PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ricardo Barbosa Morais
O poder ecológico: uma introdução à história da cocaína na cidade de
Benjamin Constant
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
São Paulo
2014
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUS - SP
Ricardo Barbosa Morais
O poder ecológico: uma introdução à história da cocaína na cidade de
Benjamin Constant
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência para
obtenção do título de Doutor em
Ciências Sociais sob a orientação da
Profa. Doutora Carla Cristina Garcia
São Paulo
2014
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BANCA EXAMINADORA:
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AGREDECIMENTOS
Quero agradecer à minha família: Diamantina, Karen, Henrique e Vitória e à
minha irmã Rússia. À minha orientadora Carla Cristina Garcia, aos coordenadores,
Edson Nunes, Silva Borelle e ao prof. Edson Passetti; aos meus amigos: Henrique,
Gilvânia, Osiney, Dona Branca e todos os meus amigos de Manaus, Tefé e Benjamin
Constant. Agradeço à Universidade Federal do Amazonas, à Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e a Fundação de Apoio á Pesquisa do Estado do Amazonas.
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RESUMO
Ricardo Barbosa morais
Título: O poder ecológico: uma introdução à história da cocaína na cidade de Benjamin
Constant.
A presente tese trata da manifestação do poder na história da cocaína na
cidade de Benjamin Constant, marca pela manifestação do poder ecológico relacionado
à política da matéria-prima da cocaína, em conjunto com a política da disciplina e da
biopolítica. Os três tipos de poder estão correlacionados em torno de uma política
planetária dos recursos da Amazônia, chamada de governamentalidade da natureza, que
representa um novo sujeito histórico na forma de um poder global, com predominância
para a política planetária com pretensões de controlar e regular a humanidade através da
racionalidade ecológica, constituída no processo de expansão e ocupação da economia
da borracha, da madeira e da cocaína, correlacionada com as formas do global e com as
formas do local, formatou-se em uma política ambiental mundial, através da presença
do que podemos chamar de brasileiros, colombianos e peruanos entre outros, com
incidência para a realidade da cidade de Benjamim Constant e com os fluxos com
Letícia e Tabatinga. A institucionalização dessas cidades pelo dispositivo do Estado é
correlata à institucionalização do extrativismo de coca cujo tráfico faz o intercâmbio
entre a cocaína amazônica e o mercado internacional das drogas. O território Solimões-
Marañon, Içá-Putumaio e o Japurá-Caquetá, mais recente o Vale do Javari e o território
de Loreto a plantação da coca avança em direção da Amazônia brasileira,
transformando casas de farinha em laboratório de pasta de cocaína, em contra partida, o
índice do crime de tráfico de cocaína local está abaixo da violência contra a mulher,
abaixo da soma dos roubos e dos furtos e perdendo forças para o assalto à mão-armada,
tendência da criminalidade recente, pelo que tudo indica dos anos 80, período áureo, aos
anos 2009-2013 está havendo uma banalização da cocaína, que não responde pela
dependência química, outrora criada pelo poder das disciplinas e das biopolíticas. A
banalização da cocaína é um correlato do desencantamento do mundo do aparelho
policial-penal e da legislação dos tóxicos.
Palavras chaves: Poder, cocaína, Benjamim Constant.
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RESUMÉ
Ricardo Barbosa morais
Titre: Lo pouvoir écologique: une introdution l’ histoire de la cocaïne dans la ville de
Benjamin Constant.
La thèse parle de l’histoire de la cocaïne dans la ville de Benjamin Constant
(Brésil, État de l’Amazonas) ; il y est question de la manifestation du pouvoir écologique qui
est en rapport avec la politique de la cocaïne et aussi celles de la discipline et de la
biopolotique. Les trois modalités de pouvoir sont attachés les uns aux autres dans le quadre
d’une politique planetaire des ressources naturelles, appellée gouvernementalité de
l’Amazonie. Celle-ci représente un nouveau sujet historique sous la forme d’un pouvoir
global, agissant surtout dans la dimention planetaire de la politique avec la prétention de
controler et regulamenter l’humannité mediant la raison écologique. Cette raison, elle s’est été
constituée au cours des processus d’extension et d’occupation des économies du cautchouc,
du bois et de la cocaïne. Associées aux formes globale et locaux, ces régimes ont dessiné une
politique mondiale de l’environnement, conduite par des brésiliens, des colombiens et
péruviens, parmi d’autres, desquels les actes ont impact sur les villes de Benjamin Constant et
Tabatinga, au Brésil, et Leticia, en Colombie. Ces villes sont vues comme dispositifs de l’État
ayant pour fonction de donner à l’exploitation de la Coca un caractére institutionel. Avec le
trafique, on fait les exchanges de l’Amazonie au marché international de drogues. Sur les
territoires Solimoes-Maranon, Içá-Putumaio, Japura-Caqueta et, au plus recent, le Val du
Javari et le territoire de Loretto, les plantations de Coca avance vers l’Amazonie brésilienne.
À cause de cela, les huttes de farine du manioc se sont tournées en laboratoire de pate de
cocaïne. En contrepartie, les taux de criminalité associées au trafique sont plus baisses que
celles de la violence contre les femmes, dans la région, et aussi moindre que celles des
cambriolages et des vols et mêmes celles des attaques à main levée. À propos des tendances
de la criminalité, tout mène à croire que depuis des années 1980 – le plus marqué parmi des
périodes – aux années 2003-2013, il est en train d’avoir une espèce de banalisation de l’usage
de la cocaïne, ce que n’explique plus la dépendance chimique, crée, au passé, par le pouvoir
des disciplines et des biopolotiques. La banalisation de la cocaïne est corrélatif au
désenchantement du monde, de l’appareil policier-pénal et de la législation de la drogue.
Mot-clé: Pouvoir, cocaïne, Benjamin Constant.
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LISTA DE MAPAS
MAPA 1: Imagem digital da fronteira do Brasil, Peru e Colômbia.............81
MAPA 2: Circuito da droga na tríplice fronteira Brasil – Colômbia – Peru.
....................................................................................................................147
LISTAS DE FOTOS
FOTO 1: A chegada dos moradores dos Altos rios na cidade de Benjamin
Constant......................................................................................................136
FOTO 2: Imagem aérea de Benjamin Constant..........................................139
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1: Remessa de ocorrência de 2009...........................................116
GRÁFICO 2: Remessa de ocorrência de 2010...........................................117
GRÁFICO 3: Remessa de ocorrência de 2011...........................................118
GRÁFICO 4: Remessa de ocorrência de 2012...........................................119
GRÁFICO 5: Remessa de ocorrência de 2013...........................................120
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................09
GENEALOGIA, PODER E CRIME
1. A genealogia de Nietzsche.........................................................................................24
2. A expansão da genealogia do poder..........................................................................32
3. Foucault e a história da cocaína.................................................................................34
A GENEALOGIA DA COCAÍNA
1. A genealogia da razão punitiva..................................................................................46
2. A criminalização da cocaína .....................................................................................48
3. A racionalidade da cocaína.......................................................................................53
4. A delinquência da dependência química ..................................................................61
O PODER ECOLÓGICO
1. A economia da borracha..............................................................................................80
2. A economia da madeira...............................................................................................88
3. A economia da cocaína................................................................................................93
4. A criminalidade local.................................................................................................103
5. O governo da cocaína...............................................................................................121
A HISTÓRIA DE BENJAMINN CONSTANT
1. Benjamin Constant............................................................................................. ......133
2. Tabatinga...................................................................................................................141
3. Letícia........................................................................................................................147
4. Ticuna........................................................................................................................153
CONCLUSÃO...............................................................................................................159
REFERÊNCIA...............................................................................................................162
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INTRODUÇÃO
O presente texto trata da manifestação do poder ecológico na história da
cocaína na cidade de Benjamin Constant. A história da cocaína pode ser construída pela
manifestação de três tipos de poder: o poder ecológico relacionado ao controle político
da matéria-prima da cocaína; a biopolítica relacionada à política de racionalidade de
controle da população que vive da política da cocaína, e o poder disciplinar relacionado
à elaboração da delinquência e da dependência química da cocaína. Os três tipos de
poder estão correlacionados em torno de uma política de controle planetário dos
recursos sustentáveis da Amazônia. O momento do aparecimento do controle político da
matéria-prima da cocaína, o alcaloide de coca, parafraseando VEYNE (1982), é um
acontecimento que representa uma parte imersa do iceberg político do Ocidente que
podemos chamar de poder ecológico, noção expandida da genealogia do poder de
Michel Foucault. Daí a metáfora de que Foucault poderia ter escrito a história da
cocaína, levando em conta que suas análises dizem respeito à produção e à circulação de
poder-saber, à construção de tecnologias de governo e de conduta; essas análises
acopladas à instrumentalização das racionalidades ecológicas podem ser chamadas de
governamentalidade da natureza.
O poder ecológico e a história da cocaína podem ser desenvolvidos através
de quatro objetivos: a) construir o poder ecológico e a história da cocaína tomando
como referência teórica e metodológica a genealogia proposta no pensamento de
Nietzsche e Michel Foucault; b) situar a história da cocaína na racionalidade da
biopolítica e do poder disciplinar, na governamentalidade americana, no discurso da
história das drogas para definir o nascimento do discurso do estigma e do
proibicionismo, de modo a isentar a cocaína do discurso da dependência química e
recolocá-la nas relações efetivas e históricas dos jogos de poder, das formas de verdade,
dos modos de governo, dentro da realidade ocupacional, populacional e da
territorialidade continental da Amazônia; c) construir a ideia de poder ecológico,
fazendo o mapeamento histórico da epistemologia política da Amazônia para definir as
relações de poder da política de controle dos recursos sustentáveis do látex e do
alcaloide da coca, relacionado à governamentalidade na natureza (vamos presenciar um
novo sujeito histórico na forma de um poder global, com predominância na política
planetária com pretensões de controlar e regular a humanidade, dentre os quais, vai
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interferir diretamente no movimento do tráfico de cocaína na fronteira amazônica); e
por fim d) a problemática universal do crime e do castigo, com destaque para o crime de
tráfico de cocaína na cidade de Benjamin Constant. Aqui a pesquisa abre um diálogo
com as esferas do poder administrativo: prefeito, secretarias, Câmara dos Vereadores;
órgãos do governo federal, em especial a Polícia Federal do Estado do Amazonas e a
Polícia Militar e Civil do Estado do Amazonas.
O primeiro objetivo é contemplado com o primeiro capítulo intitulado:
“Genealogia, poder e crime”, que contém três itens: a genealogia de Nietzsche, a
expansão da genealogia do poder e Foucault e a história da cocaína.
O primeiro item é uma abordagem do poder na concepção de Nietzsche e
Foucault em oposição à concepção de Hobbes.
A história da cocaína pode ser pensada pela concepção trágica de Nietzsche,
tomada do pensamento de Heráclito e pela concepção do poder enquanto guerra. A
realidade da cocaína é um acontecimento que não aceita uma explicação definitiva e
única, devido ao movimento da inconsistência das coisas e das pessoas em oposição à
concepção moral, científica e criminal em que se acredita que as pessoas e a sociedade
podem ser alienadas pelas relações de dominação e por alguma substância tóxica ou
mágica, mas também pode estar em oposição ao pensamento dos filósofos juristas, em
particular ao de Hobbes, que sustenta o princípio da liberdade e da igualdade por meio
do contrato, do Estado e do poder soberano.
O diagnóstico moral da cocaína tem por referência uma concepção médica
em que a cocaína pode causar doença e curá-la seria necessário. Iguala-se a cura à paz,
mas de fato o que existe é estado de guerra. Foucault chama de hipótese de Nietzsche o
poder concebido como enfrentamento de forças em oposição à concepção do poder
soberano em Hobbes. A liberdade e a segurança são um atributo do poder soberano
surgido com a constituição do Estado que põe fim ao estado de guerra permanente para
garantir a defesa da sociedade. Para Foucault, o estado de guerra em Hobbes é uma
representação da não guerra, pois ele não teria captado a instância matéria da sujeição
humana.
O discurso da soberania de Hobbes tinha como propósito eliminar o
discurso do historicismo político que representava um programa de ação política. Este
não reconhece a soberania, o estado e política como um traço permanente da sociedade,
mas relações de poder indefinidas, espessas e múltiplas de dominação. As leis, a
soberania e o Estado são instrumento dos conquistadores, que pretendem supressão total
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da legalidade da sociedade por meio da ocupação, da pilhagem e do confisco. O poder
soberano na colonização da Amazônia não deixou de usar esse tipo na exploração e
utilização dos recursos naturais, veja-se o exemplo da busca pelo ouro, do extrativismo
do látex e da coca. O primeiro contato do europeu com o povo amazônico deu-se por
meio de uma guerra histórica, com a depredação do ambiente e da vida sempre
rememorada como uma guerra ontológica, gravada para sempre na história da
civilização ocidental.
O segundo item é intitulado a expansão da genealogia do poder. Essa
concepção de poder tem seu fundamento na expansão da biopolítica para a ecopolítica.
Nesse sentido, o poder ecológico pode ser compreendido pelo conceito de
governamentalidade, como um modo de regular e administrar a conduta e os recursos
naturais da Amazônia, cujo efeito pode ser chamado de conduta ecológica. O modo
como o comportamento humano ficou definido na história da Amazônia e na história da
cocaína.
O poder ecológico tem sua matriz no processo de colonização da Amazônia.
Ele funcionou na forma de uma racionalidade política de governo das monarquias
ocidentais através do domínio do povo peruano pela Corte Espanhola. A manifestação
do poder ecológico na história da cocaína recebe a forma de uma governamentalidade
da natureza, em que a política de governo agiu de modo a controlar e regular a
população e os recursos sustentáveis, dentre os quais se tem o látex e a coca.
A racionalidade do poder ecológico sobre os recursos sustentáveis e sobre a
regulação da população precisou produzir conhecimento e habilidade do ambiente e da
sociedade, dos quais emergiram múltiplas relações de poder-saber, que, por sua vez,
implantaram as incorporações e as inovações nas áreas da terra, da botânica, da
meteorologia, na produção de mapas e na estatística, relacionadas às atividades do
outro, ou seja, do não europeu, o povo amazônico. Essa produção e circulação de poder-
saber formatarão uma percepção global interconectada entre o natural e o intercultural.
Esse poder e saber ecológico colonizador no desenvolvimento da história da cocaína e
da história da Amazônia em um futuro próximo está sendo acoplado às novas relações
do poder ecológico em torno da problemática da biodiversidade, dos conflitos dos
recursos naturais, do equilíbrio ambiental e econômico e da sustentabilidade do planeta.
Tais relações de poder estão relacionadas às variáveis da vida, etnias, cultura, saúde,
educação.
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A colonização da Amazônia é o momento em que a coca sai do anonimato
dos povos andinos para entrar no mercado consumidor europeu, com a marca do valor
de uso e valor de troca. A coca enquanto mercadoria entra no discurso econômico das
relações do poder capitalistas das fábricas de refrigerantes, tônicos e vinhos. A indústria
farmacêutica alemã do século XIX representará o desenvolvimento da era moderna das
drogas, quando a coca recebe o selo de droga: a cocaína. Na história da cocaína, a
indústria química cruza a manifestação dos três poderes. O poder ecológico que tem o
governo da matéria-prima da coca que é exportado para a Europa e para os Estados
Unidos e outros países. No processo de fabricação e circulação do alcaloide, a cocaína
entra nas relações de produção, controle e vigilância dos corpos na forma de docilidade
e maximização da força e da conduta dos indivíduos, seja na indústria, na prisão, no
hospital, na escola e na higiene pública. A disseminação, a propagação e o efeito da
cocaína na sociedade são exercidos pela biopolítica, que controla e regula a população
por meio de instituições administrativas, médicas, jurídica, criminal e científica que tem
como emblema gerir a vida. Podemos chamar o cruzamento do exercício dos três
poderes na história da cocaína de governamentalidade moderna, que pode representar
uma nova maneira de pensar o poder ocidental, tomando como referência três elementos
constitutivos: a vida, o ambiente e o governo.
A racionalidade ecológica de governo das soberanias ocidentais agiu
diretamente na vida da população amazônica, imputando novas relações de poder que
interferirão definitivamente no modo de vida da civilização ocidental. A introdução do
recurso natural da coca vai causar um deslocamento na percepção do poder e do
conhecimento na Europa e nos Estados Unidos. A cocaína torna-se um modo novo de
pensar as relações humanas e as relações políticas. A entrada do poder ecológico da
coca no espaço médico e científico causou uma explosão discursiva, tal como aconteceu
com a história da sexualidade, da loucura e da prisão. Continua ainda nos nossos dias a
deslocar e a desdobrar a conduta humana e a conduta política para aquilo que podemos
chamar de grande política ou política planetária, perceptível no consumo de massa da
cocaína no mundo ocidental, passando por Freud até o terrorismo dos narcotraficantes
colombianos e sua expansão e consolidação na Amazônia brasileira.
Desde o século XVII a cocaína não parou mais de entrar na ordem
discursiva, mas é do século XIX ao século XX que se consolidará um discurso moral,
médico, científico e penal. Freud tornou-se um dos maiores entusiastas e divulgadores
da cocaína no mundo no espaço médico e científico. Ele foi o primeiro a escrever a
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história da cocaína. Relata várias pesquisas e experiências da sua utilização pelo povo
peruano, inclusive chamando-o de planta milagrosa. Antes da proibição moral e
criminal do governo americano, que tomou a cocaína como droga de abuso, ela é
considerada para Freud um estimulante do sistema nervoso central que torna a pessoa
insensível à fadiga, à fome e à dor. Para ele, a cocaína possuía propriedade terapêutica.
Utilizava-a como remédio para as perturbações digestivas, hipocondria, asma, histeria e
outras doenças; além do mais, exalta o seu poder afrodisíaco e afirma que ela por si
própria não provoca habituação, a toxicomania é uma predisposição efetiva e psíquica
da pessoa. Karl Koller utiliza a cocaína como anestésico local do olho, mas também a
utilizou como droga recreativa.
A propagação do discurso médico e científico e posteriormente o discurso
proibicionista e criminal vão gerar uma demanda do consumo recreativa da cocaína que
por sua vez vai movimentar uma economia lucrativa com a exportação ilegal nos países
da América Latina, tomando como referência o extrativismo colombiano. A
consolidação da política econômica da cocaína colombiana no campo do poder
ocidental deslocará a concepção do crime e castigo. Segundo Foucault, o tráfico de
cocaína é um fenômeno de mercado, o traficante é um personagem econômico que
procura as melhores oportunidades de negócio, disposto a fazer frente à política
criminal do Estado. O crime de tráfico de cocaína no século XX suplantou o perfil
moral, antropológico e psicológico do crime do século XIX. Dois personagens literários
podem representar a mudança na concepção na ordem do crime e do castigo no
Ocidente. A figura do homicida de Raskólnikof do romance Crime e Castigo de
Dostoievski e a figura do traficante de Pablo Escobar do romance Notícias de Sequestro
de Gabriel Garcia Marquez. Raskólnikof vive um drama individual e de consciência,
enquanto Escobar é apresentado como um drama coletivo, sem consciência psicológica
e antropológica, um personagem do mundo do crime sui generis do século XX.
O segundo capítulo, “A genealogia da cocaína”, é dividido em quatros itens.
O primeiro fala sobre razão punitiva; o segundo diz respeito à criminalização da
cocaína; o terceiro corresponde à racionalidade da cocaína e o quarto é a construção da
delinquência da dependência química.
O primeiro item diz respeito ao aparecimento da razão na história do
pensamento moderno. Ao relacioná-la com a história da cocaína e em relação ao crime e
ao castigo, transmuta-se na forma de uma razão punitiva. A ascensão da razão moderna
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é ao mesmo tempo uma epistemologia do conhecimento e uma antropologia do outro,
ou seja, o limite entre a conduta racional e a conduta patológica.
A racionalidade do poder ecológico que está se constituindo na Amazônia é
contemporânea da razão punitiva, que do mesmo modo está se constituindo pela
epistemologia de Descartes. A racionalidade do pensamento verdadeiro por meio da
ordem e da medida é ainda estranha ao pensamento amazônico e à história da cocaína
do século XVII. A razão punitiva é a soberania do sujeito pensante e a capacidade de
rejeitar e desqualificar toda experiência que não toma como referência a ordem
matemática do mundo. Doravante, a razão punitiva constituirá um valor epistêmico do
exercício do poder disciplinar e da biopolítica quando as instituições médicas,
hospitalares, pedagógicas e criminais precisarem justificar e elaborar a conduta
patológica. A conexão entre a conduta patológica e a conduta ecológica constituída com
a experiência da cocaína se configurará em um novo limite da experiência humana: a
delinquência da dependência química. A conduta de delinquência química é um efeito e
uma peça do poder ecológico e da razão punitiva. Dois tipos de poder importante na
formação da criminalidade e da racionalidade da cocaína.
O segundo item diz respeito à criminalização da cocaína relacionada à
política americana de proibição de drogas. A política americana em relação à história da
cocaína é um controle político da matéria-prima da coca, em especial da produção da
cocaína na Amazônia colombiana, que podemos chamar de poder ecológico, porque liga
o exercício de poder dos recursos sustentáveis ao controle político da população em
geral, tanto da população amazônica e quanto da população europeia, americana e
brasileira. A cocaína enquanto objeto do poder ecológico ao fazer parte do consumo de
massa ocidental é capturada pela política de controle da vida, que segundo Focault é
chamada de biopolítica. O comportamento populacional relacionado à cocaína, que
podemos chamar de conduta ecológica, tanto do traficante quanto dependente químico,
é um efeito do poder da conexão das relações que se constituíram com a racionalidade
ecológica do extrativismo da coca com a racionalidade médica, farmacêutica, produtiva,
administrativa, terapêutica e criminal.
A proibição americana da cocaína, o proibicionismo, impulsionado pela
ética puritana, que conduz a ideia de doença ao hábito da cocaína, vai ganhar força com
as legislações dos tóxicos responsáveis pela criminalização da mesma. A Lei Seca
americana é quem organiza o mercado do crime das bebidas alcoólicas, transformando
agentes federais em delinquentes que lotam as cadeias públicas. Doravante, com a
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edição da Lei Harrison, as convenções de Haya e de Genebra, que consideram a cocaína
uma substância proibida, o tráfico de bebidas é substituído pelo tráfico internacional de
cocaína, criando a figura do traficante e dependente químico. A política americana que
se constitui na forma de uma biopolítica e de uma racionalidade ecológica em torno da
matéria-prima da cocaína tomou a forma de uma governamentalidade planetária que
relacionou a vida, o ambiente e a população na forma de um poder global.
O terceiro item diz respeito à racionalidade da cocaína, processo inscrito nas
relações de poder da governamentalidade americana. A emergência da cocaína está
envolvida em uma tecnologia da vida que enquadra a conduta química em
procedimentos de adestramento, de intensificação e de ajustamento em processos
químicos e biológicos integrados a aparelhos administrativos e médicos, com funções
disciplinares de vigilância, de medida, de controle, reforçado pelos exames médicos e
psicológicos. Essa aparelhagem pretende um estado de equilíbrio e regularidade geral,
na forma de um governo total que tem por emblema a defesa da sociedade. Para reforçar
a defesa da sociedade, o governo insere o racismo no interior do Estado, que encerra a
cocaína como uma substância capaz de comprometer a humanidade, por isso, a conduta
química é uma parcela da população isolada no interior da sociedade, chamada de
toxicomania, considerada como conduta perigosa e inferior que ser eliminada, daí a
banalização da morte, que é a aceitabilidade de tirar a vida em nome da intervenção do
crime.
O caráter patológico da cocaína perde seu valor quando ela se torna um
fenômeno de mercado. A demanda da cocaína é uma intervenção do Estado que define a
oferta do crime, uma ilegalidade tolerada, uma parcela consumidora, uma rentabilidade
esperada e um comportamento padronizado. A conduta patológica da dependência
química não respinga no comerciante de cocaína. O traficante é um homem econômico,
um homem do mercado, uma máquina de fazer renda e o um empresário de si; um
investidor que aceita ser punido pela lei. O que está em jogo não é a sua personalidade,
o jogo é o risco do confronto com o Estado. Veja a análise do tráfico de cocaína nos
anos 70. O Estado tinha como objetivo reduzir a oferta da cocaína para reduzir a
ilegalidade; para tanto, foi preciso desmantelar as redes de tráfico de cocaína,
ocasionando o aumento do preço unitário, beneficiando outros traficantes, fortalecendo
outras organizações criminosas e, de forma circular, viu-se o aumento da criminalidade
e o fortalecimento da máquina do Estado. A política de controle da cocaína nos 70 e 60
revelou-se um fracasso sensacional na perspectiva de Foucault. Segundo ele, deve-se
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fazer com que a cocaína seja mais acessível e mais barata para reduzir o número da
criminalidade. Isso é verdade, acontece nas cidades onde a cocaína é mais barata e mais
acessível. Isso nos revela que a cocaína cindiu o mundo crime. A vontade da eliminação
total do crime foi substituída no século XX pela tolerância universal mais também um
reconhecimento de pensamento de Voltaire que chamou a atenção do mundo para
intolerância religiosa.
O quarto item trata da delinquência da dependência química, desconhecida
no Brasil até o século XX, embora desde o século XIX, a penalidade brasileira vem
adotando o método da requalificação e do tratamento do criminoso que vai enquadrar a
dependência química da cocaína. A dependência química da Legislação dos Tóxicos de
1938 não tem como causa ontológica o alcaloide da coca, mas uma repetição da
requalificação do comportamento humano da penalidade de detenção. Tanto é que na
fronteira amazônica não há registro da dependência da cocaína, embora a imprensa
paulista chame a atenção da sociedade para a tolerância do consumo da cocaína. A
dependência da cocaína não é um fato em si, mas um efeito da normalização do
comportamento humano que funciona como modo de governo dos homens, articulado
na política dos contratualistas em definir a penalidade em conformidade com a conduta
humana, na ética protestante do mundo trabalho, no exercício do poder disciplinar e do
biopoder, como forma de governo dos corpos, das populações e da vida como tal, nas
convenções internacionais que definem a cocaína como droga proibida, nas legislações
nacionais e internacionais que tornam a cocaína objeto exclusivo da política criminal,
pelo conhecimento científico e médico que veem a cocaína pelo emblema da doença.
Essas articulações transformaram a produção, o comércio e o consumo da cocaína em
uma mercadoria proibida e a causa do aumento da criminalidade.
A dependência química da cocaína é um efeito de poder da normalização do
comportamento humano quando se estabeleceu um regime de verdade da conduta
normal e da conduta patológica na ordem do crime e do castigo. O comportamento
humano tornou-se um imperativo para a justiça criminal quando os juízes começaram a
definir o crime e a punição pela motivação humana, ou melhor, pela vontade do réu que
passa a ser filtrada como uma conduta irregular. Nesse sentido a delinquência é
concebida como um epistêmico psicológico-ético dentro do limite do normal e do
patológico mediados pela relação das paixões, dos desejos, dos instintos, dos impulsos,
das agressividades, das perversões, das anomalias, dos pervertidos, dos monstros, do
meio ambiente. Essas noções antropológicas veiculadas pela medicina e pela
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jurisprudência funcionam como conceitos compreensivos do ato criminoso e da
aplicação da penalidade. Dentro desse complexo antropológico e científico, o poder de
julgar para além do fato criminoso se justifica como uma requalificação do
comportamento do humano. O crime sai de cena para dar lugar à norma como um modo
de correção humana.
A Legislação Brasileira dos Tóxicos definiu como norma o fato da
toxicomania, como um fato anormal, que serve de referência para a manifestação da
prática normativa. A norma não é um elemento natural, ela tem o papel de exigência e
coerção, capaz de normalizar qualquer domínio a que se aplique, impõe uma exigência
uma existência hostil, qualifica como torto tudo aquilo que resiste à regra de retificar e
endireitar e deprecia todo comportamento que é o oposto do preferível como sendo
repelido e detestável. Podemos dizer que a legislação dos tóxicos toma como referência
o anormal como medida da norma, já que o homem normal não existe, sem que seja
concebido pela ausência da doença. A norma funciona como meio de qualificação, de
correção, de intervenção, que faz com que o comportamento dos tóxicos pareça como
perigoso, curável e adaptável. A primeira legislação dos tóxicos é um interdito da
cocaína e um enforço de lei, controlado pelo aparelho policial, sanitário e médico. O
comércio ilegal ocorrerá no uso médico sem licença das autoridades sanitárias, cuja
demanda negativa está relacionada aos profissionais da área médica e farmacêutica. A
segundo legislação é uma interdição de maior alcance e aponta para um mercado ilegal
com a presença do traficante e do dependente químico, com uma abrangência maior no
território nacional. As duas legislações vão consolidar duas peças do dispositivo de
segurança em torno da cocaína. A conduta patológica da delinquência: doente e
perigosa. Para a doença o hospital psiquiátrico, para o perigo a prisão. Esse dispositivo
funciona na forma de uma terapêutica que se sustenta e se justifica na ideia de que a
cocaína representa um fator de vulnerabilidade que pode causar risco e dano à saúde da
população. Concluindo, a lei dos tóxicos que profetiza proteger as pessoas vulneráveis à
cocaína, no fundo, é a causa da maior parte da criminalidade, da ilegalidade e dos
detentos nas prisões brasileiras.
O terceiro capítulo trata do “poder ecológico” na Amazônia, divido em
cinco itens. O primeiro trata da economia da borracha, o segundo da economia da
madeira, o terceiro da economia da cocaína, o quarto, da criminalidade local e o quinto
da forma do governo.
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O primeiro item trata da manifestação do poder ecológico na expansão e
ocupação do território pelo extrativismo da borracha enquanto fenômeno emergente e
de interlocução mundial, imprimindo uma configuração distintiva na formação
econômica da Amazônia situada no mercantilismo, no absolutismo e no colonialismo do
Antigo Regime e na transição para capitalismo, a racionalidade da matéria-prima,
primeiro do ouro, depois do látex, vai ser a primeira fórmula e a primeira marca do
poder da ecologia, marcando a modernidade da Amazônia com movimentos amplos na
realidade mundial, deslocando homem amazônico do local ao global para os fenômenos
mundiais de mercado, dentro das malhas da governamentalidade da natureza, na sua
forma espanhola e portuguesa vai alterar a realidade da população indígena com a
intervenção da violência física, da escravização, das punições, dos conflitos, do tráfico
de gente, do comércio ilegal e das doenças, a ponto de causar a extinção de tribos
indígenas, em seguida a formação do povoado ticuna na vila do Javari, posteriormente
no auge da borracha, a formação do povoado de Remates de Males e de Esperança. A
conjunção dessa população no século XX constitui a formação da cidade de Benjamim
Constant, como uma nascente da arquitetura do poder ecológico, dessa vez associado à
indústria automobilística, vai editar novas formas de desigualdade e diferenças
estruturais na forma da acumulação do capital, no processo de urbanização e na
exploração do trabalho indígena e nordestino, na expansão do território com os
mecanismos de intervenção que criando raiz, ultrapassa as fronteiras amazônicas,
entrando nas tensões mundiais, cresce e morre, embora tenha gerado uma elite frágil
segundo Márcio Souza e subserviente que seria pasto fácil para as novas opções
econômicas que estavam por vir, diga-se a globalização do comércio da madeira e da
cocaína.
O segundo item trata da economia da madeira dentro da fórmula do poder
ecológico no processo de internacionalização e globalização da economia de Benjamin
Constant no desenvolvimento do sistema capitalista de produção. A madeira é segunda
gênese da racionalidade ecológica em conjunto com a indústria de ponta, agroindústria,
extrativismo mineral, meios de comunicação e transportes, embora, constituam
processos contraditórios do ponto de vista da delimitação das terras indígenas. A
problemática indígena transcende em direção das forças transnacionais, canalizadas pelo
poder ecológico constituem formas econômicas globais, formatando com as economias
da madeira e da cocaína uma nova territorialidade e a reaberturas de novas tensões de
forças entre o se poderia ser chamado de avanço do capitalismo tanto pela via legal
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quanto pela via ilegal sobre a população indígena (muitas vezes vencidas) embora
recentemente com a globalização das questões étnicas, relacionadas ao genocídio de
populações inteiras; ambientais, relacionadas a depredação do meio ambiente e da
proteção do ecossistema, relacionada a sobrevivência e o equilíbrio do planeta
(remodelação do poder ecológico) tenha ganhado adeptos que afirmam o direito de
autodeterminação e de recuperação do território; nessa sequência, as relações ecológicas
transpõem a esfera da cidade para compor um processo civilizatório pautado em uma
política ambiental correta em termos da teoria da sustentabilidade.
No âmbito local, a estagnação da economia da madeira, atrelada à formação
do aparato do Estado pelo Ibama, Funai e Policia Federal vão causar um deslocamento
populacional da região do Vale do Javari para a cidade de Benjamin Constant, agora a
população é composta de ticuna, nordestino, população do Altos Rios e seguida a
população da seita dos israelitas. A ilegalidade da madeira beneficiou acima de tudo a
cidade de Islândia no Peru que receptava o contrabando da madeira do Vale do Javari.
O terceiro item trata da economia da cocaína na dinâmica das relações
mundiais do poder ecológico. A cocaína amazônica é um ponto estratégico do mercado
mundial da economia, mais também é um espaço geopolítico inserido na estrutura
política, econômica e ambiental da realidade mundial das relações de poder, dado que o
mercado econômico da cocaína não para de se estender do Ocidente ao Oriente, a
princípio alimentando a máquina farmacêutica, doravante, a máquina do crime
organizado e a demanda recreativa de massa. O extrativismo da coca responde a
princípio pela atividade de subsistência, o pó da folha é utilizado várias vezes por dia
por causa do seu valor nutritivo, energético e afrodisíaco. A exclusividade tradicional da
folha da coca é suplantada pela cultura de massa, que faz uma dialética da economia
local com a economia global nos anos 70 e 80, em conjunto com a concepção de que a
cocaína representa uma enfermidade social e um mal-estar da humanidade. Por isso, é
instalado um cinturão de segurança que lotam a cadeias públicas e aumentam o nível da
criminalidade, colocando em dúvida o equilíbrio e a integridade da sociedade, tema
contemporâneo e recorrente ao desenvolvimento da teoria do ecossistema por onde
começou-se a pensar a realidade da cocaína como parte de um sistema vivo, perigoso,
químico, biológico e sustentável; ambientalizada em um tipo de poder que pretende ter a
forma de governo dos vivos e dos não-vivos, envolvido em uma rede planetária de
múltiplas relações de forças que pretende eternizar o domínio dos recursos naturais e
humanos através da racionalidade ecológica de governo com a implantação dos projetos
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de segurança da fronteira, em resposta, a cocaína colombiana que se propaga no
território amazônico brasileiro; são balsas com toneladas de cocaína atravessando a
fronteira; momento áureo da cocaína, todos participam dos ganhos generalizados, mais
uma vez podemos presenciar o aumento da população em correspondência o aumento
da riqueza. A criminalidade é uma exclusividade dos cartéis e dos traficantes, a cidade
de Benjamin Constant torna-se uma metrópole para o tráfico de cocaína, para além do
extrativismo de epadu, está acontecendo um movimento de especialização do plantio da
coca e do refino da pasta no interior da cidade de Benjamin Constant.
O quarto item trata da criminalidade local, do movimento de implantação ao
movimento da banalização da cocaína, nesse movimento o poder ecológico está
disseminado na experiência da cocaína na perspectiva de uma economia política do
crime pela manifestação da empresa, do transporte e do comércio da cocaína, dos
frequetadores, dos locais de venda, nos anos 80, sendo o tráfico o carro chefe da
criminalidade e a resposta da repressão policial ao complexo, completo e generalizado
ciclo local da cocaína.
Com o consumo de massa da cidade e o relativo índice do crime de tráfico
de cocaína no contexto da criminalidade presenciamos uma banalização da cocaína e
com ela o desencantamento das forças policiais e das legislações dos tóxicos com a
lotação das delegacias.
A construção da experiência da cocaína é perpassa pela norma á infração. A
conduta de quem vende e de quem consume cocaína tornaram-se uma conduta de
correção fazendo-se de regra aos futuros candidatos ao crime. A contenção normativa
da legislação antidroga canaliza para a cocaína parte das contendas, beligerâncias e
infrações da cidade que ao submeter á prova a elite da cocaína, regularizou o mercado
interno da cocaína e com ela a plantação, a produção e a comercialização que
corresponde com a fala do Delegado da Polícia Federal do Amazonas que testemunha o
aumento da plantação de coca no território de Loreto, invadindo a faixa de fronteira.
A propagação da cocaína não é devido ao valor ontológico de constituir um
comportamento patológico e uma conduta criminosa que alguns especialistas insistem
em imputar ao uso da cocaína a causa do aumento da criminalidade e da dependência
química. A cocaína não é a causa do crime. A causa da criminalidade está na condução
da política criminal das drogas que concebeu a cocaína como um entorpecente proibido,
medida responsável estabelecimento da ilegalidade, fazendo com que as cidades de
fronteira participassem do mercado internacional da cocaína. Desde a primeira
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proibição da cocaína em 1938 até a última legislação de 2006, o mercado da cocaína
tendeu a aumentar e cada vez mais faz frente à política criminal do governo federal, dos
estados e dos municípios. A cocaína deixa de ser um problema de saúde pública e de
segurança nacional, com restrições de governos nacionais, tal como previsto pela
legislação antidrogas, e entra em um regime internacional planetário de segurança de
população.
O quinto item trata do governo da cocaína na forma de uma descrição dos
elementos que constituem o dispositivo de segurança em torno da cocaína amazônica.
Dentro da forma geral do poder ecológico, a segurança da Amazônia é uma peça imersa
do iceberg político Ocidental, constituído em meados do século XIX, a forma de uma
política da abertura da Amazônia para a expansão e exploração dos recursos naturais em
conjunto com o governo militar e civil. Em 1966 é lançado um projeto intitulado
Operação Amazônia que teve objetivo de atrair recursos por meios de mecanismos
ecológicos de governo como o Banco da Amazônia, Sudam e Zona França, Na década
de 60-70 novas racionalidades ecológicas vão se fazer presente, primeiro pelo
aparecimento da agropecuária, a criação de gados, mineração, metalúrgica, siderurgia
responsáveis pela visibilidade do desmatamento e da poluição que chama a atenção do
mundo para a problemática do meio ambiente e da problemática da sustentabilidade.
Correlata aos constantes conflitos do movimento do tráfico de cocaína e das
políticas de segurança de fronteira, através desses projetos, o poder ecológico cada vez
mais absorve a máquina do estado; primeiro, o estabelecimento da fronteira brasileira
através dos conflitos entre os peruanos e colombianos e os correspondentes acordos
internacionais para definir a nacionalidade de Letícia e a linha de limite do Brasil, Peru
e Colômbia. A criação da Faixa de Fronteira como área de segurança nacional que
representa maior visibilidade da cidade de Benjamin Constant e Tabatinga-Letíca. As
legislações dos tóxicos em considerar a cocaína uma substância proibida e a
Constituição de 1988 em definir o tráfico de cocaína em um crime hediondo abriu
procedência para a criminalização e para a banalização da cocaína.
Com o reforço da Constituição, o poder ecológico penetra no interior da
fronteira amazônica com a política de segurança que transforma, transmuta, transpõe ou
desdobra a cultura de subsistência da cocaína em substância proibida, ilegal (com
inserção da teoria do normal e do patológico), perigosa e que pode causar doença e pode
também degenerar a população amazônica como poderia ter feito na Europa e na
América do Norte e quantos convenções internacionais para provar o perigo da cocaína
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para a saúde e o bem-estar da humanidade. O Estado encerra a representação tradicional
da cocaína, primeiro tornando uma droga ilegal, depois transformando em crime
hediondo, enquanto isso, a polícia federal na forma der sobre poder invade os roçados e
os quintais dos moradores do interior queimando e destruindo todas as plantações de
coca, causando o desencanto da cocaína. O Estado ao proibir o uso da cocaína transpôs
a cultura tradicional para a cultura de massa da cidade, causa a banalização da cocaína
na dialética do policial e do consumo recreativo se desdobra na causa do
desencantamento do aparelho policial e penal. A banalização da cocaína amazônica é
um ajustamento da forma de governo ao governo dos homens que representa uma
regulação da população e o controle e a posse da riqueza desta mesma população. A
cocaína deixa de fazer parte de uma experiência antropológica para ser o objeto de uma
política econômica do crime.
O quarto capítulo é intitulado “A história de Benjamin Constant”,
distribuído em quatro itens. O primeiro trata da história de Benjamin Constant; o
segundo e o terceiro tratam de alguns aspectos históricos da urbanização e
criminalização de Tabatinga e Letícia, o quarto pensa alguns elementos da sociedade
Ticuna.
O primeiro item trata da manifestação do poder ecológico na cidade de
Benjamin Constant. A racionalidade ecológica da coca da Amazônia peruana é correlata
à racionalidade da fundação da Vila do Javari, de Remates de Mares, de Esperança, e
agora da atual Benjamim Constant em que o conjunto do poder Ocidental na sua matriz
ecológica local se manifesta na sua totalidade: a esfera ecológica-disciplinar com a
produção da borracha, da madeira e da cocaína com a contenção do espaço , do tempo,
do trabalho e da vida do morador; a esfera ecológica da biopolítica responde pela
contenção dos aspecto populacionais indígena e nordestina pela delimitação das terras
indígenas na região do Vale do Javari que marcou a urbanização de Benjamin Constant
com imigração dos moradores do Altos Rios e recentemente, com expansão dos
israelitas da fronteira peruana à cidade de Benjamin Constant, contribuindo com o
aumento da produtividade dos produtos alimentícios; o segundo e o terceiro item segue
a mesma lógica do poder ecológico, em Tabatinga, destaque a instalação do aparelho do
Estado e em Letícia, destaque para criminalidade do tráfico de cocaína.
