se deixa encantar pela ilusão de Mefisto,
do homem que encontra nas ―cores da diversidade‖ o nascedouro das ―leis harmoniosos da
mediação‖ (LACOSTE, 2007a, p. 409).
Nesse perfil, Goethe misturou as sombras e as luzes, engendrando a ideia de
―construção pelo homem do equilìbrio entre as suas forças internas e externas (LACOSTE,
2007a, p. 410). Uma frase, reproduzida por Jean Lacoste (2007a), em Goethe la Nostalgie de
la Lumière, explica porque Bloch (2006b) considerava Fausto o princípio esperança da
91
Jean Paul (1763-1825), batizado como Johann Paul Friedrich Richter, escritor romântico alemão, escreveu o
livro Rede des Toten Christus von Weltgebaïdehereb, dass kein Gott sei (Discurso do Cristo Morto, desde o
cume do mundo, sobre a não existência de Deus). No livro, o escritor, muito admirado por Bloch, sonha que
se encontrar num cemitério, à meia noite, e os mortos, dos caixões abertos, vêm a figura soberana de Cristo
no céu, provavelmente à espera da ressurreição, e perguntam: ―Cristo, não há Deus?‖Cristo, responde: ―Não,
não há Deus.‖ (BORGES, 1993, p. 403-26).
92
―Terra, também nesta noite foste constante/ E respira revigorada sob os meus pés/ Já começas a envolver-me
de desejo/ Agitas e revolves uma forte resolução/ A de almejar sem cessar o existir supremo‖ (BLOCH,
2006b, p. 97). Bloch cita o trecho do poeta no contexto de que não existe autoaperfeiçoamento, subjetivo,
mas um abrir de olhos, proveniente do ―perfeito olhar exterior no olhar interior, ou mesmo no ser-interior do
sujeito faustiano‖ (BLOCH, 2006b, p. 97).
151
utopia: ―No princìpio era a ação‖,93
o que revela o interesse de Goethe em privilegiar a
atividade. Aquilo que considerava a ―exigência do dia‖94
em contraste com a atividade
especulativa e que opunha ao ―prazer da vida‖95
(LACOSTE, 2007a, p. 227-68, tradução
nossa). Foi o que levou Goethe a dedicar parte da sua vida a reflexões econômicas e técnicas,
além de evoca-las em o Fausto. Bloch, considerava Goethe um indivíduo coletivo, que se
interrogava a respeito da ambivalência humana e que não foi apenas um cidadão da sua época.
Desempenhou o papel de educador para a democracia igualitária. O educador é ao mesmo
tempo uma necessidade e uma metáfora do despertar do ainda-não-consciente.
3.1 ―DEMORA ETERNAMENTE! ÉS TÃO LINDO !‖
A esperança apenas transcende o horizonte, ao passo que o conhecimento
do real mediante a práxis o desloca de maneira sólida; ainda assim, é
exclusivamente a esperança que conduz à compreensão de mundo
estimulante e consoladora e permite obtê-la, ao mesmo tempo como a
compreensão mais sólida e mais tendencialmente concreta.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 453)
A vitalidade de Fausto torna-se visível no movimento de maneira que a libertação é,
também, a nova ontologia utópica concreta: ―Fausto se modifica junto com seu mundo, o
mundo modifica-se junto com Fausto, um teste e uma essencialização em camadas sempre
renovadas, até que o eu e a outra coisa pudessem consoar‖ (BLOCH, 2006b, p. 98). Bloch
interpreta Fausto como sìmbolo dialético em que cada ―desfrute alcançado é riscado por um
novo desejo de bem próprio despertado por ele‖ e, ao mesmo tempo, em que cada ―ponto de
chegada atingido é refutado por um movimento novo que o contradiz, pois algo está faltando,
o instante lindo ainda não alcançado‖. É ilustrativo observar que Bloch (2006b, p. 97)
considera o mero desfrute ―vulgar‖ e considera que existe em Doutor Fausto um movimento
rumo à liberdade.
Não há em Doutor Fausto o ―subjetivismo‖ do ―autoaperfeiçoamento‖, mas ―um abrir
de olhos do mundo experimentando‖, o que provém do olhar exterior no mundo interior, uma
93
―Au commencement était l‘action‖.
94
― l‘exigence du jour‖.
95
―Jouissance de la vie‖.
152
aproximação do humano-utópico em que Goethe caracteriza o instante como o enigma do ser
(BLOCH, 2006b, p. 97-8). A frase ―Demora eternamente! És tão lindo!‖ soa como o
―paradigma metafìsico da existência plena e sem qualquer além-mundo‖, segundo Bloch
(2006b, p. 99-104), projeta-se para além do instante vivido, transformando valores e fazendo
do saber, ―o absoluto no si mesmo e no mundo‖. Nessa comunicação entre a eternidade e o
instante, ―a ideia do bem torna todas as ações boas e todas as concepções verdadeiras, desde
que no final tenham parte na ideia do bem‖ (BLOCH, 2006b, p. 404).
Fausto vive o real e o transcende. Suspende, de acordo com essa visão, o eterno
caráter de distanciamento do inconsciente. Segundo Bloch (2006b, p. 104), para ele, ―a ação
não se encontra só no início, mas no fim, sendo a mais forte delas a ação da identidade
promovida‖. Nesse particular, preserva o conceito hegeliano de consciência, do espírito que
―seja para si, seja em si, que se associe consigo mesmo‖, que na Fenomenologia do Espírito,
lembrada por Bloch (2006b, p. 104), estaria no desbravar da verdadeira consciência, ―no
atingir a um ponto em que se despojará da sua aparência‖ e em que a ―aparência se torna igual
à existência‖.
A poesia da vida chamada Fausto move-se, antes, na direção de uma ideia
muito concreta que nem se trata mais de uma ideia, e sim de um
experimento, ainda que seja um bem direcionado, um experimento
direcionado para aquilo que planifica. Quem procura isso é um ser humano
entre seres humano, justamente iniciado na Adega de Auerbach e indo até o
povo livre em terra livre e mais além; no entanto, para que não haja dúvidas
sobre seu caráter igualmente extramundano, tanto o almejar quanto a
resolução de rumar para a existência suprema detêm o mesmo significado
que os da natureza, sobretudo com sua manhã, sua manhã cheia de
significado [...]. Assim, para Fausto não há mais subjetivismo no
autoaperfeiçoamento, o que ocorre é um abrir de olhos para o mundo
experimentado; daí provém o perfeito olhar exterior no olhar interior, ou
mesmo no interior do sujeito faustiano (BLOCH, 2006b, p. 96-7).
Na obra de Goethe, Fausto amplia o si-mesmo no que se relaciona com sua existência
e a existência de todos os homens. Esse plano de reflexão, que se configuraria na coincidência
do sujeito-objeto-sujeito, modelo basilar do sistema utópico-dialético de Bloch, liga a
inquietação, a vastidão do mundo, o instante verdadeiramente vivido e a eternidade. Para
Bloch (2006b, p. 195-6), simboliza o retorno do homem a ―Ítaca real‖, um sonho acordado
sem ilusões. Não se trataria mais de um diálogo puramente interior, mas de um diálogo que se
torna também exterior – e por essa razão é chamado de dialética – e não mais contém
aparência vazia. Ele ultrapassa as coisas conhecidas, pertence à ―inquietação impulsionante e
possibilidade nascente‖ (BLOCH, 2006b, p. 163).
153
Em lugar de virar pó ao morrer, como reza a Bíblia, o homem goethiano, com Doutor
Fausto, descobre no coletivo a obra humana, diferente da antiga fixidez ôntica do tempo
circular (BLOCH, 2006b, p. 224-9). Nada tem em comum com um ressuscitar. A imortalidade
de Fausto encontra-se na compreensão de que o sujeito moderno está ―condenado‖ a
encontrar o sentido da sua própria vida (LACOSTE, 2007a, p. 413-4).
Nas suas ―autocontemplações‖, Marco Aurélio ainda observava que um
homem de quarenta anos de idade, tendo à mente aberta e encontrando-se
numa posição social suficientemente elevada, terá visto tudo o que
aconteceu antes do seu tempo e que acontecerá depois dele, pois seria a
mesma coisa que ele está vivenciando. Hoje, o fluxo dos eventos é tão mais
longo que nossa vida, o curso da história rumo ao novo é tanto geométrica
quanto dinamicamente tão diverso do arco da nossa vida que naturalmente se
inclina para baixo, que nenhum ser humano valente consegui mais morrer
farto de dias no sentido histórico (BLOCH, 2006b, p. 189).
Mas não existe nada comparável à morte ou ao medo de morrer, mesmo se como
ocorria no Egito o lugar para onde iam os mortos fosse tido como ―amigável‖, não destituìdo
de luz ou distante do próprio sol como era expressa na imagem do Hades. (BLOCH, 2006b, p.
206). O hieróglifo da vida sempre foi o preferido e o homem escolhe a angústia da existência
ao mais calmo dos nirvanas. Essa mediação entre o temor da morte e o prazer da vida, se
projeta também para o vindouro e se associa à rejeição e à procura da utopia.
A morte é vista como parte do processo, mas não do sujeito ambíguo e contraditório
desse mesmo processo. Dessa maneira os sonhos desejantes – médicos, sociais, técnicos e
mesmo os voltados para a melhoria do mundo – se mesclam com as ilusões em épocas ou
países superficiais, a exemplo do que aconteceu na América do Norte no século XIX onde a
―falsa visionaridade‖ vicejou e, com ela, a ideologia autoritária (BLOCH, 2006b, p. 269).
É persistente a dualidade blochiana em expor a face obscura e a face luminosa do
homem, advertindo que este tanto pode acumular experiências e transformá-las em atitudes
revolucionárias, como se manter em possibilidade e nada fazer para mudar a existência. O
papel da fênix é prender a vida no tempo cíclico: o ultimum não é o novum, mas o retorno ao
primum. Não há intenção libertadora, nem o materialismo para o futuro. O ainda-não-
consciente é obstruído e o nada a tudo caracteriza. Volta-se ao ponto de partida, ao ponto
zero, ao início do mundo. É como se o novum não fosse possível.
Esse elemento repetitivo teria ensombrecido a função utópica mais elevada das
grandes obras, mas não significa que, nelas, não existam funções utópicas autênticas e que
não se distingam pelo ―olhar de grande alcance para dentro do vindouro, do essencial‖, de
154
―eterna juventude‖, que ―contém perspectivas sempre novas‖ (BLOCH, 2005, p. 154). Platão
é um exemplo desse descobrir das qualidades utópicas das obras clássicas: Bloch vai resgatá-
lo no Filebo, com o bem comum como sendo ―todas as ações boas‖ e o uso da razão; essa
unidade – coisas boas e razão.
Bloch irá encontrá-lo, igualmente, em Agostinho, com o bem comum transposto para
Deus, que regeu os ―ideais da Idade Média‖; e o encontra em Tomás de Aquino para quem
―Deus é, em primeira linha, o entendimento do bem, ao qual a vontade de Deus está
amarrada‖. Também vai buscá-la em Kant para quem o bem supremo ―é conteúdo da
esperança de um mundo em que a virtude e a bem aventurança estão unidas‖ e possam
apresentar dignidade (BLOCH, 2006b, p. 404-5).
Além do mais, pode-se falar que o sentimento de vitalidade não é mais do que reflexo
da eliminação dos ornamentos da ilusão e da vontade de escalar montanhas luminosas dos
ideais norteadores da vida correta, sem reduzi-los a preceitos morais. Se não se sobe as
montanhas, ação e consciência não se conjugam. Tem-se a bondade fingida, a luz que não
ilumina da filantropia e da filosofia da decadência que se instaura tornando a imagem do nada
inevitável.
A fome e a necessidade, que constituem o nervo da história, não deixam de fustigar o
homem e a vida, concebidas apenas como subjetividade, revelam-se vazias. Nelas, não
prevalecem o espírito da filosofia do otimismo, esperança concebida em termos materialistas
para ser utopicamente aberta e, nesse sentido, afirmar a liberdade. Para Leibniz (2004),
correspondia a elevar a consciência de uma época à consciência de si mesma. Bloch (2005)
projetou essa consciência filosófica para a construção do futuro.
É o bastante sobre o que permanece em aberto, que é assim porque não está
fixado ou não está rigidamente fixado. Dessa forma, o pode-ser desse tipo
reflete uma cautela factual por ocasião de juízos, geralmente no modo de
uma pergunta que continua repercutindo, no modo de uma reserva factual.
Porém, de constituição diferente desse possível factual é o possível objetal
que agora emerge, a saber, na medida em que não diz respeito ao nosso
conhecimento de algo, mas a esse algo propriamente, como algo que pode
vir a ser de outro modo (BLOCH, 2005, p. 226).
É sobre essa face do que pode vir a ser que Bloch procura o insuficientemente
manifestado. Nesse processo, a manifestação precisaria de uma indução mais completa e
abrangente e, assim, o ―pode-ser habitual‖ daria lugar ao ―dever-ser factual‖ (BLOCH, 2005,
p. 225). As águas da teoria não se dividiriam para não cair num esquematismo fechado: o
155
―factualmente necessário‖ se manifestaria como ―factualmente possìvel‖, sem ser mais
completo do que o objeto inacabado, no caso a possibilidade de construção do futuro.
A ―conclusão perfeita‖, como sugere Aristóteles, torna-se a ―conclusão necessária‖: o
possível não pode ser separado da situação do objeto (BLOCH, 2005, p. 225). Registre-se que
a teoria do objeto é menos ambiciosa que a teoria do conhecimento e, por isso, Bloch prefere
referir-se à teoria do objeto do conhecimento, sem que esta contenha qualquer idealismo
porque a própria investigação materialista se encarrega de dissipá-lo.
À guisa de exemplo: a definição real socialista de nação, à parte de todos
aqueles bigodes nacionalistas trazidos do estrangeiro ou ainda das Grandes
Chicagos cosmopolitas, dos molhos de hotel, dos atuais nivelamentos por
baixo, constitui exatamente o aspecto objetal conciso do real, o que significa
justamente que ela dá a conhecer no objeto (Objekt) a sua estrutura
constitutiva. A doutrina do objeto (Gegenstand) é, assim, lugar de encontro
das categorias como modos ou formas de existências mais gerais e, assim,
típico-características (BLOCH, 2005, p. 228).
Se a função da dialética materialista é corrigir as configurações do idealismo, é
importante para o conhecimento diferenciar o objeto do conhecimento do objeto real. É por
esse caminho que se pode alcançará os contextos sociais e o conhecimento das possibilidades
de mudança. Pois a possibilidade serve para identificar o poder (Können) interno e ativo,
como o poder-ser-feito (Getanwerdenkönnen) externo e passivo. São dois significados, ambos
entrelaçados pelo caráter das possibilidades. Ou seja, a possibilidade de transformação
dialeticamente mediada.
Em Bloch, a categoria da ―possibilidade‖, ela própria antecipadora da possibilidade
real, constitui ―primordialmente‖ dimensões da linha de frente. Encontra-se na raiz das
transformações da história, passa pelas revoluções, é símbolo dos ideais. Quando analisa
Experimentum Mundi, Arno Münster (2001), trata de duas novas categorias incluídas por
Bloch em sua obra: comunicação e práxis. Num mundo de realidade em transformação,
comunicação e práxis funcionariam como instâncias mediadoras do real e se unem à categoria
tempo, que avança para o futuro e não para de surpreender, a exigir compreensão intermitente
das pequenas coisas. É um tempo novo, de inquietudes, que se expressa no próprio espaço da
história. Segundo Münster (2001, p. 362, tradução nossa), ao assim conceber o tempo, Bloch
o inscreve no espaço do ―progresso‖ na direção do bem comum possìvel que é,
―incontestavelmente, aquele da esperança de acontecimentos de um tempo melhor‖.96
96
―en l‘inscrivant, celui de l‘espérance de l‘évènement d‘un temps meilleur‖.
156
O inconsciente, na interpretação de Belaval (2005, p. 256), no seu estudo sobre
Leibniz, "é inerente a toda a substância criada" e, no universo, envolve todos os degraus da
percepção": existem aqueles degraus que são "espelhos do universo" e aqueles degraus de
"imitação", pertencentes aos espíritos dotados de reflexão que, pela inteligência, transformam
a substância bruta em conhecimento reflexivo. Bloch (2005) volta-se para Leibniz ao associar
a percepção reflexiva do homem à ação, tal como ocorre em Os Novos Ensaios sobre o
Entendimento Humano (2004).
Nessa obra, escrita entre 1701 e 1704, Leibniz (2004) professa que o espírito "é
essencialmente inquieto" e se movimenta a partir de "pequenas percepções" que são
guardadas na memória, sensíveis ao conhecimento, e à razão. Não sendo a alma passiva, as
ideias existem no espírito e se atualizam, em linguagem prática, de acordo com as ocasiões. A
consciência da fome, como percepção referida por Bloch (2005) não surge por acaso, sendo
indicativo de que o homem é um ser que ―não só padece de necessidades, mas tem
consciência de ter necessidades‖ (FURTER, 1974, p. 80).
Assim, a consciência pode ser entendida como parte do entendimento dialético da
necessidade e da ação para superá-la em suas muitas dimensões. Entre elas, destaca a
consciência ilusória de que como o capitalismo paga salários injustos seria necessário criar
uma sociedade nova em que fossem pagos salários justos. Isto, relata Bloch (2006b, p. 174-5)
foi apregoado por Owen, Proudhon, jamais por Marx, e existe no âmago da própria sociedade
capitalista e fará com que ela entre em colapso.
Mas o que Marx combateu foi o capitalismo e a sociedade de classes, cuja extinção,
esta sim, seria capaz de remover a espoliação. Uma vertente real da consciência seria a visão
do homem como sujeito da natureza (natureza geradora de natureza) na procura da força
interior da vontade, elemento até então só claramente reconhecido em povos beligerantes, de
traços espartanos, no fanatismo ou nas relações amigo-inimigo, propulsora dos nacionalismos,
mas que poderia ser mobilizado para a transformação do mundo (BLOCH, 2006a, p. 229).
Para Bloch (2006b) a solução teórica para a consciência já existe e encontra-se na
incompatibilidade das forças produtivas, que há muito assumiram personalidade privada de
apropriação capitalista, com o homem. Falta a prática para remover as contradições e fazer o
mundo ingressar em condições mais perfeitas na sociedade sem classes. Como falta plenitude
vital do sujeito revolucionário, aquilo que, aos olhos de Bloch, Leibniz definiu como
―inquietude pulsante‖, e Aristóteles como ―enteléquias‖ para que o homem revolva a raiz da
existência e deixe ―o mundo chegar aos seus sentidos (BLOCH, 2006a, p. 236-43).
157
A natureza não é fato passado, mas o canteiro de obras ainda não
desocupado, o material de construção ainda não adequadamente existente
destinado a edificar a casa humana ainda não adequadamente existente. A
capacidade do sujeito problemático da natureza de cooperar na construção
dessa casa constitui precisamente o correlativo utópico-objetivo da fantasia
utópica humanitária, como fantasia concreta. Por essa razão, é certo que a
casa humana não apenas está situada na história e sobre o chão da atividade
humana, como também se encontra sobretudo sobre o chão de um sujeito
mediado da natureza e sobre o canteiro de obras da natureza (BLOCH,
2006a, p. 144-5).
Com essa compreensão da natureza, Bloch (2006a), escudado em Schelling e Hegel,
considera que o homem trata a natureza com uma visão de passado, não a visão do horizonte
de futuro, do vir-a-ser. Há, segundo ele, a opção por uma ―técnica de violação‖, relacionada
com a Revolução Industrial e seus desdobramentos, não o despertar de uma ―liberdade
técnica‖ que promova a cooperação homem-natureza, não mais fazendo da natureza um
―gigante algemado‖, uma ―esfinge encoberta‖ (BLOCH, 2006a, p. 145-50). A mudança só
aconteceria quando desaparecerem os fundamentos da economia de exploração e, por
consequência, na sociedade sem classe não existir mais a separação entre direito natural e
direito moral.
3.2 A ABERTURA PARA O FUTURO, AS GERAÇÕES E OS ATRIBUTOS MAIS
ELEVADOS DO HOMEM
As coisas continuam em movimento enquanto o seu cerne apenas existe, mas
ainda não está presente.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005b, p. 406)
A ideia de vislumbrar as grandes obras filosóficas não pela repetição da ideologia de
classe, mas pelo que manifestam quanto ao futuro, aparece em Bloch como relação entre o
que a humanidade deseja e o que se propõe a realizar. Em torno dessa dualidade Bloch (2005,
p. 405) situa Tomás de Aquino na definição do bem supremo como a ―felicidade mais
potente‖ no conteúdo da esperança de um mundo em que ―a virtude e a bem aventurança‖
estejam unidades para proporcionar dignidade ao homem.
Em Kant, apesar de bem supremo estar tão ―solto e distante‖ quanto o ser humano
ideal, seria o que para o navegador é a estrela polar, a concordância perfeita; Fichte seguiria
158
por essa mesma linha, alçando o bem supremo ao ―ápice dos ideais‖, uma espécie de ―para-
quê absoluto‖, o ―sentido da vida‖, mas essas manifestações da experiência dialética exigem o
novum (BLOCH, 2006b, p. 405-6). E o novum deriva de uma intenção consciente, remonta a
uma vontade.
Todos os bens, incluindo o mais elevado, o bem supremo, no qual coincidem
inteiramente o bem e o valor mais universalmente válido, estão relacionados
com a vontade que os quer, e cuja condução, enfim, saciação (felicidade),
eles servem. É a necessidade citação sentida pela vontade que desperta o
potencial dos bens e valores que se encontram fora da vontade, assim como é
o trabalho voltado para a satisfação que extrai dos materiais e objetos
trabalhados seu valor material objetivo (BLOCH, 2006b, p. 412).
O bem supremo seria o problema metafísico de latência na natureza (BLOCH, 2006b,
p. 407). Uma tendência em processo, dependente da vontade objetiva, daquilo que Sócrates
denominou de ―virtude‖ e que Kant, simplesmente, definiu como ―boa vontade‖ (BLOCH,
2006b, p. 411). Esse inter-relacionamento envolve não só a dimensão histórica da utopia, mas
toda a práxis cotidiana e a objetivação processual da utopia. Envolve a conexão dos valores
com o mundo real, envolve que as coisas sejam nobres na mente e em si mesma, envolve
aliança ―entre os movimentos produtivos e finais humanos e natural, unidos no mesmo
materialismo dialético‖ (BLOCH, 2006b, p. 416-7).
Uma velha pergunta é a que e a que finalidade o palco de fato se dispõe. Ele
trabalha com cosméticos e ademais também predominantemente com
recursos e luzes que iludem deliberadamente. O palco é, por isso, mais
aparência do que qualquer outro gênero de arte e justamente porque ele torna
essa aparência vivenciável na realidade, apesar da moldura divisória. Isso de
fato confere ao teatro seu poder simultaneamente fascinante e ilusionístico,
mas também dá à aparência uma ênfase como nenhuma outra arte pura. Sim,
a aparência do palco, para um olhar não amigável – e ela frequentemente o
tem encontrado, e não só entre hipócritas –, pode estar mais próxima da
aparência extremamente ignóbil de uma figura de cera do que da de uma
imagem que aparenta distinção e não tem nada de vivenciável na realidade
(BLOCH, 2006b, p. 409-10).
A imagem do palco é coerente. Bloch sugere, como Brecht, que o teatro não seja puro
entretenimento, mas formador de consciência. Desse argumento, seminal para a moral
revolucionária, Bloch volta-se para a integridade da relação com a realidade, não uma
realidade trivial, mas como realidade teimosa de esperança. O que objetivamente importa é a
abertura para o amanhã, o que pode ser feito para mudar a realidade, não é o que está
determinado.
159
Objetivação não engendra a aceitação irrefletida das manifestações, mas o ―assombro‖
filosófico que é o princípio da reflexão. Significa abrir os olhos e ver que o mundo contém
apenas ―um potencial aliado dentro da matéria do valor, nada mais, mas também nada menos
que isso‖, o que quer dizer mediação ―entre natureza e a história humana e humanizá-la‖
(BLOCH, 2006b, p. 418).
É um duro golpe para a consciência ingênua constatar que cor, calor e bom
possuem uma existência apenas subjetiva. É muito mais fácil para ela,
porém, supor que o bem, o mau e suas diversas variações ocorrem apenas
subjetiva, e não objetivamente. Em conformidade com isso, portanto, algo só
pode ser chamado de bom porque é apetecido, assentido pela vontade,
manifestando-se por essa razão como um bem. O que contribuiu muito para
essa visão subjetivista foi, sem dúvida, a multiplicidade e com ela a
diversidade dos respectivos assentimentos. O que para este é uma coruja,
para aquele é um rouxinol, ou, como diz um outro ditado, um que não
precisou esperar a chegada dos céticos: gosto não se discute. Assim, todo
chamado juízo de valor, ao menos no que diz respeito ao agradável,
prazenteiro ou a esse tipo de coisa boa, é considerado como subjetivo desde
há muito também pela opinião popular (BLOCH, 2006b, p. 409-10).
Bloch almeja que a sociedade encontre no conteúdo real-objetivo da utopia socialista a
eternidade do ―bom‖, como, talvez, no Antigo Testamente a sucessão de gerações asseguraria
a eternidade do homem na Terra.97
Se no passado, como recorda Berlin (2015, p. 26-7), o
―amor‖, ―o senso de dever‖ o ―perdão‖, garantia a fraternidade entre os homens‖, só que com
a vida voltada para o servir a Deus, no socialismo, a fraternidade e a liberdade seriam voltadas
para o homem servir ao homem.
Esse seria o salto da teoria para a prática da filosofia do ainda-não-ser e do ainda-não-
consciente. Bloch chega a esse ponto culminante entendendo que a sociedade burguesa
apresentou formações ideais tão veementes que passaram a ser vistas como eternas. Uma das
mais ilustrativas é aquela do sujeito capitalista que se põe em marcha sempre que as
condições de vida se revelam ―estreitas‖ e procura ―lugares mais amplos‖ (BLOCH, 2006b, p.
100).
Pelo seu espírito desbravador, o empreendedor coloca-se como o ser humano entre os
seres humanos, a raiz humana dos deuses, talhada com material divino. Essa mitologia fez
com que o homem burguês, pela sua suposta obstinação associada à ―centelha de luz
prometeica‖, sobrepujasse o citoyen (cidadão) e passasse a ser visto como o homem idealista.
Não se limita a anunciar descobertas, mas se propõe a elucidá-las e integrá-las à sociedade.
97 Cf. Bíblia Sagrada. Antigo Testamento – Crônicas (2003, p. 410-50).
160
As coisas continuam em movimento, enquanto o seu cerne apenas existe,
mas ainda não está presente. Pois esse cerne, sendo o quê (Daß) a partir do
qual e rumo ao qual tudo acontece, ainda se encontra em fermentação e na
obscuridade. Ele ainda é pontual e não dilatado, apenas está vagando recluso
e não externado, em lugar nenhum progrediu até à manifestação certeira sua
essência (BLOCH, 2006b, p. 406).
Nada do que é previsto pelo capitalismo acontece. O homem acorda e percebe que a
sociedade continua inacabada e que a sua atividade não gera valor e, o que é pior, não
encontra sentido para a existência. Consequentemente, há uma ―desobjetivação‖ dos demais
valores, porque fica no ar a finalidade da vida (BLOCH, 2006b, p. 413). Existem aí, portanto,
dois mundos em confronto: o mundo apresentado, objetivo, que se compõe de mercadorias e
ilusões, e o mundo de finalidade humana, prometeico, unido no materialismo dialético e na
consciência da necessidade de ação. São argumentos que se moldam na necessidade de
manter a consciência permanentemente desperta como sendo o sujeito latente do mundo.
Cabe à filosofia a mediação entre os mundos em choque, contribuindo para que prevaleçam
os atributos mais elevados do homem.
3.3 MONTANHAS DO FUTURO, A FILOSOFIA NA LINHA DE FRENTE
O que é valioso quer ser consumido e só o melhor abafa inteiramente a
fome. Porém, para se chegar a esse melhor, o exterior auxilia e coopera,
proporcionando-lhe a imagem, tanto a fluída quanto a concreta.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 420)
Há exigência, pois, de camadas de transição da filosofia para que o alvo do sonho
acordado se alargue e que a fênix deixe de ser o renascimento do mesmo. A descoberta dos
atributos mais elevados do homem, que Bloch associa à psicanálise, é assim, parte de um
quebra-cabeça muito maior. Em Bloch (2006b) é preciso, que além da teoria marxista da
mudança, exista a ação de um princípio interno que permita a distinção entre o que é falso e o
que é verdadeiro.
Nas palavras de Kierkegaard, Bloch (2006b, p. 421) encontra uma forma de explicar
esse conceito: é algo compreendido pela metade, a maneira ―da semi-transparência da névoa
noturna‖, mas que precisa ser algo em que o supérfluo se esvai e que se encaminha para o
encontro consigo mesmo, o ―entender-a-si-mesmo-em existência‖. Não mais como o mundo
161
interior, mas como também o mundo exterior, sem hostilidade, sem que seja inóspito e não
passível de mediação.
Assim como em Kierkegaard, Bloch (2006b, p. 423) lembra que o retorno à ―Ítaca
real‖ designa ―o ponto fixo‖, o alvo, em meio ao flutuante, a incompletude da vida, e não se
perde de vista o ideal de plenitude. Outro conceito do encontro do mundo interior e exterior
são as descrições contidas em Goethe, Schelling e Hegel da maneira como a filosofia da
natureza se espalha pelo homem e é impelida para uma galeria de valores ocultos (BLOCH,
2006b, p. 427-8). Esses pensadores simbolizam a lucidez e o entusiasmo, assim como a
unidade do sonho para diante, sonho que para Bloch (2006b, p. 451) pode representar o
despertar da ―consciência revolucionária‖, o ―embarcar no carro da história, sem que o lado
bom do sonhar necessite ser deixado para trás‖.
Para que a filosofia acompanhe o carro da história, se faz necessário, segundo Bloch
(2005; 2006b), não renunciar à contemporaneidade e realizar as transições necessárias. A
primeira transição é a rejeição da ilusão de classes, da ideologia de classes, da má consciência
burguesa e de uma cultura em que o homem é relegado à posição decorativa. A manifestação,
nesse rumo, é o sair de si do homem das relações de dominação para estar-presente na
eternidade das boas relações sociais.
A segunda transição encontra-se na ruptura da noção de provisoriedade do momento.
É o arrancar a utopia do ―leito pútrido‖ da simples contemplação para galgar os cumes
―ideologicamente desimpedidos do conteúdo da esperança humana‖ (BLOCH, 2005, p. 157).
A partir daí, o ideal passaria a ser o futuro não realizado, a grandeza humana voltada para a
categoria da finalidade, com um tipo de subjetividade nova, seria incentivada pelas
necessidades e pelo trabalho humano.
O tema fundamental da filosofia, de uma filosofia que permanece e é
enquanto vem a ser, ainda não alcançado, é a pátria que ainda não veio a ser,
ainda não alcançada, assim como ela está se formando, construindo-se na
luta dialética-materialista do novo com o velho (BLOCH, 2005, p. 20).
E há ainda uma terceira transição. Ao voltar sua filosofia para o futuro, Bloch não está
fugindo do presente. É justamente o inverso: os obstáculos do presente devem ser vistos como
alavancas para a consciência dos dramas que o mundo impõe ao homem. Os fatores objetivos,
como lembra Bloch (2005, p. 147), não são suficientes para isso: são parte da tomada de
consciência, mas tendem a elevar a subjetividade, exigindo, assim, o sonho ativo a influenciar
162
a utopia. Assim, o socialismo não mais faria como a fênix e absorveria o novo, examinando a
possibilidade da mudança de tudo.
Acrescente-se o espírito romântico revolucionário do otimismo: a dialética é um
método imanente à realidade, parte da teoria do conhecimento, não um recurso que elimine o
princípio do entusiasmo e da idealização da razão. Assim, o desejo de mudança precisa ser
sempre o desejo de mudança e voltar-se para o romantismo pode significar melhor
compreensão do conceito de cultura – religião, política e história, morte, sonho e amor – a sua
associação à produção. Bloch (2005) procura repensar a unidade da vida e da história a
procura de uma nova síntese da filosofia com a psicanálise. Um amalgama que não pode
prescindir do ser humano ―livre, inquisidor, incondicional‖ caracterizado pelo prostestantismo
de Lutero e pelo burguesia antiutópica, que encontra em Fausto o momento inaugural de outro
ponto de vista (BLOCH, 2006b, p. 95). Como em Pandora, Goethe move-se para a poesia do
ainda-não-existente, mas que pode existir.
Tomadas em conjunto, essas percepções podem explicar por que ninguém é
assassinado, preso ou torturado por ser hegeliano, platônico, aristotélico, existencialista ou
filiado a qualquer outra escola filosófica, mas é perseguido e sofre todas as penalidades da
sociedade burguesa, inclusive prisão, tortura e morte, se for marxista. Voltar-se para Marx é
voltar-se para a recriação do mundo. Por não se tratar apenas de construir uma filosofia da
história, mas de torná-la aberta e construí-la.
Como a explicação do mundo está no mundo, o olhar para a frente torna-se o veio
dinâmico da consciência. Ele mantém os limites entre o passado e o futuro ao mencionar o
velho e o novo, fundados na antecipação. Não se trata de impaciência, mas das relações entre
o tempo e a alma rebelde do homem, a relação entre o tempo e o que se denomina de
consciência. O fenômeno do que existe e do que pode vir a ser liberta o homem da ilusão
subjetiva, torna realidade o amanhecer da utopia.
A explicação de Bloch é expressa em poucas palavras: a filosofia precisa estar na linha
de frente e tornar consciente o que ainda-não-é-consciente. A expressão ainda-não-consciente
é empregada no sentido de que o homem precisa olhar profundamente para si mesmo e que
esse é um papel da filosofia, retomando o fio tecido por Leibniz e suas ―petites perceptions” e
o encontro com si próprio desejado por Bloch (2005, p. 127) em The Spirit of Utopia (Geist
der Utopie). Seria, a continuidade do espírito presente na boa consciência utópica e a ruptura
com os arquétipos da rememoração, a anamnesis ou regressão.
163
As águas do esquecimento correm no mundo inferior, mas a fonte Castália
da produtividade brota no Parnaso, que é uma montanha. Assim, a
produtividade, embora venha das profundezas, só começa a trabalhar à luz e
estabelece constantemente a uma origem nova, ou seja, no ponto mais alto
da consciência. Saber esse ponto elevado se entende o azul, a cor oposta à do
orco98
escuro e ainda assim transparente que envolve toda a verdadeira
explicação. Esse azul, como a cor que está distante, deságua de modo
igualmente ilustrativo e simbólico no teor futuro, o ainda-não-sendo na
realidade, ao qual se referem, em ultima instância, os enunciados
significativos e antecipadores. Uma obscuridade para a frente, que vai se
tornando clara enquanto se anuncia que também está associada àquela
consciência mais esclarecida, na qual o dia não renunciou ao alvorecer, mas
se constrói justamente a partir dele (BLOCH, 2005, p. 127).
Montanhas, segundo Bloch (BLOCH, 2006b, p. 378), refletem, como o sol, que Dante
equipara às virtudes da sabedoria, os sonhos de elevação. Como em Pandora e no Fausto de
Goethe, o desafio é transgredir os limites, vislumbrar as ―montanhas no futuro e todas as
montanhas sempre combinam bem com a luz matinal, com o novo dia‖ (BLOCH, 2006a, p.
82-3). As ―montanhas do futuro‖ não mudam se o itinerário for descendente ou ascendente,
mas encontrá-las, presenciá-las no clarear do dia, exige esforço, exige descobrir a força da
vida.
Sua linhagem é lendária e, no paraíso de Dante, simbolicamente, a cognição encontra-
se na parte mais alta, justamente porque se trata de uma prática mais complexa que a visão.
Mas em Doutor Fausto a conexão terrena é mais vigorosa. Nas palavras de Bloch (2006a, p.
375), ―uma catedral de montanhas elevando-se de abismos extáticos até o éter, esta a visão de
Goethe, e precisamente como cordilheira que se estende consecutivamente, com sempre
novas esferas nas alturas‖. No simbolismo das imagens, se separam épocas: a feudal em
Dante, a protestante-capitalista em Goethe. Nas montanhas de Fausto, uma atrás da outra,
como se desejassem tocar o azul do céu, o mistério, para Bloch (2006b, p. 379) encontram-se
―a solução existente, já a solução é o mistério remanescente‖ – a vontade utópica?
As cordilheiras faustianas, contêm o ―azul mais profundo da consciência utópica‖,
centrífuga, que dissolve a sociedade burguesa nas suas contradições (BLOCH, 2006a, p. 378).
São o azul de um dia que ainda não chegou, mas não deixam de ser montanhas-cordilheiras de
azul terreno, visíveis a olho nu, de efeito dominante. Fazem parte do reino inteligível.
A filosofia, para Bloch, com Marx e os desafios do desertar do ainda-não-consciente,
necessita escalar o Parnaso e beber da fonte Castália de onde brotam os impulsos,
suficientemente fortes, do novum para que se tornarem conscientes. A intenção é que a
98
Na mitologia romana, o Orco é o espírito da morte, o deus do submundo, aquele que punia quem não
respeitava os juramentos.
164
filosofia desperte para o ser humano particular e o situe como universal. O alvo não é o tempo
circular, mas as cordilheiras com montanhas atrás de montanhas, o humano-transcendente.
3.4 UM OLHAR AGUÇADO SOBRE O INCONSCIENTE
[...] os sonhos não são bolhas de sabão.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 80)
Bloch não poderia ser mais claro: o ainda-não-consciente -, não pré-consciente como o
inconsciente reprimido ou esquecido, mas exatamente por isso - se abre como campo novo de
investigação. Bloch (2005, p. 80) chama a atenção: os sonhos não são a eliminação dos
estímulos psíquicos perturbadores do sono pela via da satisfação alucinatória, como ensinou
Freud, nem são ―bolhas de sabão‖ ou ―oráculos proféticos‖. Ficam no meio termo entre a
―realização alucinatória dos desejos‖ e a ―realização de fantasias inconscientes‖, mas a
finalidade maior dos sonhos é a vida melhor, o que não exclui os sonhos noturnos, parte do
―gigantesco campo da consciência utópica (BLOCH, 2005, p. 80-1).
Por isso é consequente que, antes de um arquiteto – em todas as áreas da
vida – conhecer seu plano, ele tenha elaborado esse plano, que ele tenha
percebido a realização desse plano como um sonho brilhante, que
impulsiona decisivamente para a frente. Isto, em termos ideais, é tanto mais
necessário, mais ousado, sobretudo quanto mais impraticável for no
momento o plano para o qual o ser humano, diferentemente da aranha ou da
abelha, dirige seu olhar, antevendo-o. E exatamente nesse ponto se forma
aquilo que aviva o aspecto desejante nos afetos expectantes que sempre que
sempre se originam da fome, desejante esse que ocasionalmente distraí e
amolece, mas ocasionalmente também ativa e se estende até ao alvo de uma
vida melhor: formam-se sonhos diurnos (BLOCH, 2005, p. 78-9).
Bloch parte da ideia de que ―o desejo de ver as coisas melhorarem não adormece‖,
sofre privações e não desiste, ―não submerge na névoa‖ (BLOCH, 2005, p. 79-80). Entende
que o sonho noturno transforma ideais desejantes em alucinações porque o sonhador adulto se
encontra enfraquecido, praticamente todos os sonhos são, por isso, ―desfigurados‖,
―mascarados‖ e se mostram ―simbolicamente disfarçados‖. Acrescenta: ―Apenas os sonhos da
criança estão livres da desfiguração onírica, já que a criança não conhece qualquer eu
censurador‖ (BLOCH, 2005, p. 81).
165
Na filosofia Ocidental, a frase de Sócrates ―Conhece-te a ti mesmo‖, gravada no
frontispício do oráculo de Delfos, na Antiguidade, foi a porta de entrada para o conceito de
inconsciente que seria tema comum na filosofia como referência ao conhecimento e à
sabedoria. Às vezes, como indicativo da separação entre corpo e espírito e da consciência
seletiva (Descartes), outras vezes como indicativo das percepções refletidas, das quais
teríamos consciência, e das pequenas percepções, das quais não temos consciência (Leibniz).
Sendo o pensamento de Sócrates (e, consequentemente, o platonismo), fundamental na
discussão do inconsciente, o primeiro desdobramento do novo conceito se dá com as noções
de bem e de verdade, além das postulações de formas transcendentes e racionais como critério
da ordem no mundo. Foi um momento em que as antigas cidades gregas se viam ameaçadas
pela desordem e o caos e que preparou o terreno para que o conhecimento se tornasse
essencial no Renascimento. Germinaria, posteriormente, com o idealismo racionalista de
Hegel e nos princípios metafísicos morais de Schopenhauer, Nietzsche e Freud.
Schelling, um dos filósofos que mais influenciaram Bloch, entende que há uma
unidade entre inconsciente e consciente, entre o homem e a natureza, e que ―toda criação
consciente pressupõe uma criação inconsciente‖, dai considerar o homem portador de forças
―cegas‖, comumente relativas à nostalgia de uma vontade imemorial (SCHELLING, 2015, p.
207). Mas foi o mesmo Schelling que deu origem a um sistema elaborado de dialética e uniu
―liberdade e necessidade‖ à ―heteronomia e a identidade‖, advogando que a liberdade ao
alcançar uma posição central possibilita ―o surgimento de uma nova sìntese, e a estabilização
de novas formas de existência‖ (FFYTCHE, 2014, p. 110-1). Com isso, condenou o princípio
do predomínio da razão: os seres se unificam não em cadeia, mas pelos modos de existência e
não há, portanto, uma concatenação mecânica de causa e efeito. Há, sim, ambiguidades e
liberdade.
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche (2014) critica a valorização excessiva da
razão como forma de expansão do conhecimento e, voltando-se para o paradigma socrático,
defende que o homem seja menos apolíneo e mais dionisíaco. Bloch (2005) herdou de
Schelling e de Nietzsche a percepção de que o homem não é constituído apenas do "efeito
supremo da civilização apolínea". Ele é modelado pelas duas forças antagônicas e necessita
promover essa reencontro desde a ascensão do capitalismo monopolista quando o homem se
viu cercado pelo ―mundo da mercadoria e sua ideologia‖ (BLOCH, 2005, p. 56). Schelling, na
interpretação de Matt Ffytche (2014, p. 200-3), considera o homem como um ―estranho‖
porque não se permite reconhecer tudo que permanece ―secreto, oculto, latente‖, mas que vem
166
à tona. A rejeição dessa parte envolve um ―princìpio de cegueira‖ quanto à sua própria base, o
que Freud descobriu e introduziu na ciência da psicanálise.
Essa faceta, que retrocede às primeiras ideias da filosofia da natureza de Schelling
(2015), no entendimento de Ffytche (2014, p. 201-2), é coerente como o significado de uma
vida mais ampla e com os conceitos de ―mudança‖ e ―autocriação‖ que ―subvertem a filosofia
do mecanicismo‖. Contribuem para conciliar a liberdade individual e o universal,
subordinando os ideais à natureza e à história, o que Schelling em Les Âges du Monde situa
como eras ―perdidas ou reprimidas‖, mas que podem representar ―o combustìvel da alma‖ e
revelar ―totalidades mais amplas‖ e ―interioridades profundas‖? (FFYTCHE, 2014, p. 204-7).
Talvez, essa repressão marque o princípio do conflito do homem trágico e permita
uma melhor compreensão das relações que Bloch estabelece entre o inconsciente, o ainda-
não-consciente, as pulsões e as épocas. Bloch não luta contra a tragédia, luta contra o
niilismo: contra o pessimismo niilista que prega o ―desespero‖, que ―desiste de tudo‖ em
lugar de despertar para o esgotamento da sociedade de classes (BLOCH, 2006b, p. 450).
O trágico Bloch procura renovar. A tragédia encontra-se na visão não dialética da
vida. O homem não apenas prática o mal, mas prática o mal e o bem. Não é apenas Apolo ou
Dioniso, é Dioniso-Apolo. Não é apenas ambiguidade, mas também finalidade. Não é apenas
desumanidade e inconsciência, mas humanidade e consciência. Não é apenas o ―eu‖, mas é
também o ―nós‖. Não é só o romantismo abstrato, mas é também otimismo militante.
Tudo isso, encontra-se nos capítulos finais de suas obras cardeais The Siprit of Utopia
(Geist der Utopie) e O Princípio Esperança (Das Prinzip Hoffnung), ambos dedicados a
discutir as ideias de Karl Marx. Por que no final do volume III de O Princípio Esperança
Bloch (2006b) atribui ao marxismo predicados como a ―lucidez autêntica‖, tão diferente do
―senso comum‖, ―tipicamente não dialético, tão marcado por ―preconceitos pequenos
burgueses‖? Por que Bloch (2006b) atribui tamanho significado ao entusiasmo e enfatiza que
o marxismo não trata a ação como uma fantasia e não se volta apenas para ―coisas absolutas‖
como se o ―romantismo revolucionário fosse o mesmo que quixotismo‖? Por quê Bloch
assinala que o direito jamais poderá estar acima da estruturação econômica da sociedade e do
desenvolvimento cultural por ela condicionado?
167
Numa fase mais adiantada da sociedade comunista, depois que tiver
desaparecido a subordinação servil do indivíduo à divisão do trabalho, e com
isso também à contraposição de trabalho corporal e mental, depois que o
trabalho tiver deixado de ser apenas meio de vida e tiver se tornando, ele
mesmo, a primeira necessidade vital; depois que o desenvolvimento do
indivíduo em todos os seus aspectos tiver levado ao crescimento das forças
produtivas e todas as fontes de riqueza cooperativa fluírem mais
profusamente – somente então o horizonte estreito do direito burguês poderá
ser totalmente ultrapassado e a sociedade poderá escrever em suas bandeiras:
cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades
(BLOCH, 2006b, p. 455-6).
Reflexões como essas podem ser encontradas, de maneira indireta, ao longo do último
capítulo da trilogia O Princípio Esperança. Pensamentos de Marx são intercalados com
interpretações de Bloch que não se restringem a criticar a incompatibilidade entre as forças
produtivas, que há muito se tornaram forças sociais, e a apropriação capitalista, o que
representa uma ―contradição básica‖ da sociedade capitalista desenvolvida. Ele define o
marxismo como o ―mais frio dos detetives em todas as suas análises‖, mas que ainda assim
considera na prática o ―sonho da Idade de Ouro‖ (BLOCH, 2006b, p. 456).
O novum, a Idade de Ouro, só se concretizaria na argumentação de Bloch, quando a
filosofia descobrir que já transcendeu, com Marx, os ―idealismos metafìsicos‖, as ―regiões
remotas dos céus‖, as ―hipóstases fáticas de pura invisibilidade mitológica‖ e se ―comprova
como expedição com e no processo profundamente ramificado e inconcluso, como coragem
para aquela não-asseguração que posta a esperança exatamente na linha de frente‖ (BLOCH,
2006b, p. 450-60). Bloch desenvolvia a ideia de que o mundo estava inconcluso não como
destino, mas por processo em andamento e que poderia ser acabado.
O propriamente dito ou a essência não é algo já existente em sua forma
acabada, como água, ar, fogo ou até mesmo como ideia universal invisível
ou como quer que se chamem esses elementos fixos e reais absolutizados ou
hipostasiados. O propriamente-dito ou essência é aquilo que ainda não
existe, que anda em busca de si mesmo no cerne das coisas, que espera sua
gênese na tendência-latência do processo; ele próprio nada mais é que
esperança fundada real-objetiva. E, em última análise, o seu nome tangencia
o ―sendo-em-possibilidade‖ do sistema aristotélico e do sentido que vai
muito além de Aristóteles, logo, o elemento aparentemente mais predefinido
que existe; a matéria (BLOCH, 2006b, p. 460).
Não há nesse salto dialético para dentro do novum nenhuma concepção teleológica
antiga, prossegue Bloch (2006b), nada que lembre a ―Providência‖ divina, nem o caráter
contemplativo da maioria das filosofias pré-marxistas. Se pairava alguma dúvida quanto à não
secularização do processo revolucionário do sonho para diante, Bloch (1975) se encarrega de
168
dissipá-las em Experimentum Mundi. Não apenas reviu as categorias aristotélicas e kantianas,
clássicas, como o espírito utópico da práxis humanistica-revolucionaria condensadas na visão
do processo humano, mantendo-se irredutível ao conceber no niilismo a grande ameaça à
sociedade.
Nesse atualizar dos pilares do seu sistema filosófico aberto, Bloch mantém a
perspectiva marxista de que o tempo é o espaço da história e, assim, vincula a concretização
da perspectiva socialista à naturalização do homem e humanização da natureza. O homem e
tão somente o homem, de acordo com Bloch, tem o poder de ser o sujeito da sua emancipação
e liberdade em relação ao sistema produtivo. No final, sublinha, a humanidade tende a tornar,
como palavra de ordem, o ainda-não-consciente socialista em consciente, o que conduziria o
homem à coincidência do sujeito-objeto das suas aspirações a uma vida melhor.