O quarto item trata da população Ticuna, palco da racionalidade ecológica
indígena na região do Alto Solimões que não para de dá soluções para os problemas da
sustentabilidade tanto do interesse local quanto do interesse global. Na cultura ticuna o
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trabalho humano é um de sustentabilidade em que há equilíbrio entre ação humana e
ação do meio ambiente é o caso da agricultura familiar, do extrativismo vegetal, da caça
e da pesca. Vivemos o momento da escolarização indígena e devemos estar atentos para
esses novos momentos.
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GENEALOGIA, PODER E CRIME
1. A genealogia de Nietzsche
A história da cocaína toma como referência a ideia de genealogia no
pensamento de Nietzsche, em que podemos encontrar o diagnóstico do poder ocidental,
ligado à ciência, à política, ao Estado e ao direito, tendo sua origem na forma da guerra
e da força. Segundo NIETZSCHE (1983), o pensamento deve estar atrelado àquilo que
se tem de mais sagrado, a nossa própria existência.
A realidade histórica da cocaína pode ser pensada pela concepção trágica do
pensamento de Nietzsche via Heráclito, que acredita que a realidade [cocaína]1 sustenta
a inteira inconsistência de acontecimentos em responder por uma explicação definitiva
da realidade, seja ela física, química, fisiológica, de entendimento, de trabalho, de
vivência, ou territorial e populacional em detrimento à concepção moral e científica de
que uma pessoa ou um grupo de indivíduos ou mesmo a sociedade, seja alienação por
conta de relações de poder de dominação física, jurídica e social, do mesmo modo,
alienada por substância tóxica.
É preciso pensar a cocaína pelo drama humano pela janela da estética da
sensibilidade em que homem e a natureza sejam uma unidade dos opostos. Tal
evidência pode ser constatada na natureza do crime e do castigo como uma concepção
estética do jogo da efetividade do mundo. Chamo a atenção para o deslocamento da
metafísica para procedências de uma política da natureza dos conflitos humanos.
O estético e o sensível têm uma existência entre o limite e o acontecimento
que faz pensar na temática da consolidação humana e da degeneração de tal perspectiva
pela crucial verdade das relações entre o crime e o castigo, cuja universalidade não pode
ser concebida por uma certeza infalível e uma verdade acabada, muito menos sustenta
uma natureza permanente, de onde se poderia deduzir o ser do crime e o ser do castigo,
e a íntima ontologia de um e do outro; se há uma unidade à qual pertencem é a do vir-a-
ser, do princípio dos contrários que dissolve a dualidade que se poderia pensar que há
entre o crime e o castigo.
1 O próprio autor.
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HERÁCLITO (1973) nega o ser enquanto verdade das coisas em geral e a
verdade recebe o estatuto da contingência do desabrochar do movimento que se impõe
em todas as nossas experiências e em toda experiência possível. A representação
intuitiva do fogo é a força do movimento das coisas em que, segundo Diógenes de
Laércio, “tudo se compõe a partir do fogo e nele se resolve; tudo se origina segundo o
destino e por direções contrárias se harmonizam os seres; tudo está cheio de almas e
demônios” (p. 109).
É preciso afirmar que o um é múltiplo e do mesmo modo que o mundo é o
jogo de Zeus, o fogo em si, em que o conflito do múltiplo é a própria luta entre a justiça
e a injustiça. O crime e o castigo são impulsos do mundo, e segundo Nietzsche o
provérbio grego expressa bem esta ideia que a saciedade gera o crime (a hýbris). A
punição da hýbris é o próprio núcleo das coisas, a proveniência da unidade, que se
desdobra em forças opostas, perpetuando o conflito humano, sem nenhum juízo moral,
como um jogo lúdico eterno de criança.
O solo que sustenta o pensamento de Nietzsche é sempre movediço, mesmo
que seja a natureza moral, o foco de sua atenção é sempre tomado como lugar de
ostentação de sua irreverência à filosofia moderna, em especial ao bloco do Iluminismo,
que sustenta o princípio da consciência de liberdade e igualdade do homem, que tenha
direitos naturais e condições iguais de trabalho, advindo de contratos formalizados em
associações políticas, chamadas de sociedade.
O diagnóstico genealógico da moral feito por Nietzsche constata que o
elemento germinador do discurso da modernidade toma por referência a ideia médica da
doença, que serve de inspiração daquilo que pode conhecer e daquilo que pode fazer.
Segundo NIETZSCHE (1983), os filósofos são os médicos de alma, cujo hábito em
comum é “persuadir os homens de que estariam passando muito mal e de que uma dura,
última, radical cura seria necessária” (p. 212-213). É por isso que o conhecimento
coloca a paz onde há a guerra, condicionando o raciocínio pela lógica do estado original
e terminal da espécie.
Com o tempo, um processo de empobrecimento do pensamento moderno foi
substituindo o instinto de luta, o pensamento livre pelo instinto de rebanho, dando vez a
ascensão da má consciência, herdeira do sentimento de escravo grego, do inalterável, do
permanecer igual a si mesmo.
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Essa satisfação de ser um instrumento de confiança, ou melhor, de ter uma
natureza instrumental; dessa imutabilidade de pontos de vista, permitiu a Nietzsche
denominar a filosofia moderna de moral escrava. A genealogia da moral fundamenta os
princípios do crime e do castigo. Em primeiro lugar, a condição do homem é sempre
trágica. Em segundo lugar, a guerra está na origem da constituição do Estado e do
direito. Em terceiro lugar, a justiça é o desenvolvimento do instinto de vingança pelo
castigo e recompensa. Muitos acreditam que o homem possui um valor maior sobre
outras espécies vivas e por meio do trabalho humano adquire dignidade.
O trabalho é sempre o estigma do escravo. Não se deve esquecer, que foi o
trabalho e a ambição financeira que mais degradou o cenário ecológico.
Todos se matam de trabalhar para perpetuar miseravelmente uma vida
miserável e são coagidos por essa necessidade terrífica de um trabalho
extenuante, que depois o homem, ou mais exatamente o intelecto humano,
enganado pela vontade, olha por um momento admirado como um objeto
digno de trabalho (NIETZSCHE, 2009, p. 53).
O Estado é o outro fantasma. Os filósofos modernos ocultaram sua origem
no contrato social entre homens livres e iguais, brilho mentiroso; mais do que servir de
instrumento ao trabalho escravo, tornou-o perpétuo e deu-lhe eternidade, com punho de
ferro pode dobrar o instinto de sociabilidade, fundindo as massas em um único corpo,
capaz de superar todo e qualquer interesse individual.
De uma só vez, tomou para si o grande medo do crime e do castigo;
domesticados, utilizou-os para manipular e controlar os seus inimigos, passando a usar a
política como guerra declarada. Não satisfeito com a morte do homem, agora planeja o
domínio de todas as espécies de viventes.
O Estado mantém-se no governo porque estabelece uma hierarquia de
governantes e governados, por meio do estabelecimento do direito, de um lado, a justiça
dos ricos, dominadores e senhores, e de outro a justiça dos pobres, dominados e
escravos.
A ideia de justiça surge com estes últimos, os sofredores, porque se sentem
humilhados e explorados, injusta esta condição com sua humanidade. Desse
ressentimento, nasceu o seu semelhante, a vingança, batizada com o nome de justiça.
Por isso, quando se impõe uma punição, ela não é mais do que uma retaliação ao
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inimigo, cuja atitude tem origem na relação entre credor e devedor, em calcular valor
sobre as coisas em preço.
Calcular o preço foi a primeira medida para estabelecer a norma para avaliar
pessoas, colocá-las frente a frente e dobrar a mais fraca, forçando-a ao compromisso
pessoal e ao reconhecimento do sentimento de culpa.
É preciso fazer um adendo: não se deve procurar a origem da justiça no
ressentimento. “O sentimento reativo é de fato o última conquista do espírito de
justiça!” (p. 116). O direito é um poder superior ao do sentimento reativo e onde ele se
exerça, utiliza suas forças para forçar a um acordo os influxos do ressentimento.
Com o estabelecimento da lei, qualquer infração ou ato arbitrário, coletivo
ou individual, é considerado um crime contra a lei pelo direito. Agora a justiça e a
injustiça só podem ser concebidas em relação à lei.
A infração, a violação, a exploração e a destruição, funções elementares da
vida, constituem em relação ao direito um estado de exceção, pois fazem parte da regra
geral, criar cada vez mais unidades de poder.
Tanto para Nietzsche quanto para Foucault, a lei, a justiça e o Estado são
resultados de estado de guerra e de força. O poder não existe enquanto representação. O
poder só existe em exercício e em ato. Foucault denomina de hipótese de Nietzsche o
poder concebido no enfretamento belicoso das forças, em contraposição à teoria de
poder na concepção do poder soberano em Hobbes.
Na introdução do Leviatã, Hobbes expõe o lugar do crime e do castigo no
sistema do poder soberano. A soberania é alma do Estado enquanto pessoa na figura de
um homem artificial, fruto do contrato entre o soberano e o súdito. O súdito transfere
seu direito e sua liberdade para o soberano garantir a segurança de todos e fazer
respeitar a lei e o pacto por temor à punição.
A formulação do princípio do direito penal moderno no pensamento de
Hobbes está na ideia de que o crime e a punição são um atributo do poder soberano que
surgem com a constituição do Estado, via contrato, que põe fim ao estado de guerra
permanente, como garantia da defesa da sociedade. Não havendo Estado, não pode
haver poder soberano, logo não há lei, pois não haveria sequer legislador nem poderia
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haver a força da milícia para fazer cumprir a lei. Não tendo lugar nem para crime nem
para castigo, cada um procuraria se proteger com o próprio poder. O direito de punir
pertence ao Estado, como atributo do poder soberano que delega à autoridade pública
impor uma pena a uma pessoa que fez ou omitiu um ato julgado transgressão da lei,
com a finalidade de inclinar a vontade dos homens à obediência. Os atos que não são
infligidos pela autoridade pública não constituem transgressão da lei.
O castigo é uma pena quando o ato praticado é julgado como transgressão
da lei. Antes da existência da lei não pode haver crime, mas somente ato de hostilidade,
vingança pessoal, injúria particular. Também não são penas os castigos provocados pela
autoridade pública sem condenação pública anterior ou castigos infligidos por juízes
não autorizados pelo soberano.
A penalidade tem a intenção de predispor o delinquente à obediência às leis.
No caso em que o castigo for menor que o benefício da satisfação do crime, a finalidade
da lei não é alcançada. Antes, produzirá um efeito contrário: a motivação da
transgressão da lei. Para evitar o benefício do crime a penalidade deve infundir o medo,
benefício que é tirado do terror de uma pena mais pesada.
Para o crime prescrito pela lei penal, depois cometido, a penalidade imposta
não pode ser mais severa do que previsto. O excedente é considerado um ato de
vingança. O inverso: quando alguém viola uma lei sem uma pena prevista se expõe a
uma penalidade arbitrária.
O pacto é o meio de abandonar a condição de guerra do estado primitivo,
onde todos têm direitos de usar a sua liberdade de acordo com seu julgamento e razão
de modo que possa conservar sua existência. A condição da natureza humana procura
manter a paz com a vantagem da guerra, para defender o interesse da sociedade do
perigo que pode apresentar o inimigo.
O direito natural é a liberdade de utilizar o poder para a autopreservação. A
manutenção da existência está no uso da força e da astúcia, para acumular o máximo de
poder de domínio sobre um número maior de indivíduos para subjugar qualquer ameaça
à existência. A condição da guerra é uma situação de desconfiança mútua, faz com que
haja uma antecipação da dominação por meio da força por tempo suficiente enquanto
houver ameaça à segurança.
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A dominação nem sempre é para conservar a existência, nem pela
necessidade de segurança, mas pelo gosto de contemplar o poder. Aqueles que se
mantêm em um limite modesto precisam aumentar seu poder por meio da invasão para
dar manutenção ao seu plano defensivo. Aumentar o domínio sobre seus semelhantes é
necessário para a sua sobrevivência, enquanto houver a condição de guerra permanente.
O medo da morte e a esperança de adquirir conforto vivendo do trabalho são
sentimentos possíveis em tempo de paz. Para estabelecer a paz é preciso anular o estado
de guerra, onde todos têm direitos sobre tudo e sobre todos e renunciar à liberdade em
favor da liberdade do soberano. A via da segurança e da paz é a constituição do Estado
na figura do poder soberano, que deve ser instituído através de uma assembleia como
uma vontade comum, na representação da pessoa do súdito, enquanto autor do contrato,
que cede o direito de governar a si mesmo ao governo soberano, constituindo uma
unidade real entre as partes, de modo que o soberano pode usar o poder e a força como
lhe convier para assegurar a paz e a segurança.
Segundo CASTRO (2009), o Leviatã é o texto de Hobbes do qual Foucault
mais se ocupa. Na obra Em Defesa da Sociedade (2005), Foucault pretende estabelecer
um confronto com o pensamento de Hobbes, usando a hipótese de que a política e o
Estado se fundam na guerra, enquanto para Hobbes na não guerra. “O que Foucault tem
em mente, como é óbvio, é a necessidade de reinterpretar a significação da obra de
Hobbes” (p. 209).
Hobbes não apreende a instância material da sujeição enquanto constituição
dos súditos, exatamente ao contrário do que ele faz. Quando se pretende analisar o
poder como guerra, no fim do século XVI e início do XVII, o primeiro nome que
aparece é o de Hobbes, que apresenta a mais geral de todas as guerras: em todo o
conjunto da sociedade a ameaça da guerra está presente. A guerra em Hobbes é de
igualdade, da diferença insuficiente. O estado de guerra permanente é uma condição da
indiferença e da igualdade de capacidade e desejo. Por isso, quando acontece de haver
interesse divergente entre duas pessoas, elas tornam-se logo inimigas, cada uma pensa
em eliminar e subjugar seu semelhante, tendo a certeza que a qualquer momento uma
pode ser subjugada pela outra. Aqui não estamos no campo de batalha real, mas no
espaço da incerteza e da desconfiança.
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Se houvesse diferença entre os homens não haveria guerra, as desigualdades
que se manifestassem irreversíveis brecariam imediatamente ou levariam à vitória do
mais forte sobre o mais fraco, uma vitória fixada por uma guerra logo de início fazendo
com que não continuasse; o mais fraco, constatando a própria natureza, renunciaria ao
enfrentamento, a sua timidez tornaria virtual a relação de força. O estado de natureza é
caracterizado pela anarquia das pequenas diferenças, das diferenças medíocres, de
enfrentamentos aleatórios que criam incerteza e, por conseguinte, criam a vontade de
guerrear enquanto um teatro das representações trocadas, das relações de medo
temporalmente indefinidas, uma espécie de diplomacia infinita de rivalidades
igualitárias. Hobbes não escreveu sobre um estado de guerra do ponto de vista histórico,
mas sobre uma postura de guerra, enquanto desconfiança generalizada, constituída por
um jogo com três tipos de representações.
Primeiro, das representações calculadas: eu me represento a força do outro,
represento-me que o outro se representa minha força, etc. Segundo, das
manifestações enfáticas e acentuadas de vontade: demonstra-se que se quer a
guerra, mostra-se que não se renuncia à guerra. Terceiro, enfim, utilizam-se
táticas de intimidação entrecruzadas: receio tanto fazer a guerra que só ficarei
tranquilo se você recear a guerra pelo menos tanto quanto eu – e mesmo, na
medida do possível, um pouco mais (FOUCAULT, 2005, p. 105).
O discurso filosófico-jurídico de Hobbes que fundamenta a soberania do Estado
quer eliminar o historicismo político, como fruto do discurso da conquista inglesa do
século XVII, que na época de Hobbes funcionava, ao mesmo tempo, como um modo
político-histórico e como um programa de ação política.
Na utilização política, nas lutas contemporâneas, de certo saber histórico
referente às guerras, às invasões, às pilhagens, às espoliações, aos confiscos,
às rapinas, às extorsões, e os efeitos de tudo isso, os efeitos de todos esses
comportamentos de guerra, de todos os efeitos de batalha e das lutas reais nas
leis e nas instituições que aparentemente regulamentam o poder
(FOUCAULT, 2005, p. 113).
O historicismo político não reconhece a guerra como traço permanente das
relações sociais do direito e da soberania, mas como relação historicamente indefinida,
espessa e múltipla de dominação. Esse discurso diz que as leis são armadilhas feitas
pelos conquistadores, como instrumentos do poder para realizar os interesses de
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supressão do aparelho legal inteiro; do mesmo modo, o sistema legal de propriedade é
um regime de ocupação, de confisco e de pilhagem.
Por meio das revoltas, o povo sempre compreendeu que o governo, as leis, o
estatuto da propriedade são a continuação da guerra, da invasão e da derrota, como
efeitos da conquista. A revolta nada mais é do que a outra face do sistema de dominação
permanente do governo, da lei e do poder que funciona como ruptura e como reverso da
guerra permanente do governo. “O governo é a guerra de uns contra os outros; a revolta
vai significar a guerra dos outros contra uns” (FOUCAULT, 2005, p. 129).
Segundo CASTRO (2009), na obra Em Defesa da sociedade, Foucault
propõe uma genealogia da formação da historiografia moderna, pautada no discurso
histórico da guerra de raças do H. de Boulainvilliers (p. 288), cujo pensamento cruzava
com o de Hobbes.
Esse discurso sofre durante a revolução um duplo processo: primeiro, é
instrumento das lutas políticas; segundo, essas lutas se desdobram em três direções:
centrada nas nacionalidades, como fenômeno da língua, centrada nas classes sociais,
como dominação econômica, centrada sobre raça, como seleção vital. O princípio desse
discurso é da inteligibilidade histórica, que repousa na busca do conflito inicial pela
genealogia das lutas e pelo exame da consciência da história.
A primeira consequência é a temática da constituição e da revolução.
Apresentam-se como uma história cíclica, cuja inteligibilidade é centrada na ideia de
uma relação de força boa e verdadeira, na boa constituição e no equilíbrio de forças. A
revolução seria uma primeira constituição como o retorno de uma relação originária de
forças. A segunda consequência é a temática do selvagem e o do bárbaro que
apresentam relação de forças verdadeira e justa que deve ser buscada na história, e não
na natureza.
Boulainvilliers quer conjurar o aspecto do homem natural daquele
constituído pelo homo oeconomicus, destinado ao mercado de troca. Homem ideal
inventado pelos economicistas e teóricos do direito penal.
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2. A expansão da genealogia do poder
A genealogia de Nietzsche e de Foucault aponta o momento do nascimento,
do exercício e da morte do poder. Embora não sendo uma entidade tempo-espacial, o
poder marca sua individualidade no cenário histórico ocidental. Em Vigiar e Punir
(2010) encontra-se o pátrio poder dos romanos, o poder soberano do Antigo Regime, a
microfísica do poder disciplinar; na História da Sexualidade (1988), o poder de vida e
de morte, o biopoder; no Nascimento da Biopolítica (2008), o poder do governo, ou
seja, o poder da governamentalidade americana. PASSETTI (2002) fala do poder da
ecopolítica, MALETTE (2011) fala de racionalidade ecológica.
Utilizo a ideia de MALETTE (2011), para pensar o poder ecológico a partir
do conceito de governamentalidade de Foucault, para refletir as maneiras de modelar,
administrar e regular a conduta da humana, conjugada com a problemática da
exploração da natureza tal como tem sido delineada na história da Amazônia durante os
três últimos séculos. Nessa linha, afirmo que a genealogia da cocaína aponta para o
poder ecológico da Amazônia.
O trabalho de Foucault sobre a governamentalidade – e mais particularmente
seu conceito de biopolítica – pode ser reconstruído como o estudo da
“ecopolítica” quando as condições sob as quais populações são administradas
estão subordinadas a tentativas mais amplas de administrar toda a Vida com o
desdobramento de racionalidades ecológicas de governo (p. 11-12).
A constatação do poder ecológico segundo Passetti e Malette pressupõe uma
mudança na análise da biopolítica para a ecopolítica que pode ser sustentada pela
expansão da genealogia do poder de Michel Foucault.
O conceito governamentalidade neoliberal pautada nos conceitos de
população, segurança e economia política do pensamento de Michel Foucault, com a
racionalidade ecológica, se expande para a regulação de tudo que é vivo. Nessa
perspectiva, as relações de poder postas na ecopolítica são um acontecimento planetário
da sociedade de controle.
Segundo PASSETTI (2002), a ecopolítica enfrenta os dilemas do tipo da
centralização do Estado, controle dos indivíduos, normalização da conduta humana,
investimentos na população pobre, etnias e culturas; utilização de pessoas, como as
crianças, os velhos, os doentes e homossexuais; os modos de investimentos e produção
do corpo, da biodiversidade e da qualidade e longevidade da vida. Esses são temas
complexos que exigem outra metodologia de conhecimento, por isso Foucault
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renunciava à abordagem de uma teoria do sujeito de conhecimento em que o sujeito da
observação tem um papel construtor da historicidade, capaz de pensar as condições
políticas e jurídicas em termos de progresso e de educação da humanidade. Para ele, o
paradigma do iluminismo, que serve de fundamento moral do direito penal moderno,
não é mais capaz de pensar as novas formas do crime e castigo, em especial o que tange
ao mercado da economia da cocaína.
O poder ecológico tem sua matriz no processo de colonização da Amazônia.
Ele introduz a natureza no centro da racionalidade política de governo como modo de
controlar e regular o ambiente, a população, a sustentabilidade, a saúde, a
biodiversidade e os recursos sustentáveis. Na tentativa de compreender o ambiente e a
sociedade para explorar os recursos sustentáveis foi preciso a produção de
conhecimento e a habilidade necessária das quais emergiram múltiplas relações de
poder-saber. As incorporações, as inovações, o contato do colonizador com o povo
amazônico estimularam e formataram uma percepção global da interconectividade do
natural e intercultural.
A expansão econômica da Amazônia se fez como uma preocupação
ambiental, fazendo a matéria-prima e a população participar de uma rede de global
poder, deixando incrustada na Amazônia, como marca de seu exercício, a conduta
ecológica, disciplinada e doméstica pelas diversas tecnologias de governo implantadas
desde o século XVI até o século 21. A conduta ecológica do alcaloide da coca e do
látex, como se desenvolveu na Amazônia, foi basicamente constituída pela
racionalidade de governo dos recursos sustentáveis, “cristalizando assim, uma relação
de poder/saber que reorganiza profundamente a maneira relacional os três movimentos
constitutivos da governamentalidade moderna” (MALETTE, 2011, p. 16), a vida, o
ambiente e o governo.
O poder ecológico subtrai o poder das disciplinas, as bipolíticas
ultrapassando o controle da população, da cidade e da esfera do Estado, e abriu novos
domínios para a intervenção política da ação humana no planeta que sustenta a hipótese
de que a vida natural ou do planeta tem regras que nenhum governo pode interferir.
Tomar o planeta como exercício de poder e saber foi possível criar esferas de
interferência para interconectar o humano e não humano, tipo de relação ausente no
pensamento moderno e presente no pensamento contemporâneo em torno das
problemáticas da biodiversidade, dos conflitos por recursos naturais, do equilíbrio
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ambiental e, econômico e mais importante a problemática da sustentabilidade do
planeta.
O poder ecológico colocou a Amazônia como parte da preservação do
planeta e a inseriu nas malhas da economia global. A aceleração do crescimento
populacional que deve ser gerida no ambiente capaz de prover as suas necessidades
torna cada vez mais o ambiente e os recursos sustentáveis instrumentos da racionalidade
de governo. A história da cocaína é parte da construção do poder ecológico desde a
apropriação colonial até a complexa máquina da economia ilegal e do consumo global.
A história da cocaína coloca novamente a problemática do poder ocidental: o interesse
de governar, controlar e regular o tecido de tudo que liga os vivos e os não vivos da
mesma maneira. Na Amazônia, o poder ecológico usou da natureza na sua forma mais
complexa, como um ambiente planetário onde o natural e humano são ao mesmo tempo
atores, sujeitos e objetos.
3. Foucault e a história da cocaína
Michel Foucault poderia ter escrito a história da cocaína, tal como ele fez
nas suas obras: História da Loucura, As Palavras e as Coisas, na história da prisão em
Vigiar e Punir, na História da Sexualidade e Em Defesa da Sociedade em que delimita
no século VXII o aparecimento de determinadas formas de relações de poder.
Na história da sexualidade, a propagação do discurso moral, médico, penal e
científico em torno da sexualidade, que do mesmo modo, na história da cocaína, está
presente nos mecanismos de poder moral, médico, penal, científico e filosófico, cuja
unificação do discurso tem referência nas relações de poder da biopolítica, tanto como
regime de verdade quanto forma de governo, presentes na elaboração do pensamento
penal moderno. É esse o quadro teórico da legislação brasileira antidroga, no sentido de
copiar dos objetivos da prisão: da recuperação e tratamento do criminoso.
A genealogia das relações de poder na história da sexualidade pode ser
aplicada na história da cocaína, deixando de pensar o momento de repressão pelo poder
soberano colonizador e pensar como FOUCAULT (1988), em “uma verdadeira
explosão discursiva” (p. 21). A colocação da cocaína em discurso implica “saber sob
que formas, através de que canais, fluindo através de que discursos o poder consegue
chegar às mais tênues e mais individuais das condutas” (p. 16). O século XVII é
marcado por uma vontade de saber e poder em torno da sexualidade; do mesmo modo, o
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saber e o poder agiram na história da cocaína como uma vontade de saber da mais fina
película da conduta humana em relação à cocaína.
Que caminhos lhe permitem atingir as formas raras ou quase perceptíveis do
desejo, de que maneira o poder penetra e controla o prazer cotidiano – tudo
isso com efeitos que podem ser de recusa, bloqueio mas, também, de
incitação, de intensificação, em suma, as técnicas polimorfas (p. 16-17).
A colocação da cocaína na produção discursiva e na produção de saber
seguiu o princípio da disseminação e da implantação. Segundo FOUCAULT (1988),
“uma fermentação discursiva que se acelerou a partir do século XVIII [...], uma
multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder” (p.
22), um processo semelhante se consolida como uma obstinação ao falar da cocaína. A
disseminação discursiva da cocaína faz parte da “grande sujeição: maneiras de torná-la
moralmente aceitável e tecnicamente útil” (p. 24). Podemos dizer que a cocaína foi
tomada em um sistema de utilidade para ser regulada em defesa do bem de todos através
de um padrão de conduta ótima, através do ethos moral e político, em especial do
americano, em torno das proibições das drogas. Processo que vai se consolidar com as
legislações antidrogas em todo o mundo, precedentes para o tráfico de cocaína e do
discurso da dependência química.
O pensamento de Freud colocou a cocaína na ordem do discurso científico e
acadêmico e na constatação da dependência química. Em Über Coca ele faz a história
da cocaína desde a sua origem, relatando experiências em animais e em pessoas e sua
utilização terapêutica. A coca é uma planta da América do Sul, cujas folhas servem de
estimulantes indispensáveis a cerca de dez milhões de pessoas. No Peru a planta da coca
está ligada aos costumes religiosos.
A lenda afirmava que Manco Capac, o divino filho do Sol, havia descido dos
penhascos do lago Titicaca em tempos primevos, trazendo a luz de seu pai
para os infelizes habitantes do país; que lhes trouxera o conhecimentos dos
deuses, lhes ensinara as artes úteis e lhes dera a folha da coca, essa planta
divina que sacia os famintos, dá força aos débeis, e faz com que esqueçam os
seus infortúnios. As folhas de coca eram oferecidas em sacrifícios aos deuses,
mascadas durante cerimônias religiosas e até mesmo colocadas na boca dos
mortos, a fim de lhes garantir uma recepção favorável do além (FREUD, p.
66).
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O consumo da coca vive um momento de democratização na colonização,
mas por pouco tempo, sendo logo proibida como uma prática idólatra pelos hispânicos.
Os espanhóis católicos não concordavam com o ato religioso. Em 1551, o Conselho
Eclesiástico de Lima proibiu a mastigação da coca, considerando um obstáculo à
propagação do cristianismo e da conversão dos índios, alegando ser obra do demônio,
por ser uma seita pagã e pecaminosa. Sem o uso da coca os índios não conseguiam
realizar os trabalhos pesados; a solução foi distribuir determinada quantia de folhas e
conceder períodos de intervalos para seu uso. A planta continua tendo lugar na cultura
dos nativos daquela região, eles a usam durante toda a vida, nas suas perambulações, em
uma viagem difícil, para possuir uma mulher, em atividade quando é preciso aumentar a
força. Os relatos não seguem a mesma direção. Há os que consideram uma fonte de
alimento e energia indispensáveis à vida dos nativos, enquanto outros a veem como uma
fonte de depravação moral.
Segundo FREUD (1989), a coca é fonte de comércio e de impostos, a
produção é de larga escala, chegado a 135 mil toneladas anuais. Segundo
ESCOHOTADO (2009), “só para a feira anual de Potosí – a maior do mundo em
volume de transações – se importavam 100.000 cestas de coca, que equivalem a 1.300
toneladas de folhas” (p. 71). A importância do comércio da folha não inibe a moralidade
naquele momento, que aceita a mastigação para as atividades relacionadas ao trabalho,
sendo legalizada: “em 1569, o Rei Felipe II da Espanha declarou o ato de mascar a coca
como um hábito essencial à saúde do índio” (FERREIRA & MARTINI, 2001, p. 97). A
coca foi introduzida na Espanha pelos conquistadores para fins medicinais e pelo seu
poder afrodisíaco.
ESCOHOTADO (2009), na Historia Elemental de las Drogas, também
situa o aparecimento da coca na cultura andina. “O arbusto da coca é originário dos
Andes, e desde o século III a. C. há esculturas de rostos com bochechas inchadas pela
mastigação de suas folhas” (p. 19). Segundo BAHLS e BAHLS (2002), a história da
coca remonta às origens dos índios peruanos andinos que tinham a coca como uma
planta sagrada.
[...] sítios arqueológicos no Peru encontram folhas de coca colocadas junto às
tumbas de sepulturas, testemunhando seu uso há mais 2.500 anos. Até hoje os
índios peruanos colocam as folhas junto com os mortos acreditando ser um
item necessário para o além vida (p. 175).
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Segundo FERREIRA & MARTINI (2001), o primeiro relato europeu da
coca é feito por Américo de Vespúcio em 1499 e publicado em 1507, que descreve o
consumo da folha da coca como sendo mastigada com cinzas. Até hoje é comum aos
índios peruanos e colombianos o uso da cinza ou do bicarbonato de sódio na mastigação
da folha da coca, que segundo os autores:
Deve-se ao fato de sua absorção pela mucosa da cavidade apenas se realizar
em pH alcalino. A sua ação farmacológica, quando mascada, é semelhante ao
estímulo provocado pela ingestão de doses elevadas de cafeína, não sendo, no
entanto, acompanhada de euforia (p. 97).
O controle político da coca já está presente na colonização da América. Em
1530, o governo da Corte cria a proibição do consumo do pão de coca através do
imposto da corveia.
O conhecimento da química dos princípios ativos das principais drogas com
valor comercial representa entrada de capital na economia do mercado das drogas
porque agora ela é comercializada em grande escala, com a companhia da propaganda
de remédio para os nervos e para as tristezas e com um elevado consumo de
refrigerantes feitos da folha da coca.
Segundo FREUD (1989), a coca entra no controle político do conhecimento
da química pelas pesquisas de Friedrich Gaedecke e Albert Niemann, que definiram a
estrutura vegetal da substância química da cocaína. O primeiro conseguiu o extrato da
folha da coca que denominou de erythroxylene. O segundo isola o alcaloide de várias
plantas psicoativas, dentre elas, o da cocaína, que representa 80% dos alcaloides da
nicotina, da cafeína e da morfina.
A cocaína de Niemann se cristaliza em grandes primas incolores do tipo
monoclínico, de quatro a seis lados. Tem um gosto um tanto amargo e produz
um efeito analgésico nas mucosas. Desmancha-se à temperatura de 98°C, é
difícil diluir na água, mas facilmente solúvel em álcool, éter e ácidos dilutos.
Combina-se com cloreto de platina e cloreto de ouro para formar sais duplos.
Ao ser aquecida com ácido clorídrico, decompõe-se em ácido benzoico,
álcool metílico e uma base pouco estudada chamada ecgonina (p. 69).
Segundo ESCOHOTADO (2009), a cocaína participa do nascimento da
psicanálise de Freud, que “empreende uma investigação global com o fármaco, que
inclui autoensaio, revisão de toda a literatura existente e proposta de uso” (p. 93):
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Tenho realizado experiências e estudado, em mim mesmo e em outras
pessoas, o efeito da coca sobre o corpo humano saudável. Minhas conclusões
estão fundamentalmente de acordo com a descrição, feita por Montegazza, do
efeito das folhas de coca (FREUD, 2012, p. 73).
Paolo Mantegazza viveu por muito tempo nas regiões de plantação de coca,
publicou suas pesquisas sobre os efeitos fisiológicos e terapêuticos. Defensor da coca,
relatou várias histórias de casos do seu uso.
Freud utilizava cocaína em doses de 200 mg por dia. Ao ingerir a cocaína
ele sentia uma súbita exaltação e uma sensação de leveza. A respiração ficava mais
lenta e profunda, sentia-se cansado e sonolento. “Após alguns minutos, começou a
euforia real da cocaína, iniciada por repetida eructação refrescante. Imediatamente após
tomar cocaína, notei um leve retardamento do pulso e, mais tarde, um aumento
moderado” (FREUD, 1989, p. 74).
Os sintomas tóxicos são de curta duração, e com o repetido uso se torna
cada vez mais fraco o efeito. Pode-se também observar o aumento da quantidade de
urina, ressecamento da mucosa nasal e da garganta, intensificação no ritmo do pulso. É
preciso observar que há pessoas que não toleram o uso da cocaína, embora, no geral,
não há pessoas insensíveis a certas quantidades da substância. O efeito psíquico consiste
em exaltação e euforia, a necessidade de autocontrole e maior vigor para o trabalho.
Aqueles de longa duração podem ser realizados sem fadiga; enquanto perdurar o efeito,
a pessoa pode se alimentar sem rejeição, mas com a sensação de ser supérflua a
refeição, do mesmo modo pode acontecer com o sono, pode-se dormir e rejeitá-lo sem
prejuízo psíquico.
O efeito de doses moderadas desaparece tão gradualmente que, em
circunstâncias normais, é difícil definir a duração. Se a pessoa trabalha
intensamente enquanto está sob o efeito da coca, um declínio da sensação de
bem-estar ocorre após três a cinco horas, sendo necessária nova dose para
afastar a fadiga. O efeito da coca parece durar mais quando não se faz um
trabalho muscular pesado. É unânime a opinião de que a euforia induzida
pela coca não é acompanhada de qualquer sensação de lassidão ou outro
estado de depressão [...]. No meu caso, tenho notado que, mesmo no dia
seguinte ao da ingestão da coca, meu estado se compara favoravelmente ao
normal (FREUD, 1989, p. 77).
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A principal utilização da cocaína é de ser estimulante, como tinha sido
usada pelos índios, em circunstâncias em que é preciso aumentar a força física do corpo
por determinado período de tempo e conservar a energia para fazer face às novas
demandas, tendo em vista a impossibilidade de descanso e alimentação. A cocaína
também tem sido prescrita para debilidades mentais, como no caso da histeria,
hipocondria, inibição melancólica e estupor, e também em casos de distúrbios
digestivos. Ela elimina indisposições dispépticas e as debilidades relacionadas a elas, a
pressão no estômago, mal-estar e a falta de disposição para o trabalho.
Repetidas vezes proporcionei esse alívio aos meus colegas e, por duas
ocasiões, observei como a náusea resultante dos excessos gastronômicos
cedeu em pouco tempo aos efeitos da cocaína e foi substituída por desejo
normal de comer, bem como de uma sensação de bem estar físico. Também
aprendi a me poupar de perturbações estomacais com uma pequena
quantidade de cocaína e salicilato de soda (FREUD, 1989, p. 80).
A cocaína pode ser usada com sucesso a longo prazo em doenças que
envolvem a degeneração dos tecidos, nos casos de anemia grave, tuberculose pulmonar,
doenças febris de longa duração. A cocaína teve êxito com a febre tifoide, falta de
apetite crônica, pneumonia pulmonar e casos de asma. A cocaína pode também ser
utilizada no tratamento do viciado habitual da morfina e do álcool. O tratamento da
morfina pela cocaína se mostrou mais eficiente do que no tratamento do alcoolismo.
Pode também ser aplicada como anestésico local nas afecções da mucosa, em
enfermidade da faringe e em olhos. Além do mais tem um poder afrodisíaco, pode ser
usada como estimulante sobre a genitália.
Mantegazza confirma que os coqueros mantêm um alto grau de potência até a
velhice. Ele fala mesmo de casos de restabelecimento da potência e
desaparecimento de debilidades funcionais após a utilização da coca, embora
não acredite que a coca produza tal efeito em todos os indivíduos (FREUD,
1989, p. 86).
Freud também aconselha a usá-la como estimulante afrodisíaco, como
anestésico, no tratamento da asma, de doenças consumptivas, de desordens digestivas,
para curar a histeria e a sífilis. Freud utilizou cocaína para tratar um amigo, o médico
Ernest Von Fleisch Marxow, que havia se tornado dependente de morfina, prescrita para
um quadro de dor intensa, por ter amputado a perna. O resultado foi um quadro de
dependência dupla. A cocaína não produz dependência química. Esta é predisposição
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efetiva psíquica da pessoa. Esta ideia contribuiu com o método dos processos
inconscientes da Psicanálise.
Na época de Freud a cocaína viveu uma época de popularidade. Ela foi
incorporada a uma grande quantidade de tônicos, refrigerantes e vinhos. O capitalismo
moderno do século XIX tem o controle político do alcaloide da coca, cujo selo de
mercadoria recebe pela vertente da indústria farmacêutica e da indústria química de
bebidas e refrigerantes. A indústria americana da Coca-Cola por algum tempo teve a
hegemonia do controle da cocaína na produção de refrigerante.
Na entrada do século XX se tomou conhecimento dos riscos que a cocaína
oferecia, mas nem por isso inibiu-se o crescimento da demanda com o uso recreativo,
constituído um negócio lucrativo de exportação ilegal nos países da América do Sul e
da América Latina, cujo controle político primordial está ligado ao comércio ilegal do
capitalismo pela vertente da economia da cocaína colombiana. “No caso da Colômbia,
esse negócio praticamente destruiu a sociedade e acabou com a manutenção da lei e da
ordem” (IVERSEN, 2001, p. 107).
Na abertura de Vigiar e Punir Foucault compara dois tipos de punição. O
espetáculo do suplício, em que a punição está intimamente relacionada ao ato do crime
em si, e as normas disciplinares da prisão, em que a punição está relacionada à correção
do comportamento humano. Por isso que o crime clássico do século XIX é o homicídio.
A criminologia e o sistema penal estão preocupados com as características psicológica,
antropológica e moral do criminoso.
Na abertura da história da cocaína podem-se comparar dois tipos de crime, o
homicídio e o tráfico de cocaína. O primeiro pode ser apresentado por Dostoievski em
O Crime e o Castigo, onde ele é mestre em criar um tipo psicológico e moral do
criminoso. O segundo pode ser apresentado por Gabriel García Márquez em Notícia de
um Sequestro, em que relata o terrorismo da guerra do tráfico de cocaína na Colômbia.
Nas primeiras páginas de Crime e Castigo, Dostoievski cria o perfil
antropológico e psicológico de Raskólnikof, homicida que premedita assassinar Alena
Ivanovna, locatária, a quem deve uma quantia considerável de dinheiro.
Durante todo o romance Dostoievski vai elaborando o pathos do criminoso.
Raskólnikof vivia num estado de excitação nervosa. A pobreza tomava-o por completo,
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chegando ao ponto de ser indiferente a tudo e a todos. Reenuncia por completo às
ocupações, andando de modo andrajoso; nem por isso se ressentia de seus trapos aquela
alma de um infeliz rapaz.
Na primeira tentativa de assassinar a velha Alena Ivanovna salta à vista o
duplo moral e psicológico do criminoso.
Raskólnikof saiu muito perturbado. Descendo a escada, parou repetidas vezes
violentamente confuso; esta confusão cada vez mais aumentava de
intensidade. Uma vez na rua, exclamou: “Meu Deus, como tudo isto é
repugnante! Será possível que eu... Não! É uma loucura, um absurdo! Como
pude ter tão horrível ideia? Pois eu seria capaz de tamanha infâmia? Isto é
odioso, ignóbil, nojento!... E, no entanto, durante um mês eu...
(DOSTOIEVSKI, 1994, 12).
Dostoievski vai dando vida e agravando a tensão psicológica de Raskólnikof
na premeditação do assassinato de Ivanovna, com um agravante que não está previsto
no planejamento do homicida, o assassinato de Isabel. Agora um homicídio duplamente
qualificado doravante vai atormentar a consciência de Raskólnikof por ter assassinado
uma pessoa inocente. Com o assassinato de Isabel vislumbramos o poder persuasivo da
construção dupla moral psicológico criado por Dostoievski.
Mais nova do que Alena Ivanovna, de quem era apenas irmã colaça, Isabel
tinha trinta e cinco anos. Trabalhava dia e noite para a velha. Em casa, fazia
os serviços de cozinha e lavadeira. Fazia trabalhos de costura que vendia, ia
lavar casas, e tudo quanto ganhava ia parar nas garras aduncas da irmã. Não
se atrevia a aceitar nenhum trabalho, qualquer encomenda, sem prévia
autorização de Alena Ivanovna (DOSTOIEVSKI, 1994, 46).