3.5 DA TRAGÉDIA AO INTERESSE HUMANO, A FAMILIARIDADE COM O
REAL E O PENSAR LIVREMENTE
Os sonhos de um mundo melhor como um todo buscam a exterioridade de
sua interioridade.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 93)
Entre os gregos, a tragédia era o nome para a coexistência entre o destino, a
necessidade e a natureza dos deuses. Segundo Williams (1974), não se referia à morte ou
acidente, mas ao entendimento entre as contradições e a dignidade humana. Envolvia a
mudança da sorte, mas da sorte do herói e, sim, demarcava os limites da ação e reação da
experiência dos homens. No Renascimento, irá significar a queda do homem poderoso, mas
no decorrer da história a tragédia encontraria o seu sentido na discussão da dignidade humana.
Dignidade que revela a visão profunda do mundo, pela transitoriedade e inconsistência
do homem, que Nietzsche (2014) comparava às ―folhas‖. Contém as dimensões trágicas do
mundo, com a nostalgia dos seus titãs, heróis, ingenuidades, ilusões e o "embevecimento do
estado dionisíaco" que aniquila fronteiras e impossibilidades (NIETZSCHE, 2014, p. 24).
Dioniso, na sua tragédia, aparece como pluralidade de máscaras, inclusive com a máscara de
Prometeu, e se assemelha ao indivíduo que erra, sofre, se esforça.
169
Em Nietzsche (2014) o homem trágico é o oposto da racionalidade socrática, encontra
a sua continuidade em Goethe, Schopenhauer e Wagner com a ideia de renascimento do
homem trágico grego, tendo como chave mágica a linguagem universal da música – Bach,
Beethoven e Wagner – e o espírito da cultura alemã. Em Bloch (2005), o homem trágico é
aquele que não se adapta à racionalidade capitalista ou aquele que sonha em se adaptar ao
capitalismo, mas que se choca com a estrutura da produção e da mais-valia. O homem trágico
seria, por analogia, o homem prometeico.
A base da ambiguidade é o conflito do homem com seus instintos. Embora ambicione
destruir Dioniso, o homem não deveria render-se à aceitação incondicional da vida e, sim,
valorizar o conflito que a ela é inerente em virtude do inconsciente e das pulsões. Se houvesse
um retorno ao pensamento grego antigo, o homem descobriria que o inconsciente e as
pulsões, na desmesura e impetuosidade, estavam integradas às forças vitais, não sendo
excludentes (NIETZSCHE, 1992, p. 38).
Concentrar-se exclusivamente na beleza apolínea, seria como se o homem esquecesse
Prometeu e a sua tragédia. Como se abdicasse da rebeldia. Nietzsche inaugurou uma nova
fase de conhecimento do inconsciente e das pulsões. Com Freud e a psicanálise, o conceito de
inconsciente ganhou fundamentação científica, não com base na razão e no consciente, mas a
partir do inconsciente e das pulsões. Se tornaram o lugar de onde as forças obscuras
governariam o homem, são recalcadas e alienam a consciência. Com Bloch (2005), o
inconsciente cedeu lugar ao ainda-não-consciente, do que jamais foi visto.
A exemplo do que aconteceu com o Prometeu de Goethe (2012b), o inconsciente e as
pulsões deixaram de ser um mal para serem a expressão das ambiguidades humanas. E fonte
de aliança da filosofia com a ciência. As tentativas de seguir as pegadas do inconsciente
compõem um panorama multifacetado, mas que se encontrariam na essência do pensamento
latente (gewisse Gedanken). Freud analisaria o inconsciente em duas dimensões: aquele que
forma um conjunto de pulsões e que são recalcadas para não ascender à consciência e aquelas
que estão alojadas na pré-consciência e se tornam conscientes. Ambas fazem parte da
realidade (JOUSSET, 2007, p. 110). Bloch, analisaria o ainda-não-consciente na perspectiva
do sonho acordado.
Escreveu Freud (1973, p. 2061), em Lo Inconsciente: ―A psicanálise nos tem revelado
que a essência do processo de repressão não consiste em suprimir e destruir uma ideia que
representa o instinto, senão em impedi-la de tornar-se consciente‖. Mas, prossegue Freud
(1973, p. 2061), o inconsciente tem um ―alcance mais amplo‖ e só é conhecido quando se
torna consciente. Nesta ambiguidade, está contida uma questão relevante: teria o homem
170
condições de conhecer e mudar a si mesmo de acordo com o que ensina o paradigma socrático
– ―Conhece-te a ti mesmo‖?
Bloch (2005) não se esquiva das dúvidas, mas prefere realçar as possibilidades. Pensa
o inconsciente não só no sentido do que pensou a filosofia anterior a Marx e a psicanálise de
Freud, mas no horizonte de que o homem não está consciente (dasUnbewusstein) de que a
vida melhor encontra-se no socialismo, não no capitalismo. Encontra no aflorar da
consciência (Bewusstsein) revolucionária a superação de um romantismo inconsciente, já
presente no Renascimento com Paracelso, mas que traz em si a objetividade e subjetividade
do sonho acordado, a unificação da vitalidade com a vontade do novum.
A vida futura seria superior à consciência da vida atual. O que significaria, para
alcançá-la, pensar para além dos fatores objetivos das contradições da realidade, em
permanente conflito com os fatores subjetivos. Segundo Bloch, a união Dioniso-Apolo em
lugar de domesticar o homem e fazê-lo refém da moral da sociedade de classes, contribuirá,
como imaginou Nietzsche, para iluminá-lo e libertá-lo. Fazê-lo pensar na oposição entre o
coletivo e o altruísmo, entre a ilusão e o belo, pensar no ideal de amizade sem nenhuma
filantropia (BLOCH, 1975, p. 191-3).
O que significaria pensar para além dos fatores objetivos das contradições da
realidade, em permanente conflito com os fatores subjetivos. Não basta que estejam em
constante diálogo. É preciso que ambos sejam indivisíveis e inseparáveis. E que o ainda-não-
consciente tenha o olhar voltado para o que são concepções imanentes da classe dominante de
cada época e o que é transformação revolucionária.
A dificuldade é explicar por que o ainda-não-consciente passou ―tanto tempo
desapercebido‖ e continua a permanecer na ―obscuridade‖ (BLOCH, 2005, p. 132). Nem
mesmo as antecipações utópicas de More e Bacon e, posteriormente, as utopias sociais ou as
utopias do mundo dominado pela técnica desenvolveram uma epistemologia que rompesse
com o imobilismo do futuro. Olhava-se para a frente, como na Nova Atlântida de Bacon, nos
camponeses que seguiram Münzer e nas massas que se rebelaram na Revolução Francesa,
mas era mais uma percepção da realidade objetiva das épocas. A função utópica carecia de
conteúdo e de ―sujeito sólido‖ (BLOCH, 2005, p. 144). Não havia uma visão teleológica do
futuro.
O girar em círculos e a rememoração se repetiram com a Revolução Francesa que
ficou incompleta e se distanciou do trabalhador. A decadência da burguesia, somada ao
Romantismo de feição reacionária, prisioneiro do atavismo místico, selaram o processo. Mais
tarde, o ego transcendental do idealismo alemão pregou a virtude do orgulho baseada na
171
razão. Com Kant e Fichte, colheu postulados éticos de ―um mundo da espontaneidade da
vontade que não naufragou na experiência mecanicista do já existente‖ (BLOCH, 2005, p.
147). E houve a concepção do ―elã vital‖ de Bergson, que pregava a imutabilidade incessante
do novo, mas numa visão geral, o ainda-não-existente passou desapercebido ante o que já
existia e, assim, permanece (BLOCH, 2005, p. 140). Nada se rompeu com a barreira na
evocação do passado, mas o olhar para o futuro persistiu.
Esses estágios são fundamentais para que a consciência da utopia concreta encontre a
sua totalidade. Mas isso requer a ruptura com o pensamento puramente mecanicista – o
homem que sonha acordado com o futuro, mas que não se desprende da realidade presente
(BLOCH, 2005, p. 181-4). O homem que chega a um novo conceito de realidade, não cede ao
―otimismo automático‖ e ―falso‖, não recusa a ―frieza crìtica‖, que é a personificação do
―otimismo militante‖, que procura a ação concretamente mediada pelo econômico-material e
pelo sonho revolucionário (BLOCH, 2005, p. 197). É o homem da primeira Tese de Marx
sobre Feuerbach que não se isola da realidade e participa da transformação do mundo. Ele é a
expressão dialética das categorias blochianas do front, do novum e do ultimum.
A questão é saber como encontrar a fusão do que o pensamento clássico contém de
olhar para o futuro com a construção do mundo em Marx e iluminar o que transcende à visão
de superfície. E separar o que, na formação ideológica das sociedades, existe de
superestrutura intelectual preparatória para o futuro em contraposição à superestrutura
decadente ou apodrecida, com a má consciência preponderando sobre a boa fé.
Um olhar aguçado não se faz comprovar apenas pelo fato de discernir, mas
também por seu jeito de não ver tudo tão claro como água. E isso justamente
pelo fato de nem tudo estar tão claramente pronto e, às vezes, estar
ocorrendo em fermenta, um formar-se ao qual exatamente o olhar aguçado
faz jus. Esse aspecto inacabado aparece de modo mais amplo, embaralhado
na ideologia, na medida em que ela não se esgota na relação com o seu
tempo, o qual acompanhou todas as culturas precedentes. Com certeza, a
própria ideologia se origina da divisão do trabalho e da divisão, ocorrida
após as primeiras comunas, entre o trabalho material e intelectual. Só a partir
disso, um grupo suficientemente ocioso para criar representações pôde iludir
a si e principalmente a outros por meio delas. Portanto, já que desde a sua
origem as ideologias são da classe dominante, elas justificam a condição
social existente, negando a sua raiz econômica, ocultando a exploração
(BLOCH, 2005, p. 152).
Por mais que existam diferenças entre Platão, Aristóteles, Hegel e Freud, do ponto de
vista filosófico, todos contêm porções de olhar para a frente, de discernimento daquilo que é
interesse da classe dominante, daquilo que é interesse humano. ―Não existe e nunca existiu
172
pensamento originado em si mesmo. O pensamento começou com o propósito de reconhecer
uma situação para se familiarizar com ela‖ (BLOCH, 2006a, p. 390). Em Freud, por exemplo,
Bloch encontra advertências quanto às tendências para os prazeres negativos, ou seja, o
impulso negativo, de destruição e agressão, que é libidinal, e deve ser evitado. Não constrói.
Mas, o que interessa a Bloch é a negação da vida imperfeita.
A familiaridade com o real encontra-se na possibilidade, segundo Bloch (2005), de
pensar livremente, como faziam os gregos e, assim, penetrar no país dos sonhos, nos
labirintos da vida, procurando, como disse Empédocles, reconhecer seu semelhante em cada
semelhante, de maneira a conhecer o mundo e transformá-lo. O enigma da consciência e seus
desdobramentos futuros, para Bloch (2005), começam a desvendar-se a partir do conceito
aristotélico da pulsão (hormê) da matéria e sua forma, acoplado com o correlato compromisso
do homem com a vida feliz e com a valoração da sua máxima potencialidade. Não teria força
de lei, mas da interiorização de um conjunto mínimo de atitudes que permitiria ao homem
conciliar a vida em sociedade com a vida em comunidade e individual (KEHL, 1992, p. 261-
2).
É por isso que Bloch (2006a) resgata Platão, no Filebo, diálogo em que trata da
dialética e da ontologia, quando esse considera o bem como ―o que é desejável para todos e
(concretamente) perfeito em si‖ (BLOCH, 2006a, p. 399). Conceito que Bloch considera em
consonância com Aristóteles, Leibniz e Hegel e que permite o conhecimento ―muito além de
Demócrito e do democratismo‖, quer dizer, olhar simultaneamente para a matéria e para fora,
pela infinitude da matéria sob a forma do ser humano e da natureza, como pulsão e
movimento vital (BLOCH, 2006a, p. 340).
São elementos clássicos que unem e inspiram o romantismo revolucionário em
diferentes épocas e que delimitam o sentido da boa consciência do proletariado, pelo aspecto
antecipador, e o significado da ideologia da má consciência, sem função utópica. A definição
blochiana de romantismo revolucionário se desenvolve em torno do entusiasmo. O espelho
em que o termo se olhou na Idade Média, época de forte hierarquia social, era feito, segundo
André Stanguennec (2013, p. 9-10), da matéria prima do romance, que no século XVIII cedeu
lugar ao adjetivo ―romanesco‖, ―romântico‖.
Foi utilizado, no início, para definir jardins ricamente elaborados; depois tornou-se a
exaltação de qualidades poéticas e, a seguir, se associou à filosofia e movimentos políticos.
Teoricamente, no entender de Stanguennec (2013) não existe uma movimento romântico, mas
vários: o romantismo inglês, francês, italiano e alemão. Bloch se fixa nesse último, mas sob a
ótica da genealogia de uma filosofia idealista, que se propaga com o romance de educação
173
Wilhelm Meister de Goethe. E o propósito de compreensão da crise alemã e a vontade de
reconstituir a linguagem mítica e poética para o entendimento do tempo atual. Ou, naquilo em
que a filosofia alemã procura ultrapassar o que é religioso ou idealista especulativo.
A partir dessas considerações, Bloch demonstra que as grandes obras da cultura têm
―pano de fundo utópico‖, ainda que nem sempre explìcito como no Fausto de Goethe ou na
obra de Marx, e nem estabeleçam a harmonia revolucionária entre a cultura humana e o ainda-
não-consciente (BLOCH, 2005, p. 154-5). Mas não é tudo: o retorno a Marx nos últimos
capítulos das obras cardeais de Bloch – Geist der Utopie, Das Prinzip Hoffnung, além de
Experimentum Mundi – significa que a vida é problemática, mas a mudança para a vida
melhor é possível e se encontra em processo.
3.6 PULSÕES, O CONFLITO ENTRE O HOMEM BURGUÊS E O HOMEM
HISTÓRICO
Quem nos impulsiona? Nós nos movemos, somos ardentes e incisivos. O que
vive é estimulado – em primeiro lugar por si mesmo.
Ernst Bloch, O princípio Esperança (2005, p. 48)
Pelas pulsões,99
o ainda-não-consciente ganha dinâmica nos escritos de Bloch e inicia
a sua articulação com os desejos (assim poderia ser, mas de modo passivo, parecido com o
ansiar), o querer (o desejar somado a uma escolha, um alvo a alcançar), a vontade (como
gênese do ainda-não-consciente) e os sonhos acordados (o desejo de ver as coisas mudarem,
que não adormecem). Um dos seus pressupostos é que o controle das pulsões corresponde ao
momento de expansão do pensamento consciente e que, nele, contracena o sentido de
realidade interior e exterior. Para aproximar-se do mecanismo das pulsões, tema tão vasto
99
O uso do termo pulsão surgiu em 1625 na França, derivado do latim pulsio, como sinônimo do ato de
impulsionar. A palavra usada por Freud, em alemão, é Trieb e aparece pela primeira vez no Projeto para uma
Teoria Científica, de 1895, e, posteriormente nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sensualidade em 1905. O
conceito freudiano de pulsão está acondicionado em duas vertentes: as pulsões de conservação do eu e as
pulsões sexuais. A partir de 1920, com Além do Princípio do Prazer, Freud introduz os conceitos de pulsão
de vida e pulsão de morte, o que não significou o abandono dos conceitos anteriores, mas um desdobramento
dos mesmos. Fazem parte do universo das pulsões, a pulsão sádica e de domínio. Freud não confunde pulsão
com instinto (Instinkt). A confusão não se deve a Freud, mas a James Strachey, que traduziu o termo Trieb
como instinto cujo significado corrente é mais próximo de impulso do que de instinto (GARCIA-ROSA,
1985, p. 114).
174
quanto o ser humano, Bloch cita o estado de urgência que acompanha o homem desde o
nascimento:
Ninguém escolheu para si esse estado de urgência: ele está conosco desde
que existimos e pelo fato de existirmos. No nosso ser imediato, tudo se dá de
modo vazio e por ávido, almejante e por isso inquieto. Mas nada disso se
sente. Primeiro, é preciso que isso saia de si mesmo. Então é percebido como
uma urgência muito vaga e indefinida. Nenhum vivente se livra do quê dessa
urgência, por mais que esse quê tenha lhe cansado. Essa sede se manifesta
constantemente e não se identifica (BLOCH, 2005, p. 49).
A urgência é interior, mas ela ganha o exterior e pode ser uma avidez qualquer, voltar-
se para um alvo meramente individual – o pão, o desejo sexual, o poder, a servidão, a idolatria
–, como pode direcionar-se para um alvo, um desejo maior, a exemplo de um avançar ativo,
um desejar possível, com rumo definido, a posse de si mesmo.
Em Traces, Bloch recorre a dois exemplos ilustrativos. Um menciona a pobreza: uma
mulher que economiza luz, porque é mais fácil do que economizar comida, mas, seja o que
for que economize, o seu propósito é estar a serviço do seu senhor, mesmo na solidão da sua
privação (BLOCH, 1968, p. 15). O outro trata da filosofia: não é papel da filosofia fazer o
lobo sair da floresta, mas não se poderá fazer o lobo sair da floresta sem a filosofia. Não se
pode transformar o mundo sem o pensamento. Não se deve agir sem pensar. O pensamento é
que abre as janelas do mundo, é que deixa o mundo mais claro (BLOCH, 1968, p. 175).
Esses exemplos servem para mostrar que Bloch não trata de uma realidade estática,
tragada pela alienação de um certo tipo de vida, mas de realidade dinâmica, que, como
pensamento concreto, ―entrega-se à correnteza, não ao repouso‖, e isso de uma forma não
alienante (BLOCH, 2006a, p. 405). Ele aborda o ainda-não-consciente com o sol humano, o
símbolo da luz e, é possível, da busca dessa mesma luz. O pobre, se vier a pensar
dinamicamente na perspectiva da luz da rebeldia, reuniria forças para insurgir-se contra o
senhor, assim como a filosofia pode renovar-se a partir da própria essência, sem mais
interditar o futuro.
Não é diferente do domínio que as pulsões exercem sobre o homem. Na hipótese de se
tornar consciente, o homem é capaz de compreender o mecanismo de alienação a que se deixa
submeter. A desalienação é, nesse sentido, uma nuança sutil que pode significar o despertar
para uma realidade no tempo, tal como entenderam Heráclito, o filósofo da correnteza,
Empédocles e Agostinho, pode recair no eterno retorno do tempo circular, mas aponta
175
igualmente para a mutabilidade do mundo. As pulsões estão cheias dessas possibilidades. O
enigma é como decifrá-las e transformá-las em fontes de mudanças.
O pulso necessita de alguém atrás de si. Porém, quem é o estimulável que
busca? Quem se move no movimento vivo? Quem dá o impulso no animal?
Quem deseja no ser humano? Aqui, nem tudo gira em torno do eu, pois uma
pulsão nos sobrevém. Todavia, isto não significa que não exista qualquer ser
individual, completo em si mesmo quem carrega as pulsões, sente-as e,
mediante a sua satisfação, desfaz-se de todo sentimento de desgosto. Ao
contrário, esse ser é, em primeiro lugar, o corpo vivo individual: sendo
movido por estímulos e transbordando deles, possui ele os impulsos que não
pairam de modo genérico. Se o animal come, é o seu corpo que fica saciado,
e nada além disso (BLOCH, 2005, p. 51-2).
Pulso e pulsão são rigorosamente a mesma coisa na linguagem blochiana. Revelam
aquela que é o embrião da antropologia filosófica de Bloch, a ―obscuridade do instante
vivido‖. Enraizado no vazio, obscuro no seu conteúdo e duração, mas parte inerente ao
homem, o ―pulso da obscuridade vivida‖ consegue enganar a vida e torna as coisas
inconclusas (BLOCH, 2005, p. 284). Como um ―ponto cego‖ dos sentidos, o instante vivido
permanece invisìvel na sua ―imediatez‖ e submerge a consciência sempre que o pulso lateja e
desperta. Passa do repouso ao movimento sem aviso.
Ninguém sabe, segundo Bloch (2005), exatamente o que acontece, embora o ―pulso‖
seja a coisa mais experimentada que existe. Como latência, o nada pode ser o nada, mas
também pode ser o tudo, porque se algo existe pode mudar, situar-se no ponto zero de um
―ativo-utópico. Uma realidade parece efetiva, ainda no entendimento de Bloch (2005, p. 288):
é o ―pulso‖ que, em última análise, também proporciona o modelo de caráter. Em Bloch, a
―imediatez‖ é que significa ―não-ter-a-si-mesmo‖ no tempo e no processo manifesto da
realidade. É o que justifica a atenção de Bloch para o conceito do ainda-não-consciente e pela
possibilidade da consciência antecipadora por meio dos sonhos acordados. A qualidade
essencial do futuro – que ele afirma e reafirma em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e
em O Princípio Esperança – dependem da superação da obscuridade.
Por não se restringirem ao egoìsmo capitalista do si mesmo, as ―pulsões‖ ou o ―pulso‖
constituem fenômeno em aberto com possibilidade de desdobrar-se em solidariedade
transformadora. O acontecimento pode não deixar a obscuridade imediata, tal como Bloch
(1968, p. 26- 37) menciona em Traces (Spuren) ao se referir às dificuldades que o homem
enfrenta para perceber que a inevitabilidade do destino não passa de uma ilusão ou ao prazer
que os ricos têm de jogar com os pobres, mas no decorrer do processo a realidade é percebida
e captada como agora. Não se trata de uma abstração, mas da dialética do real que, como
176
lembra Bloch (2005, p. 288) surge como ―elemento intenso‖ em ―correspondência com o
corpo‖. Confunde-se com os afetos, geralmente não associadas às condições econômicas dos
indivíduos e à sociedade de classes, à autopreservação ou à fome, embora perpassem as
sociedades e mudem de acordo com as épocas históricas (BLOCH, 2005, p. 68-70).
Se nenhuma pulsão persiste imutável, o mesmo se dá com aquilo que a
sustenta. Nada está estabelecido de uma vez por todas desde o início e
justamente o nosso si mesmo não nos é predeterminado. Havendo uma
mudança histórica das paixões, surgindo novas paixões com objetivos
renovados, modifica-se também a fogueira subjetiva na qual todas elas estão
cozinhando. Não há mais uma pulsão ―original‖, tampouco há um ser
humano primordial ou até um ―velho Adão‖. A pretensa ―natureza humana‖,
nos termos de uma investigação rígida da pulsão fundamental, foi recriada e
derrubada cem vezes no decorrer da história (BLOCH, 2005, p.70).
A metamorfose no sentido de suplantar a obscuridade pode ser percebida como
necessária, mas não se concretizará na sociedade de classes. O cenário de mudanças é dado
pelo processo histórico. Por insuficiência da metamorfose, a intuição criativa ficou embotada,
e a utopia, prisioneira do atavismo, confundiu-se com fantasia quimérica. Tratou-se, para
Bloch (2005), de submissão às pulsões do homem burguês, em Freud,100
e do homem
mitológico, em Jung, não a visão do homem histórico.
Esse paradoxo tem a função de legitimar diferentes tipos de homem: para Rousseau e
o Iluminismo, o ―homem natural‖, ―arcádio e racional‖; para Nietzsche, o homem era avesso
à ―razão‖, o que servia aos interesses capitalistas, e o idealista Schiller reconhecia que o
homem era movido ―pela fome e pelo amor‖, colocando a fome em primeiro lugar (BLOCH,
2005, p. 70-1). As diferentes classificações do homem camuflam o alvo principal: abstraído o
páthos revolucionário do homem como ser social, a superação do capitalismo é adiada ou
100
Distância e aproximação são ingredientes decisivos na relação de Freud com a filosofia. Considerava-se um
―filósofo da psicanálise‖ e referiu-se à filosofia com respeito e, em mais de duas dezenas de vezes, aborda,
nas suas principais obras, a filosofia e filósofos. Refere-se a Bacon e Schiller (FREUD, 1995, p. 892, 1245,
1304). Ou à filosofia, como a filosofia do misticismo e filosofia da vida (FREUD, 1995, p. 3646, 5681).
Entretanto, não camuflava sua desconfiança quanto ao discurso filosófico por não se circunscrever a um
objeto específico, como é a psicanálise, e por procurar explicar o homem e o real na sua totalidade. Em
Totem e Tabu, de 1933, considera o homem da pré-história, em certo sentido, ―nosso contemporâneo‖, refém
das neuroses pelo respeito aos soberanos, pela necessidade de líderes e pelo temor da morte (FREUD, 1973,
p. 1747-85). ―Diante da Revolução Russa, Freud não manifestava entusiasmo. Perguntava-se, em 1930, o que
fariam os soviéticos depois que tivessem exterminado todos os burgueses (FREUD, 1973, p. 3647-8).
Entendia que a questão era muito maior, sendo indispensável combater, em cada ser humano, as tendências
antagônicas de vida e de morte, de felicidade individual e de união humana, de enfrentamento entre o
indivíduo e a cultura, no sentido da liberdade, da felicidade e da concepção da própria história. Argumentava:
o instinto de agressividade decorrente da propriedade privada, mas das restrições existentes desde as
sociedades primitivas, quando a propriedade privada era escassa (FREUD, 1973, p. 3048-65).
177
mesmo ignorada. Consequentemente, o mundo é duplicado em imaginário e real, com o
mundo imaginário tendendo a preponderar sobre o mundo real.
3.7 PULSÕES NÃO HOMOGÊNEAS NA SOCIEDADE DE CLASSES
A última instância da estrutura das pulsões, ao longo da história, é
representada pelo interesse econômico, mas mesmo ela e exatamente ela
tem, como se sabe, suas formas históricas variáveis, suas modificações no
modo de produção e de troca. Sim, inclusive o próprio si-mesmo dos homens
que quer se conservar, que se reproduz mediante o consumo de alimentos,
que é produzido pelo respectivo modelo econômico e pela respectiva relação
com a natureza, é o ente historicamente mais variável.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 71-2)
Nem mesmo a fome, que é uma categoria relativamente estável no mundo, é
permanentemente imune às mutações da história, na visão de Ernst Bloch. A história a tudo
abarca, por ser construção do homem, a ela não escapando sequer a pulsão da
autopreservação, tida como a ―pulsão básica mais confiável‖ (BLOCH, 2005, p. 68). É
importante assinalar que Bloch não se refere às pulsões (Trieb) no sentido clínico, nem
biológico, mas no campo das relações sociais.
A exemplo de Freud, ele considera as pulsões no limiar do psíquico e do somático,
mas diferente de Freud, entende que as pulsões se misturam com os instintos e a vontade
humana de controlá-los. Transmitem a impressão de terem ―vida própria, dominam o corpo‖
e, por vezes, aparentemente, ―transformando o ser humano em sua presa‖ (BLOCH, 2005, p.
52). Nada, porém, garante que as pulsões são portadoras de si mesmo, além do corpo que
procura se manter vivo e do ―eu‖, o qual torna o homem mais sensìvel às suas carências do
que qualquer outro animal.
Por isso, existem várias molas propulsoras, dependendo do caso, e não uma
única, que movimenta tudo. Só existe continuamente o corpo que quer se
manter e por isso come, bebe, ama, domina. É somente ele que age nas
pulsões por mais diversificadas que elas sejam, mesmo as que foram
transformadas pelo eu que surgiu e por suas relações (BLOCH, 2005, p. 53).
Esse aspecto sugere a pergunta: poderia o homem ter o controle de si mesmo? Poderia
ele apreender o momento presente e superar a experiência do instante vivido, sempre que este
178
fosse apenas a fugacidade incógnita do momento? Poderia ele distanciar-se do presente e só
tentar apreendê-lo quanto este se transformasse em passado? A alternativa proposta por Bloch
é que o homem se projete para o futuro e que controle a insatisfação, o impulso animal, e que
procure diferenciar o que faz apenas por impulso do que faz com um objetivo delineado. Cita
como exemplo de possibilidade, Ulisses de Homero que ao voltar para Ítaca estava tão
determinado a agir para livrar sua casa de indesejáveis pretendentes, que deu um ―salto para
dentro do ainda-não-consciente‖, ―salto que não tem volta‖ (BLOCH, 2005, p. 299). E matou
brutalmente os nobres que tinham acampado em sua casa e dilapidavam seus bens.
Foi um salto regressivo, uma volta ao passado. Todavia, como metáfora, poderia ter
escolhido outro caminho. Isto porque a obscuridade não remonta à origem do homem, mas ao
ser imediato. Desse modo, para Bloch (2005, p. 303) cada instante vivido, seria ―se tivesse
olhos, testemunha do início do mundo, que nele ocorre constantemente: cada instante, como
não manifestado, situa-se no ponto zero do inìcio do mundo‖. A criação do devir é constante.
O novo é sempre possível. O presente-futuro pode libertar-se do agora-não e transformá-lo na
vontade não repetitiva voltada para o presente. Epistemologicamente, segundo Bloch, a
pulsão torna-se perceptível quando o homem constata que não tem domínio de si porque as
―pulsões‖ estão ―soterradas nas profundezas do seu ―eu‖ e precisam deixar a sua
―indiferença‖ para atingirem a superfìcie (PASTOR, 1986, p. 388).
No homem, simultaneamente, as pulsões originadas pela história são geradoras de
novas pulsões, como aquela do tédio, que atinge normalmente os ―ricos e supernutridos‖; a
pulsão de aquisição, que ―alcançou amplitude totalmente desconhecida em épocas pré-
capitalistas‖; e obsessões abstratas tipicamente capitalistas como os recordes, o tecnicismo, a
velocidade, o lucro máximo, o instinto fascista e imperialista para a morte, a religiosidade, o
pendor para a construção da felicidade, o instinto sentimental da época de Werther, pelo culto
à aparência em lugar do ser efetivo e a sedução pela orgia (BLOCH, 2005, p. 53).101
101
No fim da Idade Média, as festas promovidas pela classe dominante eram ―a grande máscara‖, a flagrante
aparência. Na Alemanha, as festas organizadas pelo déspota Karl Eugen von Württemberg, que fazia ―ouro
do suor dos seus súditos‖, prolongavam-se por 15 dias sem interrupção e se revelavam mais feéricas que as
festas de Versalhes. Pelo prazer da ostentação, pela magia onírica dos cenários, a imitar cenas míticas, como
a felicidade das ilhas dos feacos narrada por Homero, e pela aliança entre o arquiteto e o maître de plaisir
(mestre do prazer), projetava a varinha mágica das ilusões por todo o universo da nobreza europeia. Por todo
o renascimento sobrepunha fantasias de orgias à razão (BLOCH, 2006a, p. 255-7).
179
O ser humano consciente é o animal mais difícil de saciar: é ele o animal
que, para satisfação dos seus desejos, não vai direto ao ponto. Se lhe falta o
necessário à vida, ele sente essa carência como nenhum outro ser: visões da
fome emergem. Se ele tem o necessário, com o desfrute, emergem novos
apetites, que molestam de outra maneira e não menos do que antes o fazia a
pura carência. Os ricos supernutridos (porém não só eles), eventualmente, dá
singular comichão do não-sei-bem-o-quê. Sobretudo o luxo (que
aparentemente preenche tudo) é um impulsionador insaciável (BLOCH,
2005, p. 53).
Para Bloch, essas características, mais fortes ou mais fracas a depender das épocas, às
vezes simultaneamente fortes, ora simultaneamente fracas, significam que as pulsões, ao
contrário do que pensou Freud, podem ser tornadas conscientes como se fosse uma
Vorstellung, termo consagrado pela filosofia alemã, significando aquilo que está presente no
espírito ou é representação em oposição ao afeto (Affekt).
Igualmente, na sociedade de classes, as pulsões não se desenvolvem homogeneamente
no homem e não encontram, no diagnóstico de Bloch (2005), seu cerne no impulso sexual e
no conflito com as tensões do ego, no seu impulso de negar e censurar pulsões.
Objetivamente, na concepção dos impulsos, ele se ocupa de três autores Freud, Alfred Adler e
Jung.
Na sua perspectiva, a concepção freudiana é adaptativa e o burguês vive não em
conflito apenas com o seu ego, mas com o choque da realidade imposta pelo mundo da
mercadoria e sua ideologia. A libido seria o ―reino inconsciente da pulsão‖ que arrebata o
corpo com poderes ―desconhecidos e incontroláveis‖, mas Bloch o critica por considerar que
―camuflar a sexualidade‖ envolve ―espessa trama de discrição, hipocrisia e mentira‖
(BLOCH, 2005, p. 57). Não nega que a libido esteja envolvida por uma ―censura
moralizante‖, deseja trazer o problema para o âmbito da dialética da história e da sociedade
burguesa. Não concebe o homem como cativo dos seus desejos e da sublimação dos seus
instintos sexuais.
Na discussão sobre Freud, conjuga duas dimensões da psicanálise que considera
equivocadas: o caráter regressivo, que interditaria o ainda-não-consciente de se tornar
consciente e o conceito da libido como causa primeira das pulsões, com pontos de contato
com a filosofia de Schopenhauer que considerava os órgãos sexuais como ―pontos focais da
vontade‖ (BLOCH, 2005, p. 61-2). Criava-se o que Bloch define como ―superestrutura de
pulsões‖, desconstruìda, em grande parte, pela psicanálise e a sua proposta de reduzir o ―mofo
hipócrita e também neurotizante‖ da vida burguesa, mas a ―claridade do dia‖ se dá para dentro
180
de uma ―libido privada‖ e do ―mal estar‖, distante do fim do mal estar da sociedade (BLOCH,
2005, p. 57).
Na procura das causas primeiras das pulsões, quem exprimiria com acerto a negação
da libido como mola propulsada, segundo Bloch, seria um ex-discípulo de Freud, Alfred
Adler, que julgava ser ―vontade de potência‖ a pulsão fundamental do homem. Seu objetivo,
antes de tudo, estava em: ―dominar e derrotar‖, ―confirmar-se individualmente como
vencedor‖ (BLOCH, 2005, p. 60).
A crítica de Bloch (2005) se desenvolve em ondas. Adler não explica a fonte
originária do seu pensamento. Não vincula as neuroses às causas econômicas, como também
não o fazem Freud e Jung. E a vontade de vida, expressa por meio do poder, se configuraria
mais uma compensação pela falta de tempo para exercitar a sexualidade do que por qualquer
outra razão. Assim, o desejo individual de potência perde sentido, se torna próximo da
linhagem capitalista, e foi relegado a uma repetição da libido sexual freudiana.
Jung, a quem Bloch define como ―fascista psicanalìtico‖, é criticado com absoluta
veemência por querer reduzir a libido e seus conteúdos inconscientes a um fenômeno pré-
histórico (BLOCH, 2005, p. 59). Considera Jung fascista pela sua relação com o que
conceitua como ―libido pânica‖, o ódio à inteligência dos nazistas (―o único meio para
compensar os danos da sociedade atual‖, como Jung teria dito segundo Bloch), pelo culto aos
mortos que obstrui o futuro e pelo empenho de Jung de ―confinar‖ inconsciente nas pulsões
mais primitivas do homem, conexão arcaica que empurra a libido para o ―ventre da natureza‖
(BLOCH, 2005, p. 65-7).
―Mistérios atávicos‖ que são refutados pelo platônico Plotino, citado na argumentação
de Bloch, uma única frase: ―a alma do mundo é a energia do intelecto‖; e que Descartes, nas
Meditações (2004), também lembradas por Bloch, definiu como o ato de pensar que consiste
em ―toda a natureza do espìrito (BLOCH, 2005, p. 67-74). Em suma, é o pensamento que
impulsiona o homem para a frente e alcança as ―áreas mais extensas da privação negada, ou
seja, da esperança (BLOCH, 2005, p. 79). Por essa percepção o homem irá determinar o seu
modo de agir, de transformar o real e, possivelmente, trocar os sonhos escapistas, noturnos ou
diurnos, pelos sonhos acordados de mudança.
Se Freud entende a libido como fruto das repressões desde a infância, Jung vai
procurar as razões nos desejos contidos ao longo de toda a história. O inconsciente, em Freud,
é individual, fruto das repressões aos indivíduos, em Jung é coletivo. Na ironia de Bloch
(2005, p. 65-6), Jung trocou a claridade pela obscuridade: nunca se livrou do ―diletantismo
romântico não estruturado‖ dos seus anos de formação, tratou os arquétipos de forma
181
regressiva e vinculou o homem moderno com ―Gaia ou Cibele‖,102
com aquela ―entidade
arcaica‖ que está na origem, em igual medida, no mito reacionário das raças e no imaginário
das ―pulsões do animal humano primitivo‖. Arquétipo fantasioso, continua Bloch (2005),
povoado de figuras míticas – fogo, serpentes, mãe-terra e velho sábio, sem nenhuma menção
ao empreendimento capitalista ou à consciência das suas ―vìtimas atordoadas durante seu
tempo livre‖.
Jung retomou o conceito de uma ―memória da matéria orgânica como um todo e dos
vestìgios dessa memória‖, que permaneceriam vivas na libido, anulando qualquer
possibilidade do inconsciente se tornar consciente (BLOCH, 2005, p. 63). Seria um arcaísmo
contrário a Freud, que voltava aos elementos tribais do inconsciente para curar seus pacientes.
Jung, no conceito de Freud, era ―completamente genérico, primitivo e coletivo‖ e tornava o
inconsciente desejando regredir aos ―500 mil anos‖, o que tornava qualquer mudança
impraticável. Um segundo momento da crítica a Jung é o conceito de inconsciente coletivo, o
qual Bloch considera ―mais impregnado da loucura da bruxaria do que da razão pura‖
(BLOCH, 2005, p. 64).
Entre outras coisas, o que resulta é que o inconsciente é tomado do corpo. A
libido é até totalmente expulsa para as trevas, para o inconsciente como alvo.
Em Freud, o doente era lembrado do inconsciente apenas para que se
libertasse dele. Em C. G. Jung, no entanto, ele é lembrado do inconsciente
para que mergulhe completamente nele, mais precisamente em camadas cada
vez mais remotas do passado. A libido torna-se arcaica, sangue e solo,
homem de Neandertal e período terciário se lançam ao mesmo tempo, ao seu
encontro (BLOCH, 2005, p. 64).
O pensamento blochiano remete-se para a impossibilidade de o homem histórico
voltar aos tempos primitivos, como entende nos conceitos de Jung que, como ele lembra,
fundados no romantismo nunca renunciou à ―baboseira mágica (comandada pelo capital
monopolista)‖ que obstruiria o futuro, ―mistificado por uma medicina moral‖ (BLOCH, 2005,
p. 66). Na perspectiva blochiana, o homem pode tornar-se um bárbaro decadente, um
neurótico pulsional, como foram Nero, Calígula e Hitler, mas jamais voltará a ser um homem
de Neandertal. Como não há volta nas utopias passadas, não há volta na história do homem.
Há repetições não dialéticas, mas as pulsões mudam até pelo instinto de preservação. Pois,
para que a pulsão exista, é preciso de um corpo, instinto e paixões cambiantes.
102
Na mitologia grega, Gaia é a mãe Terra; Cibele, a mãe dos deuses, a deusa dos mortos, a grande mãe
primordial.
182
Também muitos dos chamados primitivos de hoje, como se sabe, de forma alguma,
são a criatura humana mais antiga. Representam, antes, os produtos da decadência das
grandes culturas. Não são a velha physis, mas há muito já se tornaram a nova physis em
virtude de terem herdado qualidades historicamente construìdas. O ―pagão‖, batizado pelo
missionário; o ―velho Adão‖, despido pelo cristão, são novamente eles mesmos, os ―Cristãos‖
de uma tradição e uma religião anterior, isto é, de uma anterior reviravolta da criatura. Desse
modo, o chamado homem movido pela pulsão original, situado abaixo do homem histórico e
do homem moderno, não pode ser encontrado e nem existe cientificamente. O que assim se
chama é (em Freud) o homem burguês, movido por pulsões, desfigurado e sepultado sob a
linguagem dissimulada da era vitoriana, ou mesmo (em Jung) uma fantasmagoria extraída dos
―frascos mitológicos‖ (BLOCH, 2005, p. 71).
As pulsões sempre se manifestam, mas não podem ser absolutizadas, como teria feito
Freud, e menos ainda excluídas da classe social a que o homem pertence. Vê-las como
constantes ao homem, independente de classes, e dissociadas do egoísmo capitalista, do
desenrolar da história e das possibilidades do vir-a-ser mediante o trabalho e a solidariedade,
é desfavorável ao acordar humano para o ainda-não-consciente.
O pensamento blochiano é marcado pela procura do sentimento real do homem e seus
desdobramentos no terreno das emoções ou afetos que podem vir do coração ou dos
interesses, ter suas raízes nas vivências ou no idealismo, mas não deixam de ser reflexo do ser
no seu tempo. Seu propósito é separar – ou superar – os sentimentos voltados para o futuro,
como a esperança, antídoto contra o medo e a angústia, a mais humana das emoções, dos
sentimentos temporais, superficiais ou inautênticos, tais como a ganância e a cobiça.
Bloch quer alcançar o que significativamente ainda não se encontrou, para ele, no
estudo das pulsões, aquilo que sobrepujaria o consciente presente e envolve os sonhos
diurnos, mesmo os mais simples, para a frente. Refere-se às pulsões que ativam a consciência,
que ultrapassam ―imaginariamente aquilo que está ao alcance da mão‖, o agir das pulsões
criativas da vida melhor, as quais se encontram à meia luz (BLOCH, 2005, p. 78-9). Trata-se
de uma discussão filosófica, não de uma discussão médica. Assim, o problema não é
questionar a pulsão de natureza biológica, mas aquelas que têm a marca da história impressa
na sua existência e expansão.
Mas o cerne da crítica blochiana é contra a rememoração. A discussão procura mostrar
o inconsciente na psicanálise como elemento de regressão, ―nunca é um ainda-consciente, um
elemento de progressão‖ (BLOCH, 2005, p. 59). Ao criticar a rememoração e a ausência do
novo, Bloch almeja voltar à questão inicial: o que move o corpo e as pulsões? Logo depois de
183
criticar Freud, Adler e Jung, o primeiro com certa reverência, Bloch passa a expor a sua
própria percepção quanto às pulsões: a autopreservação, por exemplo, pouco discutida por
Freud, Jung e Adler, seria capaz de colocar em movimento as outras pulsões. Mas a pulsão
das pulsões, para Bloch, é a fome, esta foi ―cuspida da psicanálise da mesma maneira que o
linguajar dissimulado dos salões cospe a libido‖ (BLOCH, 2005, p. 63). Se há fome, não há
futuro possível.
3.8 FOME, DESEJOS E VONTADE
O instante vivido agora mesmo, como tal, produz turvação: ele tem uma
calidez demasiado obscura e sua proximidade desfaz as formas.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 179)
Ao ―aqui e agora‖, o instante vivido, falta o distanciamento que produz ―estranheza‖,
mas torna a realidade mais clara e compreensível. Por isso, o mundo burguês serve aos ideais
de liberdade, igualdade e fraternidade, mas ―apenas da boca para fora‖, e a fome, como
tomada de consciência antecipadora, perde lugar para o desejo sexual (BLOCH, 2005, p.
181). A filosofia narra os afetos como sendo ―estados de si mesmo‖ e ―as emoções mais
ativas‖ (BLOCH, 2005, p. 74). Agostinho, Kierkegaard, Descartes, Espinoza e Hegel, com
variações, concebem o pensamento subjetivo como determinante, o que seria superficial, aos
olhos de Bloch, porque eliminaria a doutrina dos afetos a partir de fora. Assim como as
épocas e as relações dos homens com o mundo intervêm repetidas vezes na narrativa das
pulsões, pode-se constatar que os sentimentos impulsivos sempre foram tratados de forma
insuficiente.
O choque dos mundos, interior e exterior, é que faz do si-mesmo algo que transcende a
preservação: ―torna-se explosivo‖ tornando a ―autopreservação‖ em ―autoexpansão‖, ―ativa a
consciência como consciência‖ e impulsiona o homem para a frente (BLOCH, 2005, p. 78). A
visão de Bloch procede da incompletude do quadro teórico que ele considera comum à
psicanálise e à filosofia, impedindo, na sua trama individualista, que dialoguem e favoreçam a
consciência do homem solidário. Entende que as pulsões precisam ser orientadas para um
alvo (BLOCH, 2005, p. 49). Sem alvo, movimentam-se cegamente, transmitem a impressão
de ter vida própria, dominam o corpo, fazem do ser humano uma presa.
184
O ―ser imediato‖ busca algo exterior para preencher o vazio. Uma vez preenchido,
pode se tornar menos ávido, mas permanece insaciável. É o que explica o desejo e o apetite
humanos, sendo o desejar mais amplo e o apetite mais antigo: ―O animal dirige-se para o alvo
conforme lhe dita o apetite, o ser humano retrata-o por antecipação‖ (BLOCH, 2005, p. 50).
O estômago é a primeira lâmpada na qual deve ser derramado o óleo. Seu
anseio é preciso, sua pulsão é tão inevitável que nem mesmo pode ser
recalcada por muito tempo. Todavia, por mais alto que a fome grite,
raramente ela é tratada do ponto de vista médico. Essa omissão mostra que a
psicanálise tratou apenas de sofredores privilegiados. A preocupação de
procurar alimentos era para Freud e seus pacientes a mais sem fundamento.
Não obstante as modificações temporais e de classe, a expressão real da
questão é o interesse econômico: não é o único, mas o fundamental e
universal (BLOCH, 2005, p. 68-9).
A palavra fome contém pulsões múltiplas, como Bloch ilustra: sentimentos passionais
(triebefühle), as emoções (Gemütsbewsbewegungen) ou afetos, as paixões, a disposição, o
ânimo, o interesse, a melancolia, o ato de imaginar, pensar, e, inclusive, a esperança. Ou
vingança, volúpia, ganância, afetos do desejo ou do não desejo, que se abrem para um ordem
autêntica dos sentimentos, um futuro afetivo novo na imagem do ―afeto mais importante, o
afeto do anseio, portanto, o autoafeto por excelência‖ (BLOCH, 2005, p. 72-3),
A fome que deve poder acompanhar todos os afetos, irrompe do modo mais
evidente no grupo da libido e da agressão. E quase todos os afetos podem ser
associados aos polos da vontade, negação ou afirmação, insatisfação ou
satisfação consigo e com seu objeto, sendo que por um lado os afetos de
repulsão – angústia, inveja, ira, desprezo e ódio – e, por outro, os afetos de
atração – agrado, magnitude, confiança, veneração e amor – coincidem,
majoritariamente, com a velha dualidade entre desprazer e prazer (BLOCH,
2005, p. 75-6).
O que é impossível conseguir é um resultado exato. De que adiantam a utopia ou a
liberdade para um ser com fome? A fome pode ser literal, como pode ser a fome de progredir,
de ver o socialismo na alma do mundo, a fome de escapar das fendas da solidão. Pode ser a
fome que, anexada às preocupações financeiras, limita a libido das classes pobres, como pode
ser a fome de sexo, que fomenta o ―complexo do dinheiro‖ nas classes ricas ou a fome como
―expressão mais evidente‖ do homem nas suas relações econômicas, com os nacionalismos ou
da individualização da concorrência capitalista (BLOCH, 2005, p. 70). Mas, a questão maior é
que a fome simboliza a capacidade humana de acordar para a realidade, desejar alimentar-se e
reagir se a realidade for adversa.
185
O poder desse desejo não é um poder efetivo: o homem pode desejar, mas ser passivo
ou irracional; pode deixar o desejo esgotar-se na imaginação ou nas impossibilidades
impostas pelo cotidiano. Pode reduzir-se ao mero apetite e se limitar ao que se encontra ao
alcance. Como também pode ficar guardado, constituir-se na semente a ser cultivada. Mas não
há trabalho no apenas desejar. O desejar é uma potência passiva. Falta a práxis. E essa só
surge quando o desejar se transforma em querer, potencialidade ativa. Daí, a metáfora da
fome. Se há fome, não há como se manter passivo.
O desejar pode ser indeciso, apesar de uma bem determinada imaginação do
alvo para o qual se estende. O querer, ao contrário, é necessariamente um
alcançar ativo rumo a esse alvo, dirige-se para fora, tem de se medir
unicamente com coisas realmente dadas. Sendo que o caminho trilhado pelo
desejar, acrescido e assim solidificado pelo querer, pode até ser
propriamente indesejado, áspero ou amargo. Entretanto, em última análise,
nada se pode querer além do desejado (BLOCH, 2005, p. 51).
Existe a alternativa do desejo de construir a consciência. O consciente-ciente se
manifesta pela vontade de ultrapassar a ―legalidade econômica objetiva‖ que, como
demonstrou Mandeville na sua fábula das abelhas, não há altruísmo na engrenagem
capitalista, o que a paralisaria, mas o predomìnio da ―pulsão egoìsta‖ (BLOCH, 2005, p. 150).