Na cena do crime Dostoievski cria a alma do criminoso. Combina no tempo
e no espaço, atividade motora, perspicácia intelectual, improviso cotidiano e movimento
da alma. A inércia do ambiente constitui nele uma atividade febril. O coração palpitava
de tal modo que não conseguia respirar. Precisava fazer um nó corredio para adaptar a
um casaco onde devia conduzir um machado. Rasgou uma camisa velha, fez uma
ligadura que adaptou por dentro de um casaco, único que possuía, de modo que nenhum
vestígio aparecia.
Para distrair a vítima, Raskólnikof confecciona um objeto sem valor, uma
peça de madeira envernizada e bem embrulhada de modo que tomou uma forma
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elegante e com um nó difícil de desatar. Enquanto Ivanovna tentava desatar o embrulho,
por alguns segundo se distraiu do assassino, dando-lhes as costas. Raskólnikof “tirou o
machado de debaixo do casaco, levantou-o no ar, segurando-o com as mãos, e quase
maquinalmente, porque se sentia sem força, deixou-o cair sobre a cabeça da velha”
(DOSTOIEVSKI, 1994, p. 54). O golpe fendeu a parte superior da cabeça, em seguida,
deu-lhes mais dois golpes e a velha caiu morta. Enquanto revistava a casa, ouviu passos
onde estava o cadáver e ouviu um grito, era de Isabel, Raskólnikof avança para o quarto
com o machado.
O terror dominava-a por tal forma que, vendo-se ameaçada pela arma, nem
sequer pensou em defender a cabeça, com esse gesto maquinal em que em
tais casos sugere o instinto de conservação. Afastou apenas o braço esquerdo
e estendeu-o vagarosamente na direção do assassino, como para desviar. O
ferro abriu-lhe o crânio fendendo toda parte superior da fronte até quase ao
sincipúcio. Isabel caiu redondamente morta (DOSTOIEVSKI, 1994, p. 55).
Comparando as duas literaturas, pode-se constatar a tese de Foucault de que
o crime de tráfico de cocaína é um fenômeno de mercado e um problema não mais do
homem mas da cidade, um fato histórico em que o que está em jogo não é mais o perfil
correcional e antropológico do criminoso, mas as manobras da política do tráfico de
cocaína na forma do terrorismo e do sequestro, um delito coletivo de caráter sui generis
no século XX que não se limita à sociedade colombiana, mas se espalha no risco de
degradação que todas as cidades enfrentam.
Notícia de um Sequestro é um livro jornalístico. Nele Gabriel García
Marquez faz uma reportagem sobre um sequestro coletivo de dez pessoas na cidade
Medellín na Colômbia, com a colaboração de relatos pessoais de Maruja e Alberto, os
protagonistas centrais do sequestro que servem de fio condutor da história do tráfico de
cocaína na Colômbia, sob o comando de Pablo Escobar.
Entrevistei todos os protagonistas que pude, e em todos encontrei a mesma
disposição generosa de perturbar a paz de suas memórias e reabrir para mim
as feridas que talvez me deram a coragem para persistir nesta tarefa outonal,
a mais difícil e triste da minha vida. Minha única frustração é saber que
nenhum deles encontrará no papel nada além de um pálido reflexo do horror
que padeceram na vida real. Sobretudo as famílias das duas reféns mortas –
Mariana Montoya e Diana Turbay –, e em especial a mãe de Diana, dona
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Nydia Quintero de Balcázar, cujas entrevistas foram para mim uma
experiência humana dilacerada e inesquecível (MARQUEZ, 2012, p. 6).
A Colômbia nas décadas de 70 e 80 toma importância no tráfico mundial de
cocaína. Os narcotraficantes entram na alta política do país pelo seu crescente poder de
corrupção e suborno, tendo a figura de Pablo Escobar na frente do movimento como
suplente à Câmara de Deputados, diante das afrontas sofridas pelo governo de Belisário
Betancur, desencandeia uma guerra mortal contra o Estado. O motivo principal era a
política de extradição dos narcotraficantes para os Estados Unidos.
Os narcotraficantes – apavorados pelos longos braços dos Estados Unidos no
mundo inteiro – perceberam que não teriam lugar mais seguro que a
Colômbia, e terminaram sendo foragidos clandestinos de seu próprio país. A
grande ironia é que não restava a eles outra alternativa senão colocar-se sob a
proteção do Estado para salvar a própria pele. Portanto, tratavam de
conseguir essa proteção – pela razão e pela força – com um terrorismo
indiscriminado e inclemente, e ao mesmo tempo com a proposta de se
entregarem à justiça e repatriar e investir seus capitais na Colômbia, com a
única condição de não serem extraditados. Foi um verdadeiro contrapoder
nas sombras com uma marca empresarial – os Extraditáveis – e um lema
típico de Escobar: “Preferíamos um túmulo na Colômbia a uma cela nos
Estados Unidos” (MARQUEZ, 2012, p. 28).
Escobar diante do recrudescimento do Estado inicia uma escalada de
sequestro de jornalistas. O governo se adianta na criação de uma lei segura contra o
tráfico de cocaína. Mas há uma ideia comum para os membros do conselho de
segurança: a luta contra o Cartel de Medellín seguia algumas prerrogativas. A fórmula
da luta só podia ser na forma da guerra e a própria morte de Escobar, pois todos sabem
que o interesse da rendição de Escobar é comandar o tráfico de cocaína em um cárcere
seguro sob a proteção da mão do Estado e o Estado de Sítio dos extraditáveis é o melhor
meio de realizar os propósitos dos traficantes. Veja parte do conteúdo do Decreto 2047
da Política de Submissão, como ficou conhecida na Colômbia:
O projeto foi apresentado ao Conselho de Ministros com a ressalva de que
não se tratava de propor uma negociação com o terrorismo para esconjurar
uma desgraça da humanidade cujos primeiros responsáveis eram os países
consumidores. Ao contrário: tratava-se de dar maior utilidade jurídica à
extradição na luta contra o narcotráfico, ao incluir a não-extradição como
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prêmio maior num pacote de incentivos e garantias para os que se
entregassem à justiça (MARQUEZ, 2012, p. 82).
A pretensão de Escobar é que o Estado designasse um território próprio e
seguro, uma espécie de acampamento-cárcere que podia ser uma fazendo sua que está
no município de Enviagado registrada em nome de um testa de ferro. O Estado deveria
arrendá-la para transformar em cárcere privado. Segue assim a proposta de Escobar
através de uma carta.
Como isto requer gastos, os Extraditáveis pagariam uma mensalidade de
acordo com os custos [...]. Estou dizendo tudo isso porque desejo que você
procure o prefeito de Enviagado em meu nome e explique a ideia. Mas quero
que lhe diga para dar uma carta pública ao ministro da Justiça dizendo que
ele pensa que os Extraditáveis não recorreram ao 2047 porque temem pela
sua segurança, e que o município de Enviado, como uma contribuição para a
paz do povo da Colômbia, está capacitado para organizar um cárcere especial
que ofereça proteção e segurança à vida de quem se entregar (MARQUEZ,
2012, 104).
O ministro rejeitou a proposta de Escobar. Este por sua vez, em troca do
acampamento-cárcere, promete resolver os conflitos com os outros cartéis, bandos,
grupos e assegurar a rendição de centenas de traficantes. Escobar não receia a rendição.
Ele sabe se for pego vivo é morto como fizeram com os outros traficantes. Sem um
acordo comum, as décadas de 80 e 90 vão ser para a sociedade colombiana uma época
de pura beligerância. Os narcoterroristas se mostraram os mais impiedosos. O
assassinato do ministro Rodrigo Lara Bonilla havia desencadeado um surto de violência
aguda. Antes já se tinham assassinado quatro candidatos presidenciais. O país vivia um
círculo infernal com a onda de terrorismo. Escobar não se cansava de denunciar a
violência policial, que, segundo ele, a qualquer momento entrava na comunidade pegava
dez menores e fuzilava-os sem a menor averiguação. Os terroristas, por sua vez, não
davam trégua à matança de policiais; do mesmo modo, os dois movimentos
revolucionários, o Exército de Libertação Nacional (ELN) e as Forças Armadas
Revolucionárias (FARC), respondiam aos atos do governo com tipos de terrorismo.
Dentre essas desgraças, a pior delas estava se tornando parte da cultura colombiana, a
ideia do dinheiro fácil.
Uma droga mais daninha que as mal chamadas em espanhol de heroicas se
introduziu na cultura nacional. O dinheiro fácil. Prosperou a ideia de que a lei
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é o maior obstáculo para a felicidade, que aprender a ler e a escrever não
serve para nada, que se vive melhor e com mais segurança como delinquente
do que como pessoa de bem. Em síntese: o estado de perversão social próprio
de toda guerra incipiente e intermitente (MARQUEZ, 2012, p. 144-145).
Os narcotraficantes estavam na moda. Gozavam da impunidade devido às
obras de caridades que faziam nos bairros onde passaram sua infância de criminalidade.
Todos conheciam a ostentação de Escobar em sua fazenda, onde possuía um jardim
zoológico com girafas e hipopótamos. No portal da fazenda “exibia como monumento
nacional o aviãozinho em que se exportou o primeiro carregamento de cocaína”
(MARQUEZ, 2012, p. 199). Com a fortuna do tráfico de cocaína e clandestinidade
tornou-se dono do território e uma lenda que dominava tudo, chegaram até a erguer
altares com o seu retrato, havia pessoas que afirmavam que fazia milagres. Controlava
por completo a opinião pública. “A condição mais inquietante e devastadora de sua
personalidade era que carecia por completo da indulgência para distinguir entre o bem e
o mal” (MARQUEZ, 2012, p. 199).
Os extraditáveis conseguiram seu propósito de não extradição e Escobar se
entregou em seu cárcere privado, onde pôde preservar seu negócio e seu sossego com a
proteção do Estado. Com o passar do tempo o cárcere se transformou em uma fazenda
de luxo, com todas as facilidades para recreação e para o delito. Quando o escândalo
veio ao público, o governo tentou transferir Escobar para outro cárcere, que na mudança
escapou pelos bosques. Diante da desproporção da situação, lançou a última tentativa
ofensiva: abalou a Colômbia com um terrorismo dinamiteiro nunca visto na história do
país, convertendo-se na maior peça de caça, não podendo permanecer no mesmo lugar
por algumas horas, em sua fuga enlouquecida deixando um rastro de morte de
inocentes. No dia 2 de dezembro de 1993 ao telefonar para seu filho Juan Pablo, a
polícia localizou o telefonema e o local exato no bairro.
Às três e quinze da tarde, um grupo especial nada ostensivo de vinte e três
policiais vestidos de civil isolaram o setor, ocuparam a casa, e já estavam
forçando a porta do segundo andar. Escobar percebeu. “Vou desligar – disse
ao filho pelo telefone – porque está acontecendo alguma coisa esquisita por
aqui.” Foram suas últimas palavras (MARQUEZ, 2012, p. 317).
46
46
A GENEALOGIA DA COCAÍNA
1. Genealogia da Razão Punitiva
Em História da Loucura Foucault constata um grande processo de
enclausuramento da sociedade pelo estabelecimento dos Hospitais Gerais e pelo
aparecimento de uma razão punitiva que vai se configurar em uma forma de poder na
história da cocaína. O poder de negar a capacidade de ser pensante, do conhecimento e
da verdade aos loucos doravante vai ser negado aos dependentes químicos.
Michel Foucault propõe em História da Loucura e em As Palavras e as
Coisas uma interpretação histórica do sentido filosofia cartesiana no que ele denominou
de época clássica2. Período em que a experiência da loucura enquanto desrazão fazia
parte do sistema de exclusão do século XVII, acontecimento que produziu uma forma
de governo dos homens.
A interpretação que Foucault dá às Meditações Metafísicas, com a
construção do cogito cartesiano ilustrado pela figura da loucura como não razão e a
atenção ao aparecimento do Hospital Geral, como gesto que exclui o louco, confinando-
o ao espaço fechado, é um momento singular na história do sujeito enquanto modo de
subjetivação do crime e do castigo.
O cogito cartesiano é uma divisão original que traça um limite entre a
soberania do sujeito pensante e a experiência do desatino, da razão irrazoável. Entre
ambas tem-se o advento de uma ratio.
Para POTTE-NONNEVILLE (2010), o cogito cartesiano exclui dos padrões
racionais de duvidar a possibilidade do louco de pensar, no momento em que se trancam
os insanos no Hospital Geral, medida que em sua violência institucional tem a mesma
démarche da abordagem metódica das Meditações Metafísicas.
Segundo MUCHAIL (2004), o sujeito racional nasce de uma exclusão da
loucura, exclusão não somente de método, mas, em especial, como limite do
pensamento e de linguagem em uma cultura (p. 37).
2 A expressão “época clássica” na obra de Foucault refere-se aos séculos XVII e XVIII e em termos
filosóficos ao pensamento de Descartes e ao pensamento de Kant.
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Descartes antecipa a ideia de doença na perspectiva do espaço do
patológico. Segundo FOUCAULT (1999), a palavra demente utilizada por Descartes é
um termo médico e jurídico, “pelo qual se designa uma categoria de pessoas que são
estatutariamente incapazes de um certo número de atos religiosos, civis ou judiciais; [...]
são desqualificados quando é preciso agir, interpor uma ação judicial, falar” (p. 250).
A racionalidade clássica, ao considerar pessoas despossuídas de mente ou de
espírito, constitui uma linguagem de negatividade da razão, ou seja, uma linguagem que
não participa do jogo da razão. A epistemologia em torno da razão como norma da
ciência é, ao mesmo tempo, primeiro gesto de dominação que vai funcionar como
gênese da razão punitiva.
No prefácio de As Palavras e as Coisas, FOUCAULT (1990) esclarece o
sentido da História da Loucura:
Enquanto na história da loucura se interrogava a maneira como uma cultura
pode colocar sob uma forma maciça e geral a diferença que a limita, trata-se
aqui de observar a maneira como ela experimenta a proximidade das coisas,
como ela estabelece o quadro de parentesco e a ordem na qual é preciso
percorrê-los [...] A história da loucura seria a história do Outro – daquilo que,
para uma cultura é ao mesmo interior e estranho, a ser portanto excluído
(para conjurar-lhe o perigo interior), encerrando-o porém (para reduzir-lhe a
alteridade) (p. 14).
A razão punitiva como forma de poder pode representar um modo de
objetivação da conduta patológica pela prática de divisão entre o indivíduo de razão e o
indivíduo da não razão; o louco e o saudável; o criminoso e o indivíduo bom; o
dependente químico e o lúcido.
A razão punitiva conjugada com a moral moderna ao alvorecer do século
XVIII vai fazer parte do regime da verdade do crime e do castigo, que ao ser acoplada à
economia do poder de punir pelos filósofos do direito penal moderno, vai constituir um
novo modo de governo da delinquência.
A racionalidade do pensamento, conjugada com a normalidade da conduta,
constitui uma linguagem da delinquência os tóxicos que pode ser denominada de
experiência antropológica do outro, cujos conceitos fundamentais são da extravagância,
da nocividade e da enfermidade. A delinquência dos tóxicos é uma fronteira entre a
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doença e o normal. Segundo FOUCAULT (1999), “interrogar uma cultura sobre suas
experiências-limites é questioná-las, nos confins da história, sobre um dilaceramento
que é como o nascimento mesmo de sua história” (p. 142).
2. A Criminalização da cocaína
No século XX a cocaína entra no controle político do governo americano
através da política de proibição das drogas. Pode-se comprar cocaína em farmácias e
drogarias e pode-se até fazer pedidos pelo correio. A cocaína ainda não é assunto da
política criminal, do controle político e ética social. A cocaína ainda não é um objeto
para a polícia nem para juízes, não está relacionada à causa do crime, nem um vício para
o criminoso, nem uma doença contagiosa, que mereça sentar no banco dos réus.
A política de proibição das drogas é uma política de controle social do
governo americano, que faz parte de uma política de controle da vida que podemos
chamar de biopolítica, tipo de poder que se desenvolveu no século XIX e se consolidou
na forma da racionalidade médica, farmacêutica, produtiva e criminal no século XX em
que está posta a política de controle da cocaína.
Segundo ESCOHOTADO (2009), a mudança de atitude em relação às
drogas no Ocidente deve-se a dois fatores básicos. Primeiro, “a vigorosa reação dos
Estados Unidos, que olha com desconfiança as massas de novos imigrantes e as grandes
cidades” (p. 97). Segundo, a política de governo do Estado mínimo, “processo em que o
estamento terapêutico irá assumir pouco a pouco as competências do eclesiástico em
outros tempos” (p. 98). Esses dois fatores podem ser encontrados na publicação da Lei
Seca de 1785 por Benjamin Rush. No sucessivo será assunto do médico salvar a
humanidade do vício, tanto como até agora foi o sacerdote. “Concebemos os seres
humanos como pacientes em um hospital; quanto mais resistam a nossos esforços por
servi-los, mais necessitam de nossos serviços” (p. 98).
O proibicionismo puritano está posto contra o uso legal da cocaína. A
postura da ética puritana é acompanhada pela Associação Médica Americana e
Associação Terapêutica, que também almejam o controle das drogas. Podemos dizer
que a aliança da ética cristã, aquela que serviu para o espírito do capitalismo, com o
terapeutismo americano serviu de porta de entrada do controle político da cocaína que
está mais relacionado à prática médica de receitar indevidamente drogas aos usuários
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que por conta do hábito que precisa entrar no comércio negro das farmácias, das
drogarias, da importação e exportação de drogas sem licença alfandegária.
A proibição do governo americano vai ganhar força com a afirmação da
Convenção de Haya em 1914 em que as nações devem criar mecanismo para controlar a
preparação e a distribuição do ópio, da morfina e da cocaína, reforçado com o Tratado
de Versalhes em 1917, em que se reafirma o compromisso com legitimidade do uso das
drogas, mas na prática o controle político da cocaína vai de fato se estabelecer pela
criação de uma lei normativo-administrativa, criada pelo Congresso Americano, que vai
exigir inscrição de registro para fabricar, conceder ou possuir ópio, morfina e cocaína.
Na realidade é “uma norma penal substantiva, que pretende barrar todo uso ‘não
médico’ de tais coisas, e confere a última palavra sobre o que seja não ‘médico’ a um
novo organismo, o Departamento de Controle de Narcóticos” (ESCOHOTADO, 2009,
p. 103).
As legislações antidrogas americanas vão enquadrar um número significante
da população na penalidade de detenção e duas figuras estarão evidentes nos pátios das
prisões: o personagem do traficante e o do dependente químico, que também estarão
relacionados ao mercado negro do contrabando da cocaína. Segundo PASSETTI (2004),
é a principal interdição do século XX: “seu combate tem um nome: proibicionismo” (p.
11). Há uma profundidade no diagnóstico da proibição ao imputar à causa da
criminalização da cocaína o cálculo anual de consumo de drogas feito pelo interesse do
controle político, econômico e médico das drogas, que no fundo é o controle da política
da cocaína sendo a mercadoria mais consumida.
Em 1920 é publicada a chamada Lei Seca, que prescrevia multa e prisão
para a venda e fabricação de bebidas alcoólicas e assistência médica para os
dependentes químicos. Esta lei é acusada de aumentar o número de delinquentes nas
prisões; parte dos culpados é o agente federal envolvido que movimenta a corrupção do
Estado através de roubos, furtos, falsificação e tráfico de drogas.
O controle pela administração da polícia do governo americano de quem, de
quando e de quando, se deve usar de cocaína causou protestos por parte da classe
médica e da própria população usuária. Em 1921, um jornal da Associação Médica
Americana acusa em um artigo a corrupção de modo deliberado e sistemático da
opinião pública, apresentando o hábito da cocaína como fosse uma enfermidade.
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50
Querer curar um vício chamando de enfermidade e delito é adicionar um
modo infalível de convertê-lo em enfermidade e delito; vestida de
benevolência e orientação científica, a prática de combater a dor de algumas
pessoas ilegalizando seus melhores remédios delata crueldade e superstição
(ESCOHOTADO, 2009, p. 110).
Segundo essa visão, a narcose da cocaína é uma invenção da proibição,
orientada a criar um estigma moral dos usuários de certas drogas, método bárbaro,
daninho e inútil. Um artigo do médico R. A. Schless, publicado pela American
Mercury em 1921, segue a mesma linha de pensamento. ESCOHOTADO (2009) cita
um trecho do texto:
A maior parte da adição de drogas hoje em dia se deve diretamente à lei
Harrison, que proíbe a venda de narcóticos sem receita médica [...]. Os
adictos arruinados atuam como agentes provocadores para os traficantes,
sendo recompensados com pequenos presentes de drogas ou entrega a
crédito. A lei Harrison criou o traficante de drogas, e o traficante criou o
adicto (p. 110).
O controle político da cocaína pelo governo americano, mesmo que tenha
causado um conflito acirrado entre as esferas médica, jurídica e policial, é bem
acolhido, inclusive a Legislação dos Tóxicos de 1938, no Brasil, vai adaptar com
sucesso a ideia de que a dieta farmacológica é uma incumbência do Estado. Nesse ponto
os governos estão de acordo de que se deve limitar a distribuição de drogas nas
farmácias e drogarias, exigindo prescrição específica para conter a alta concentração da
cocaína.
Na conferência de Genebra de 1925, o governo americano tem a intenção de
fixar limites para a produção do ópio e da cocaína, propósito visto com reserva por
outras nações. A convenção propõe a criação de um organismo consultivo internacional
na forma de um Comitê Central Permanente para controlar o mercado das drogas.
Segundo ESCOHOTADO (2009), a nova política de governo de controlar a exportação
e a venda de cocaína “produz na Europa um efeito muito parecido ao que produzira uma
década antes nos Estados Unidos” (p. 116): um aumento considerável do contrabando
da cocaína.
Em 1931, a política de controle da cocaína é consolidada por uma norma
internacional firmada na convenção de Genebra que estabelece uma avaliação de cotas
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anuais para a produção e uso lícito de cocaína por cada país e atribui ao Comitê Central
Permanente elaborar uma política para a toxicomania, que resultará numa complexa teia
de organizações internacionais de um exército de funcionários públicos, acirrando o
controle da cocaína por médicos, psiquiatras, psicólogos, policiais federais, estaduais,
ficais da receita federal e alfandegários. O Convênio de Genebra de 1936 se ocupará das
determinações penais; para tanto, fica estabelecido o compromisso de cada país criar
uma polícia especializada e aplicar a punição de detenção para traficantes e para
qualquer pessoa com posse de cocaína.
A política de proibição do governo americano é parte de uma política
planetária de erradicação da cocaína, que, no fundo, está consolidando nos países
amazônicos uma política de controle dos recursos sustentáveis da floresta. A política
americana da cocaína é controversa, pois nela o que está em jogo não é a saúde física e
mental da população, porque nos anos trinta são comercializadas livremente nos Estados
Unidos as anfetaminas, dexanfetaminas e metanfetaminas, cujo perigo de intoxicação
aguda é muito maior do que a da cocaína e apresentam uma necessidade de aumentar as
doses para manter os efeitos esperados. Nem por isso a política americana das drogas
constituirá uma delegação para apoiar o controle das aminas que são produtos sintéticos
exportados para países em desenvolvimento que capitalizam patentes para os Estados
Unidos, sem precisar importar cocaína da Amazônia.
A problemática da cocaína no Brasil é do início do século XX, em
manifestar apoio à Sociedade das Nações. A criação da Comissão Consultiva do Tráfico
de Ópios e outros Entorpecentes, na sua primeira conferência optam pela repressão,
1924; na segunda, em 1925, pela restrição de fabricação, produção e limitação do uso
medicinal e científico. É assegurado o uso legítimo das drogas e não há como negar a
facilidades e a liberdades de negócio para as indústrias produzirem e comercializarem
os entorpecentes, e também não se pode negar a participação dos Estados Unidos em
combater o tráfico do ópio e em criar uma moral abstêmia por meio da lei seca, que
proporcionou o crescimento da máfia e o comércio clandestino das drogas.
A ilegalidade do mercado se define pelo mercado legítimo, constituído pelo Estado, pela
indústria e pela medicina. “É por isso que a noção de governamentalização do Estado,
em Foucault, se constrói a partir do triângulo soberania-disciplina-gestão
governamental, que tem por alvo a população através dos dispositivos de segurança”
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(PASSETTI, 1991, p. 34). A população que usa cocaína é alvo de reprovação moral
que, por sua vez, alimenta desaprovações médicas, sanitárias e jurídicas.
A Lei Harrison criava as figuras do traficante e do viciado. O traficante é
aquele produz e comercializa a cocaína, objeto normativo da repressão, deve ser
perseguido encarcerado. O viciado, o usuário, considerado doente, deve passar pelos
tratamentos compulsórios. As duas peças da política do mercado ilícito da cocaína estão
inauguradas. São os primeiros passos da economia do narcotráfico.
A proibição visava o discurso que considerava as pessoas como perigosas,
dentro da população pobre, já sob vigilância e controle pelo Estado, através de políticas
de segurança que intensificaram um estado de guerra entre a população e o Estado. A
demanda pela cocaína cresceu junto com as leis e as medidas de repressão, “levando ao
desenvolvimento de máfias internacionais no mesmo ritmo das iniciativas repressivas
assumidas pelos Estados que adotavam o proibicionismo” (RODRIGUES, 2003, p. 14).
No início do século XX, as medidas repressivas aceleraram o crescimento
das ações policiais na apreensão de drogas ilegais e do combate a grupos clandestinos e
redes de tráficos.
Na década 70, a proibição internacional não havia eliminado o tráfico; pelo
contrário, possibilitara o crescimento de um gigantesco mercado ilegal que motivava,
por sua vez, o fortalecimento das agências e das leis destinadas a perseguir essa
economia ilícita. A construção de um regime de proibição universal, o objetivo do
governo dos Estados Unidos, desde as primeiras iniciativas no início do século XX, deu
passos importantes até os anos de 1970 no controle da cocaína.
O cálculo anual do consumo de cocaína é uma estratégia de poder de
prolongar o domínio da política do governo americano sobre os recursos sustentáveis do
planeta. A proibição americana das drogas e a Legislação Brasileira dos Tóxicos, além
de normalizar a sociedade de controle dos traficantes e dos dependentes químicos, são
acima de tudo políticas de controle da economia e do mercado da cocaína.
O controle político da cocaína entra no conjunto constituído pelas
instituições, procedimentos, análise e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer
essa forma bem específica, bem complexa de poder, que vai articular as instituições
médicas, jurídicas, legislações nacionais e internacionais, forças policiais nacionais e
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internacionais, racionalidades administrativas, preocupação governamental com a
manutenção do planeta.
A política americana de controle da cocaína é uma política de controle da
vida, que faz parte do desenvolvimento da govermentalidade planetária, que a
princípio se desenvolveu na forma do poder disciplinar e da biopolítica, como um
modo de governo do corpo, do indivíduo e da população, no domínio do crime e do
castigo na história da cocaína representa um modo de governo da delinquência e da
dependência química.
3. A Racionalidade da Cocaína
A política de racionalidade da cocaína é parte da governamentalidade
americana. Entenda-se por esse termo o modo de governo que predomina a partir do
século XIX até os nossos dias, que poder ser considerado a última forma do Estado
moderno. A racionalização dos problemas da população, como um conjunto de seres
viventes, dentre os quais podemos incluir a problemática da cocaína, é um processo
que se inscreve no marco da racionalidade política do neoliberalismo.
O Estado governamentalizado tem por objeto a população, governa através
da economia, medicina, psiquiatria, psicologia, criminologia e outros, articulando esses
saberes em torno de dispositivos de segurança.
Por governamentalidade, entendo o conjunto constituído pelas instituições,
procedimentos, análises e reflexos, cálculos e táticas que permitem exercer
essa forma bem específica, bem complexa, de poder, que tem como alvo
principal a população, como forma mais importante de saber, a economia
política, como instrumento técnico essencial, os dispositivos de segurança.
Em segundo lugar, por governamentalidade, entendo a tendência, a linha de
força que, em todo o Ocidente, não cessou de conduzir, e há muitíssimo
tempo, em direção à preeminência desse tipo de saber que se chama de
“governo” sobre todos os outros: soberania, disciplina. “Isto, por um lado,
levou ao desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de
governo e, por outro, ao desenvolvimento de toda uma série de saberes”
(FOUCAULT, 2003, p. 303).
A emergência da política da vida põe em questão o sistema geral do poder,
pois as lutas políticas já não se fazem em nome do direito originário do homem, mas em
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nome da vida enquanto necessidade fundamental e concreta do homem. A propósito,
quando a cocaína é tomada na sociedade normalizada pela norma disciplinar e pela
norma regulamentadora, ela passa a ser considerada dentro de uma biopolítica, em
parte, as expensas do sistema jurídico penal, em que se integram as instituições
administrativas e médicas, através de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos,
considerada em domínio de valor e utilidade, cuja exigência é a necessidade de
qualificar, medir, avaliar e hierarquizar.
A população, enquanto um problema político, científico e biológico, é
constituída no fim do século XVIII, pelas relações de poder da biopolítica, poder que
faz parte da transformação do direito político do século XIX, em completar o direito de
soberania que não vai apagar o direito de fazer morrer ou deixar viver, mas vai inserir
esse direito em um poder de fazer viver e de deixar morrer, logo vai se instalar um
direito de viver e de deixar morrer.
A política da criminalização da cocaína está inteiramente envolvida em uma
tecnologia política da vida em que o indivíduo é considerado dotado de capacidades de
adestramento, de intensificação, de distribuição, de ajustamento dentro de processos
biológicos e químicos de conjunto, integrados em contínuos aparelhos administrativos e
médicos com funções inteiramente reguladoras de vigilância, controle, ordenação,
medida, estimativa estatística e intervenções, exames médicos e psicológicos.
A regulamentação da política da cocaína é encarada como um problema de
governo político, preocupada em adequar a legislação nacional às finalidades das
políticas internacionais, pelas diversas convenções sobre o tráfico e o consumo de
cocaína como um perigo para a humanidade, não é no nível individual, mas no nível de
fenômeno global que pretende obter um estado de equilíbrio e regularidade geral, com
intuito de consolidar uma política de controle da humanidade.
A política da vida concebe a cocaína como um risco à saúde pública, por
controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, embora funcione, ao
mesmo tempo, como uma desqualificação da morte, enquanto termo da vida, no sentido
em que o poder deixa de lado o fausto da morte. No governo da cocaína, a morte é um
simples reverso do direito do corpo social de defender a própria sociedade.
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A política de controle da vida inseriu o racismo nos mecanismos do Estado
e é por meio da sua intervenção que se pode justificar a função da morte no domínio da
vida. É pela qualificação das raças tomadas como superiores e inferiores que existe o
corte de quem deve viver e de quem deve morrer. Quando o Estado estabelece a censura
em torno da cocaína, como uma substância de valor biológico e químico capaz de
comprometer a humanidade, a política de controle encontrou no racismo uma maneira
de isolar uma parcela da população no interior da sociedade em relação à outra parte da
população. O racismo faz funcionar uma relação do tipo biológica:
Quanto mais às espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os
indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em
relação à espécie, mas eu – não enquanto indivíduo, mas enquanto espécie –
viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar
(FOUCAULT, 2005, p. 305).
Na conexão do racismo com a cocaína, a raça inferior que até então era
composta pela personagem do criminoso, na pessoa do monstro, do anormal, do
homossexual, do degenerado, agora recebe um personagem novo, o toxicômano.
Essas personagens são os inimigos da sociedade normalizada que precisa ser
defendida, mas não são adversários no sentido político do terno, representam perigos
biológicos que precisam ser eliminados para fortalecer a raça superior. Esse é o sentido
em que é aceito o imperativo da morte na política de contenção do crime da cocaína e a
condição de aceitabilidade de tirar a vida na sociedade normalizada.
Pensa-se aqui não só o assassinato direto, mas sim expor alguém à morte ou
criar condições de risco de morte, a morte política de uma pessoa, a expulsão e a
rejeição dos indivíduos de uma determinada sociedade, a prisão, a internação, o
isolamento, enfim, a exclusão e a estigmatização dos grupos de riscos das legislações
dos tóxicos. As teorias biológicas do século XIX tiveram papel central na condução da
política de contenção dos tóxicos, em especial no discurso de censura da cocaína. Há
um vínculo entre o discurso da política criminal com o evolucionismo:
No fundo, o evolucionismo [...] tornou-se, com toda a naturalidade, em
alguns anos do século XIX, não simplesmente uma maneira de transcrever
em termos biológicos o discurso político, não simplesmente uma maneira de
ocultar um discurso político sob uma vestimenta científica, mas realmente
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uma maneira de pensar as relações da colonização, a necessidades das
guerras, a criminalidade, os fenômenos da loucura e da doença mental, a
história da sociedade com suas diferenças de classes (FOUCAULT, 2005, p.
307).
A governamentalidade americana é o lugar da racionalidade do nascimento
da política da cocaína pela política do neoliberalismo. A análise econômica da
criminalidade dos tóxicos repousa no princípio de máxima economia, com maiores
resultados ao menor custo.
É essencialmente, claro, o problema da droga que, sendo ela própria um
fenômeno de mercado, é do âmbito de uma análise econômica, de uma
economia da criminalidade, muito mais acessível, muito mais imediata
(FOUCAULT, 2008, p. 351).
O consumo da cocaína entra no limite de competência do governo pela
fronteira da utilidade da intervenção governamental, como um elemento nocivo à esfera
da independência dos indivíduos. Nesse ponto, voltamos à questão singular do direito
de punir moderno, que elege mais interessante para a sociedade a reeducação do
toxicômano, como a forma de penalidade mais adequada, tendo em vista o valor do
custo para os interesses da sociedade. A lógica do mercado da cocaína é um jogo
complexo, entram os interesses individuais, os coletivos, a utilidade social, o benefício
econômico, o equilíbrio de mercado, o regime do poder público, enfim, um jogo entre
os direitos fundamentais e a independência dos governados.
O consumo da cocaína é um fenômeno político de interesse de certos
indivíduos confrontados com os interesses da coletividade, em um regime de governo
em que a troca determina a verdade da ação governamental.
A ação governamental produz a liberdade de comportamento do mercado da
cocaína. A produção dessa liberdade depende de um conjunto de injunções e de
problemas de custo, cujo princípio de cálculo deve responder pela segurança, que deve
determinar exatamente a medida dos interesses individuais, dos diferentes interesses e
dos interesses divergentes para não constituir um perigo para a sociedade.
A segurança deve proteger o interesse coletivo contra os interesses
individuais dos implicados com o mercado de cocaína, mas de outro modo deve
interceder para que este mercado tenha abertura em relação ao interesse coletivo.
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O mercado da cocaína anima a economia de poder do governo através do
jogo da liberdade e da segurança, cujo problema está no âmago da razão governamental
que deve manipular a liberdade e a segurança em torno da gestão dos perigos do
controle do comércio e do consumo da cocaína. O estímulo do perigo está na base da
ascensão da política de controle da cocaína, o que significa que os indivíduos são postos
perpetuamente em situação de perigo; sua situação, sua vida, seu presente, seu futuro
estão condicionados a serem portadores de perigo.
O contexto da cultura política do perigo é a realidade em que a cocaína é
tomada enquanto um entorpecente, diagnosticada como uma doença, cujo tratamento é
delegado ao espaço do confinamento. A cultura do perigo é o mesmo contexto da
política do normal e do patológico em que é constituída a conduta da delinquência dos
tóxicos.
Quando a criminalidade da cocaína é recoberta pela teoria do capital
humano da concepção neoliberal americana3 enquanto um fenômeno de mercado, como
a economia ilegal das drogas, dentro de uma racionalidade de mercado, para além do
domínio da economia, a conduta da delinquência dos tóxicos, enquanto participa de um
mercado econômico, com intuito de lucro, tal como a figura do capitalista que procura a
rentabilidade nas oportunidades de mercado4, perde o seu caráter patológico, para
participar da grade do homo oeconomicus.
O crime de tráfico de cocaína imputa uma cisão na política criminal do
século XX. Os filósofos juristas do século XVIII conceberam a lei como uma vontade
particular coletiva de eliminação do criminoso pela punição universal da contenção da
liberdade. A política penal do tráfico de cocaína não tem mais por alvo o que os
pensadores da política do século XVII e XVIII pensavam, figuras como Hobbes,
Rousseau, Beccaria, Kant, de modo especial Bentham, que imaginavam o
desaparecimento total do crime através de um sistema de legalidade universal.
A lei penal, e toda mecânica penal com que sonhava Bentham, devia ser tal
que, no fim das contas, mesmo que na realidade isso não pudesse acontecer,
já não houvesse crime. É a ideia do panóptico, a ideia de uma transparência, a
ideia de um olhar que fixa cada um dos indivíduos, a ideia de uma gradação
das penas suficientemente sutis para que cada indivíduo em seu cálculo
3 A teoria do capital humano é encontrada no “Nascimento da Biopolítica”, da página 297 a 302.
4 Cf. WEBER, Max. Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2003.
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econômico possa dizer: não, se cometo esse crime, a pena a que me exponho
é pesada demais, por conseguinte não vou cometer esse crime (FOUCAULT,
2008, p. 349).
A anulação total do crime é o princípio regulador da racionalidade do
pensamento dos reformadores do XVIII. No século XX, a política criminal que
responde pelo tráfico da cocaína tem por princípio regulador uma intervenção no
mercado do crime em relação à oferta do crime.
Levando em conta o raciocínio do mercado, a demanda da cocaína é uma
intervenção do Estado para definir uma oferta de crime e objetivar uma parcela da
sociedade na forma de um comportamento conforme o padrão prescrito e esperado pela
lei, uma demanda negativa tolerada mediante uma taxa de ilegalidade que está em
sintonia entre a curva da oferta do crime e a parcela consumidora da cocaína, apesar de
Foucault não pensar a demanda negativa do consumidor de cocaína, mas da droga em
geral. De qualquer forma, a sua análise é referente à década de 70, momento áureo da
economia da cocaína na fronteira amazônica.
A cocaína entra no espaço do mercado de consumo como um meio raro
capaz de produzir rentabilidade e corresponde à expectativa da racionalidade do
comportamento do homo oeconomicus5. Este comportamento é de um empresário de si
mesmo, de um investidor, de um homem de consumo. Uma espécie de competência-
máquina de produzir renda.
A governamentalidade econômica tem como princípio de regulação a grade
do homo oeconomicus ou do homem-máquina, como uma interface entre o governo e o
indivíduo. O crime enquanto tal pode ser definido como uma ação que quem o comete
assume o risco de ser punido pela lei. O criminoso de tráfico de cocaína é uma pessoa
que investe numa ação de mercado, que pretende lucrar com este investimento, mas
pode correr o risco de perder todo o seu investimento quando confrontado com a justiça
criminal.
A construção da rentabilidade do investidor em cocaína é a conduta do
homem do mercado econômico que espera a oportunidade de mercado para produzir
ações que gerem lucros, que podem ser afetada pelo próprio jogo do mercado ou o risco
5 O conceito de homo oeconomicus pode ser encontrado na página 311 do “Nascimento da Biopolítica” da
edição de 2008.
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da perda econômica que é infligida por um sistema penal. O crime do comércio de
cocaína corre o mesmo risco que qualquer pessoa que investe do mercado econômico.
O negociante em cocaína, potencial criminoso de tráfico de drogas, não é
um criminoso como o criminoso clássico do século XVIII e XIX, em que a justiça
criminal, por conta da punição, procurava identificá-lo a partir de características morais
e antropológicas. Veja-se a figura do regicida do século XVIII ou a do monstro do
século XIX, cuja finalidade da justiça criminal em relação a esses elementos era de
afastamento, exclusão ou eliminação total do espaço social como forma de proteger a
sociedade.
O crime de tráfico de cocaína é peculiar do nosso século, podendo ser
concebido como o crime clássico do século XX, inclusive o direito penal, nesta
circunstância, não tem interesse no criminoso, porque pode ser qualquer pessoa, mas
deve se ocupar com a oferta do crime, não só o da cocaína, qualquer pessoa que produza
uma ação econômica está sujeita à razão governamental do direito de punir, em especial
a contravenção da economia da cocaína.
Até a década de 1970, a política de enforço da lei da razão governamental
neoliberal em relação à droga visava reduzir a oferta da droga; para reduzir a
delinquência de droga foi preciso reduzir a quantidade de droga posta no mercado, para
tanto foi preciso desmantelar as redes do mercado da cocaína. A consequência foi o
aumento do preço unitário da droga.
Desmantelando, nunca exaustivamente, é claro – por razões que poderíamos
discutir, não é? – desmantelando parcialmente as redes de refino e de distribuição, o
que aconteceu? Primeiro, isso aumentou o preço da droga. Segundo, beneficiou a
situação de monopólio ou de oligopólio de certo número de grandes vendedores, de
grandes traficantes e de grandes redes de refino e distribuição de droga acarretando,
como efeito de monopólio ou efeito oligopolístico, um aumento dos preços, na
medida em que não se respeitavam as leis do mercado e da concorrência
(FOUCAULT, 2008, p. 351).
O desmantelamento das redes de tráfico de drogas beneficiou e fortaleceu
outras organizações ligadas ao mercado cocaína. O novo cenário é o aparecimento de
grandes traficantes que, na medida em que não respeitavam a concorrência de mercado,
acarretam o aumento de preço, embora o consumidor habitual, da demanda fixa,
qualquer que seja o valor, está disposto a pagar o preço da mercadoria. Essa camada da
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população vai contribuir com o aumento da criminalidade. O tipo de legislação
antidroga “que havia sido desenvolvido no decorrer dos anos 1960 revelou-se um
fracasso sensacional” (FOUCAULT, 2008, 352).
Segundo FOUCAULT (2008), a solução, em termos de economia liberal, foi
formulada por Eatherly e Moore em 1973. Primeiro, “é pura loucura tentar limitar a
oferta da droga” (p. 352). Segundo, “fazer que a droga seja mais acessível e mais barata,
mas com as seguintes modulações e precisões” (p. 352). Para o comprador em que a
demanda é flexível, que é o iniciante em cocaína, deve-se oferecer um preço baixo, mais
quando essa demanda se tornar inflexível, cujo consumidor é habitual, deve-se aumentar
o preço, pois comprará do mesmo jeito. Esse preço monopolístico induz ao fenômeno
da criminalidade.
A atitude dos que orientam a política de enforço da lei deve fazer o
contrário, o preço de ingresso deve ser alto, para dissuadir os consumidores eventuais;
em compensação, para os consumidores habituais, deve-se ter um preço acessível, para
que não sejam obrigados, por conta do seu hábito, a entrar no mundo da criminalidade.
A economia da criminalidade do mercado da cocaína não sustenta a
racionalidade da economia capitalista, que respeita as leis do mercado, da concorrência
e da regularidade do mercado econômico, tendo em vista a legitimidade do Estado e do
Direito. O poder que sustenta a economia da cocaína é elástico, capta, absorve e cresce
com os conflitos nacionais e internacionais, com as crises das economias locais,
nacionais e internacionais e tem capacidade de influenciar a forma do capitalismo
racional. Por isso, cada crise no interior da economia da cocaína é comemorada com a
emergência de novos mercados da cocaína.
A questão central da política criminal é a tolerância do tráfico de drogas,
mas de fato a tolerância é em relação à demanda do mercado de cocaína, cuja questão a
penalidade deve responder: quantos delitos devem ser permitidos? Quantos delinquentes
devem ser deixados impunes?
Podemos dizer que com a política da cocaína o direito penal entra na era da
tolerância universal, princípio ativo do pensamento de Voltaire. Tomando-o como
referência, pode-se dizer que a intolerância da ética cristã, da política de controle da
cocaína nas convenções, nas legislações antidroga, nas práticas criminais e no estigma
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social constitui um modo específico de domesticação do ser humano desde o século
XIX até o século XXI, com um agravante: a cultura da cocaína entra na era das doenças
físicas e mentais pela mão da cultura do trabalho.
VOLTAIRE (1988), crítico da cultura, diagnostica a origem da
domesticação humana fazendo uma paródia à constituição da moral do senhor e do
escravo. A dependência do trabalho humano é a primeira norma da condição moral.
“Que é que deve um cão a outro cão [...]? Nada. E o homem dotado de razão, que deve a
seu semelhante? O de ser escravo em quase toda terra” (p. 133). Na origem da
sociedade, na cultura do trabalho, está posta a condição moral do servo, a obediência e o
castigo. Voltaire é o primeiro a pedir a abolição do castigo, combate à injustiça penal,
tomando o caso de Jean Calas que é acusado de crime calvinista e condenado a ser
quebrado vivo, estrangulado e jogado na fogueira.
A acusação de parricídio não teve evidência unânime, porque o julgamento
estava marcado pela paixão do fanatismo. O erro dos juízes de matar impunemente um
inocente nada mais é do que apenas um engano; é quando se percebe a insuficiência da
lei, “então o clamor público se levanta, cada um teme por si próprio, percebe-se que
ninguém está seguro de sua vida diante de um tribunal erigido para zelar pela vida dos
cidadãos” (VOLTAIRE, 2000, p. 3). Voltaire continua vivo, tinha tanta clareza de que a
intolerância religiosa era o cenário do crime e do castigo e sabia, do mesmo modo, que a
lei penal dependia daquela moral, tal como a moda, a intolerância religiosa estava na
iminência do desaparecimento.
Houve um tempo em que se julgou necessário emitir decretos contra os que
ensinavam uma doutrina contrária às categorias de Aristóteles, [...] mais de cem
volumes de jurisprudência sobre a feitiçaria [...]. A excomunhão dos gafanhotos e
dos insetos nocivos às colheitas esteve muito em moda e ainda subsiste em vários
rituais. A moda passou; Aristóteles, os feiticeiros e os gafanhotos foram deixados
em paz. Os exemplos dessas graves demências, outrora tão importantes, são
inumeráveis. De tempos em tempos surgem outros; mas, quando fizeram seu efeito,
quando se está farto deles, desaparecem (VOLTAIRE, 2000, p. 13).
4. A Delinquência da Dependência Química
A Constituição do Brasil do século XIX não conhece o crime de cocaína,
nem o traficante, muito menos a dependência química do alcaloide da coca ou epadu da
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fronteira amazônica, embora conheça a requalificação e o tratamento do criminoso. A
Constituição de 1989 vai adequar a requalificação e o tratamento do criminoso ao crime
do tráfico de cocaína. A requalificação e o tratamento da delinquência existem antes da
delinquência da dependência química. O delinquente dependente do alcaloide da
cocaína não existe, pelo menos não existia antes do método da requalificação do
criminoso da Lei de Execução Penal, cuja Lei dos Tóxicos de 1938 repete na totalidade
os princípios da punição de detenção. A requalificação da delinquência existe antes do
dependente de cocaína, porque a figura do dependente químico é uma construção cega
do Direito Penal do século XX e da política de controle da cocaína pela lei antidroga.
Desse casamento nasceu a delinquência da cocaína, que doravante vai se tornar o crime
clássico do XXI.
O controle político da cocaína no Brasil é definido pela Lei Penal de 1938.
Até então não existia uma medida de segurança entorno da cocaína, apesar de existir um
uma economia internacional da cocaína com um braço na economia sustentável da
fronteira amazônica que abastece tanto o mercado internacional legal da cocaína quanto
o mercado internacional ilegal da cocaína.
No início do século XX, ainda não há registro da delinquência da
dependência química na cidade Benjamin Constante. No tempo em que Freud escreve a
história da cocaína, já demonstra que nenhuma substância química tem poder de causar
dependência, no caso da cocaína, a dependência não tem o efeito da substância, mas
uma disposição individual e até social.
PASSETTI (1991) registra a existência da delinquência da dependência da
cocaína no início do século XX na cidade de São Paulo, fazendo alusão à política de
controle das drogas pelo governo americano e pela política de controle da cocaína pelo
governo brasileiro, através da imprensa de São Paulo. “A imprensa do início do século,
ou mais precisamente do período em que Roosevelt implementava a definição de um
campo legal para as drogas, percebe-se que pouco ou nada mudou” (p. 77), referindo-se
à política de controle das drogas. O que é registrado pela imprensa sobre aquelas noites
de São Paulo “não passava de uma generalização, em que homens de bem (os homens
da ordem) temiam pelo instável futuro de seus filhos. Isso se devia a mais uma ação dos
perigosos oponentes contaminadores de outras classes, incluindo aí os artistas” (p. 77).
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Em 31 de julho de 1914, o jornal O Estado de S. Paulo defendia a
necessidade de reprimir o uso de tóxicos, ‘devido aos suicídios em
determinada classe’, que se acentuavam com a chegada de ‘criaturas
mórbidas da Europa’. Essas ‘criaturas’, com a preocupação de se mostrarem
chiques, introduziam o vício entre rapazes. De acordo com o jornal, a cocaína
estava praticamente liberada nas farmácias, e a polícia não as fiscalizava (p.
78).
A Plateia, em 31 de agosto de 1916, voltava a denunciar a venda em
farmácias e a utilização de drogas em hotéis. A Gazeta, de 27 de janeiro de
1917, elogiava a polícia de costume por ter iniciado o saneamento moral
contra os cabarés (p. 78).
O mesmo jornal, em 16 de fevereiro, exigia uma legislação para conter as
casas de tolerância, onde afirmava haver extraordinário consumo de álcool,
morfina e cocaína, criticando, ao mesmo tempo, o esquecimento por parte da
Câmara Municipal dos projetos de Armando Prado e Alcântara Machado (p.
79).
PASSETTI (1991) ensaia a construção do crime de cocaína como parte da
política de vida e do poder sobre os corpos, mediados pelo domínio da medicina e da
penalidade e da moral que impuseram à cocaína o preceito da doença, disposto pela via
da recuperação ou da exclusão social. O corpo contaminado pela cocaína deve estar
dentro da ordem: preso, recolhido e encarcerado.
A cocaína é perigosa porque pode contaminar, o que por sua vez é crime
que deve ficar sob a orientação da lei e da vigilância policial e sanitária. O manto da
contaminação esconde defensores e usuários de drogas, homens de negócios e
pequenos traficantes, gestores do mundo do crime, mas também esconde os artistas, os
criminosos, o homem comum. Em nome da contaminação é acionado o Estado,
objetivando a recuperação, veiculando a exceção como confirmação da regra,
configurando a cocaína como problema social que afeta o bem-estar coletivo.
A delinquência da dependência da cocaína, mais do que participar do manto
da contaminação, é um modo de governo do crime e do castigo, torna-se um fato
singular no processo de normalização do comportamento humano, resultado do discurso
dos códigos penais iluministas e do discurso médico e psiquiátrico.
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O cruzamento desses discursos é compreendido como um inédito regime de
verdade do comportamento humano, que diz respeito à elaboração da ideia de
recuperação e do tratamento do criminoso.
Essas ideias passam a representar a finalidade do desenvolvimento das casas
de correção e de sua transformação na forma da prisão do século XIX, como um modo
de governo do poder disciplinar e um modo de governo do biopoder.
A penalidade concebida nos códigos criminais modernos do século XVIII,
aqueles sob a influência do pensamento iluminista, que no Brasil é a lei de 16 de
dezembro de 1830, tem a preocupação com a transformação do comportamento do
criminoso.
A Carta de Lei de 25 de março de 1824 tem como princípio da legislação
criminal a condição humana. O art. 179 diz que a inviolabilidade dos direitos civis e
políticos tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade. Para garantir
esses princípios, a constituição estabelece que ninguém pode ser preso sem culpa
formada, exceto as estabelecidas por lei, e abole os castigos penais de açoites, tortura,
marca de ferro quente e todas as penas cruéis. Ainda prevê, em termos de lei, organizar
um código criminal fundado nos princípio da justiça e equidade.
Ficam assim promulgados os princípios jurídicos do nascimento da punição
de detenção.
A substituição das Ordenações Filipinas na ordem do crime e do castigo no
Brasil pelo código criminal de 1830 representa a abolição do castigo do suplício e a
introdução gradual do discurso da reintegração do criminoso à sociedade.
A tendência do caráter corretivo da pena que vem se acentuando cada vez
mais no século XIX e XX não existia antes da punição de detenção.
Antes do método corretivo foi utilizado o método da indenização, da fiança
e da pena de morte, estritamente relacionados com o castigo corporal, as galeras, o
açoite, a confissão pública, o banimento.
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65
Na Idade Média, segundo RUSCHE (2004)6, o crime é considerado uma
guerra. O medo da vingança pessoal inibe o interesse pelo crime.
No caso em que o crime é cometido, o direito criminal é representado por
senhores de propriedade, e por meio de uma reunião é feito o julgamento, definido o
delito e estipulada a fiança para a parte culpada, definida conforme a classe social.
Essa situação contribui para a evolução do sistema de punição corporal. Um
culpado que não pode pagar a fiança deve receber castigo corporal, ou em último caso
é trancado em uma prisão, também considerada um castigo corporal.
A pena da fiança tem sua importância pelo interesse fiscal que representa, é
uma receita segura para a administração da justiça penal.
Rusche tem razão de ver aí o efeito de um regime de produção em que as
forças de trabalho e, portanto, o corpo humano, não têm utilidade nem valor de
mercado.
Os mecanismos punitivos têm o encargo de organizar a mão de obra,
convertendo-a, na maior parte, em uma forma de escravidão permitida; sem a moeda
para ressarcir a culpa e sem o desenvolvimento da produção, o corpo humano torna-se
o principal alvo das penalidades, daí a proliferação dos castigos corporais no sistema
de economia servil.
A pena de morte é a punição por excelência, embora não seja a mais
comum; ela está atrelada ao castigo do suplício, pena corporal, dolorosa, atroz e cruel
que impõe a morte de várias maneiras.
Os culpados podem-se ser condenados à forca; durante o suplício, o culpado
pode ter vários membros do corpo cortados, queimados, e depois ser enforcado.
Conforme a gravidade do crime, o culpado pode ser arrebatado vivo e expiar
na roda e depois de morto ter todos os membros arrebentados, pode ser queimado
vivo, ou queimado e depois estrangulado.
A pena leve pode ser a satisfação à pessoa ofendida, admoestação,
repreensão, prisão, abstenção de um lugar, pena pecuniária de multa e confiscação.
O suplicio é uma pena corporal. O corpo é o lugar da verdade do crime por
meio da tortura. A tortura funciona como um ritual que produz a verdade ao mesmo
tempo em que impõe a punição.
6 O livro Punição e Estrutura Social foi escrito por George Rusche e Otto Kirchheimer, sendo os
capítulos do II ao VIII escritos somente por Rusche, sobre os quais faço as referências.
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O corpo é o lugar da aplicação do castigo e da extorsão da verdade, do
mesmo modo que a presunção é solidamente um elemento de inquérito e um
fragmento de culpa; o sofrimento regulado da tortura é ao mesmo tempo uma medida
para punir e um ato de instrução.
Essa estranha economia de punir está relacionada ao ritual político do
soberano.
O suplício faz parte do regime de verdade da penalidade que se constitui
no Antigo Regime até o século XVIII.
O direito de punir é um poder originário do soberano. Um crime é uma
ofensa à personagem do rei, pois a lei vale como vontade do soberano e o castigo vale
como uma réplica a quem o ofendeu.
Nesse período, a punição deve ser concebida como um agente político,
pois na menor infração há sempre um regicida em potencial.
O poder soberano, desde a antiguidade até os tempos modernos, teve a
exclusividade do direito de punir com a vida e o direito de punir com a morte, como
um direito de morte.
Para Aristóteles, o senhor tem poder de morte sobre o escravo; para
FOUCAULT (1988), o direito de vida e de morte “derivava formalmente da velha
pátria potestas que concedia ao pai de família romano o direito de ‘dispor’ da vida de
seus filhos e de seus escravos” (p. 127).
Em ambos os casos, esse direito funciona como um direito assimétrico,
que pode ser simbolizado na forma da morte ou na forma do gládio. Essa figura
jurídica pertence a um tipo de sociedade em que o poder se exercia essencialmente
como instância de confisco, mecanismo de subtração, direito de se apropriar de uma
parte das riquezas. O poder é, antes de tudo, direito de apreensão das coisas, do tempo,
dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida
para suprimi-la.
Na época moderna, o poder soberano de matar em Hobbes, Rousseau e
Beccaria é uma fórmula bem acentuada do poder romano; doravante o discurso do
contrato e da formação regulada do corpo social devem servir de suporte para uma
teoria geral das duas matrizes de poder que estão em vias de consolidar-se com o
poder soberano, a formula geral do governo de punir.
A sociedade, a partir do século XVII, vai conhecer duas formas principais
de poder: o poder disciplinar e o biopoder, que vão representar uma transformação
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profunda nos mecanismos de poder, em especial no direito de punir. Ambas as formas
têm funções de censura, interdição, proibição, mas também de incitação, de controle, de
vigilância, de majoração e de organização e produção das forças, de fazê-las crescer e
ordená-las. O direito de morte vai se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida
e se ordenar em função de seus reclamos.7
As disciplinas vão se desenvolver no século XVII, como um poder do tipo
anátomo-político. Elas tomam a multiplicidade dos homens para redundar em corpos
individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, adestrados e docilizados,
eventualmente punidos. As disciplinas se exerceram na administração dos corpos dentro
das instituições do exército, da escola, do hospital, da casa de correção, da prisão, da
fábrica, na medicina, na justiça criminal, na pedagogia, na psiquiatria, na psicologia, nas
ciências humanas, relacionadas às reflexões sobre tática, aprendizagem, educação,
produção capitalista, ordem social. No espaço penal, as disciplinas são utilizadas na
forma da internação como prática punitiva de correção para a recuperação e tratamento
do criminoso.
O biopoder vai se desenvolver em meados do século XVIII, como uma
biopolítica da população, por meio de controles reguladores que vão incidir sobre a
demografia, a estatística, entre recursos e habitantes; também vai levar em conta o
capital, crescimento da riqueza, de sua circulação e do controle da pobreza.
O biopoder tem sua formação na mecânica da vida e nos processos
biológicos e químicos de proliferação, nascimento, mortalidade, saúde e duração de
vida. É nesse contexto que se enquadra a criminalidade da cocaína, como um fenômeno
de população, como representante de um perigo social, porque concebido como uma
doença social, por isso devendo ser encarada dentro dos procedimentos do ser vivo.
Com a instalação da tecnologia anatômica e biológica que se vai construir
um novo regime de verdade do crime e do castigo, quando o poder de matar dá lugar ao
poder de viver, a enormidade do crime é substituída pela monstruosidade do criminoso,
sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade. Doravante a recuperação e o
tratamento do delinquente fazem parte da instalação da tecnologia anatômica do poder,
concebidos com o surgimento das casas de correção, posteriormente com a punição de
7 O tema da relação do poder disciplinar e do biopoder está presente também na aula de 17 de março de
1976 no livro de Michel Foucault, Em Defesa da Sociedade, publicado pela Martins Fontes em 2005.
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detenção na forma da prisão, com a lei de execução penal e com as legislações
antidroga.
As casas de correções têm o propósito de responder pela exigência da
legislação para mendicância e pelo modo pragmático do uso do trabalho penal.
A essência da casa de correção, segundo RUSCHE (2004), “era uma
combinação de princípios das casas de assistência aos pobres (poorhouse), oficinas de
trabalho (workhouse) e instituições penais” (p. 69).
O objetivo é transformar mendigos, prostitutas, ladrões, vagabundos,
pessoas dadas ao vício em trabalhadores úteis. As casas de correção logo se
espalharam por toda parte e foram a forma necessária de prisão enquanto exploração
do método de trabalho.
No Brasil, a prisão é consagrada no Código Penal como pena principal.
Segundo MOTA (2003), ela deve ser uma casa de correção que deve “representar o
símbolo orgulhoso da virtude sobre o vício, do trabalho sobre a preguiça e a prova
materializada na obra da função regeneradora da moral” (p. XXXI-XXXII).
Justificativa plausível para as casas de correção é a ideia de recuperação do
criminoso, embora nunca levada a sério pelas autoridades da época; contudo, as casas
de correção passaram a constituir-se em referência para o disciplinamento social de
um modo geral.
A normalização do comportamento humano é contemporânea ao processo
de racionalização no comportamento econômico. A moral da prática penal em
sustentar a recuperação do delinquente pela correção do uso do trabalho está vinculada
ao movimento religioso protestante. Segundo WEBER (2001),
o domínio do Calvinismo, como foi introduzido no século XVI, em Genebra
e na Escócia, na passagem do século XVI para o XVII, em grandes partes dos
Países Baixos, no século XVII na Nova Inglaterra, e, por algum tempo, na
própria Inglaterra, seria a forma insuportável de controle eclesiástico do
indivíduo que até então pode existir (p. 20).
O pensamento penal que se constitui com o pensamento jurídico dos
iluministas, nas ideias de Hobbes, Rousseau, Kant, Beccaria, Bentham, tem algo em
comum: a ética ascética, a preocupação em fundamentar a ideia de lei e de trabalho,
69
69
para responder pelos princípios morais da liberdade, da equidade e da justiça, e como
pano de fundo, o princípio de que o homem deve respeitar a lei e obedecer à justiça.
Este princípio passa a constituir os fundamentos do direito penal moderno,
período de ascensão da moral puritana, que tem no centro da atenção a ética ascética
do trabalho humano, base do proibicionismo americano da cocaína.
Segundo WEBER (2001), a origem do ethos capitalista tem sua
manifestação na ética protestante. O estilo de vida ascético liberou o impulso da
aquisição como meio de satisfação pessoal e dever religioso, condição da acumulação
capitalista. A ética ascética transforma o empresário em um juiz moral para a
população ao impor-lhe trabalho incansável e forçado como regra geral da conduta
humana.
A moral ascética foi importante na configuração do capitalismo, mas a
entrada da vida, na forma do poder disciplinar e do biopoder na história, foi um
fenômeno de maior amplitude do que a moral que parecia desqualificar o corpo. A
entrada da vida na história foi indispensável ao desenvolvimento do capitalismo.
As duas matrizes do poder garantiram a inserção controlada dos corpos,
dos indivíduos e da população no modo de produção capitalista e o ajustamento da
população aos processos econômicos, impondo como exigência um crescimento no
reforço, na utilização e na docilidade do indivíduo. Eles constituíram métodos de
majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem deixar de sujeitar com mais
eficiência.
Eles circularam como técnica de poder desde a manutenção das relações
de produção até sua infiltração em todos os níveis sociais: da família à escola, do
exército à polícia, da medicina à administração da coletividade; segregando uns,
hierarquizando outros, garantido, ao mesmo tempo, relações de dominação e de
hegemonização e submissão.
As duas formas de poder sustentaram o modo de produção capitalista, o
ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos
grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro.
O regime econômico da conduta para o trabalho é uma peça valiosa, como a imagem
do homem normal, para o regime de verdade do comportamento criminoso. É o
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momento em que comportamento humano passa a ser uma preocupação da legislação
penal.
No Antigo Regime, o crime é avaliado pelo ato que o constitui, mas
quando a motivação humana começa a fazer parte dos códigos modernos, a punição
deixa de castigar o infrator pelo ato que cometeu, e passa a modular os castigos
segundo os indivíduos culpados. A emergência do regime de verdade do conhecimento
do criminoso está ligada ao modo como a lei e os juízes começaram a se perguntar
pela motivação do crime. O inquérito que devia estabelecer a verdade do crime, o
conhecimento da infração, o conhecimento do autor do crime e o conhecimento da
sanção legal, passa a conceber, como parte do julgamento, a vontade do réu como jogo
da verdade do inquérito.
Essa modificação da justiça criminal do antigo regime para o direito penal
moderno começa quando a justiça criminal se interessa pelo comportamento humano.
É o momento em que delinquência passa a ser filtrada para o comportamento irregular,
como verso da cara da moeda do trabalho.
A delinquência entra na constituição do conhecimento antropológico da
justiça criminal como um epistêmico psicológico-ético, que imputa na infração a
forma do comportamento moral. Esse conjunto epistêmico é marcado pelo limite do
normal e do patológico. O limite entre ambos em relação ao criminoso é um
conhecimento não codificável que entra no julgamento, juntamente com os objetos
jurídicos definidos pelo código, para ajudar a explicar o ato criminoso e fazer com que
o comportamento patológico possa participar da punição.
A ideia de uma conduta criminosa entra no jogo da verdade do crime no
momento em que os códigos penais modernos adotam o princípio das circunstâncias
atenuantes ou agravantes para avaliar e aplicar a punição.
Os crimes julgados pelo código criminal, mediante as circunstâncias
atenuantes ou agravantes, levam em consideração, no veredicto, também, as paixões,
os desejos, os instintos, os impulsos, as agressividades, as perversões, as anomalias, as
enfermidades, as inadaptações, os pervertidos, os monstros, o meio ambiente, enfim,
um conjunto de noções antropológicas, marcadas pelo signo da patologia.
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Essas noções antropológicas estão veiculadas entre a medicina e a
jurisprudência e pretendem explicar o ato criminoso ou sancionar a infração. Esse
modo de punição é uma forma de qualificar, de controlar e neutralizar o indivíduo.
Esses termos são tipos de avaliação para além da verdade do próprio
crime. O poder de julgar passou a fazer parte de um complexo científico-jurídico, com
isso a justiça criminal funciona e se justifica pela requalificação do saber.
O regime de verdade do poder de punir da delinquência é constituído em
referência a dois limites.
Primeiro, as regras de direito que delimitam o poder e os efeitos de
verdade que esse poder produz. O conhecimento do criminoso enquanto
comportamento patológico constituiu-se como uma regra de direito dos códigos
criminais modernos. No início, a figura da loucura para aplicar como exigência das
circunstâncias atenuantes, posteriormente a construção antropológica da conduta da
figura do anormal.
Segundo, a prisão enquanto penalidade de detenção tem uma função
administrativa, mas funciona como uma regra de direito para produzir discurso de
verdade do criminoso, através do conhecimento médico, psiquiatra, especialistas e
peritos das ciências humanas, constitui a outra vertente da entrada do comportamento
humano na penalidade.
Esse regime punitivo incide na liberdade, na detenção e na vida ou morte
do indivíduo. Ele funciona como um discurso de verdade, com estatuto científico, em
uma instituição científica, formulado por pessoas qualificadas, que vem se acoplar a
um dos temas fundamentais da filosofia iluminista, a ideia de que existe uma relação
fundamental entre a verdade e a prática da justiça.
A verdade e a justiça se cruzam no tribunal pelas relações da instituição
judiciária e da instituição médica e do saber científico. A verdade da delinquência é
elaborada na conexão desses espaços institucionais e com esses campos de
conhecimentos, como efeito das relações de poder.
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As múltiplas relações de poder que constituem a delinquência não
poderiam estabelecer-se sem a produção do funcionamento do discurso verdadeiro8.
Não há exercício do poder sem certa economia dos discursos de verdade que
funcionam nesse poder, a partir e através dele. Um fato significativo na construção
deste discurso é a evolução da loucura na penalidade.
Segundo o Código de 1830 no Brasil, não serão julgados criminosos os
loucos que cometerem algum tipo de infração. Eles serão encaminhados às casas a eles
destinadas ou entregues à família, conforme a decisão do juiz.
A prática criminal passa a responder pela doença ou pela responsabilidade
do autor do crime; o crime pode estar relacionado à causa patológica ou a liberdade do
sujeito jurídico; o autor deve ser encaminhado para terapêutica ou deve ser punido.
Enfim, esse código introduz a medicina na penalidade e por meio da influência dela
encaminhar o criminoso ao hospital ou a prisão.
A evolução do conhecimento elaborado psiquiátrico na prática da justiça
criminal vai anular o princípio de que não haverá crime sem uma lei anterior que o
qualifique do código criminal de 1830.
O discurso psiquiátrico desdobra o delito qualificado pela lei em uma série
de comportamentos patológicos que servem de causa do crime, em muitos casos é a
própria matéria punível. A psiquiatria inscreve o comportamento patológico como um
traço individual.
O delito, ato que indica o momento da infração, passa a ser constituído
como uma conduta do indivíduo; o crime deixa de ser um ato para ser um modo
generalizado, como um tipo particular de vida, o delinquente, em que a realidade de
sua infração é deslocada para a sua conduta moral. A lei não deveria incidir no estilo
de vida, nem na escolha ética pessoal.
O comportamento patológico definido pelo conhecimento psiquiátrico é
uma qualificação moral. A infração tal como formulada pelo código, a punição legal é
8 Encontramos tal raciocínio nos livros: Em Defesa da Sociedade, 2005, p. 39-40; Os Anormais, 2002, p.
8-15.
73
73
transferida, como atribuição causal, para as condutas irregulares. A punição passa a ser
um conjunto de técnicas de transformação do comportamento humano.
A verificação da loucura nos códigos modernos é para atestar se no
momento do crime o autor estava em estado de demência e deduzir a responsabilidade
do sujeito jurídico. No começo do século XX, este princípio encontra-se falseado. O
conhecimento psiquiátrico não trata de definir a responsabilidade jurídica de um
sujeito criminoso, tal como foi formulado no começo, trata-se, sim, de constatar a
existência de anomalias mentais na infração.
O foco em questão mudou da responsabilidade do sujeito jurídico para
uma técnica corretiva do indivíduo perigoso curável ou readaptável. O conhecimento
médico e psiquiátrico que conduziu o personagem do delinquente faz parte de técnicas
de normalização do comportamento patológico. A normalização da conduta patológica
do delinquente é efetivada no espaço jurídico quando a psiquiatria passa a funcionar
como uma higiene pública, contra os perigos que a doença pode acarretar à sociedade.
Segundo CANGUILHEM (2002), a instalação das normas higiênicas
supõe o interesse político pela saúde das populações, pela salubridade das condições
de vida, pelos tratamentos curativos e preventivos elaborados pela medicina. A
psiquiatria começa a fazer parte de uma política de regulamentação administrativa9 e
entra na ordem do poder de punir quando a loucura se constitui como perigo social.
O discurso psiquiátrico torna-se uma ciência da conduta patológica quando
introduz a norma como uma regra de conduta e como uma regularidade funcional. No
primeiro caso, faz oposição à desordem e à irregularidade; no segundo caso, a norma é
um princípio de funcionamento das funções normais, o normal que faz oposição ao
mórbido e ao anormal.
Os dois usos da norma, a função de higiene pública e a função médica, vão
permitir que a psiquiatria se generalize em todos os campos da sociedade como uma
ciência da ordem social. Inclusive no que diz respeito à legislação antidrogas, a
recuperação e o tratamento da dependência são a norma do modo de governo da
9 Segundo Foucault, essa nova regulamentação administrativa consolidou-se na lei de 1838 sobre a
internação ex officio. Verifique Os Anormais, 2002, p. 176.
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74
criminalidade e da penalidade, herdeira do processo de normalização do comportamento
delinquente.
A norma a respeito da ideia de Canguilhem, “não se define absolutamente
como uma lei natural, mas pelo papel de exigência e de coerção que ela é capaz de
exercer em relação aos domínios a que se aplica” (FOUCAULT, 2002, p. 62). É o
exercício de poder que funciona como meio de qualificação, de correção, de intervenção
e transformação do indivíduo. A legislação penal antidrogas é uma norma corretiva do
comportamento humano que considera a dependência uma delinquência que pode ser
perigosa, curável ou readaptável.
A legislação penal sobre tóxicos é uma decisão normativa que fixa a ideia
de normal. O resultado dessa definição é a figura do anormal, cuja perspectiva de futuro
é a prática normativa, manifestação da norma na forma de ato. “Não há, portanto,
nenhum paradoxo em dizer que o anormal, que logicamente é o segundo, é
existencialmente o primeiro” (CANGUILHEM, 2002, p. 216).
Pode-se dizer que a norma da recuperação e do tratamento é um exercício
disciplinar, tem como princípio a ideia de homem normal, que enquanto tal só existe no
seu oposto, o anormal, na figura da delinquência dos tóxicos, cuja norma prevista é a
internação psiquiátrica, caso se curável ou adaptável, ou a prisão para o caso em que o
delinquente é perigoso.
A norma enquanto técnica do comportamento tem seu aparecimento como
um termo correlativo da ideia de normal. Tal ideia toma forma através da instituição
pedagógica para designar o protótipo escolar e através da instituição sanitária para
designar o estado de saúde orgânica. A normalização da educação e da saúde pode ter
sido uma expressão de exigências coletivas como sendo um bem particular, sem que
tenha sido uma tomada de consciência por parte dos indivíduos.
O normal é a extensão e a exibição da norma, conceito dinâmico, polêmico
e político, capaz de normalizar qualquer domínio a que se aplique, impõe uma exigência
a uma existência hostil ou estranha e qualifica como torto aquilo que resiste a sua
aplicação. O sentido da norma deve ser procurado na relação normal-anormal. A relação
funciona como uma regra para retificar e endireitar tudo que toma como referência e
depreciar, ao contrário, aquilo que impede de tornar normal dado comportamento ou
75
75
circunstância, com a possibilidade de inverter os termos, como expressão de uma
preferência em substituir um estado de coisas insatisfatório por um estado de coisas
satisfatório. A preferência de uma ordem é acompanhada pela aversão à ordem inversa,
o oposto, portanto, do preferível é o repelido e o detestável. O normal é a própria
manifestação da norma e o homem normal enquanto tal não existe, mas se existisse
seria apenas a ausência da doença, enquanto o anormal é existencialmente o primeiro.
O anormal do século XIX, talvez o do XX, é no fundo um monstro
cotidiano, um mostro banalizado. O anormal vai continuar sendo, por muito tempo
ainda, algo como um monstro pálido. Posteriormente, essa figura menor do crime será
substituída, ainda mais pálida, pela figura do dependente de cocaína, o toxicômano e o
psicopatológico da legislação brasileira.
O regime de verdade do toxicômano ou psicopatológico na Legislação
Brasileira dos Tóxicos funciona na forma de um poder tipo policial, que toma a
armadura do sistema penal como um fato administrativo, ligado aos fenômenos da
população, aos estudos estatísticos da demografia, como um problema de coletividade
humana, sendo a natureza, extensão, duração e intensidade própria das doenças
endêmicas e da higiene pública, como um perigo que deve ser combatido como um
problema da cidade. Por isso, o Estado brasileiro vai criar um departamento nacional de
saúde, redes de serviços sanitários federais, estaduais e municipais, comissão nacional
de entorpecentes. Para FOUCAULT (2008), é um governo “inteiramente administrativo
e uma administração que tem para si, atrás de si, o peso integral de uma
governamentalidade” (p. 51).
A governamentalidade da cocaína pelo Estado brasileiro começa com o
Decreto-Lei n. 891, de 25 de novembro de 1938, que interdita a produção, o tráfico e o
consumo da cocaína. No artigo 2° desta lei tem-se a definição do interdito:
São proibidos no território nacional o plantio, a cultura, a colheita e a
exploração, por particulares, da Dormideira Papaver somniferum e a sua
variedade Album (Papaveraceae), da coca Erythroxylum coca e suas
variedades (Erythroxilaceae) do cânhamo Cannabis sativa e sua variedade
“indica” (Moraceae) (Cânhamo da Índia, Maconha, Meconha, Diamba e
76
76
outras denominações vulgares) e demais plantas de que se possam extrair
substâncias entorpecentes [...] 10
.
A legislação brasileira antidroga é um interdito desde a sua primeira edição,
e as que seguem são um enforço da lei, determinada a partir de uma realidade
institucional, como um conjunto de instrumentos e aparelhos que regulamenta a
fabricação, a transformação e a refinação de cocaína para os estabelecimentos
farmacêuticos, hospitalares, laboratórios e farmácias mediantes certificados concedidos
pela Seção de Fiscalização do Exercício Profissional do Departamento Nacional de
Saúde, ligada à Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, que terá o
encargo de baixar normas sobre a cocaína.
A importação e a exportação da cocaína devem ser realizadas pela alfândega
do Rio de Janeiro mediante Guia para Retirar Entorpecentes e fatura consular e
comercial, em que deve constar a natureza, procedência e origem da cocaína. Sem o
certificado de importação, a venda será considerada contrabando.
A atividade de comércio da cocaína nas drogarias, hospitais, farmácias e
estabelecimentos de pesquisa e ensino será controlada pelo aparelho sanitário e policial.
No uso médico sem licença mediante requisição, será apreendida, incorrendo os
mandatários às penas cominadas ao comércio ilegal de entorpecentes.
O controle da importação e o comércio da cocaína no nível nacional e
internacional vão ser regulamentados pelos ministérios da Agricultura e das Relações
Exteriores e vão envolver as autoridades sanitárias, policiais, alfandegárias e a
Segurança Nacional11
.
A segunda interdição da cocaína, a legislação de 197612
, tem como tema
central a prevenção e repressão do tráfico de cocaína, cuja demanda aponta para um
mercado ilegal da cocaína, ainda singelo, com a presença acentuada da figura do
traficante e do dependente químico. Enquanto a legislação de 1938 tinha a perspectiva
da demanda negativa do comércio ilegal de médicos e farmacêuticos, a de 1976 tem
10
Decreto-Lei n° 891, de 25 de novembro de 1938, publicado no Diário Oficial da União, de 28.11.1938. 11
A política de regulamentação da cocaína pelo Estado brasileiro é do Decreto-Lei n. 891, de 25 de
novembro de 1938. 12
Lei n. 6.368, de 21 de outubro de 1976.
77
77
como perspectiva a prevenção do uso abusivo da cocaína, o que indica que o comércio
da cocaína está se alargando no território nacional.
A interdição de 1976 é um enforco de lei de maior alcance governamental
sobre o tráfico de cocaína que dever da pessoa física e jurídica colaborar na prevenção e
repressão do tráfico de cocaína. Veja o interdito do artigo 1° desta lei que clama por
todas as instituições governamentais em defesa da sociedade:
As pessoas jurídicas que, quando solicitadas, não prestarem colaboração nos
planos governamentais de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso
indevido de substâncias entorpecentes ou que determine dependência física
ou psíquica perderão, a juízo do órgão ou poder competente, auxílios ou
subvenções que venham recebendo da União, dos Estados, do Distrito
Federal do Brasil, Territórios e Municípios, bem como de suas autarquias,
empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações13
.
A inserção da cocaína na Legislação Brasileira dos Tóxicos dá-se sob a
rubrica das substâncias entorpecentes capazes de produzir doenças mentais ou
manifestações psicopatológicas 14 causadas pela dependência química e física 15 , cujo
tratamento médico deve ser condicionado à internação compulsória e à interdição civil.
A internação do dependente químico deve ocorrer quando comprovada a
necessidade de tratamento ou quando for conveniente à ordem pública, verificada pela
autoridade policial, mediante requerimento do Ministério Público, sendo efetivada pela
decisão judicial. Comprovada a doença mental pelo uso reiterado da cocaína, o juiz
determinará a internação obrigatória; pode ser facultativa, quando o requerimento partir
da parte do interessado e comprovada a necessidade do tratamento hospitalar; em caso
de urgência, a intervenção é feita pela autoridade policial, fundada em laudo de exame
médico, e posteriormente é instaurado o processo judicial; também pode ser por um juiz
competente que deve nomear peritos para comprovar a necessidade da observação
médico-legal.
Na legislação de 1938, a internação deve ser feita em hospital para
psicopata, submetido à fiscalização oficial, sendo obrigatório comunicar o processo de
13
Lei n. 6.368, de 21 de outubro de 1976. 14
Este conceito do dependente em cocaína é definido na Lei n. 6.368, de 21 de outubro de 1976. 15
Tanto o Decreto-Lei n. 891, de 25 de novembro de 1938, quanto a Lei n. 6.368, de 21 de outubro de
1976 tanto o consumo da cocaína como uma doença mental devido à dependência física e psíquica.
78
78
tratamento para a autoridade sanitária, policial e para o representante do Ministério
Público16.
Na legislação posterior à de 1976, o tratamento e a recuperação devem ser
feitos pelas redes de serviços de saúde dos estados, territórios e Distrito Federal, em
estabelecimentos próprios para o dependente, sob a coordenação do Ministério da
Previdência e Assistência Social17.
A quantidade de tempo da punição e a qualidade do crime do tráfico de
cocaína da legislação de 1976 são constituídas de um enforço institucional que indica
uma tênue mudança na oferta do mercado do crime da cocaína; indica também que a
legislação de 1938 reforçou o mercado do crime da cocaína no Brasil.
A quantidade de tempo da punição na legislação de 1938 é de um a cinco
anos de prisão, enquanto que na legislação seguinte é de três a quinze anos de prisão. Na
primeira legislação, a penalidade é direcionada basicamente para a instituição médica e
farmacêutica, relacionada à importação e exportação ilegal, ao comércio ilegal feito por
médicos, farmacêuticos, farmácias e profissionais afins que vendem cocaína fora da
determinação legal. E, claro, à figura do consumidor, passivo de internação. Na
seguinte, a figura do consumir pode ser penalizada de seis meses a dois anos.
A pena pode ser agravada, quando o tráfico estiver à extraterritorialidade da
lei; quando o praticante se prevalecer da função pública; quando decorrer de associação
que inclua menor de 21 anos de idade; se ato de preparação, execução ou consumação
nas proximidades de instituições públicas.
A pena pode ser atenuada quando o indivíduo estiver sob o efeito da
dependência química sem a capacidade de entender o caráter ilícito da cocaína.
A constituição de um objeto de segurança pelo Estado, o tráfico de cocaína,
constitui duas peças do dispositivo de segurança, o crime pela delinquência dos tóxicos,
com sua conduta patológica: doente e perigosa. Para doença, a saúde pública, a norma
do confinamento da internação; para o perigoso, a segurança pública, a norma do
confinamento da prisão.
16
O dispositivo de internação é consolidado no Decreto-Lei n. 891, de 25 de novembro de 1938. 17
Lei n. 6.368, de 21 de outubro de 1976.
79
79
No fundo o crime de tráfico de drogas ilícitas funciona como uma
terapêutica, supondo que uso recorrente da cocaína pela população seja um fator de
vulnerabilidade, risco e dano à saúde, interferindo na qualidade de vida das pessoas.
A lei do tráfico de droga tem o propósito de restaurar a saúde pública da
população vulnerável, e a penalidade, o de proteger a sociedade das pessoas que se
utilizam da cocaína, discurso em moda, muito utilizado pelo conhecimento científico
das ciências humanas e da ciência médica.
O consumo habitual da cocaína definida como toxicomania18
vai ser considerado
no espaço das endemias, como uma doença que apresenta fatores permanentes próprios
de uma determinada população, como subtração das forças, redução do tempo de
trabalho, custos econômicos de baixa produção e com tratamentos. Essa regulamentação
acarreta consequências de incapacidade e de neutralização dos indivíduos,
correlacionada à racionalidade ecológica dos recursos sustentáveis da Amazônia.
18
Veja o Decreto-Lei n. 891, de 25 de novembro de 1938.