A contrapartida é que desde Mandeville há progressiva consciência de que o interesse pessoal
não pode estar desatrelado do interesse coletivo e que o cidadão, mesmo em termos da
sociedade capitalista, não vive inteiramente para a economia privada. A mentalidade social,
outrora chamada virtude, se faz presente e a pulsão, como progresso, se projeta para além do
momento, arranca a ―ilusão‖ da utopia e se revela favorável à vida melhor (BLOCH, 2005, p.
152).
O desejo, em Bloch, não está associado ao desencantamento do mundo, mas à beleza
da origem grega associada ao verbo desidero. Surge do substantivo sidus ou sidera, uma
constelação de estrelas. A ambiguidade do desejo exibe características desafiadoras, no
sentido de carência, vazio, ausência, exigência, mas o que ocupa o espaço de atenção é a luta
do desejo com a consciência e com a razão, o oposto do instinto cego.
O homem, se há um vácuo entre o fantasma do obsoleto e o desejo pela luz, não pode
se aperfeiçoar no sentido socialista se não for mediado pela ética, pela grandeza tácita, pela
rejeição à ruína. O desejar mediado tampouco cede, tampouco renuncia. Ele não se perde de
vista, por mais que seja dificultado. Ele não fica preso à realidade dada, e sim, considera
apropriado não crer inteiramente no que vê ao deparar com o visível existente. Em
186
contrapartida, a esperança subjetiva, está certa e segura de si mesma, mesmo que aquilo que é
designado por ela, a esperança objetiva, chegue a ser apenas provável (BLOCH, 2006b, p.
458).
Há, nessa oposição, o duelo entre a natureza e a história, o impulso e a excitação, o
sentimento interior e a exterioridade; a luta de morte entre o desejo da acomodação capitalista
e o desejo da transformação socialista também se opõem dialeticamente, espelhando a
ambiguidade da palavra grega apptitus, que tanto pode ser agressão, ataque, choque, assalto,
como também pode ser solicitação, demanda, movimento.
A irracionalidade e a racionalidade estão presentes na ordem do comportamento
humano, o mesmo acontecendo com a dicotomia corpo e alma, consciência e transformação
da realidade. Mas isso acontece porque o homem tem naufragado na ―experiência
mecanicista‖ do já existente e pelo relacionamento das mudanças às abstrações da
autoconsciência (estoicismo) e do idealismo (BLOCH, 2005, p. 149). Segundo Bloch (2005),
o ainda-não-consciente tem como princípio o controle das pulsões. O princípio é fazer o
homem acordar para a historicidade das pulsões e a função utópica da vontade. Sem a
vontade, não há esperança.
Na esperança consciente-ciente, não há debilidade, mas uma vontade que
determina: é assim que tem que ser, assim há de ser. Nela o traço do desejo e
da vontade irrompe energicamente, o intensivo na superação e nas
transcendências. Seu pressuposto é um caminho firme, uma vontade que não
se deixa preterir por nada já existente; essa firmeza é seu privilégio
(BLOCH, 2005, p. 146).
Esse ponto distinto não é para ser visto como privilégio, como foi a virtude estoica, o
orgulho da razão no romantismo alemão, o automatismo liberal ou a imaginada
inevitabilidade do socialismo, mas como a interação de condições objetivas e subjetivas pelas
quais o homem pode acordar. É um processo. Bloch cita Marx ao lembrar que as ideias de
uma época são as ideias da classe dominante, alienada de si mesma, agarrada à ideologia do
seu próprio bem estar. Não há sonhos, não há utopias. Não há boa consciência. Há interesses.
Caberia uma pergunta: as pulsões seriam manifestações da ideologia dominante? Seriam fruto
da mentalidade burguesa? Poderiam as pulsões ser moralmente herdadas? Seja quais forem as
respostas, o que Bloch chama a atenção é que as pulsões vêm em socorro da superestrutura
dominante. São heranças culturais que o capitalismo transmite de uma geração a outras sem
função utópica, mas com ideologia de classes.
187
O ambiente histórico das pulsões, que fortalece a tese do ainda-não-consciente, cria
imperativos para a renovação da filosofia. Junto com a psicanálise, precisam deixar a periferia
da vida para andar lado a lado com o homem comum. Seriam, nas palavras de Bloch (2005, p.
77-9), ―expansões para a frente‖, luzes que podem envolver os sonhos acordados. Traduzindo
para o universo de Bloch, as pulsões, como impulsos básicos, não se caracterizam
primordialmente pela libido, pela vontade de poder, nem pelo inconsciente coletivo com raiz
nos primórdios da existência do homem na terra.
São pulsões que se apresentam à vontade e de preservação e nos problemas da fome,
mas sobretudo na vontade de conquistar a vida sem o egoísmo capitalista. Assim, a
―autopreservação‖ encontra-se, como fenômeno, sempre em aberto, para proporcionar o
encontro do homem com o próprio homem e construir, a partir do ainda-não-consciente a
―solidariedade enquanto solidariedade‖ (BLOCH, 2005, p. 72). E o que prevalece é o desejo
de fazer a história avançar.
Se a história avança, a qualidade comum aos homens é crescer, desenvolver o espírito
e, com versatilidade e talento, produzir o novum. Da mesma forma o que é ainda-não-
consciente, que é o ainda-não-sendo tende, igualmente, a vencer a barreira da consciência
existente e dar novo curso à história. ―Nesse campo, tudo é difìcil, tanto mais porque
justamente o novo no qual o pioneirismo produtivo ingressa também é essencialmente o novo
da coisa que surge em si e para si‖ (BLOCH, 2005, p. 129). O ―pioneiro produtivo‖, como
ação, é a instância da realização, a fonte castália que brota no Parnaso, a consciência que
nasce das profundezas do ser para atingir pontos elevados.
O produtivo não é nenhum xamã, tampouco algum resíduo psicológico dos
tempos primitivos; não é num fogo vindo desse abismo, tampouco um arreio
(Mundstück) de poderes superiores como Nietzsche nos teria lembrado
atrevidamente. Essa mistificação transcende da inspiração, como se ela
despencasse sobre nós, é completamente irrelevante: ela é superior à
mágico-arcaica apenas na medida em que quer fazer jus pelo menos ao
transcendere, quer dizer, ao aspecto expansivo, sobrepujador da criação
intelectual, e não a falsifica como uma submersão, como uma linguagem
noturna. De fato, a constante experiência luminosa que está vinculada à
inspiração mostra que no ato da produtividade não ocorre nenhuma
regressão arcaica (BLOCH, 2005, p. 123).
Criar é desvendar os mistérios do mundo. É tornar consciente, com as faíscas da
criatividade, o polo oposto das pulsões negativas, o espírito de sonhar para a frente. Ideias
convivem em harmonia enquanto não passam dos esboços para a prática. Quando isso
acontece, vêm as resistências. O caminho se torna difìcil porque o ―limiar superior da
188
consciência tem seus próprios guardiões‖ e procuram obstruir novas ideias, novos
conhecimentos, mas são vencidos (BLOH, 2005, p. 129). Não fosse assim, o conceito de
trabalho teria permanecido estranho à sociedade grega e, como lembrou Marx, a humanidade
não se atribuiria apenas tarefas que pode cumprir. Como admite Bloch (2005, p. 130), a
resistência ao novo não faz parte da natureza fundamental do homem, mas é, sim, uma
resistência apenas temporária. Se o caráter do novum é hermético, não falta ao homem olhos
para descobrir sua riqueza e profundidade.
189
CAPÍTULO IV
SONHOS DE DESPERTAR: DILEMAS DA INTERIORIDADE E DA
EXTERIORIDADE DO HOMEM REVOLUCIONÁRIO
Para acertar o ponteiro das horas, é preciso girar o ponteiro dos minutos e,
igualmente, ao inverso, é preciso que o tótum de um grande navio que se
encontra numa longa viagem possa ser iluminado em cada trabalho
revolucionário minucioso.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 454)
Iluminar o grande navio revolucionário e acertar os ponteiros dos minutos e das horas
englobam a força dos sonhos em dois lados: como negação da dicotomia sujeito-objeto e
como procura da unidade sujeito-objeto-sujeito. Soma-se a alegoria do tempo e do espaço, já
que o passar das horas é inexorável, podendo o relógio estar em qualquer lugar e em todos ao
mesmo tempo. Sobre o primeiro aspecto, Bloch argumenta que os sonhos humanos de
mudança não dependem apenas da vontade individual, mas de mudança sistêmica da
superestrutura da sociedade, desejo disfarçado pela inércia.
Por mais que o seu interior ainda não tenha se exteriorizado, ele se
exterioriza neste fato: ele não possui o que é seu, antes o procura e o
imaginado lado de fora, portanto, ele tem fome. E o exterior, que o subjetivo
procura agarrar, ao menos tem de estar postado de tal maneira que seja
possível tentar agarrá-lo. Se o urgir aquilo que lhe falta não fosse senão um
muro estreito, sufocante, enrijecido, nem mesmo haveria qualquer urgir. Mas
assim ainda lhe resta algo em aberto; o seu urgir, desejar, fazer têm espaço.
O que não é ainda pode vir a ser; o que é realizado pressupõe coisas
possíveis na sua matéria. Há, no homem, esse elemento aberto, e ele é
habitado por sonhos, planos. O elemento aberto existe igualmente nas coisas,
na sua extremidade mais avançada onde o devir é possível (BLOCH, 2005,
p. 283-4).
Em virtude disso, a transformação é feita no terreno da boa consciência. No âmbito do
indivíduo, a ação é incompleta, mas se torna completa quanto maior for o senso coletivo,
quanto maior for desenvolvido o hábito para o vindouro. A atmosfera coletiva fica nublada
porque o vindouro, em diferentes épocas, se afasta do pensamento e o hábito da repetição se
sobrepõe à vontade de tornar manifestas as coisas inconclusas.
Mesmo os pioneiros científicos da sociedade burguesa, que não se comparam com os
grandes e puros ideólogos dos séculos XVII e XVIII, que com certeza estavam atentos à
190
relação com o presente e o futuro, defrontaram-se com o emergente de sua própria classe
revolucionária, sempre com ilusões ou ideais mirabolantes e sem concreticidade; isso foi
assim não só por causa da respectiva barreira de classe, mas igualmente por causa da barreira
diante do futuro, que até Marx estava dada, de ponta a ponta, pela barreira de classe.
Quanto mais o tempo passa, tanto mais tudo isso se une exatamente com a anamnesis
ou a barreira estático-contemplativa do saber erguida contra o realmente imanente, o
emergente. E da mesma forma está completamente decidido que, onde a relação ―saber-
passado‖ vê no presente apenas um embaraço e no futuro, palha, vento, amorfismo, ali a
relação saber-tendência apreende o para-quê de seu saber como tal: como a nova construção
mediada do mundo (BLOCH, 2005, p. 280-1).
A mediadora do marxismo é a realidade das relações sociais. É indispensável para
elucidar a validez do método e o poder criativo da dialética marxista. Aqui também se impôs
uma diferença: sentir que se vive e que se é passível de transformação, não é a mesma coisa
que viver no passado com a repetição mecânica da pura realidade. Porque o instante vivido
exige atenção para que não empurre a consciência para a obscuridade e nela se permaneça.
Assim como o olho não vê no ponto cego, no local em que o nervo ótico penetra na retina,
tampouco qualquer dos sentidos é capaz de perceber o recém-vivenciado. Em vista disso tudo, esse
ponto cego na alma, essa obscuridade do instante recém-vivido deve ser diligentemente diferenciado
da obscuridade de processos esquecidos ou passados. O que passou vai sendo gradativamente
encoberto pela noite, mas isto é remediável, a memória auxilia, fontes e achados podem ser
desenterrados, sim, o passado histórico está à disposição justamente da consciência contempladora de
modo especialmente objetável, ainda que com lacunas. A obscuridade do instante vivido, em
contrapartida, permanece no seu quarto de dormir; uma consciência atual existe justamente só em
relação a uma vivência recém passada ou em função de uma vivência esperada que se aproxima e de
seu conteúdo (BLOCH, 2006b, p. 286).
Descrevendo a experiência, Bloch (2006b, p. 286-7) revela que o instante vivido é
―essencialmente invisìvel‖ e que a correnteza da consciência permanece estática, sem
―aparentar ter nascente ou foz‖. É um momento de transição, de repouso, podendo ser um
momento de perfeição. É comum que o pensamento que olha para a frente ―passe ao largo das
coisas‖ (BLOCH, 2006a, p. 406).
É preciso tempo e processo para separar o que é temporal do que é transitório.
Heráclito, o pensador da correnteza, segundo Bloch (2006a, p. 405), chamou o tempo de
―primeiro corpo‖ e, também, Agostinho e Joacchim di Fiori sentiram o homem ―acorrentado‖
quanto à ―imagem da ampulheta que simplesmente escorre‖ (BLOCH, 2006b, p. 408). O
191
tempo no processo de depuração do acontecimento é a própria categoria da finalidade. ―Um
pensamento que está carregado de tempo em geral se mostra também carregado
humanamente‖ (BLOCH, 2006a, p. 409). Nada surge da imediatez e o que vai importar é o
conteúdo daquilo que está mais próximo, mas que não se pode ter, não se pode perceber, o
―não-ter-a-si-mesmo‖ (Sich-nicht-haben), próprio do tempo e do processo.
Nessa diferença, explica Bloch, está ―o nó do enigma da existência‖ pois exige que o
homem esteja atento ao ―aqui e o agora‖, que se vá além do habitual, que se tenha capacidade
de viver o instante com ―força concentrada‖ (BLOCH, 2005, p. 288-9). É essa ação que vai
permitir que o instante vivido seja o propulsor de novas épocas na história, tal como fez Marx
ao escrever o Dezoito Brumário a partir da percepção de pequenos instantes vividos pela
sociedade francesa e de Lenin com a Revolução Socialista de Outubro. A percepção real do
instante é que poderá transformar o ainda-não-consciente em consciente.
A obscuridade vivida é tão forte que não fica restrita nem mesmo à sua
proximidade mais imediata. Ela tem efeito também sobre o seu contexto,
sobre o tempo que se segue ao justo-agora, e então também sobre o espaço
contíguo ao justo-aqui. Esse efeito impede que a proximidade da vivencia
real, especialmente como proximidade acontecendo, ganhe distância
suficiente e tranquilizadora, ou seja, possa ser contemplada de modo
habitual. Através disso, surge a penumbra peculiar do respectivo primeiro
plano atual, que não é facilmente contemplável, mas tampouco facilmente
captável e sabível (BLOCH, 2006b, p. 290).
Bloch, mais uma vez, está se referindo aos erros de avaliação e entendimento da
realidade. Não há uma relação de causa e efeito entre a proximidade do momento vivido e a
sua percepção. É um testemunho do que a visão falsificadora da parcialidade burguesa e dos
interesses de classe podem proporcionar. Que os homens possam ler os acontecimentos, e eles
mesmos analisá-los, que possam antecipar o teor do futuro contido no agora e função do
aperfeiçoamento da consciência da ―conexão entre a obscuridade do instante e a obscuridade
do futuro‖, que encontra-se no ―ainda-não-acontecido-obscuro‖, no ―ainda-não-real‖
(BLOCH, 2005, p. 293). O seja, o que virá a ser o novum.
Sobre o tempo e o espaço, Bloch projeta suas esperanças para o terreno pouco
desbravado da revolução da consciência – o tempo e o espaço de grandes mudanças –, aquele
círculo aberto, ainda não preenchido, terreno onde disputam o antifuturo e o futuro. A
proposta teórico-prática de Bloch equivale ao caminhar entre a nascente e a foz: ―A nascente
é caracterizada pela obscuridade do agora, na qual origina-se o realizar; a foz, pelo caráter
aberto de pano de fundo objetal, para onde a esperança ruma‖ (BLOCH, 2005, p. 284).
192
A exigência premente da filosofia blochiana é contribuir para que a superestrutura e a
infraestrutura coincidam, para que a nascente e a foz da corrente revolucionária tenham
continuidade. É o que Bloch procura investigar para dentro da obscuridade humana, com o
propósito de libertação da filosofia do objetivismo dogmático. Um exemplo desse cuidado
encontra-se na imagem da correnteza da consciência que deixa de conter a substância da
correnteza. Isto aconteceu com o materialismo vulgar e suas implicações para a história do
século XX e a dinâmica humanística do marxismo: dificultou o casamento da utopia com o
materialismo dialético e fez se volatilizar o espírito revolucionário em favor do
economicismo.
4.1 OBSCURIDADE E LUZ NA CORRENTEZA DO INSTANTE VIVIDO
E na nascente está implantada uma foz; se esta será alcançada, é uma outra
questão.
Ernst Bloch, O Principio Esperança (2005, p. 298)
O que Bloch quer dizer? A vida acontece no agora, em silêncio como Ulisses que
chegou de volta à Ítaca dormente, como as carências de algo que não são percebidas, como o
novum libertador que nem sempre se imagina possível. O instante é o cerne da latência, do
real, é o ―princìpio do mundo‖ (BLOCH, 2005, p. 298). Além do ―ainda-não-dominado‖, o
futuro contém o ―ainda-não-franqueado‖ (BLOCH, 2005, p. 292).
Nesse desvendar do mundo oculto, segundo Bloch (2005), o marxismo se propõe a
indicar o caminho para a compreensão do alcance da consciência orientada para a ação: que o
passado é fechado apenas aparentemente, que a latência se sustenta em tendências reais, que o
ponto cego, ―esse ainda-não-ver do agora e aqui imediatamente ocorrido‖, manifesta-se a cada
momento, independente da duração do instante. Pode ser o real muito mais obscuro do que se
poderia imaginar anteriormente.
Essas incógnitas exigem que o sujeito eduque a sua consciência humanista no
processo. Que acorde para a evidência que, seja qual for a escuridão, sejam quais forem os
fantasmas e angústias atávicas, o realmente primordial é o bem comum. Esse é o simbolismo
do instante, o simbolismo do início que se reproduz a cada instante e que vai além do que já
se tornou evidente. Desse modo, ―o não como o ainda-não-processual transforma a utopia na
193
condição real da incompletude, da natureza apenas como fragmentária em todos os objetos‖
(BLOCH, 2005, p. 303).
Quando não existe dogmatismo, mas o sentimento da correnteza real, nascente e foz se
tornam uma unidade, uma mesma visão da correnteza da consciência. Não mais o fluxo da
correnteza da consciência de acordo com o tempo, o ―não-ter-a-si-mesmo‖, mas a correnteza
no tempo, ou o ―estar-presente‖ incessantemente, o ―olho atento‖ para o eterno (BLOCH,
2005, p. 288). Uma nova época de olhar histórico, sem ―zonas de silêncio‖, sem ―latejar‖ de
instantes a serem ouvidos, sem átrio de ―presença ainda não consciente, ainda não existente‖
(BLOCH, 2005, p. 290).
[...] a obscuridade vivida é tão forte que não fica restrita nem mesmo à sua
proximidade imediata. Ela tem efeito também sobre o seu contexto, sobre o
tempo que segue ao justo-agora, e então também sobre o espaço contíguo ao
justo-aqui. Esse efeito impede que a proximidade da vivência real,
especialmente como proximidade acontecendo, ganhe distância suficiente e
tranquilizadora, ou seja, possa ser contemplada de modo habitual. Através
disso, surge a penumbra peculiar do respectivo primeiro plano atual, que não
é facilmente completável, mas tampouco facilmente captável e sabível.
Alguns provérbios estão melhor informados sobre isso do que a maioria dos
pensadores pregressos, como, por exemplo: ―Nenhum tecelão sabe o que
tece‖, ou: ―Ao pé do farol não há luz‖. E não terá sido por estar, ele próprio,
na luz, que Édipo foi o último a perceber que havia casado com a própria
mãe (BLOCH, 2005, p. 291).
Obscuridade e luz são, aparentemente, antíteses em Bloch. Mas só o são
aparentemente porque dialogam, como dialogam a fome e o instinto de preservação, o
romantismo e os afetos, e os sonhos acordados e a esperança. A obscuridade seria o sonhar
apenas dormindo e, ao abrir os olhos, como Ulisses de Homero que volta à sua Ítaca, nada
encontra, a não ser o objeto do seu desejo e da própria decadência de viver acondicionado no
passado heróico. A obscuridade é viver apenas o instante. Ou o curvar-se aos arquétipos
velhos, os arroubos quixotescos do tornar-se solitário, desferir golpes freneticamente, o que
acaba no vazio, dependente do correr atrás do que passou ou nunca existiu.
É tornar a vida uma ficção, fugir do presente objetivo para presentes imaginários,
perseguir sonhos desejantes cavalheirescos, repletos de ―cavalos alados, mares em chamas,
ilhas flutuantes e palácios de cristal‖ (BLOCH, 2006b, p. 121). Fazer como Quixote de
―poderosa imaginação, mas sem poder para a ação‖ (BLOCH, 1988, p. 172). Obscuridade é
paralisia: quanto mais colorido, mais o sonho é ilusório, quanto mais parece vislumbrar o
futuro, mais esse é ―utópico-arcaico‖, uma categoria superior ao anacronismo social
(BLOCH, 2006b, p. 121).
194
Ou, a obscuridade é ainda o homem, sem rebeldia, tendente a voltar ao passado, a se
repetir cotidianamente e, a prevalecer, como a visão de Hegel, defrontar-se com o tribunal da
história. Um ser crepuscular, mais objeto do que sujeito ativo da história. Um ser condenado à
autodestruição, tanto pela obscuridade da sua servidão ao senhor, como em ―consequência de
sua avidez por bens exteriores e seu desfrute‖ (BLOCH, 2006b, p. 297). Um ser que, ao
contrário de Prometeu, não é Deus (BLOCH, 2006b, p. 298).
O homem-Deus é a luz, o sol. Para Bloch, o sol é como a contemporaneidade, como a
metafísica e a matéria, como a casa humana e o mundo para os humanos, como a alquimia e
os recortes da existência humana, como a música e a esperança. ―O sol ilumina a vida na
Terra e a lua à noite‖ (BLOCH, 2009a, p. 208-9). A construção do mundo exige o sol
humano. ―Onde há sol, vê-se gente‖ (BLOCH, 2006a, p. 10). A esperança utópica é o sol que
irradia o mundo do não consciente para o imanente mundo do consciente (BLOCH, 1968, p.
160-2). Esse sol irradia a própria luz e leva o homem a questionar o que pode ou não fazer,
como agir e como subordinar suas ações à vida. É o sol da totalidade da vida, a luz do telos.
A distinção entre a obscuridade e a luminosidade é o tema que Bloch começa a
discutir ainda nos idos das lutas antinazistas na Alemanha. Encontra-se nos primeiros anos da
década de 1930, quando passa a pensar a temporalidade e, com ela, a pluralidade dos tempos
e as imensas dificuldades da desalienação. Datam dessa época os conceitos de tempos
míticos, relativos às crenças arcaicas no ressurgir do nacionalismo alemão e no futuro de uma
ilusória raça pura, forte e dinâmica, que Hitler tentou vincular ao III Reich; os tempos sociais,
com o choque entre as aspirações da pequena burguesia, ciosa da sua ideologia pré-industrial
e do proletariado socialista à procura de humanização que se projetasse para além do trabalho
e da tecnologia; e a não sincronia entre esses dois tempos que, por não ter sido compreendida
pela esquerda, culminou na ascensão do fascismo. E adiou, mais uma vez, a esperança e a
educação das massas para o socialismo.
O tempo é imperativo e a tudo transforma. O papel do revolucionário seria colocar o
tempo a seu favor, fazendo dele o guia dinâmico para o futuro, ajudando, por meio da
filosofia, o homem a compreender a si mesmo, a sair da obscuridade. No livro Heritage of our
Times (Erbschaft dieser Zeit), Bloch (1991) desenvolve a teoria conceitual da ―não-
contemporaneidade‖, que ele tinha esboçado em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie)
quando aborda o cotidiano capitalista. Na sua perspectiva, não são contemporâneas todas as
195
expressões do pensamento e do modo de vida de conteúdo atávico, atrelado à sociedade
burguesa.103
O fenômeno da não contemporaneidade, apoiado na tecnologia e na burocratização,
foi o que teria levado o nacional-socialismo ao poder, pelo voto, depois, evidentemente, da
esquerda (socialista e comunista) ter sido dizimada. Ele entendia que os comunistas
ignoraram a força conservadora do homem do campo, assim como das classes médias,
fixando-se no operariado industrial. Esse erro e suas repercussões, ―um pseudo-iluminismo do
marxismo vulgar‖, é que não deveria se repetir, retirando o espaço conservador de recorrer
aos mitos antigos – A Idade Média incluída – para anunciar a redenção que jamais ocorrerá
(BLOCH, 1991, p. 62).104
Sendo verdadeira a hipótese de que O Princípio Esperança é uma resposta ao fracasso
da esquerda em impedir a ascensão do nazismo, o sonho acordado manifesta-se pela
necessidade de tornar realidade o socialismo contemporâneo. Desemboca na
complementaridade dialética do sonho dormindo e do sonho de olhos abertos, unificados na
consciência antecipadora, nos sonhos que estão ao alcance da razão e do entusiasmo.
Se o homem vê que não existe luz ao pé do farol, é porque se sente atraído pela
ausência de luz e sente medo do que não lhe é familiar. Começou, ainda referindo-se ao
homem que tem medo, o percurso da vida melhor, mas teme concluí-lo. É como se o temor de
viver e a própria finitude da vida, em lugar de indicar sua transitoriedade, reforçasse a ilusão
do fetichismo da mercadoria e das relações de produção, noções que, na teoria social
marxista, refletem o alcance da alienação.
A relação entre a realidade estabelecida e a realidade não conhecida transita entre
esses polos – sonho dormindo, sonho acordado e desalienação. Reflete a tarefa da filosofia e
da psicanálise de desalienar o homem e libertá-lo das significações da alienação. Abriga,
igualmente, o temor conservador de viver e o temor de que a vida acaba com a extinção do
próprio homem, sem chances de continuidade.
103
Cf. BLOCH, Ernst. Heritage of our Times. Polity Press, Cambridge, UK, 1991, p. 153-78.
104
A expressão III Reino esteve presente na maioria das insurreições da Idade Média como sinônimo do
Terceiro Evangelho: ao Antigo Evangelho se sucederiam o Evangelho do Filho e o Terceiro Evangelho,
aquele do Espìrito Santo. O Terceiro Reino seria, nos seus ―nobres propósitos‖, a conciliação entre a
Antiguidade e o Cristianismo. O nacional-socialismo roubou a ideia, romantizou-a perante os olhos da
―estupidez‖ pequeno-burguesa e a transformou em ―cheiro de sangue‖, ―corrupção‖ e ―brutalidade‖ nazista,
―obscuro fanatismo‖ (BLOCH, 1991, p. 56-63).
196
Há sonhos diurnos em número suficiente, só não foram satisfatoriamente
observados. Mesmo de olhos abertos, no seu íntimo, a pessoa pode ver tudo
colorido ou em forma de sonho. Se a propensão para melhorar aquilo em que
nos tornamos não adormece nem durante o sono, como poderia durante a
vigília? Pouco são os desejos que não estão carregados de sonho, justamente
quando eles tomam consciência de si. Mas, então, quem sonha durante o dia
é visivelmente diferente de quem sonha durante a noite. Muitas vezes, quem
devaneia segue um fogo-fátuo, desvia-se do caminho. Mas ele não dorme e
não submerge na névoa (BLOCH, 2005, p. 80).
O sonhar acordado, por ser uma forma contrária à rememoração, explicitaria a
necessidade de ação prática. A partir do sonho à luz do dia, desejos e vontades permitiriam ao
espírito da utopia se tornar consciência. E permitiriam que o homem se encontre consigo
mesmo e com seus semelhantes.
Foz e nascente, luz e obscuridade, sol poente e sol nascente, fluem por todos os lados
do ser humano e do mundo, um ao encontro do outro, com o navio e o relógio da revolução,
sendo visto na sua totalidade, metafisicamente, como o encontro não supérfluo e caloroso
entre o infinito e aquele, o homem, que volta para casa, que é a sua própria humanidade
(BLOCH, 2006b, p. 421). Negar a própria humanidade é como se fosse uma forma de morte.
Porém, essa morte não ameaça os que voltam ao estado da natureza, mas aos que não sonham,
aos que não se sentem comprometidos com a consciência desperta, com o renascimento da
vida.
4.2 A DIMENSÃO DO PRESENTE, O ALCANCE DOS TEMPOS DE MUDANÇA
A partir do sonho diurno, a arte contém essa natureza utópica, não para
tudo dourar, levianamente e sim para ter dentro de si também a privação,
que com certeza será superada apenas pela arte, mas não será esquecida
por ela, sendo envolvida pela alegria como uma forma vindoura. O sonho
diurno entra na música e ecoa na sua casa invisível, mas uma casa que faz
parte da expressão do mundo, e agora ele está nela, como sonho dinâmico e
expressivo.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 96)
A palavra sonho advém do noturno e, no sono noturno, é que se começa o desejar.
Mas é no sonho desperto que o homem sonha, utopicamente, com o que gostaria de ser e
tornar-se. Mas, ao assim proceder, parece fadado a escolhas medíocres: É talvez significativo
que no livro I de O Princípio Esperança Bloch (2005, p. 92-3) registre que o sonho desperto
197
mais comum é habitado sem escrúpulos por Circe, que ―transforma os seres humanos em
porcos‖; pelo Rei Midas, que ―transforma o mundo em ouro – sempre ignorando as regras de
comportamento‖.
Mas esses não parecem ser o problema dos sonhos despertos, porque quando
amadurecem, quando atingem compromissos mais elevados, o plano da ―sabedoria e da
experiência deixam de lado as ―quimeras‖ de Circe e Midas e se volvem para o que envolve a
sociedade: a construção de um mundo melhor. Não há nada em Bloch que possa explicar com
nitidez, as razões dessa transição, salvo a oposição empírica entre a ausência de alvo dos
devaneios íntimos, geralmente rudes, e os sonhos que se apresentam com planos detalhados
ou se orientem para o futuro, mas o que persiste é o perfectibilismo do sonho desperto.
Nele, o ego pode se expandir a ponto de representar outros egos, nele não existe
qualquer censura sobre os conteúdos não convencionais dos desejos, nele o ―ego competente
tem músculos retesados e cabeça fria, é imbuído de uma vontade de expansão inabalável e se
mantém atento a tudo‖ (BLOCH, 2005, p. 93). Nele, não faltam a paranóia, a má consciência,
como não faltam a realidade e todos os mistérios que o homem possa conter, mas há uma
peculiaridade: é a fantasia de melhoria do mundo que tende a ser levada até ao ―limite das
suas possibilidades, com todas as situações esgotadas e detalhadas em suas formas‖ (BLOCH,
2005, p. 99).
Ao definir assim os sonhos, como uma latência do vindouro, como se fosse uma obra
de arte caracterizada pela terna juventude, como um sonho desejante com alvo e que vai em
sua direção, Bloch (2005) tende a considerar que a filosofia pode, a partir das utopias oníricas,
adquirir novos conhecimentos e influenciar progressivamente a vida. A psicanálise também
pode alcançar novos horizontes, pois a esperança enraíza-se nos sonhos acordados.
Os sonhos noturnos trazem a ideia da morte, da ―paz eterna‖, como existiu em Leibniz
e nas ―danças macabras‖ da Idade Média, no culto patriarcal da ordem que via, na morte, a
―ascensão para as estrelas‖, mas que foi sobrepujado, no seu imobilismo, pela ação de homens
como Spartacus e Münzer, portadores da substância social da vida (BLOCH, 2006b, p. 235-
53). Ao evocar esse duelo entre o sentido dos sonhos, Bloch não quer transformar a
psicanálise individual, aquela que diz respeito ao analisa e o analisado, mas criticar a sedução
pela regressão ao passado105
, segundo ele, obsessiva em Jung.106
105
Na década de 70, temendo que as ditaduras da América Latina acabassem com a psicanálise como
fizeram os nazistas, psicanalistas do continente, liderados pela Argentina, defenderam a psicanálise de
massa, propondo ruptura com os movimentos tradicionais dos Estados Unidos e da Europa
(ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 457-797).
198
Quer dissolver a onda de paradoxismo de êxtase do supramundo e transformá-lo em
êxtase criativo, terreno, dando perspectiva também à fantasia, sem a qual o homem além de
não conseguir viver, não consegue ser socialista. Pois é como Bloch (2006b, p. 453) ressalva:
―A razão não consegue florescer sem esperança, a esperança não pode florescer sem razão,
ambas associadas numa unidade marxista – qualquer outra ciência é sem futuro, qualquer
outro futuro é sem ciência‖. Em outros termos, o homem não é apenas objetividade e ciência.
Precisa sonhar, precisa ter seu espírito elevado a um alvo proeminente.
Bloch deseja ir além da realidade convencional. Não se contenta com a lucidez.
Precisa do entusiasmo. Precisa da dialética econômica, mas precisa da esperança ganhando
―chão, pés e mãos‖ no valor simbólico da dialética do novum, da linha de frente e da matéria,
pressupondo a sincera qualidade da esperança (BLOCH, 2006b, p. 456-7). Quer que o sonho
acordado envolva ―desde o sonho desperto do tipo cômodo, trivial, rude, fugaz,
despropositado e paralisante, até o tipo responsável, engajado na causa com ações precisas e
do tipo modelador da arte‖ (BLOCH, 2005, p. 89). A arte como antevisão do realizável, da
claridade real da humanização.
Pode-se argumentar que o sonho acordado pode ser ―opressivo‖. Bloch (2005, p. 90)
contrapõe: ―A casa do sonho desperto é mobiliada com representações autoescolhidas, ao
passo que, quem dorme, nunca sabe o que o espera além do limiar do subconsciente‖. Essa é a
diferença: no sonho diurno, o ego não fica tão vulnerável quanto no sonho noturno, o ego está
livre de censuras, os desejos ganham livre curso, a vontade de expansão do ego torna-se
―inabalável‖ (BLOCH, 2005, p. 93).
O que Bloch deseja é trazer os sonhos de mudança para o cotidiano e minar a teoria
burguesa de que os sonhos diurnos não passam de ―manobras apenas para o infantilismo e
arcaìsmo de uma bela brincadeira‖ (BLOCH, 2005, p. 98). Fundamentalmente, a mesma
desqualificação que a sociedade burguesa tenta fazer com a estigmatização da utopia. Ao
distinguir o sonho acordado da lembrança e ao vê-lo buscar antecipar a distância entre o
presente e o futuro, deseja iluminá-lo como ―verdadeira fome psìquica‖ da consciência
antecipatória (FURTER, 1974, p. 83).
Assim, Bloch procura se contrapor ao pessimismo, por ele identificado na psicanálise,
quanto ao homem a uma visão otimista, esperançosa. É uma crítica filosófica à busca de
106
Bloch não apenas leu A interpretação dos Sonhos de Freud, como os escritos de C. G. Jung, estes sem o
mesmo entusiasmo, considerando que, no caso de Freud, os sonhos são a catarse sublimada do inconsciente e
seus conteúdos recalcados. Compreendia a psicanálise como ―a ciência da regressão e nada mais‖, sendo que
, à diferença de Jung, definia Freud, como ―homem das luzes‖ que percebia a existência de um inconsciente
coletivo a conduzir o homem do nascimento à morte e que este inconsciente poderia ser o lugar para o
nascimento do novo (MÜNSTER, 2001a, p. 328-9).
199
soluções individuais para os problemas da civilização – leia-se Ocidental –, que ele considera
conservadora, não ao método terapêutico. A distância entre o homem que sonha desperto e o
que não sonha está não só na questão dos interesses da sociedade, mas na facilidade com que
o homem se deixa enganar ou que pensa poder enganar.
Bloch valoriza a imaginação humana e a capacidade de se desprender do presente
imediato, condição do êxito e do fracasso das utopias. O simbolismo dos sonhos é como que
parâmetro a partir do qual fatores irracionais e inconscientes na experiência individual e
coletiva se articulam e se tornam indispensáveis à experiência prática socialista.
A matriz do valor dos sonhos repousa no binômio sonho acordado-sonho dormindo.
Extraído da percepção de que os sonhos, principalmente diurnos e livres de regras, são os que
precisam se tornar lúcidos, ―mais claros, menos caprichosos, mais conhecidos, mais
compreendidos e mais em comunicação com o ocorrer das coisas‖ (BLOCH, 2005, p. 14). O
modelo binário avança para um modelo aberto, na medida em que sonhar, como pensar,
significa transpor e, partindo disso, Bloch procura captar o novo na existência em movimento
e conhecer a dialética instalada na história. O novo chama-se esperança autêntica, a esperança
sabedora do concreto, o velho é a esperança fraudulenta, leviana, corrompida pela força do
medo, pela ausência de alvo.
Enquanto o ser humano se encontrar em maus lençóis, a sua existência tanto
privada quanto pública será perpassada por sonhos diurnos, por sonhos de
uma vida melhor que a que lhe coube até àquele momento. No inautêntico e
ainda mais no autêntico toda a intenção humana é erigida sobre esse
fundamento. E mesmo onde provoca ilusões – como tantas vezes até agora,
ora cheio de bancos de areia, ora cheia de quimeras -, o fundamento poderá
ser de uma vez denunciado e eventualmente purificado somente mediante a
investigação objetiva da tendência e subjetiva da intenção (BLOCH, 2005, p.
15).
A linguagem dos sonhos é comum aos homem e à sua contradição, inclusive porque o
trabalhador dorme e sonha. Sonharia de forma distinta influenciado por uma sociedade em
que o lucro é o fim, nunca o homem. O contexto dos sonhos abre as portas para se combater o
antimarxismo, a resignação e a ausência de sonhos, conhecida pelo nome de destino, ―muito
pouco filosófico‖ por ater-se apenas ao sobreviver, sem ―apreensão do futuro como a
dimensão maior do presente‖ (BLOCH, 2006b, p. 452). Mas abre, igualmente, as portas para
a imaginação e a poesia como foram os sonhos motivados pelas pinturas nas paredes de
Pompéia, recuperados depois que a cidade foi destruída, que levaram a Roma lembranças de
200
festas e de uma época esplendorosa e trouxeram consigo ―o lúdico dos sonhos‖ (BLOCH,
2006a, p. 254-5).
A paisagem dos sonhos de beleza e da sublimidade como um todo
permanece na pré-aparência estética e, como tal, continua sendo tentativa de
aperfeiçoar o mundo, sem que pereça. Uma perfeição virtual dessas, objetivo
de todo iconoclatismo e, obviamente, ela própria perfurada na arte religiosa:
isto emerge, suo genere (por seu modo peculiar), geograficamente das
passagens dos sonhos amplamente expostas da pintura, ópera e literatura.
Com frequência, são mitologicamente vestidas, camufladas, porém nunca
permanecem decididas, cerradas nisso. Porque visam a felicidade humana,
uma condição de seu espaço estar bem colocado e ter sido bem realizado, do
idílico ao que ainda é místico (BLOCH, 2006a, p. 389).
A paisagem dos sonhos, para Bloch (2006a) procura uma medida de amadurecimento
e infinitude, convergindo para um mundo não alienado. Filosoficamente, segundo Bloch
(2006a, p. 390-1), o amadurecimento e a infinitude estaria na direção daquilo que não se
―deve evitar‖ e ao que se ―deve buscar‖, isto é, caminhar na direção do primeiro pensamento
livre, o pensamento grego, tentando esboçar corretamente os anseios do mundo. Por esse
mundo, passaria o equilíbrio dos ponteiros do viver bem e do verdadeiro como simplicidade.
Destino, a Moira grega, existe em Bloch para negar os cultos pré-homéricos da noite e
da terra, para negar a mitificação dos deuses e do poder inexorável da morte. Contra a Moira,
Bloch exibe a beleza da divindade da vida, a adoração, pelos romanos, da natureza e das
colheitas e o culto ao homem, que corresponde à humanização das divindades. Prometeu, o
demiurgo civilizador, foi o único herói grego a escapar dessa onipresença da Moira e se
colocar acima dos deuses, junto dos homens. Com ele, começam as rebeliões, e o cristal da
ordem se desfaz (BLOCH, 2006b, p. 288-97).
Consequentemente, com a rebeldia o homem afasta-se mais e mais do mundo da
repetição, do ―sempre-outra-vez‖, do mundo da filosofia assentada. A esperança do novum
não mais deixará de germinar. O oposto à ordem repetitiva encontra-se na fermentação dos
pequenos sonhos diurnos em que o desejo do sonhador tende a se tornar prático. Acontece
com o sonho acordado do burguês, com o sonho do pequeno burguês proletarizado e com o
sonho do trabalhador e do não-burguês. Importa a força do sonho de uma vida sem
exploração, uma vida que deva ser ganha, não a vida do ―molusco colado à pedra que precisa
esperar por aquilo que o acaso irá lhe levar‖ (BLOCH, 2005, p. 41).
Significa estar vivo, significa algo que, do interior, quer vir à tona de quem está
desperto. Corresponde, na interpretação de Bloch: em primeiro lugar, é característico do
sonho acordado não ser opressivo, embora a realidade seja, muitas vezes, asfixiante e torne
201
delirante o sonho diurno; em segundo, no sonho diurno, o ―eu‖ encontra-se desperto e não
encontra censuras, salvo os obstáculos exteriores; a terceira característica do sonho desperto é
que o sonhador não se encontra solitário como no sonho noturno, podendo influenciar e
mobilizar outros sonhadores; e, por último, o sonho diurno está aberto ao mundo, não
necessitando de qualquer escavação, qualquer correção, desconhecendo qualquer medida.
Às vezes, há uma alternância entre o sonhador e o devaneador. Por isso, Novalis,107
segundo Bloch (2005, p. 101) entendia cada sonho como ―um rasgo significativo na cortina
misteriosa que com mil dobras se insere em nosso interior‖. As dobras podem ser vistas como
imbricação entre os sonhos noturnos e diurnos, prelúdio da comunicação entre o arcaico e a
fantasia desperta, e evidência da presença do passado no futuro, do que é insuficientemente
audível e do que se encontra parcialmente encapsulado.
O correlato dessa multiplicidade de características oníricas situa-se no conceito da
consciência. E essa, no entender de Bloch (2005), é pontilhada de obscuridades, sitiadas na
fronteira do presente, também mergulhada no esquecimento ou no relativamente inconsciente.
Mas não se limitava à noção de que existisse um intercâmbio perfeito entre os sonhos
noturnos e diurnos, como se um estivesse imerso no outro, como pensava o Romantismo de
Novalis e, também, o Surrealismo e o Expressionismo. Os sonhos diurnos são preponderantes
e, geralmente, saem para ―o campo da consciência emancipadora‖ (BLOCH, 2005, p. 104).
Circulam, no espaço dos sonhos, demarcando e demolindo os movimentos de
autoilusão, formando a mediação do homem do presente e do homem do futuro (BLOCH,
2006b, p. 38-9). ―Os homens apequenam-se quando o seu propósito é apequenado; em
contrapartida, sendo um propósito maior e mais alegre, ele se torna inevitável num mundo que
se depara apenas com a escolha entre o pântano e a reconstrução enérgica‖ (BLOCH, 2005, p.
438).
A consciência é ―severa‖ (BLOCH, 2005, p. 56). Gérmen das religiões leva o ego (os
direitos do mundo interior) ao embate com o superego (o defensor do mundo exterior), está na
origem da busca do passado, das culpas, é o elemento básico da superestrutura. Indissociável
do léxico de Bloch, eleva o homem ativo à posição do homem que rompe ―os grilhões da
natureza animal e da contemplação para modelar, ao front do processo do mundo‖, ―muito
pouco refletido do ser, da matéria movida, utopicamente aberta‖ (BLOCH, 2005, p. 194).
O problema da consciência sugere que a ―esperança‖ estimula a crença em uma
―potência dormente‖ no homem; uma ―energia que paira sobre a carne da nossa consciência
107
Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (1772-1801), representante do romantismo alemão do final do
século XVIII.
202
[...] a alavanca a partir da qual o mundo pode ser tecnicamente erguido dos seus gonzos‖
(BLOCH, 2006a, p. 239). Há futuro em tudo isso: Simmel referia-se à ―pressão vital como
energia do sujeito‖, Leibniz referia-se à energia que ―continuamente fermente‖ (inquietude
poussante) e Aristóteles a objetivava na forma de ―enteléquias‖ (BLOCH, 2005, p. 236-45). É
um campo de investigação muito maior do que aquele ditado pelo real.
É com especial dificuldade que o olhar interior projeta uma luz sobre si
mesmo. Aqui há uma resistência bem própria dentro da resistência geral
referente ao objeto: a vida psíquica dá uma impressão fugidia, produz uma
sombra. Quanto tempo demorou apenas para se perceber que essa vida
percebe a si mesma, que ela é, portanto, uma vida consciente. E os processos
subconscientes são denominados como tais apenas há pouco mais de 200
anos. Em razão disso, pode-se ao máximo alegar que os processos
subconscientes não são imediatamente perceptíveis, que são deduzidos a
partir de sinais, que seu conteúdo é matéria do inconsciente. Contudo, mais
difícil de entender é por que, após a descoberta do consciente e até do
subconsciente, o ainda-não-consciente passou desapercebido tanto tempo.
Pois ele não precisa ser descoberto a partir da rememoração, ele se dá de
modo imediato, no ato de pressentir excluindo o que nele sucede em termos
de conteúdo (BLOCH, 2005, p. 132).
Bloch está fazendo a distinção entre o subconsciente e o que ainda não é consciente
que precisa ser descoberto. Não se trata, pelo seu ―caráter ―flutuante, aberto e imaginativo‖ do
inconsciente, vale repetir (BLOCH, 2005, p. 132), mas de algo oculto na obscuridade humana
até hoje. Não apenas na experiência pessoal, mas coletiva. Não se subordina à consciência
existente, nascida do ―cálculo diferencial, com seu pendant na alma‖ (BLOCH, 2005, p. 133).
O clarão do novo é reflexo dessa passagem do sonhar à ação consciente e caracteriza-
se pela abertura para a vitalidade do novo. Mas é preciso atentar para a incompletude do saber
da consciência e, portanto, para a vontade de recorrer aos elementos conhecidos para se
comunicar com o que é desconhecido. Ação não vale como sonho, nem como discurso ou
pensamento. O novum está envolto na necessidade de transformar a vida para melhor. Esse é
o momento em que o sonho se legitima e se transforma em criação, só atingível na sociedade
socialista (BLOCH, 2006b, p. 248).
203
4.3 A TRAGÉDIA DA MORTE E A UNIDADE INDIVIDUAL COLETIVA CHAMADA
CONTINUIDADE
Se em sua origem o sonho desejante desconhece qualquer medida, tal qual o
sonho noturno, por outro lado, ao invés dos espectros noturnos, ele tem um
alvo, e vai em sua direção.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2000, p. 100)
Sonhar com o novum é sonhar com a rebeldia. Como ilustração, Bloch recorre à
dialética hegeliana, o ser revelado por inteiro, pelo pensamento, pela ação e no discurso
(KOJÈVE, 2002, p. 421-2): o escravo que não mais tema a morte e enfrenta o senhor. Bloch
enfatiza a dialética marxista – o proletariado abolindo a si próprio pela abolição da sua
antítese, a burguesia e a propriedade privada (MARX, 1982, p. 459) –, considerando que à
burguesia da Revolução Francesa se sucederá à sociedade sem classes da Revolução
proletária. Entre um extremo e outro, Bloch não se limita ao humano concebido.
Ele quer romper os limites da dialética do ser e do proletariado em oposição à
burguesia, quer romper a lógica estabelecida e compreendida, quer mudar a estrutura do
pensamento e, portanto, a estrutura do ser. Derruba as concepções de Freud, Jung e da
filosofia anterior a Marx. Considera que a psicanálise já nasceu velha por ter surgido em meio
à classe burguesa e se voltar para a burguesia. O marxismo, ao contrário, nasceu
rigorosamente verdadeiro por entronizar a história do homem no futuro, sem senhores nem
escravos. Difere-se da filosofia anterior a Marx pelos componentes de totalidade e pela ideia
de transformações a partir da prática.
Ao escrever The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), Bloch faz um inventário do
pensamento psicanalítico e lembra que Freud ensinava que era durante os sonhos, dormindo,
que o inconsciente se tornava acessível, enquanto a voz de Eckart falava da necessidade do
homem ter acesso àquilo que estava escondido, aparentemente fora do seu alcance (BLOCH,
2000, p. 188-95).
Passando à prática, em O Princípio Esperança, Bloch procura desvendar os segredos
por trás dos sonhos humanos. Os jovens, de ―sonhos idealistas, de uma imaturidade peculiar‖,
e os sonhos da gente comum, a ―maioria é muito covarde para o mal e muito fraca para o
bem‖, são os sonhos mais frequentes (BLOCH, 2005, p. 36-7). Como também procura
desvendar, sem distinção, sonhos de homens e mulheres que podem ―enfrentar dragões‖ caso
204
se sintam ameaçados, porque, diferentemente dos ―arbustos‖, não se contentam em ficar no
mesmo lugar (BLOCH, 2006b, p. 12-3).
Os sonhos imaturos acionam a mitologia do homem salvador. Para os ―tolos e
atordoados‖, aqueles que se guiam por palavras como ―ávido‖, ―conhecedor‖, ―participante‖,
―poderoso‖, ―pleno‖, aqueles que espreitam luzes no final do túnel no ―céu burguês‖, é
comum verem em Hitler a alternativa para as crises (BLOCH, 2005, p. 38). Suas paixões são
cambiantes. Há instinto fascista para a morte, em parte direcionado para a ―morte em
batalha‖, em parte pela ―falta de perspectiva da vida burguesa‖ (BLOCH, 2005, p. 53).
A dificuldade de despertar, impede que vejam o quanto se deixam enganar pelo desejo
ansioso, pela mentira, que nunca dura muito, pela ―tagarelice‖ e a ―lábia desleal‖, quando a
mudança, de verdade, exige trabalho, e ―trabalho árduo‖ (BLOCH, 2005, p, 48). A partir
disso, é que a palavra necessidade passa a ser direcionada para um alvo, que o desejar se torna
exigente, que a imaginação se torna um ideal.
Mas o que o mobiliza o personagem oculto dos sonhos individuais é a dualidade entre
a vida e a morte. Como é comum invocá-la como ―irmã do sono‖, pode ser considerada, e
tentativas não faltam nesse sentido, como um ―sono feliz‖, uma alternativa homogeneizada
para escapar às adversidades da vida. Leibniz, segundo Bloch (2006b, p. 228) comparava a
morte ao sono. Lessing108
também, só que atribuindo à alma a capacidade de entrar num novo
corpo como se reacendesse a ―tocha‖ da vontade insaciável da vida.
A linha de pensamento sobre a morte como sonho e sono muda no século XIX que
ocupa-se com o retorno à natureza, mas Hölderlin, com A Morte de Empédocles (Tod des
Empedokles) já celebrava o retorno da velha unidade entre o ser humano e a terra, como
lembra Bloch (2006b, p. 234).
A morte, em Bloch (2006b) é a não utopia. ―Cova, escuridão, podridão, vermes tinham
e têm, sempre que não são reprimidos, uma espécie de forma retroativamente
desvalorizadora‖ (BLOCH, 2006b, p. 189). O tempo dinâmico, não cìclico, diferente do
tempo passado, circular, evidencia ainda mais o problema que não se resume, em Bloch, à
uma descrição caustica: ―As mandìbulas da morte esmigalham tudo, e a goela da deterioração
come toda e qualquer teleologia; a morte é o grande expedidor do mundo orgânico e, mas
para a sua catástrofe‖ (BLOCH, 2006b, p. 190).
108
Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), expoente do Iluminismo alemão, defensor do livre pensamento e da
tolerância religiosa, em Bloch se apoia para discutir o tema da metempsicose (do grego: meta: mudança + en:
em + psiquê: alma), a transmigração da alma de um corpo para o outro, no livro III de O Princípio
Esperança.
205
É por isso que Bloch condiciona a capacidade de convivência com a morte ao modelo
de continuidade da vida e estes variam com a fé nas religiões e no sentimento que cultiva as
sociedades. No capitalismo, diferente do socialismo, a única coisa que a classe burguesa tem a
oferecer seria o niilismo diante do desespero provocado pelo temor do fracasso, pela
desesperança. O que resta é a morte, alternativa ante a ausência de possibilidade de futuro.
Tratar da morte é tratar da vida. A morte não apavora Bloch (2006b), mas, sim, o
motiva para a falar dos sonhos humanos, de Dioniso, da roda da vida da Antiguidade ao Livro
dos Mortos no Egito, do cristianismo à filosofia pagã, do apocalipse bíblico à libertação
humana do destino. ―Havia no antigo Israel culto aos ancestrais e aos mortos, o que pressupõe
a fé na continuidade da vida‖, escreve Bloch (2006b, p. 208), ―isto no entanto ainda fazia
parte da magia herdada dos cananeus e não da fé piedosa‖. Havia incerteza quanto ao
julgamento dos mortos e o desejo de viver bem e muito na terra traduzia a duvida quanto à
ressurreição de todos os seres humanos desde Adão. O apocalipse, ao invés de servir à
dominação da Igreja, representava a utopia do dia do juízo final e a redenção da virtude contra
o pecado.
Se o problema da morte for ultrapassado pelo homem e não mais se associar o drama
da morte individual à morte da sociedade, as imagens do nada e do fracasso diante da morte,
os sonhos acordados ganhariam novos ares. É um erro pensar que com a mudança de postura
da sociedade diante da morte – e Bloch se refere ao medo de morrer do homem na sociedade
capitalista – a filosofia do novo não ocuparia, não sem dificuldades, a filosofia do nada e da
repetição.
E a morte deixaria de ser, para usar uma expressão de Bloch, o ―cinzel da tragédia‖,
porque o homem deixaria de cultuar os heróis e a tragédia das suas mortes, se libertaria de sua
dimensão mortal para se ver como continuidade uns dos outros, como o rio da sua foz, os
sonhos e a luz e a obscuridade (BLOCH, 2006b, p. 249). Não haveria mais comoções, não
haveria mais a pátria alegórica, como dizia Epicuro desde a Antiguidade.
A tragédia da antiguidade, obviamente, consegue passar sem o Hades e
também o campo de asfódelos dos bem-aventurados estaria nela deslocado; a
tragédia moderna não implica um céu, mesmo que mínimo. Por isso, pode
remanescer também o gênero do consolo utópico-trágico frente à morte,
após terem sido descontadas as concepções de fé de cujo non omnis
confundar ainda nele se cumpre, indubitavelmente, a receptividade na morte
para a não morte. Portanto o desaparecimento trágico, ou antes, a plenitude
da vida em que ele se dá, ao menos após um tom dourado à bandeira preta da
morte, em períodos menos transcendentes (BLOCH, 2006b, p. 254).
206
No mundo contemporâneo, viver exige transcender a obscuridade da noite. Criar o
paraíso dos vivos, cultuar os mortos com a dignidade histórica que merecem, mas sem
imaginar que eles, os mortos, estão vivendo num mundo onírico, fantasioso, e que um dia
voltarão. Em Israel, citado por Bloch (2006b, p. 208-9) a angústia da morte não estava
revestida de sonhos. Povo tão imanente quanto os gregos, vivia com intensidade
―incomparavelmente maior‖, voltado para as coisas futuras, as finalidades da vida, a
continuidades das gerações.
A fé na continuidade da vida servia para diminuir as dúvidas quanto à justiça de Deus
sobre a terra, o que não significa que não se acreditasse na ressurreição. Todavia predominava
a ideia do passar bem, do empurrar o fim para diante, o ―distante mundo subterrâneo‖
(BLOCH, 2006b, p. 208). O passar bem estava associada aos princípios éticos o que os
egípcios consideravam necessário para se ter uma boa morte, mas sem que isso significasse
decifrar o hieróglifo da morte. Contra a morte, o homem nada pode fazer, salvo ter uma vida
esclarecida e dedicada à imortalidade sem imortalidade, isto é, à construção do bem comum.
4.4 UTOPIA DA VIDA E DO FUTURO SEM NEGAR O INEVITÁVEL DA MORTE
COMO RETORNO À NATUREZA
O morrer é empurrado para longe, não por se gostar tanto assim de viver,
mas também não que se gostasse de olhar ou permitir um olhar para algo
vindouro, nem mesmo nesse ponto bem pessoal.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 188)
Marx traduz na Filosofia Epicuriana que o homem sábio não pensa na morte, mas na
vida porque os epicuristas são ―lógicos‖ e enriquecem o ―espìrito‖ com conhecimento
(MARX, 1982, p. 812). São diferentes, por exemplo, dos céticos que projetam o pensamento
na ―perdição‖, o ―não ser do pensamento‖, e, em consequência, se distanciam da filosofia
prática de Epicuro, liberta de todo preconceito (MARX, 1982, p. 814). Assim, a filosofia
epicuriana e, depois, a filosofia estoica foi a ―felicidade do mundo‖ e, essa filosofia afastava o
homem da ―suprema‖ ordem dos sábios e do pensar na morte (MARX, 1982, p. 819-23). Em
Diferença entre as filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro, Marx (1982), lembra que
em Epicuro existe a diferença entre o ser ―perecìvel‖ e o ―eterno‖ e que a diferença encontra-
207
se no conteúdo filosófico de cada individuo: pode-se ter medo da morte, mas ser eterno
(MARX, 1982, p. 75-5).
Bloch (2006b) retoma a discussão, traduzindo-a na ―unidade individual-coletiva da
chamada solidariedade‖ que se estende do passado ao futuro. Censura a cultura burguesa
pelas ―manias românticas do sentimento burguês individualista‖ e considera, como o Epicuro
de Marx, a ―substância‖ humana da ―consciência solidária revolucionária‖ como resultado da
mediação entre o sujeito e a natureza, de ―onde vem a morte‖ (BLOCH, 2006b, p. 257). Estar
atento ao ato de morrer, como se fosse uma ―revelação‖, em nada obstrui o ―prazer de viver‖
e a eternidade da utopia (BLOCH, 2006b, p. 259- 65).
Esse destemor diante da morte seria o ato fundador de um novo mistério: quem é na
realidade o ―humano desconhecido‖, ou seja, o ―humanum secreto ainda oculto para si
mesmo‖, o homem que com a utopia destruiria a ―ficção de um Deus criador e a hipóstase de
um Deus no céu‖, mas que mantém a distância que separa a sua superstição da sua ―latência
ainda malograda‖ (BLOCH, 2006b, p. 281-3). As observações a respeito do homem e suas
contradições, encaminham Bloch para o judaísmo e o cristianismo, que ele considera como
―as religiões mais elevadas‖ e, mais uma vez, ao conhecimento: se o conteúdo humano se
manifesta, a boa nova das religiões se concretiza e, com isso, Deus desaparece (BLOCH,
2006b).
Deixado de lado a tragédia dos mártires antigos, deixando para trás a mitologia do
além e qualquer utopia vinculada ao mito e de elucidação do destino, o elemento decisivo é o
homem como ser continuado no mundo e não o homem que ao morrer extingue com ele a
sociedade. Esse homem, que é o próprio ―eu‖, não o homem que é o ―nós‖ representa o
homem sem mãos no futuro. Bloch encontra a substância dos sonhos e vontades no homem
comunista, o homem livre que não se apresenta como ―individualista‖. Encarnação da
consciência de classe, não alimentaria panteísmos, nem fé abstrata e imagina a eternidade
como se fosse sua.
A morte do homem comunista, como sua vida, não se esgota nele: a morte é uma dor,
mas o ―herói vermelho‖ mantém uma postura ereta, sem conexões com a mitologia teológico-
humana. Sabe que sequer é um mártir, mas um ―lutador perseverante‖ que representa não uma
individualidade do gênero burguês, e sim, o ser que expressa o individual-coletivo ou a
solidariedade, que se estende, como um arco, do passado ao futuro.
208
Assim sendo, os seres humanos futuros, em favor dos quais o herói assim se
sacrifica, por sua vez, terão morte bem mais simples. A sua vida não será
mais abreviada de morte violenta, foi-se a própria angústia frente à vida, que
a classe dominante causava, não mediante a guerra, por último e de modo
abrangente. Contudo, adiada como quer que seja, resta a morte natural, que
não pode ser tangida por nenhuma libertação social (BLOCH, 2006b, p.
257).
É imenso o temor da morte. Até mesmo na Arcádia e nas boas novas não hostis aos
humanos, como na Bìblia, ―a dança da morte‖ está presente, atemoriza e fomenta o mistério
da existência nas religiões. Bloch recorda que os gregos foram ―os que mais deixaram o
cadáver envelhecer, passar para a condição de sobra‖, como cita epitáfios em Pompeia, que
dizem: ―Após a morte não há nada: o ser humano é apenas aquilo que vês‖; e ―Amigo que lês
isso, vive uma vida boa, pois após a morte não há riso nem alegria‖ (BLOCH, 2006b, p. 194).
Mas, antes de entrar nas descrições da morte no mundo onírico de contornos
desejantes – ―os maus num mundo imutável, sem saìda do sonho angustiante; e os bons na
doçura sem forças, mas também sem esforço de uma vida imaginária‖ –, Bloch deixa claro,
contudo, que a noite faz parte também da vida e que não são poucas as pessoas bloqueadas no
―seu próprio Hades‖ (BLOCH, 2006b, p. 194).
A dissonância entre a prisão do Hades em vida e a morte está na existência de
alternativas para a vida. Não há lugar no mundo real para o renascimento de Dioniso,
metaforicamente estraçalhado pelos titãs, como não há lugar para que Dioniso liberte os
mortos do Hades sem que eles precisem voltar ao mundo das sombras. Como na Antiguidade
tardia, há como gritar, com medo e angústia, diante da vida, mas não há alternativas contra a
voracidade da morte. Há, sim, como escapar da angústia da vida e participar do princípio ao
fim do evento humano.
A utopia não está mais no céu da religião, mas na Terra. A morte do príncipe André
Bolkonski (Guerra e Paz de Tolstoi), gravemente ferido no campo de batalha de Austerlitz, é
a imagem do desejo de morrer como herói. A morte como destino, não como evidência de
transitoriedade. É o que Bloch exemplifica com o caráter épico dos deuses homéricos, de
―franca jovialidade‖ – Palas Atena, Zeus, Apolo, Ártemis – e, também, no desconhecimento,
por Homero, de Dioniso, que escondem, nas suas entranhas, a ―Moira cega‖, oriunda do culto
pré-homérico da noite e da terra, e o ―poder natural da morte‖ (BLOCH, 2006b, p. 291-2).
Na visão oposta, naquela que nunca existiu em nenhuma religião, a sociedade
burguesa pode matar o revolucionário, não a ―consciência solidário-revolucionária‖, aquilo
que alimenta e faz a corrente da história prosseguir, impiedosa, não se deixando apagar com o
209
passar dos séculos (BLOCH, 2006b, p. 257). O homem é livre e não se deixa influenciar por
falsos messias ou falsa visionaridade, falsos feiticeiros ou pela mística da ressurreição.
Vencer o sentido sacrificial da morte, conjectura Bloch, significa ultrapassar o plano
ilusório de vê-la como redenção ou promessa de ressurreição. Simboliza tratar a vida não
como ilusão, mas como realidade, ver o espírito humano na sua grandeza. A tentativa de
compreensão do homem que se movimenta, fundamenta, em Bloch, o gérmen do ainda-não-
atingido, preenche o desconhecido instante do ser humano, reflete a eternidade, não a
provisoriedade, dos sonhos.
A morte, ―irmã do sono‖, não se torna mais a negação da utopia e de suas finalidades,
tratando-se de uma guinada no modo de encarar o lado obscuro do futuro e de discernir que a
história, como a memória da humanidade, é um todo, não só um final orgânico (BLOCH,
2006b, p. 238-9). Em cada homem, independentemente do modo de sonhar, Bloch encontra
uma ―virtude lìmpida‖, que conciliará a sua imagem difusa com a prática humana, real e
potencial e concilia sua memória com a memória de todos os outros homens, não pintando a
morte com a aparência de bravura ou simplesmente procurando negá-la (BLOCH, 2006b, p.
37). Não importa se é capitalista ou socialista, o homem sonha dissipar ―a ideologia da ilusão‖
em que é formado. E, como assevera Bloch: ―A morte não o anula, mesmo que a sua vida e as
suas aspirações tenham sido espezinhadas‖ (BLOCH, 2006b, p. 250). Pois as ideias
sobrevivem ao homem. Não morrem, são ungidas pela eternidade.
4.5 DIÁLOGOS DOS SONHOS E A CRÍTICA À PSICANÁLISE
O conteúdo do sonho noturno está oculto e dissimulado, enquanto o
conteúdo da fantasia diurna é aberto, fabulante, antecipador, e seu aspecto
latente se situa adiante.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 100)
Os sonhos, dormindo, podem ser acessórios se comparados aos sonhos acordados, mas
são indispensáveis para a imanência do ―ainda-não-consciente‖. São sonhos que denotam as
imensas possibilidades do socialismo, mas igualmente as imensas dificuldades de purificação
da sociedade, da arte de pensar e agir, da extinção das classes, do diálogo do homem com a
natureza. Não são obstáculos intransponíveis, mas cujo teor não podem ser ignorados pelo seu
conteúdo real. Não só como grito de alerta, mas como participação receptiva do homem em
210
vista da história humana como satisfação das necessidades. ―O mundo não é nenhum museu e
ainda não é uma catedral: ele é um processo‖ (BLOCH, 2006b, p. 411).
O que interessa a Bloch, na crítica à psicanálise, é transpassar o limite da sociedade
burguesa de espelhar ―os sonhos diurnos como meros prelúdios dos sonhos noturnos‖
(BLOCH, 2005, p. 89). O sonhador diurno não se encontra dormindo de olhos abertos quando
traz para o cotidiano as suas fantasias. Ele precisa ser avaliado de modo específico, porque,
acordado, o homem sonha com o trivial ao engajamento, dos seus anseios ao ambiente que
vive ou deseja viver. O sonho noturno é regressivo, mas não deixa de se comunicar com os
sonhos diurnos.
Bloch (2005, p. 81), para se tornar mais claro, cita Freud: ―Os sonhos são eliminação
dos estímulos (psìquicos) perturbadores do sono pela via da satisfação alucinatória‖. O sonhar
dormindo é uma barreira que limita o saber à imobilidade, aborda o conhecimento como
acontecimento pretérito. Trata-se de uma repetição que, na esfera da vida, apresenta o que foi
como se fosse o novo, quando tudo está previamente combinado em fórmulas, imutáveis, sem
lugar fora dos espaços previamente delimitados, para a superação de conteúdos ou o
processual orientado para o objetivo de mudança.
À noite, o ser humano oprimido finalmente relaxa, tornando-se praticamente
livre. Pode recuperar-se, e pode fazê-lo porque também um trabalhador se
cansa. Obtém tempo livre após o fardo e o labor do dia, para se alimentar e
lubrificar como uma máquina. Horas livres após o trabalho bem como o
domingo significa recuperação da força de trabalho. O ser humano nunca é,
na sociedade de produção, um fim, mas sempre um meio (BLOCH, 2006b,
p. 456-7).
No sonho dormindo, nada de novo acontece, o inconsciente fala de modo cifrado, o
sonho protege o sonho e o sonhador nem mesmo compreende os simbolismos que disfarçam
seus desejos. Anda-se em círculos. Os sonhos noturnos esgotam-se no desejo. Não esgotam as
fantasias. São solitários e não proporcionam o engajamento coletivo. São sinônimos de
recordar e ocultar, encolhem em lugar de ampliar as possibilidades de mudança do mundo.
Correspondem ao sonhar desejante em que o homem comum se sacia sem angústia, sem
censuras, sem obstáculos. São sobras do dia, de um ―eu‖ enfraquecido, em que o mundo
exterior, com suas ―realidades e propósitos práticos, está bloqueado‖ (BLOCH, 2005, p. 81).
Como o ―eu‖ adulto encontra-se enfraquecido e retorna à infância, os sonhos não são
de puro desejo como os das crianças, que não conhecem censura, mas sonhos ―desfigurados e
mascarados, mostrando-se simbolicamente disfarçados‖ (BLOCH, 2005, p. 81). Nem mesmo
211
aquele que sonha é capaz de decifrá-los, o que explicaria a resistência psicanalítica dos
sonhos e, segundo Bloch, o empenho de Freud para interpretar os sonhos pela sua simbologia
sexual.
No sonho diurno, é diferente. O ego competente se reporta aos demais, não cultua a
solidão de quem dorme, mantém-se atento a tudo. É um sonho de despertar. Sonha-se com a
―exterioridade de sua interioridade‖ (BLOCH, 2005, p. 81-93).
Como se sabe, a descoberta mais própria de Freud é a de que os sonhos não
são bolhas de sabão, obviamente tampouco oráculos proféticos, mas se
situam no centro entre os dois: exatamente como realização alucinatória de
desejos, como realização fictícia de uma fantasia desejante inconsciente. E o
tema sonhos de uma vida melhor inclui, parcialmente, com cuidado e
significância, também os sonhos noturnos como sonhos desejantes, também
eles são uma parcela (ainda que deslocada e não muito homogênea) no
gigantesco campo da consciência utópica (BLOCH, 2005, p. 80-1).
O sonho acordado é, para Bloch, a pulsão do autoencontro, os tempos de mudança, a
juventude do tempo. É como a música: o elemento utópico em ebulição. Como o ópio e o
haxixe, os sonhos noturnos simbolizam o afastamento radical da realidade. Refletem a
―regressão‖ e a ―ilusão projetiva‖, respectivamente (BLOCH, 2005, p. 94). Não significam
avanços, mas loucura e paranóias, porém não deixam de retratar o desejo de sonhar com um
mundo melhor. São ―corujas de fogo de uma Minerva louca, mas cheia de vontade de fazer
luzir a aurora‖ (BLOCH, 2005, p. 95).
Na literatura, os sonhos diurnos encontram moradia nos ―palácios árabes, repletos de
fadas, feitos de ouro e jaspe‖ (BLOCH, 2005, p. 95). São exagerações paranóicas, diferentes
dos sonhos de mudança, diferentes dos sonhos de uma sociedade nova. A música seria a
metáfora do despertar.109
Como que para seguir os passos dessa mistura de realidade e
fantasia, Bloch caminha pelas reminiscências da Cítara da Antiguidade e do Renascimento,
pelos jardins mágicos do gótico-sarraceno, e chega ao esplendor da ópera otimista que, como
109
A mítica flauta de Pã é um instrumento fácil de manejar, de origem pastoril, enquanto Haydn, Mozart,
Händel, Bach, Beethoven, Brahms e Wagner correspondem à ascensão da burguesia. Situam-se na percepção
do vir-a-ser, além da burguesia, mas são emblemas da pompa burguesa. Expressam a revolução do espírito.
Para eles, a música, até mesmo na morte, é composta do material da esperança, porque emerge e ganha
dimensões colossais no componente de alienação que o capitalismo procura acolher, simultaneamente, ―o
múltiplo sofrimento, os desejos e os pontos luminosos da classe oprimida‖ (BLOCH, 2006a, p. 146). A
música é o que existe de ―maior semelhança possìvel com o ser humano‖ (BLOCH, 2006b, p. 153).
Independentemente da percepção de classe, por trás da harmonia ou das desarmonias, dissonâncias e
cadências, a música, sendo na visão de Bloch a ―mina subterrânea da alma‖, identifica o homem com a
natureza (BLOCH, 2006b, p. 155). Pela filosofia da música, Bloch procura a medida humana. Sua
argumentação não é contra a expansão do desejo humano, mas contra a ambição ilimitada.
212
nos espetáculos de Wagner, implica saltar da estrutura sinfônica do seu tempo para o futuro
(BLOCH, 2006a, p. 354-6).
Os sonhos diurnos e noturnos, por não se excluírem, ocupam lugar privilegiado nas
pulsões de vida blochiana. Há, em ambos, relações que não se extinguem e que se recriam na
filosofia da ação. A vida psíquica sempre está enquadrada simultaneamente pelo noturno e
pelo matinal. ―O sonho noturno se move dentro do esquecido, reprimido, enquanto o sonho
diurno se move naquilo que de fato nunca havia sido experimentado como presente‖
(BLOCH, 2005, p. 116).
O desafio da filosofia blochiana aparece, assim, conjugado na filosofia romântica
revolucionária de interligar a noite ao dia, o passado ao utópico, o ―porão do arcaico‖ e a
―fantasia desperta‖ – o Ulisses de James Joyce, ―extremamente pós-romântico e
extremamente não-romântico‖, ao Ulisses humanista de Dante (BLOCH, 2005, p. 102-3). Em
Joyce, o ―porão do inconsciente‖ do sonho noturno se integra ao sonho diurno, mas o que não
foi quitado no passado só é resolvido se iluminado pela fantasia do presente.
A elaboração prática é a ordem do dia. Os assuntos humanos estão nos sonhos diurnos.
Os tesouros do solo noturno se revelam fugazes. Não se concretizam. O corpo que dorme está
obscurecido, somente o corpo acordado pode sentir. ―Não é o utópico que capitula aqui diante
do arcaico, mas o arcaico que ocasionalmente capitula diante do utópico‖ (BLOCH, 2005, p.
104). Acrescentando ao objeto de estudo, proporcionado por Ulisses de Joyce, Bloch interliga
a música ao homem. Não apenas o homem futuro, mas ao homem presente. A música une os
homens. Preenche as imagens da afetividade, mas também da rudeza. Como os sonhos
acordados, propõe mudanças.
Todos, sonhos acordados e música, tendo a metamorfose como o elo vital, porque, se
não há metamorfose, não há mediação entre o humano e o que não é humano no homem. Não
haveria também aliança entre o homem e a natureza, nem sequer a utopia a conquistar. O
simples começo da metamorfose permite vislumbrar luminosidade no futuro: ―a concretude
entre os humanos, isto é a revolução social‖ (BLOCH, 2006a, p. 250). As metamorfoses
podem ser tão infinitas quanto o homem e seus sonhos.
213
4.6 LIMITES E POSSIBILIDADES DO SONHAR ACORDADO
O olhar para a frente se torna tanto mais aguçado quanto mais claramente
se torna consciente.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 143)
No sonho desperto, as possibilidades não têm fim se o homem tiver desejos e vontade
de viver. É verdade que para viver, se o sonho for revolucionário, o homem, ao por em
marcha o processo social, não mais poderá ficar amarrado aos ―preconceitos, má consciência
e superstição‖, mas justamente por isso ele ―jamais exigirá que os sonhos para adiante fiquem
para trás‖ (BLOCH, 2006b, p. 451). Quem sonha acordado com a vida melhor, não tema a
práxis, nem a essência real do conteúdo da esperança. É esclarecedor a reprodução desta
citação de Bloch (2006b), extraída do The Spirit of Utopia:
O desejo edifica e cria coisas reais: nós somos os únicos jardineiros da mais
misteriosa das árvores a crescer. O ímpeto de tornar-se conforme consigo
mesmo demanda a alma; ela é a solução teórica para o cristal integral da
realidade renovada; ela é o espírito capaz de abstrair mudando o querer,
capaz de incrementar criativamente o pensamento, voltado com a força de
um imã na direção do futuro do mundo, que constantemente lança seu olhar
na nossa direção e que unicamente para escolha irresoluta reserva de
maneira igualmente indistinta tanto o mal quanto o bem. Trata-se de nós,
mas não sabe para onde vai; nós mesmos somos a única alavanca e o único
motor que restaram; a vida exterior e revelada para; mas a ideia nova
finalmente eclode e segue para a aventura plena, para o mundo aberto,
inacabado, cambaleante, para assim, com toda a sua força, cingida com
nosso sofrimento, com nossa intuição teimosa, com o tremendo poder da
nossa voz humana, designar Deus e não descansar antes que tenhamos
subjugado nossas sombras mais íntimas e que se tenham realizado o
cumprimento daquela noite oca, fermentadora, em torno da qual ainda estão
construídas as coisas, pessoas e obras (BLOCH, 2006b, p. 457).
O desejo é, em Bloch, o desenvolvimento dialético da possibilidade. O desvendar do
―humanum secreto, ainda oculto para si mesmo, distinto do humanum conhecido e do seu
entorno imanente pelo salto do totalmente outro‖, é a esperança mantida em aberto (BLOCH,
2006b, p. 281). É uma ideia de ―salto final‖ contida no movimento quiliastas, na utopia do
Reino, irrompendo com Gioacchino di Fiori, por isso presente na utopia social de Cristo.
Corresponde à elaboração de uma visão revolucionária da vida que ―destrói a ficção de um
Deus criador e a hipóstase de um Deus no céu‖, mas não destrói o espaço de crença no
homem como sendo este o verdadeiro Deus (BLOCH, 2006b, p. 283). O pressuposto é que o
214
homem pode entusiasmar-se pelo futuro e mudar a visão da vida. Usar a consciência da
história de Deus para mudar a sua consciência.
A existência de Deus, sim, Deus de um modo geral como um ente é
superstição; fé é unicamente a voltada para o reino de Deus messiânico –
sem Deus. Em consequência disso, o ateísmo é tão pouco inimigo da utopia
religiosa que constitui o pressuposto desta; sem o ateísmo o messianismo
não teria lugar (BLOCH, 2006b, p. 283).
E assim, Bloch dedica tanta ênfase à capacidade humana de mudança que, a despeito
das dificuldades, não parece haver como refutá-la. Contudo, permanece a questão de saber
que bases existem para se acreditar que o homem possa aprender a decifrar a obscuridade do
instante e, além de compreendê-la, dedicar-se à ação transformadora. O salto do homem para
o totalmente-outro surge, então, como imagem de uma existência possível, mas que ainda não
se tornou real (BLOCH, 2006b, p. 372-3).
Nada e tudo, caos e reino, estão nos pratos da balança da área de projeção
outrora religiosa; e é o trabalho humano na história que exerce uma
influência de peso no prato do nada ou então do tudo. Sim, foram
antecipados no espaço outrora religioso não só a ordem relativa à esperança
do reino, mas também o caos que indica o caos ameaçador; e ele continua
presente no campo de projeção (BLOCH, 2006b, p. 381).
Dessa dualidade, Bloch infere que a realidade contém o suficiente de elementos
destruidores, mas ainda não uma vitória do nada. Ao contrário, ―o melhor está bem próximo,
onde não se supõe que esteja‖, faltando, isto sim, o retorno a um ponto culminante: o
entendimento pleno do ―aqui-e-agora‖ (BLOCH, 2006b, p. 383). Se o tempo e o instante
nunca estiveram tão próximos um do outro, se a eternidade e o instante nunca estiveram tão
imbricados, é porque no momento vivido se encontra o tudo fermentador.
Para Bloch (2006b), esse processo pode ser claramente discernido na história das
religiões e da união de instante e eternidade: ―Não é o tempo, mas o instante, o elemento no
tempo que não pertence a ele, que se comunica com a eternidade, que é a única medida
possìvel para a alegria plena‖ (BLOCH, 2006b, p. 394). Essa chegada ao alvo, instante-
eternidade, determinaria, concomitantemente, que sujeito e objeto teriam deixado de viver
separados, se despojando da alienação e interiorizando o humanismo real.
215
4.7 O HOMEM, MAIS DO QUE UM SER NATURAL, UM SER HISTÓRICO
Um ser humano sempre pode ser mais valente, mais generoso, mais
inteligente.
Ernest Bloch, O Princípio Esperança (2006b, p. 397)
Para Bloch, a melhoria da qualidade humana é um pressuposto permanente: o bem, se
compreendido, pode aprimorar e refinar o homem. Primeiro, porque não se deve estabelecer
um limite do gênero ―até aqui e não mais‖. O limite do ―até aqui e não mais‖ empurraria o
homem para a realidade contemplativa e imóvel, mecânica, do século XIX, característica do
pensamento de Freud, segundo Bloch (2005, p. 89), situando-o no arcaico da memória, sem
vontade de ir ―até o fim bem-sucedido‖ nos sonhos da vida melhor. Estaria fora das ações de
―longo alcance‖ e do ―irradiar‖ da "juventude dos tempos‖ das ―grandes composições da
fantasia‖ (BLOCH, 2005, p. 100). Seria um ―bloqueio histórico‖ ao clarão do novo e, mais
precisamente, um ―bloqueio social‖ diante da visão de uma barreira que não pode ser
transposta (BLOCH, 2005, p. 129).
Em paralelo a história encontra-se sempre em movimento e, por isso, o bem supremo,
definido como conceito de Deus, encontra-se sempre na linha de frente, não se tratando como
um problema real existente, sendo um problema a ser resolvido em si mesmo. Contra a
imobilidade no tempo, Bloch (2006) propõe a categoria da finalidade da vontade como
atendimento das necessidades humanas. É onde Prometeu ganha espaço e galga degraus na
utopia das finalidades humanas e da natureza.
[...] Bacon, por exemplo, na sua Nova Atlantis, não sendo um adivinho, mas
um utopista ponderado, viu um futuro espantosamente autêntico. Isto
unicamente com no seu faro, que se tornou plenamente consciente, um faro
para a tendência objetiva, para a possibilidade objetivamente real de sua
época. Pois o olhar para a frente se torna tanto mais aguçado quanto mais
claramente se torna consciente. Nesse olhar, o sonho quer ser plenamente
claro; a intuição, correta, evidente. Só quando a razão toma a palavra, a
esperança, na qual não há falsidade, recomeça a florescer. O próprio ainda-
não-consciente deve se tornar consciente quanto ao seu ato, consciente de
que é uma emergência, e ciente quanto ao conteúdo, ciente de que está
emergindo (BLOCH, 2005, p. 143-4).
A ideia da ausência de barreiras ao sonho, assim concebida, é peculiarmente
descomprometida com as palavras ocas burguesas do ―verdadeiro‖, o ―bom‖ e o ―belo‖, como
é completamente desvinculada do ―ideal‖ como ―abstração‖ e do ―imobilismo não dialético‖,
216
sitiado pela ―ilusão de valor‖ (BLOCH, 2005, p. 169-70). O pensamento blochiano está
empenhado em combater aquilo que chama de ―chavões sem vida‖ em que teoria e prática se
distanciam, como se a ilha da Utopia de More não passasse de um arquétipo e o bem supremo
não precisasse coincidir com a sociedade sem classes (BLOCH, 2005, p. 172).
Não há nada que possa garantir que liberdade e sociedade venham a ser a mesma
coisa, mas a ausência de barreiras para o sonhar ao menos sugere que possa acontecer. Se,
contudo, a história humana for concebida para valorizar a função utópica do sonho, não
haverá imobilismo reacionário e continuado, mas a mobilidade dialética do ideal, a
efervescência prática a cada etapa do processo de mudanças e haverá esperança de transpor o
abismo do arcaico. Sonhos acordados são como desejos que pressentem a capacidade do
homem de mudar, se há desejo pode existir vontade e ―e força para pisar em terreno ainda não
pisado, que fez Dante dizer: ―L‘acqua che io prendo giammai non si corse‖ (―a água que eu
seguro jamais foi navegada‖) (BLOCH, 200, p. 122). A esperança de Bloch e Dante reúne,
numa mesma frase, o que se pode intuir para semear a mudança de época e juventude dos
tempos.
Em Les Âgês du Monde (2015) (Die Weltalter), Schelling escreveu citando Goethe nas
Afinidades Eletivas (Die Wahlverwandtschaften): ―Eu creio que o homem sonha unicamente
para não cessar de ver‖ (SCHELLING, 2015, p. 2587-8, tradução nossa).110
A expressividade
do sonho e do ―não cessar de ver‖ está subordinada à oposição entre a obscuridade como
sendo o retorno no tempo, sem se deter na análise da utilidade dessa prática, e o sair da
sombra da anamnese para articular o movimento entre o presente e o futuro. Apenas sonhar de
nada adianta: é preciso ter intuição, determinação, agir com esperança. O sonho não brota
espontaneamente como porta de saída para uma realidade harmoniosa, mas como função
utópica.
Todavia, pelo menos tão suspeito quanto a imaturidade (o entusiasmo) da
função utópica embrionária, é a trivialidade do filisteu apegado ao existente,
do empirista obtuso, que não explica o mundo, em suma, é a aliança nacional
em que tanto o burguês gordo quanto o pragmático superficial não só
rejeitam, mas também desprezam de vez tudo que é antecipatório. E essa
aliança nacional – por aversão a todas as forma de manifestações dos
desejos, sobretudo contra os que impulsionam para a frente – cresceu muito
ultimamente, fazendo sua a bandeira do niilismo, o que era de se esperar
(BLOCH, 2005, p. 144-5).
110
―Je crois que l‘homme rêve uniquement pour ne pas cesser de voir‖, disait Goethe.
217
A aliança nacional pode ser entendia como as reações contra o socialismo e o possível
real da utopia. A visão das reações esperadas, de acordo com Bloch (2006a), ocorria porque a
―avidez do lucro‖ e ―prazer de matar‖ obscurecia a boa consciência e fazia crescer a
propaganda quanto à economia capitalista, colocando-a como se fosse a única. Bloch (2006a,
p. 150-1) prossegue oferecendo muitas visões dos interesses capitalistas, nas suas ―pulsões
egoìsticas‖ que vinham se delineando desde Adam Smith e a Sociedade das Índias Ocidentais,
iludindo com ―egoìsmo cìnico‖ manufatureiros médios. A burguesia em ascensão, além de
ocultar de si mesmo o conteúdo limitado das suas lutas, necessitava difundir a fé e a
esperança nos seus propósitos. Não se podia ainda discernir a face do homem de negócios que
se escondia por trás do ideal de direitos humanos, nem da ―abstração que caracterizava a
imagem do cidadão‖ (BLOCH, 2005, p. 151).
Nasciam os arquétipos burgueses de ilusão da sociedade. Embora seus conteúdos
fossem primeiramente ―oferecidos em representações, essencialmente nas fantasias‖, as
abstrações precisam ter a seu favor a antecipação aparentemente possìvel, o ―ainda-não-ser‖, e
foi nas contradições entre o discurso e a prática que o movimento socialista cresceu (BLOCH,
2005, p. 144). O ponto de contato entre os sonhos e a vida foi o ―consciente-ciente‖
antecipador.
Sem ele, não adianta sonhar. A fantasia seria exclusivamente regressiva. Não haveria
aquilo que Bloch (2005, p. 164) define como ―meta imaginária ideal‖, objeto do querer e
―dirigida ao ser humano como dever‖. Podem conter muita má consciência, muito
inconsciente arcaico, mas, no final, não deixam de ter o seu lado livre, o seu fascínio, as
características livres dos sonhos diurnos. Como ensinaram Aristóteles e Hegel, citados por
Bloch, essa caracterização do ideal, corporificam a ideia em um ―único fenômeno‖,
asseguram os vínculos do ideal com o real.
Nesse sentido, o ideal não é tratado como uma palavra ―insossa‖, ―oca‖. No universo
burguês é o contrário: os ideais estão ―profundamente enraizados na hipocrisia‖ porque não
há harmonia entre teoria e prática, entre o sonho e a realidade. Não é uma definição em linha
reta. Na Alemanha, como assinala Bloch (2005, p. 170), o ideal ―pairava tão acima do mundo
que nem entrava em contato com ele, a não ser no distanciamento eterno‖. Mas, em uma visão
ampla, os ideais desde o princìpio mostram ―a sua esperança em plena luz, numa abóboda que
se estende para cima‖ (BLOCH, 2005, p. 171). Tinham origens em motivações diurnas.
Queriam colher um agora que tinha chegado, que podia ser ―diáfano como o ar, como o
vento‖, mas que era ―perceptìvel‖ ou assim era possìvel imaginar (BLOCH, 2005, p. 175).
218
Freud, pela referência de Bloch, considerava os sonhos diurnos sonhos de criança. Bloch
contesta:
Trata-se de uma concepção limitada e fundamentalmente falsa. É certo que
neles, ocasionalmente, podem influir reminiscências de um eu infantil
maltratado, inclusive complexos de inferioridade infantil; mas eles não
constituem seu núcleo. O portador de sonhos diurnos está pleno de vontade
consciente que permanece consciente para uma vida melhor, ainda que em
graus diferenciados, e o herói dos sonhos diurnos é sempre a pessoa adulta
(BLOCH, 2005, p. 91).
Não se trata puramente de negar Freud, mas da reinterpretação do papel dos sonhos na
vida coletiva e na vida adulta. Os sonhos despertos são mensageiros da não ilusão, produzem
calor pelo amadurecimento, não pela regressão. O que Bloch critica em Freud é a
predominância da orientação biológica, de enraizamento mecanicista, sobre a teoria social.
Não significa que Freud não evoque os fatores sociais sobre o homem, mas que se preocupa
mais com a família do que com a compreensão do sujeito histórico. Disso resultaria uma
dicotomia entre a estrutura biológica e a estrutura histórica, repetindo, a separação entre
sujeito-objeto, entre o trabalho físico e o trabalho intelectual.
Aqui o caminho se revela como função do alvo e o alvo, como substância a
caminho – caminho esse investigado em vista de suas condições, visualizado
em busca de suas aberturas. Nessas aberturas, a matéria possui uma latência
no rumo dos conteúdos reais-objetivos de sua esperança; como fim da sua
auto-alienação e da objetividade afetada por elementos estranhos, como
matéria das coisas para nós. Nesse caminho ocorre o sobrepujamento do
existente na história e no mundo, esse transcender sem transcendência que se
chama processo e sofre uma tremenda aceleração na terra mediante o
trabalho humano (BLOCH, 2005, p. 207).
O padrão geral do voltar-se para o alvo é o marxismo, a teoria-práxis na direção do
―não-mais-alienação‖ do sujeito-objeto revolucionário, portanto na direção da liberdade.
Trata-se de uma busca pelo ser-em-possibilidade, pelo avanço dialético do existente real. Uma
realidade que contém interiormente a sua própria escuridão e um horizonte exterior ―de
grande amplitude na luz do mundo‖ (BLOCH, 2005, p. 220).
219
4.8 O DESINTOXICAR DO MUNDO, IMPULSO DA CONCIÊNCIA SOCIALISTA
O sonho desperto, ou seja, aberto para o mundo sabe não se abster. Ele se
recusa a se saciar ficticiamente ou ainda a espiritualizar desejos.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 97)
Quando César visitou o monumento a Alexandre, em Gades, exclamou: ―Quarenta
anos e ainda não fiz nada pela imortalidade‖ (BLOCH, 2005, p. 92). Era, no entender de
Bloch, o modelo daquilo que, utopicamente, um ser humano gostaria de ser e tornar-se. No
caso especìfico de César, envolvia o ―eu‖ desejante. Nada impede que o mesmo sonho
desperto tenha acento coletivo, como foram os sonhos de Brecht ao procurar levar ao teatro a
realidade, não a ilusão (BLOCH, 2005, p. 411).
O homem não é só produto da natureza, mas da história. Bloch não rechaça Freud por
inteiro, mas concebe que o homem, mais do que um ser social, é um ser histórico. É essa
reorientação que Bloch preconiza para a psicanálise na raiz, a mesma que reivindica para a
filosofia. A razão de tal proposição é levar o homem a ―comunicar-se com o que está para
além de si mesmo‖ (BLOCH, 2005, p. 95).
Freud, ainda segundo Bloch (2005), tangenciou a consciência no rumo da novidade,
―desfigurou a psicologia do novo‖ ao diluir na sublimação os impactos do sonho acordado.
Não se ateve ao caráter do sonho diurno de não se saciar ficticiamente, de ―ir até o fim‖
(BLOCH, 2005, p. 95).
Houve, nesse particular, uma confusão entre o que é ilusório e o que é pré-aparência.
Perdem-se, nela, os fundamentos realmente arcaicos, a saber: os arquetípicos da Idade do
Ouro, do paraíso e da esperança. Escassamente investigadas, as utopias oníricas se perdem e
são mantidas coesas pelo ideal de perfeição, pintado de acordo com as perspectivas de classes.
Não são, porém, ilusões.
A vontade de ir até o fim bem-sucedido sempre perpassa a consciência
utópica, colore essa consciência com inesquecíveis seres de contos de fadas,
e vigora ainda nos sonhos de uma vida melhor, mas a suo modo também nas
obras de arte, o que finalmente tem que ser compreendido. A fantasia de
melhoria do mundo aterrissa nelas não apenas de modo que todos os seres
humanos e coisas sejam conduzidas até ao limite de suas possibilidades, com
todas as situações esgotadas e detalhadas em sua forma. Antes, toda a grande
obra de arte, para além de sua essência manifesta, ainda foi concebida sobre
uma latência vindoura – vale dizer: sobre os conteúdos de um futuro que no
seu tempo ainda não tinha surgido. Em última análise, sobre os conteúdos de
uma situação final ainda desconhecida (BLOCH, 2005, p. 100).
220
Como nas grandes obras filosóficas, essa é a fonte da ―eterna juventude‖ de obras
como a Divina Comédia e a Flauta Mágica de Mozart. Além de realista, abre janelas que
demonstram ser o sonho diurno, no mínimo, possibilidade. O sonho pode ser fantasioso, mas
quando mediado pela realidade é antecipador, ―provém da expansão do si-mesmo e do mundo
para a frente, é um querer-viver-melhor, muitas vezes, de fato, um querer-saber-melhor‖ e,
muitas vezes, a qualidade sincera dos homens presente no sonhar acordado e no sonhar
dormindo (BLOCH, 2005, p. 100).
Sonhos noturnos, sonhos diurnos. Diante deles, erguem-se os pressupostos para a
teoria e descoberta do ainda-não-consciente. Abstrai-se o andar em círculos e, com isso, o
sentido atávico e supersticioso do sonho noturno. À luz do sonho acordado, dissiparam-se o
romantismo de feição reacionária, com a percepção voltada para o mundo velho e a tendência
à rememoração.
Nenhum ser humano jamais viveu sem sonhos diurnos, mas o que importa é
saber sempre mais sobre eles e, desse modo, mantê-los direcionados de
forma clara e solícita para o que é direito. Que os sonhos diurnos tornem-se
ainda mais plenos, o que significa que eles se enriquecem justamente com o
olhar sóbrio – não no sentido da obstinação, mas no de se tornar lúcido
(BLOCH, 2005, p. 14).
O sonhar, enriquecido pela maneira efetiva de pensar, torna-se a pedra angular da
consciência utópica socialista. Justamente o oposto do sonho individual burguês. É o florescer
do ainda-não-consciente da necessidade de coincidência do sujeito-objeto-sujeito na
construção do mundo. Mas os dois lados da existência, a dicotomia sujeito-objeto e a sua
unidade, só encontram a interação se o homem histórico realizar-se na categoria da finalidade
do futuro.
Nesse caso, a filosofia será enriquecida por coisas ―jamais vistas‖, e o homem, sem
alienação, brilhará no mundo desde a infância. Essa é a base do socialismo blochiano como
visão integral da vida, visão que ele ampliou de The Spirit of Utopia (Geist der Utopia) a
Experimentum Mundi de 1975, a sua última obra, mantendo-se firme na concepção de um
sistema filosófico aberto e humanista.
Bloch sonha com a eliminação dos ornamentos do capitalismo. Sonha com o homem
se distanciando da comunidade do povo (Volksgemeinschaft) fascista e do American way of
life americano. Sonha com o impulso inteligente da consciência socialista: ―A fé passiva pode
transformar-se numa fé ciente e instigadora‖ (BLOCH, 2005, p. 432). Uma fé movida pela
boa consciência e pelo telos do bem comum, que brote do homem para o homem.
221
A distância entre a fé ativa e passiva é uma questão de despertar para a evidência de
que o processo inacabado do mundo pode ser finalizado. E modelar um novo mundo, uma
consciência nova do humanismo. Por isso, Bloch não considera sequer a ideia do pré-
consciente freudiano. Para ele, pré-consciente e ainda-não-consciente são coincidentes.
Somente, o ainda-não-consciente expressa a consciência antecipadora, presentes na juventude,
nas épocas revolucionárias e imprime ―dignidade‖ à função utópica, tanto no afeto quanto na
imaginação e na ideia‖ (BLOCH, 2005, p. 114).
Bloch desejava ―desintoxicar‖111
a sociedade do que não é contemporâneo. Desejava
que o homem superasse a ausência de sonhos acordados, chamada destino, e se dedicasse ao
sonho acordado chamado Revolução. Não desejava sucumbir à desatenção para com o
instante vivido, nem ao real hipostasiado. À maneira de Goethe, Schelling e Hegel, procurava
expulsar a teoria mecânica da natureza e valoriza-la com cores das florestas, das cordilheiras,
do mar, enfim as cores do mundo. Pretendia envolver o homem com a magia dos ―rostos
humanos no chão do mundo‖, isto é, considerá-lo como o ―antidestino‖, o ―antimorte‖,
considerá-lo construtor do ―chão do ser humano‖, mas também construtor do ―seu ambiente
permanente (BLOCH, 2006b, p. 438-9).
Não mais um sonho no ar, no céu ou nas obras de arte, mas o sonho no cotidiano, no
entusiasmo e na lucidez da ação. Não mais o ainda-não-consciente que adia o sonho
socialista, mas o consciente que traz o sonho socialista para o cotidiano e lhe dá concretude na
antecipação do futuro. O suporte da utopia de Bloch é a fé no homem, o entusiasmo.
[...] para acertar o ponteiro das horas é preciso girar o ponteiro dos minutos,
e igualmente, ao inverso é preciso que o totum de um grande navio que se
encontra numa longa viagem possa ser iluminado em cada trabalho
revolucionário minucioso. Portanto, é uma atitude tão tola quanto estranha
ao marxismo tentar alavancar a realidade unicamente com a lucidez, assim
como lançar-se unicamente com o entusiasmo para cima dela; o real,
exatamente o real da tendência, é atingido somente através da constante
oscilação dos dois aspectos, unidos numa perspectiva treinada (BLOCH,
2006b, p. 454).