80
80
3. O PODER ECOLÓGICO
1. A economia da borracha
A manifestação do poder na história da cocaína na fronteira amazônica
torna-se uma peça política na expansão e ocupação do território brasileiro através da
economia da borracha e da cocaína. Com a decadência da produção da borracha, a
economia da cocaína consolida um tipo de poder através da produção, comercialização
e consumo do alcaloide da coca que interfere na política e na economia nacional e
internacional e na política ambiental mundial, como objeto de conhecimento científico-
médico, filosófico, econômico, criminológico, e penal, desde o século XIX até o século
XXI, que se chama de poder ecológico, a forma da governamentalidade dos recursos
sustentáveis que teve sua genealogia no Antigo Regime. Com a intensificação e a
complexidade da realidade colonial e do confronto das múltiplas relações de poder,
atrelado ao avanço do capitalismo internacional na região amazônica, a fórmula do
poder ecológico toma vida e cresce com os impactos produzidos pela ocupação do
território pelo colonizador, pela regulação da população indígena pela Companhia dos
Jesuítas e mais tarde pelos carmelitas, que enquanto tal participaram juntamente com o
regime, do aviamento do modo de produção extrativista e das suas respectivas formas
de resistência indígena relacionada aos processos de ocupação humana e exploração dos
recursos naturais, de artefatos primários e de práticas culturais, que teve início com a
colonização europeia no século XVI, marcado por conflitos entre os povos amazônicos
e os europeus, em especial os portugueses e espanhóis, e entre eles pela posse do
território da fronteira19
amazônica que compreende o limite entre o Brasil, o Peru e a
Colômbia, continuada com os estados nacionais em meados do século XIX através do
extrativismo da borracha e no século XX através da economia da cocaína, que vai
predominar até o século XXI através da presença do que podemos chamar de
brasileiros, colombianos e peruanos entre outros, com predominância na realidade do
crime organizado global e local, em conjunto com o tráfico continental amazônico e na
forma do governo ambiental mundial.
19
Mapa da fronteira do Brasil, Colômbia e Peru.
81
81
As relações do poder ecológico constituíram fenômenos emergentes e de
interlocução mundial, imprimindo cada uma em sua época uma configuração distintiva
na formação econômico-social da Amazônia no que diz respeito às mudanças culturais,
aos processos de domínio da natureza, as formas de ocupação econômica e humana, do
mesmo modo como determinaram os processos de apropriação da terra, de organização
de recursos e espaços, de utilização da população. O cruzamento dessas forças
imprimiram o drama e a ordem vigente da formação econômica da Amazônia que,
segundo SILVA (2013), é uma região marcada por ciclos e interciclos dentro dos
processos de prosperidade e crises mundiais, situada nos acontecimentos do
mercantilismo, absolutismo e colonialismo do Antigo Regime e na transição para
capitalismo. As relações de poder do látex e da coca vão acentuar movimentos amplos
na região e dinamizar a realidade da economia mundial; concatenados ao poder
ecológico, podem caracterizar a modernidade da Amazônia e da sociedade
contemporânea. Na dinâmica das relações mundiais de poder, a Amazônia é vista como
ponto de convergência do mercado mundial da economia da cocaína, mas também
“como um espaço geopolítico, um paraíso fiscal, um patrimônio da humanidade, uma
82
82
zona econômica emergente, um banco genético planetário” (SILVA, 2013, p. 11), que
insere a estrutura política, econômica e ambiental da cidade de Benjamin Constant em
uma realidade mundial das relações de poder, dado que o mercado econômico da
cocaína não para de se estender do Ocidente ao Oriente, a princípio alimentando a
máquina farmacêutica, e doravante a máquina do crime organizado e a demanda
recreativa de massa.
O poder ecológico é uma forma de governo do homem amazônico
direcionada para os fenômenos de mercado, funciona como uma política de controle
da sustentabilidade amazônica, que na sua forma espanhola e portuguesa agiu
basicamente na relação de trabalho indígena compulsório e na pesca, caça, lavoura e
coleta de produtos como cacau, cravo, quina, salsaparrilha, coca, seringa, entre outros.
Essa situação perdurou por todo o período colonial e em grande parte do século XIX,
chegando mesmo a conservar essas características com o extrativismo da borracha e
mais tarde com o extrativismo da coca.
A Amazônia entra nas relações do poder ocidental pela disputa do território
do Alto Solimões entre portugueses e espanhóis. A fronteira da Amazônia que
corresponde atualmente ao Alto Solimões no século XVI tornou-se parte da colonização
espanhola através da expedição de Gonzalo Pizarro/Francisco Orelhana. Com a
decadência da exploração aurífera em fins do século XVII, o território entra em total
abandono com a destruição dos estabelecimentos espanhóis pelos portugueses e a
expulsão dos jesuítas a serviço da Espanha, em particular Samuel Fritz, que haviam
estendido as missões até o Alto Solimões e defendido os indígenas dos portugueses
caçadores de escravos. Por sua vez, os portugueses, baseados nos feitos de Pedro
Teixeira, reivindicavam a posse sobre o território do Alto Solimões. Com efeito, nos
primeiros anos do século XVIII, os jesuítas de Espanha retiraram-se da região, que
passou para a responsabilidade da Ordem dos Carmelitas portugueses. Mais tarde, os
tratados de Madri (1750) e de Santo Ildefonson (1777) sacramentaram a posse
portuguesa até a confluência do rio Javari.
A crônica de Gaspar de Carvajal dá conta de uma população muito
numerosa vivendo nas margens dos rios Amazonas e Solimões. Menos de um século
mais tarde, a situação havia se modificado. Os missionários encontraram uma população
bastante reduzida e alterada pela presença direta ou indireta dos europeus. A redução da
83
83
população do Alto Solimões é o efeito direto do confronto do poder colonizador
espanhol e a resistência do povo indígena pelo controle político da matéria-prima do
ouro. As consequências foram a subtração da população pela doença, pela escravização,
pela punição ou mesmo pela morte, do mesmo modo também, agiu na forma da
resistência pela guerra e pela fuga e pela própria extinção do índio. Esse fenômeno se
acentuou nas décadas seguintes, de modo que, em meados do século XVIII, quase todos
os povos que habitavam a várzea do Amazonas estavam extintos ou reduzidos, e muitos
outros haviam fugido para os altos cursos dos afluentes.
A extinção dos Omágua faz parte da política de penetração do poder
ecológico europeu na região amazônica. Eles viviam na região do Alto Solimões cujo
território pelo Tratado de Tordesilhas, pertencia à coroa espanhola. O conhecimento
tradicional da matéria-prima do látex pertenceu aos Omágua, que no século XVIII
tiveram suas propriedades e suas utilidades transmitidas para os portugueses, através
dos escritos de Charles Marie de La Condamine.
A presença populacional dos Omágua indica que a colonização não se
realizou em espaço vazio; ao contrário, no centro da disputa política pelo território e
pelos recursos estão o colonizador espanhol e os povos amazônicos, ocupantes
originais. O processo de redução dos Omágua vai predominar até o século XVIII,
quando são substituídos pelos índios deslocados para os aldeamentos missionários que
se espalharam de leste a oeste, ocasionando uma grande mudança na composição étnica
e cultural das várzeas amazônicas. O colonizador havia provocado o despovoamento da
área indígena remota por meio de expedições de coleta de produtos da floresta e do
comércio escravo.
O comércio ilegal foi um meio usado pelo poder ecológico para consolidar o
controle dos meios de sustento. Segundo COSTA (2009), os colonizadores
manipularam as rivalidades das tribos indígenas para comercializar prisioneiros
capturados em guerra, mulheres e crianças raptadas de tribos inimigas trocadas com
alimentos, tecidos, utensílios, meio pelo qual suprimiram a necessidade de mão de obra
escrava. A incorporação dos índios à sociedade colonial se deu por meio de três
estratégias: a violência física por meio de guerras, escravização, punições; as alianças
para o intercâmbio de bens ou para a guerra, construídas entre colonizadores e
diferentes povos indígena (as expedições portuguesas de conquista dos amazônicos
eram compostas por índios armados); e, ainda, a conversão ao cristianismo, por meio da
atuação de diversas ordens religiosas.
84
84
No final do século XIX e na entrada do século XX, a cidade de Benjamin
Constant participa da racionalidade do poder ecológico da econômica da borracha. O
controle político do látex é uma ecopolítica que se constituiu na Amazônia na forma de
uma governamentalidade dos meios naturais, das tecnologias de poder e das
racionalidades de governo acopladas às relações de produção capitalista, inserida nos
processos e nas forças mundiais. O exercício do poder ecológico, articulado ao
desenvolvimento da ciência e da indústria automobilística, se concretiza em forças
produtivas e em produção de riqueza que se estendem e disseminam em todos os setores
da sociedade extrativista. A extensão e a expansão do mercado amazônico nas
economias centrais é o efeito da conexão do poder ecológico com o capital internacional
que deu vida e movimento ao processo de trabalho dos seringais e a sua transmutação
dos limites dos processos locais para os processos globais. Segundo SILVA (2013), o
nivelamento das condições de produção, de circulação de técnicas, pessoas e
mercadorias, longe de homogeneizar essas relações, produziram desigualdades e
diferenças estruturais nos processos de acumulação e de concentração de capitais, no
processo de urbanização e na exploração do trabalho indígena e nordestino.
A articulação do poder local e global na forma política de controle dos
recursos vai constituir novas relações de controle na expansão do território, impondo
novos mecanismos de poder sobre as relações de trabalho que doravante vão reeditar o
controle da população pela força física, pela punição, pela morte, não mais sob o poder
soberano do espanhol e do português, mas pelas relações de poder da racionalidade
ecológica sob o comando dos novos personagens da tríplice fronteira. Os brasileiros,
os colombianos, os peruanos, motivados pelos estados nacionais, vão comandar a
exploração da borracha do rio Marajó em direção ao rio Solimões, Purus, Japurá e
Negro, Vaupés, Caquetá e Putumayo.
Quando a produção da borracha alcançou nível elevado, a população de
Benjamin Constant cresceu, chegando a 20 mil habitantes. Esse crescimento está
relacionado às secas do Nordeste brasileiro, que empurra milhares de pessoas para
trabalhar nos seringais; só do Ceará, mais de 65 mil pessoas partem para o Amazonas,
fugidas do flagelo natural da seca e da crise da economia agrária. Juntamente com a
população indígena, esse contingente humano vai servir de mão de obra nos seringais,
avançando a fronteira do extrativismo. Essa demanda foi afastando os índios da margem
dos principais rios para o interior e para as cabeceiras dos igarapés e dos rios – foi o que
85
85
aconteceu com os Iicuna, Witotos, Borás, Cocama e outros, que ao passar a febre da
borracha voltaram a morar nas margens do rio Solimões.
A economia da borracha alcançou em 1910 um quarto da exportação
brasileira. Na cidade de Benjamin Constant, a goma elástica tornou-se o principal artigo
de exportação, sua fonte de receita. A cidade possuía movimento de dinheiro, faziam-se
excelentes negócios. Os vapores chegavam cheios de mercadorias e saíam carregados de
produtos. Segundo SOUZA (2009), a borracha se tornou um produto universal e ubíquo,
no tempo dominado pela madeira, ferro, aço, couro e tecidos. A substância elástica que
escorria das árvores da floresta tropical era inigualável, podia ser dobrada, inflada e, à
prova d’água, não conduzia eletricidade, absorvia impactos; quando esticada, voltava à
forma original em um piscar de olhos. Era a chegada da segunda revolução industrial.
“As máquinas precisavam de um material como aquele, que absorvesse os impactos nas
junções das peças mecânicas, que servisse para cintas flexíveis, que fizessem as
engrenagens moverem-se suavemente sem desgastes, além de proporcionarem às
bicicletas e demais veículos às rodas pneumáticas de borracha” (p. 257).
Segundo COSTA (2009), no princípio, o látex teve apenas uso local na
impermeabilização de roupa e calçado; com o advento da vulcanização, o látex entra
produção industrial, cuja demanda mundial aumentou a “ponto de ocasionar um boom
comercial que durou cerca de 70 anos e alcançou, com diferente intensidade, todos os
países amazônicos então independentes” (p. 13). O poder ecológico tomou como seu
principal alvo o coronel de barranco, os moradores da região e a população de
nordestinos e de outras nacionalidades. Na exploração do trabalho indígena, as relações
de poder de resistência são colocadas em prática pelo povo ticuna e pelos índios do rio
Javari que não cederam ao interesse de submetê-los como mão de obra barata e como
trabalho escravo, mas de um modo geral o poder ecológico absorveu e organizou a
população composta de cristãos católicos, missionários, comerciantes de todos os tipos,
mas em especial o comércio do aviamento, que representou uma de espécie de
administração do ambiente da floresta amazônica. O poder adicionou ao ambiente
amazônico uma parte significativa da população nordestina submetida aos domínios do
coronel da borracha; levando a economia a momentos de bonanças e momentos de crise,
alternando o sentido da cultura, da arquitetura e da moral, mas principalmente
carregando consigo como uma sombra todo o peso da ilegalidade do contrabando da
borracha. A crise da economia da borracha está relacionada aos novos movimentos da
economia que interrompem a mobilidade das pessoas, dos recursos e das mercadorias e
86
86
desvia essa realidade para outras zonas de trânsito da economia e das relações
internacionais. Segundo SILVA (2009), “a chamada crise da economia regional é,
predominantemente, uma forma local de repercussão das crises de expansão e
reajustamento da economia mundial” (p. 13).
O foco do poder ecológico não se encontra mais na fronteira de uma
população, de uma cidade, muito menos de uma comunidade; por fim, não se trata de
uma instituição ou de um governo em particular, espaço do exercício do poder
disciplinar e do biopoder, mas se encontra na fronteira de um governo continental, que
ultrapassa a fronteira da população de um país e capta forças históricas e tensões
internacionais.
A política humana do poder ecológico é permeada pela variedade da cultura,
língua e costumes, perpassada e permeada pelos fatores ecológicos. A diversidade da
Amazônia é a construção da racionalidade ecológica que constituiu uma síntese entre o
humano e natural. O que chamamos de homem amazônico nada mais é do que o
exercício do poder ecológico em habilitar populações inteiras a determinado regime de
governo que podemos chamar de sustentável. Segundo SOUZA (2009), o poder
amazônico pode ser descrito no Relato de um certo oriente de Milton Hatoum.
Assim é a identidade da Amazônia. Um corpo formado pelos rios enorme,
pelas selvas brutalmente dilaceradas, pelos povos indígenas dizimados, pela
saga dos homens pela conquista da natureza. Mas ao mesmo tempo não deixa
de estar perenemente voltada para Meca, que é a própria Amazônia, um
espaço tão vasto quanto a crença, capaz de fazer a geografia confluir para
pedra negra que dentro de nós indica que somos da Amazônia, filhos da
mata, filhos das águas (p. 18).
Os armazéns que se localizavam na região da tríplice fronteira compravam
borracha de Benjamin Constant. Com a crescente exploração dos seringais do Javari,
Benjamim Constant passa a ser um centro comercial, atraindo os grandes capitais. O
valor menor e a facilidade da tarifa aduaneira peruana na fronteira estimulavam o
contrabando da borracha brasileira. O comerciante encontrava vantagens em vender a
borracha no Peru, pela facilidade de transportá-la para a outra margem, aproveitando-se
da diferença sobre tarifas. As mercadorias dos armazéns peruanos eram vendidas por
preço inferior aos da sua vizinha brasileira. A transferência da borracha para o Peru, por
via ilegal, era realizada por um valor inferior às transações legais, o que favorecia a
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saída da goma proveniente do Peru. Segundo JOBIM (1943), a produção “era desviada
e embarcada como de procedência daquele país. A nossa borracha desnacionalizava-se,
e era vendida como oriunda dos seringais do Marañon e Maina” (p. 173-180).
O contrabando da borracha cresceu de tal maneira que os perniciosos efeitos
se fizeram sentir pelo governo brasileiro. Tornou-se visível o declínio da borracha da
margem brasileira do Javari, do rio Juruá e Solimões, que devia aumentar a produção, o
que não sucedeu. A borracha desviada para o Peru provocou um prejuízo para as rendas
estaduais, enquanto aumentava a renda de Iquitos. O produto era exportado como de
origem peruana. Segundo JOBIM (1934), em 1904, Francisco Benedito da Fonseca
Coutinho, vice-governador do Estado em exercício, tinha plena consciência da
ilegalidade visível provinda da extensão da fronteira com o Peru, pelo rio Javari, o que
impede de haver uma fiscalização perfeita. Isso facilita o transporte de gênero brasileiro
para a margem da república limítrofe, onde a benignidade excessiva dos direitos de
exportação concita ao contrabando. O discurso do funcionário público Pedro Bandeira,
da Coletoria de Rendas do Javarí, escrevia em 1901, sobre o contrabando dos rios
afluentes do rio Javari. O curso do rio Javarí dispõe de três tributários que nele
deságuam pela margem direita, rasgando em grande extensão o território nacional,
sendo o menor deles o rio Santana, que fica mais distante dos pontos fiscais. Seguindo-
se depois o rio Curuçá, finalmente chega-se ao maior deles, o rio Itecoaí, que deságua
um pouco mais perto da confluência do Javarí com o Solimões. O rio Santana não
possui fiscalização. O rio Curuçá tem uma pequena, que não impede o contrabando. O
rio Itecoaí está sob a inspeção direta do chefe da Coletoria, “não oferecendo imunidade
àquela enfermidade, que arruína surda e violentamente, graças às comunicações que
entretém, em vários pontos distantes de sua foz com o próprio rio Javarí, por meio de
varadouros ou desaguadouros dos lagos das terras intermediárias, os quais estabelecem,
por ocasião das cheias, franeas passagens, tanto a canoa, como até lanchas a vapor” (p.
179).
A população de Benjamin Constant em 1903 reduziu para mais ou menos 10
mil habitantes com a desvalorização da borracha. A queda do preço da borracha tornou-
se irreversível, sem poder concorrer com seu similar asiático. Vai ser acompanhada pelo
fim do poder ecológico do látex, relacionado à falência de capital na região, desativação
de linha de transportes, abandono da área, fechamento de casas comerciais, redução da
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população e desaparecimento de vilas. Logo desapareceu com ela a atividade do
contrabando borracha.
Na Amazônia brasileira, por exemplo, a população regional, que havia
crescido a taxas elevadas entre 1850 e 1910, passando de 200 mil para 1 milhão e 200
mil habitantes, caiu para pouco mais de 1 milhão em 1920. Muitas áreas incorporadas
de produção do látex foram abandonadas. Algumas conexões motivadas pelo comércio
da borracha no âmbito dos territórios nacionais e no plano internacional fragilizaram-se
e se desfizeram. O sistema produtivo e as relações do poder cológico entraram em
processos relativamente independentes de adaptação à nova situação, em geral por meio
de atividades já desenvolvidas, mesmo em caráter secundário, durante o auge da
borracha. Essa adaptação envolveu a diversificação das atividades extrativistas para o
comércio em proporções reduzidas da extração madeireira, coleta de resinas, caça para
comercialização do couro e o extrativismo da coca, este último mais relacionado ao
território peruano e colombiano.
O poder ecológico do látex criou raízes com a ilegalidade do contrabando da
borracha, ultrapassando a fronteira dos países amazônicos e entrando na história das
tensões internacionais. Na incapacidade de se adaptar às intempéries da floresta, o
poder ecológico do látex entra em crise e morre. E logo renasce pela racionalidade
ecológica da matéria-prima da cocaína. Segundo SOUZA (2009), o sistema
extrativista empurrou milhares de trabalhadores para regiões distantes, “invadiu terras
indígenas, assegurou a posse de territórios para os Estados nacionais. Gerou uma elite
frágil e subserviente que seria pasto fácil para as novas opções econômicas que
estavam por vir” (p. 297), com a globalização do comércio da madeira e da cocaína.
2. A economia da madeira
O poder ecológico do extrativismo da madeira faz parte da
internacionalização da economia que insere a cidade Benjamin Constant no processo de
globalização e no desenvolvimento do sistema capitalista na Amazônia. A economia da
madeira pertence ao contexto da industrialização de ponta, ao momento da
transformação da atividade de subsistência em agroindústria, concomitante com o
extrativismo mineral e fundamentalmente com a implantação da infraestrutura dos
meios de comunição e meios de transportes que vão tornar viável o capitalismo da
madeira, tornando a produção e a circulação da matéria-prima compatível com a ordem
econômica mundial e incompatível com a autonomia e os direitos dos povos indígenas
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e com os processos de delimitação das terras dos índios do Alto Solimões e do rio
Javari. Segundo SILVA (2013), “a autonomização dessas estruturas e processos, livres
dos entraves institucionais e locais, liberou forças transnacionais para articulações
econômicas descentralizadas, desterritorializadas, reterritorializadas e comandadas a
distância” (p. 12). Essas relações de forças são canalizadas pelo poder ecológico e vão
se constituir em fio condutor das formas globais da economia, formalizando um
processo de integração com as formas locais da economia da madeira e sua conterrânea,
a economia da cocaína, que transpondo os limites do território nacional e das formas
culturais, vão impor uma nova territorialidade e a reabertura de novos confrontos com
os povos amazônicos.
No curso da exploração da borracha, da madeira e da cocaína pelo processo
capitalista, tanto pelos meios legais quanto pelos ilegais, as populações indígenas foram
várias vezes vencidas, embora recentemente, com a globalização das questões étnicas,
essa problemática transcenda a política nacional com uma força persuasiva em que os
direitos de autodeterminação dos povos amazônicos são bem recebidos nas relações de
poder internacional para a recuperação de sua territorialidade. Segundo SILVA (2013),
a luta indígena pela demarcação de terras ganha simpatia da cidadania mundial e a
adesão explícita de blocos, entidades e instituições influentes nas relações de poder da
ordem global. Ganha, também, opositores declarados (p. 15). O impacto do poder
ecológico das três economias na nova configuração do território e da população no que
diz respeito à depredação do meio ambiente e ao genocídio das populações tradicionais
pode ser visto como uma ressignificação física e política continental e local que chama
a atenção do mundo para os interesses planetários sobre a biodiversidade, a proteção
aos ecossistemas e as suas populações regionais. O poder ecológico na metamorfose da
Amazônia continental em Amazônia planetária vai compor o processo civilizatório de
uma política ambiental correta que podemos chamar de cidadania mundial, atrelada à
concepção de que os sistemas naturais são indissociados do sistema planetário, por isso
a sobrevivência da terra depende do equilíbrio entre ambas as partes. Frente a essa
problemática, o perfil predatório do poder ecológico é metamorfoseado para as
questões do desenvolvimento sustentável, do zoneamento ecológico e do futuro do
planeta e fundamentalmente está ligado ao debate global sobre proteção ambiental,
pesquisa científica e mobilização política mundial. Segundo SILVA (2013), esses
elementos também podem significar “perspectiva de recolonização da região e
tendência de reinvenção da natureza, seja com sentido refundador do espírito
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comunitário de regiões, povos, saberes, práticas, seja com princípios de autonomia e
solidariedade como possibilidade ética de uma ordem política emergente” (p. 15).
A economia da madeira de Benjamin Constant vai chamar a atenção do
mundo pelo desmatamento do meio ambiente, pelo conflito com as populações
indígenas do Alto Solimões e da região do rio Javari e, sobretudo, a questão agravante
do contrabando de madeira que sobrecarrega a política ambiental correta. A ilegalidade
da madeira local tem uma peculiaridade singular e uma dinâmica própria, dentre outras
infrações.
Segundo LEONARDI (2000), com a estagnação da economia da borracha
nos anos 40 tem início a economia extrativista da madeira no Vale do Javari, o que
igualmente aconteceu no rio Jutaí e Jandiatuba. A entrada de madeireiros em terras
indígenas ocasionou vários conflitos armados com os índios até os anos 50. Nos anos
70, a Petrobras começou a fazer trabalhos de pesquisa e prospecção de petróleo e gás
natural, o que provocou novos e sérios conflitos armados, com mortes de ambos os
lados. Só então a Funai começou a atuar no Javari, estreitando o contato com os
Marubo, Kanamarí e Kulina (Pano) e promovendo a atração dos Matís, que foram
finalmente contatados.
A cidade de Atalaia do Norte está localizada à margem direita abaixo do rio
Javari, ligada a Benjamin Constant pela Perimetral Norte. O isolamento do vale do
Javari, a nove dias de viagem de Atalaia do Norte até os índios Mayorúna do Igarapé
Lobo, e sua distância do centro urbano criam uma mentalidade de rejeição em relação às
leis do Estado, como se o isolamento amazônico lhe garantisse uma espécie de direito
de extraterritorialidade de vender madeira para os peruanos sem pagar imposto e pagar
um preço irrisório para os índios que derrubam e carregam as toras de madeira, direito
de se armar contra os órgãos governamentais que nos anos 90 tentaram legalizar a
extração da madeira. Mais evidente é nos locais remotos, onde a lei é feita por aqueles
cuja acumulação pela força tem raízes históricas.
A maior fonte de renda legal é a extração de madeira, além de grande parte
de sua extensão geográfica ser constituída por territórios indígenas. A atividade
econômica predominante é o extrativismo da madeira desde a metade do século XX.
Nos anos 40 e 50 o beneficiamento da madeira era feito em Manaus. Nos anos 70
estavam instaladas duas serrarias em funcionamento no Solimões e no Javari, duas
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serrarias elétricas na cidade Atalaia do Norte e quatro no Peru, na fronteira com
Benjamin Constant.
A atividade madeireira no início foi muito mais intensa na região do que
atualmente, com a forte pressão do órgão ambiental sobre a extração da madeira em
área indígena. A atividade diminuiu muito, passando para o lado do rio, no Peru, que
absorve trabalhadores brasileiros, e na Colômbia, onde é mais controlada. Além disso, a
estruturação da rede transporte fluvial, seja com destino a Iquitos, subindo o rio
Solimões, seja com destino ao mercado europeu e americano, descendo em navio o rio
Solimões, passando pelo rio Amazonas até Belém, ou ao centro do território
colombiano pelo rio Putumayo e pela região brasileira pelo rio Iça, contribui com a
diminuição do movimento madeireiro de Benjamin Constant.
A atividade envolve pequenos extratores autônomos, que entram na selva
para selecionar e retirar as madeiras e vendê-las às madeireiras, mas também
pequenas e grandes madeireiras que extraem madeiras de acordo com planos
de manejo (NOGUEIRA, 2009, p. 177).
No auge da atividade madeireira, entre 1987 e 1992, os madeireiros
extraíam madeira com ajuda dos índios e com o consentimento da Funai. Os
madeireiros subiam as cabeceiras dos rios do vale do Javari, em terras indígenas,
derrubavam as árvores e transportavam-nas (desciam) na forma de tora, na época da
enchente, pelos igarapés até os rios das cidades de Atalaia do Norte e Benjamin
Constant. Com as leis ambientais e a delimitação das terras indígenas, a extração de
madeira diminuiu bastante, embora tenha continuado porque responde pela necessidade
de construção de casas no centro urbano e em território ticuna. Denunciados pela Funai
em 1995 e 1996, órgãos federais como o Ibama, a Polícia Federal, o Exército e a própria
Funai começaram a exercer um controle sobre a extração da madeira. Houve muitas
apreensões de madeiras ilegais, gerando descontentamento geral entre empresários,
inclusive aqueles que eram financiados por bancos oficiais, deixando muitos
trabalhadores desempregados.
Segundo SILVA (2010), a maior parte das indústrias madeireiras está
desativada, outras funcionam precariamente. As empresas que têm plano de manejo
autorizado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental do Amazonas (Ipaam) e pelo Instituto
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Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais e Hídricos (Ibama) têm uma
pequena produção que não consegue atender as necessidades locais e funcionam sobre
forte pressão dos órgãos fiscalizadores. Alguns madeireiros conseguem burlar a
fiscalização e permanecer na clandestinidade. A extração da madeira é tradicional com
motosserra, machado e terçado, depois é serrada em forma de pranchas no próprio local
ou puxada para as margens de rios e igarapés mais próximos, onde é amarrada às canoas
ou aos barcos, sendo transportada via fluvial. Esses trabalhadores enfrentam e convivem
com o medo da apreensão do produto e perda de sua liberdade. Alguns movimentos
dentro da perspectiva da sustentabilidade têm intenção de obter certificação para
recuperar o papel relevante da madeira para o desenvolvimento local. O setor
madeireiro é um potencial, mas deve estar relacionado a formas sustentáveis de
exploração. Islândia, no Peru, a indústria exporta a produção de molduras de alta
qualidade para o México e Estados Unidos.
A cidade de Islândia, situada em frente à cidade Benjamin Constant,
segundo STEIMAN (2002), foi muito beneficiada pelo aumento do controle da
atividade madeireira pelas autoridades brasileiras no rio Javari, em 1994, quando foi
proibida a extração ilegal de madeira em áreas indígenas. As atividades de
beneficiamento de madeira para exportação, que se realizavam sobretudo em Benjamin
Constant, migraram para a cidade de Islândia. A procedência da madeira, no entanto,
ainda é o município de Benjamin Constant, que se encontra em terra firme, ao contrário
do lado peruano do mesmo rio, em que predominam as terras de várzea. Grande parte da
madeira obtida em toras vem das florestas brasileiras; após extraída e levada aos rios, é
atravessada para o lado do Peru, impossibilitando a fiscalização e concretizando o
tráfico internacional de madeira e a clandestinidade do trabalhador. Dentre as árvores
ainda mais cortadas estão o marupá, maçaranduba, o louro, o angelim, o cedro, a
macacaúba e o acapu.
Sem levar em conta a ilegalidade da madeira, os conflitos mais comuns
estavam relacionados à divisão e demarcação de terras, desavença entre vizinhos,
julgamentos sobre a vida alheia; fatos singelos ou de valores consuetudinários que
constituíam em processos circunscritos no cartório da cidade.
Além desses conflitos minúsculos de caráter moral, pode também ser
encontrado um corpo institucional e jurídico, com características de mando e
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obediência, conduzidos pelos proprietários latifundiários, cujos personagens são
comuns, como o coronel, o cabo eleitoral, o compadre, o afilhado, o chefe político, o
seringalista, o regatão, o pescador, o aviador, o pesquisador, o professor, e fatos
relacionados à perseguição aos inimigos e adversários políticos.
Dessa miscelânea de beligerância, alguns chegam às delegacias e até aos
juízes; no mais, a cidade não propicia a generalização da doença mental – quando há, é
insipiente, pode-se contar a dedo. Segundo ARAÚJO (2003), a prostituição, do mesmo
modo, é silenciosa e tímida, quase não mostra a cara na cidade; ao contrário, a
reincidência da criminalidade infanto juvenil é perceptível na delegacia da cidade.
JOBIM (1940) utiliza o discurso de alguns homens públicos para se referir
à índole do amazonense em relação à lei e ao crime. Diz Tenreiro Aranha: a índole do
filho do Amazonas é naturalmente pacífica e branda. Os relatórios de setembro de 1858
dos ex-presidentes da província expressam as melhores referências ao caráter pacífico,
ao bom senso e ao respeito à lei dos amazonenses. O administrador Manoel Gomes
Corrêa Miranda, em 1885, aludia à índole dos amazonenses como dócil e moderada,
com amor pelas instituições e sem tendência para os mais horrendos crimes, que
acontecem em outros lugares. Para Francisco José Furtado, os assassínios são mais
específicos, encontrados entre pessoas de baixa condição em estado de embriaguez,
errantes nas praias e matas, entregues a toda sorte de licenciosidade das paixões e dos
instintos. Suposição que é refletida na estatística judiciária, em que quase não se
encontram os delitos de roubo, moeda falsa, resistência, fuga de presos. Crimes contra a
propriedade eram raros.
3. A economia da cocaína
O extrativismo da folha da coca ou do epadu e a cultura da mastigação, do
fumo e inalação do pó da coca ainda hoje são parte fundamental de alguns povos dos
países amazônicos. Muitos povos do Brasil, do Peru e da Colômbia mantêm o hábito de
mascar as folhas do epadu preparadas com folhas torradas e misturadas com elementos
alcalinos, transformadas em pó e agrupadas em pequenas bolinhas. Os homens e as
mulheres mais idosos ingerem o pó várias vezes ao dia, utilizando colheres de osso.
Além do valor nutritivo, esses indígenas buscam o bem-estar e a ação euforizante que
fazem parte do seu cotidiano; do mesmo modo, a cultura da cocaína retorna às cidades
da fronteira do Alto Solimões, não mais como hábito regular de um grupo exclusivo de
pessoas, mas como uma cultura de massa relacionada entre o local e o global, envolvida
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com o modo de produção extrativista, com o fomento da criminalidade em nível de
cidade, território, população nacional e internacional, com o aumento da população e da
riqueza nas cidades amazônicas, como modo de existência, de subsistência e de
sustentabilidade, mas também envolvida com o conhecimento científico-médico e com
o discurso de massa de que a cocaína é uma enfermidade que poder ser curada e em
defesa da humanidade criaram-se cinturões de segurança, de forças especiais, de teses
científicas, de projetos humanitários, de prisões superlotadas ao presídio especial de
Pablo Escobar, cujo terrorismo abalou a política nacional e internacional, globalizando
sem procedência a cocaína colombiana e seus braços nas cidades amazônicas.
A década de 70 e 80 é o momento em que a economia local, internacional
da cocaína cruza o desenvolvimento da teoria do ecossistema da Amazônia pelo viés
das intrínsecas relações entre a cocaína amazônica e a sua visibilidade natural, social,
ambiental e criminológica como parte de um sistema vivo, perigoso, indissociável,
complementar, sustentável, químico e biológico, porque pode dar vida ou levar à morte.
No aspecto trágico é a mentora do crime clássico do século XX que transformou a
matéria-prima em mercadorias fora do quadro clássico do capitalismo moderno e uma
das peças de resistência ao estado de polícia das metrópoles mundiais e da formação de
uma organização criminosa local ambientalizada na Amazônia e respondendo pela
demanda internacional da cocaína. O conjunto desses comandos é pautado pelo governo
do poder ecológico que pretende acima de tudo o governo das formas vivas como um
elo de equilíbrio entre o homem e a natureza, princípio da teoria do ecossistema, que
põe insistentemente a problemática das formas de ocupação da Amazônia, desta forma
ultrapassando as formas institucionais e populacionais pela ideia de um governo
planetário dos recursos humanos e naturais com fins da conservação ou defesa do
planeta.
O fundo explicativo da natureza do exercício do poder ecológico pode ser
compreendido pela teoria da globalização na perspectiva da professora Marilene Corrêa
da Silva, que pensa a Amazônia como um ecossistema de manutenção do equilíbrio da
terra e da vida, por conta de ser o maior banco de dados da biodiversidade do mundo,
com algumas das espécies em estado de fragilidade ou de desaparecimento. As relações
de forças nela constituída tornam-na uma região complexa, com uma economia de
expressão mundial, pautada na sustentabilidade ecológica do desenvolvimento regional
e no empresariamento da ciência e da produção. Parafraseando o conceito de Amazônia
da autora, posso dizer em relação ao poder ecológico:
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A Amazônia é sempre uma oportunidade para testar e avaliar as relações de
forças entre cultura e A natureza, entre divisão internacional das agendas
científicas e o diletantismo da curiosidade do pesquisador. Projetos, acervos,
instituições, organizações emergentes articularam necessidades de afirmação
do domínio do conhecimento com processo civilizatório do capital. À
historicização do pensamento científico na Amazônia correspondem
processos e relações de domínio da natureza, em que nenhuma ação está
isenta da composição dos modos de valorização e de desenvolvimento do
trabalho em escala ampliada, como redescoberta e como valorização social
(p. 93).
Podemos dizer que o poder ecológico cruza o poder e o saber na Amazônia
através do dispositivo epistêmico do ecossistema, que está além da forma do poder
disciplinar, que dociliza o corpo para maximizar suas forças, e da forma da biopolítica,
que amplia a vida da população para conter e dominar as condições de vida e de morte.
O poder ecológico envolve em uma rede planetária as múltiplas relações de forças do
corpo, da vida, da morte e do meio ambiente, com a pretensão de não só controlar a
sociedade, mas também de eternizar a vida no planeta por meio do conhecimento
ambiental e populacional. O poder-saber ecológico é atravessado pela complexidade,
pela interdisciplinaridade, pelo desvendamento e desencantamento da floresta, da
população, da terra e dos recursos naturais e das suas formas de manejo, pelo
planejamento das cidades, pelos projetos de colonização, pelos conflitos intermináveis
da questão agrária, da delimitação das terras indígenas, pelo conflito do Estado com os
traficantes e destes com a população urbana e ribeirinha; estudos sobre a intervenção do
estado sobre as fronteiras e sua população, as suas estratégias política e diplomática. As
pesquisas vão desde a exploração mineral ao manejo da vegetação, passando pelos
recursos da região; os cientistas querem medir os ciclos da água, carbono, nitrogênio e
outros nutrientes do solo, relacionados com os modos de ocupação, desmatamento e
exploração dos recursos para as atividades agrícolas. Pretendem também avaliar o
desmatamento em relação às chuvas e nutrientes, os efeitos do desmatamento sobre a
hidrologia e a produtividade. Produzem informação sobre o funcionamento da região,
sobre as mudanças de suas formas de ocupação e sobre as mudanças que podem afetar o
planeta e o inverso, as mudanças climáticas que podem afetar a região e a população e
as políticas e econômicas que podem contribuir para o desaparecimento da espécie e da
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população, como já aconteceu em relação a algumas sociedades indígenas. Por isso, a
história do pensamento e do poder ecológico “é, em grande medida, uma avaliação
crítica desse desenvolvimento desigual globalmente acentuado pela questão ambiental
na região, com consequências e repercussões mundiais, e pela questão social que passa
a ter expressão nela” (p. 101), diga-se de passagem, o desenvolvimento da economia e
tráfico de cocaína que está totalmente enraizado na fronteira amazônica.
A racionalidade do poder ecológico na economia da cocaína funciona
como uma técnica de governo, sob os cuidados dos instrumentos de inteligência,
vigilância e controle do Estado sobre a população constituída pelo caboclo, pelo
indígena, pelo aviador; pela população urbana, como o comerciante, o madeireiro, o
trabalhador de modo geral, trabalhador da roça, pescador, e em especial a população
jovem sem trabalho, que declina para a criminalidade, enfim, todos que fazem parte da
malha indefinida da urbanidade do Alto Solimões, da região de Loreto no Peru e ao
Departamento Amazônico na Colômbia entram na malha da economia ilegal da cocaína.
O poder ecológico se consolida definitivamente na cidade de Benjamin
Constant com a implantação dos projetos de segurança de fronteira, que negociam com
o avanço da economia continental da cocaína por meios dos mecanismos de controle
político do governo federal, estadual e municipal e de agências internacionais para
garantir o controle dos recursos sustentáveis da Amazônia, que se estende da rede do
governo local à extensão da grande política de controle dos recursos sustentáveis
planetários porque tem interesse no domínio da fonte de energia do planeta e das
pessoas. Cada vez mais cresce o interesse da vontade de dominar a matéria rara do ouro,
dos minérios, do petróleo, do gás, da madeira, da biodiversidade da floresta, da água e
da alimentação e de tudo que pode ter vida, cujo ponto de partida pode ser o avanço da
política colombiana.
Desde 1980 a economia da cocaína da Colômbia vem se expandindo no
setor agrário. A região de Yungas na Bolívia e o vale do rio Huallaga no Peru, lugares
tradicionais da plantação da folha da coca que alimenta o mercado ilegal, na forma de
pasta base de cocaína que é negociada com os colombianos, que por sua vez a
transformam em cocaína pura, destinada aos centros consumidores. Parte dessa
produção é comercializada e transportada pelas cidades do Alto Solimões, em especial
Letícia, Tabatinga e Benjamin Constant. PASSETTI (1991), com base nos estudos de
Rainer Dombois, cita o caso de Pablo Escobar, que enriqueceu com tráfico de cocaína,
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realizando obras beneficentes, entrando na vida política como suplente de deputado e
membro do cartel de Medelín. O avanço da economia da cocaína foi substituindo as
economias locais por plantações de coca, transformando a agricultura de subsistência
em monocultura, ampliando-a com outros setores da economia.
Os trabalhadores dessas regiões passam a importar produtos básicos de
consumo e equipamentos e elementos químicos para produção da cocaína. Na região de
San José há um grande movimento de caminhões e ônibus transportando gente e
cocaína e um intenso tráfego aéreo nas pistas clandestinas construídas na selva. Para o
trabalhador esse fascínio dura pouco, primeiro porque o mercado ilegal é oscilante, e
também porque a repressão e a detenção dos traficantes deixam os locais produtivos
abandonados e a política dos guerrilheiros não beneficia os trabalhadores, deixando-os
sempre em situação de miséria. O narcotráfico funciona como um Estado na Colômbia,
absorve investidores externos, tanto por meios legais, o mercado farmacológico, quanto
por meios ilegais, o tráfico, utilizando a força de trabalho por meios ilegais ou
amparando-os através de políticas assistenciais. De um modo ou de outro, a força de
trabalho é explorada, aos ditames democráticos, quando os traficantes passam a
influenciar a política de governo, ou aos ditames dos guerrilheiros, quando estes passam
a comandar a economia local.
A plantação de coca constitui um dos traços essenciais do extrativismo
peruano. Há tempos a cultura andina tem o hábito da mastigação da folha da coca, desde
os tempos áureos da borracha, possuindo laboratórios de processamento do produto. A
exportação legal da folha de coca abriu um mercado promissor para os agricultores que
forneciam a mercadoria para a indústria da Coca-Cola, para a indústria farmacêutica,
além do consumo diário pela dieta indígena; uma parte significativa da produção é
destinada ao comércio ilegal. Segundo SOUZA (2009), na estatística peruana, nos anos
70, os traficantes tinham lucrado, levando cocaína para os Estados Unidos,
aproximadamente dois milhões de dólares. “Nenhuma atividade legal oferecia tamanho
lucro, já que as exportações legítimas tanto do Peru quanto da Colômbia não excediam
juntas um bilhão de dólares” (p. 366). Do outro modo, a cocaína substitui outras
culturas tradicionais, levando à bancarrota parte da economia extrativista legal, com
muitos trabalhadores desempregados. Os agricultores falidos e endividados, com suas
terras penhoradas, sem alternativa econômica e pressionados pelos grupos fortalecidos e
enriquecidos pelo comércio da cocaína, aderem ao cultivo da coca e transformam-na em
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pasta-base que vendem aos traficantes. Negócio tão rentável que se propaga nas cidades
de fronteira. As cidades do Alto Solimões são logo seduzidas pelo comércio da cocaína,
tornado-se uma aliada do narcotráfico colombiano na venda e no transporte da
mercadoria; mais tarde elas próprias estarão produzindo sua própria cocaína.