O sonho acordado aperfeiçoa-se, pode ser desejo e vontade, desejo e realização. Como
a matéria, é o Deus da vida, sem ser ainda o sol humano reflete luz. Diferentemente, no sonho
noturno, o ainda-não-consciente não surge, no entender de Bloch (2005), como a suprema
forma de consciência. Falta no sonho noturno o ―absoluto do querer humano‖, falta o desejo
do optimum, inerente ao homem ―desde que se acendeu o primeiro fogo sobre a terra e desde
111
Cf. ―Non-contemporaneity and intoxication‖. In: Bloch, Ernst. Heritage of our Times (1991).
222
que nela se demarcou o primeiro alvo‖ (BLOCH, 2006b, p. 439). Povoado pelo que já
aconteceu, o sonho noturno não deixa espaço para o futuro, como no sonhar acordado. Sonhar
acordado é a substância da esperança.
223
CAPÍTULO V
INTÉRPRETES DA UTOPIA DE ERNST BLOCH
O materialismo mecanicista, com certeza, é verdadeiro como materialismo,
isto é, como explicação do mundo a partir de si mesmo, mas não é
verdadeiro quando ensina um mundo meramente mecânico.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 328)
Ainda que Bloch tenha eliminado da utopia o conteúdo fantasioso e irracional, ainda
que tenha elevado as fronteiras do marxismo a uma concepção iluminista de crença no
homem, baseada em ações práticas, não mecanicistas, e ainda que tenha procurado elaborar
um sistema filosófico revolucionário aberto, a crítica ao pensamento blochiano parece se
perpetuar. Em uma composição histórica, trilha a via da realidade aparente, porque o
pensamento de Bloch, embora hoje envolto nas sombras do esquecimento, procurou
responder a três questões essenciais e urgentes do marxismo: a primeira, e principal, é a
questão do ainda-não-consciente, indispensável para a compreensão das razões que levam o
socialismo a não ser ainda o regime de preferência da sociedade de massas.
Uma das virtudes do conceito do ainda-não-consciente é iluminar de maneira
incomum o seguinte tema: como pensar hoje Marx e o sujeito revolucionário em um ambiente
onde as crises do capitalismo se sucedem e se aprofundam, como se o valor do trabalho, a
economia política e a filosofia da práxis estivessem saindo das páginas das Teses sobre
Feuerbach ou dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Essa articulação poderia
trazer à cena universal a ideia da emancipação do homem e marcar a ruptura entre a sociedade
burguesa e humanização socialista?
A segunda questão, não menos importante, é o candente problema da ética, sem a qual
é impossível transformar a sociedade. A ética blochiana se alimenta, mais do que dos intesses
de classe (proletária) de uma ética voltada para o futuro e que seja construída nas relações
humanas e que supere as ambiguidades e a má consciência capitalista. Também associada ao
ainda-não-consciente significa, em última análise, que o homem precisa despertar para os
outros homens porque não pode anular suas responsabilidades, nem fechar os olhos para o
significado coletivo do bem comum. Se ele tem consciência da morte, por que não poderia ter
consciência, igualmente, não utilitária que fosse, de uma extensão das relações humanas não
224
alienadas? A terceira envolve o significado de um mundo sem Deus, realizado apenas pela
vontade dos homens.
Acrescente-se o tema da liberdade, que Bloch alia à supressão das fronteiras que
separam o sujeito e o objeto revolucionário, criticando-o. Mas seria uma omissão deplorável
se ao pensamento de Bloch não fossem adicionados dois temas essenciais para a atualidade: a
natureza e o tempo. A natureza pela sua presença na vida do homem e por ser o embrião da
vida futura que se desenvolve dialeticamente no ambiente da vida. O tempo por ser em Bloch,
como destaca Arno Münster (2001, p. 362) um fluxo incessante, mas descontínuo, que se
aproveitado com criatividade, pode conduzir o homem à emancipação. Por último, há o
recriar da filosofia, a ideia da antecipação concreta do socialismo a partir da Tese de número
11 de Marx sobre Feuerbach.
Bloch delineou um novo traçado histórico, a partir de Marx, para discussão da cultura
capitalista, da epistemologia materialista-dialética, da filosofia com raízes na vida e nas
pequenas coisas do cotidiano. Foi, nessa trajetória, bem recebida pelos seus contemporâneos,
a exemplo de Bertolt Brecht, Emmanuel Lévinas, Gershom Scholem, György Lukács, Karl
Mannheim, Martin Buber, Martin Jay, Michaël Löwy, Theodor Adorno, Siegfried Kracauer,
Walter Benjamin, além de pensadores como Herrmann Hess, Eric Hobsbawn, Thomas Mann,
seu filho Klaus, assim como por Eric Fromm e Jürgen Habermas.112
Essa recepção não significa ausência de críticas, discordâncias ou debates e mesmo
ironias, mas é muito provável que sua obra tenha sido alvo de controvérsias mais por ser vista
pelo seu ângulo messiânico do que pelo seu caráter revolucionário, mais pelo sentimento dos
críticos de que a utopia estaria vivendo seu aparente ocaso do que pelo caráter perene da
utopia que Bloch faz viver para sempre nesta frase de Oscar Wilde: ―Nenhum mapa do
mundo que não contenha o país da utopia, merece que se olhe para ele‖ (BLOCH, 2006b, p.
37). O interesse pela religião e o misticismo fizeram parte do amadurecimento intelectual de
Bloch, mas não impediram que a sua utopia ganhasse dimensões científicas e, muito menos,
que ele se curvasse à ―mitologia gnóstica‖ (BOLDYREV, 2014, p. 622-56).
Para Bloch, a utopia socialista não terminou e, essa realidade é posta em relevo,
associando a história com a prática marxista e a filosofia utópica, independente dos avanços
tecnológicos e sua influência na realidade social. A rigor, o marxismo foi constituído e
definido na ausência de referência filosófica ao pensamento de Marx. Plékhanov, Lênin e
Stalin não conheciam os Manuscritos de 1844 e A Ideologia Alemã, que permaneceram
112
Cf. Ernst Bloch and his Contemporaries, de Ivan Boldyrev, 2014.
225
inéditos até 1932, época em que o materialismo dialético e sua proposta doutrinária se
imaginavam acabados. Também, a filosofia soviética só viria a ganhar traços definidos a
partir de 1930, uma vez que a guerra civil e a política econômica, na década que se seguiu à
Revolução, consumiu intensos debates.
Por aquela época, os militantes bolcheviques questionavam inclusive a existência de
uma filosofia marxista, e a filosofia era considerada, ―por essência, burguesa‖ (ZAPATA,
1988, p. 91-9). Era uma tese defendida, sobretudo, pela ortodoxia comunista contra a corrente
chamada dialética e que ganhou força a partir da morte de Lênin em janeiro de 1924.
Culminou com a vitória mecanicista, graças à ascensão do stalinismo, que viria a cultivar o
mito de uma filosofia ―monolìtica‖ a serviço do Estado: ―[...] não mais filosofia, mas uma
função filosófica da ideologia de Estado‖ (ZAPATA, 1988, p. 100-1).
Isto motivou um grande paradoxo: almejava-se construir uma sociedade humana, mas
sustentada apenas no conhecimento das obras econômicas e políticas de Marx.
Consequentemente, o alvo da revolução concentrou-se na luta de classes, sem considerar a
amplitude do desafio de criar um homem novo, repetindo o erro positivista de subordinar a
filosofia ao conhecimento da ciência e a esquerda, ao dogmatismo do materialismo dialético.
Bloch move-se na direção da unidade marxista e na absorção do pensamento psicanalítico
renovado pela filosofia da práxis.
Em O Sentido da Realidade, Berlin (1999), além do dilema entre a revolução e a
realidade do movimento marxista, a doutrina da unidade entre teoria e prática como forma de
medir a coerência entre o que se pensa e o que se faz, e as relações dos revolucionários entre
si, estas determinadas também pelo lugar que ocupavam no sistema produtivo, reconhece que
houve flagrante oposição entre o modelo revolucionário e a visão do progresso humano.
Saint-Simon na sua utopia ensinara ser necessário a ―eliminação das disputas‖ e a
―organização das energias humanas‖, em vista a alcançar o poder sobre a natureza, pois ―esta
não satisfaz as metas humanas‖ de uma sociedade harmoniosa, mas isto foi esquecideo
(BERLIN, 1999, p. 175).
Contra a visão racional, que estaria distante do utilitarismo, mas que se tratava de uma
utopia centralista e autoritária, o que prevaleceu foi um processo de aplicação de metas
morais e a tentativa de negar as contradições da realidade. Assim, afirmou-se a visão dos
homens mais sensíveis daquela época, como absoluto do processo, sem que os fins humanos
efetivamente desejáveis tivessem sucesso pleno. A imagem que Berlin (1999, p. 183) utiliza
para se explicar é objetiva: ―As regras que a tripulação do navio devem obedecer mudarão,
226
mas a palavra do capitão e de seus oficiais, que são os únicos a conhecerem sua destinação, é
final e irrevogável, e define o que é verdadeiro e o certo.‖
A opção doutrinária em relação à opção libertária, não elimina, porém, a realidade de
que o marxismo superou a antiga moral burguesa e o papel determinante do Deus da Igreja, e
que enfrentou uma incruenta guerra civil que não só dizimou uma geração revolucionária
como impôs severas restrições à população. Mas no que pesem as cicatrizes de uma época de
juventude dos tempos, ficaram as questões quanto à natureza do sujeito revolucionário e o
papel das gerações futuras no processo revolucionário.
Em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e em Thomaz Münzer, Teólogo da
Revolução, Boldyrev encontra influências de Martin Buber e Gustav Landauer, mas Bloch
deles se afastou: de Buber, por não partilhar de sua visão sionista, que Bloch não considerava
parte de um movimento global de libertação e que entendia não possuía a visão universal do
socialismo; de Laudaeur, por não considerá-lo um utopista autêntico, mas que se limitava a
interpretar o processo histórico como uma série de ―topias‖ (BOLDYREV, 2014, p. 697-704).
Outro filosófo que teria influenciado Bloch naquele periodo inicial foi Franz
Rosenzweig, que dedicava particular importância ao instante vivido. Rosenzweig considerava
que a redenção humana viria pela iluminação do mundo, enquanto Bloch encontrava
alternativa na dissolução da parte opaca da consciência (BOLDYREV, 2014, p. 711-2).
Bloch, em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), não se refere a nenhum dos três – Buber,
Landauer e Rosenzweig -, mantendo identico silêncio em O Espírito da Utopia.
Em The Heritage of Our Times, Bloch (1991, p. 135) compara Martin Buber ao
filosófo místico Hermann Graf Keyserling (1880-1946), um ―pomposo irresponsável‖.113
Contudo, Boldyrev (2014, p. 398) revela que a filosofia existencial de Bloch foi
profundamente influenciada por Buber, modelo paradigmático, também, para intelectuais
judeus como Lukács, Benjamin, Scholem e Rosenzweig. Prolífico autor, herdeiro do
misticismo judaico, não chegou a ser um romântico. Foi caracteristico de Bloch, como em
Buber, na avaliação de Boldyrev (2014, p. 399) a exploração do choque entre o sagrado e o
profano, mas como o sagrado ―sempre em prosaico contexto‖.114
Ambos, eram intelectuais
não contemplativos, de ação.
O elo de identidade entre Bloch e Landauer estava na crítica ao marxismo tradicional
ou à corrente ―fria‖ do marxismo que ambos consideravam não suficientemente radical
113
―irresponsible windbaggery‖.
114
―often prosaic context‖.
227
(BOLDYREV, 2014, p. 406). Para Boldyrev, a influência de Landauer sobre Bloch
caracterizava-se também na crença de que o ativismo socialista poderia mudar o mundo, o
que teria ficado claro também em Thomas Münzer, Teólogo da Revolução. Com Rosenzweig,
para Boldyrev (2014, p. 411-2), a proximidade com Bloch estava na ideia de antecipação do
futuro, também uma utopia do messianismo judaico, só que Bloch partia da ação humana. Na
visão de Boldyrev (2014), Bloch foi buscar as noções do messianismo nos livros sagrados do
judaismo e partilhava com Martin Buber o sentimento de que a redenção teria de vir pelas
mãos do homem. A origem de tais influências, que Bloch abandonou ―discretamente‖, nas
considerações de Boldyrev, estaria no esforço para integrar múltiplas religiões ao cristianismo
revolucionário.
Na sua filosofia, Bloch, para Boldyrev (2014, p. 364) procura fazer uma reconstrução
racional das religiões e do misticismo, seguindo estrita epistemologia, mas sem se deixar
influenciar no decorrer da sua obra. Surpreendia-se com a realidade do mundo, procurava
estabelecer vínculos entre a utopia do cristianismo e o judaismo. Nasceu judeu, nunca
absorveu os ritos tradicionais,115
mas foi assimilado pelo judaismo que o considerava um
intelectual judeu (BOLDYREV, 2014, p. 395). Bloch estava determinado a investigar as
ramificações do instante e sua repercussão na continuidade do processo utópico. Debruçou-se
para além da realidade dos fatos. Não queria apenas compreender o mundo da esquerda
contemporânea, mas olhar mais longe, questioná-lo, inquirindo-o a partir do passado, da
própria facticidade e das atenções que dedicava ao futuro. Por que a utopia revolucionária não
se concretizava? Quais as limitações impostas pela ontologia da realidade? Por que a utopia
não conseguia escapar ao economicismo e ao reducionismo que a aprisionava à realidade
cotidiana? Olhar para o futuro no presente era, efetivamente, construir o presente com vistas
ao futuro. Nada podia ser adiado.
115
Bloch se afirmava marxista e ateu. Condenava o que chamou de ―tradicionalismo judaista‖, e de ―deìsmo
abstrato do judaismo ortodoxo (tradicionalista)‖, tìpico das comunidades judaicas da Polônia, da Rússia e de
toda a Europa Oriental e as doutrinas dos velhos profetas de Israel, o misticismo dos hassidim (integrante do
movimento místico judaico do século XVIII que reagiam contra o estudo do Talmud) e a teologia oficial
rabínica. Perguntava-se porque a tradição judaica não admitia Jesus como líder de uma revolução ética na
Palestina durante a ocupação romana e por que, também, ignorava Jesus como ―sìmbolo de amor e da
fraternidade entre os homens‖ (MÜNSTER, 199, p. 64-5).
228
Chegou a hora de um novo conceito de realidade, diferente do conceito
tacanho e enrijecido da segunda metade do século XIX, diferente do
conceito do positivismo avesso ao processo e também do seu
correspondente: o mundo ideal descompromissado da pura aparência. Um
enrijecido conceito de realidade penetrou até no marxismo, fazendo com que
ele se tornasse esquemático. Não é suficiente falar de um processo dialético,
e depois tratar a história como uma série de fatos fixos que sucedem um ao
outro ou ainda como“totalidades”fechadas. Aqui há o perigo de um
estreitamento e de uma redução da realidade, um abandono da“força
atuante e da semente”contidas neles – e isso não é mais marxismo. Ao
contrário: a fantasia concreta e o imaginário de suas antecipações mediadas
estão, eles mesmo, fermentando no processo do real e se refletem no sonho
para a frente concreto (BLOCH, 2005, p. 195-6).
Nessa determinação de questionar os elementos antecipatórios componentes da
realidade residia o sentido da dialética revolucionária. Bloch inaugurou a discussão para situar
o marxismo na corrente de transformação do mundo em Heritage of our Times (Erbschaft
dieser Zeit) e a completou com Experimentum Mundi. Percebia que a utopia estava sendo
isolada na configuração do mundo, mas não apenas pelo capitalismo. Além da distopia, do
niilismo, da ortodoxia marxista, havia resistência, notadamente, quanto à necessidade de
reconfigurar o papel do sistema produtivo, considerando que o modo de produção era figura
processual definitiva na história humana.
Da descoberta leibniziana do subconsciente, passado pela psicologia
romântica da noite e do passado primevo, até à psicanálise de Freud, [...] só
a ―aurora para trás‖ foi descrita e analisada. Acreditava-se ter sido decoberto
que todo presente está carregado de memória, carregado de passado no porão
do não-mais-consciente. Não se descobriu que, em todo presente, mesmo no
que é lembrado, há um impulso e uma interrupção, uma incubação e uma
antecipação do que ainda não veio a ser. E esse interrompido-irrompido não
ocorre no porão da consciência, mas na sua linha de frente (BLOCH, 2005,
p. 22).
Tratava-se de retomar o caminho da ação, de articular a realidade, sobretudo da
juventude, com o que ainda-não-veio-a-ser. Para Bloch (2005, p. 22) seria dessa maneira que
―o antecipatório age no campo da esperança‖, portanto passar a linha de frente da
transformação era um ato de trazer o novum para o front da vida. Que isso não estivesse
ocorrendo não deixava de ser um retorno à obscuridade do instante, mas um retorno dialético
que poderia ser considerado, como lembraria Bloch (2009, p. 254, tradução nossa) em
Atheism in Christinity (Atheismus im Christentum) uma forma de ―explorar o novo sem
229
nenhum ceticismo‖,116
somente que a partir de uma reavalização dos caminhos percorridos.
Essas idéias de Bloch teriam sido reconhecidas pelos seus intérpretes? Como tem sido vista
sua obra?
5.1 OS IDEAIS, O REALISMO SOCIALISTA E A LUTA DE CLASSES
O caminho se revela em função do alvo e o alvo, como substância a
caminho.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 207)
O problema da interpretação blochiana é complexo e contemporâneo da crise do
marxismo. Os ideais são muitos, assim como as alternativas para concretizá-los. Contudo, em
Bloch, os ideais conduzem, se efetivos, para a prática do bem comum, e esta não pode existir
sem o socialismo e a sociedade sem classes. Qualquer que seja o trajeto a percorrer e os
desafios a superar, o futuro não pode passar ao segundo plano, nem ser esquecido ou ocultado
pelas palavras. Lukács, em sua História da Consciência de Classe (2003), trata de passagem
do utopismo para o socialismo científico pela oposição entre a ciência doutrinária e a ciência
revolucionária. A ciência revolucionária seria a verdadeira realidade social, econômica e
política que não podia se limitar aos dilemas teóricos do marxismo e suas limitações.
Considera que a consciência de classe permitiu a superação da utopia, mas não se
negava a aceitar que o caminho entre a superação e a possibilidade concreta de realização é
longo. Não implicaria o fim da utopia e nem que a ciência revolucionária não estivesse aberta
a ser discutida. Mas a questão utópica ficava para trás ante o papel do Estado como ―arma da
luta de classes‖: o realismo do socialismo concreto, sua realpolitk, não deveria abandonar o
sonho da dialética materialista (LUKÁCS, 2012, p. 77).
Era a visão leninista do processo e, em decorrência, o Estado do proletariado – o
conselho de trabalhadores, camponeses e dos soldados – figurava como antídoto contra a
desorganização. Além do mais, era a resposta socialista ao Estado burguês que buscava, a
todo o instante, manter os cidadãos, como ―átomos isolados de um todo estatal‖ (LUKÁCS,
2012, p. 81). Na biografia que escreveu sobre Lênin, no calor da realpolitik revolucionária,
acentua:
116
―explore the new, without any sort of cathechism‖.
230
A atualidade da revolução se expressa na atualidade do problema do Estado
para o proletariado. Com isso, no entanto, o problema do próprio socialismo
é deslocado da lonjura do mero objetivo final para a proximidade de uma
questão de realidade imediata para o proletariado. Mas essa proximidade
palpável da realização do socialismo é, por sua vez, uma relação dialética e,
para o proletariado, poderia ser desastroso se essa proximidade do
socialismo fosse interpretada – de modo mecanicista – utópico – como
realização por meio de mera tomada do poder (expropriação dos capitalistas,
socialização, etc.) (LUKÁCS, 2012, p. 85).
A teoria de Luckás, de tradição marxista-leninista, visava à explicação prática da
realidade de vencer, passo a passo, os hábitos do pensamento capitalista, comum a todos os
homens, mesmo os mais esclarecidos. O capitalismo tinha racionalizado o mundo de acordo
com seu interesse e ao mesmo tempo desencadeado forças irracionais e o caminho para evitar
o caos politico seria desmontar essa máquina programada para alienar e domar as
consciências. A sua preocupação estava em conciliar as ideias marxistas com a realidade. E
comparava a realidade da época da Revolução Russa com a utopia: ―O utopismo dos
revolucionários é uma tentativa de sair do buraco, puxando os próprios cabelos, de saltar para
um mundo inteiramente novo em vez de compreender o surgimento dialético do novo a partir
do antigo‖ (LUKÁCS, 2012, p. 89).
Tal imagem, certamente, procura captar a distância em que se encontrava a filosofia
utópica da efetiva concretude da transição para o socialismo. Se o interesse coletivo do
proletariado fosse concretizado, todos os outros interesses também o seriam. A consciência
proletária seria a forma ativa de construir o futuro e, além disso, o mundo novo seria gestado
no interior da revolução. A exemplo de Bloch, procurava a totalidade humana no marxismo,
como antídoto contra a burguesia, mas Luckás (2003) acreditava que o sujeito da história, o
proletariado, se desenvolveria progressivamente como classe universal na medida em que se
superasse o dualismo sujeito-objeto e ocorresse a reapropriação da produção pelo produtor.
O pressuposto estava na pavimentação de uma época que acenava com efetiva unidade
entre sujeito e objeto, o que afastaria a possibilidade de reificação da burguesia. Mas o que
separaria Lukács de Bloch, ao lado da crítica blochiana à centralidade do dominio da
produção (2000), seria o fundamento real objetivo da política revolucionária.
Especificamente, com relação à obra de Bloch, Lukács a examina no contexto da crítica à
religião e da sua fusão com o materialismo histórico. A crítica a uma visão metafisica de um
processo não metafísico? O choque entre uma concepção romântica do processo
revolucionário com uma concepção vista como realista? Lukács cita Marx em sua crítica à
Filosofia do Direito de Hegel para solidificar sua oposição à utopia de Bloch: ―A religião é a
231
realização fantástica da essência humana, visto que a essência humana não possui aqui
nenhuma realidade verdadeira‖ (LUKÁCS, 2012, p. 382-3).
O processo da religião repetia, na economia, o seu caráter alienante e, segundo
Lukács, exigia uma política real para mudá-lo. Bloch não ignorou essa dificuldade, mas
previa a necessidade de uma transformação total da realidade. Uma epistemologia autêntica
não poderia ignorar a constituição do homem, não só o operário, capaz de fazer a revolução
dos valores. Seria irresponsabilidade do pensamento utópico apontar o roteiro a seguir para
que a ética transformadora e a vontade de mudança se tornassem práxis revolucionária
universal. Não se tratava de um pensamento especulativo para salvar a filosofia da sociedade
sem classes, mas de um processo de conscientização indispensável, a fim de que o homem
participasse dos movimentos dialéticos de uma história nova. Bloch estava redescobrindo a
utopia, imprimindo-lhe concretude, Lukács relegando-a a um plano secundário de uma
interpretação tradicional.
Ao fazê-lo, Lukács se afastou das origens, dos anos de juventude, quando sonhava
como a ―utopia do futuro‖, um ―paraìso terrestre para além da sociedade burguesa e da
civilização industrial/ capitalista, uma época na qual Tolstoï seria o anunciador e Dostoiévski,
talvez o novo Homero ou Dante‖117
(LÖWY, 1986, p. 105, tradução nossa)? Certamente, não.
No passado, os idos da juventude, Lukács e Bloch sonhavam juntos, segundo recorda Löwy
(1986, p. 108): sonhavam com uma nova comunidade humana, com a Rússia mítica, com um
anticapitalismo romântico; sonhavam, e esse foi um traço das suas primeiras obras, com um
romantismo revolucionário que englobasse o idealismo ético, a política, a filosofia e a
história. O que mudou foi o horizonte ditado pelo envolvimento com a revolução.
Bloch, no sentido inverso, talvez por estar engajado na revolução de outra forma,
como filósofo, se manteria fiel à ideia de que a verdadeira gênese estava no final do processo
revolucionário. É possível que naquele instante o processo histórico não tivesse chegado ao
seu termo, embora na aparência fosse assim. Na perspectiva da história, Martin Jay (1986, p.
67, tradução nossa), irá admitir que Bloch acusou Luckás de permanecer ―muito estreitamente
cravado à realidade‖,118
o que lhe valeu a acusão contrária de se manter alheio à realidade. A
querela, de certa forma, foi premonitória: antecipou os impasses que o marxismo enfrentaria
no futuro. Um desses impasses é a sintonia ou não do marxismo com o romantismo
revolucionário. Para Löwy (1986, p. 113), em Le Romantisme Révolutionnaire de Bloch et
117
―Lukács rêve néanmoins à une utopie de l‘avenir, un paradis terrestre, une percée vers une nouvelle époque
dont Tolstoï serait l‘annonciateur et Dostoïevski peut-être le nouveau Homère ou Dante‖.
118
―être demeuré trop étroitement rivé au niveau de la réalité‖.
232
Lukács, não existe contradição: e isso demonstraram Bloch e Lukács, ao romper com uma
leitura kantina, positivista ou darwiniana da obra de Marx. Uma concepção romântica da
revolução social que se projetou aos tempos atuais, contrariando a visão da ortoxia marxista.
5.2 FIM DA UTOPIA E O MARXISMO ROMÂNTICO
O pensamento audacioso é particularmente precioso quando também
conhece os limites que está dilatando. Apesar disso, há casos em que não
apenas é preciso disparar além das barreiras, mas até mesmo além do alvo,
a fim de acertá-lo.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 418)
É apoiado nessas palavras que Bloch lembra a necessidade de uma revolução na
filosofia para que a crença no homem passe a preponderar. Ele critica as posições filosóficas
individuais que, geralmente, estão erradas diante dos fatos, mas que são aceitas como
verdades. Exemplos: ―A maioria das pessoas é má‖, ―o homem é o lobo do homem‖ e
―ninguém comete voluntariamente injustiças‖. São máximas estruturadas para soarem como
verdades irrefutáveis, mas que estão muito distante de traduzir os verdadeiros movimentos do
mundo. Estes, sem dúvida, são fortemente ideológicos e envolvem ―o uso dos homens para
fins que definitivamente não são os deles‖, isto é, a desumanização do homem (BLOCH,
2006a, p. 423-4).
Seria o pensamento humanizador uma utopia? Marcuse (1969b), que nunca negou a
influência de Bloch na sua trajetória, às vésperas do movimento de maio de 1968, anunciou
―o fim da utopia‖.119
Seria o fim da possibilidade de humanização da utopia? Não se tratava
119
Cf. Marcuse falou para o Comitê Estudantil da Universidade Livre de Berlim Ocidental nos dias 10-13 de
julho de 1967 (MARCUSE, 1969b. p. 9). Ao abordar o tema de sociedades não livres, estava se referindo ao
comunismo da então URSS. Em Marxismo Soviético: análise crítica, escreveu: ―A industrialização comunista
processa-se em saltos‖, abrangendo perìodos históricos inteiros. ―As diferenças fundamentais entre a
sociedade ocidental e a soviética são esmaecidas por forte tendência à assimilação: a centralização e a
regulamentação superam a empresa individual e a autonomia; a competição é organizada e ―racionalizada‖;
há um processo de governo, de mando, do qual participam conjuntamente as burocracias políticas e
econômicas; a massa do povo é coordenada por meio da ‗mass média’, da indústria, da diversão, da
educação‖ (MARCUSE, 1969a, p. 79-80). Em lugar de abolir a sociedade de classes, inclusive o próprio
proletariado, o proletariado virou as costas para a revolução, consequentemente renunciou ao seu papel como
classe revolucionária. Recusou-se a admitir que, nos países capitalistas, o proletariado rendeu-se à tendência
da colaboração de classes, confundindo os interesses reais da revolução com os interesses imediatos do bem-
estar. O Marxismo Soviético é a metáfora ativadora do Homem Unidimensional (1964). Formado na alta
cultura alemã, expoente do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, fundado em 1924, com a proposta da
criação da Teoria Crítica da Sociedade, ao final dos anos 20 (na companhia de Adorno, Horkheimer,
233
literalmente do fim, mas do recomeço, como a modificação da vontade humana para terminar
com o trabalho (intercâmbio material entre o homem e a natureza) alienado ou a alienação,
termos quase equivalentes, nas sociedades de capitalismo avançado. Para Marcuse (1969b) o
homem, como definiu Marx nas Teses sobre Feuerbach, não era senão o conjunto das
relações sociais (MARX, 2007), estando neutralizado não pelas limitações ditadas pelo terror,
mas por ―coerções polìticas‖ e a ―negação dos instintos‖ que neutralizavam as mudanças do
sistema capitalista (MARCUSE, 1969b, 27). Há, como adverte Marcuse, um ―inegável cìrculo
vicioso‖ de repetição do mesmo que exige uma saìda que não se apoie na exploração e na
opressão e elimine as formas de repressão (MARCUSE, 1969b, 111-3).
O princípio que rege o pensamento de Marcuse não é aquele da rejeição da utopia
concreta, mas da negação da alienação da sociedade capitalista pelas forças da necessidade e
das diferenças qualitativas que distinguem uma sociedade livre de uma sociedade não livre. A
pergunta que ele formula é: como transformar a sociedade tecnologicamente avançada no
rumo do socialismo? A resposta vai depender das condições históricas.
Segundo Marcuse (1969b), essas condições históricas existem, porém há impasses a
superar entre a teoria e a prática. A primeira questão a ser enfrentada é a renovação do
marxismo: estaria ultrapassado o sistema produtivo analisado por Marx? Lembra Marcuse:
quando Marx encontrava no proletariado a classe revolucionária, esta se encontrava livre das
pressões repressivas da sociedade, agora essa "autonomia" não é mais possível nos países
capitalistas desenvolvidos. "Os trabalhadores não mais representam a classe que leva em si a
negação das necessidades existentes", escreve ele. "Aliás, é esse um dos mais graves
problemas que devemos enfrentar" (MARCUSE, 1969b, p. 24-5).
É notória a relança dos fatores subjetivos na mudança: essa é uma das tarefas mais
importantes do materialismo revolucionário e ganha concretude na capacidade de
organização. "Uma das nossas tarefas é a de liberar o tipo humano que quer a revolução, que
deve consegui-la para evitar o fracasso" (MARCUSE, 1969b, p. 31). São duas frentes de luta:
a capacidade de organizar as insatisfações e, interligada à esse mesmo polo, a identificação
dos pontos de fechadura do sistema de poder.
O espaço entre a liberdade e a necessidade, entre a sociedades livre do amanhã e não
livres do presente é que determinaria o real: a racionalidade e a diminuição das horas de
trabalho não significam a libertação do homem em relação ao sistema produtivo. Libertar-se
Benjamin, e Erich Fromm), conhecia os Manuscritos Econômico-Filosóficos de Marx. Para além da
―dialética do senhor e do escravo‖, entendia que o processo de libertar a classe trabalhadora significava
libertar também o opressor. Assim, seus trabalhos que, como em Bloch procuram unir marxismo e
psicanálise, retratam os muitos impasses e dores da emancipação do mundo.
234
do trabalho seria tornar a atividade produtiva prazerosa, como pensou Fourier, e não orientada
para o lucro, como no capitalismo.
"Acredito que uma das novas possibilidades nas quais se expressa a diferença
qualitativa entre uma sociedade livre e uma sociedade não livre consiste precisamente na
busca do reino da liberdade já no interior do trabalho e não além dele" (MARCUSE, 1969b, p.
14). Essa busca precisaria trazer para o âmago do socialismo as qualidades da sociedade livre,
não repressiva, com a liberdade e preponderância estética da sensibilidade humana e sua
convergência para a técnica, a arte, o trabalho e a política.
Equivale a saltar do conceito de utopia como negação da sociedade vigente para a
elaboração, pelo marxismo, como Marcuse (1969b, p. 22) define a "teoria crítica", para um
conceito de liberdade que fosse um "bem ainda jamais gozado pelo homem". Seria um
caminho especulativo que levasse o socialismo da ciência à utopia e não da utopia à ciência
como acreditava Engels (2005). Sendo um conceito "extra-histórico" (MARCUSE, 1969b,
15) a exigir ruptura com os padrões sociais vigentes, a utopia sofre com o estigma da
impossibilidade, como aconteceu, no passado, com o projeto comunistas no interior da
revolução francesa e o socialismo, na atualidade, nos países de capitalismo avançado.
A contrapartida é que a impossibilidade pode ser provisória, se transformando em
possibilidade, pelo conceito de ainda-não-consciente de Bloch (2005), no decorrer do
processo de mudança. O paradoxo, portanto, é que existem todas as "forças materiais e
intelectuais necessárias à realização de uma sociedade livre", mas o marxismo permanece
confinado no terreno da utopia irrealizável (MARCUSE, 1969b, 16). ―A necessidade não se
configura (ou não mais se configura) como necessidade vital em grande parte da população
dos paìses de capitalismo desenvolvido‖ (MARCUSE, 1969b, 17). O resultado é uma
sociedade repressiva, não livre, fundamentada nas premissas do lucro, da hierarquização e da
estrutura tecnológica, mas que devida as suas contradições, a progressiva concentração do
trabalho socialmente útil, "solapa os fundamentos do próprio poder" (MARCUSE, 1969b, p.
18).
Em O Capital, Marx, cita Marcuse, "observou corretamente que uma automação
completa do trabalho socialmente necessário é inconciliável com a preservação do
capitalismo" (MARCUSE, 1969b, p. 18-9). O trabalho socialmente útil ou necessário é o
trabalho alienado. Se excluído do processo ou fisicamente desaparecer, há possibilidades das
potencialidades técnicas assumirem caráter libertador e pacificador, tornando possível
transformações no mundo e novas relações humanas, sem que se remova da vida os
benefícios da técnica e da industrialização capitalista (MARCUSE, 1969b, p. 20-1). Como
235
predomina a ilusão de que é possível concretizar a utopia de libertação do trabalho no
ambiente capitalista, se torna imperativo pensar, por exemplo, a psicanálise como força de
criação de um mundo melhor e libertando o homem das pressões pulsionais. Como reivindica,
Bloch (2005) com a ideia do ainda-não-consciente, a psicanálise torna-se postulado do
materialismo revolucionário.
No entanto, esse é apenas um lado da história. Soma-se o postulado político: uma
revolução libertadora exigiria do homem o pensamento crítico com relação à sociedade
contemporânea, o que implicaria em transcender a passividade das consciências. Esse é o
grande problema, no entendimento de Marcuse (1969b), com que se debate o materialismo
revolucionário. Seria a falta de consciência um obstáculo definitivo à mudança? Não. A
consciência se forma no processo. O problema seria, ainda de acordo com Marcuse (1969b),
uma clara teoria de liberdade e organização.
Marcuse (1969b) definiu a utopia como influência do pensamento de Marx de que
vivíamos a pré-história da humanidade e do combate implacável ao capitalismo. Essas
peculiaridades, continua Marcuse, foram superadas pelo ambiente de ―liberdade‖ do mundo
capitalista, inexistente no mundo socialista, o que tornava a teoria marxiana superada pelo
estágio, naquele momento, das forças produtivas. Não nega, é evidente, a alienação do
trabalho, mas não encontra, na utopia, a convergência do reino da liberdade com o reino da
necessidade. Pensava descortinar, no mundo capitalista, não um objeto, mas ―a possibilidade
de liberdade no âmbito da sociedade existente‖ (MARCUSE, 1969b, p. 22). Ao mesmo
tempo, Marcuse (2004) escreve em Razão e Revolução:
O mundo das mercadorias é um mundo ―falsificado‖ e ―mistificado‖ e a
análise crítica desse mundo deve começar por acompanhar as abstrações que
o constituem, devendo, pois, partir dessas relações abstratas para atingir o
seu conteúdo real. O segundo passo é, pois, fazer a abstração da abstração,
ou abandonar uma falsa concretude, de modo que a verdadeira concretude
possa ser restaurada (p. 269).
De acordo com isso, a dialética marxista é o absoluto da verdade, não limitando o
homem ao processo metafísico do ser, nem à imobilidade da rejeição da teoria revolucionária.
Corresponde ―à negação e destruição do existente‖ (MARCUSE, 2004, p. 242). A
objetividade daria sentido à dialética materialista, sendo incompatìvel com ―a orientação
exclusiva dos movimentos revolucionários para fins econômicos, porque todo fim econômico
tira seu sentido e conteúdo unicamente da totalidade da ordem social para a qual aquele
movimento está dirigido‖ (MARCUSE, 2004, p. 24).
236
Envolve a negação da sociedade de classes, transformando a dialética materialista em
atitude libertária dentro do capitalismo, desvelando-se para traduzir as ambiguidades do
processo utópico, o que, em Marcuse, pode, em parte, ser conduzido pela influência
hegeliana, em parte, influenciado pela sua época. Não por coincidência, recorda que, depois
de 1840, a Alemanha optou pela filosofia conservadora, enquanto Hegel ―passava de Karl
Marx a Lênin e Moscou‖ e que sua influência morreu na Alemanha no dia em que Hitler
―subiu ao poder‖ (MARCUSE, 2004, p. 356).
Em Congédier l’utopie? de Henri Maler (1994), o fluxo crítico é contundente e aponta
para a filosofia blochiana como contradição dialética: Bloch teria sido traído pelo seu próprio
método de tentar chegar à totalidade partindo dos fragmentos de utopias inacabadas para a
utopia socialista. Nega a capacidade antecipadora da utopia e considera o socialismo
científico um fenômeno nascido na Alemanha e para alemães. Nascido da pena de Engels,
evoca Marx e se considera orgulhoso de descender de Kant, de Fichte e de Hegel, não de
Saint-Simon, Fourier e Owen.
Bloch, adverte Maler (1994, p. 250-4), proclama que as utopias parciais foram
ultrapassadas pela ciência revolucionária marxista, mas não ultrapassa o plano do retorno
fragmentário à utopia. Critica Bloch por ter insistido na utopia, retorno condenado duas vezes
por Marx: na Revolução de 1948 e na Comuna de Paris (MALER, 1994, p. 250-4). Critica-o,
também, por considerar que Bloch ―maltrata‖ as utopias de Bellamy – Looking Backward – e
de Morris – News from Nowhere. Uma por ser estatista, outra por ser romântica.
A teoria de Maler é que as duas utopias difundem o valor do marxismo, mas são
reveladoras das suas ―ambiguidades e impasses‖ (MALER, 1994, p. 253). Radicaliza a crìtica,
ao tratar das utopias parciais relativas às mulheres e jovens. Critica Bloch por considerá-las
parciais: seriam parciais por terem sido esquecidas na totalidade do modelo soviético, não por
serem manifestações parciais. A sua visão é de que as utopias acompanharão o desenrolar da
história, mas que Bloch tem o mérito de criticar a utopia como sendo meramente ciência,
além de não aceitar a exclusão da utopia pela ciência. Conclusão, o conceito de utopia
materialista é conceito comunista de utopia e se encontra fora de época (MALER, 1994, p.
253).
Jürgen Habermas (1987), que um dia foi marxista, define Bloch como ―marxista
romântico‖ ou o ―Schelling marxista‖ e, nele, encontra ―a mente do Odisseu e o espìrito do
êxodo‖, além da preponderância da fome como primeira necessidade do homem, sobre a
libido freudiana (HABERMAS, 1987, p. 61). Ele ouve na utopia de Bloch a música dos
ensinamentos de Schelling quanto à humanização da natureza e da natureza humanizar o
237
socialismo. Ouve as vozes da influência da filosofia alemã, primeiro católica, depois
protestante, no messianismo cristão de Bloch e, também, a voz de Jacob Böhme na crítica ao
materialismo mecanicista na Inglaterra do século XVII e na França do século XVIII.
(HABERMAS, 1987, p. 68-70).
No final, chega à ética com pretensão de universalidade (Geltungsansprüche), mas de
cunho romântico filosófico, de impossibilidade prática. Simplificando, é uma utopia que peca
pelo excesso de utopia porque o presente não conteria os traços necessários de uma futura
antecipação socialista. Ao contrário de Lucács, Bloch e Marcuse, segundo Martin Jay (1984a,
p. 465), Habermas nunca acomodou impulsos românticos na sua visão do marxismo e a sua
filosofia sempre se direciou para a razão, mesmo que fosse a ―razão parcial‖120
que estaria no
centro da sua filosofia e das críticas ao marxismo.
Bloch não capitulou do valor real da utopia, ou seja, o humanitário-progressista.
Contra os crìticos, argumentava não existirem ―verdades eternas‖ (referência a Leibniz e as
―verités éternelles‖) e que a verdade dialética entre igualdade e não igualdade não é
necessariamente lógica, um ―cristalino-perfeito‖, mas que não desapareceu e se impôs
(BLOCH, 2006b, p. 427). Além de refletir sobre a filosofia do tempo, caberia ao filósofo
também criar alternativas. Fato é que o mundo é cambiante, mas a matéria original da utopia é
infinita, dependendo da identificação da ―imagem filosófica dos sonhos‖ com a diversidade
dos seres humanos ―em relação ao mundo e do mundo em relação a si próprio‖ (BLOCH,
2006a, p. 430).
5.3 NA UTOPIA NADA SE PERDE, APENAS A ILUSÃO SE TRANSFORMA
O que caracteriza o poder e a verdade do marxismo é justamente o fato de
ele ter dissipado a nuvem que envolvia os sonhos para a frente sem ter
apagado as colunas de fogo que neles ardiam, dando-lhe, ao contrário,
força e concretude.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 145)
A posição de Hans Jonas questiona o poder da filosofia marxista e blochiana. As
raízes de tal entendimento são plantadas na crítica ao ideal utópico de Bacon, que, na visão de
Jonas implicaria na ―dominação da natureza por meio da técnica‖ e no marxismo como
120
―partiality for reason‖.
238
―executor do ideal baconiano‖ (JONAS, 2006, p. 235-9). Marxismo, nesse caso, é igual a
Ernst Bloch e à ideia de que toda a história até agora é uma pré-história e que a verdadeira
história só começaria com a emancipação do homem do capitalismo. Uma exposição mais
completa constataria que, na visão de Jonas, Marx teorizou o socialismo no alvorecer da
mecanização e que suas ideias serviriam para aquela época, não mais para atualidade, apesar
da ―revoltante‖ riqueza de poucos em detrimento da pobreza de muitos (JONAS, 2006, p.
240). Não significaria, porém, que essa contradição seja uma ―força capaz de mover a
história‖, nem justificativa para a ―irracionalidade do lucro‖ (JONAS, 2006, p. 240-2).
As relações entre o homem e a necessidade seriam mais plausíveis de suscitarem
mudança (com relação ao sistema do lucro) do que a desigualdade, mas estas independem de
teorizações. Certas forças produtivas, segundo Jonas, poderiam ser caracterizadas como
necessidades, como são os casos da indústria armamentista, da criação artificial pela demanda
de bens de consumo e os prejuízos da crescente industrialização causados à ecologia global.
No estágio em que se encontra, o capitalismo não se dispõe a enfrentar esses problemas pois
sofre do drama do ―hedonismo‖ e, ao contrário do socialismo, não se predispõe a mobilizar as
massas para questões éticas ou de sacrifìcio, com expectativas para ―uma realização futura
sustentada pelas privações presente‖ (JONAS, 2006, p. 245).
O que irá acontecer é uma zona de ―penumbra polìtica‖, mas nada garante que o
socialismo irá eliminar a motivação para o lucro e que o comunismo esteja imune ao egoísmo
regional, nem que se irá superar o culto à técnica (JONAS, 2006, p. 247-55). Contudo, para
ele, o que mais seduz na ―alma do marxismo‖ é a utopia da sociedade sem classes que seria a
sua ―tentação mais nobre‖ e por isso ―a mais perigosa‖ (JONAS, 2006, p. 256). Porque não
especifica, e não poderia ser diferente: qual será o homem do futuro, baseando-se na crença
na ―redenção‖ pela história.
Para tentar explicar o futuro, Jonas (2006, p. 259) prefere recorrer ao super-homem de
Nietzsche, que ―experimentava desprezo pelas bênçãos da igualdade socialista‖ e suas
―beatitudes coletivas‖. Nietzsche, também, considerava a sociedade transitória em relação ao
futuro, mas no que se referia ao homem. A diferença, apontada por Jonas, é que o marxismo
considera o homem fundamentalmente ―bom‖ e sua face de maldade decorria das
―circunstâncias‖ (JONAS, 2006, p. 260).
Para Nietzsche, o homem do futuro sempre existiu, com maior ou menor grau de
maldade, benevolência, coragem, genialidade ou mediocridade, sem que se precise recorrer ao
―desejo infantil‖ (igual a utopia) de querer tudo ao mesmo tempo‖ (JONAS, 2006, p. 261-2).
239
O ―querer tudo‖ é explicado por Jonas (2006, p. 262-3) como a combinação da
superioridade moral dos cidadãos da sociedade sem classes com o bem-estar material. Para
ele, a palavra de ordem mundial, se o homem desejar sair da armadilha em que se envolveu
(em vez do ―crescimento‖, a desaceleração do crescimento), invoca a ―contração‖, o que se
torna mais difìcil para os ―pregadores da utopia‖ do que para os ―pragmáticos, desvinculados
de ideologias‖ (JONAS, 2006, p. 265).
Há um momento, em O Princípio Esperança, em que Bloch (2006a, p. 431) imagina
que mesmo as ideias mais não convenientes possam ser aceitas com ―leveza‖ e ―humor‖
dionisíacos como se fossem uma sinfonia de Berlioz. Mas a realidade talvez seja diferente, a
prevalecer a reflexão de Hans Jonas. A ―humanização da natureza‖, que Bloch vincula à
emancipação do trabalho humano, não passaria da ―subjugação completa da natureza pelo
homem‖ (JONAS, 2006, p. 334).
Qual seria o rosto dessa natureza? Jonas (2006) pergunta e propõe que, em lugar de
humanização, fale-se de ―abertura‖ da natureza e ―proximidade‖ com o homem, porque, para
ele, Bloch não percebe tal nuança, e esse seria o paradoxo: a natureza não utilizada pelo
homem é a ―natureza humana‖, enquanto a natureza colocada a serviço do homem é a
―natureza inumana‖ (JONAS, 2006, p. 336). A ―natureza aberta‖, para Jonas (2006), seria a
natureza da ética da responsabilidade. Por último, não encontra sentido no ―ainda não ser‖ do
existir de uma vida que o homem nunca viveu, uma utopia de eternidade no avançar do
tempo.
A simples verdade, nem gloriosa, nem deprimente, mas que precisa ser
respeitada em toda a sua inteireza é a de que o ―homem verdadeiro‖ existiu
desde sempre – com seus altos e baixos, em suas grandezas e em sua
mesquinhez, em seu gozo e em seu tormento, em sua justificativa ou em sua
culpa, ou seja, em tudo que não é separado em sua ambivalência. Tentar
eliminá-la significa querer suprimir o homem e o caráter insondável da sua
liberdade. Por causa desse caráter e da singularidade de cada situação, esse
homem será sempre novo e diferente dos demais, porém, jamais ―mais
verdadeiro‖. Tampouco poderá ser protegido dos perigos intrìnsecos que
precisamente fazem parte da sua ―verdade‖ (JONAS, 2006, p. 343).
Seriam as visões de Bloch e Hans Jonas complementares ou excludentes? O debate em
torno de Bloch é o legado da sua obra. O seu sistema de pensamento é aberto porque se
reelabora a partir das novas problemáticas que surgem. Segundo Michèle Bertrand (1986, p.
185, tradução nossa), se trata de uma questão de ―crença‖121
em Marx e Bloch. Não se refere,
121
―croyance‖.
240
é evidente, a uma crença religiosa ou a um sentimento religioso. Se refere a uma crença
objetiva de ideais, objetivos e esperança. São fundamentos do mundo que podem levar o
homem adiante, como levaram no passado a esquerda aristotélica e os jovens hegelianos de
esquerda.
A materialização da ―crença‖, aludida por Michèle Bertrand, aconteceria quando o
homem investigasse Feuerbach, Marx e Bloch e constatasse que a ilusão não é uma simples
falta da conhecimento, mas que esta tira a sua força do desejo. Conhecimento e desejo se
fundiriam na tentativa de capturar a ―essência humana‖: em Feuerbach a relação com o sujeito
de conhecer, amar, desejar: em Marx uma essência abstrata, sendo parte do mundo do
homem, do Estado e da sociedade, uma essência caraterística do indíviduo isolado, explícita
nas estruturas das relações humanas; e em Bloch a essência é o homem sem os grilhões da
fantasia, o homem universal que reencontra sua força no Iluminismo e se mobiliza para se
tornar soberano.
De forma reveladora, segundo Michèle Bertrand (2006), os múltiplos traços da
essência humana podem ser encontados em Münzer, Teologo da Revolução e nascem dos
estudos místicos e religiosos de Bloch. Estão presentes no misticismo medieval (não um
misticismo ―romanesco‖, que se desenvolveu no fim do século XVI e XVII, e que em Bloch
se encontra longe de ―humilhar a razão), na filosofia de Eckhart e Gioacchino di Fiori, e nos
conceitos místicos de que Deus vive no interior do homem, da unidade entre o homem e
Deus. Encontram-se também em A Ideologia Alemã de Marx, nas relações de classe nas
contradições da tendência universalista do capital. Para Bertrand, é impossível se pensar na
emancipação do homem sem ideiais e essa hipótese não é uma idealização, mas condição de
um processo em que os indivíduos se apropriam da realidade social.
Considera que Bloch, mais do que Marx, foi quem trouxe ideias originais para a
concepção de ideais, com o conceito de utopia concreta, oposto ao socialismo científico de
Engels e ao socialismo utópico anterior a Marx. Sem ―crença‖, não há antecipação utópica
como alvo, não há o dever-ser, não há convicção do que se deve construir. Há apenas a ilusão
tão comum aos tempos atuais.
Se esse legado blochiano é ou não complementar a Jonas a realidade irá, sem dúvida,
decidir. Mas, sob o aspecto da crença, Bertrand (1986) não hesita em lembrar: segundo Bloch,
a crença no futuro renasce sem cessar. Nunca é descartada pelos homens na sua existência
concreta e nos seus projetos históricos. É o que parece confirmar o debate entre Ernst Bloch e
Theodor Adorno, quando este último pergunta o que se perdeu na utopia com o passar do
tempo e diz imaginar que as novas tecnologias demonstram a falta de renovação da utopia.
241
Bloch responde com frase curta e direta: ―Nada se perdeu na utopia... As pessoas precisam
comer antes de dançar‖ (BLOCH, 1988, p. 15). O debate está no livro Utopian Function of
Art (Gesprächt mit Ernst Bloch). À parte a amizade que os unia, Bloch argumentava, ante a
questão de Adorno, que o mundo capitalista poderia comprar utopias, criar utopias baratas,
banalizar a utopia e até fazer dela uma espécie de niilismo, mas que o sonho socialista
permaneceria acordado.
Referia-se à eternidade do conceito na existência histórica do homem. O conceito de
utopia relacionava-se com os variáveis momentos da sociedade, mas só seria superado com a
sua concretização. À mutabilidade das formas da utopia, Bloch já tinha se referido ao falar do
deslocamento da ―religião para o céu‖ ante a impossibilidade de resolver os problemas do
homem na Terra (BLOCH, 2006b, p. 388). E, se Hegel admitia a distância em que o Estado se
encontrava para atingir a perfeição, Bloch não deichava de reconhecer que o mundo sem
alienação se situava num tempo indeterminado. Recorria também a Platão para reafirmar que
se o homem é ―uno‖ (verdadeiro, bom) na procura do bem comum, nada o impede também de
ser ―diverso‖ (BLOCH, 2006b, p. 404-5).
A dúvida, argumenta Bloch (2006b) surgiu com a escolástica – se o homem é regido
pela vontade ou pela razão, pela bondade ou pela verdade -, mas, de qualquer forma, a ―bem
aventurança suprema‖ (o que Platão havia denominado de ―satisfação plena) decorria da
preponderância da procura do bem comum. O bem comum seria idêntico ao sujeito da utopia
e estava no ―ápice dos ideais‖, era o ―absoluto da intencionalidade humana‖, o ―para quê
aboluto‖, ou, numa expressão popular, o ―sentido da vida‖ (BLOCH, 2006b, p. 405-6).
Bloch estava tratando do tempo ao dizer que ―nada se perdeu na utopia‖. A sua utopia
era atemporal. O sentido da esperança era um processo. O processo poderia ser retardado, mas
não se interromperia, por exemplo, com a queda do muro de Berlim e o desmembramento da
União Soviética, passadas décadas da primeira edição de O Princípio Esperança. A revolução
tenha sido negada e renegada e não faltaram, como não faltam, tentativas em secularizar
Marx, o que equivale a considerá-lo obsoleto e ultrapassado. Bloch insistia que a utopia
marxista não pode ser secularizada, porque não foi superada. Enquanto inexistir a sociedade
sem classes, essa superação não irá ocorrer pelo fato de que o homem continuará a explorar o
homem. Bloch, em O Princípio Esperança, sugere que o fim da experiência soviética
corresponde ao recomeço efetivo: o homem, não o partido, é o fundamento primeiro de uma
sociedade socialista e, consequentemente, livre. A ruptura com os valores burgueses pode ser
lenta ou rápida, depende da vontade do homem prometeico. É uma filosofia da práxis, não
uma doutrinação.
242
Há, em Marx, segundo Bloch (2005), equilíbrio entre teoria e prática, as quais se
renovam mutuamente. Na filosofia blochiana, o que inexiste é qualquer possibilidade de
criação de uma sociedade universal com raízes na propriedade privada. A mudança poderá
ocorrer como resultado do sonho acordado com o futuro, corresponderá a uma nova ontologia
do ser humano. A sua ideia chave é que a estrutura capitalista repouse sobre a ilusão do lucro.
Como O Capital, The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e O Princípio Esperança
poderiam ser entendidos como grandes romances de formação para a futura juventude dos
tempos. Seus conceitos e ética revolucionária podiam ser vistos como projetados para um
tempo vindouro, como foi também a Fenomenologia do Espírito de Hegel. Simbolizam a
possibilidade, não a norma. Revelam a dialética do real e do sonho.
A utopia, como argumentou Bloch em debate com Adorno, podia ter se tornado
―difusa‖, mas esse era um ―retrato instantâneo‖ e logo haveria rebelião contra tal
―iconoclastia‖ (BLOCH, 1988, p. 11). Argumentava que a utopia era a crìtica ao presente e
que o marxismo era a forma de iluminação para que o homem antecipasse o futuro, a única
condição para viver em liberdade e em felicidade, condição em que a vida fosse completa. E
não hesitou em reafirmar que a mudança de sistema se tratava de uma questão de processo.
Confronto semelhante deu-se entre Bloch e Benjamin, só que num contexto histórico
diverso, mas com conteúdos cristalinos. Não foi num programa de debates, mas ao longo de
sucessivos encontros já que Benjamin, em ―certo sentido‖ viria a ocupar o espaço de amizade
intelectual e humana que antes Bloch dedicava a Lukács (MÜNSTER, 1997, p. 204).
Testemunha da proximidade foi a redação de Traces (Spuren) em que o estilo de Bejamin
transparece no olhar ―crìtico e benévolo‖ de Bloch para as pequenas coisas do cotidiano e na
união do anedótico ao conto de fadas, misturando sociologia, sátira e ironia (MÜNSTER,
1997, p. 204).
Ambos foram ―representantes máximos‖ do pensamento filosófico dos judeus alemães
no século XX e descendiam de famílias que assimilaram a cultura alemã; foram formados em
universidades alemãs sob a influência do hegelianismo e do kantismo, também tributários do
pensamento de Nietzsche e se sentiam atraídos pela mística alemã de Jacob Boehme, de
Eckardt, pela mística russa de Dostoiévski e se interessarm pela doutrina da cabala que estava
no ―centro da teoria do auto-encontro mìstico‖, além do romantismo alemão (MÜNSTER,
1993, p. 56; 1997, p. 124). Eram também marxistas, mas independentes e críticos, eram
pacifistas e se exilaram voluntariamente na Suiça para escapar da mobilização militar
obrigatória.
243
No entanto, quando se conheceram em Berna, em 1917, Benjamin não se interessava
pelo marxismo, pelos partidos políticos, nem pelos escritos místico-utópico-revolucionários,
por exemplo, de Gustav Laudauer que muito influenciaram Bloch. Naquela época, Bloch
estava lançando O Espírito da Utopia, mas Benjamin recebeu o livro com reservas: criticou
sua dimensão ontológica na visão messiânica da história, criticou a visão blochiana da teoria
da história e as criticas de Bloch a Kant, além de considerar que Bloch foi ―precipitado‖ ao
escrever o livro (MÜNSTER, 1993, p. 59). Bloch avaliava os movimentos sociais da época
como a chegada da era messiânica por ele prevista. Benjamin não. Se mantinha indiferente.
Não tinha ―aderido‖ à visão utópica do mundo (MÜNSTER, 1993, p. 61).
Nos anos seguintes, Bloch desvinculou-se da visão místico-apocalíptica da
transformação social, fixando-se no conceito do ainda-não-ser, elaborado em O Princípio
Esperança, enquanto Benjamin caminhou para a visão apocalíptica expressa no ensaio
Passagens, em que se propõe, a partir de Paris, fazer uma história fragmentária do
materialismo do século XIX. Eram caminhos diferentes. Bloch fixava-se no olhar para a
frente e no sonho diurno, o sonhar com ―as coisas e o além das coisas‖, ―muito menos
presente‖ no pensamento de Benjamin, mesmo que com seu ―sonho do século XIX‖ Benjamin
pretendesse ―arrancar‖ aquela época das ―garras do museu do passado‖ (MÜNSTER, 1993, p.
71).
Segundo Münster (1993, p. 76), mesmo a visão do apocalipse, em Bloch, é diversa da
visão de Benjamin: Bloch acentuava ―energicamente‖ os aspectos salutares do apocalipse da
Bíblia e sobre as categorias fundamentais do Novo Testamento como ―luz‖ e ―vida‖ que
simbolizariam ―o paraìso‖. Seria um processo de ressurreição da natureza e da descoberta do
verdadeiro rosto humano.
Ao contrário, Walter Benjamin realiza, na sua própria visão da história, uma
síntese entre a visão apocalíptica da redenção, própria do messianismo
judaico, e as imagens dialéticas dos combates da humanidade, oprimida pela
emancipação, na história política e social do século XX (MÜNSTER, 1993,
p. 73).
No decorrer dos anos 20, Bloch conhece importantes aperfeiçoamentos no seu modo
de pensar o mundo: concebe a utopia da vida melhor sob o signo do devir-filosofia-do-mundo
ou devir-mundo-da-filosofia, desenvolve a categoria do ―possìvel‖, rejeita o reformismo da
real-politik da social-democracia, estuda o homem, a natureza e, como resultado desse
processo, defende a emancipação universal da humanidade.
244
Benjamin, leitor apaixonado do filósofo social Louis-Auguste se deixa fascinar pelas
lutas sócias do século XIX e volta ao passado das barricadas e da Comuna de Paris.
Empenhava-se em desmistificar as lutas sociais, mas se deixa envolver pelas nuvens de
―pessimismo‖, tal como aconteceu com Blanqui que afirmou ser toda a crença no progresso
da história uma ―pseudociência‖ e ―completamente erronêa‖, alquebrado pelos maus tratos
que recebera ao longo de três décadas de prisão, depois das acusações de tramar uma revolta
armada (MÜNSTER, 1993, p. 73-6).
[...] Bloch trabalha com uma concepção mais combativa do acabamento do
processo da história, no sentido da crença nas possibilidade de concretização
das ideias utópicas na história, apesar de todas as catástrofes e triunfos
históricos do mal. Crendo nas possibilidades reais de concretizaçãoo de um
ser utópico a partir de uma realidade negativa e na humanizaçãoo final do
mundo através da ressureição da natureza‖ e do advento do Reino da
Liberdade‖ e contra o catastrofismo de um pensamento histórico, que se
deleita na contemplação das ruínas e das imagens da destruição, Bloch opõe
sua própria cosmovisão do ‗princìpio esperança‖, que é marcada por um
certo ―militantismo‖ e que exclue o que em Benjamin aparece
frequentemente como resignação, melancolia ou abandono ao ―niilismo
(MÜNSTER, 1993, p. 76-7).
Há, em Benjamin, segundo Münster, uma desilusão e ―pessimismo‖ quanto à
possibilidade de progresso da história na direção contrária à barbárie. Em Bloch, é diferente.
Bloch combate a visão ―trágica e pessimista‖ e acredita na ―concretização das ideias utópicas
na história‖ (MÜNSTER, 1993, p. 76). Essa recusa ao pessimismo é que fascina em Bloch:
ele não cede à tentação daqueles que, mesmo sendo marxistas e revolucionários, tentam
separar o poeta que vive em Bloch do sistema utópico que ele considera possível construir.
Bloch condena o pessimismo e o desespero com a mesma veemência com que recusa a
violência espontaneista, no estilo de anarco-sindicalismo de Sorel como força mobilizadora, o
que Rosa Luxemburgo já condenava como radicalmente prejudicial ao trabalhador. Foram
itinerários diferentes desde The Spirit of Utopia (Geist der Utopie), que Benjamin criticou por
não ter ―nada em comum‖ com a filosofia de Bloch, mas eram ligados pela amizade.122
O que
houve em comum com o debate com Adorno foi a persistência de Bloch em defesa da visão
utópica do mundo, um ―mundo aberto‖ pleno de possibilidades de vida ainda não acontecidas.
122
Cf. Filosofia da Práxis e Utopia Concreta, de Arno Münster, 1993.
245
5.4 PARA ALÉM DA LUTA DE CLASSES, A HUMANIZAÇÃO DA DIALÉTICA E O
HOMEM SEM DEUS
O espelho do reconhecimento é examinado quanto as manchas ou
irregularidades, antes de se trabalhar com ele.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 402)
Bloch olhava para o futuro quando se inclinava sobre a esquerda aristotélica, a
esquerda hegeliana e quando reinterpretava a alquimia e rompia com a visão tradicional da
magia no mundo para, simbolicamente, ater-se à ciência e suas relações com a natureza.
Considerava nessa caminhada que a verdadeira sociedade seria aquela em que o homem não
fosse considerado um ―corpo estranho‖123
e tivesse ―direito à felicidade‖,124
sem o entrave da
propriedade privada e da sociedade de classes, pois ―o olho da lei‖ é o rosto da classe
dominante (BLOCH, 2002, p. 373-5; 218). Estabelecia também uma tendência fundamental
do marxismo, que é a construção do mundo sem Deus.
Sendo diferente, palavras como Liberdade, Igualdade e Fraternidade, nucleares na
Revolução Francesa, não passariam de meros conceitos relacionais, sem que fossem efetivos
direitos do homem e dos cidadãos, sem que correspondessem ao novum da libertação sobre a
opressão (BLOCH, 2002, 210-6). Seu entusiasmo não era vazio, mas militante. A utopia, em
Bloch, era a possibilidade de falar da potencialidade humana, fundada no instante e na
perspectiva de ultrapassá-lo, exigia um mundo em que o homem fosse o senhor de si próprio.
Esse é um tema de controvérsias por causa até da substancial influência que o
cristianismo viria a ter na utopia blochiana, mais exatamente o Antigo Testamento. E,
evidentemente, da reação que a ideia de Liberdade, Igualdade e Fraternidade vem provocando
desde a Revolução Francesa e que Bloch (2002, p. 24) resume ao associar a ideia de
democracia real às palavras de Rosa Luxemburgo: ―Não existe democracia sem socialismo,
não existe socialismo sem democracia‖.125
Em Thomaz Münzer, Teólogo da Revolução, Bloch
defende a ideia de que Münzer126
era a luz contra a escuridão de Lutero, que não acreditava
123
―corps étranger‖.
124
―droit au bonheur‖.
125
―Pas de démocratie sans socialisme, pas de socialisme sans démocratie‖.
126
Bloch descobriu Münzer no final da Primeira Grande Guerra através dos estudos de Engels e Kautsky sobre
a guerra camponesa alemã (MÜNSTER, 1993, p. 66).
246
no homem, era a própria visão de Moisés, como precursor do comunismo, não deixa de ter
raízes no pensamento judaico-cristão de igualdade entre os homens (BOLDYREV, 2014, p.
752-60). A ausência de Deus não significa, porém, ausência do divino: em Bloch, ―Deus é a
negação da ordem existente‖, é a escatologia de uma nova cultura, é o destino comum do
homem e do mundo (BOLDYREV, 2014, p. 32-4). Libertar-se de Deus era olhar para a Terra.
Segundo Furter (1974, p. 172), se Bloch ―na primeiro versão do Espírito da Utopia admitia
que o ateìsmo era uma ‗hipótese de trabalho‘, na versão definitiva riscou esta frase e afirma:
―O ateìsmo é uma evidência‖.
O exame da questão de Deus, que segue a interpretação de Feuerbach (―o ser humano
não foi criado à imagem de Deus, mas Deus à imagem fiel do ser humano‖ (BLOCH, 2006b,
p. 368), é realizado no capítulo 53 de O Princípio Esperança. Bloch (2006b, p, 369) salienta
que a humanidade fez de Deus as suas esperanças e o reino ―é exterioridade e não só
interioridade, é ordem e não só liberdade, é essencialmente a ordem daquela subjetividade que
não é mais afetada pela objetividade‖. É, no entender de Bloch (2006b, p. 371) a luz utópica
dos desejos que fez nascer o cristianismo e nada mais é do que a ―essência da próprio
existência humana‖. Furter (1974, p. 174) é esclarecedor: ―A revelação de ‗Deus‘ depende da
realização do homem. Na medida em que soubermos o que é o homem, seremos capazes de
afirmar o que é Deus‖. Deus projeta o homem na transcendência, mas essa transcendência não
precisa necessariamente ser celestial. Pode ser terrena e apoiar-se na própria vontade soberana
do homem.
O filosófo [Bloch] fez do Êxodo a chave da sua interpretação. O Êxodo
como rebeldia do povo escolhido sob a orentação de Moisés contra a
escravidão do Egito, é o ‗paradigma‘da Boa Notìcia, libertadora das
Escrituras. Através do ‗espìrito do Êxodo‘ se esclarecem os eventos
significativos da História Bíblica: a narração da Gênese como criação
contínua; o surgimento de um povo na História pela realização de uma
promessa feita a Abraão; a universalização da libertação pela diáspora
judaíca e pela expansão universal do cristianismo; enfim, a acumulação das
heresias, que eclodirão nas Revoluções Modernas (FURTER, 1974, p. 175).
A visão blochiana de Deus, a partir do Êxodo – cuja historicidade é confirmada pelos
narradores bíblicos – e de Moisés – um homem que conseguiu pela consciência tirar seus
contemporâneos da passividade –, explica-se pelo seu gnosticismo como sendo o
conhecimento de múltiplas religiões, o que permitiu a Bloch, de um lado, separar o Deus
redentor do Deus criador e, além disso, verificar que, no momento em que a religião cristã se
realizasse na sua perspectiva social, o homem não precisaria mais de Deus para existir.
247
Como uma rebelião, o Êxodo torna-se o passo inicial para a procura da Terra
Prometida que é, igualmente, a Terra da justiça. Se a rebelião contra o faraó ganhou dimensão
na revolta camponesa liderada por Münzer e, posteriormente, com a Revolução Russa e a
ideia do socialismo universalizado, a Moisés se sucederia o messianismo que fundaria o
paraíso na terra e a figura de Cristo rebelde e martirizado.
O que no passado foi designado com o termo ‗Deus‘ não designa qualquer
fato concreto, nenhum tipo de entidade entronizada, mas um problema bem
diferente, e a possível solução para esse problema não se chama Deus, e sim
reino. Portanto, a longo prazo, as coisas aqui embaixo não se mostram tão
efêmeras como as de lá de cima. O ser humano herda os tesouros
transcendentes na medida em que se trata de tesouros e não de meras
carrancas daquilo que não se entendia. Porque, com certeza, junto com a
subserviência e a fraude senhorial, refletiu-se no além a insciência piedosa e
não só coisas concretas que realmente o são e continuarão sendo; o elemento
inconsciente mescla-se com elas (BLOCH, 2005b, p. 377).
Toda religião contém o elemento utópico e, ao mesmo tempo, a aura de santidade que
encobre as relações sociais. O Deus redentor é metafísico, o mistério do reino, o deus criador
é o ―filho do Homem‖, que em aramaìco significa o simples homem, não o gênero humano
(BLOCH, 2009a, p. 130-40). O cristianismo era, para Bloch (2009) na essência, um ateísmo.
Um cristianismo herético, que tem, em Moisés, um símbolo revolucionário. Mas o problema
estava nas fantasias que envolviam, nos primórdios, os mistérios da natureza e as ―sombras
gigantescas da insciência‖ muito diferentes dos ―tesouros‖ e ―desejos‖ humanos (BLOCH,
2006b, p. 378).
Tais particularidades desafiam as interpretações filosóficas, em especial o pensamento
positivista, niilista, relativista e historicista. Quem faz essas alusões é Manuel Ureña Pastor,
professor de metafísica da faculdade de teologia de Valência, Espanha, autor de um livro com
o sugestivo título: Ernst Bloch: un futuro sin dios? Bloch, segundo Ureña Pastor (1986, p.
573, tradução nossa), se distingue de todas as correntes do pensamento utópico por criar um
sistema em que reivindica ―a possibilidade e necessidade da metafísica, tanto em nome do
real, como em nome de um uso mais amplo da razão, como é, sem dúvida, a razão utópica,
teleológica e dialética‖.127
Nas palavras de Urenã Pastor (1986), Bloch se opõe à visão neopositivista e de todos
os positivismos (lógico, jurídico, econômico) de reduzir a filosofia a simples esclarecedora de
visões científicas, como procura na sua ontologia a responder questões kantianas básica para a
127
―la possibilidad y la necesidad de la metafísica, tanto en nombre de lo real como en nombre de un uso más
amplio de la razón, lo es sin duda la rázon utópica, tecnológica y dialéctica‖.
248
vida: O que podemos conhecer? O que devemos fazer? O que podemos esperar? Questões que
Bloch (2005) formula de maneira diferente como: Quem somos? De onde viemos? Para onde
vamos? Que esperamos? O que nos espera? São frutos não de um idealismo absoluto, mas um
idealismo nascido da fusão do idealismo tradicional como o marxismo.
Emerge do desafio agnóstico kantiano, do vitalismo nietzchiano e do otimismo
militante, nas palavras de Ureña, e rechaça o marxismo mecanicista e o existencialismo
niilista, para destacar um ―marxismo dialético e humanista, integrador, e um existencialismo
totalmente alheio à estaticidade burguesa‖.128
Rastreia o futuro no presente e legitima sua
epistemologia na consciência emancipadora contrutiva do homem, evitando interpretações
relativistas da história.
Como trata de um universo vivo e a sua teleologia atravessa o real, projetando-se para
o futuro, a possibilidade de frustração não se encontra afastada. ―O núcleo do seu futuro
existe no presente e se manifesta como tendência‖:129
é um processo que não permite
relativismos, nem historicismos, segundo os quais a ―filosofia expressaria única e
simplesmente a visão da realidade e de um tempo histórico, visão que muda como Proteu,
segundo a coloração ideológica de cada época‖130
(PASTOR, 1986, p. 573).
Daí o acerto blochiano de separar cultura de ideologia, sendo a primeira a única capaz
de reproduzir os valores do homem e assegurar a manutenção do sistema vigente. O conjunto
dessas peculiaridades seriam as conquistas do sistema filosófico de Bloch, um sistema que,
segundo Ureña Pastor (1986), procura a reconciliação do interior e do exterior do homem,
identificado com o bem comum. E Deus? Estaria entre as aporias do sistema blochiano ao
tentar fundir o ateísmo materialista, a transcendência gnosiológica, a utopia abstrata, a utopia
concreta, a crítica social, além da relação entre a dialética e a teologia (PASTOR, 1986, p.
574-7).
Mas, as incoerências, as incompletudes, os problemas trazidos pelo novo, interpreta
Ureña Pastor (1986, p. 575-6), são inerentes ao pensamento de Bloch que, para ele, é
―aporético‖ por falar ao mesmo tempo do ―novum‖ e do ―agora‖ transformador como
possibilidade real, por excluir do ainda-não-consciente a religião quando esta não existe em
virtude de uma determinada conjuntura histórica ou cultural, senão que em ―virtude da
128
―un marxismo dialéctico y humanista, integrador, y un existencialismo totalmente ajeno al pessimismo de la
estaticid burguesa‖.
129
―El núcleo del ser future late en el presente y se manifiesta aquì como tendencia‖.
130
―la filosofìa expresarìaúnica y simplemente la visión que cambia, como Proteo, según el color ideológico de
cada época‖.
249
estrutura mais funda do ser chamada constitutivamente o futuro‖.131
Esse o aspecto diretamente expressivo, na avaliação de Ureña: é a crítica de Bloch à
religiosidade humana. Teria ficado sem fundamento, mas Ureña Pastor não deixa de propor,
as seguintes questões: até que ponto a cultura humana, ao ver o seu autêntico rosto, seria
ateísta? Se o mundo aspira ao novo, e sendo essa aspiração consciente, relegaria a herança de
Deus ao plano de uma imagem escatológica secular? Por que Bloch em lugar de desteologizar
o mundo não propõe, sim, um retorno ao verdadeiro rosto do sentido de Deus? Observa-se,
contudo, em Uraña Pastor, a existência de uma visão revolucionária de Deus. Não um Deus
no mundo atual, mas Deus como aporia na construção do futuro, entendido por Bloch como o
―fim da alienação‖ ou, como ressalta, a necessidade do marxismo levar o cristianismo ―muito
a sério‖ para vê-lo, afinal, livre da alienação (BLOCH, 2009a, p. 251-7). Nas palavras de
Bloch:
Os degraus da escada para o céu afastaram-se da psicologia, o manual de
viagem da alma até deus foi transformado pelo primeiro profeta da mística
gótica, por Joaquim de Fiori*, num movimento da própria história, na
dinâmica do último evangelho. A humanidade inteira executa aí um
movimento – dos puros para a salvação, dos impuros para a destruição –
rumo à conformação mística com Cristo, um movimento rumo ao terceiro
reino; ela se alça acima dos reinos da lei da graça e alcança a plenitudo
intellectus. E esse estado de plenitude espiritual corresponde exatamente à
deificação em que a mística cristã envolveu seus iluminados: ela
corresponde, portanto, à comunidade de um Pentecostes universal. Ou, como
os Irmãos do Espírito Pleno, uma seita mística do tempo de Eckhart,
descreveram essa futura ou terceira era, bem no sentido de Joaquim [...]
(BLOCH, 2006b, p. 386-7)
A função de Deus ganha o sentido de união em prol do homem, porém se origina do
senso revolucionário. Deus, segundo Bloch (2006b, p. 387), deixa o ―cativeiro do mundo‖
para libetar o homem e o cristianismo assume feições ―plenamente heréticas‖. Significa,
literalmente, aos olhos de Bloch (2006b, p. 388), o mesmo alvo libertador faustiano: ―Demora
eternamente! És lindo!‖ Desloca a religião para o céu e a utopia para a terra, revigorando-a no
cerne do ser humano como ―sujeito-problema da natureza‖. O propósito não é um mundo
futuro sem Deus, mas um mundo futuro sem a ilusão de Deus. Seria a mesma concepção de
Uneña Pastor?
Nessa sequência de interpretações de Bloch, Suzana Albornoz e Antonio Rufino
Vieira não podem ser esquecidos. Albornoz (1999, p. 81-3) contribui para clarerar o conceito
de Deus em Bloch. Como referência da visão transformadora de Bloch, cita Gioachino di
131 ―virtud de la estructura más honda de su ser llamado constitutivamente al futuro‖.
250
Fiori ―o pai da utopia social mais importante da idade Média‖, que na sua utopia do reino não
só pregava a abolição do Estado como da Igreja. Era a incarnação revolucionária da utopia do
cristianismo primitivo que sobreviveu no cristianismo russo. Não sobreviveu, porém, na
Igreja da Reforma luterana, nem na Igreja da América Latina que viria a separar ―cristãos de
esquerda‖ e ―católicos de direita‖, a ―igreja dos pobres‖ da ―igreja do establishment‖
(ALBORNOZ, 1999, p. 83).
Visto assim, a utopia espíritual joachimnista se prolongaria na utopia de Münzer e
formaria uma ―longa corrente‖ que se projeta nos ―novos cristianismos‖ do século XIX como
Charles Fourier e Saint-Simon, influenciando também Pierre Leroux e George Sand, até
chegar, no dizer de Albornoz (1998), aos idealistas alemães como Goethe, Novalis, Hölderlin
e Fiche, às primeiras obras de Bloch e à ideia do apocalipse. Em O Enigma da Esperança
(1999) caracteriza di Fiori como o primeiro a fazer ressurgir o espírito do cristianismo
primitivo, proclamando um terceiro reino de onde seria banido o temor aos senhores. Livre, o
homem teria ―a pretensão a ser como Deus‖ (ALBORNOZ, 1999, p. 90). Em outro ponto,
interpreta o Cristo blochiano como o anunciador da ―natureza humana dvinizada‖, como se
fosse um novo Prometeu.
Para Albornoz (1999, p. 85), a influencia de Gioachino di Fiori em Bloch tem origem
em Hegel que ―com certeza se inscreveu naquela tradição‖. O culto joachimnista à natureza
influenciou vivamente a Schelling. A lei da natureza, explica Albornoz (1999), por não fazer
distinção de classes, aparece em Gioachino di Fiori como propícia ao igualitarismo
comunista. Certamente, a afinidade de Bloch e di Fiori é semelhante àquela que Bloch cultiva
com a esquerda aristotélica: a utopia é construída pelas mãos do homem, não por Deus. As
influências do cristianismo, judaísmo, messianismo, milenarismo e das correntes utópicas
apocalíticas, assim como o sonho grego da Idade de Ouro, podem ser interpretadas como
mediadoras da histórias, mas a história por mais que tenha o pano de fundo das religiões, é
obra do homem para o homem.
Em Ética e Utopia, Albornoz (2006, p. 106) lembra com recorrência a ―ética da
transformação‖ que, na perspectiva de Bloch, é a ética para o futuro: como a matéria está em
aberto, ―é preciso dirigi-la, defini-la, escolhê-la, dar-lhe a forma desejada, transformá-la ou
pelo menos ajudar o impulso e a tendência a tomar ou mudar a forma que trazem dentro de si
como essa possibilidade que é quase destinação para o futuro‖. Mas essas caracteristas podem
ser entendidas de forma mais profunda, segundo Albornoz: é a ética de uma filosofia prática,
de ação, na direção do novum. O pressuposto teórico é a Tese 11 de Marx sobre Feuerbach.
Uma sociedade ética e transformadora, nas palavra de Albornoz (2006), estaria entre os
251
melhores sonhos conscientes do homem.
Os termos ―esperança‖ e ―filosofia‖ unem Bloch à libertação dos oprimidos na
América Latina. A ligação surge em Marxismo e a Libertação de Antonio Rufino Vieira
(2010). Os fios da identidade são tecidos a partir de múltiplos pontos: o alcance universal da
utopia da esperança, a concentração das raízes da mudança na história humana e a
preocupação com a fome, fruto de um sistema onde se somam a injustiça, a alienação e a
opressão das classes populares.
A ideia da ―antecipação realista‖ do ainda-não-consciente é apropriada à realidade do
continente, segundo Rufino Vieira (2010, p. 107), e combina com o conceito de utopia
descrito por Marx nos Grundrisse: a utopia como horizonte crítico da sociedade do futuro e
plena realização da individualidade. Essa realidade, que coindiz com a Tese 11 de Marx sobre
Feuerbach, mostra a necessidade de ―re-fundar o ser‖ para recriar a filosofia (VIEIRA, 2010,
p. 67). Assim, a obra de Bloch pode ser lida não como uma nova luz para a reinterpretação da
América Latina, mas como um ―instrumento válido que auxilie o filósofo a engajar-se mais e
mais na árdua tarefa de humanização da sociedade‖ pois bucar o universal numa tarefa
especìfica ―é tarefa a ser pensada‖ (VIEIRA, 2010, p. 104-5).
A utopia é escrita com o explícito desejo de que se realize, senão já, pelo
menos num futuro. Nele indica-se que há um ―melhor possìvel‖ e não que o
―melhor é possìvel‖. Essa diferença é muito significante, pois supõe outro
tipo de abordagem acerca da utopia, como faz Ernst Bloch: a utopia não
indica um mundo-real factual imaginado, mas sim as possibilidades de
mudança, calcada na realidade presente (VIEIRA, 2010, p. 35).
Como observa Bloch, exige militância do homem revolucionário na construção de
uma nova sociedade. Não é uma abstração intelectual. O sonhar de olhos abertos com a
conquista do alimento, com o fim da miséria por um sistema que privilegia determinada
classe social e as possibilidades dialéticas do otimismo militantes, são atitudes indicativas da
utopia possível. Vieira encontra convergência nessas teses blochianas com as teses do Enrique
Dussel, expoente da filosofia da libertação latino-americana. Uma filosofia crítica, articulada
com as massas populares e militantes críticos (VIEIRA, 2010, p. 141). O importante da visão
de Vieira é que não há cisão entre o universal e o continental. E, por outro lado, a libertação e
a Filosofia da Libertação são concebidas como práxis do homem.
252
Em Témoins du Futur, Pierre Bouretz (2003, p. 629, tradução nossa) define Bloch
como o precursor de ―um tempo promissor‖132
porque nega o imperativo da anamnese, liberta
o homem da condição de vìtima do passado, e se manifesta com ―fervor‖ a favor do futuro. O
que faz de Bloch diferente ―é a excepcional audácia‖133
de se perguntar o tempo inteiro, ao
pressentir a possibilidade de vitória sobre a morte, exatamente no lugar onde começa a
filosofia, no ―espanto‖, o que é o homem? (BOURETZ, 2003, p. 654, tradução nossa).
Sentindo, argumenta Bouretz, que o pensamento de Bloch, embora pareça contraditório,
apresenta ―profunda unidade‖134
e ―confiança no futuro‖.135
A unidade na obra de Bloch, à qual se refere Bouretz (2003, p. 574, tradução nossa),
está no elemento utópico que o homem ―não satisfez em nenhuma época‖136
e que Bloch
cultivou, como se fosse uma ―herança oculta‖,137
fruto de um duplo abandono: a parte do
mundo que vivia na prosperidade esqueceu a parte que não era próspera e, com isso, o
socialismo trocou a sua face humana pela face autoritária. Mas, para além dessa circunstância,
o socialismo se projeta como a preocupação verdadeira da existência.
Nesse sentido, é que Bloch associa o humanismo concreto à filosofia de Marx, na
procura de mostrar que existe, complementa Bouretz (2003), uma matéria não-humana na
obscuridade do homem e que esta é a responsável pela anamnese e pelo pensamento
caracterizado pela ausência de futuro. A sua postulação, apesar da ruptura como o judaísmo,
equivaleria a igualar os sonhos acordados às escrituras e à filosofia, segundo Bouretz (2003,
p. 577), como sendo o nome da transformação. Bloch faz isso preservando o principio da
totalidade humana, da metafisica do sujeito ético e combatendo o fenômeno moderno do
niilismo. De maneira visível, Bloch evoca o ainda-não-consciente como se fosse uma prisão
invisível do homem e confronta a predominância no mal na Terra com a existência redendora
da esperança, voltada para fins puramente humanos.
O interesse de Bouretz (2003, p. 624) pelo ainda-não-consciente em Bloch envolve a
dialética da esperança e o ―espanto‖ do homem diante da realidade que não se manifesta
* Gioachino di Fiori, o nome em italiano como temos utilizado no texto.
132
―Un temps prometteur‖.
133
―L‘exceptionnelle audace‖.
134
―profonde unité‖.
135
―Confiança Dans l‘avenir‖.
136
―qui ná ét´satisfait à aucune époque‖.
137
―heritage caché‖.
253
apenas na luta de classes, não excluiu o permanente diálogo com a obra de Marx, nem a
―humanização da dialética‖. Ao tratar da consciência, a partir de Fausto de Goethe, tingida
pela obscuridade do momento, de realização ainda imatura, procura alcançar a luminosidade
da consciência contemporânea e tende a não desprezar a brutalidade, geralmente insondável,
dos acontecimentos138
(BOURETZ, 2003, p. 628). Significaria persistência da procura, por
Bloch, do Deus do Gênese, no mesmo caminho do Êxodo, que mantivesse no horizonte a
possibilidade de ―irupção da claridade na escuridão, do dia dentro da noite, do futuro dentro
do presente‖.139
Comparando Bloch a Hans Jonas, Bouretz encontra, em ambos, um ponto comum:
exercitam a compreensão das diferentes dimensões do pensamento contemporâneo, mas
condenando o niilismo triunfante. Jonas, sionista nascido no ambiente da ortodoxia judaica
alemã, formado na filosofia de Husserl, Kant e Schopenhauer, pregava a ideia de ser-no-
mundo. Uma concepção de ser universal e histórico através de um universo ético e
responsável. Era necessário assumir responsabilidades diante das futuras gerações, o que
exigiria um conhecimento não apenas do mal, mas do conhecimento do bem e por
consequência da filosofia moral (BOURETZ, 2003, p. 823).
O que separaria Hans Jonas de Ernst Bloch seria que Bloch lançou os novos
fundamentos da esperança, enquanto Jonas, que abandona todo o horizonte utópico, vislumbra
processo de ―Criação infinita‖140
em um mundo que não acredita na própria redenção
(BOURETZ, 2003, p. 628). Mas foi em Bloch que Jonas encontrou os fundamentos para o seu
ideal: uma visão positiva da experiência humana e as limitações impostas pela história para
que o homem viesse a aflorar. Jonas inverteu essas percepções, entendendo que o homem é o
que é e que o futuro pode ser positivo ou a barbárie, mas sem perder de vista a ontologia do
humano e a urgência de proteger a Criação pelo imperativo de agir com precaução
(BOURETZ, 2003, p. 841-55).
138
―la brutalité souvent insondable des événements‖.
139
―l‘irruption de la clarté dans l‘obscur, du jour dans la nuit, du futur dans le présent‖.
140
―Création infinite‖.
254
5.5 A METAFÍSICA DO COTIDIANO E ECOSOCIALISMO
É fácil desejar transportar-se para longe de um lugar ruim. Mas a trilha
para sair dele é menos óbvia, ainda precisa ser aberta.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2006a, p. 299)
Bloch recusa interpretações intempestivas ou ditadas pelo pessimismo. Ao enigma das
catástrofes contemporâneas, sobrepõe os enigmas da construção da vida feliz. Para ele, talvez
por inspiração de Schelling e Hegel, o homem não é uma catástrofe ou um caos, é, sim,
ambíguo, complexo, necessita acreditar (BLOCH, 2006b). Existe inegável procura em discutir
o cotidiano, os fatos mais comuns, como reflexo da filosofia blochiana que são consequência
da superestrutura capitalista, quanto mais Bloch (2005, p. 30-42) procura desvendá-las e
torná-las visiveis. Elas estão no menino que sonha com a ―terra ideal‖ e descobre o ―eu‖ como
―companheiro de viagem, que na juventude se afasta e volta à casa dos pais, que acredita ou
não nos sonhos revolucionários e que na velhice percebe que os desejos estimulantes
―recuam‖ embora suas imagens permaneçam. Estão distribuídas por toda trilogia de O
Princípio Esperança.
Em um dos pontos mais tortuosos, as limitações das pulsões, Bloch argumenta assim:
―Muito pouco, infinitamente pouco foi dito até agora a respeito da fome, embora esse
aguilhão tenha um aspecto bastante original arcaico pois um ser humano sem alimento perece,
enquanto é possìvel viver sem desfrutar do amor pelo menos por algum tempo‖ (BLOCH,
2005, p. 67-8). Também é possìvel viver sem a ―satisfação da pulsão de potência‖, enquanto
o desempregado que não come é levado à situação mais arcaica da existência (BLOCH, 2005,
p. 68). O idealismo nesses pontos se torna permeável pela linguagem do ainda-não-
consciente.
Em nenhum lugar o olhar interior ilumina de forma homogênea. Economiza
luz, clareando apenas alguns espaços dentro de nós. Não tomamos
consciência daquilo que jamais é atingido pelo raio sinalizador. Aquilo que é
atingido apenas obliquamente nos é semiconsciente, em maior ou menor
grau, dependendo de nossa atenção (BLOCH, 2005, p. 115).
No livro II, depois de passar pelas utopias sociais, pela conquista da jornada de oito
horas, pelo tempo livre e o lazer, retorna ao ponto que considera mais ―singelo‖, a fome: ―A
fome força ao trabalho, mas este nos esgota da mesma maneira como a fome. O empresário
255
ávido de obter lucro, não sabe o que é esse tipo de trabalho, o do servo. Os artistas e
pesquisadores tampouco o sabem, ainda que por outras razões‖ (BLOCH, 2006b, p. 438). E,
no livro III, propicia uma nova mediação do conceito do ainda-não-consciente pela religião,
pelo marxismo e pelo sonho para diante, pela lucidez e pelo entusiasmo. Novamente o
cotidiano:
Existe uma corrente que se desloca para dentro e que fica muito tempo ativa.
Quando tudo lá fora se torna mal, o ser humano que acredita perceber esse
fato nem por isso considera a si mesmo mau. Ao contrário, aos seus olhos
ele parecerá ser o único justo; talvez considere também alguns amigos, caso
não seja demasiado presunçoso (BLOCH, 2006b, p. 419).
São exemplos fragmentados de como Bloch conduz a relação dialética entre o homem
e a história, entre o homem que procura refúgio na sua subjetividade interior e o homem que
procura revolucionar a realidade. Nas mãos de Bloch, a incompletude da sociedade dá origem
a um sistema elaborado da dialética cotidiana na qual as maneiras de unir a liberdade e a
necessidade do trabalho caminham para a consciência e o sonho acordado. Por exemplo, no
final do livro III de O Princípio Esperança, Bloch (2006b, p. 439) argumenta que o bem
supremo é a forma mais qualificada da existência do ―sendo conforme a possibilidade‖,
portanto da nossa matéria. Mas associa o bem comum à integração do homem com a natureza
que ―não só constitui o chão do ser humano, mas também o seu ambiente permanente‖.
Colocar a natureza no cotidiano humano seria o topos do ―instante supremo‖, a
essência do querer. O modelo desse diálogo com a vida ocorreria em função do fim da
sociedade de classes, da sabedoria e do ocaso das ilusões que alienam o homem. Cada tema
em questão – o absoluto do querer, a utopia, a morte, o materialismo dialético, a felicidade –
se une como na música se unem os sons, o ritmo e a dança numa polifonia harmônica. São
concepções que trabalham e resumem o conceito do ainda-não-consciente, mas cuja
experiência do despertar acontece no dia a dia, é uma teoria da linguagem que se manifesta na
prática, em tudo o que o homem dá forma e consistência. Da música à literatura, da produção
à convivência com outros homens. Seria inerente ao encontro do homem consigo mesmo.
A hierarquia dos valores, inquestionável por ter seu ponto de referência no bem
supremo, de modo algum, coincide com a escadaria já pronta, na qual o ser humano pensava
encontrar os seus ideais já como realidades à medida que ia galgando docilmente os degraus.
Isto aconteceu de modo tão irremediável quanto jamais existiu na realidade objetiva: a
escadaria existe exclusivamente na utopia objetiva, na estruturação processual (BLOCH,
2006b, p. 418).
256
A escadaria da utopia é que aproxima Bloch da criação de um mundo novo, mas de
um mundo onde o Deus é o homem. Não há propriamente o tempo em que isso acontecerá,
nem mesmo se o homem nas suas ambiguidades almeja ou não ser revolucionário, nem como
se dará, ou mesmo se irá ocorrer o seu despertar. O que importa, e realmente é relevate,
encontra-se, sim, no fundamento filosófico da esperança. O princípio a ser descoberto não é
mais aquele da teoria da sociedade sem classes, mas da descoberta da consciência da
necessidade dessa sociedade. Segundo Bloch (2006b, p. 383), ―o melhor está bem próximo‖ e,
por esta razão, a consumação da esperaça – a superfìcie do ―Demora eternamente! És tão
lindo‖ – brotará da multiplicidade do cotidiano.
Martin Jay (1984b), em Marxism and Totality, na perspectiva da ―visão integral da
vida‖, entende Bloch como determinado pela ―audácia‖ de expandir, de maneira totalizante,
as fronteiras do pensamento. No The Spirit of Utopia (Geist der Utopia) e no Experimentum
Mundi, Bloch desenvolveu variações do conceito de totalidade que se tornaram de especial
importância para a história do marxismo. Comparativamente a Lukács, embora ambos
tivessem aplaudido a Revolução Russa, Bloch identificou na religião um repositório de
esperanças e, também constrariamente a Luckás, recusou-se a considerar apenas um elemento
da totalidade, a produção (JAY, 1984a, p. 180).
A alma, a vontade, a liberdade, a cultura, são elementos da totalidade, assim como o
ainda-não-consciente que seria um objeto da natureza e que precisaria ser ressuscitado a partir
do legado de Schelling a Böhme, de Paracelso ao Renascimento e, também Engels quando se
referiu à dialética da natureza (JAY, 1984a, p. 180). Identificava nos Manuscritos de 1844 de
Marx, o escrito chave para da ―humanização e naturalização do homem‖ e recorria à esquerda
aristotélica (Avicenna e Averróis) para argumentar a simbologia da natureza na história
humana.
A sua tenacidade, para Jay (1984a, p. 187) estava na infinitude da totalidade humana.
Isto explicaria as reações, às vezes escandalosas, da ―ortodoxia marxista‖ e dos ideólogos do
capitalismo às teses blochianas. Jay equipara Bloch aos pais fundadores do marxismo, a
exemplo de Gramsci, Korsch e Lukács, pela sua visão integral da vida e da filosofia, sem
demarcar fronteiras entre a historia e a natureza, entre a razão e o irracional.
Nessa combinação de humanização da dialética, luminosidade da esperança e
possibilidade de criação de um futuro novo, um homem novo, a preocupação que domina a
filosofia blochiana é o homem ético capaz de colocar o outro à frente de suas necessidades.
Não é um truísmo, mas um fundamento básico da esperança que Bloch expressa como reflexo
257
da consciência do dia a dia e da força das pequenas coisas.141
Para Bloch (2006, p. 374-84), a
cultura capitalista une todos, dos senhores aos servos, da Igreja à utopização de Deus, mas o
homem revolucionários rompe com essa cadeia e liberta o homem. Daí procede o papel de
Prometeu e a ―primazia da vontade ou do espìrito‖ na abolição da diferença entre o ―sofrer e
fazer‖, entre ―passividade e atividade‖, entre a ―dedicação a Deus‖e a ―libertação em relação a
Deus‖.
Em Ernst Bloch and his Contemporaries, Ivan Boldyrev (2014) interpreta o
pensamento filosófico de Bloch pelo ângulo do ainda-não-consciente e da poesia. Em
primeiro lugar, considera que a utopia de Bloch necessita de uma metafísica diferente daquela
dos antigos gregos porque seu contexto não se encontra nas razões primeiros do início da vida
humana, mas na experiência cotidiana (BOLDYREV, 2014, p. 106). Do ponto de vista do
próprio Bloch, recuperado por Ivan Boldyrev, a ideia é iluminar a obscuridade do instante
para transformá-lo, como numa pintura de Van Gogh, em algo universal.
O conceito de instante em Bloch seria o elemento das práticas sociais e da esperança
na ransformação da vida com o homem reconhecendo a si mesmo no outro e reconhecendo a
natureza. Ao contrário de Freud, Bloch, na interpretação de Boldyrev, não concebe o
insconsciente como o lugar onde se alojam os sentimentos reprimidos, mas onde vivem as
esperanças e os sonhos ainda não realizados. Se não houvesse sonhos, não haveria futuro,
nem o ainda-não-consciente.
Essa constelação de princípios seria introduzida na vida cotidiana pelas noções de
front e do novum: o front como o espaço mais avançado da vida existente, onde o instante é
vivido; e o novum seria a relação entre o instante e o futuro, tendo como alvo a transformação
da cultura. Os pontos principais das argumentações de Boldyrev são que Bloch revigora o
marxismo com a função utopia das relações sociais articuladas em The Spirit of Utopia e em
O Princípio Esperança; e impulsiona a filosofia ao considerá-la ―não apenas como relfexão
sobre o mundo, mas como prática libertadora‖.142
Esse deslocamento da metafisica das coisas
primeiras para a metafisica do cotidiano foi um caminho através do qual Schcelling inspirou a
concepção, na visão de Boldyrev (2014, p. 242), de uma tecnologia humanizada, identificada
com a natureza. Em Bloch, esse seria um dos fundamentos da filosofia utópica.
Embora Ivan Boldyrev tenha registrado que a utopia de Bloch encontra-se distante da
realização, se torna próxima por estimular o sonho como ―obra de arte‖, despertando
141
Cf. Ética e Utopia e O Enigma da Esperança, de Susana Albornoz (2006).
142
―Philosophy becomes not simply a reflection of the world, but a praxis of liberation‖.
258
comunistas e antifascistas para a utopia que é o ―centro da história‖. Sendo o marxismo
movimento, o futuro não tem um caminho determinado, mas não significa que não tenha um
caminho possível. Significativo para Boldyrev (2014, p. 1207) é que Bloch reconciliou o
marxismo com o pensamento utópico através da filosofia da ação e da experiência. Não deixa
de enfatizar que Bloch tornou possível pensar o futuro, fazendo com que o olhar socialista se
volte para o ainda-não-consciente.