A vocação do extrativismo da madeira é deixada de lado, e a mesma balsa,
que até então que transportava madeira, agora leva também toneladas de cocaína. O
regatão que vende produtos para o interior, em meio à mercadoria, carrega cocaína para
os centros urbanos. Os antigos coronéis da borracha, os comerciantes, os fazendeiros, os
empresários da madeira, que têm alguns recursos, são logo envolvidos com o comércio
de cocaína. Os ganhos são generalizados, sem discriminar ninguém, envolvem toda a
sociedade – do patrão ao empregado, do índio ao caboclo, do pai ao filho, do empregado
ao desempregado, do oficial do exército ao policial militar. Uma pessoa conhecida
como humilde e sem recurso começa a participar da sociedade de consumo, adquirindo
antenas parabólicas, televisores, abrindo comércio e supermercados; outros são vistos
gastando dinheiro em bares, exaltando-se, e em pouco tempo aparecem grupos fortes
que pretendem o controle do comércio de cocaína, com os mais ambiciosos e
inescrupulosos armando emboscadas para os rivais. A elite que comanda tem o domínio
político e social das áreas de cultivo, produção e comercialização.
Nos anos 70, era das leis de segurança nacional, pressionadas pelos centros
de consumo e a ligação da economia do narcotráfico amazônico com outras áreas da
América do Sul e com a ampliação do tráfico de cocaína dos Estados Unidos, as
metrópoles americanas surgem como centros consumidores de cocaína, momento em
que são intensificadas normas internacionais antidrogas. No discurso político
estadunidense, a cocaína passa a ser um inimigo da América; tal discurso anuncia a
intenção de fortalecer as medidas repressivas de combate às redes de tráfico de cocaína.
No cenário dos países consumidores, os Estados Unidos parecem ser a vítima dos países
produtores, enquanto a Amazônia colombiana é um dos centros de produção da pasta-
base de cocaína, e uma das principais rotas de distribuição para os centros urbanos é a
região do Alto Solimões. Segundo Passetti, a ideia de países consumidores e países
produtores não passa de uma ficção para fortalecer as medidas de segurança e de
controle dos Estados Unidos sobre os países latino-americanos. As medidas antidrogas
que começaram no início de século XX chegaram aos anos 70 com a proibição da
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cocaína, à revelia dos seus negociantes, a criar um solo propício ao crescimento do
mercado ilegal da droga.
Os efeitos perversos do poder ecológico da cocaína decorrem da rápida
substituição dos cultivos tradicionais pelo da coca; encarecimento dos mesmos produtos
agrícolas que precisam ser importados; surgimento e influência de grupos de novos
ricos fora da lei, afetando a estrutura social, e a poluição ambiental em razão do despejo
dos componentes químicos usados no refino do produto. Com a Constituição de 1989, o
Estado brasileiro passa a controlar a cocaína na cidade de Benjamin Constant; essa
prerrogativa vai consolidar as relações do poder ecológico na política, na economia e na
cultura da sociedade do Alto Solimões.
A acentuação das atividades extrativistas da madeira vai levar muitas
pessoas a procurar outras atividades, algumas ilegais. Esse momento pode ter
contribuído com as atividades do tráfico de cocaína na região. Muitos daqueles que
trabalhavam com a madeira tinham conhecimentos suficientes dos rios e igarapés da
região do Solimões e Javali, eram os mais apropriados para carregar a cocaína, em
especial para Tefé e Manaus. A mesma rede de rotas e corredores que serviu aos
propósitos do contrabando durante o século XVIII e mais tarde para a exportação da
borracha, madeira e peles passa a ser utilizada a partir da década de 70 para o tráfico de
drogas.
A questão do narcotráfico é muito grave nas fronteiras do Peru e da
Colômbia. Sem inúmeros sócios locais os grandes cartéis da cocaína nunca teriam se
implantado no Brasil. Também não é uma simples questão moral ou de saúde individual
(“droga faz mal para a saúde”), mas uma questão política maior, pois tem efeito
corrosivo sobre as instituições estatais, os partidos políticos, a magistratura, a imprensa.
Na Colômbia, trinta juízes foram assassinados nos últimos anos por não terem aceitado
as ofertas do narcotráfico que envolviam propinas mensais superiores aos salários da
magistratura e ameaças constantes de assassinar os familiares. Como essas ameaças
quase sempre se concretizaram, fica a constatação da coragem que precisa ter um juiz
para ser honesto na Colômbia, já que um grande número de pessoas, juízes, prefeitos,
vereadores, deputados, senadores, policiais, empresários, jornalistas, camponeses
participam de uma forma ou outra da colaboração ao crime organizado. Os segmentos
brasileiros do judiciário, administrativo e os políticos estão sendo cada vez mais
100
100
utilizados pelos cartéis colombianos, inclusive com ajuda financeira nas eleições
municipais recentes. A influência do narcotráfico é um poder paralelo ao do Estado
brasileiro, capaz de afetar todos os órgãos e os serviços do governo. As lideranças
indígenas têm consciência do perigo que representa o comércio da cocaína. O Conselho
Indígena do Vale do Javali (Civaja) tem se preocupado com a existência de pista de
pouso clandestina no Vale do Javali e com o aliciamento de indígenas pelos traficantes.
Segundo liderança da Pastoral Indigenista da Diocese do Alto Solimões, a região do
Alto Solimões e do Vale do Javali estão sendo utilizadas como região de transferência
de cocaína da Colômbia e do Peru para o Brasil. O envolvimento dos traficantes
brasileiros da região com os colombianos tem-se manifestado nas eleições municipais
de algumas cidades.
Uma rota do tráfico de cocaína em Benjamin Constant é pelo rio Iça,
fronteira com a Colômbia pelo rio Putumayo, que também é um Departamento da
Colômbia. Ultimamente é um dos lugares mais violentos, em guerra civil há mais de
quarenta anos, envolvido com as guerrilhas, grupo paramilitar, repressão dirigida pelo
exército com o apoio norte-americano. Letícia é a capital do Departamento Amazonas
da Colômbia, fronteira com a cidade de Tabatinga. Ligadas pela Avenida da Amizade
do lado de Tabatinga. Tabatinga fica a margem esquerda do Solimões. Benjamin
Constant fica na margem oposta, no trecho em que o rio Javari encontra-se com o
Solimões. As cidades de Tabatinga e de Benjamin Constant estão, portanto, situadas
nas imediações da região da Amazônia colombiana. Benjamin Constant está próxima
da cidade de São Paulo de Olivença e Santo Antônio de Iça, pelo rio Iça pode-se chegar
até a fronteira colombiana; passando-se pela povoação de Içacuera e União, chega-se à
corrutela de Ipiranga – fronteira com a Colômbia, onde Putumayo entra no Brasil, com
pista de pouso para aviões. O rio Javari é um afluente do rio Solimões, limite entre o
Amazonas e o Peru. Os afluentes do Javari à margem esquerda são os rios peruanos e
os da margem direita são os brasileiros, os rios Curuçá e Ituí.
O governo do poder ecológico que está posto na racionalidade da cocaína na
segunda metade do século XX está relacionado à consolidação do mercado
internacional da cocaína; a estratégia militar de modernizar a Amazônia ao sistema de
aviamento advindo do extrativismo da borracha do Alto Solimões deve absorver o
avanço do tráfico de cocaína vinda da Colômbia, quando o sistema extrativista passaria
às mãos dos narcotraficantes, com plantações intensas de coca, acentuando ainda mais
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os métodos de coerção e violência contra os trabalhadores e as populações da região
afetada, envolvido como está responde pela chegada das grandes empresas capitalistas
transnacionais de minério, petróleo e agropecuária, dando uma forma nova ao sistema
de aviamento com o pano de fundo do desenvolvimento sustentável, modernização e
preservação da Amazônia, mas de fato o alvo primeiro é o controle do mercado de
cocaína. A produção da folha de coca em grande escala vai enriquecer as elites das
cidades da fronteira do Brasil, da Colômbia e do Peru, substituindo a agricultura de
subsistência da folha da coca pela produção, transformação e transporte da cocaína,
principal causa da criminalidade nas cidades de Benjamin Constant, Tabatinga e Letícia.
Letícia viveu o auge do próspero comércio da cocaína na década de 1980. A
sedução econômica dos lucros provenientes do tráfico de cocaína tornou-se para a
população uma oportunidade de elevação do padrão de vida, a despeito de qualquer
reprovação moral, o mais rentável trabalho a se dedicar. A presença militar colombiana
tem dificultado a dinâmica do mercado da cocaína. O poder que se formou em parte na
Amazônia brasileira, com o regime militar, tem uma peculiaridade com as forças
armadas colombianas quando se trata do combate ao narcotráfico. Letícia se converte
em um lugar de treinamento da força militar para controlar os territórios dos rios
amazônicos, como o Putamayo e o Caquetá. Essa situação pode adquirir novos matizes
de impacto internacional caso a base militar americana de Manta seja retirada do
Equador e eventualmente substituída pela nova que será construída em Letícia.
O poder ecológico torna-se cada vez mais microfísico quanto mais avança o
mercado da cocaína na vida da população da cidade, passando da lei à sedução do
dinheiro. A venda da cocaína entra nas cidades da Amazônia pelas mãos de uma
população que não se cansa de fazer frente ao avanço das forças armada na fronteira
amazônica. Com a ampliação do mercado da cocaína, cresce também a demanda. A
cocaína vai ser a nova seiva branca da Amazônia, agora muita elástica e globalizada e
com um poder de sedução maior do que a antiga borracha da selva. Ela traz de volta
aquela ostentação dos velhos barões do extrativismo. Seduzidos pelos altos lucros, os
agricultores, sem receio das consequências legais, começam a cultivar a folha da coca.
A ostentação do crescimento do mercado de cocaína contribui com a criminalidade nos
espaços urbanos, nas áreas rurais, nas administrações locais, nas prefeituras e
delegacias; alguns, diante do “lucro fácil”, fazem vista grossa, outros são subornados e
corrompidos. Nas próprias forças armadas e as forças policiais, que tinham por missão o
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controle do comércio ilegal da cocaína, uma parcela é seduzida pelos lucros
generalizados e logo constituem uma criminalidade paralela. Portanto, a instituição que
tinha por missão conter a criminalidade, agora passa a comandar e controlar a
criminalidade. Segundo SOUZA (2009), a facilidade de lucros altos e generalização dos
ganhos, que não discriminavam ninguém, envolveu todo o tecido social e o caráter da
sociedade extrativista tradicional em que a corrupção e o suborno foram normas da
administração local. Comerciantes, fazendeiros, oficiais do exército, policiais,
administradores, todos tiveram sua parte. É provável que a abrangência do negócio
tenha suplantado o comércio da madeira e submetido à ilegalidade uma população ainda
recente, tornando o delito de tráfico de drogas o carro-chefe na estatística criminal no
Estado do Amazonas e, com o acréscimo da lógica de ferro do sistema carcerário,
constituiu-se uma parcela significante da sociedade em grupo de risco e de difícil
retorno da exclusão social.
O próspero mercado da cocaína na Amazônia tem-se ampliado a partir da
década de 70. Segundo CASTELLS (2003), o crescimento da indústria de drogas “tem
transformado a economia e a política da América Latina” (p. 241). Essa indústria
concentra-se “principalmente na produção, processamento e exportação de coca e
cocaína” (p. 243).
Para além do tráfico de drogas, o mercado da cocaína tem ampliado sua
atividade para outras práticas criminosas, como a lavagem de dinheiro, que é visível nas
transações bancárias das cidades de fronteira, contrabando de animais, tráfico de armas
e de pessoas. A rede criminosa que se instalou pelo mercado da cocaína tem constituído
um mundo vasto e complexo, cuja estrutura altamente descentralizada permeia todas as
sociedades latino-americanas e nelas imprime a sua marca. As poderosas redes
criminosas do mercado de drogas abalam os clássicos paradigmas do desenvolvimento e
da dependência, teoria sustentada pelos estudiosos da Amazônia, abrindo espaço para a
recente interpretação da sustentabilidade, relacionada com o modo de vida das pessoas
que moram nas cidades.
A década de 80 foi uma época áurea para o tráfico de cocaína em Benjamin,
Tabatinga e Letícia, momento do crescimento da população urbana. Por sua localização
geográfica, essas cidades representam um papel essencial como nódulos importantes de
intercâmbio de precursores químicos e de cocaína e como centros de lavagem de
dinheiro. São também pontos estratégicos nas negociações de transporte e redistribuição
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de produtos contrabandeados através das fronteiras. A vinculação econômica está
submetida à intensa flutuação dos preços dos produtos no mercado internacional. Como
em muitos desses municípios o tráfico de drogas desempenha parte importante de suas
economias, essas flutuações são ampliadas pelo fator de risco, um dos principais
elementos constitutivos dos preços da cocaína. A flexibilidade de rotas e nódulos de
trânsito e exportação característica das redes internacionais de tráfico de cocaína
também pode ter contribuído para a natureza cíclica de muitas dessas economias, ora
incluídas, ora excluídas dessas redes.
4. A criminalidade local
O poder ecológico está disseminado na experiência da cocaína na
perspectiva de uma economia política do crime na região com ênfase à manifestação ao
comércio da cocaína, aos frequetadores, aos locas de venda e aos seus movimentos, dos
anos 80, com tráfico, carro chefe da criminalidade aos anos de 1913, com a repressão da
policia federal e da polícia militar ao complexo, completo e generalizado ciclo da
cocaína de Benjamin Constant, com o consumo de massa da cocaína e o relativo índice
do crime do tráfico de cocaína no contexto da criminalidade presenciamos uma
banalização da cocaína e com ela o desencantamento das forças policiais e das
legislações dos tóxicos e da lotação das delegacias. A construção da experiência da
cocaína é perpassa pela norma e pela infração. A conduta de quem vende e de quem
consume cocaína tornaram-se uma conduta de correção fazendo-se de regra para os
candidatos as infrações. Isso não implica dizer que antes da contenção normativa da
cocaína Benjamin Constant vivesse um período de ausência de criminalidade, mas
implica dizer que legislação antidroga canaliza para a cocaína parte das contendas,
beligerâncias e infrações da cidade. A legislação antidroga ao submeter á prova a elite
da cocaína, egularizou o mercado interno da cocaína.
Não é apenas a exceção que confirma a regra como regra, é a infração que lhe
dá a oportunidade de ser fazendo regra. Neste sentido, a infração é não a
origem da regra, mas a origem da regulação. Na ordem do normativo, o
começo é a infração. Retomando uma expressão kantiana, proporíamos que a
condição de possibilidade das regras é o mesmo que a condição de
possibilidade das experiências das regras. A experiência das regras consiste
em pôr à prova, numa situação de irregularidade, a função reguladora das
regras (p. 214).
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O mercado de cocaína na cidade de Benjamin Constant, como em qualquer
cidade do Amazonas, é um fenômeno singular que apresentam características em
comum a qualquer cidade do Brasil. Uma característica comum e geral é que o mercado
da cocaína está dissolvido nos bairros. Nos bairros está dividido pelas ruas, das ruas
entra-se nos becos. Nos becos procuram-se tais e tais fulanos naquela ou naquela outra
casa.
O mercado da cocaína é um tipo de comércio varejista, autônomo, disperso
e flexível. A venda a varejo não é privilégio de um único indivíduo, apesar de que em
cada momento um ou outro se sobressai, nem de uma família ou um grupo organizado.
Sempre surge um local novo de venda de cocaína e logo é substituído por outro ponto
de venda, embora certos locais sejam tradicionalmente conhecidos e reconhecidos como
porto seguro da venda da cocaína. Esses locais são por si próprios autônomos em
relação às pessoas que neles comercializam a cocaína. Desde os anos 80, boa parte das
pessoas que foram vanguarda da criação do comércio hoje já foi substituída pelos
familiares e outros iniciados. Em três décadas de movimento de tráfico de cocaína em
Benjamin Constant muitos foram substituídos, não somente pelo preço da velhice e da
morte, mas também pela dinâmica da especulação do mercado da cocaína, que
ultrapassa a percepção e o conhecimento dos atores que incansavelmente dedicam-se
dia e noite para ter uma melhor oportunidade de ganho, passando por cima dos
inconvenientes e perigos que constituem o mercado da ilegalidade.
Datar em 1980 o aparecimento do comércio interno da cocaína em
Benjamin Constant é atrelar seu gerenciamento à elite que se constitui com o tráfico
internacional colombiano. Segundo ZALUAR (2004), há a “presença de uma
organização criminosa que se fortaleceu ao longo de toda a década de 80” (p. 29), que
com a intervenção dos dispositivos de segurança, formados pelo Exército, Polícia
Federal e Estadual, dobrou o rumo do tráfico do mercado internacional para o consumo
das cidades do Amazonas. Tal constatação não significa que o mercado internacional da
cocaína colombiana tenha desaparecido em Benjamin Constant; é muito provável que
tenha se especializado através de outros mercados e tenha amadurecido e completado o
ciclo: produção, comercialização e consumo. Essa afinidade do mercado da cocaína
com a cidade é o que nos possibilita dizer que a venda da pasta da cocaína, maconha e a
própria cocaína está disseminada em toda a cidade, por isso há uma intimidade da
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cocaína com a cultura do município, tal que até se poderia falar de uma experiência
antropológica da cocaína.
A cocaína é uma peça do jogo da cultura de Benjamin Constant. De todas as
atividades da cidade, a cocaína é mais frequente nos espaços lúdicos e festivos. Nos dias
de festa, seja qual for a modalidade, os locais de venda de cocaína tornam-se
efervescentes. São pessoas as mais variadas em busca da cocaína e da pasta de cocaína.
São trabalhadores rurais, madeireiros, pescadores, trabalhadores do comércio, da feira,
estudantes secundaristas e universitários, homens casados, mulheres casadas, pais de
família, policiais, professores e professoras de escolas e da universidade, médicos,
enfermeiros, donos de comércio, viciados, ladrões, homicidas, presos e detidos na
delegacia e, de modo mais específico, a juventude que compõem os usuários mais
frequentes.
O uso da cocaína pode ser de duas formas. O pó da cocaína pode ser inalado
e a pasta da cocaína é usada na forma de fumo, que pode ser com maconha ou com o
cigarro comercializável. Devido à proibição, o consumo da cocaína sempre é feito em
local escondido. Quando se trata de uma festa familiar, o uso é feito no quintal, em uma
área externa da casa; podem também ser utilizados os banheiros, até as privadas.
Quando se trata de um encontro no bar, o local mais comum são os banheiros. O
consumo da pasta de cocaína exige outras estratégias para fumá-la devido à fumaça que
pode ser percebida em um raio de alguns metros. Há casos em que se pode fumar no
próprio local da compra, lugares específicos para se fumar a pasta de cocaína. Há quem
fume na própria casa, o que deve ser o uso mais regular quando se trata de pessoas de
mais idade. Quem não tem local próprio pode fumar nas estradas, no roçado, nas ruas
desertas, em locais baldios, quando vai pescar ou caçar. Sempre há um motivo para se
encobrir o uso da cocaína.
Essa é uma população discreta que não corre o risco da criminalização, pois
não se expõe e não se opõe à força policial, tampouco apresenta sinais de doença.
Aproximar o crime da saúde e da doença é um critério adotado por DURKHEIM
(2007), para demonstrar em que medida o crime é normal em uma sociedade: “Com
efeito, tanto para as sociedades como para os indivíduos, a saúde é boa e desejável,
enquanto a doença é algo ruim e que deve ser evitado” (p. 51). Podemos afirmar que o
consumo da cocaína em Benjamin Constant é normal porque apresenta a característica
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de ser geral e comum na nossa sociedade; ademais nenhuma cidade do Amazonas está
isenta da cocaína. Há por parte dos moradores um sentimento coletivo que não
desaprova o tráfico de cocaína, vendo-o como uma alternativa de sustentabilidade da
região. Basta olhar para o crescimento da cidade a partir dos anos 70, que muitos
moradores imputam aos anos áureos da cocaína.
A criminalização está restritamente relacionada ao tráfico de cocaína, no
que diz respeito à produção, à venda e ao transporte. Os pontos de venda de cocaína
sempre são alvo fácil das forças policiais. Quando o comércio está bem desenvolvido e
apresenta um percentual de ganho em um prazo de seis meses ou mesmo de um ano é
desmantelado pelas forças policiais estaduais e federais. Além do mais, pode ocorrer, o
que é muito comum, uma vigilância cerrada por policiais nos locais de venda, levando
para a prisão os donos da cocaína. Todo o ganho com as vendas é repassado para pagar
o processo policial e judicial. Os vendedores de cocaína também são perseguidos por
policiais por conta própria, o que acelera ainda mais os índices de criminalidade. As
apreensões com mandato judicial são aceitas sem problemas, mas as extorsões da
cocaína e do dinheiro sempre são motivo de contestação por parte dos donos da droga.
A criminalização da cocaína conferiu aos policiais um enorme poder sobre a população,
em especial a população marginalizada. São os policiais que decidem quem irá ou não
ser processado por mero uso ou por tráfico, porque são eles que apresentam as provas e
iniciam o processo. No primeiro caso, a pena é de seis meses a dois anos de prisão. No
segundo, o crime é considerado hediondo, e a penalidade vai de três a quinze anos de
prisão.
Além das prisões dos vendedores da droga, o transporte da cocaína
criminaliza um número considerável de pessoas da região do Alto Solimões. O
transporte da cocaína do Trapézio Amazônico para abastecer outras regiões é um tanto
descentralizado. Em se tratando da cocaína colombiana, alvo da pesquisa, ela pode
entrar na fronteira brasileira pelo rio Marañon, que faz fronteira com o Peru e a
Colômbia, que no Brasil recebe o nome de Solimões e dá acesso direto para as cidades
de Tabatinga, Letícia e Benjamin Constant; pelo Rio Putamayo, fronteira com o rio Iça,
debaixo da cidade de Santo Antônio de Iça; e também pelos rios Solimões e Caquetá, na
fronteira com o rio Japurá no Amazonas. De todo modo, nas prisões do Amazonas há
um contingente considerável de pessoas que transportam cocaína, apreendidas pela
Polícia Federal do estado.
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A política de controle de cocaína da Polícia Federal faz parte da política de
controle dos recursos sustentáveis da cidade de Benjamin Constant; inscreve-se dentro
da racionalidade ecológica do governo na forma de contenção do tráfico de cocaína e
também das outras formas de contrabando do Trapézio Amazônico destinado à cidade
de Tefé, Manaus e Belém.
O Encontro Interinstitucional sobre a Ação da Justiça na Tríplice Fronteira,
organizado pelo Ministério Público do Estado do Amazonas e realizado em Manaus no
dia 28 de outubro de 2011, tem clareza de que os problemas enfrentados no Trapézio
Amazônico em relação à cidadania, segurança pública, violência e criminalidade não
podem ser enfrentados sem a participação em conjunto de todas as entidades públicas,
tendo em vista uma política pública integral que componha as esferas da saúde,
educação, trabalho e meio ambiente, para além do simples combate à criminalidade da
cocaína.
A política de controle da cocaína na visão do Ministério Público do
Amazonas (2011) deve se basear na prática social da intersetorialidade de
enfrentamento dos problemas da fronteira norte do Brasil, o que implica em formas de
administrar, de governar e de moldar políticas públicas “capazes de agregar todo o
potencial cooperativo das estruturas sociais e institucionais em prol dos objetivos
definidos de segurança e de justiça” (Ministério Público do Estado do Amazonas, 2011,
p. 4).
A política penal de controle da cocaína não pode estar centrada na proteção
e repressão de exclusividade militar e policial, mas deve estar articulada em termos de
prevenção, assistência, minimização de danos e eliminação de riscos, tendo em vista
que o tráfico na fronteira é composto de uma multiplicidade de agentes, causas de risco
e perigos que subvertem o paradigma da política criminal, que pensa a segurança
pública em termos de polícia, justiça e sistema prisional, o que apenas parcialmente
pode influenciar os índices de criminalidade relacionados ao crime organizado da
cocaína.
Segundo o Ministério Público do Estado do Amazonas (2011), a complexa
rede de tráfico internacional de cocaína tem sua base na cidade de Tabatinga, “local
onde são feitas as negociações para o recebimento e remessa de drogas, bem como de
onde são canalizados recursos financeiros para serem ‘branqueados’, numa espécie de
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mercado financeiro da droga” (p. 6). Podemos dizer que Tabatinga é a porta de entrada
de 70% da cocaína que circula na fronteira norte.
O tráfico de drogas, problema endêmico e crônico no chamado Trapézio
Amazônico, com a sua cada vez mais poderosa vertente internacional e seus
tentáculos transnacionais, supera os limites do direito penal nacional. Afeta
aspectos básicos e essenciais da vida – como saúde, violência, corrupção,
micro e macrocriminalidade, deterioração social etc. (p. 6)
O mesmo diagnóstico é feito pelo superintendente da Polícia Federal do
Estado do Amazonas, delegado Sérgio Fontes, de que há uma rede de tráfico de cocaína
na região do Trapézio que deve lavar o dinheiro na cidade de Tabatinga, que apresenta
uma movimentação financeira característica das cidades amazonenses onde funciona o
crime organizado da cocaína. Ainda segundo o delegado, a prioridade de 2013 seria
desarticular o capital das organizações criminosas.
Ou seja, atacar no bolso do traficante. Por muitas vezes, a prisão do traficante
não gera tanto efeito quanto atacar o dinheiro e a conta bancária. A droga tem
que ser paga. Temos que entrar nas movimentações financeiras. Quem está
mandando dinheiro para quem. O traficante recebe de que forma a droga,
como vende, como paga. (A Crítica, 2013d).
Conforme o delegado Sérgio Fontes, a maior parte da cocaína pura que entra
no Amazonas se encontra na fronteira, principalmente de Tabatinga, Rio Iça e Japurá;
80% do transporte da carga são realizados pelos rios e 20% feitos de avião, sendo os
voos dificultados pela atuação do Sipam e pela de Lei de Abate. Parte da fiscalização é
realizada pela Base Anzol, que, depois de mais de quinze anos funcionando na
localidade de Palmares no rio Solimões, foi desativada em 2009, devendo funcionar de
forma móvel conforme os requisitos da Polícia Federal.
Nós somos rota de entrada. No Amazonas, forças federais e estaduais estão
em lugar estratégico no combate, mas infelizmente não temos o aporte que
deveríamos ter. Somos vizinhos dos maiores produtores de cocaína do
mundo, que é a Colômbia, seguida pelo Peru e Bolívia. A droga que abastece
o país não vem de mula ou amarrada ao corpo. O consumo é muito maior no
país. Vem disfarçada em grandes cargas que não tem como avaliar, debaixo
de peixe, engradados de seixo, botijão de gás. (A Crítica, 2013d).
Para Sérgio Fontes o efetivo da Polícia Federal ainda é insuficiente para
combater o narcotráfico. O cultivo de coca peruana no Trapézio Amazônico cresceu
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muito, transformando a região em uma das principais produtoras de folha de coca,
provocando uma migração de trabalhadores do Alto Huallaga para trabalhar no plantio
de coca na fronteira, na localidade de Loreto. Onde antes havia mil famílias no cultivo
da coca, hoje tem-se três mil famílias cultivando 10 mil hectares de coca, o que seria
suficiente para produzir 100 toneladas de cocaína; do outro da fronteira, a Polícia
Federal tem 200 policiais para o Amazonas, dos quais vinte são escalados para o rio
Solimões. A extensão do plantio de coca no Trapézio Amazônico é uma incógnita, diz o
delegado, esclarecendo que no Amazonas não vai proliferar uma zona de livre de cartel.
A fronteira amazonense é uma região de rota, não de produção, por isso a prioridade
agora é o combater o cultivo da coca porque toda a produção é destinada ao Brasil pela
facilidade de transporte pelo rio Amazonas e Solimões, universo de água penetrada
indescritível e inescrupulosamente por uma multiplicidade de caminhos, lagos, canais e
igarapés através da floresta, em terras cujos caminhos só os próprios moradores da
região conhecem.
Um levantamento realizado pelas polícias peruana e brasileira estima que
atualmente a zona com maior extensão na produção da folha de coca,
matéria-prima da cocaína, está localizada no distrito de Mariscal Ramón
Castilla, na província de Loreto, próxima aos municípios de Tabatinga e
Benjamin Constant, na região do Alto Solimões. (A Crítica, 2013d).
A criminalização local muitas vezes está relacionada com a falta de
alternativas que fez com que jovens e adultos, não obtendo oportunidades de emprego
no mercado de trabalho, optassem em trabalhar no mundo da cocaína para ter fonte de
renda. Segundo documento do Zoneamento Ecológico Participativo da Região do Alto
Solimões de 2003, o problema do tráfico de cocaína está indissoluvelmente ligado à
pobreza. Essa relação avança e se consolida em consequência de não haver nenhuma
atividade econômica atual que substitua a antiga produção do látex e da atividade
madeireira, a qual sofreu um forte declínio na região em função da demarcação de
terras indígenas e da forte ação repressiva do Ibama. O transporte da cocaína para
Manaus e para outros locais é o que mais atrai a população jovem da cidade, chamados
de traquineiros. O transporte mais comum é via fluvial, havendo também recorrência
pela via aérea. O tráfico pela via fluvial é feito com navios de passageiros que saem do
porto de Tabatinga e de Benjamin Constant, passando pelas cidades do Alto Solimões,
até Manaus. O transporte da cocaína também pode ser feito através de outras formas
de embarcação descendo o rio Solimões, viajando mais pela parte da noite para não
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serem interceptadas pela Polícia Federal. A cocaína transportada pode ser de qualquer
parte da fronteira, embora ultimamente esteja havendo um movimento razoável do
Vale do Javari, tendo entreposto em Benjamin Constant, com destino a Manaus. O
relato das apreensões de cocaína no Alto Solimões feitas pela Polícia Federal do
Estado do Amazonas, veiculados através do meio de comunicação da internet, é
representativo da atividade do traquineiro.
Uma mulher é acusada pelo Ministério Público Federal do Amazonas de
tráfico de cocaína. Em 2006 teria utilizado sua conta corrente para movimentar 9 mil
reais de um traficante colombiano, chegando ambos a serem presos em flagrante com
104 quilos de cocaína e denunciados à Justiça Federal pela prática do crime de tráfico
internacional de entorpecentes (g1.globo.com, consultado em 15 mar. 2013a). Em 2010,
a Polícia Federal e a Força Nacional prenderam uma mulher no Porto de Tabatinga com
cocaína que deveria ser levada para Manaus, no barco de passageiros Itaberaba. A
cocaína estava dentro de uma corda de amarrar redes de bolos e salgados. A mulher
recebeu 200 reais de um colombiano para entregar o produto em Manaus, quando
receberia mais mil reais (A Crítica, 2013c). Em 2012, a Polícia Federal prendeu um
homem de Tabatinga com 11 quilos de cocaína no Aeroporto de Tefé (Tefé News,
consultado em 24 mai. 2013). No mesmo ano, os policiais do Batalhão Ambiental do
Amazonas prenderam três homens com 88 quilos de cocaína e 12 quilos de maconha na
comunidade de Murituba, no município de Codajás. Eles foram encontrados em uma
canoa, com o material enrolado em sacos de nylon. Todos os homens são de Tabatinga e
Benjamin Constant (G1 Amazonas, postado em 13 jul. 2012 e consultado em 28 mai.
2013b). Em novembro, a fiscalização da Polícia Federal do Amazonas nos portos e
aeroportos de Tabatinga, Tonantins, Santo Antônio do Içá e Benjamin Constant resultou
na prisão de oito pessoas com 25 quilos de cocaína. No porto de Benjamin Constant,
dois homens foram presos com um bastão de cocaína. Em seguida outro homem foi
preso com cocaína de origem peruana que tinha como destino a cidade de Manaus. No
porto de Tonantins um homem de 27 anos foi preso com uma mala com 15 quilos de
cocaína. Em depoimento alegou que estava recebendo mil reais para transportar o
produto. Em Santo Antônio de Iça, um homem de 19 anos e uma mulher de 35 anos
foram presos carregando uma garrafa térmica com 1,5 quilos de cocaína. No Aeroporto
de Tabatinga dois irmãos colombianos foram presos com uma mochila contendo 5
quilos de cocaína (D24.com/amazonas, consultado em 24 mai. 2013a).
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A Polícia Federal apreendeu em fevereiro de 2013 83 quilos de pasta de
cocaína na cidade de Alvarães com duas pessoas, uma de Benjamin Constant e outra de
Atalaia de Norte. A cocaína foi encontrada em um bote com fundo falso, feito com uma
massa plástica pelo lado externo do casco (A Crítica, consultado em 24 mai. 2013b). No
mês de abril, três pessoas foram apreendidas com 20 quilos de cocaína durante uma
ação de policiais civis no rio Solimões na comunidade de Fonte Boa, um peruano de
Iquitos, outro de Benjamin Constant, o último de Tabatinga (Blog Marcos Santos,
postado em 12 mar. 2013a). Em maio, a Alfândega da Receita Federal, em uma
fiscalização na agência dos Correios no bairro do Coroado na cidade de Manaus
encontrou uma camisa dentro de uma caixa de papelão, com 0,835kg de cocaína da
cidade de Tabatinga, com o destino à China, quando a passou pelo aparelho de raios-X,
o narcoteste (A Crítica, consultado em 24 mai. 2013a). No mesmo mês, a Polícia
Federal prendeu dois homens em flagrante com 20 quilos de cocaína, um fuzil calibre
7,62 e 99 munições, um brasileiro e um peruano, na cidade de Atalaia do Norte, em um
barco de passageiros da cidade de Fonte Boa (AM). A cocaína era de origem de Santa
Rosa no Peru, cidade de fronteira com Benjamin Constant e Tabatinga, e tinha como
destino a cidade de Manaus (Brog do Patrocínio, consultado em 24 mai. 2013). A
Polícia Federal prendeu três homens, dois brasileiros e um peruano, com 200 quilos de
cocaína no porto de Coari, de procedência de Tabatinga, no primeiro dia da reabertura
da Unidade Base Anzol, localizada na região do Alto Solimões na fronteira do Brasil
com a Colômbia e o Peru (Blog Jambo Verde, consultado em 29 mai. 2013).
A Polícia Federal intensifica o controle na fronteira pela grande quantidade
de apreensão de cocaína através das revistas feitas nos barcos de passageiros e da
mudança estratégica da Base Anzol do rio Solimões para o rio Içá. A presença e o
esforço dos órgãos federais não inibem o movimento de contrabando. Cada passo dado
pela Polícia Federal é acompanhado cuidadosamente pela elite do tráfico local, que a
cada dia cadastra mais gente para o mercado da cocaína. As antigas capoeiras e as casas
de farinha perdidas na mata fechada de Benjamin Constant são agora transformadas em
local de plantio de coca entranhado no meio do roçado e laboratório de refino de base de
cocaína. As apreensões ditas de origem colombiana ou peruana pelo traquineiro muitas
vezes são para encobrir o movimento do contrabando local. Apesar do crescimento
significativo do mercado e do contrabando de cocaína na década de 2010, isso não
indica que tal movimento tenha comandado o aumento da criminalidade local. Isso
112
112
prova que nem sempre a realidade da cocaína determina a realidade da criminalidade;
nem sempre o traficante ou qualquer outra pessoa que se relaciona com a cocaína tem
controle ou envolvimento com a criminalidade, princípio que responde pela tese de
Michel Foucault de que na cidade onde a cocaína é mais barata é menor a possibilidade
de o viciado tornar-se um assaltante, pois não vai precisar roubar para poder comprar a
droga. A maior acessibilidade à cocaína é correlata ao aumento do contrabando. Em
Benjamin Constant as ocorrências do tráfico de cocaína não vão superar o índice da
criminalidade local.
A manifestação da sociedade contra a insegurança e o relatório do livro de
remessa de inquéritos policiais ao fórum da comarca da cidade demonstra que o
movimento de amadurecimento do tráfico de cocaína correspondeu de modo
independente ao movimento do aumento da criminalidade. A recorrência da apreensão
do tráfico de cocaína está na média dos crimes mais recorrentes nos anos de 2009 a
2013.
O aumento da criminalidade e falta de segurança foram a causa da
manifestação dos moradores dos bairros da Colônia, Castanhal e Cidade Nova através
de uma reunião na Escola Olavo Bilac. Segundo os moradores, não está havendo
segurança pública, as pessoas estão prisioneiras em suas próprias casas devido ao
aumento de casos de furtos, roubos, assaltos à mão armada, homicídios, e é preciso criar
meios para evitar que a criminalidade tome conta da cidade. Enquanto o município é
saqueado por um grupo de pessoas que estão se organizando como uma rede criminosa,
o efetivo da Polícia Militar é insuficiente para responder contra as recorrências dos
crimes praticados. Um dos problemas de segurança pública é a falta de iluminação das
ruas dos bairros, havendo inclusive pessoas que passam atirando para fazer com que os
moradores fiquem com medo. A estrada de Benjamin Constant e de Atalaia do Norte é a
mais afetada. Alguns assaltantes até ameaçam para não serem denunciados à polícia. Há
casos em que os policiais sabem quem são os assaltantes, alguns são até fugitivos da
justiça, mas quando os assaltantes estão relacionados à rede de criminalidade, os
policiais têm receio de efetivar a prisão por causa de suas vidas e as de suas famílias. O
Estado não oferece as condições e os recursos para atender a segurança pública da
população; diante da situação, é possível que alguns policiais possam até estar
envolvidos com alguns dos casos citados, embora uma parte significativa das
ocorrências seja cometida por jovens menores de idade. Por isso, segundo os moradores,
113
113
é preciso haver um envolvimento maior do Conselho Tutelar com a problemática da
criminalidade juvenil; uma medida que poderia ser adotada é a definição de um horário
noturno para o trânsito de menores de idade. Um dos agravantes da falta de segurança é
a ausência do juiz e do promotor da cidade.
O resultado da reunião foi a confecção de um abaixo-assinado com 59
páginas e 1.018 assinaturas, enviado para o ministro Joaquim Barbosa, presidente do
Conselho Nacional de Justiça e do Superior Tribunal Federal, para a ministra Maria do
Rosário, da Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, para o
Presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, Ari Jorge Moutinho da Costa, para a
Senadora do Estado do Amazonas, Vanessa Grazziotin, para o Senador do Amazonas,
Carlos Eduardo de Souza Braga, e também para o Procurador Geral do Ministério
Público. Nesse abaixo-assinado os moradores pedem providências para melhorar a
situação da delegacia da Polícia Civil e do quartel militar, que não conseguem fazer
frente ao aumento da criminalidade e do enraizamento do crime organizado e
especializado, e notícias da Coordenadoria Estadual de Segurança Pública na Fronteira
(ESFRON) para o Governador do Estado do Amazonas, Omar José Abdel Aziz, para o
Superintendente da Polícia Federal do Estado do Amazonas, Sérgio Lúcio Mar dos
Santos Fontes, Delegado da Polícia Federal em Tabatinga, Gustavo Pivoto, Comandante
Geral da Polícia Militar do Amazonas, Almir David Barbosa, Secretário de Estado de
Segurança Pública, Paulo Roberto Vital, Delegado Geral da Polícia Civil, Josué Rocha,
Secretário Executivo do Programa Ronda no Bairro, Amadeu Soares, Coordenador da
Estratégia Estadual de Segurança Pública na Fronteira (ESFRON), Ari Renato Oliveira
da Silva, Comandante do 8° Batalhão de Polícia Militar de Tabatinga, Audo
Albuquerque da Costa, Gren Hudson Paulain Machado, Juiz de Direito da Comarca de
Benjamin Constant, Prefeita de Benjamin Constant, Iracema Maia, entre outros.
A solicitação pede providências para o combate aos assaltantes à mão
armada e ao tráfico de cocaína, em parceria com a Polícia Federal, bem como o combate
aos recém-chegados pistoleiros; para os moradores, a criminalidade está pior do que em
Manaus, inclusive há comerciantes querendo mudar para outra cidade, devido ao
aumento da violência contra os estabelecimentos comerciais. Os assaltantes agem em
plena luz do dia e de cara limpa, ainda fazem ameaças àqueles que tentam denunciá-los.
A polícia tem tudo mapeado, mas pelo pouco efetivo da Polícia Militar e Civil os
policiais não podem fazer muita coisa, pois temem por represálias aos seus familiares.
114
114
Os pouquíssimos investigadores da Polícia Civil que deveriam fazer o serviço da
inteligência atuam como se fossem carcereiros. O efetivo de hoje da Polícia Militar é o
mesmo de dez anos atrás; além do mais, alguns ainda são deslocados para realizar
tarefas em outras cidades.
O edifício da delegacia civil e o quartel da Polícia Militar precisam
urgentemente de uma reforma e da construção de novos estabelecimentos para atender
as novas demandas criminais. A delegacia não tem água, a fiação elétrica é precária,
praticamente não há panela para fazer comida, porque as que existem são pequenas, o
fogão é pequeno. Temos informes que o Conselho Nacional de Justiça condenou o
prédio da delegacia civil. O quartel da Polícia Militar também está em estado de
precariedade, os militares têm que fazer conta para ir reformando o prédio. Houve preso
que, mesmo algemado, conseguiu fugir por uma janela da delegacia. As celas são
insuficientes, o que gera superlotação. Às vezes os detentos têm de ficar no corredor; no
caso de mulher, tem que dormir atrás da delegacia, na cozinha, que não têm paredes,
deixando o detento correr risco de vida numa possível tentativa de libertação de presos.
Só um policial faz a segurança da delegacia à noite. O preso só não foge porque não
quer. A comida que o Estado manda aos presos e os meios para o seu preparo não são
suficientes, as reclamações dos presos são constantes. O delegado precisa às vezes
solicitar comida da prefeitura para poder alimentar os detentos. Muitos presos são
libertados por falta de cela e por falta de juiz e promotor, que se encontram ausentes da
cidade, alimentando mais a criminalidade.