Stefano Zecchi (1978, p. 110), em Ernst Bloch: Utopia y Esperanza en el Comunismo,
considera Bloch o utopista da ação. Ampliou a função utópica ao cinema, ao teatro, à dança, à
medicina e à arquitetura, enfim, não se limitou a expressar seu desejo particular, mas a
associar a utopia à vontade coletiva e suas manifestações de superação de limites. Nesse
extrato, de um lado, pode-se constatar a diferença entre teorizações não mediadas como foram
as de Owen, Fourier e dos socialistas utópicos, tal é a visão de Zecchi, e de outro, as utopias
de Marx a Bloch mediadas pela necessidade que a consciência antecipadora expressa no
desejo de não se deixar ―devorar‖ pelos fatos cotidianos.
Assim, Bloch, metodicamente, produziu inúmeras rupturas no mundo do pensar
tradicional, no inventário feito por Zecchi: rompeu com a barreira da anamnese, que
considerava o principal obstáculo do processo histórico dialético; desenvolveu a mediação
entre o sujeito e o objeto, interno e externo, até fazer da utopia um objeto não ilusório,
transformando-o em vontade de ação; e, seguindo os ensinamentos marxistas, compreendeu a
divisão social do trabalho, seja ela escravagista, feudal ou capitalista, como ―elemento
constante‖ da opressão do homem pelo homem (ZECCHI, 1978, p. 111-3).
O sentido da esperança no comunismo foi muito mais adiante. ―O autêntico problema
para a filosofia da esperança de Bloch é a morte‖, escreveu Zecchi. Não resolveu o problema,
mas propôs alternativas: ―A morte ainda que seja a expressão mais tìpica da contra-utopia,
não se revela como um aspecto externo, como um convidado incômodo que pode pôr fim de
improviso ao espìrito da utopia‖ (ZECCHI, 1978, p. 245).
O que Bloch pretende não é negar o significado da morte, mais subtrair dela o
tratamento religioso, das promessas de ressurreição e da esperança em Deus que ressuscita os
mortos. Deseja situá-la, ao contrário, na estrutura do ainda-não-ser. Sonhar de olhos abertos é
uma expressão dessa consciência. Por conseguinte, em Bloch, a morte é a renúncia à utopia, a
renúncia à esperança. A morte não será negada na utopia, pois faz parte dela como processo e
transitoriedade da vida.
O que Zecchi define como incompatível com o pensamento filosófico de Bloch foi a
crítica que ele sofreu na antiga Alemanha Oriental, onde grassou a acusação dele ensinar
259
filosofia marxista sem ser fiel ao marxismo. Isto aconteceu dez anos depois de ter sido
recebido com as ―honras‖ que merecia, mas o alvo era mais do que pessoal: estava na aliança
que naturalmente começava a surgir entre intelectuais e operários, depois de manifestações
contra o governo da República Democrática Alemã.143
Essas críticas, que partiram da Universidade de Leipzig, o centro político-cultura da
considerada ―nova Alemanha‖, foram as mais duras e contundentes a envolver Ernst Bloch.
No mais, as críticas derivaram do seu pensamento revolucionário, que traz para a vida a
esperança no homem rebelde, a liberdade e a gestão dos meios de produção pelos
trabalhadores. Mas é simbólico das relações da utopia com o tempo: o novo como negação do
passado, coloca o existente em questão e faz nascer uma nova consciência. Equivale dizer que
a história é um eterno novum, uma juventude em que a vida recomeça sempre, neutralizando o
retorno rememorativo.
Entre os intérpretes do legado de Bloch, Arno Münster, fiel à ideia do eterno novum,
se aproxima de um traço geralmente esquecido da obra blochiana: consciência antecipatória
quanto à utopia ecológica socialista, que Bloch não hesitou em promover quando o tema não
estava ainda presente na pauta capitalista. Münster examina a questão a partir de Droit
Naturel et Dignité Humanine (Narurrecht und menschliche Würde), o último livro que Bloch
escreveu quando vivia na RDA, em condições de total isolamento, e que complementa O
Princípio Esperança pelo enriquecimento do marxismo com a filosofia do direito natural e da
dignidade humana. Não escreveu para juristas ou juízes impregnados pelo conceito do direito
positivo e normativo. O seu propósito era criticar a filosofia conservadora da Idade Média,
com o ―direito natural relativo‖144
de Tomás de Aquino, até a sua função revolucionário nas
Luzes (Rousseau e Kant); e, igualmente, ressaltar a ―herança socialista dos direitos do
homem‖ (MÜNSTER, 2001, p. 282).145
Bloch mostrava que sem o fim da exploração não poderia existir verdadeiro direito dos
homens, mas procurava convencer que fosse pela vertente racionalista (Hobbes, Grotius),
fosse pela vertente contratualista (Rousseau), o século XVIII, particularmente com a
Revolução Francesa concretizou avanços na direção da felicidade de grande número de
pessoas. Criou uma ordem nova e enfraqueceu o conceito de liberdade burguesa, mas não
alcançou a plenitude da liberdade. O livro sobre o direito natual marca, segundo Münster
143
Cf. La herencia estalinista en una discusión político-cultural entre 1953 e 1957 en la República Democrática
Alemana, en Ernst Bloch: utopía y esperanza en el comunismo, de Stefano Zecchi (1978).
144
―droit naturel relatif‖.
145
―l‘heritage socialiste des droits de l‘homme‖.
260
(2001, p. 184-5), a ruptura definitiva com o socialismo autoritário e burocratizado vigente na
RDA e na URSS e a defesa de regras éticas e humanistas na preservação dos direitos
humanos, uma ―moral de felicidade‖,146
em lugar da idolatria do Estado então em vigor nos
paìses definidos como aqueles do ―socialismo realmente existente‖.147
Essa tendência de discutir a questão da natureza foi insinuada na metafísica do ainda-
não-consciente em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e está claramente presente no Livro
II de O Princípio Esperança (p. 89-123) nas distinções entre o direito natural clássico e o
direito natural iluminista, um prol da comunidade organizada e pacífica, o outro postulando a
sociedade em abolição, mas ambos ainda nos limites do capitalismo. Um marco é a referência
que Bloch (2006a, p. 92) faz à ―força purificadora‖ dos direitos naturais do homem junto ao
idealismo religioso dos jovens nos estados americanos, em ambiente em que grassava o
despotismo, e na propagação da doutrina da liverdade na sociedade europeia, com a
mensagem de que o homem não é ―bom nem mau‖, mas que desperta para o egoísmo pela
―sociedade má‖, ―pela desigualdade das propriedades‖, ―pela segregação dos estamentos‖.
Enfim, é corrompido pelo sistema tal como Rousseau identifica no Contrato Social.
Münster volta ao tema em L’Útopie, Écologie, Écosocialisme. Reforça as evidências
de que a natureza esteve sempre presente em Bloch e que nos seus estudos pode ser mapeada
a partir do ensaio Ernst Bloch: um Schelling Marxista, título que toma emprestado de
Habermas. O interesse de Münster na definição encontra-se no fato do homem ser a mais
complexa existência da natureza, mas, igualmente, na concepção blochiana, ser a natureza a
―força motriz‖ que gera a progreção gradual do homem. A natureza é potência e a potência,
que inspirou o conceito aristotélico de dynameion, e que contem a possibilidade de futuro.
Münster medeia a relação do homem com a natureza de maneira tal que se pode
imaginar estar o homem ligado a um todo da natureza e, também, da história, mas,
independente dos seus insolúveis mistérios, tenderia a ser o prolongamento da Terra
humanizável. Por isso, Bloch, segundo Münster, imagina o paraíso humano de maneira
abrangente, sem a dicotomia homem-natureza, e não separa a Terra dos humanos. É o que fica
evidente, também no livro II de O Princípio Esperança, quando, nas utopias técnicas se
misturam vontade e natureza e Bloch (2006a), cita uma frase-chave de Marx, extraída dos
Manuscritos Económicos e Filosóficos de 1844:
146
―morale du bonheur‖.
147
―socialisme réellment existant‖.
261
A essência humana da natureza somente se mostra ao ser humano social.
Porque apenas aqui existe para ele como laço, como o ser humano, como
existência para os outros e dos outros para ele; apenas aqui ela existe como
funcionamento de uma existência humana. Somente aqui se tornam humanas
suas existência natural, sua existência humana e a natureza para ele.
Portanto, a sociedade é unidade essencial perfeita dos homens com a
natureza, é a verdadeira ressurreição da natureza, é o naturalismo
implementado do ser humano e o humanismo implementado da natureza
(BLOCH, 2006a, p. 179-80).
A natureza deixa o universo burguês para ser entronizada no universo da humanidade.
Deixa a órbita capitalista para ingressar no mundo esboçada na Nova Atlântica de Bacon.
Influenciado por Schelling, Hegel e Marx, tendo a utopia tecnológica de Bacon como ponto
de partida para o humanismo científico, Bloch se exprimiu na grande trilogia O Princípio
Esperança por uma aliança do homem com a natureza em favor do bem comum universal e
da utilização de máquinas que não reproduzissem a devastação do modelo capitalista.
O conceito de utopia concreta, explica Münster (2013, p. 32-3, tradução nossa),
sintetiza a proposta de uma ―sociedade ecologista pós-capitalista, liberta do produtivismo, do
crescimento e de um pós-fordismo industrial fundo? sobre o funcionamento de grandes
máquinas industriais‖.148
Postulava Bloch que o homem, enquanto sujeito ativo, tivesse
consciência humana e promovesse a utopia de ―naturalização do homem e da humanização da
natureza‖.
Isto foi escrito em O Princípio Esperança (2005, p. 131), cerca de três décadas antes
do nascimento oficial do ―ecosocialismo‖, na França com André Gorz,149
René Dumont, na
Inglaterra com David Papper e nos Estados Unidos com Joël Kovel, além do Partido Verde
(Die Grünen), na Alemanha. Dessa maneira tomou forma um ideal transformador que
expande o curso da natureza, instaura um processo revelador de novas possibilidades,
propenso a superar, sem destruir, o hermetismo característico da natureza. Não significa que a
natureza tenha deixado de ser hermética, até porque, segundo Bloch (2005), isto só deixará de
existir quando o homem procurar conhecer o devir da natureza e se tornar consciente de que
não é o centro do mundo. Mas o portador de novas descoberta.
148
―d‘une société écologiste post-capitalista, libérée du productivisme, de la croissance et d‘úne post-fordisme
industriel fonde sur le functionnement des mégamachines industriellles‖.
149
André Gorz, nascido em Viena em 1923 e que viveu 84 anos, foi um dos fundadores doa revista Le Nouvel
Observateur e um dos primeiros teóricos críticos a perceber dupla transformação do capitalismo avançado:
em capitalismo financeiro da especulação bancária e em capitalismo cognitivo fundado sobre a
economia imaterial. Essa visão lhe permitiu prever a crise americana de 2008 e seus impactos ―nefastos‖ no
sistema financeiro internacional. Era defensor de uma economia ecológica, social e solidaria em que toda a
produção seria feita em cooperativas, unindo o ensino, experimentação e pesquisa de novos materiais,
invenção e novas técnica (MÜNSTER, 2013, p. 801- 959).
262
Münster entrelaça essas ideias à repercussão do pensamento de Bloch. Traz a questão
ecológica, ao estilo da filosofia de Bloch, para o dia a dia da política européia e internacional:
a tradição reformista social-democrata orientada pelos objetivos financeiros do FMI, Banco
Mundial e o Banco Central Europeu, as altas taxas de desemprego, as frustrações das grandes
massas; defende uma produção ecológica socialista, dirigida por um governo ecosocialista e
por uma frente de esquerda; defende a desmobilização nuclear, uma agricultura ecológica e
ecocidades. Defende um momento que ultrapasse fronteiras nacionais e uma nova ordem
econômica mais justa, mais ecológica e fraternal (MÜNSTER, 2013, p. 860- 958). Lamenta
que na atualidade se fale muito de Hans Jonas e não o suficiente de Ernst Bloch, apesar do
humanismo ecológico de Jonas ser complementar ao ―otimismo militante‖ de Bloch
(MÜNSTER, 2013, p. 718). Na última página do livro, proclama: ―Ecosocialismo ou
barbárie!‖ (MÜNSTER, 2013, p. 959, tradução nossa).150
Há nessa perspectiva, a ideia, também presente em Bloch, de que o proletariado não
poderia mais ser o único sujeito da revolução socialista – como ensinou Marx no século XIX -
por força não só da amplitude da causa ecológica, mas igualmente pela automação e
robotização progressiva da produção industrial no capitalismo avançado (MÜNSTER, 2013,
p. 194-5). Uma atualidade semelhante, a despeito do precário relacionamento entre o
pensamento de Bloch e o socialismo contemporâneo, que o fundamento histórico, a sociedade
de classe, e a ideia do ainda-não-consciente não se encontra separado da realidade como se o
real pertencesse a um mundo e Bloch a outro mundo.
A filosofia em Bloch dependeria, para que seja entendida e se torne parte do mundo de
hoje, de novo aprendizado, da visão do novum nas teorias do passado e na proximidade com o
homem moderno, a exemplo do que interpreta Pierre Furter. Foi esse tipo de expansão que
Bloch pretendeu com o seu último livro, Experimentum Mundi (1975), escrito quando ele
completeu 90 anos. Caracteristico de um sistema aberto de pensamento, nele Bloch não
apenas reconhece a necessidade de consolidar a ontologia do ainda-não-consciente, exposta
em The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e no Livro I de O Princípio Esperança, como se
fundamenta na mediação, no processo histórico e no tempo, um tempo não-homogêneo e
linear, mas um tempo fragmentado em que o homem, se tiver vontade, pode transformar em
possibilidade real o bem comum possível.
Um equivalente do novum seria a felicidade que Bloch procura demonstrar como
possibilidade de vida, se insurgindo contra a ideia trágica de que ―a descoberta da felicidade
150
―Ecosocialisme ou barbarie!‖
263
anuncia a morte‖ (FURTER, 1974, p. 38). A felicidade marcaria um fim, mas este fim não é
uma queda, mas um começo, uma vontade de criar, intimamente ligada à esperança. Não seria
uma ruptura com o passado, sem o qual seria vazia, mas não ignoraria o futuro. Não aboliria a
infelicidade, mas esta seria uma contingência.
Furter contribuiu para recuperar a ideia revolucionária da obra de Bloch. Entendeu que
embora não fosse rigorosamente cientìfica, estava ―longe de ser um mero devaneio poético‖
(FURTER, 1974, p. 40). Além de buscar fundamentos em sua ampla cultura, de não ignorar
nenhum filósofo relevante do passado e considerar as transformações históricas, discutiu
Marx e Freud e concebeu, originalmente, o real como processo. Chama a atenção para a
―valoração‖ da ―esquerda aristotélica‖ que, segundo Bloch, procurou interpretar Aristóteles de
maneira ―progressista e moderna‖ por ter sido o primeiro filósofo a considerar o ser como
―ser em movimento‖, o real como ―processo que evoluiu‖ e que não via o homem imobilizado
na ―eternidade da criação perfeita e já acabada‖ (FURTER, 2014, p. 42).
Se a escolástica englobava o pensamento à ―direita‖, o aristotelismo, com Avicena –
que foi à raiz do pensamento de Aristóteles – guinou à ―esquerda‖, pelo seu materialismo e
dialética, como aconteceu com Hegel e a esquerda hegelina. O impulso dado por Avicena ao
pensamento de Aristóteles se propagou pela Idade Média, mas só daria o salto decisivo para
se transformar no ―humanismo integral‖ com o médico, filósofo e alquimista Paracelso e,
mais tarde, com Leibniz, ambos concentrados em pensar o homem como possibilidade de
perfeição. Foi, na concepção de Furter, uma caminhada longa, gradual, mas que anunciaria
em Bloch a conexão entre a esquerda aristotélica e a esquerda hegelina, que no final
suscitaram ―grande parte da criação de Marx e Engels‖.
Essa linha de continuidade traçada por Furter imprime dimensão ao pensamento
blochiano e, explicita ou implicitamente, revela as razões que motivaram Bloch a tratar de
maneira tão veemente, a questão do ainda-não-consciente. Uma sutiliza primordial é a sua
observação sobre a forma como Bloch analisou o fracasso da rebelião camponesa alemã e o
martírio de Münzer no contexto de uma sociedade organizada de cima para baixo, cada classe
com o seu tempo e seus mitos, consciência, atavismos, dogmas e hábitos de vida, mas que não
recusou a ideia de antecipação do futuro.
Para Furter (1974), a análise blochiana, quando trazida para o presente, golpeia a
―ideia mìtica mais constante das esquerdas‖: a ideia de ―um unidade a priori‖ das esquerdas
na ―frente única‖ ou ―partido único‖, ―ilusão otimista e idealista da convergência futura dos
movimentos‖ (FURTER, 1974, p, 50-2). O que faltava, prossegue Furter (1974) seguindo os
passos de Bloch, era uma estratégia fundada na autocrítica coletiva e pessoal, que educasse os
264
militantes numa visão comum e crítica do momento histórico. É um trabalho sistemático de
pedagogia que exige tempo. À luz do pensamento crítico de Bloch se poderia repensar as
diretrizes de organização do partido por Lenin, o eclipse da República de Weimar e a
ascensão do fascismo na Alemanha.
O que Furter (2014, p. 53) almeja chegar é à observação de Bloch de que ―não pode
existir Revolução autêntica sem finalidade‖. E a finalidade encontra-se na mudança dos
valores, na negação das mudanças de aparência, na rejeição da dinâmica do niilismo. Não
basta afirmar que é ―revolução‖ tudo o que muda rapidamente; ainda é necessário que esta
mudança tenha uma certa orientação e um alvo definido. ―A pura violência mesmo
tecnológica, não é revolucionária; é anarquia a longo prazo‖ (FURTER, 1974, p. 53).
Existe uma outra maneira pela qual Bloch objetivou seu pensamento filosófico: é a
alienação (die Entfremdung) do entusiasmo. Não se abole o passado com rapidez. ―A
Revolução é só fim de um começo‖, citado por Furter (1974, p. 55). O novum exige que o
homem se liberte das malhas do passado e transforme a rebeldia em verdadeira desalienação
(Die Verfrendung), é onde estaria a ideia de que a verdadeira gênese é o fim, não o começo.
Exige a conquista da plenitude e o alvo, exige a libertação econômica e psíquica de tudo que
domina o homem. É um processo de desalienação que inibiria a reprodução do passado.
Furter vincula a utopia concreta à ―realidade transformável‖ e eleva o planejamento
concreto à categoria de ―ideia força‖ das mudanças radicais: ao contrário do utopista do
passado, a conquista do sonho futuro, exige que não haja hesitação quanto ao que precisa ser
feito, mesmo que seja exigido o recurso à violência (FURTER, 1974, p. 150). A capacidade
de decidir pela mudança, ensina Furter (1974, p. 150-1), é que definiria, na realidade, o
utopista do utópico, separando a utopia concreta, o novum que leva para a frente, da ucronia,
que volta para trás.
O problema que ameaça a filosofia de Bloch é que ―substimou os problemas novos da
necessária institucionalização da esperança num regime comunista organizado‖, isto é, não
deu ―bastante atenção‖ aos problemas de uma revolução que chegou ao poder e não concebia
uma ―revolução permanente‖ (FURTER, 1974, p. 28). Por conseguinte, não levou em conta a
indiferença revolucionária das gerações seguintes à que fez a revolução, fosse na antiga União
Soviética, fosse na China. Mas para Furter (1974, p. 152), ―a falta de realismo‖ em algumas
situação não é suficiente para que se despreze a utopia blochiana; o que importa é a
―encarnação de uma dialética antecipatória‖, isto é, ―a superação do ser pelo devir‖.
265
O pensamento utópico, na sua dialética antecipadora, não só encontra
dificuldades e obstáculos, como também deve enfrentar a questão absoluta, a
‗anti-utopia‘ por excelência, a morte. Este confronto é tanto mais necessário
quanto esta ‗anti-utopia‘ reduz, ao que parece, a esperança mais
fundamental, a esperança de vida a uma total ilusão, diante do aspecto
definitivo do nada, na morte […] É o grau máximo deste momento zero que
já encontramos na análise do fundamento ontológico da esperança: ―o ainda-
não-sentido‖. O homem não pode prescindir desse confronto, mas a dialética
antecipadora lhe permite transcender, e portanto superar esta crise absoluta
(FURTER, 1974, p. 155-6).
Para Furter (1974, p. 152), a utopia blochiana não deve ser julgada pela possibilidade
de ser realizada, mas pelo ―grau de negação da realidade que contém e da sua capacidade de
despertar entusiasmo para uma mutação da situação atual‖. Há nele a ideia permanente de
combater a ―anti-utopia‖: da morte, do niilismo, da mera contemplação, do mero sonho
dormindo, da repetição do capitalismo, da ilusão das merdadorias.
Agrande inversão que começa possivelmente com Münzer e que atinge a sua
clara expressão em Karl Marx, é que a verdade da transcendência não está
além do concreto, mas aquém; que a libertação do homem, de todos os
homens e a sua realização plena não está além da política numa vida
espiritual ou estética, mas aquém: na sua maneira de conviver e de viver; que
o absoluto não está além da realidade relativa, mas aquém: no concreto
transfigurado (FURTER, 1974, p. 199).
Foi a mensagem blochiana no conjunto das sua obras. Exigia totalidade,
universalidade, e objetividade na ação, mas não permitia que se teorizasse a violência. Esta
poderia existir, como existiu em Münzer, que era um ―terno‖ e ―resplandescia de amor
fraternal‖, como existiu na Revolução Francesa e na Revolução Russa (FURTER, 1974, p.
200-1). Em Bloch o princípio do mundo novo estava na esperança e na ação transformadora
dos valores. Bloch, na visão de Furter, não viveu de ilusões: construiu um mundo e viveu da
esperança do futuro.
Não é uma impossibilidade, mas um sonho da sociedade moderna. Não é um desafio
novo, mas que o marxism clareou com a ―filosofia da praxis‖ e o entendimento das condições
materiais do homem. Passa-se a sonhar com a utopia de olhos abertos diante da necessidade
de uma nova ontologia ética e prática que contemple a visão da infinitude do que,
aparentemente, é finito no mundo atual. Mas essa talvez seja uma visão parcial e incompleta
dos desafios que cercam a atualidade do pensamento de Bloch.
266
Na ótica de Pierre Furlan (1986, p. 197, tradução nossa) vive-se uma época de
―ameaça total‖,151
de um niilismo e de um facismo silencioso: a noção de totalidade se perdeu
com a rejeição dos grandes discursos – do cristianismo ao marxismo –, há problemas de
legitimação do discurso cientìfico dada à irracionalidade das razões técnicas, e ―a filosofia
renunciou a transformar um mundo mais e mais irreal‖.152
Nesse ambiente, segundo Furlan
(1985, p. 1005-6), Bloch trouxe esperança, de início valorizando a experiência prática, o que
significou rejeitar todo o sistema fechado, a ortodoxia marxista inclusive; e recusou a dialética
petrificada que fazia do futuro um esquema pré-estabelecido.
Não se limitou a essas contribuições: advertiu para a alienação social promovida pelo
capitalismo, capaz de destruir psiquicamente a humanidade, e que ameaça, na hipótese da sua
destruição, destruir também toda a humanidade. Essas ameaças nascem do próprio sistema
produtivo que, é certo, deu origem ao socialismo pelas suas infinitas constradições, mas que
se recusa a ser ultrapassado, nem que para se manter precise mergulhar o planeta no vazio
absoluto (FURLAN, 1985, p. 198). Bloch, como lembra Furlan (1985) deixou ainda nítido
que a filosofia não pode se refugiar no passado e em palavras vazias, portanto não poderia
renunciar ao seu papel transformador.
Ao investigar as coisas do cotidiano, Bloch quis deixar evidente que nada acontece por
acaso. Pode ser um grande acontecimento como a guerra, a ameaça nuclear, os nacionalismos,
o individualismo, a esperança passiva, tudo tem uma razão de ser, tem seus fundamentos e
pode ser superado de forma conveniente na vida humana. Nada que não implique em riscos,
medos ou que se limite a uma simples pesquisa de satisfação.
Em Bloch, o homem é digno de esperança e capaz de realizar-se. Ele é o demiurgo do
novum, legislador, construtor e integrante de uma sociedade que pode ser ética. É o homem
que identifica o que deve ser e o que favorece a liberdade. E a infinitude está não apenas na
não repetição do passado, mas na negação de ―uma fuga insossa e até enervante‖ da utopia
(BLOCH, 2005, p. 14). O socialismo não é o fim da história, mas o princípio. Porque, como
argumenta Bloch (1975, p. 173, tradução nossa) em Experimentum Mundi: ―Se não sabemos
ainda o que é o homem, sabemos pelo menos o que é desumano‖.153
Se o homem encontrará sua humanidade, a dialética do processo irá decidir no tempo e
na história. Vive na pré-história, mas, a julgar pela esperança em Bloch, o horizonte do ainda-
151
―la menace totale‖.
152
―la philosophie renoncerait a transformer un monde devenu de plus em plus irréel‖.
153
―weiß man noch nicht, was der Mensch ist, so weiß doch, was unmenschlich ist‖.
267
não-consciente é a verdadeira utopia concreta – além de possível, semente que floresce. Fonte
do novum, pode ser visível ou invisível no cotidiano, mas não é ilusória. Existe na negação da
ditadura do capital, nas contradições do capitalismo, existe nos caminhos a serem percorridos
pela filosofia e pela psicanálise, existe nas pequenas coisas e na eternidade do sonho
socialista. A utopia concreta é o princípio do real. É tendência e latência do homem
prometeico, rebelde e revolucionário. Construtor e herdeiro do futuro, sujeito e mediador da
construção do mundo.
268
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FUTURO COMO ESPERANÇA
Somente ao se abandonar o conceito fechado e imóvel do ser surge a real
dimensão da esperança.
Ernst Bloch, O Princípio Esperança (2005, p. 28)
A visão da incompletude do mundo e o que o mundo pode vir a ser em oposição ao
que o mundo realmente é, propõe que Ernst Bloch escreveu, com sua obra, um vasto romance
de formação (Bildungsroman). Não como ficção, mas como realidade.154
Associam-se não ao
processo individual, que se decompõe no embate com a realidade, mas fiel ao conceito
alemão de ―humanidade‖ – Humanität, a qualidade de ser humano que se eleva, o sentimento
de pertencer a uma mesma sociedade humana.155
Lendo The Spirit of Utopia (Geist der Utopie) e O Princípio Esperança (Das Prinzip
Hoffnung), em especial, sob tal ótica, a associação soa inevitável. Os elementos
autobiográficos estão por toda parte: da paixão pela música e a época gótica à utopia, o
marxismo e o desbravar do ainda-não-consciente, de A noite das facas longas, nazista
(BLOCH, op. cit., p. 37-8), ao Sonho para diante, lucidez, entusiasmo e a unidade destes
(BLOCH, op. cit., p. 451-62), que combinam vontade com esperança no futuro, passando pela
longa experiência de Bloch nos Estados Unidos, descritas com acidez em A bela máscara, Ku
Klux Khan, os magazines coloridos (BLOCH, 2006b, p. 336-43). O que transpira do
pensamento de Bloch é a vontade de resgatar, interpretar e ampliar o sonho de liberdade e
protagonismo do homem na alquimia da vida.
154
No passado, a referência de Romance de Formação foi concebida por Goethe em Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters Lehrjahre), escrito entre 1794-1795. Inova com os conceitos de
possibilidade e o diálogo da individualidade com a sociedade e o seu ―estranhamento‖ com o mundo burguês.
No caminho aberto por Goethe, encontram-se Marcel Proust no livro Em busca do tempo perdido (À la
recherche du temps perdu), James Joyce em Retrato do artista quando jovem (A Portrait of the Artist as a
Young Man) e Günter Grass em O Tambor (Die Blechtrommel). No Brasil, pode-se citar José Lins do Rego
com Menino de Engenho.
155
A origem do termoHumanität encontra-se no século XV e tem suas raízes na palavra Mann, ser que é capaz
de pensar. No século XVI, passa a significar o ser humano cuja existência ultrapassa a finitude da vida em
oposição à designação de Unmensch, o homem maul, aquele que não é digno do nome homem. Marx
comiserava o homem um ser genérico, que, consciente, relacionar-se-ia com seus semelhantes como se estes
fossem a sua própria natureza (JOUSSET, 2007, p. 93-5). O humanismo alemão corresponde a uma espécie
de Aufklärung superior, uma Arcádia perdida, mas também diante dos olhos do homem, que é inerente ao
―sujeito-homem‖ no seu enfrentamento do pessimismo e do niilismo (LEQUAN, 2007, 319-34). Marx define
o humanismo, como sendo o humanismo real, o humanismo prático, enriquecido pelos hegelianos de
esquerda e os comunistas alemães que viveram em Paris. Defendido com ardor em A Sagrada Família,
equivaleria ao socialismo verdadeiro (MARX, 1982, p. 1591-648).
269
É como se ele dissesse, parafraseando Schelling (Les Âges du monde), que o passado é
conhecido, que o presente da sociedade de classe e suas contradições são vividos, mas que o
futuro depende da práxis da humanidade. Não uma prática qualquer, mas uma prática que
transforme a estrutura da sociedade vigente, que se oponha ao passado de exploração do
homem pelo homem, da natureza pelo homem e que se rebele contra a repetição do mesmo.
Que procure não mais a fugacidade do momento vivido, mas o tempo de eternidade das
relações do homem com a produção e das relações dos homens entre si e com a natureza.
Uma práxis em que a filosofia reconcilie ideal e realidade, os valores coletivos e individuais,
em que a dialética revolucionária seja a chave para a crença na humanidade. Em lugar de
sonhar com a regressão, sonhar com o mundo para adiante.
Não se trata apenas de superar a força do capital e as deformações das relações de
produção, mas de metamorfosear uma cultura egoísta, de vínculos profundos com a
sociedade, que, nos dias atuais, resulta, inevitavelmente, na alienação do homem, desde as
suas atitudes e pensamentos à opressão do trabalhador e à aceitação, sem questionar, de
privilégios pelo capitalista. No caso do homem trabalhador, essa alienação reside na energia
dedicada à sobrevivência, o que corrói sua humanidade e o tempo livre que poderia dedicar ao
seu aperfeiçoamento.
O capitalista também perde sua humanidade, uma vez que se converte na
personificação do próprio capital, cultuando sua individualidade e reagindo às possibilidades
de mudança, mesmo se tiver de recorrer à obscuridade fascista. Ou, em termos da cultura
capitalista, a tendência de agir cega e inconscientemente, abstendo-se de pensar o quanto a
violência e o mal são expressões simbólicas do retorno ao passado selvagem e não humano.
Resumindo, o alvo permanente de Bloch são os valores. Não os elegeu intuitivamente,
mas a partir do pensamento de Marx e Freud. Sem configuração revolucionária dos valores,
não há horizontes para o novum. Sem ética prática, não há possibilidade de vida melhor. O
homem prometeico é acima de tudo um ser ético.
Bloch não considera a possibilidade de qualquer vínculo entre o capitalismo e o
futuro. Não considera a possibilidade de uma burguesia esclarecida (Bildungsbürgertum),
nem de reforma do capitalismo por ter esgotado o papel histórico. Por não ser normativa e
estar determinada e deixar o capitalismo confinado na história, a única utopia capaz de
libertar o homem seria a teoria e a prática marxista. Além de revolucionar as estruturas,
segundo ele, não existe um único sujeito revolucionário, a classe trabalhadora, mas múltiplos,
desde o excluído e marginalizado da vida social, estudantes e funcionários, aqueles que,
independente de classe, opõem-se ao capitalismo.
270
Isto não quer dizer que Bloch tenha abandonado o conceito do trabalhador como sendo
sujeito revolucionário. Em vez disso, seu desejo é ampliar o significado do sujeito,
acompanhando as mudanças do capitalismo e com vistas ao socialismo de massas. Ele divisa
o homem e o conteúdo do mundo em mediação dialética e ao falar das relações do sujeito
revolucionário com a história, está sendo fiel à ideia de que o homem encontra-se no centro
da utopia concreta.
A apreensão dessas nuanças vêm da união do marxismo com a psicanálise e da sua
experiência pessoal desde a luta contra a ascensão do fascismo na Alemanha. A sua
concepção é de que a revolução se perpetua e, portanto, necessita eternamente do autêntico
sujeito revolucionário, o homem. Na filosofia blochiana, predomina a ideia da filosofia ativa e
da realidade cotidiana, a categoria que se refere ao mundo da vida (Lebenswelt). O problema
utópico é transposto para uma realidade atemporal, mas que se anuncia no tempo presente.
Como argumenta Bloch em Experimentum Mundi, o seu último livro em que condensa seu
pensamento filosófico, o homem pode ainda ser desconhecido, mas o que é desumano é
conhecido.
E o capitalismo é violento, ameaça destruir, psíquica e fisicamente, toda a
humanidade. O socialismo seria o futuro. Um futuro em que o homem determinaria a sua
vida, sem depender de Deus ou de senhores. O marxismo é o ponto arquimédico que iria
absorver as conquistas tecnológicas da burguesia, mas suprimirá a cultura do dinheiro e do
mercado. Representa o ponto de culminância de sucessivas utopias, e o início de um novo
começo para a humanidade.
A má consciência preponderante e a pulsão incontrolável para o lucro, até porque a
burguesia jamais terá interesse em controlá-las, conduzirão o capitalismo para a apropriação
da natureza e desumanização do homem. É o caminho para a destruição. Como o capitalismo
não pode ser aperfeiçoado, precisa ser superado. Não se trata de um princípio de extremos:
socialismo ou barbárie, mas de ordem e liberdade. Ou a ordem nasce dialeticamente da
liberdade, fundamentada no princípio da totalidade e da confiança no homem em modelar sua
história, ou, o homem permanece sublinhado à subordinação da liberdade à ordem, em
continuada repetição. Como quem não avança recua, o homem, sem o sonho acordado do
socialismo, feneceria.
Bloch não considera, é certo, o socialismo como fim, mas sim, como princípio da
história. Mas seria estéril discutir essa questão sem antes tornar o homem consciente de
acordar para a evidência de que o inimigo do socialismo não é o grande capital, mas a vontade
do próprio homem de construir a humanidade futura. É a esse salto para a frente que define
271
como utopia possível. O caminho para concretizá-la pertenceria à transformação da categoria
ainda-não-consciente em consciência revolucionária.
Teoricamente, na concepção marxista, a revolução significaria o ato pelo qual a
dominação de uma classe é transferida pela violência,156
para a outra. Inclui as categorias de
―dominação‖, ―classe‖ e ―revolução proletária‖. Bloch não se revela radicalmente contrário à
violência revolucionária, mas o que considera decisivo é o acordar para o ainda-não-
consciente. Se a violência tiver de ocorrer, como aconteceu na revolta camponesa liderada por
Thomas Münzer, na Utopia de More e na Revolução de Outubro de 1917, que esta tenha um
alvo prometeico.
A questão que se coloca, para Bloch, é: o homem estaria consciente da vontade de
antecipação do futuro? Se a resposta for afirmativa, não parece estar excluído o enfrentamento
entre o espírito revolucionário e o espírito conservador. O que não parece coerente com a
filosofia blochiana é o não encontro do homem com ele próprio e a não convicção de uma
transformação global da humanidade que se estendesse continuamente por gerações e
gerações. Havendo essa convicção, preponderaria a superação das diferentes formas de
valores e da cultura vigente sob o capitalismo.
Bloch fala pela voz de Karl Marx nas Teses sobre Feuerbach. Exatamente a Tese 11,
que trata da transformação do mundo pelos filósofos. Ele estende essa responsabilidade ao
homem. Não basta a indignação ou a denúncia da ilusão capitalista. Como não basta atribuir
as fontes da ilusão aos movimentos do capital. É preciso levar para a sociedade um ideal
concreto de mudança, que seja sólido e que se desenvolva como possibilidade real.
A esperança é de saúde plena nas relações humanas. Bloch interpreta o marxismo
como o programa da libertação do homem pela interação entre a moral transformadora e o
socialismo. Esse o contexto em que ele analisa as correntes ―quente‖ e ―fria‖ do marxismo e o
motivo das suas veementes críticas à inércia da ortodoxia marxista para a qual Ulisses,
Prometeu e Fausto parecem ter a mesma falta de importância que o proletariado
revolucionário.
Nesses personagens, Bloch fundamenta a metáfora do homem astuto, o estrategista de
si mesmo – o ―polymetis‖, o que tem muita astúcia, e o ―polymachanos‖, o homem de muitas
estratégias, que Homero personifica em Ulisses, o grande artista na arte de enganar – e o
156
Münzer responsabilizava a classe dominante pela violência: ―são os próprios senhores que fazem do pobre
homem um inimigo; e se eles não querem afastar a causa da revolta, como será possível melhorar as coisas a
longo prazo?‖ Para Bloch, é um direito natural do homem resistir ao ―poder tirânico ou ditatorial‖. Thomas
Münzer, na sua revolta, estava respaldado pelo Antigo Testamento e na figura de Cristo purificada das lendas
conservadoras. Além disso, Münzer sempre agiu em conformidade com o bem e a igualdade dos homens
(MÜNSTER, 1997, p. 196-7).
272
homem que acredita no homem que é o Ulisses de Dante. Personagens antagônicos e, que
terão, em Prometeu e Fausto, a simbologia do homem rebelde, encontra-se, filosoficamente,
na crítica de Bloch à história teatral do homem e à necessidade da sua transformação em
história real.
E, na fusão de Fausto com a Fenomenologia do Espírito de Hegel, emerge a
consciência do homem moderno, com as possibilidades de corrupção ou não dos seus ideais, o
choque entre o conceito de história e o tempo de agora, o Jetztzeit. É o socialismo parte do
presente ou do futuro? Qual a relação entre o socialismo e o cotidiano? Seriam as pequenas
coisas inerentes à perpetuação do bem comum? Essas são questões que remetem às perguntas
inaugurais, todas ainda sem respostas, de O Princípio Esperança: Quem somos? De onde
viemos? Para onde vamos? Que esperamos? O que nos espera?
Compreendê-las e respondê-las exigiria um movimento extenso no conteúdo do ainda-
não-consciente, contrário ao capitalismo e ao ―marxismo ortodoxo‖. O essencial parece ser a
crítica à inteligência enganadora, que ensina a nada levar a sério, salvo o benefício pessoal,
contra a inteligência que procura tudo levar a sério, que se questiona, que se transforma, que,
como Marx, procura uma forma combativa de inteligência. É a dramaticidade da crise da
cultura burguesa e seus valores com a perspectiva da confiança socialista que nasce do
movimento coletivo. Não se trata do resgate da comunidade de amigos concebida por
Aristóteles, mas de valores de crença no homem na sociedade de massas socialista.
Consciência, vontade e crença seriam uma coisa só, um único e fascinante paradigma.
Ao vincular a utopia concreta ao sonho acordado, Bloch ensaia um salto à frente no
processo revolucionário. Constrói um Bildungsroman para alertar o homem dos riscos da
repetição devastadora do nazismo e da repetição do sistema capitalista. No salto para a utopia
concreta é que se afirmariam a mudança de valores do homem e a latência da consciência
ganharia nova dinâmica, com a filosofia servindo de base para a prática de libertação. Seria
um avanço não apenas em relação às Revoluções proletárias do passado, mas em relação às
revoluções que certamente virão. O episódio mais importante da mudança estaria no retorno
do homem ao próprio homem, com a liberdade nascendo da coletividade e não mais da
individualidade egoísta.
Nesse sentido, o sol, ao qual Bloch tanto se refere, surge como metáfora da transição
do mundo incompleto para o mundo da completude. A utopia concreta e o ainda-não-
consciente seriam caminhos para esquentar e fazer aflorar as possibilidades latentes ou em
erupção no homem. Essas faces – inconsciência e consciência – pertencem ao homem. O
homem sabe que existem, mas precisa descobri-las.
273
Enfim, o pressuposto do apelo à violência contra a burguesia – vale a ele retornar – é
ambíguo, mas pouco relevante. Encontra-se acondicionado na possibilidade, talvez como um
procedimento necessário em determinado momento, mas não como percurso necessariamente
revolucionário. Certamente, o que Bloch defende é uma crítica permanente ao autoritarismo
do Estado liberal e o despertar da sociedade para uma cultura filosófica libertária, pela aliança
da teoria com a práxis.157
A utopia de Bloch caracteriza-se pela fusão do necessário, do útil e do belo pela
valorização do humano. A vida, nos seus mínimos detalhes e no seu conjunto, precisa ser
feliz. A marca do humanismo está presente nas utopias passadas, não só nos seus aspectos
sociais, mas na música, na arquitetura, na medicina, na ciência, na literatura, na pintura, nas
viagens de descoberta, nas religiões, na natureza, por toda a parte onde se imponha a
necessidade de fazer o ser humano sonhar para adiante.
Não é diferente na utopia concreta. O novum encontra-se na dialética materialista da
história e no movimento progressivo do homem no rumo das possiblidades da revolução.
Como, parafraseando Mehring (2003, p. 67), se a filosofia encontrasse sua razão de existir no
homem trabalhador e o homem trabalhador encontrasse o seu saber na filosofia. Um fazendo
florescer o outro, um mesmo Dioniso-Apolo, uma mesma sabedoria e vontade como em
Ulisses de Dante.
O que Bloch propõe é uma construção consciente do homem e de uma utopia
libertária. Sensível ao desenvolvimento histórico, perfeita nos seus objetivos, mas conflitada
no seu processo. Uma utopia que lute contra a noção de destino e que comece pela saúde da
sociedade e do corpo, que torne a natureza humana uma construção coletiva e que condene as
ilusões. Que esteja associada ao princípio formativo orgânico da humanidade, aquela do
Bildung no sentido da força vital da superação dos preconceitos, da construção de uma nova
cultura e de um novo cimento unificador da humanidade e sua história.
Assim, o Bildungsroman de Ernst Bloch, como o Wilhelm Meister de Goethe, procura
despertar o homem para a sua presença na sociedade, inserção essa que é o sonhar acordado
com a autoconstrução. Os gregos criaram um sistema cultural totalizante, a paideia. Bloch
almeja criar um sistema utópico aberto, mas também totalizante, que envolva a sociedade em
157
Entre os contemporâneos de Bloch, Marcuse está bem próximo dessa ideia, com a teoria Racionalista, que
procura mostrar a faculdade do homem de ―aprender o verdadeiro, o bem e o justo‖ (MARCUSE, 1998, p.
57). Mas Marcuse, como Bloch, não exclui o recurso à violência em casos de transformações sociais que
sejam ―radicais e qualitativas‖, uma vez que ―a mudança sempre conduz ao pior‖? e faz parte da dinâmica
política: é assim desde Platão e Aristóteles, não sendo diferente na filosofia de Hobbes e Descartes, mesmo
em Kant, que se condenava à revolta contra governos estabelecidos (MARCUSE, 1998, p. 139-41).
274
valores construtivos, processo pelo qual tenha raízes na linguagem, no conhecimento e na
prática filosófica transformadora.
Essas são a nascente e a foz da existência para a construção do socialismo. Não
dependem de doutrinação – porque toda doutrinação é ilusória e tem suas fronteiras numa
realidade específica –, mas de decisões por vontade da consciência. Não é uma questão
apenas de teoria, mas de prática que transforme o homem e a superestrutura que o condiciona
e multiplica a inércia ou a contemplação. Não é uma questão de indignação, mas de ação
revolucionária.
Não é, ainda, uma questão de que a utopia blochiana possa ou não ser realizada, mas,
sim, o alcance da negação de uma sociedade, a capitalista, que se perde no niilismo e nada
mais faz do que iludir o homem e prolongar o próprio fim, engendrado pelas suas
intermináveis contradições. Daí, o entendimento blochiano de que o princípio está no fim, não
no começo. O fim, na visão de Bloch, será o efetivo começo da história humana. A
concretude da esperança.
275
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OBRAS ESPECÍFICAS
BLOCH, Ernst. The Spirit of utopia. Tradução Antony A. Nassar. Califórnia: Stanford
University, 2000. (Original ―Geist der Utopie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1964. – 1. ed.
Alemã, Bearbeitete Neauflage der sweiten Fassung, 1924).
______. O princípio esperança. Tradução Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto,
2005. v. 1 (Original ―Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1985‖).
______. O princípio esperança. Tradução Werner Fuchs. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006a.
v. 2. (Original ―Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1985‖).
______. O princípio esperança. Tradução Werner Fuchs. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006b.
v. 3. (Original ―Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1985‖).
OBRAS PESQUISADAS DE ERNST BLOCH
BLOCH, Ernst. Traces. Tradução Pierre Quillet. Paris: Gallimard, 1968. (Original ―Spuren.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1959‖).
______. Das Materialismus-problem, seine Geschichte und Substanz. Frankfurt am Main:
Suhrkamp Verlag, 1972.
______. Thomas Münzer: teólogo da revolução. Tradução Vamireh Chacon e Celeste Aída
Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. (Original ―Thomas Münzer als Theolog der
Revolutions: Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1963‖).
______. La philosophie de la renaissance. Tradução Pierre Kamnitzer. Paris: Payot, 1974.
(Original ―Vorlesungen zur Philosophie der Renaissance. Frankfurt am Main: Suhrkamp
Verlag, 1972‖).
______. Experimentum Mundi: Frage, Kategorien, des Herausbringens, Praxis. Frankfurt am
Main: Suhrkamp Verlag; Gert Ueding, 1975.
276
BLOCH, Ernst. Sujet-Objet: éclaircissements sur Hegel. Tradução Maurice de Gandillac.
Paris: Gallimard, 1977a. (Original ―Subjekt-Objekt: Erläuterungen zur Hegel. Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1962 – 1. ed. alemã, Leipzig, 1951‖).
______. Zwischenwelten in der Philosophie – geschichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp
Verlag, 1977b.
______. Essays on the Philosophy of Music. Tradução P. Palmer. Cambridge: Cambridge
University Press, 1985.
______. The Utopian Function of Art and Literature: selected essays. Tradução Jack Zipes e
Frank Mecklenburg. Londres: Mit Press, 1988b. (Original ―Gesprächt mit Ernst Bloch.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1975.‖).
______. On the Original History of the Third Reich. In: ______. Heritage of our times.
Tradução Neville e Stephen Plaice. Londres: Polity Press, 1991. (Original ―Erbschaft dieser
Zeit. Heritage of ours times. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1962‖).
______. Droit naturel et dignité humaine. Tradução Denis Authier e Jean Lacoste. Paris:
Payot, 2002. (Original ―Narurrecht und menschliche Würde. Frankfurt am Main: Suhrkamp
Verlag, 1961‖).
______. Avicenne et la gauche aristotélicienne. Tradução Claude Maillard. Paris: Premières
Pierres, 2008. (Original ―Avicenna und die Aristotelische Linke. Frankfurt am Main:
Suhrkamp Verlag, 2005.– 1. ed. alemã, Leipzig, Rütten und Loening, 1952‖).
______. Atheism in Christinity: the religion of the exodus and the kingdom. 2. ed. Tradução J.
T. Swann. London: Verso, 2009a. (Original ―Atheismus im Christentum. Berlim: Herder und
Herder, 1962.‖).
______. Ernst Bloch Symbole: les Juifs: um chapitre ―oublié‖ de L‗esprit de l‘utopie.
Tradução Raphaël Lellouche. Paris: Éditions de l‘Éclat, 2009b. (Original ―Symbol: Die Juden:
Zur motorisch-phantastichen Erkenntnistheorie dieser Phoklamation. Frankfurt am Main:
Suhrkamp Verlag, 1971.‖).
______. Études critiques sur Rickert et le problème de la théorie moderne de la connaissance.
Tradução Lucien Pelletier. Paris: Maison des Sciences de l‘Homme e les Presses de
l‘Université Laval, 2010. (Original ―Kritische Erörterungen über Heinrich Rickert und das
Problem der Erkenntnistheorie, Dissertation, 1909. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag,
1968. – 1. ed. alemã: Ludwigshafen a. Rh., Bauer, 1909‖).
277
BLOCH, Ernst. Mémorial pour Else Bloch-von Stritzky. Tradução Lucien Pelletier. Paris:
Maison de Sciences de l‘Homme, 2011. (Original ―Gedenkbuck für Else Bloch-von
Stritzki.Tendenz-Latenz-Utopie. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1978‖).
SOBRE ERNST BLOCH
ALBORNOZ, Suzana. O Enigma da Esperança: Ernst Bloch e as margens da história do
espírito. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
______. Ernst Bloch e a Felicidade Prometida. Revista Possibilidades, Goiás: NPM – Núcleo
de Pesquisa Marxista, v. 2, n. 05, jul./set., 2005.
______. Ética e utopia: ensaio sobre Ernst Bloch. 2. ed. Porto Alegre: Movimento, 2006.
______. A Nova Atlântida de Francis Bacon (1561-1626), na visão do filósofo da utopia Ernst
Bloch (1885-1977). Morus - Utopia e Renascimento, Campinas, SP, n. 6, 2009.
______. Em Busca do Éden Eldorado: A utopia de Cristóvão Colombo na Interpretação de
Ernst Bloch. Morus - Utopia e Renascimento, Campinas, SP, n. 7, 2010.
BERTRAND, Michèle. La question de la croyance: de Marx à Ernst Bloch. In: GOETHE-
INSTITUT. Réification et utopie: Ernst Bloch and György Lukács un siècle après. 1985,
Arles. Actes du colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud, 1986.
BICCA, Luiz Eduardo. Ernst Bloch: marxismo e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1982. (Encontros com a Civilização Brasileira, 29).
BOLDYREV, Ivan. Ernst Bloch and his contemporaries. New York: Bloombsbury, 2014. E-
book.
BOURETZ, Pierre. Ernst Bloch: une hermenéutique de l‘attente. In: ______. Témoins du
Futur: philosophie et messianisme. Paris: Gallimard, 2003a.
BRUN, Jacques. Tactique et éthique: essai d‘interprétation. In: GOETHE-INSTITUT.
Réification et utopie: Ernst Bloch and György Lukács un siècle après. 1985, Arles. Actes du
colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud, 1986.
278
COSTA, Maria de Fatima Tardin . A utopia na perspectiva de Ernst Bloch. In: ENCONTRO
NACIONAL DA ABRAPSO, 15., 2009. Maceió. Anais... Maceió, 2009. Disponível em:
<http://www.abrapso.org.br/siteprincipal/images/Anais_XVENABRAPSO/526.%20%20a%2
0utopia%20na%20perspectiva%20de%20ernst%20bloch.pdf>. Acesso em: 16 maio 2015.
DESPOIX, Philippe. Mystique et tragédie: la rencontre des mondes spirituels de E. Bloch et
G. Lukács (1910-1918). In: GOETHE-INSTITUT. Réification et utopie: Ernst Bloch and
György Lukács un siècle après. 1985, Arles. Actes du colloque Goethe Institut... Arles: Actes
Sud, 1986.
FURLAN, Pierre. L‘esperance à l‘époque de la menace totale. In: GOETHE-INSTITUT.
Réification et utopie: Ernst Bloch and György Lukács un siècle après. 1985, Arles. Actes du
colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud, 1986.
FURTER, Pierre. Dialética da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
GEOGHEGAN, Vincent. Ernst Bloch. New York: Routledge, 1996.
GOETHE-INSTITUT. Réification et utopie: Ernst Bloch and György Lukács un siècle après.
1985, Arles. Actes du colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud, 1986.
HABERMAS, Jürgen. Ernst Bloch: a Marxist Schelling (1960). In: ______. Philosophical-
Political Profiles. Tradução Frederick G. Lawrence. Cambridge: MIT Press, 1987.
JAY, Martin.Ernst Bloch and the extension of marxism holism to nature. In: ______.
Marxisme & Totality: the adventurs of concept from Luckás to Habermas. Califórnia:
University of California Press, 1984a.
______. Lukács, Bloch et la lutte pour un concept marxist de totalité. In: GOETHE-
INSTITUT. Réification et utopie: Ernst Bloch and György Lukács un siècle après. 1985,
Arles. Actes du colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud, 1986.
KARADI, Eva. Bloch et Lukács dans le cercle de Weber. In: GOETHE-INSTITUT.
Réification et utopie: Ernst Bloch and György Lukács un siècle après. 1985, Arles. Actes du
colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud, 1986a.
______. Le romantisme révolutionnaire de Bloch et Lukács. In: GOETHE-INSTITUT.
Réification et utopie: Ernst Bloch and György Lukács un siècle après. 1985, Arles. Actes du
colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud, 1986b.
279
LORENZONI, Ana Maria. Utopia e materialismo na interpretação blochiana. In: SIMPÓSIO
INTERNACIONAL LUTAS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA – Revoluções nas
Américas: passado, presente e futuro, 5., 2013, Londrina. Anais... Londrina: GEPAL, 2013.
Disponível em: <http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/v15_anna_maria_GX.pdf>. Acesso
em: 15 maio 2015.
LÖWY, Michael. Le romantisme révolutionnaire de Bloch et Lukács. In: GOETHE-
INSTITUT. Réification et utopie: Ernst Bloch and György Lukács un siècle après. 1985,
Arles. Actes du colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud, 1986.
______. Utopie: In: DICTIONNAIRE du Monde Germanique. Paris: Boyard, 2007.
______. Ernst Bloch e Theodor Adorno: luzes do romantismo. Cadernos CEMAX – Centro do
Estudos Marxista, Campinas, SP, n. 6, 2009a. p. 11-27.
MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. Ernst Bloch e “o sonho de uma coisa”: o pensamento
alemão no século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2009. v. 1.
MÜNSTER, Arno. La navire de la mort de la philosophie: Ernst Bloch et Heidegger. In:
GOETHE-INSTITUT. Réification et utopie: Ernst Bloch and György Lukács un siècle après.
1985, Arles. Actes du colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud, 1986.
______. Ernst Bloch: filosofia da práxis e utopia concreta. São Paulo: UNESP, 1993.
______. Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras obras de Ernst Bloch. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: UNESP, 1997.
______. Le príncipe dialogique: de la réflexion monologique vers la pro-flexion
intersubjetive. Paris: Éditions Kimé, 2001a.
______. L’utopie concrète d’Ernst Bloch: une biographie. Paris: Éditions Kimé, 2001b.
______. Utopie écologie, écosocialisme: de l‘utopie concrète a le écologie socialiste. Paris:
L‘Harmattan, 2013. E-book.
PALMIER, Jean-Michel. En reliant L‘Ésprit de l‘utopie ou Priére pour un bon usage d‘Ernst
Bloch. In: GOETHE-INSTITUT. Réification et utopie: Ernst Bloch and György Lukács un
siècle après. 1985, Arles. Actes du colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud, 1986.
280
PASTOR, Manuel Ureña. Ernst Bloch: un futuro sin dios? Madrid: Editorial Catolica, 1986.
RAULET, Gérard. L‘ utopie concrète à l‘épreuve de la post-modernité, ou: comment peut-on
être blochien. In: GOETHE-INSTITUT. Réification et utopie: Ernst Bloch and György
Lukács un siècle après.1985, Arles. Actes du colloque Goethe Institut... Arles: Actes Sud,
1986.
SCHELLING, F. W. J. Introduction à l’Esquisse d’un systéme de philosophie de la nature.
Tradução Franck Fischbach e Emmanuel Renault. Paris: Livre de Poche, 2001. (Coleção
Classiques de la philosophie).
VIEIRA, Antonio Rufino. Princípio Esperança e a ―Herança‖ Intacta do Marxismo em Ernst
Bloch. In: COLOQUIO INTERNACIONAL MARX-ENGELS, 5., 2007, Campinas. Anais...
Campinas: CEMARX/Unicamp, 2007. Disponível em:
<http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt1/sess
ao6/Antonio_Rufino.pdf>. Acesso em: 15 maio 2015.
______. Marxismo e libertação: estudos sobre Ernst Bloch e Enrique Dussel. São Leopoldo,
RS: Nova Harmonia, 2010.
ZECCHI, Stefano. Ernst Bloch: utopia y Esperanza en el Comunismo. Tradução José-
Francisco Ivars e Enric Pérez Nadal. Barcelona: Edicions 62, 1978.
ZIPES, Jack. Ernst Bloch et le Vor-Schein. In: GOETHE-INSTITUT. Réification et utopie:
Ernst Bloch and György Lukács un siècle après.1985, Arles. Actes du colloque Goethe
Institut... Arles: Actes Sud, 1986.
OBRAS DE REFERÊNCIA
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: paraíso. Tradução Ítalo Eugenio Mauro. São Paulo:
Editora 34, 1998.
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução Giovanni Reale e Marcelo Perine. São Paulo: Loyola,
2002. v. 3.
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Cultrix, s/d.
BACON, Francis. Nova Atlântida e a Grande Instauração. Tradução Miguel Morgado
Lisboa: Edições 70, 2008.
281
BELAVAL, Yvon (Org.). Histoire de la philosophie II: la renaissance – l‘âge classique. Paris:
Gallimard, 1973a. v. 1.
BELAVAL, Yvon. Leibniz: initiation à sa philosophie. Paris: J. Vrin, 2005.
BELLAMY, Edward. Looking beckward: 2000-1887. New York: Dover Publications, 1996.
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor . In: OBRAS escolhidas de Walter Benjamin .
Tradução João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
______. Passagens. Tradução Irene Aron. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
BERLIN, Isaiah. Karl Marx: su vida y su enterno. Tradução Roberto Bixio. Madrid: Alianza,
2007.
______. As Raízes do Romantismo. Tradução Isa Mara Lando. São Paulo: Três Estrelas, 2015.
BIBLIA Sagrada português-inglês / Holly Biblie Portuguese-English, 8. ed. São Paulo: Vida,
2003.
BLANC, Louis. L‘Organization du Travail. Paris: Bureau de la Société de industrie
Fraternelle, 1847 (Coleção Universidade de Michigan). E-book.
BORGES, Anselmo. Ernst Bloch: A esperança atéia contra a morte. Revista Filosófica de
Coimbra, Lisboa, v. 2, n. 4, 1993a.
BORGES, Anselmo. A referência atéia contra a morte. Revista Filosofica de Coimbra ,
Lisboa, v. 2, n. 4, 1993b.
BORGES, Jorge Luis. Las ruinas circulares. In: Ficciones. 7. ed. Buenos Aires: Debolsillo,
2014.
CAMPANELLA, Tommaso. A cidade do sol. [ S.l.]: E-BookLibris, 2001. Disponìvel
em:<http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cidadesol.html>. Acesso em: 15 maio 2015.
______.______. Tradução Ciro Moranza. São Paulo: Escala, 2008. (Grandes Obras do
Pensamento Universal).
282
CLAUDIN, Fernando. A crise do movimento comunista. 2. ed. Tradução José Paulo Netto.
São Paulo: Expressão Popular, 2013.
COHN, Norman. The pursuit of the Millennium: revolutionary millenarians and mystical
anarchists of the middle ages. New York: Oxford University Press, 1970.
DESCARTES, René. Mediações sobre filosofia primeira. Tradução Fausto Castilho.
Campinas, SP: Editora Unicamp, 2004. (Coleção Multilíngues de Filosofia).
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamazov. Tradução Bezerra Paulo. São Paulo:
Editoria 34, 2008.
DUDLEY, Will. Idealismo Alemão. Tradução Jacques A. Wainberg. Petrópolis, RJ: Vozes,
2013.
EAGLETON, Terry. O problema dos desconhecidos: um estuda da ética. Tradução Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
ENGELS, Friedrich. As guerras camponesas na Alemanha. [s.trad.]. São Paulo: Editorial
Grijalbo, 1977.
______. Socialisme utopique et socialisme scientifique. Tradução Paul Lafarge. Bruxelas:
Editions Eden, 2005.
FFYTCHE, Matt. As origens do Inconsciente: de Schelling a Freud. Tradução Cláudia Gerpe
Duarte e Eduardo Gerpe Duarte. São Paulo: Cultrix, 2014.
FREUD, Sigmund. Obras completas. 3. ed. Tradução Luis Lopez-Ballesteros y de Torres.
Madri: Biblioteca Nueva, 1973. v. 1.
______. The psychology of the dream-process. In: ______. The basic writings of Sigmund
Freud. Tradução A. A. Bril. Nova York: Random House Digital, 1995.
FURET, François; OZOUF, Mona. Babeuf. Dicionário crítico da Revolução Francesa.
Tradução. Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
283
GABRIEL, Markus. "La nécessité universelle du péché et de la morte" - Vie et morte dans l'
Ecrit sur la liberté de Schelling. Revue Germanique Internationale, Paris, CNRS Editions, n.
18. out. 2013.
GARCIA-ROSA, Alfredo Luiz. Freud e o Inconsciente. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Pandora. Tradução Jacques Portchat. Paris: Éditions
Bibliothéque Digitale, 2012a. E-book.
HELLER, Agnes. O homem do renascimento. Tradução Conceição Jardim e Eduardo
Nogueira. Lisboa: Editorial Presença, 1982.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e
colonização do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HOMERO. Odisseia. Tradução Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2003b.
JAY, Martin. Marxism and Totality: the adventurs of concept from Luckás to Habermas.
Califórnia: University of California Press, 1984b.
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. Tradução Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto;
Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2006.
JOUSSET, David. Le vocabulaire allemand de la philosophie. Paris: Ellipses, 2007.
KEHL, Maria Rita. A mulher e a lei. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
KNIGHT, Kelvin. Aristotelian Philosophy. Cambridge, Inglaterra: Polity Press: 2007. E-
book.
KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2002.
KOLAKOWSKI, Leszek. Horror Metafísico. Tradução Aglaia D. P. Coutinho Castro.
Campinas, SP: Papirus, 1990.
284
LABORDA, Alfonso Pérez de. Estudios filosóficos de la historia de la ciência. Madri:
Ediciones Encuentro, 2005.
LACOSTE, Jean. Goethe, la nostalgie de la lumière. Paris: Éditions Belin, 2007a.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm Freiherr von. Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano.
Tradutor Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
LEQUAN, Mai (Ed.). Les Cahiers Philosophiques de Strasbourg: Philosophie Allemand et
Philosophie Antique. Paris: Université Marc Bloch de Strasbourg, 2007.
LEROUX, Pierre. L’inventeur méconnu du mot ―socialisme‖: historia thématique. Paris:
[S.n.], 2009. v. 5.
LOCKWOOD, Lewis. Beethoven: a música e a vida. 2. ed. Tradução Lucia Magalhães e
Graziella Somaschini. São Paulo: Conex, 2005.
LOUREIRO, Isabel. A revolução alemã, 1918-1923. São Paulo: UNESP, 2005. (Revoluções
do Século XX).
LÖWY, Michael. A teoria da revolução no jovem Marx. Tradução Anderson Gonçalves.
Petropólis, RJ: Vozes, 2002.
______. Revoluções. Tradução Yuri Martins Fontes. São Paulo: Boitempo, 2009b.
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia. Tradução Nair Fonseca. São Paulo:
Boitempo, 2015.
LUKÁCS, György. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista.
Tradução Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Lenin. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012.
MAGRI, Lucio. O alfaiate de Ulm: uma possível história do Partido Comunista Italiano.
Tradução Silva de Bernardinis. São Paulo: Boitempo, 2014.
MALER, Henri. Congédier l’utopie? L‘utopie selon Karl Marx. Paris: L‘Harmattan, 1994.
285
MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Tradução Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
MARCUSE, Herbert. Marxismo soviético: uma análise crítica. Tradução Carlos Weber. Rio
de Janeiro: Saga, 1969a.
______. O fim da utopia. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1969b.
______.Cultura e sociedade. 2. ed. Tradução Wolfgang Leo Maar, Isabel Maria Loureiro e
Robespierre de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. v. 2.
______. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. 5 ed. Tradução Marília
Barroso. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
MARX, Karl. O Capital: Oeuvres: Economie. Tradução Maximilien Rubel, L. Evrard e
Joseph Roy. Paris: Gallimard, 1965. v. 1.
______. Oeuvres: Philosophie. Tradução Maximilien Rubel. Paris: Gallimard, 1982. v. 3.
______. Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Tradução Jesus Ranieri. São Paulo:
Boitempo, 2004.
______. Manuscrits économico-philosophiques de 1844. Tradução Franck Fischbach. Paris:
Librairie Philosophique J. Vrin, 2007.
______. O 18 Brumário de Luíz Bonaparte. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: 2011. E-
book.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. Tradução Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo,
1998a.
______. A Sagrada Família. Tradução Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2003.
______. A ideologia alemã: 1. capítulo, seguido das Teses sobre Feuerbach. Tradução
Marcelo Backes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
286
MEHRING, Franz. Karl Marx. Tradução Edward Fitzgerald. Londres: Routledge Library,
2003.
MINOIS, Georges. A Idade de Ouro: história da busca da felicidade. Tradução Christiane
Fonseca Gradvohl Colas. São Paulo: UNESP, 2011.
MOLON, Alessandro Lucciola. Graco Babeuf: o pioneiro do socialismo moderno. Rio de
Janeiro, EDUERJ, 2002.
MORE, Thomas. Utopia. 2. ed. Tradução Jefferson Luiz Logan e Robert M. Adams. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
MORE, Thomas et al. L’utopie. Tradução Marie Delcourt. Paris: Flammarion, 1987.
MORRIS, William. News from Nowhere. Toronto: Broadview Literary Texts, 2002.
MUSSO, Pierre. La Religion du Monde Industriel: analyse de la pensée de Saint-Simon.
Paris: Éditions de l‘Aube, 2006.
NEEF, Christian; SCHEPP, Matthias. The mystery of Mikhail: Gorbachev‘s ambiguous
legacy — Part 2: Why Perestroika was over only two years after it began. Spiegel Online, 18
ago. 2011. Disponível em: <http://www.spiegel.de/international/world/the-mystery-of-
mikhail-gorbachev-s-ambiguous-legacy-a-781043-2.html>. Acesso em: 10 jun. 2013.
NIETZSCHE, Friedrich W. O nascimento da tragedia ou Helenismo e pessimismo . Tradução
J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
OWEN, Robert. Obras incompletas. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Editora 34, 2014.
OWEN. Robert. The Social System. Selected Works. Londres: William Pickering, 1993b, v.2.
______. The Book of the New Moral World. Selected Works. Londres: William Pickering,
1993c.
PAZ, Octavio. Tempo Nublado. Tradução Sônia Régis. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
287
PLATÃO. Republique: Ouvres. Tradução Léon Robin. Paris: Gallimard, 2007.
______. Timeu e Crítias ou a Atlântida. Tradução Norberto de Paula Lima. São Paulo:
Hemus, 2009.
ROUANET, Sergio Paulo. Dilemas da Moral Iluminista. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Tradução Vera
Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
SAMPAIO, Ernesto. Fourier: escolha de textos, tradução, prefácio e notas. Lisboa:
Salamandra, 1996.
SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph. Les Âges du monde. Tradução Patrick Cerutti.
Paris: Librarie Philosophique Vrin, 2012.
______. Les Âges du Monde. Tradução Pascal David. Paris: Presses Universitaires de France,
2015. E-book.
STANGUENNEC, André. La Philosophie Romantique Allemande. Paris: J. Vrin, 2013.
TOCQUEVILLE, Alexis. A Democracia na América: leis e costumes de certas leis e certos
costumes politicos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social
democrático. Tradução Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
VAZ, H. Lima. ―Sobre as fontes filosóficas do pensamento de Karl Marx‖. Nova Escrita
Ensaio. Marx Hoje. São Paulo: Escrita, Edição Especil, n. 11/12, 1993.
VICO, Giambattista. Ciência Nova. Tradução Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2005.
ZAPATA, René. La philosophie russe et soviétique. Paris: Presses Universitaires de France,
1988.
288
OBRAS DE APOIO
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Tradução Marco Antonio Casanova. Rio de
Janeiro: Zahar, 2009.
______. Teoria Estética. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2012.
ADORNO, Theodor W.; HORHHEIMER, Max. Dialectic of Enlightenment. Tradução John
Cymming. Nova York: Verso, 1997.
ALBORNOZ, Susana Guerra. Trabalho e utopia na modernidade: o trabalho em a Cidade do
Sol de Tommaso Campanella. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2005, v. 8, p. 59-
69.
ALMEIDA, Jorge de; BADER, Wolfgang (Orgs.). O pensamento alemão no século XX:
grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2013. v. 1-2.
ANDRADE, Manuel de. Nos Rastros da Utopia: uma memória critica da América Latina nos
anos 70. São Paulo: Escrituras, 2014.
ARISTÓTELES. Política. Tradução Mário da Gama Kury. 2.ed. Brasília: UNB, 1988.
______. Ética a Nicómaco. 2. ed. Tradução José Luis Calvo Martinez. Madrid: Alianza
Editorial, 2014.
AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução Marisa Lopes. São Paulo:
Discurso Editorial, 2005.
AURIAS, Violaine. Lenin, Stalin & music. Tradução Michèle Kahn. Paris: Fayard; Cité de la
Musique, 2011.
BADIOU, Alain; ZIZÉK, Slavoj. L’idée du communisme. Clamecy, França: Lignes, 2010.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Tradução Maria João da Costa Pereira.
Lisboa: Relógio d‘Água, 1991.
289
BELAVAL, Yvon (Org.). Histoire de la philosophie II: Le siécle des lumiéres – la révolution
kantienne. Paris: Gallimard, 1973b. v. 2.
______. Histoire de la philosophie III: le XIXe siècle – le XXe siécle. Paris: Gallimard,
1974a. v. 1.
______. Histoire de la philosophie III: Le XXe siécle – la philosophie en Oriente. Paris:
Gallimard, 1974b. v. 2.
BENASAYAG, Miguel. Le mythe de l’individu. Tradução Anne Weinfeld. Paris: Éditions la
Découverte, 1998.
BENJAMIN, Walter. Imagens de pensamento. Tradução João Barrento. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2004.
______. Autor como produtor. In: A MODERNIDADE. Tradução João Barrento Lisboa ,
Assìrio & Alvim, 2006. (Obras escolhidas de Walter Benjamin).
______. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Tradução Márcio Seligmann-
Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011.
______. Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barrento. Belo Horizonte:
Autêntica, 2011.
BERLIN, Isaiah. O sentido da realidade: estudos das ideias e de sua história. Tradução
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
______. A força das ideias. Tradução Renato Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
BETH, Brait (Org.). Bakhtin: conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2014.
BIRMAN, Joel. Freud & filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
BLANQUI, Louis Auguste. Le Communisme avenir de la société. Paris: Le passager
clandestin, 2008.
290
BORGES, Jorge Luis. Ficciones. 5 ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2013.
BOURETZ, Pierre. Hans Jonas: l‘experience de la pensée et la responsabilité envers le
monde. In: ______. Témoins du Futur: philosophie e messianisme. Paris: Gallimard, 2003b.
BOUVERESSE. Jacques. Dans le labyrinthe: nécessité, contingencie et liberté chez Leibniz.
Paris: Collège de France, 2013.
BRAGUE, Rémi. Aristote et la Question du Monde: essai sur le contexte cosmologique et
anthropologique de l‘ontologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1988.
BROWN, Peter Hume. The youth of Goethe. [S.l.]: The Project Gutenberg, 2006. E-book.
BROWNE, Janet. A Origem das Espécies de Darwin. Tradução Maria Luiza Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2007.
CABET, Étienne. Voyage en Icarie. Paris: Dalloz, 2006.
CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2008.
CAMPS, Victoria (Org.). Historia de la ética: la ética contemporánea. 2. ed. Barcelona:
Editorial Crítica, 2003.
CASSIRER, Ernst. Kant, Vida y Doctrina. Tradução Wenceslao Roces. México: Fondo de
Cultura Económica, 2003.
CASTORIADIS, Cornelius. Ce qui fait la Grèce: D‘Homère à Héraclite – la création humaine
II. Paris: Seuil, 2004. v. 1.
CHENU, Marie-Dominique. Introduction a l’étude de Saint Thomas d’Aquin. Montréal:
Institut d‘Études Médiévales. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1993.
CLEYS, Gregory. Utopia: história de uma ideia. Tradução Pedro Barros. São Paulo: Edições
SESC-SP, 2013.
COHEN-HALIMI, Michèle; FAYE, Jean-Pierre. L’Histoire Caché du nihilisme: Jacobi,
Dostoiévski, Heidegger, Nietzsche. Paris: La Fabrique Éditions, 2008.
291
COURTINE, Jean-François (Org.). Hölderlin. Tradução J. L. Vieillard-Baron et al. Paris:
L‘Herne, 1989.
DEBOUT, Simone. L’utopie de Charles Fourier. Paris: Les Presses du Réel, 1998.
DÉCULTOT, Élisabeth; ESPAGNE, Michel et al (Org.). Dictionnaire du Monde
Germanique. Paris: Boyard, 2007.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? 3. ed. Tradução Bento Prado Jr. e
Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010.
DELLIM, Martin Gregor. Richard Wagner: su vida, su obra, su siglo. Tradução Angel
Fernando Mayo Autonãnzas. Madri: Alianza, 2001.
DELUMEAU, Jean. Mil anos de Felicidade: uma história do paraíso. Tradução Paulo Neves.
São Paulo: Companhia das Letras, 1977.
______. Une histoire du paradis: le jardin des délices. Paris: Fayard, 1992.
______. A Civilização do Renascimento. Tradução Manuel Ruas. Lisboa: Editorial Estampa,
1994. v. 2.
______. O que sobrou do paraíso. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 2006.
DREYFUS, Michel et al. Le siècle des communismes. Paris: Les Éditions de l‘Atelier, 2000.
DUPUY, Maurice. A Filosofia Alemã. Tradução Rosa Carreira. Lisboa: Edições 70, 1987.
ECO, Umberto (Org.). Idade Média: catedrais, cavaleiros e cidades. Tradução Isabel Branco,
Carlos Aboim de Brito e Carlos Manuel Oliveira. Lisboa: Dom Quixote, 2013. v. 2.
ELIAS, Norbert. Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução dos hábitos nos séculos XIX e
XX. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. E-book.
292
ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. Tradução Daisi Malhadas e Maria Helena de Moura
Neves. Araraquara: UNESP / ILCSE, 1977.
FARRINGTON, Benjamin. Francis Bacon, filósofo de la revolución industrial. Tradução
Rafael Ruiz de la Cuesta. Madrid: Editorial Ayoso, [s.d.].
FOURIER, Charles. The theory of the four moviments. Tradução Ian Patterson. New York:
Cambridge University Press, 1996.
______. A infância emancipada. Tradução Luis Leitão. Lisboa: Antígona, 2007.
FROMM, Erich. Conceito Marxista do Homem. Tradução Octavio Alves Velho. 8. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1983.
______. Rever Freud: por uma outra abordagem em Psicanálise. Tradução Lara Christina de
Malimpensa. São Paulo: Loyola, 2013.
GALLARDO, Luis Fernández. A civilização do renascimento. Tradução Manuel Ruas.
Lisboa: Editorial Estampa, 1994. v. 2.
______. El humanismo renascentista: de Petrarca a Erasmo. Madri: Arco; Libros, 2000.
GAUKROGER, Stephen. Descartes: uma biografia intelectual. Tradução Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2002.
GAY, Peter. The Enlightenment an Interpretarion: the science of freedom. New York: Norton
& Company, 1977.
GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
______. A filosofia na Idade Média. 2. ed. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
293
GOETHE, Johann Wolfgang von. LesAffinitésÉlectives: Romans. Tradução Pierre du
Colombier. Paris: Gallimard, 1984.
______. Fausto. 3. ed. Tradução Jenny Klabin Segal. São Paulo: Editora 34, 2011. v. 2.
______. ______. 5. ed. Tradução Jenny Klabin Segal. São Paulo: Editora 34, 2013, v. 1.
______. Prométhée. Tradução Jacques Portchat. Paris: Éditions Bibliothéque Digitale, 2012b.
E-book.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Les Souffrances du Jeune Werther:Romans. Tradução
Bernard Groethuysen, Pierre du Colombier e Blaise Briod. Paris: Gallimard, 1984.
______. Wilhelm Meister: Romans. Tradução Blaise Briod. Paris: Gallimard, 1984.
GOFF, Jacques le. História e Memória. 7. ed. Tradução Bernardo Leitão, Irene Ferreira e
Suzana Ferreira Borges. Campinas, SP: Unicamp, 2013.
______. Para um novo Conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente.
Tradução Maria Helena da Costa Dias. Lisboa: Estampa, 1993.
GORZ, André. Adieuauproletariat? Au-delà du socialismo. Paris: Galilée, 1980.
GREGOR-DELLIN, Martin. Richard Wagner: su vida, su alma, su siglo. Madrid: Alianza
Editorial, 2001.
GRIMM, Irmãos. Os mais belos contos de fadas de Grimm. Tradução Maria Lucia Pessoa de
Barros. Rio de Janeiro: Casa Editora Vecchi, 1968.
GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Contos de Grimm. Tradução Marina Appenzeller e
Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GURVITCH, Georges. Proudhon. Tradução Lourdes Jacob e Jorge Ramalho. São Paulo:
Martins Fontes, 1983.
HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa. Tradução Manuel Jimenez Redondo.
Madri: Taurus, 1987a. v. 1-2
294
______. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução Carlos Nelson Coutinho.
2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. V. 1-2.
HAMSUN, Knut. Hambre. Tradução Kirsti Baggethun e Asunción Lorenzo. Madri: Editions
de la Torre, 1997.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 7. ed. Tradução Berilo Vargas. Rio de Janeiro:
Record, 2005.
______. Multidão: guerra e democracia na era do império.2. ed. Tradução Clóvis Marques.
Rio de Janeiro: Record, 2012.
HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Phénoménologie de l’esprit. Tradução Gwendoline
Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière. Paris: Gallimard, 1993. v. 1-2.
______. La philosophie de l’histoire. Tradução Myriam Bienenstock et al. Paris: Librairie
Générale Française, 2009.
______. Principes de la philosophie du droit. Tradução André Kaan. Paris: Gallimard, 1995.
HELLER, Agnes. A filosofia radical. Tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
HENRY, Michel. Marx: une Philosophie de l‘Economie. Paris: Gallimard, 1976a. v. 2.
______. Marx: une Philosophie de la Realité. Paris: Gallimard, 1976b. v. 1.
HESÍODO. O trabalho e os dias. Tradução Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo:
Iluminuras, 2006.
HESÍODO et al. Prometeu Antigo. Porto: Rés-Editora, [s/d].
HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 6. ed. Tradução Maria
Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
295
HOMERO. Ilíada. Tradução Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002. v. 1.
______. ______. 4. ed. Tradução Haroldo de Campos. São Paulo, Arx, 2003a. v. 2.
HUIZINGA, Johan. Outono da Idade Média: estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Tradução Francis Petra Janssen. São
Paulo: Cosac Naify, 2010.
IONESCU, Ghita. El pensamiento político de Saint-Simon. 2. ed. Tradução Carlos Melchor e
Leopoldo Rodríguez Regueira. México: Fondo de Cultura Económica, 2005.
ISRAEL, Jonathan I. Iluminismo radical: a filosofia e a construção da modernidade 1650-
1750. Tradução Cláudio Blanc. São Paulo: Madras, 2009.
JAEGER, Werner Wilhelm. Aristóteles: bases para la historia de su desarrollo intelectual.
Tradução José Gaos. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
______. Paidéia: a formação do homem grego. 4. ed. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
JAFFÉ, Aniela. C. G. Jung: memórias, sonhos, reflexões. Tradução Dora Ferreira da Silva. 9.
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
JANICAUD, Dominique. Hegel et le destin de la Grèce. Paris: Librairie Philosophique J.
Vrin, 1975.
KAIN, Philip J. Marx’s method, epistemology, and humanism: a study in the development of
his thought. Dordrecht, Holanda: D. Reidel Publishing, 1986. (Sovietica, 48).
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução Valério Rohden. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
______. The critique of pure reason. Tradução J. M. D. Meiklojohn. Pennsylvania: State
University, 2010. E-book.
______. The metaphysical elements of ethics. Tradução Thomas Kingsmill Abbott.
Pennsylvania: State University, 2005.E-book.
296
KIERKEGAARD, Soren. Two discourses of god and man. Tradução David F. Dwensomn.
Vancouver: Simon Yee, 2012. E-book.
KITCHING, Gavin. Karl Marx and the Philosophy of Praxis. Nova York: Routledge, 1986.E-
book.
KOFLER, Leo. História e dialética: estudos sobre a metodologia da dialética marxista.
Tradução José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.
KOLAKOWSKI, Leszek. L’espirit révolutionnaire: suive de marxisme utopie et anti-utopie.
Tradução Jacques Dewitte. Bruxelas: Editions Complexe, 1978.
KONSTANTINOV, F. V. Fundamentos de la Filosofia Marxista. 2. ed. Tradução Adolfo
Sanchez Vasque e Wenceslao Roces. México: Editorial Grijalbo, 1965.
KORSCH, Karl. Marxismo y Filosofía. Tradução Elizabeth Beniers. 2. ed. México: Era, 1977.
KORSTVEDT, Benjamin M. Listen for Utopia in Ernst Bloch’s Musical Philosophy. Nova
York: Cambridge University Press, 2010.
LACOSTE, Jean. Goethe, (Johann Wolfgang). In: DICTIONNAIRE du Monde Germanique.
Paris: Boyard, 2007b.
LAQUAN, Mai (Org.). Philosophie Allemande et Philosophie Antique. Paris: Librairie
Philosophique J. Vrin, 2007.
LAURSEN, John Christian; POPKIN, Richard H. Millenarianism and messianism in early
modern european culture: continental millenarians – protestants, catholics, heretics.
Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 2001, v. 4.
LEBOWITZ, Michael A. Marx: method, critique and crises. Chicago: Haymarket Books,
2006.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm Freiherr von. Discourse on Metaphysics end Monadology.
Tradução George Montgomery. In: The Racionalists. Nova York: Anchor Books, [s.d.]. E-
book.
297
______. Les Âgês du Monde. Tradução Pascal David. Paris: Presses Universitaires de France,
1992.
______. Theodicy: essays of the goodnesse of God, the freedom of man and the origin of
devil. Tradução E. M. Hugnard. 5. ed. Londres: Routledg & Kegan, 1996. E-book.
______. 8 ouvres de Leibniz. Tradução Louis-Alexandre Foucher de Careil. Praga: E-artnow,
2013.
______. Ensaios de Teodiceia: sobre a bondade de Deis, a liberdade do homem e a origem do
mal. Tradução William de Siqueira Piauí e Juliana Cecci Silva. São Paulo: Estação Liberdade,
2013.
LEICK, Gwendolyn. The Babylonians: an introduction. Londres: Routledge, 2003.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. Obras escogidas. Moscou: Editorial Progresso, 1970. v. 1-3.
______. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. In: OBRAS completas de
V. L. Lênin. Transcrito por Fred Leite Siqueira Campos para The Marxists Internet Archive.
5. ed. em russo. [S.l.:s.n], 1913. t. 23, p. 40-48.
LEROUX, Pierre. A la source perdue du socialisme français. Paris: Desclée de Brouwer,
1997.
LÉVY, Edmond. Sparte: histoire politique et sociale jusqu‘a la conquête romaine. Paris:
Seuil, 1995.
LEVY, Nelson. Uma Reinvenção da Ética Socialista. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
LIENHARD, Marc. Martin Lutero: tempo, vida e mensagem. Tradução Walter Altman. São
Leopoldo, RS: Sinodal, 1998.
LOSURDO, Domenico. Liberalismo: entre civilização e barbárie. Tradução Bernardo Joffily
e Soraya Barbosa da Silva. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006.
LOSURDO, Domenico. Nietzsche: o rebelde aristocrata. Tradução Jaime A. Clasen. Rio de
Janeiro: Revan, 2009.
298
LÖWY, Michael. (Org.). A teoria da revolução no jovem Marx. Tradução Anderson
Gonçalves. São Paulo: Boitempo, 2012.
LUKÁCS, György. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Tradução Carlos Nelson
Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
______. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica.
2. ed. Tradução José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora 34, 2009a.
______. Prolégomènes à l’ontologie de l’être social. Tradução Aymeric Monville. Paris:
Éditions Delta, 2009b.
______. O romance histórico. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011.
LUXEMBURGO, Rosa; LOUREIRO, Isabel (Orgs.). Textos escolhidos. Tradução Stefan
Fornos Klein. São Paulo: UNESP, 2011. v. 1.
______. Textos escolhidos. Tradução Isabel Loureiro. São Paulo: UNESP, 2011. v. 2.
MABILLE, Bernard (Org.). Le principe. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2006.
MACHEREY, Pierre. Marx 1845: Les ―thèses‖ sur Feuerbach. Paris: Éditions Amsterdam,
2008.
MALTHUS, Robert Thomas. Princípios de Economia Política e Ensaios Sobre a População.
Tradução Regis de Castro, Dinah de Abreu Azevedo e Antonio Alves Cury. São Paulo: Nova
Cultural, 1966. (Os Pensadores).
MANN, Thomas. O escritor e sua missão: Goethe, Dostoiévski, Ibsen e outros. Tradução
Kristina Michahelles. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
MANNHEIM, Karl. Ideologie et utopie. Tradução Jean-Luc Evard. Paris: Maison des
Sciences de l‘Homme, 2006.
MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial: o homem unidimensional.
Tradução Giasone Rebuá. 4 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
299
______. Cultura e sociedade. 2. ed Tradução Wolfgang Leo Maar, Isabel Maria Loureiro e
Robespierre de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1997. v. 1.
MARTINEAU, Alain. Herbert Marcuse’s utopia. Tradução Jane Brierley. Montreal: Herverst
House, 1986.
MARX, Karl. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Tradução
Edson Bini e Armandina Venâncio. São Paulo: Global [s.d.].
______. Oeuvres: Economie. Tradução Jean Malaquais et al. Paris: Gallimard, 1968. v. 2.
______. Miséria da filosofia. 2. ed. Tradução J. Silva Dias e Maria Carvalho Torres. Porto:
Escorpião, 1976.
______. Contribuição à crítica da economia política. 3. ed. Tradução Maria Helena Barreiro
Alves. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução Rubens Enderle e Leonardo de
Deus. São Paulo: Boitempo, 2005.
______. La conception materialiste de l’histoire. Tradução Arrigo Cervetto. Paris: Éditions
Science Marxiste, 2008.
______. O Capital: crítica da economia política. 25. ed. Tradução Reginaldo Sant‘Anna. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. v. 1.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifeste du parti communiste. Tradução Émile Bottigeli. Paris:
Flammarion, 1998b.
______. Las revoluciones de 1848. Tradução Wenceslao Roces. México: Fondo de Cultura
Económica, 2006.
______. Inventer l’ inconnu: textes et correspondance autour de la Commune. Paris: Fabrique,
2008.
MAZZARI, Marcus Vinicius. Romance de Formação em Perspectiva Histórica: O tambor de
lata de Günter Grass. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
300
MCLELLAN, David. Karl Marx. Londres: Palgrave, 2006.
______. Marx: um século de pensamento político, 1883-1983. Tradução Waltensir Dutra. Rio
de Janeiro: Zahar, 1983.
______. Marxism after Marx. 4.ed. Londres: Palgrave, 2007.
MILLS, C. Wright. Os marxistas. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
MONDOLFO, Rodolfo. O homem na cultura antiga. Tradução Luiz Aparecido Caruso. São
Paulo: Mestre Jou, 1968.
______. El pensamiento antiguo. Buenos Aires: Losada, 1942.
______. O infinito no pensamento da antiguidade clássica. Tradução Luiz Darós. São Paulo:
Mestre Jou, 1968.
MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. 2. ed. Tradução Maria Stela Gonçalves et al. São
Paulo: Loyola, 2000-2005. 4 v.
MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. Tradução Maria Stela Gonçalves et al. 2. ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2000. t. 1.
______. Dicionário de filosofia. Tradução Maria Stela Gonçalves et al. 2. ed. São Paulo:
Edições Loyola, 2001. t. 2-3.
______. Dicionário de filosofia. Tradução Maria Stela Gonçalves et al. 2. ed. São Paulo:
Edições Loyola, 2004. t. 4.
MORE, Thomas et al. Utopias del renacimiento. Tradução Agustín Millares Carlo e Agustín
Mateos. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2005.
MORRETTI, Franco (Org.). A cultura do romance. Tradução Denise Bottmann. São Paulo:
Cosac Naify, 2009.
MOTTA PESSANHA, José Américo. As delícias do jardim. In: Ética. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.
301
MUCHMBLED, Robert. Uma história do diabo: séculos XII-XX. Tradução Maria Helena
Kühner. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001.
NETO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular,
2011.
NEWMAN, Fred; HOLZMAN, Lois. Lev Vygotsky: cientista revolucionário. Tradução
Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich W. Aurora. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo,
Nova Cultural, 1974.
______. La naissance de la tragédie ou hellénisme et pessimisme. Tradução Jean Marnold e
Jacques Marland. In: OEUVRES philosophiques complètes. Paris: Gallimard, 1993a. v. 1.
______. Le gai savoir. Tradução Henri Akbert. In: OEUVRES philosophiques complètes.
Paris: Gallimard, 1993b. v. 5. p. 49-120.
______. Ecce homo: como alguém se torna o que e . Tradução Paulo Ce sar de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
NIETZSCHE, Friedrich W. A Gaia Ciencia . Tradução Paulo César de Souza . São Paulo :
Companhia das Letras, 2001.
______. Humano Demasiado Humano. Tradução Paulo César de Souza . São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
ONFREY, Michel. Le crépuscule d’une idole. Paris: Bernard Grasset, 2010.
OWEN, Robert. Selected works of Robert Owen. Londres: William Pickering, 1993a. v. 1-4.
______. The life of Roberto Owen. Selected Works. Londres: William Pickering, 1993d.
PALMIER, Jean-Michel.Weimar in exile: the antifascist emigration in Europe and America.
Tradução David Fernbach. London: Verso, 2006.
302
PARAIN, Brice (Org.). Histoire de la philosophie I: Orient – Antiquité. Paris: Gallimard,
1969a. v. 1.
______. Histoire de la philosophie I: Antiquité – Moyen Âge. Paris: Gallimard, 1969b. v. 2.
PASSMORE, John. A Perfectibilidade do Homem. Tradução Jesualdo Correia. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2005.
PECORARO, Rossano. Niilismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. E-book.
PEIXOTO, Nelson Brisac. A sedução da barbárie: o marxismo na modernidade. São Paulo:
Brasiliense, 1982.
PELLEGRIN, Pierre. Dictionnaire Aristote. Paris: Ellipses, 2007.
PERINE, Marcelo. Platão não estava doente. São Paulo: Loyola, 2014.
PIETTRE, André. Marx et marxisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1957.
POLYBE. Histoire. Tradução Denis Roussel. Paris: Gallimard, 2005.
QUINCEY, Thomas de. Lesderniersjoursd’Emmanuel Kant. [S.l.]: Biberbook, 2013.
E-book.
RAULET, Gérard. La filosofia Alemana despues de 1945. Tradução Júlia Climent. Valencia,
Espanha: Universidad de Valencia, 2009.
REY, Alain. Révolution: histoire d‘unmot. Paris: Gallimard, 1989.
RICOEUR, Paul. L’ideologie et l’utopie. Tradução Myriam Revault D‘Allonnes e Joël
Roman. Paris: Seuil, 1997.
RIDER, Jacques Le; POUDERON, Bernard. Faust, Homme Renaissance. Paris: Beauchesne
Éditeur, 2010.
303
RIHS, Charles. Les philosophes utopistes: le mythe de la cité communautaire em France au
XVIII siècle. Paris: Éditions Marcel Rivière, 1970.
RIOT-SARCEY, Michèle. Le réel de l’utopie: essai sur le politique au XIX siècle. Paris:
Albin Michel, 1998.
ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Tradução César
Benjamin. Rio de Janeiro: EDUERJ; Contraponto, 2001.
ROSEMBERG, Arthur. Democracia e socialismo. Tradução Margaret Presser e Antonio
Roberto Bertelli. São Paulo: Global, 1986.
______. História do Bolchevismo. Tradução Antonio Roberto Bertelli. Belo Horizonte:
Oficina de Livros, 1989.
ROSENZWEIG, Franz. Hegel e o Estado. Tradução Ricardo Timm de Souza. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
ROUDINESCO, Elisabeth. La partobscure de nous-mêmes: une histoire des pervers. Paris:
Éditions Albin Michel, 2007.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre
os homens. 2. ed. Tradução Lurdes Santos Machado. São Paulo: Abril, 1978.
______. O Contrato social: princípios do direito político. Tradução Antonio de Pádua Danesi.
4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SAINT-SIMON, Claude-Henri de Rouvroy. El nuevo cristianismo. Tradução Pedro Bravo.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1981.
______. Oeuvres. Paris: Anthropos, 1966.
SCHNEIDER, Otto. História da Revolução Russa. Tradução Rio de Janeiro: Panamericana,
1944.
SCHNEIDER, Otto. História do bolchevismo. Tradução Antonio Roberto Bertelli. Belo
Horizonte: Oficina de Livros, 1969.
304
SIMON, Gérard. Sciences et histoire. Paris: Gallimard, 2008.
SOLER, Colette. O inconsciente: que é isso? Tradução Cícero Alberto de Andrade Oliveira.
São Paulo: Annablume, 2012.
SPENGLER, Oswald. Le déclin de l’Occident: esquisse d‘une morphologie de l‘histoire
universelle. Paris: Gallimard, 2007. v. 1-2.
TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo:
Loyola, 2005.
______. Hegel: sistema, método e estrutura. Tradução Nélio Schneider. São Paulo:
Realizações, 2014.
THERBORN, Göran. From Marxism to post-marxism? Londres: Verso, 2010.
THOMPSON, Peter. The privatization of hope: Ernst Bloch and the future of utopia. Carolina
do Norte: Duke University Press, 2012. E-book.
THUCYDIDE. Histoire de la guerre du Péloponnèse. Tradução Jean Voilquin. Paris:
Flammarion, 1986. v. 1-2.
TOLSTÓI, Liev. Guerra e Paz. Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
v.1-2.
VADÉE, Michel (Org.). Science et dialectique chez Hegel et Marx. Paris: Editions du Centre
National de la Recherche Scientifique, 1980.
VENTURINI, Franco. Utopia e reforma no Iluminismo. Tradução Modesto Florenzano.
Bauru, SP: Universidade do Sagrado Coração, 1971.
VIDAL-NAQUET, Pierre. Atlântida: pequena história de um mito platônico. Tradução Lygia
Araújo Watanabe. São Paulo: UNESP, 2008.
VIRGÍLIO. Eneida. Tradução Odorico Mendes. Cotia: Ateliê Editorial, 2005.
VIEIRA, Leonardo Alves. Schelling. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
305
VIEIRA, Leonardo Alves et al. Interpretações da Fenomenologia do Espírito de Hegel. São
Paulo: Loyola, 2014.
WALKER, David M. Marx, methodology and science: Marx‘s science of politics. Burlington,
USA: Ashgate Publishing, 2001.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. Tradução José Marcos
Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WHEEN, Francis. Karl Marx. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2001.
WILLIAMS, Raymond. Modern Tragedy. Londres: Random House, 1974. E-book.
WILSON, Edmund. Rumo à estação Finlândia. Tradução Paulo Henrique Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
WOODCOCK, George. História das Ideias e Movimentos Anarquistas. Tradução Alice K.
Miyashiro, Heitor Ferreira da Costa et al. Porto Alegre: L&PM, 2008,v. 2.
ARTIGOS
ANAIS do II Congresso Internacional de Estudos Utópicos da Revista Morus: O que é a
Utopia? Gênero e modo de representação. MORUS - Utopia e Renascimento, Campinas, SP,
n. 6, 2009. Disponível em: <https://www.academia.edu/5289671/Revista_MORUS>. Acesso
em: 16 maio 15.
GERALD, Berthoud. Avec Marx, maigré tout: Les intérês de classe et les forces Morales.
Revue du MAUSS, Paris: Découverte, n. 34, p. 197-210, 2009.
L‘APOCALIPSE: selon les romanciers et les philosophes. Le Magazine Littéraire, Paris, n.
557-8, p. 66-96, jul.-ago. 2015. (Dossier).
LE ROMAN Gotique: Frankenstein & Cia. Le Magazine Littéraire, n. 552, p. 66-96, fev.
2015. (Dossier).
LE SIÈCLE des Lumières: un art de vivre et de penser. Le Magazine Littéraire, Paris, n. 450,
fev. 2006, p. 28-26. (Dossier).
306
SCHELLING, F. W. J. Le temps du sistèma, une systéme du temps. Revie
Germaniqueinternacionale. Paris: CNRS Editions, n. 18. Out. 2013.
SITES
www.sri.pt/fluc.
CHARRUAUD, Benoît. Louis Blanc: Madrid, 29 octobre 1811 cannes (Alpes-Maritimes), 6
décembre 1882. Archives de France, Celebrations Nationales, Paris, 2011. Disponível em:
<http://www.archivesdefrance.culture.gouv.fr/action-culturelle/celebrations-
nationales/recueil-2011/institutions-et-vie-politique/louis-blanc/>. Acesso em: 22 jun. 2015.
DVDs
FAUSTO. Direção: Friedrich Wilhelm Murnau. Brasil: Continental Home Vídeo, 1926.
(Expressionismo alemão, 5).
______. Direção: Alexander Sokurov. Brasil: Imovision, 2011. (139 min.). Baseado na obra
homônima de Goethe.
NOTÍCIAS da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital. Direção: Alexander
Kluge. Produção: Versátil, Instituto de Tecnologia Social e Goethe Instituto São Paulo e
SESC. 3 DVDs (8 horas). 2008. Documentário. Traz encarte de 64 páginas e mais de 1:30
min de extras, incluindo entrevista com Jean-Luc Godard.
THE METROPOLITAN Opera Orchestra and Chorus. Der Ring Des Nibelungen. Maestro:
James Levine. Hamburgo, Alemanha: Deutsche Gramophon, 1991/2002. 7 DVDs.
UTOPIA e barbárie: história de nossas vidas ou ter 18 anos em 68. Direção: Silvio Tendler.
Brasil: Produção: Caliban Produções Cinematográficas, 2010.
Top Related