O assalto à mão armada é inexistente na cidade, sendo no momento motivo
de revolta popular a segurança pública de Benjamin Constant não estar indo bem,
comparando-se com o índice de remessa de ocorrência policial ao fórum da cidade,
sendo o relacionado ao crime de tráfico de cocaína inferior aos crimes de roubo, furto,
violência contra a mulher e estupro. Isso demonstra que o mercado da cocaína não
seduz nem induz ao crime, apesar de que os personagens ligados ao mundo do crime de
uma forma ou outra têm uma ligação com a cocaína, não pela suposta dependência
química, mas porque, na cidade, ela está complemente disseminada, é só mais uma
figura na cena do crime. A cocaína na cidade é uma coisa banal, o preço é baixo porque
é produzida e comercializada pela própria população. Não existe uma competição
acirrada pelo comando do tráfico de cocaína, todos podem participar de um modo ou de
outro, transformando tal realidade em ponto comum para a população e uma parcela
115
115
significativa da economia da cidade, pois está entre as atividades da cidade, embora não
seja o motivo dos assalto à mão armada, até os próprios comerciantes tradicionais de
cocaína não concordam com o novo comportamento da criminalidade, pois as próprias
famílias podem ser vítimas dos assaltantes. O crime à mão armada não é para comprar
cocaína, é uma especialização do crime de Benjamin Constant. O crime quer se tornar
uma profissão, um meio de renda, quer ter um espaço na cidade. A manifestação
popular indica que o assalto à mão armada está se tornando mais popular do que o
tráfico de cocaína, este que durante 40 anos foi o crime da moda.
O levantamento das ocorrências policiais de janeiro de 2009 a outubro de
2013 indica que o tráfico de cocaína está sendo suplantado por outras modalidades de
crime; indica ainda que o tráfico está perdendo força por conta da sua banalidade ou por
conta do seu amadurecimento. Doravante o crime especializado deve absorver o tráfico
de cocaína. Isso nos mostra que o limite da cocaína não é tão imprevisível, estamos
vivendo o momento áureo do consumo recreativo da cocaína, de modo a relativizar,
equiparar e equalizar um modo singular da realidade da cocaína.
No ano de 2009, o tráfico de cocaína contabilizou um total de sete crimes,
ficando ao lado da violência doméstica e familiar contra a mulher e do estupro, ambos
contabilizando sete crimes, com uma diferença significativa em relação ao furto, com
treze crimes. Outros aparecem na média de um a dois crimes, dentre eles a falsa
identidade, abandono de pessoas sob seus cuidados, preconceito de raça, peculato,
maus-tratos, sequestro e cárcere privado, aborto, atentado contra a liberdade sexual
mediante fraude, suicídio, danos, manter arma de fogo.
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116
Gráfico 1: Dados do livro de remessa de ocorrências policiais de 2009 da Delegacia da
Polícia Civil, feito no mês de outubro de 2013.
O índice da criminalidade no ano de 2010 cresceu em relação ao ano
anterior: o tráfico de cocaína pulou para doze crimes, a violência contra a mulher subiu
para quarenta e um, o furto para vinte, o estupro para cinco e o estupro de vulnerável
(atentado contra menores de 14 anos) se destacou com dez crimes, sequência vem o
roubo com quatro, maus-tratos com dois, lesão corporal com seis, arma de fogo com
seis. Outro crime que se destacou nesse ano foi o homicídio com oito crimes. Outros
crimes com menor potencial criminológico ficaram na média entre uma e duas
ocorrências, crimes estes que são de falsificação de documentos, danos, incêndio,
fornecimento de bebidas alcoólicas a menor, exposição de outros a perigo de vida
mediante explosivo, atestado médico falso, perturbação de sossego público, fotografia
ou publicação de cena de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente, formação
de quadrilha, falsidade ideológica, injúria, ameaça.
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anti
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Ocorrências
Ocorrências Policiais na cidade de Benjamin Constant em 2009
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Gráfico 2: Dados do livro de remessa de ocorrências policiais de 2010 da Delegacia da
Polícia Civil, feito no mês de outubro de 2013.
No ano de 2011, o tráfico de cocaína manteve a média entre o ano de 2009 e
2010, com nove crimes, e o crime de violência contra a mulher decaiu para vinte e sete;
essa tendência serve também para o furto com doze, o roubo com dois, o estupro com
dois e o estupro de vulnerável com cinco. A lesão corporal manteve-se com seis, arma
de fogo com três e o homicídio com oito crimes. Outros crimes no ano de 2011 com
menor potencial criminológico mantiveram a média de um a dois crimes, dentre eles os
maus-tratos, incêndio, ameaça e difamação, preconceito de raça, aborto, afogamento,
embriaguez no volante e falsificação, violação de domicílio, crimes ambientais,
obtenção de vantagem ilícita, apropriação indevida, recepção e tortura.
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Ocorrências
Ocorrências Policiais na cidade de Benjamin Constant em 2010
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Gráfico 3: Dados do livro de remessa de ocorrências policiais de 2011 da Delegacia da
Polícia Civil, feito no mês de outubro-2013.
O tráfico de cocaína no ano de 2012 não apresenta crescimento, mantém o
ritmo de 2009; também sem alteração mantém-se o crime de violência contra a mulher
com trinta e uma ocorrências, o furto com vinte e seis, estupro de vulnerável com seis,
lesão corporal com sete, arma de fogo com cinco, homicídio com quatro; o roubo decaiu
para três crimes, também o estupro com um crime, um crime de usurpação ou
exploração indevida de modelo ou desenho privilegiado, uma violação de domicílio,
uma ameaça e difamação, duas recepções e um atestado médico falso.
0
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Ocorrências
Ocorrências Policiais na cidade de Benjamin Constant em 2011
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Gráfico 4: Dados do livro de remessa de ocorrências policiais de 2012 da Delegacia da
Polícia Civil, feito no mês de outubro de 2013.
O tráfico de cocaína no ano de 2013, com quinze crimes, não superou o
crime da violência contra a mulher, com quarenta e um crimes, e o furto, com dezoito
crimes; o estupro decaiu para um crime; o estupro de vulnerável manteve a média com
sete crimes; em seguida, veio a arma de fogo, homicídio, apropriação indébita, recepção
e incêndio.
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e
Ocorrências
Ocorrências Policiais na cidade de Benjamin Constant em 2012
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Gráfico 5: Dados do livro de remessa de ocorrências policiais de 2013 da Delegacia da
Polícia Civil, feito no mês de outubro de 2013.
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5
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Ocorrências
Ocorrências Policiais na cidade de Benjamin Constant em 2013
(até outubro)
121
121
5. O governo da cocaína
O governo da cocaína é a conjunção, a conjugação, a conexão, a
reciprocidade e a cumplicidade dos brasileiros, peruanos e colombianos com os
dispositivos de segurança de Estado, que constituem um modo de governo da
Amazônia, chamado poder ecológico, uma peça imersa do iceberg político ocidental,
que vem se repetindo na racionalidade ecológica, constituída na metade do século XIX,
período do estabelecimento da política econômica responsável pela abertura da
Amazônia à expansão e exploração dos recursos sustentáveis, elaborada pelo governo
militar e civil. A ascensão do governo militar com o golpe de 1° de abril de 1964
instaurou no Brasil a era da segurança nacional. Em 1966, é lançado o primeiro projeto
estratégico para o desenvolvimento regional da Amazônia, com o objetivo de ocupar e
integrar a região, intitulado Operação Amazônia. A Operação Amazônica é a instalação
do poder ecológico no mecanismo de segurança do Estado brasileiro, que podemos
denominar de governo do homem amazônico, através de uma estratégia do governo
militar para criar condições para a implantação de instituições governamentais com o
objetivo de gerenciar e coordenar os recursos federais para ocupar a Amazônia.
Para os militares a fronteira amazônica possui uma baixa densidade
demográfica. Desde então, a Operação Amazônia, por meio do governo federal, se
empenhou em atrair recursos financeiros através da renúncia fiscal e investimento em
megaprojetos. A montagem de um esquema global de desenvolvimento envolveu a
criação de novos mecanismos relacionados à racionalidade ecológica. Dentre eles tem-
se o Banco da Amazônia, a Sudam e a Zona Franca de Manaus. Com essa projeção a
economia da Amazônia vai perdendo seu caráter extrativista para a instalação da
agropecuária e a criação de gado a partir de 1966; na década de 70 é a vez da
mineração, metalurgia e siderurgia e os projetos de segurança da fronteira para
assegurar a região do Alto Solimões, devido aos constantes conflitos de movimentos
subversivos e tráficos de drogas que representam um perigo para a segurança da
fronteira nacional.
O poder ecológico, por meio da política econômica do governo federal,
altera em proporções irremediáveis a ecologia humana. Os projetos econômicos, ao
devastar uma parcela da Floresta Amazônica, contribuem para o aniquilamento da
condição humana da população que vive da sustentabilidade do meio ambiente. Nas
duas décadas que se seguiram ao fim do regime militar no Brasil, o poder ecológico
assumiu crescente importância com a configuração urbana da fronteira brasileira, com a
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122
definição da área de segurança nacional, com a faixa de fronteira, com os tratados com
os países de fronteira, em especial o Tratado de Bogotá. A Constituição de 1988, que
define a política de segurança em torno do tráfico de cocaína como objeto da Polícia
Federal, em seguida a implantação do projeto Calha Norte em 1985, na década seguinte
a implantação do Sistema de Vigilância Aérea da Amazônia (Sivam), no cenário da
defesa nacional que se solidificou com a criação do Ministério da Defesa em 1999,
consolidando a política externa em relação à região.
A configuração da aglomeração urbana recente na fronteira amazônica
provém da presença militar brasileira, desde a fundação de Tabatinga como um forte
que se ergueu como o último bastião da expansão portuguesa durante o século XVIII. A
fronteira do Brasil com a Colômbia foi estabelecida através dos Tratados de Bogotá em
1907, e do Rio de janeiro em 1928, após o tratado que definiu no mesmo ano a situação
colombiana, cuja posse estava até então em litígio entre o Peru e a Colômbia. A
configuração da fronteira só teve lugar depois de tortuosas negociações entre Colômbia,
Peru e Brasil no conhecido acordo diplomático internacionalista, o qual incluiu uma
tendência à guerra entre Peru e Colômbia pela tomada de Letícia em 1932 por parte dos
contingentes armados da região peruana de Loreto que vai se configurar na chamada
tríplice fronteira que compreende, desde o sul, sobre o rio Amazonas entre os extremos
de Atacuari na parte ocidental e Letícia na parte oriental, na jurisdição dos municípios
de Puerto Nariño e Letícia; para o norte, o rio Putumayo entre a divisória de águas do
rio Puré e do Putumayo, na parte ocidental até cruzar a linha Apaporis-Tabatinga, na
parte oriental, lugar em que fica o povoado de Tarapacá. O Brasil está localizado na
parte oriental da fronteira. O Peru ocupa a parte ocidental e parte sul do rio Amazonas.
A cidade Benjamin Constant, em meados do século XX, é a maior
aglomeração urbana na fronteira, com constante ocorrência de fluxos transfronteiriços,
devidos a dois fatores de ordem econômica que afetaram a condição desses três núcleos:
a questão da navegação do rio Amazonas, por razões de localização diretamente ligada a
Tefé e a Benjamin Constant; e, no final do século XIX, a grande exportação de
borracha, que pela primeira vez deu à região um sentido de economia de grande
produção, inserindo no capitalismo global, mais tarde, a ascensão do extrativismo da
madeira e da cocaína e a corresponde ilegalidade exige do Estado maior intensificação
de controle e segurança, devido suas características geopolíticas de área de fronteira
política e econômica.
123
123
A Lei Federal n. 5.449 de 1968 integra o município à Área de Segurança
Nacional sob o Comando de Fronteira do Solimões. A Lei n. 6.634 de 1979 dispõe
sobre a faixa de fronteira. Esta lei considera faixa de fronteira 150 km de área da
segurança nacional. Por isso, a cidade mantém relações diretas com o governo central
por localizar-se em território constitucionalmente federal, e indiretas porque as
principais decisões a seu respeito e os recursos que recebe estão sob a jurisdição de
órgãos específicos da União. No domínio político mantém relação direta, já que, como
área de segurança nacional, o prefeito é nomeado pelo governador do estado, mas deve
contar com a aprovação do Presidente da República. Todos os projetos municipais são
submetidos à administração direta da Secretaria Geral do Conselho de Segurança
Nacional.
Uma série de restrições foi imposta ao município referente à alienação e
concessão de terras públicas; aberturas de vias de transportes; instalação de meios de
comunicações destinados à exploração de serviços de radiodifusão de sons ou de sons e
imagens; construção de pontes, estradas internacionais e campos de pouso;
estabelecimento ou exploração de indústrias; instalação de empresas que se dedicarem
às atividades de pesquisa, lavra, exploração e aproveitamento de recursos minerais,
salvo aquelas de imediata aplicação na construção civil, assim classificadas no Código
de Mineração; colonização e loteamento rurais, como também transações com imóvel
rural que impliquem a obtenção, por estrangeiro, de domínio, posse ou qualquer direito
real sobre o imóvel e também a participação, a qualquer título, de estrangeiro, pessoa
natural ou jurídica, em pessoa jurídica que seja titular de direito real sobre imóvel rural.
A fronteira norte do Brasil identifica-se com as cidades do Alto Solimões.
Localizada na Mesorregião do Sudoeste Amazonense, é atualmente composta de nove
municípios: Atalaia do Norte, Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença,
Amaturá, Santo Antônio de Içá, Tonantins, Jutaí e Fonte Boa. Recentemente, segundo o
Ministério Público do Estado do Amazonas (2011), o Alto Solimões tem um área
geográfica de 213.281.129 km2 e uma população de 245.047 habitantes. Desses
municípios, juntamente com Benjamin Constant, fazem parte do limite internacional,
distando 150 km da faixa de fronteira, as cidades de Atalaia do Norte, Tabatinga, São
Paulo de Olivença e Santo Antônio de Içá.
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124
As relações do poder ecológico existente nas cidades Benjamin Constant,
Tabatinga e Letícia são intensas, em especial nas atividades da ilegalidade, alimentada
pela configuração urbana, que forma uma rede urbana de fronteira interligada pelas
redes de controle estratégico do Estado através das Forças Armadas do Exército, da
Polícia Federal, Polícia Militar e os inúmeros projetos de vigilância e controle do
território, juntamente com a presença do sistema judiciário penal. A urgência do
cumprimento da lei na forma da Constituição exigiu do estado e dos territórios
nacionais um aparelhamento jurídico e militar presente e funcional nas cidades para
regular e normatizar a infração e as prerrogativas penais. Com os direitos e garantias
constitucionais relativas aos crimes hediondos, como a prática de racismo e tortura e o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins representaram a culminância da
simplicidade das ilegalidades.
Segundo MENEZES (2009), essa aparelhagem do governo federal
representou uma centralização governamental que teve um importante papel político na
nacionalização do território do Alto Solimões20
. Em 1969 é instalado o campus
avançado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, através do Projeto
Rondon. Em 1985 é aprovado pela Presidência da República, em 19 de dezembro, o
projeto Calha Norte através da exposição de motivos de desenvolvimento e segurança
na região ao norte dos rios Solimões e Amazonas. Nessa época foi formado um grupo
de trabalho interministerial que deveria fazer pesquisas e propor medidas sobre a
realidade da integridade territorial e da soberania brasileira da calha dos rios Solimões e
Amazonas. Três zonas distintas foram identificadas: a faixa de fronteira, com 150 km de
largura, entre as cidades de Tabatinga e Oiapoque; a orla ribeirinha dos rios Solimões e
20
Segundo Menezes (2009), “desde a divisão entre Espanha e Portugal pelo Tratado de
Tordesilhas, grande parte da Amazônia (em especial a parte ‘tomada’ aos espanhóis) tem sua
história atrelada às questões de soberania e ocupação da região. Machado (1989) esclarece que,
mesmo que distante ou desvinculada de uma presença mais efetiva da gestão colonial, e depois
imperial, a Amazônia foi cenário de políticas que caracterizam diferentes empreendimentos
geopolíticos: primeiro, com a disputa entre Portugal e Espanha; posteriormente, na coesão
territorial do estado imperial; e mais tarde na convergência de interesses da república brasileira.
As diferentes políticas e os sucessivos recortes territoriais operaram com um objetivo comum:
manter a região sob o domínio territorial do Estado nacional” (p. 228).
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125
Amazonas e seus principais afluentes; a hinterlândia, constituída dos espaços interiores
limitados pelos dois primeiros. A reduzida presença brasileira na área de fronteira e
todos os problemas daí decorrentes pesaram na escolha da faixa como área prioritária e
preferencial para ação imediata do governo. Foi criado, então, o programa Calha Norte,
sob o controle do Exército. Na época, a mídia nacional e internacional criou uma
celeuma, acusando o governo de militarizar Amazônia. Os órgãos envolvidos alegam
uma série de fatores adversos que dificultaram a sua consecução, entre os quais: o
imenso espaço geográfico da área; a precária rede viária, predominantemente fluvial; as
dificuldades enfrentadas pelos governos estaduais e federal em se fazerem presentes; a
distância entre marcos fronteiriços e as dificuldades que também têm os governos dos
países vizinhos em projetarem seu poder nas áreas limites.
A Constituição de 1988 estabelece as terras devolutas indispensáveis à
defesa das fronteiras que se encontram numa faixa de 150 km de largura ao longo das
fronteiras terrestres brasileiras. A execução do projeto fica a cargo dos serviços de
polícia de fronteiras, como também a exploração direta ou mediante autorização,
concessão ou permissão dos serviços de transportes ferroviário e aquaviário entre portos
brasileiros e fronteiras nacionais. O Conselho de Defesa Nacional tem a tarefa de propor
critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território
nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas
relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo.
Estabelece condições específicas para a pesquisa e a exploração dos recursos minerais
do subsolo quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira e condiciona
sua realização à autorização ou concessão da União. Simultaneamente à Assembleia
Constituinte foi criado o Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira da
Amazônia Ocidental – o PROFFAO. Atualmente a faixa de fronteira e seu
desenvolvimento social estão a cargo da Secretária de Programas Regionais Integrados
do Ministério da Integração Nacional. A presença dos militares é outra característica
fundamental da faixa de fronteira. Cumpre não só a função defensiva, mas também no
caso do Brasil, constitui uma das fontes de sobrevivência de várias povoações. A
implantação de batalhões e pelotões de fronteira do Exército foi responsável não só pela
sobrevivência de vilas e povoados da época colonial como também pela formação de
núcleos urbanos que ascenderam à condição formal de cidades, caso de Tabatinga.
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126
Na década de 1980, a organização espacial ainda pode ser considerada de
baixa densidade populacional, com uma forte presença indígena e uma escassez ou
mesmo ausência em muitos casos de articulações regionais, embora tenha redes de
articulação que se sobrepunham ao limite internacional. A exportação de borracha, peles
e madeira inicialmente, e mais tarde de drogas e precursores químicos, aliada às trocas
comerciais realizadas entre as cidades de Benjamin Constant, Tabatinga e Letícia
ampliaram a rede de relações do local ao global e provocara alterações na organização
espacial e na acumulação interna de capital, de forma concentrada e não reinvestida no
local; além do mais, essas atividades provocaram uma intensa urbanização, uma
incipiente diferenciação na hierarquia urbana e uma desagregação das atividades
extrativas e de subsistência. Essas atividades atraíram imigrantes dos países vizinhos e
de outras regiões em busca de trabalho ou de oportunidade de enriquecimento, o que
garantiu a subsistência dessas cidades e conferiu à região um traço cultural
característico.
A conexão dessa economia com os novos acontecimentos econômicos e
políticos de modernização e segurança para a Amazônia inspirados pelos regimes
militares vão tornar-se a principal força da construção da fisionomia da fronteira
amazônica. O fim da Guerra Fria acrescentou novos temas a essas antigas percepções.
Nesse novo contexto, países europeus e os Estados Unidos parecem aderir, pela voz de
suas autoridades, à nova voga da soberania relativa, do direito de ingerência e da
necessidade de mudar as funções das Forças Armadas para fazer frente à ameaça mais
concreta, como o narcotráfico e o crime organizado. No que diz respeito à Amazônia,
fez surgir um novo rótulo para um velho tema: a cobiça internacional reaparece vestida
com a roupagem das pressões pela internacionalização, no quadro das preocupações
mundiais com a extinção da floresta tropical ou com a proteção dos direitos dos povos
indígenas.
As preocupações dos militares brasileiros com a Amazônia não são recentes.
A implantação do Projeto Calha Norte durante o primeiro governo civil pós-ditadura
(1985-89) apontava já para uma orientação militar voltada para o norte do país, embora
ainda fortemente marcada pelo anticomunismo da Guerra Fria. Na época, a principal
justificativa para o aumento da presença militar na região, com o melhoramento e a
instalação de vários pelotões de fronteira, era a ameaça de interferência cubana nas
crises vividas pela Guiana e pelo Suriname.
127
127
O governo brasileiro foi acusado de “militarizar” a região amazônica e de
não apresentar recurso para desenvolver o programa Calha Norte. Uma série de fatores
dificultaram a realização do projeto. O imenso espaço geográfico da área; a precária
rede viária, predominantemente fluvial; as dificuldades enfrentadas pelos governos
estaduais e federal em se fazerem presentes; a distância entre marcos fronteiriços e as
dificuldades que também têm os governos dos países vizinhos em projetarem seu poder
nas áreas limites.
Essas visões foram agravadas pela disposição do presidente Fernando Collor
(1990-92) de inserir o Brasil na agenda estabelecida pelas transformações mundiais,
cuja principal expressão foram as críticas aos projetos da ditadura militar para a
Amazônia, as sugestões de revisão do projeto Calha Norte e, sobretudo, a demarcação
das terras indígenas e o avanço do narcotráfico, atendendo a exigência da Constituição
de 1988. O narcotráfico agrava a violência na fronteira amazônica colombiana já
constituída pelos processos de ocupação do passado e pelas ditaduras militares. Prejuízo
semelhante é causado pela chegada do capital internacional, beneficiado com parcelas
significantes de terras; devasta-se a floresta para extração de petróleo, minerais,
madeiras e em atividades agropecuárias, utilizando-se do método do aviamento já
conhecido na região e acentuando a escravidão voluntária do trabalhador. Os indígenas
são também ameaçados pelas empresas capitalistas e pelo comércio da cocaína, que
usam tanto sua cultura quanto sua força de trabalho. Os valores culturais acumulados
em séculos e o patrimônio cultural dos povos indígenas começaram a se decompor, a
desaparecer, varridos para sempre pelas novas relações sociais.
Em 1989, o presidente George H. W. Bush declarou que as drogas eram
uma ameaça que a nação enfrentava. O Departamento de Defesa do mesmo país ficou
responsável pela detecção e monitoramento dos carregamentos do produto. Essa
iniciativa, para alguns observadores, fazia parte da política de influência sobre as Forças
Armadas da America Latina. Segundo FILHO (2006), “entre 1990 e 1994, foram
transferidos US$ 2,2 bilhões em ajuda econômica para a Colômbia, o Peru e a Bolívia”
(p. 17). Essas transferências significaram um envolvimento militar sistemático das
Forças Armadas americanas em operações contra o narcotráfico nos ditos “países
produtores”. Até 1998, o Programa de Controle Internacional de Narcóticos do governo
americano transferiu para a Colômbia um terço das verbas que foram usadas pela
Polícia Nacional da Colômbia nas operações realizadas contra as FARC e o ELC,
128
128
embora houvesse uma preocupação do Comitê das Forças Armadas da Câmara dos
Deputados dos EUA com a influência dos militares nos assuntos que diziam respeito à
guerra civil colombiana.
A fronteira amazônica colombiana passa a ser uma preocupação para a
defesa do Brasil. Na época alguns militares se manifestaram a esse respeito. Na opinião
dos militares, a posição do Comando Militar da Amazônia era de não intervir em
território colombiano, visando a combater a guerrilha, pois isso não era um problema do
Brasil. Os militares brasileiros pretendiam deixar claro que o assunto da guerrilha devia
ser resolvido pelos colombianos, sem a interferência de terceiros, inclusive dos norte-
americanos.
Em outubro de 1999, o presidente do governo colombiano Andrés Pastrana
divulga um plano para a paz, prosperidade e fortalecimento do estado, documento
intitulado Plano Colômbia. Segundo FILHO (2006), o “documento parecia feito sob
medida para fundamentar a reivindicação de maior ajuda militar dos EUA ao país” (p.
19). No ano seguinte, Clinton, do governo americano, lança a Proposta de Assistência
ao Plano Colômbia que previa um dispêndio de aproximadamente US$ 7,5 bilhões para
combater, em especial, o narcotráfico e a guerra civil; além do mais, estava incluído no
plano atividades de combate às plantações, de inteligência, de interdição aérea e
terrestre.
A internacionalização da Amazônia colombiana pelas forças armadas
americanas produz reflexos na fronteira brasileira. A percepção de possíveis ameaças de
intervenção externa na Amazônia, pela política norte-americana de combate ao
narcotráfico, cuja expressão foi o lançamento do Plano Colômbia, representou uma
intensificação da austeridade militar nos países amazônicos.
A preocupação do governo brasileiro era a criação de três novos pelotões do
Exército colombiano, que poderiam mudar as estruturas das Forças Armadas na
fronteira, pelo fornecimento de helicópteros, logística, inteligência e treinamento, que
deveriam atuar nos Departamentos de Putumayo e Caquetá, território de fronteira com o
Alto Solimões, região de plantio de coca amplamente afetada pela presença de grupos
guerrilheiros e paramilitares. O Brasil não tinha desejo de ter participação decisiva das
Forças Armadas no combate ao tráfico de cocaína. Houve um esforço por parte da
política brasileira de resistir às pressões americanas para que não houvesse um
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envolvimento direto, considerando o narcotráfico como um problema de segurança
nacional; esta postura ficou conhecida como estratégia da resistência, o que ocasionou
um deslocamento efetivo das Forças Armadas para a Amazônia, em especial para a
região do Alto Solimões, de Tefé a Benjamin Constant e Tabatinga – fronteira com
Letícia, cidade colombiana.
O ministro da Defesa, Geraldo Quintão, em seu discurso na Câmara dos
Deputados, em 2000, considerava a América do Sul um continente que não participava
das tensões mundiais, dado o seu distanciamento, a sua tendência para democratização e
os baixos gastos militares, fatores que contribuem para a ausência de conflito. Por sua
posição nesse quadro de circunstância, o Brasil pode contribuir para promover a
estabilidade e cooperação entre os países. Tudo indica que o Ministério da Defesa
procurava contornar a iniciativa americana de alinhamento automático com os países
sul-americanos como prioridade da política de segurança dos EUA. Segundo o discurso
do ministro na Câmara dos Deputados, o governo colombiano devia encaminhar, da
forma que julgasse a mais conveniente, a solução da crise do país. O Brasil defende a
posição de que qualquer auxílio à Colômbia deve ser prestado dentro das linhas mestras
que tradicionalmente têm orientado a ação externa brasileira, como as da não
intervenção, do respeito à autodeterminação e da não ingerência em assuntos internos de
outros países. O discurso do ministro considera o narcotráfico um problema relacionado
aos assuntos de segurança e não de defesa nacional. No seu depoimento, o ministro
coloca o narcotráfico como um inimigo principal no contexto hemisférico e uma grave
ameaça, propagadora da cultura da violência e um dos principais crimes organizados
que não se apresenta na forma de força militar convencional.
Por isso, o narcotráfico deve ser considerado de natureza policial. Essa ideia
é defendida pelo ministro no Senado Federal em 2000. O narcotráfico é um inimigo real
cujas ramificações internacionais levam ao desenvolvimento de uma cultura de
violência e subversão, que contamina o tecido social e ameaça as instituições nacionais
e que, portanto, precisa ser combatido com determinação. Contudo, o crime organizado
não deve ser enfrentado pelas Forças Armadas regulares. Nesse sentido, há consenso de
que a questão do narcotráfico, por disposição constitucional expressa, é de natureza
policial. Diante da situação da Colômbia, o governo brasileiro resolveu tornar efetiva a
presença do Estado na Amazônia com a retomada do projeto Calha Norte e a Operação
Cobra. Isso indica que, mais uma vez, os militares não admitem a formação de exército
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multinacional de intervenção em assunto interno da Colômbia, seja a guerrilha, seja o
narcotráfico.
No governo do presidente Lula, as Forças Armadas mantiveram a tendência
de atribuir prioridades estratégicas para a Amazônia, com transferências de unidades,
criação de novas unidades e realização de operações na região.
O poder ecológico amplia as suas relações de vigilância e de controle sobre
a Amazônia a partir do Decreto nº 5.484, de 30 de junho de 2005, que considera a
riqueza do potencial mineral e da biodiversidade da Amazônia um foco da atenção
internacional, que por isso deve ser considerada área de prioridade para a defesa
nacional. A implantação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) foi marcada
por polêmica no âmbito político e acadêmico. O foco da discussão, segundo
LOURENÇÃO (2006), concentrava-se nas opções governamentais, “principalmente o
fato de o governo não haver recorrido à capacidade científica brasileira, tendo, ao
contrário, optado pela aquisição de pacotes tecnológicos completos dos EUA” (p. 119).
O Sistema de Vigilância da Amazônia está integrado ao Sistema de Proteção
da Amazônia. O Sipam é um programa governamental multiministerial, concebido pela
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE\PR), em
conjunto com o Ministério da Justiça e da Aeronáutica. O Sipam tem como prioridade a
defesa, proteção, soberania, desenvolvimento e vigilância do espaço terrestre e aéreo,
através da produção de informação e elaboração de conhecimento, que ao serem
integrados ao Sivam, são difundidos aos órgãos governamentais da Funai, Ibama,
Polícia Federal, Inpe, entre outros, cuja integração tem como propósito a elaboração de
atividades relacionadas em ações globais e coordenadas, na forma de políticas públicas
para a sustentabilidade da Amazônia.
A vigilância sistemática, em especial, a segurança do tráfego aéreo para
responder às ocorrências de atividades ilegais na região. A estrutura do sistema de
vigilância é composta por subsistemas de aquisição de dados, de tratamento e
visualização de dados, de telecomunicações, de suporte de transmissão e de auxílio à
navegação aérea. Os dados obtidos geram informações sobre o ecossistema, atividades
ilícitas, movimentos aéreos, condições hídricas e meteorológicas, comunicações
clandestinas. As informações são geradas por sensoriamento aéreo e por satélite, por
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controle do tráfego aéreo e da superfície, monitoração ambiental e meteorológica, redes
de telecomunicações, tratamento e visualização de dados e energia elétrica.
As atividades são transmitidas por uma rede integrada de telecomunicação e
processadas por redes de estações de trabalho computadorizadas pelos centros regionais
de vigilância de Manaus, Porto Velho e Belém e pelo Centro de Coordenação Geral, em
Brasília. Diante da percepção de ameaça, a defesa e a proteção da Amazônia devem
proporcionar política pública de assistência às populações locais e indígenas, tendo em
vista a sobrevivência, soberania e valorização das atividades culturais, articulada com o
desenvolvimento sustentável que possa garantir melhoras econômicas e sociais, por
meio da proteção e exploração da reserva florestal, dos recursos hídricos e da
biodiversidade, e também combater a destruição do meio ambiente, o contrabando de
madeira e o tráfico de cocaína. Com essa intervenção fica clara a percepção de que, sem
essa ocupação racional, publicamente orientada, a devastação ambiental seria uma
tendência natural, trazendo consigo toda a carga da pressão internacional e de
intervenções sobre o assunto, além da manutenção do tão pernicioso atraso social e
tecnológico.
As críticas ao Sivam incidiram principalmente sobre a maneira de definir o
projeto, constituído sem a presença da comunidade científica nacional, optando pela
importação tecnológica do conjunto de componentes do sistema. Outras críticas recaíam
sobre a configuração e a arquitetura do projeto, bem como sobre seu tamanho e
dimensionamento, que não seriam os mais adequados para proporcionar uma defesa
efetiva e a ampliação do conhecimento acerca dos problemas amazônicos. Na defesa do
Sivam posicionou-se o governo federal, sobretudo o presidente Fernando Henrique
Cardoso, a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) e o Ministério da Aeronáutica,
além da equipe da Comissão Coordenadora do Projeto Sivam (CCSivam) e da
Comissão de Implantação do Sistema de Proteção da Amazônia (CISivam).
Em 1995, a comunidade científica brasileira se posicionava sobre o papel e
o espaço da ciência na concepção do Sivam, quanto à decisão governamental de adquirir
tecnologia estrangeira, em vez de procurar utilizar institutos, universidades, empresas e
cientistas do Brasil. Muitos deles, membros da SBPC, julgaram que conforme estava
sendo proposto e encaminhado, evidenciava a incompetência dos órgãos
governamentais decisórios para administrar a contratação de serviços especializados, o
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que significava malversação do dinheiro público. Um dos principais críticos foi
Cerqueira Leite, em artigo na Folha de S. Paulo de 9 de maio de 1995. A opção pela
tecnologia estrangeira estaria relegando a segundo plano o desenvolvimento científico
brasileiro. Além do mais, demonstraria uma desconfiança na capacidade da ciência, em
seu desenvolvimento científico e tecnológico, o que indica uma crença infundada na
incapacidade intelectual do Brasil. O físico Luiz Pinguell Rosa, em carta enviada para a
Folha de S. Paulo em 13 de junho de 1995, afirma que as tecnologias básicas para a
construção de um sistema de vigilância eletrônica, como radares, sensoriamento remoto,
redes de comunicações e teleinformática para viabilizar uma vigilância automatizada
sobre o espaço aéreo e sobre o patrimônio ambiental da Amazônia estavam
desenvolvidas a ponto de responder pelas exigências da segurança nacional, que poderia
maximizar a utilização do parque industrial nacional e criar empregos e fornecedores
locais, contribuindo para elevar ainda mais o patamar brasileiro de capacitação
tecnológica. Segundo Luiz Carlos Moura Miranda, pesquisador titular do Laboratório
de Sensores Ambientais do Inpe, os sensores remoto e o geoprocessamento constituíam
um mercado emergente, com aproximadamente vinte empresas operando regularmente,
atuando em regiões do país, inclusive na Amazônia. Essa experiência deveria ter sido
aproveitada para consolidar o parque industrial na área de monitoramento ambiental. A
preservação do talento e da inteligência nacionais constituiria papel central do Estado,
preconizou que a área de vigilância ambiental poderia ser confiada à inteligência
nacional, que teria plenas condições de cumprir com sucesso todos os objetivos
pretendidos pelo Sivam. Outro problema abordado é o contraste entre as informações
produzidas pelo sistema e a incapacidade do governo de agir sobre essas informações.
Não adianta detectar contrabandistas, narcotraficantes, queimadas ilegais ou voos
clandestinos se os órgãos responsáveis – Polícia Federal, Receita Federal, Ibama,
Judiciário, Forças Armadas etc. – não têm estruturas adequadas para a intercepção e o
tratamento desses problemas.
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4. A HISTÓRIA DE BENJAMIN CONSTANT
1. Benjamin Constant
A modernidade do poder ecológico em Benjamin Constant começa em
1755, com a fundação do povoado do Javari pelos jesuítas para atender o deslocamento
dos índios ticuna para as margens do rio Solimões. O governo português cria a capitania
de São José do Rio Negro. A aldeia do Javari representou a consolidação da ocupação e
da urbanização brasileira da região, sobretudo dos altos cursos dos afluentes do rio
Solimões e do rio Javari. O povoamento do Javari é a mais antiga colônia portuguesa.
Posta na embocadura do rio Javari com o Solimões e com os países limítrofes, é um
ponto estratégico de passagem da rede fluvial e de caminhos que recebeu atenção no
Tratado de Madri (1761) e no tratado de Santo Ildefonso (1777) por ser uma rota de
contrabando de mercadorias e de pessoas. A modernidade de Benjamin Constant é
correlata da manifestação do poder ecológico que manteve a dialética entre a
racionalidade local e a racionalidade ecológica global da disciplinarização da conduta
dos novos brasileiros, peruanos e colombianos, conectado com a biopolítica da
população pelo controle dos mecanismos do Estado e das estratégias da empresa
capitalista internacional, que juntos constituem um modo de governo das pessoas por
meio das atividades da borracha, da madeira, da cocaína, da imigração, da urbanização,
da prefeitura, da administração e dos meios técnicos e educacionais, das formas de
criminalidade e das formas de ilegalidade. A consolidação das relações de poder
determina a vida política, econômica, social e cultural de cidade de Benjamin Constant.
Em 1898 é criado o povoado de Remate de Males, que teve lugar no
seringal Remate de Males, cujo fundador teria sido Alfredo Raimundo de Oliveira
Bastos, nordestino, seringueiro do Alto Rio Javari, região inóspita, que resolveu
abandonar as lutas para se localizar num ponto onde aguardaria a decisão do destino.
“Escolheu o sítio à margem do rio Itecoaí, afluente da mesma orla do rio Javari, onde
em 1890, se localizando, pronunciou a seguinte frase: “Aqui vou rematar os meus
males’” (MELLO, 1967, p. 136). Essa região foi considerada pelos estados nacionais
em diferentes momentos históricos espaços vazios, refúgio daqueles colocados à
margem das sociedades nacionais, mas que de todo modo continuava sendo habitada
por povos indígenas, com pouca relação com o Estado, como é o caso do ticuna; ao
contrário, os índios originários do rio Javari não mantinham nenhuma relação com a
sociedade nacional. O controle do Estado sobre o território do Alto Solimões pode ser
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compreendido pela política de estabelecimento da sede do governo. No início do século
XX, esse território está sob a jurisdição de São Paulo de Olivença, embora nesse meio-
tempo, em 1909, o povoado tenha sido um território anexo à comarca instalada no lugar
chamado Santo Antônio. Era um seringal à margem direita do rio Solimões, fundado
pelo cidadão peruano D. Flávio Ortiz. O maranhense Antônio José dos Remédios,
adquirindo a propriedade, fundou uma casa de comércio, que transferiu aos cidadãos, o
português Fulgêncio da Mota Marques e o colombiano Antônio Angarita, constituídos
numa importante sociedade sob a firma comercial F. M. Marques & Companhia.
Remates de Males serviu de sede ao município até 1928, quando a sede foi
transferida para a Vila Esperança em 1934, quando recebe o nome de Benjamin
Constant, com sede no mesmo local, sendo o lugar atual de Benjamin Constant, na foz
do rio Javari com o rio Solimões. Esperança, também à margem direita do Solimões, foi
um sítio demarcado pelo cidadão Pedro Ferreira de Souza, cujo título é datado de 4 de
junho de 1909. Transferida a sede do município, prevaleceu o nome de Esperança, até
que, por sugestão telegráfica do General Cândido Mariano da Silva Rondon, quando
chefiava a comissão Mista de Letícia, foi mudado o nome de Vila de Esperança para o
de Vila de Benjamin Constant, “em memória do General Benjamin Constant Botelho de
Magalhães, o incentivador do movimento de 15 de novembro de 1889, que proclamou a
República” (MELLO, 1967, p. 136-137).
Esperança era propriedade particular do Sr. Pedro Ferreira de Souza, sendo
povoada por habitantes do Javari e pessoas que vinham trabalhar na borracha,
acontecimento que causou em pouco tempo um aumento da população
consideravelmente. Em resposta a execução ao decreto-lei nacional n. 311, de 2 de
março de 1938, e do decreto-lei estadual n. 176, de 1 de dezembro de 1938, o novo
sistema divisório foi inaugurado em 1° de janeiro de 1939, dia consagrado ao município
por decreto-lei nacional. A ata é lida em sessão solene, referente ao quinquênio de 1939-
1943, no edifício municipal, sob a presidência do Senhor Nelson Noronha, prefeito da
cidade. Segue a reprodução do discurso:
Na forma da Lei, e de acordo com o rito previsto, tendo em mira a
salvaguarda jurídica dos interesses do Povo, o resguardo da tradição histórica
da Nação e a solidariedade que deve unir todos os brasileiros em torno dos
ideais superiores de uma Pátria una e indivisível, bem organizada para
defender-se, culta e progressista para fazer a felicidade dos seus filhos, eu,
Nelson Noronha, prefeito municipal de Benjamin Constant, em nome do
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Governo do Estado, declaro confirmados para todos os efeitos, no quadro
territorial desta Unidade da Federação Brasileira, segundo o disposto da Lei
orgânica número 311, de 2 de março de 1938, e nos decretos estaduais de 1°
de dezembro do mesmo ano, todas as circunscrições que têm por sede esta
localidade, que recebe os foros de cidade, bem assim o distrito de Remate de
Males, deste município, ficando a respectiva sede mantida na
correspondência categoria de vila. Assim fique registrado na História da
Pátria, para conhecimentos de todos os brasileiros e perpétua lembrança das
gerações vindouras. Honra ao Brasil desejoso do bem e do progresso nos
melhores sentimentos de solidariedade humana (JOBIM, 1943, p. 25).
Nos anos 60 e 70, a formação política, social, cultural e econômica de
Benjamin Constant está relacionada ao exercício ecológico dos recursos naturais do
látex, da madeira, de outros recursos da floresta e das outras formas de extrativismo, da
agricultura familiar, da atividade da pesca, do comércio, de funcionários federais,
estaduais e municipais. A urbanização é constituída pela população nordestina da
borracha, retirantes do Vale do Javari e dos seus afluentes e doravante dos novos
personagens do mercado da cocaína, da população urbana juvenil e, por último, a
imigração israelita. A foto 1 apresenta a chegada dos moradores do Vale do Javari na
cidade de Benjamin Constant reproduzida da dissertação da professora Oderlene Braulio
da Silva. Segundo a autora, a cidade funcionava como um forte entreposto para a
comercialização da borracha e da madeira. Tinha prefeitura, câmara municipal, correios
e telégrafos, exatoria de renda que liberava a entrada e saída dos navios, cartório,
cinema, boates, escolas, igreja católica, delegacia, hospital, pequenos engenhos,
serraria, olaria, comércios, empresas seringalistas, um campus avançado da PUC
(Projeto Rondon), além de possuir ampla área de terra para o cultivo de produtos
agrícolas e meios de transporte de navios e avião aquatizador, além da presença
centenária de evangelização dos capuchinhos, com a instalação em 1910 da paróquia
Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Em 1940 deu-se a chegada das Irmãs Terceiras
Franciscanas Capuchinhas e, na década de 60, dos irmãos maristas vindos do Rio
Grande do Sul. Houve ainda a construção da Escola Imaculada Conceição, as igrejas
nos bairros, a Casa da Mãe Gestante, a escola filantrópica Irmã Lua, o centro social
Irmão Sol, o seminário, o Projeto Adote Uma Criança.
Os depoimentos coletados no trabalho de campo de SILVA (2010) dos
retirantes dos rios Javari, Itacoaí, Curuçá, Ituí e Branco mostram a realidade da
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ocupação da terra, da luta pela sobrevivência, do conflito com os índios e com as
empresas extrativistas. Os proprietários da empresa seringalista e madeireira tomaram
o Vale do Javari como se fossem vazios demográficos; ao contrário do que pensavam,
existia uma população indígena constituída de várias etnias que contra-atacavam,
tornando a região um dos locais mais violentos, sendo as mulheres e as crianças as
primeiras vítimas. Imensas jangadas de madeira atracavam no Javari, com grande
quantidade de carnes de animais silvestres como anta, caititu, veado, aves, mantas de
pirarucu, tartaruga, tracajá, jabuti e milhares de ovos. A consequência foi colocar em
situação de risco algumas espécies animais e vegetais, chamando a atenção da política
ambiental nacional e internacional. Há pouco tempo, o interesse do Estado
redireciona-se para o atendimento das exigências dos movimentos ambientalistas
internacionais que propuseram a elaboração de políticas voltadas para a preservação
do ecossistema, através de projetos de manejo florestal para a madeira na Amazônia.
A legislação ambiental tornou ilegal a atividade da madeira e o funcionamento das
indústrias madeireiras, causando desconforto na economia da cidade. Já os que ainda
habitavam as cabeceiras dos rios, com a demarcação de 8,5 milhões de hectares de
terras indígenas do Vale do Javari e proibição das atividades, migram para a cidade de
Benjamin Constant. Esse deslocamento é uma das causas da crescente urbanização da
cidade. Esses retirantes, sem trabalho para sustentar a família, vão contribuir com o
aumento da pobreza e da criminalidade.
Foto 1: A chegada dos moradores das cabeceiras dos altos rios no porto da cidade. Fonte: arquivo da
professora Açucena Fernandes Amazonense.
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[...] a gente tinha muito medo, ao mesmo tempo gostávamos de morar
naquelas terras. Foi lá que nascemos eu e meus 14 irmãos. Minha mãe
também nasceu aqui, já o meu pai veio muito criança com seus pais de
Pernambuco na década de 1910. Eles deixaram seu filho mais velho lá,
porque tinham medo que não resistisse à viagem, mas pretendiam voltar
para pegá-lo ou para ficar se não gostassem da nova morada. Eles tiveram
poucas notícias, pois dificilmente tinham oportunidades de mandar ou
receber cartas dos parentes. Eles morreram e nunca mais voltaram a ver seu
filho querido. Meu pai me contava que viu várias vezes eles chorando e se
lamentando de saudades, mas não tinham como voltar. Nisso outros filhos
nasceram. Um família composta de filhos negros sendo o meu pai o único
branco. A explicação é que ele havia sido o único a puxar a cor de sua mãe,
pois seu pai era negro. A minha mãe também era filha de nordestinos. O pai
dela havia fugido da Marinha para não ir participar da Primeira Guerra
Mundial. Ele entrou em uma das embarcações que vinha pra região,
trazendo consigo minha avó, uma adolescente filha de escravos recém-
libertos que foi roubada por ele de sua família. Dos meus avós por parte de
pai pouco me lembro. Já os da minha mãe, principalmente de meu avô de
quem até hoje guardo com cuidado o quadro com a fotografia que minha
mãe me repassou, tenho fortes lembranças. Ele era forte, sério e muito
trabalhador. Tinha grande amizade com o proprietário do seringal que
trabalhava, o Sr. Antonio de Souza Braga, um grande coronel de barrancas
da região que possuía uma empresa seringalista na sede da cidade, mas ele
e seus funcionários viviam mais em seu motor, cortando as águas dos rios
Itacoaí, Ituí, Curuçá, entre outros. (FCB, 61 anos, ex-moradora do rio
Itacoaí, filha de nordestino)
A nossa casa era grande toda de paxiúba coberta por palha, que meus pais
mesmos teciam. Eram altas devido ao risco constante de uma grande
enchente e a escada não era fixa, pois tínhamos que tirá-la à noite para a
onça não subir. Do lado de casa tinha a casa de farinha e o defumador. Lá o
meu pai e meus irmãos mais velhos produziam borrachas tanto em prancha
como em bola, as quais eram pesadas durante a venda para o aviador ou
para outro comerciante de borracha. Tudo o que a gente necessitava tinha
em fartura, a gente trabalhava junto na roça na praia do outro lado do rio e
na área próxima de casa, criando também animais. Tudo a gente tinha e
tudo a gente fazia. Até os nossos brinquedos e os instrumentos musicais. A
gente ficava olhando, depois já estávamos fazendo na brincadeira e cada
um fazia de acordo com sua criatividade. Um dos meus irmãos começou
assim, fazendo o cavaquinho de brincadeira, quando menos o esperávamos
já sabia tocar. Ele aprendeu sozinho [...]. Nossos pais nos ensinavam como
nos comportar, rezar, trabalhar, principalmente durante as noites. Quando
chegava a noite, depois do jantar, ficávamos conversando, ouvindo as
histórias que os mais velhos contavam sobre a matinta, o curupira, o bate-
bate, a mãe-d’água, dos encantamentos do boto e da cobra grande; além das
piadas, adivinhações e sobre como tinha sido o dia de trabalho. Os que
pousavam lá em casa e os que iam nos visitar sempre tinham novas
histórias e notícias. Às vezes pra animar cantavam ao som do cavaquinho
ou da viola e tudo isso à luz da lamparina.
A gente também recebia a visita dos padres capuchinhos, principalmente o
Frei Felipe, que sempre estava visitando as famílias que moravam lá.
Faziam batizados, ensinavam as orações e também nos ensinavam a
escrever o nosso nome, a ler a cartilha com o alfabeto, a somar e diminuir.
Contar a gente aprendia desde cedo, brincando e ajudando nossos pais na
coleta principalmente dos frutos da seringueira. Às vezes juntávamos para
vender aos comerciantes regatões e comprar coisas pra gente mesmo
quando nosso pai deixava [...]. Escola e professor era uma raridade. Quando
tinha uma era distante, com um único professor para pequena turma que ia
até a quarta série, a mesma série do professor. Poucas vezes a gente
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conseguia ir, pois tinha que remar ou trilhar longo caminho na estrada até
chegar à sala de aula improvisada nas localidades que tinham um maior
número de moradores. Dificilmente a turma terminava o ano. Mas aprender
a ler e a escrever era a única condição para que ocorresse a comunicação
com os entes queridos que moravam em localidades distantes de lá. (FCB,
62 anos)
[...] O outro lado da vida nos “Altos Rios” foi marcado pelo medo
constante, pela insegurança, pela incerteza, pelo desconhecido. A gente
ouvia assobios, barulhos na mata, esturros. Para a mata somente iam
armados com espingardas, cartuchos, terçados, facões e geralmente
acompanhados pelos vizinhos mais próximos ou os filhos mais velhos. Os
que iam sozinhos eram os mais acostumados e corajosos, mas muitos deles
não voltavam. Era a necessidade de ter o que comer e o que vender para
comprar o que precisávamos que fazia com que enfrentássemos os perigos,
estes às vezes esquecidos no nosso cotidiano até o dia que sabíamos que
tinham visto nas redondezas índios ou onças ou que alguém havia sido
atacado e morto. E isso aconteceu com muitas pessoas. Famílias inteiras
foram mortas a cacete, queimadas junto com suas casas. Pessoas serviram
de alimento para as onças e ninguém previa quando e onde aconteceria de
novo. O que sabíamos era que se encontrássemos algum vestígio da
presença deles tínhamos logo que mudar, pois aquilo funcionava como
aviso. Nisso muitas pessoas mudavam com suas famílias para o outro lado
do rio por acreditar que eles não atravessariam. Outros resistiam e morriam
todos, adultos e crianças. Falavam que algumas crianças foram levadas para
serem criadas por eles. Com as matanças a FUNAI tentou interceder,
buscando manter contatos com os índios caceteiros, mas muitos
funcionários também foram atraídos e mortos por eles. Alguns falam que os
índios se revoltaram assim porque alguns caçadores haviam matado
“parentes” ao vê-los na floresta. Dizem que estes nem moravam por lá, mas
quem pagou com a vida foram as famílias que os índios foram encontrando
pela frente. As matanças foram se intensificando e aí os moradores e
conhecidos dos mortos, armados pelos patrões, saíam para encontrar os
índios e se vingar. Nisto o massacre era certo, pois iam munidos de armas
de fogo e matavam a todos, crianças, homens, mulheres e idosos. A
diferença é que para todos os efeitos o fato não havia acontecido, ficava
sempre como algo inventado, pois buscavam fazer sigilosamente. E devido
a isso a vida das pessoas no vale do Javari e dos outros rios era incerta. [...]
Em meio ao perigo meus pais resolveram abandonar tudo no final da
década de 60. A história da nossa família mais uma vez foi marcada pela
fuga, pois assim fizeram meus avós no Nordeste, também buscando
sobreviver. Foi construída uma grande balsa flutuante. Colocamos tudo o
que pudemos dentro e saímos baixando o rio. Assim aconteceu com muitas
famílias. As lágrimas eram incontroláveis, estávamos deixando pra trás
animais, casa, plantações, a terra que nos acolheu, ou seja, toda uma vida, e
fomos em busca de um novo lar na cidade. (FCB, 61 anos, filha de
nordestinos e retirante do medo na luta pela terra) (SILVA, 2010, p. 78-81)
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Foto 2: Imagem aérea do município de Benjamin Constant do Arquivo: Plano Diretor do município,
2007.
Na entrada do século XXI, segundo SILVA (2010), a população é de
31.195 habitantes, conforme estimativa do censo do IBGE de 2007. A cidade possui
rádios FM, uma rede de comércio local, igrejas católicas e protestantes, agência do
Bradesco, caixa eletrônico do Banco do Brasil, casa lotérica, lanchonetes, bares e
restaurantes, hotéis, pousadas, hospedarias, serrarias, olarias, prefeitura, câmara
legislativa, secretarias municipais, uma delegacia de polícia, um cartório civil e
eleitoral, unidade mista hospitalar, 21 postos de saúde, cinco escolas estaduais, uma
escola filantrópica da igreja católica, escolas particulares. Em 2006 houve a
implantação do Instituto de Natureza e Cultura da Universidade Federal do Amazonas,
época em que a cidade contava com sessenta escolas municipais (seis urbanas e 54
rurais), uma biblioteca pública, três ginásios poliesportivos, o museu indígena Maguta,
um bumbódromo e dois balneários. A cidade é constituída por cinco bairros: Coimbra,
Centro, Umarizal, Colônia e Bom Jardim e por 59 comunidades, sendo dezenove
legalmente reconhecidas como indígenas e quarenta não indígenas, estando dentre
estas algumas em processo de averiguação dos pedidos de reconhecimento do
território como indígena.
A pesca, a piscicultura, a agricultura familiar, o extrativismo vegetal, o
funcionário público e o comércio movimentam a economia. A cidade é um entreposto
Rio Javari/Solimões
Rio Javarizinho
Benjamin Constant
Islândia- Peru
140
140
pesqueiro, tanto com relação à pesca artesanal como à piscicultura, o que vem
possibilitando a comercialização local e a exportação do produto. O peixe é
comercializado na feira da cidade e nas cidades de Tabatinga, Letícia e Manaus. A
atividade pesqueira noturna é arriscada e cansativa por causa dos saqueadores que
roubam os peixes, junto com os atravessadores que oneram o preço do pescado
encarecendo a vida do morador. A Associação dos Pescadores Artesanais Colônia Z3
conta com aproximadamente 1.200 associados. Através da associação e legalização da
classe já foram adquiridos uma fábrica de gelo, um caminhão frigorífico, uma
caminhonete e uma fábrica de conservação, filetagem e beneficiamento de peixe, além
da inclusão dos associados no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que
possibilitou o direito de receber o Seguro Defeso.
A piscicultura aumentou o abastecimento do mercado local através da
criação de peixes em açudes de barragem. A atividade atualmente é alvo da política
local e vem recebendo apoio de instituições estatais através de suporte técnico e
elaboração de projetos para recebimento do financiamento necessário à expansão da
atividade e aumento da produção. Os aquicultores têm capacidade de produzir 180
toneladas de peixe, com 200 hectares de espelho d’água. Os peixes mais produzidos
são tambaqui, matrinxã, pirapitinga, curimatá. Os piscicultores recebem suporte
técnico do IDAM, SEMPRO e do SEBRAE; o PRONAF dá suporte financeiro através
do Banco do Brasil para comprar equipamentos e insumos para aqueles que têm a área
fundiária legalizada. O poder público tem contribuído por meio da contratação de
profissionais e da compra de parte da produção para merenda escolar e programas
sociais.
A agricultura familiar é a fonte da subsistência da população local. A
produção de terra firme que favorece a cultura permanente enfrenta grandes obstáculos
como a questão da distância, da dificuldade do escoamento da produção e a pouca
fertilidade do solo. A terra de várzea, local onde são desenvolvidas culturas temporárias
durante a seca, favorece o escoamento do produto pela proximidade com os rios e
igarapés. Produzem abacaxi, laranja, coco, limão, cupuaçu, abiu, mamão, cana-de-
açúcar, macaxeira, milho e outros; nas terras de várzea são mais cultivados a mandioca,
a melancia, o maxixe, o jerimum, o pepino, verduras e hortaliças. O extrativismo
vegetal está relacionado à exploração de óleo e casca de copaíba, de andiroba, o cipó
titica, bacaba, buriti, castanha, açaí, pupunha, tucumã, camu-camu, sapota, mapati,
umari, dentre outros, porém o aproveitamento destes atualmente tem pouco significado
141
141
no mercado formal, pois não existe nenhum tipo de investimento para colheita e
comercialização destes recursos. A produção vem aumentando em virtude do cultivo
pelos peruanos israelitas, que têm disseminado e dominado o comércio local, porque
vendem mais barato os produtos.
2. Tabatinga
Em 1766 é criado o povoado de São Francisco Xavier de Tabatinga, pelo
alferes Francisco Coelho, comandante da aldeia de São José do Javari. Em 1776 é
construído um forte pelo major português Domingos Franco para abrigar o
destacamento militar do Forte de São José do Javari, a alguns quilômetros subindo rio
Solimões, para vigiar o limite entre as terras portuguesas e espanholas, cuja intenção
básica teria sido a repressão ao contrabando e assegurar a posse do território aos
portugueses. O forte ficava na margem esquerda do rio Solimões; na margem direita, na
confluência com o rio Javari, situava-se o povoado de São José do Javari – hoje atual
Benjamin Constant. No recenseamento de 1840 Tabatinga aparece como povoado; em
1850, como freguesia. Com o surgimento, após o domínio espanhol da Colômbia, Peru
e Equador, o Tratado de Madri empurrava o limite até a boca mais oriental do rio
Japurá, onde hoje está a cidade de Tefé. Contudo, a fortaleza e o povoado de Tabatinga
estavam consolidados. Em 1866 são assentados os marcos de limites entre o Brasil e
Peru nas proximidades de Tabatinga.
Os relatos dos viajantes que passaram pelo rio Solimões no século XIX
indicam a existência do povoado em Tabatinga. O forte era de madeira e foi construído
no ponto mais alto da margem do Solimões. A tropa era composta de um comandante e
doze soldados, além de umas ruínas de edifício construído pela Companhia de
Comércio do Grão-Pará e do Maranhão, fundada no tempo de Pombal. Segundo
AGASSIZ (1975), o forte tem três pequenos canhões, uma casa de barro onde está o
posto, cinco ou seis soldados. A vila, situada num barranco de aluvião, tem uma dúzia
de casas ao redor de uma praça central.
Segundo MARCOY21
, para o viajante que desce o rio Amazonas, Loreto é
a última localidade peruana que se encontra na margem oriental do rio antes de entrar
em terras do Brasil. Quanto aos limites da fronteira, segundo o autor, Portugal queria
21
Livro sem data.
142
142
estender os domínios do Brasil até as cabeceiras do rio Napo e a Espanha queria
estender seus domínios até o lago de Ega, hoje atual cidade de Tefé22
.
O povoado de Tabatinga é constituído basicamente de índios Ticuna.
MARCOY nos conta que ao visitar o posto de Tabatinga foi convidado pelo
comandante do posto e sua esposa. No desjejum, foi servido tartaruga com ovos fritos e,
na sobremesa, um copo de aguardente. O efeito imediato dessa bebida, que os
brasileiros chamam cachaça, é de soltar a língua e dispor a confidências. Nesse clima, o
casal revelou um complô tramado pelos próprios soldados para assassiná-los mas logo
descoberto. Três dos culpados foram despachados para a Barra do Rio Negro (Manaus)
para serem julgados e os restantes foram castigados com prisão. O antecessor do
comandante foi fuzilado pelos próprios soldados. Vejamos o depoimento de MARCOY
a respeito desses crimes, se assim podemos denominar:
Sou obrigado a reconhecer que esses atos, que poderiam ser atribuídos à
índole feroz e insubordinada desses soldados (índios Tapuia alistados à força
pelo governo nos povoados do Amazonas), não são outra coisa senão a
consequência natural do tratamento a que são submetidos pelos comandantes
dos postos de fronteira. Mantidos como escravos, como tais são explorados.
Alguns caçam e pescam para abastecer a mesa do patrão; outros buscam
salsaparrilha, recolhem as tartarugas e seus ovos nas praias do rio ou vão aos
lagos para pescar e salgar o peixe-boi e o pirarucu que o chefe do posto irá
despachar aos povoados vizinhos numa igarité de sua propriedade (p. 52).
Desse trabalho coletivo só quem lucra é o comandante do posto. Os
soldados, desgostosos com a vida que levam e com o trabalho que são obrigados a
cumprir, acabam se rebelando. As punições corporais são os motivos principais das
agressões contra os portugueses. O imperador D. Pedro II proibiu esse tipo de negócio
na fronteira, mas a distância do Rio de Janeiro dos postos fronteiriços faz com os
comandantes não obedeçam aos decretos e ordens emitidas pelo Império.
22
Antonio Porro explica a situação dos limites da fronteira entre Portugal e Espanha em uma nota:
“Desde 1638-1640 o governo luso-brasileiro havia tomado a iniciativa nessa matéria, fixando os marcos
geográficos nos limites que atribuía aos seus domínios. Os hispano-peruanos, de seu lado, alegando que a
localização desses limites feria seus direitos territoriais, derrubaram e queimaram os marcos. Esse jogo de
fincar marcos de um lado e derrubá-lo de outro repetiu-se várias vezes. Assinale-se, para entender a
obstinação dos espanhóis nessa luta singular, que cada perturbação diplomática, declaração de guerra,
choque armado ou tratado de paz que acontecia na Europa entre estados resultava, na América, no
deslocamento, como pedra de xadrez, dos marcos brasileiros e no abocanhar novos territórios ao norte, ao
sul e a oeste” (p. 49).
143
143
Em 1891 Tabatinga é anexada à comarca do Alto Solimões com sede na
cidade de São Paulo de Olivença; mesmo assim, o problema do impedimento do
cumprimento da legislação pelas autoridades locais da época devido à distância
amazônica vai perdurar até a implantação do aparato do Estado no século XX. Em 1938,
Tabatinga torna-se zona distrital do município de Benjamin Constant. Somente na
década de 80 recebe autonomia municipal, consolidando uma fronteira seca com
Letícia. Junto com Benjamin Constant e Atalaia do Norte, vão constituir o aglomerado
urbano de maior dinâmica na fronteira do Alto Solimões.
O Estado brasileiro considerou Tabatinga uma frente de expansão. O
aparato institucional constituído está voltado para a incorporação econômica do
território, com uma infraestrutura que atende à viabilização de empreendimentos,
seduzindo a vinda de uma variedade de atividades econômicas, dentre as quais as
atividades ilegais. Em 1967, Tabatinga torna-se uma colônia militar, com uma estação
de rádio, energia, escola para os filhos dos militares, hospital militar. Na década de 80,
são implantados um porto, um aeroporto, uma agência bancária e as Forças Armadas
(Exército, Aeronáutica e Marinha).
Segundo STEIMAN (2002), Tabatinga, através da emenda constitucional do
Estado do Amazonas, tem sua autonomia municipal em 1983. A estratégia foi fortalecer
a cidade com a instalação de várias instituições dos governos federal e estadual, tais
como a SUFRAMA, Delegacia da Capitania dos Portos, EMBRATEL, Correios,
Companhia de Saneamento do Amazonas, Companhia Energética do Amazonas,
Inspetoria da Receita Federal, Companhia Docas do Maranhão e Fundação Nacional de
Saúde. Algumas delas têm jurisdição sobre vários municípios do Alto Solimões. É o
caso, por exemplo, da FUNAI, cuja administração regional aí instalada é responsável
também pelos municípios de Benjamin Constant, São Paulo de Olivença, Amaturá,
Santo Antonio do Iça e Tonantins. O conjunto do aparato institucional do Estado torna-
se completo com implantação da Polícia Federal, Receita Federal, Justiça Federal e os
representantes de ministérios, todos com a finalidade em especial de assegurar o
controle fiscal, o controle legal da fronteira e os movimentos transfronteiriços. O
contingente civil e militar responde por aproximadamente 15% (IBGE 2000) dos
principais empregos do município. Da mesma forma a Subdelegacia do Ministério do
Trabalho, que tem como principal atividade fiscalizar a correção das relações de
trabalho em diversas atividades, tem jurisdição sobre os municípios de Benjamin
144
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Constant, Atalaia do Norte, São Paulo de Olivença e Amaturá. Uma vez que o valor dos
salários é definido a nível nacional e estadual, seus funcionários têm alto poder
aquisitivo. Além disso, não estão sujeitos às vicissitudes do comércio, instável pela
constantes mudanças cambiais; ao contrário, garantem uma demanda constante de
mercadorias e serviços. Acrescente-se a isso que os diversos funcionários dos órgãos e
filiais dessas instituições devem constantemente se apresentar às suas sedes e vir receber
seus salários em Tabatinga nas duas únicas agências bancárias em todo o Alto
Solimões. A grande presença institucional teria transformado Tabatinga num pólo de
atração para os habitantes do Alto Solimões.
O aeroporto auxilia as Forças Armadas no controle e vigilância da faixa de
fronteira. Há voos de Tabatinga para os pelotões situados no Estirão do Equador e
Palmeiras do Javari (fronteira com o Peru) e voos para os pelotões em Ipiranga e Vila
Bittencourt (fronteira com a Colômbia).
A população é composta por índios Ticunas e seus descendentes, por
Uitotos e outros povos indígenas que estão presentes em todos os cantos da cidade. O
processo de expansão urbana chegou até as terras denominada Umariaçu, transformado
em bairro indígena. Os Ticunas respondem por uma parte do abastecimento urbano com
produtos da floresta, dos rios e do trabalho agrícola. São agentes fundamentais da
economia fronteiriça, vendendo artesanato e realizando pequenos serviços.
A atividade pesqueira de Tabatinga está presente em toda a região do Alto
Solimões. Barcos de pesca brasileiros atuam desde o Médio Solimões, capturando
peixes para serem vendidos na cidade colombiana de Letícia, onde estão instalados
frigoríficos de beneficiamento e exportadores para os mercados de Bogotá e Miami.
Segundo NOGUEIRA (2009), o aeroporto, com voos cargueiros, agiliza a distribuição
para aqueles mercados.
O comércio de pescado é tão significativo que chega a alterar, no período de
safra, o câmbio de moedas (real\peso) na fronteira e a ampliar a oferta de
voos, baixando os valores de frete, na medida em que as empresas aéreas não
retornam sem carga para Bogotá. (p. 176)
O isolamento da região do Alto Solimões cria uma solidariedade entre as
cidades. Segundo Nogueira (2009), Tabatinga está distante de Manaus 1200
quilômetros e Letícia está distante de Bogotá 800 quilômetros. Os produtos alimentícios
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industrializados entram na fronteira sem muita restrição. A gasolina estrangeira é
bastante procurada pelos brasileiros por causa do preço mais baixo e eles vendem o
produto em várias cidades da faixa da fronteira, em bancas improvisadas nas calçadas
das ruas e das casas. O porto de Tabatinga assume um lugar de destaque na extensa rede
fluvial da Amazônia, pois recebe o fluxo externo dos colombianos e dos peruanos, que
podem comprar uma viagem da embarcação que vai de Tabatinga\Benjamin até a cidade
de Manaus e de lá, em outra embarcação, até Belém. O percurso feito a barco de
Manaus a Tabatinga é de aproximadamente 1.300 quilômetros, o equivalente a sete ou
oito dias de viagem. De Iquitos há viagens de barco até a fronteira brasileira, fazendo
um percurso de 400 quilômetros; os colombianos só fazem viagem no entorno
fronteiriço. O porto de Tabatinga é um ponto de encontro das três nacionalidades.
O empreendimento da navegação fluvial é composto de pequenos
proprietários de barcos que realizam viagens pelas cidades do Solimões regularmente.
Segundo NOGUEIRA (2009), “a Capitania dos Portos atua apenas no sentido de
garantir a segurança dos passageiros, não tendo autonomia para facilitar ou impedir o
ingresso de novos operadores” (p. 183). O trajeto de Tabatinga a Benjamin Constant é
realizado através de umas quarenta lanchas, com oito pessoas por viagens, com uma
duração de vinte a trinta minutos. O porto e o mercado formam um complexo de
diversidade e de circulação de gente, mercadoria e de cultura da maior das etnias do
Solimões e do Javari. São centenas de pessoas circulando, oriundas de todas as
comunidades que compõem a fronteira. Peruanos, ticunas, ribeirinhos, colombianos,
todos produtores agrícolas, vendem peixes, carnes, hortaliças, farinha, animais de
criação e de caça e frutas no mercado e compram mercadorias industrializadas dos
armazéns de peruanos, colombianos e brasileiros.
Talvez, para NOGUEIRA (2009), “esse lugar da cidade de Tabatinga seja o
que melhor sintetize a chamada identidade fronteiriça, no sentido de reconhecimento
mútuo e não estranhamento; de compartilhamento cultural e territorial, mas não estatal”
(p. 184).
Na década de 80, Tabatinga ganha autonomia em relação a Benjamin
Constant, começa a ganhar novos contornos com a criação da Avenida da Amizade,
construída pelos militares, que vai do Comando de Fronteira do Solimões até a fronteira
com Letícia. Do lado direito encontramos os órgãos públicos, como a Prefeitura,
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agência do Banco do Brasil, a Câmara Municipal e do lado esquerdo temos algumas
atividades comerciais, que com o tempo se tornou um centro comercial.
No início dos anos 80, muitos moradores relatam um aumento considerável
da população devido ao tráfico de cocaína. Para analisar o lugar onde está o ponto de
venda de cocaína é necessário abordar algumas questões bem gerais para que se não
confunda a imagem da cidade e de seus habitantes com o consumo de drogas. A
fronteira de Tabatinga, como qualquer fronteira, está sob a vigilância do Estado, que a
vê como um lugar perigoso que pode transmitir doenças, que podem ser trânsito de
contrabando de armas e, em especial, transporte de cocaína, como é o caso da Avenida
da Amizade, enquanto a população vê a fronteira como um espaço da fluidez. Por isso,
não se pode generalizar a imagem da cidade como lugar de venda de cocaína, conclui
NOGUEIRA (2009).
[...] O uso de drogas ampliou-se de modo substancial, sendo raras as cidades,
situadas ou não na fronteira, que não têm pontos de venda. Assim, queremos
colocar os pontos de drogas no mesmo patamar de outras formas espaciais
[...] (p. 188)
A atividade clandestina da venda de cocaína local, conhecida como “boca”,
é caracterizada pela forma da invisibilidade. A repressão policial torna a venda de
cocaína dissimulada entre outras atividades e entre outros locais da cidade, não
seguindo a lógica da distribuição urbana predominante; segue, de outro modo, segundo
Nogueira (2009), “como ponto de uma rede de narcotráfico, gera fluxo em torno de si,
recebendo consumidores ou sendo base para a distribuição ambulante” (p. 188), sua
ocupação espacial, ou “território”, está determinada pela mobilidade da atividade
policial, que pode desmontar ou estourar um ponto de venda de cocaína.
A atividade de venda de cocaína em Tabatinga constitui uma complexa rede
do narcotráfico, que vai do nível local ao mundial, mobiliza plantadores,
transportadores, comerciantes e distribuidores até chegar ao consumo local. Segundo
NOGUEIRA (2009), para a Policial Federal deve haver uma centena de pontos de venda
de cocaína. A população jovem pode estar sendo usada tanto para o consumo quanto
para o transporte do produto para outras cidades. A presença do narcotráfico
colombiano na fronteira exige uma atenção constante da vigilância do Estado brasileiro.
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O mapa abaixo mostra o circuito da cocaína entre as cidades de Benjamin Constant,
Tabatinga e Letícia.
Mapa 2: Circuito da droga na tríplice fronteira Brasil – Colômbia – Peru. Fonte:
http://acd.ufrj.br/fronteiras/mapas/map005.htm
3. Letícia
A história do aparecimento da cidade de Letícia, capital do departamento da
Amazônia colombiana, pode ser datada do ano de 1867, referente à fundação do Posto
Militar de San Antonio em território colombiano, na desembocadura do Igararé, com o
mesmo nome, situado à esquerda do rio Solimões. A fundação da cidade está
relacionada à abertura do rio Amazonas para navegação internacional pelo governo
brasileiro. Em 1922 a região passa ser um território colombiano pelo Tratado Salamon
Lozano; em 1932, torna-se novamente um território peruano. Na tentativa de obter a
reavaliação do tratado, os peruanos invadiram a cidade e expulsaram colombianos. A
situação ficou indeterminada por dois anos, até a assinatura do Protocolo do Rio, que
decidiu a favor da Colômbia, embora a população tenha se constituído de peruanos da
região de Loreto. Em 1930, a cidade era apenas um conjunto de quadras dispostas às
margens do rio Solimões, onde moravam os habitantes, que foi elevada à categoria de
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município somente em 1963 e, quando da criação do Departamento do Amazonas, em
1991, sua capital.
O extrativismo da borracha dominou a economia da fronteira colombiana. A
intensificação da produção da borracha causa um estamento na zona produtiva
colombiana, ocasionando uma migração de caucheros para o Baixo Putumayo e para o
Baixo Caquetá. A mão de obra utilizada na região era sobretudo dos grupos indígenas
witotos, que trocavam o látex por mercadorias e estavam sempre em dívida com os
donos dos barracões. A produção da borracha na região do Putumayo teve como figura
o comerciante Julio César Arana. A Casa Arana y Hermanos negociavam diretamente
com Londres. O preço da borracha em Iquitos era mais em conta do que em Manaus.
Arana é denunciado pela imprensa internacional pelo tratamento desumano praticado
contra os índios. A empresa é fechada e o negócio dura até as duas primeiras décadas do
século XX.
A venda de peles de animais, a extração e a exportação de madeira tornam-
se atividades lucrativas até 1990, quando começam a declinar devido à intensificação do
controle do mercado pela institucionalização das terras indígenas e das leis ambientais.
As rotas do contrabando de borracha, animais e madeira que animaram o comércio
ilegal são os mesmos utilizados agora pelo contrabando de cocaína e pela entrada de
precursores químicos. A criminalidade em Letícia está totalmente relacionada ao
narcotráfico, em seguida aos acertos de contas gerados pelo tráfico de cocaína, e por
último os delitos ambientais e roubo de motocicletas, crimes comuns na zona de
fronteira. O tráfico de cocaína na Amazônia colombiana transformou-se no carro-chefe
da economia regional com o cultivo de coca, que lentamente gerou renda e emprego
para pequenos e médios traficantes, mudando o custo de vida da cidade de Letícia.
Houve um grande aumento da quantidade de dólar circundante, o que elevou
sobremaneira o custo de vida em Letícia. A presença de um centro de processamento da
pasta de coca também levou Letícia a comprar energia de Tabatinga para satisfazer sua
demanda. O peso colombiano e a moeda peruana valiam bem mais que o cruzeiro e os
preços de Tabatinga se tornaram bem mais atrativos. Os lucros provenientes do tráfico
tornaram-se uma oportunidade para a população de elevação do padrão de vida, a
despeito de qualquer reprovação moral, o mais rentável trabalho a se dedicar.
149
149
No caso de Letícia o investimento em atividades legais, principalmente no
setor imobiliário e hoteleiro, parece ter sido menor do que o uso dos lucros
em consumo pessoal de luxo, palacetes, automóveis de luxo, lanchas, motos
ou lojas. (STEIMAM, 2002, p. 67)
Segundo STEIMAN (2002), quando o preço da cocaína no mercado
internacional atinge níveis elevados, começa a decrescer, embora a exportação nesse
período tenha crescido. Em 1980 a exportação de cocaína dobra o valor em bilhões de
dólares da exportação de cocaína, estimado em 1981 em 3,4 milhões, e em 1985, 4,2
milhões. O crescimento econômico é acompanhado pelo aumento da população da
cidade. O fim do primeiro boom de aumento de preços da cocaína no mercado
internacional em 1983 causa uma primeira crise em Letícia e no poder aquisitivo da
população colombiana.
Entre 1986 e 1989, o volume de exportação aumentou de 121,3 toneladas
para 147,5. Em 1992 havia 41.206 hectares plantados com coca na Colômbia,
crescendo para 101.800 hectares em 1998. O aumento do trânsito de drogas
nas duas cidades gêmeas entre 1977 e 1986 e o correlato dinamismo
econômico pode explicar o salto na população urbana de Letícia entre 1973 e
1993, que praticamente triplicou no período, continuando a crescer na década
de 1990. (p. 68)
O aumento da repressão ao tráfico de drogas na década de 1990 e seu ápice
em 1997 ocasionou a dissolução do Cartel de Letícia, o terceiro mais importante da
Colômbia, e levou consigo o padrão de crescimento econômico da cidade até então. Os
bens dos traficantes foram confiscados, muitos chefes locais foram presos ou fugiram.
Em 2000, a situação financeira da municipalidade de Letícia era grave, apresentava um
alto déficit fiscal e não há perspectiva de aumento de transferência financeira por parte
do governo central até que cheguem efetivamente recursos norte-americanos do Plano
Colômbia.
A presença militar colombiana tem dificultado a dinâmica do mercado da
cocaína. Segundo PALACIO (2009), a presença militar colombiana tem sido evidente
no governo de Álvaro Uribe no período de 2002-2005, quando o Comando Unificado
do Sul, com sede em Letícia, se converteu na Brigada 26 de Selva, treinada para o
combate na mata. A ampliação da presença militar na região amazônica tende a
pressionar as guerrilhas desde fronteira a até o interior da selva.
150
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Letícia se converte em um lugar de treinamento da força militar para
controlar os territórios dos rios amazônicos, como o Putumayo (Iça) e o
Caquetá (Japurá). Esta situação pode adquirir novos matizes de impacto
internacional se a base militar americana de Manta seja retirada do Equador e
seja eventualmente substituída pela nova que será construída em Letícia. (p.
154)
A força militar colombiana tem sido financiada pelos Estados Unidos sob a
justificação de combate ao narcotráfico e ao terrorismo. No Brasil, há uma percepção de
que os Estados Unidos têm se interessado pela Amazônia, desde o século XIX, com a
internacionalização das navegações dos rios transfronteiriços. Posteriormente, com o
Plano Colômbia, é um assunto que tem despertado desconfiança do Brasil.
Nos acertos de contas, os criminosos podem ser de qualquer das três
nacionalidades. Os acertos de contas entre negociantes ilegais acontecem
principalmente em Tabatinga, poucos casos acontecem em Letícia; para o criminoso
escapar para Brasil é sempre a melhor opção. Letícia tem-se mantido relativamente
pacífica e tranquila depois de 1990, quando se encerrou a bonança do narcotráfico,
enquanto em Tabatinga o comércio do tráfico de cocaína tem uma presença camuflada.
A polícia de Letícia não vê o tráfico de cocaína como um problema grave, depois que os
agentes de DEA (Drug Enforcement Agency) deixaram a cidade.
O narcotráfico está ligado ao sistema extrativista, que passa a ser um
instrumento eficaz na plantação de coca e de maconha pelos traficantes, conjugando
com a guerrilha. As condições geográficas e climáticas da Colômbia são propícias para
o crescimento da economia do narcotráfico: de um lado, o clima tropical da Amazônia,
que favorece a plantação da Cannabis; de outro, os altiplanos frios e secos para a
produção das folhas de coca, aliada ao uso cultural da mastigação da folha de coca e,
por último, a fronteira amazônica, que pela extensão e dificuldade de acesso pode
ocultar a produção e o transporte da cocaína.
A guerrilha aliada aos traficantes formam cartéis, engrossando ainda mais os
dividendos com o dinheiro obtido, pelo apoio ao tráfico de cocaína, a segurança dos
centros de processamento e a proteção aos agricultores consolidam seu poder militar na
Amazônia. As alianças que apoiam o mercado da cocaína são sempre tensas e
dinâmicas. O conflito, em algumas regiões, desfaz a aliança de apoio aos agricultores;
da desavença outros grupos surgiram, como as milícias, os grupos paramilitares, os
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esquadrões da morte, perpetuando a violência na selva colombiana, com focos
setorizados na fronteira amazônica. As cidades de Tabatinga e Benjamin Constant são
alvos constantes do narcotráfico colombiano.
Em 1990 presenciamos uma nova tendência de organização territorial do
complexo da cocaína. Até então Bolívia e Peru eram conhecidos por exportar folhas de
coca e pasta-base de cocaína para a Colômbia, que era o principal local de refino e
exportação da cocaína. Mudanças no contexto interno e externo desses países estariam
apontando para uma mudança na divisão do trabalho rumo a um modo verticalmente
integrado de organização dentro de cada país. Assim, da mesma forma que a Colômbia
aumentou a produção das folhas e da pasta-base de coca, observa-se um incremento da
participação de Bolívia e do Peru no refino da cocaína. Com o aumento do controle da
venda de precursores químicos, o cimento se tornou um reagente químico alternativo na
produção da droga. Misturado com querosene e ureia, substitui o ácido sulfúrico na
transformação da pasta-base em cocaína. É possível, portanto, que parte das atividades
de refino tenha se mudado para o lado peruano com o aumento da repressão ao tráfico
que vem ocorrendo na fronteira colombiana. Essa nova tendência do tráfico está ligada
ao aumento do volume de exportações do porto de Letícia, que teve um incremento
puxado pela exportação de materiais de construção para o Peru. O crescimento da
exportação de materiais de construção pelo porto de Letícia causou uma curiosa
inversão nos destinos das exportações da cidade em que até então o Peru desempenhava
um papel secundário, bem atrás do Brasil. Letícia quase não produz materiais de
construção e na verdade estes constituem a pauta de suas exportações, com destaque,
sobretudo, ao cimento.
O comércio é atividade econômica privada mais rentável e mais
desenvolvida. Depois, as atividades associadas ao turismo, pesca, agricultura e um
relegado lugar da indústria. A produção local é insuficiente para abastecer as
necessidades da cidade; é preciso comprar do Peru e do Brasil alimentos básicos,
combustíveis, material de construção e outros produtos domésticos, o que encarece
o custo de vida. O comércio entre Colômbia, Peru e Brasil está representado
principalmente pelos combustíveis, ferragens, motocicletas e seus acessórios,
papelaria, roupas e calçados, produtos farmacêuticos, alimentos, bebidas e tabaco. O
centro de atividade comercial de Letícia e Tabatinga constitui o movimento
econômico mais importante da região. Nas lojas e mercados de cidade de Tabatinga,
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152
os artigos mais procurados pelos colombianos são oriundos do centro-sul do Brasil.
Trata-se principalmente de produtos industrializados, como enlatados, bebidas,
açúcar, refratários e materiais de construção.
A fiscalização ambiental tem dificultado a extração de seixo e areia no
interior do município, em grande parte um parque nacional. As restrições ambientais
também pesam sobre a pesca, praticada nas imediações de Tabatinga de forma
predatória com rede de arrastão. Assim, o pescado, os móveis, parte dos materiais de
construção e os produtos de granja são os únicos itens produzidos (e
comercializados) em nível local. Os três últimos representam os poucos produtos
locais de uma indústria limitada de beneficiamento alimentar e processamento de
matéria-prima.
Na área rural, a principal atividade é do tipo agropecuário. A produção
agrícola está orientada para o cultivo da yuca, arroz, plátano, maíz, fríjol, frutas
amazônicas. A atividade pesqueira tem uma significativa dinâmica comercial. A
pesca comercial abastece o mercado nacional. A pesca artesanal é para autoconsumo
e o excedente é vendido aos intermediários. Os empresários colombianos compram
dos pescadores brasileiros e peruanos para exportar ao mercado de Bogotá.
A educação superior está sob a responsabilidade da Universidade Federal
da Colômbia e o Instituto Amazônico de Investigações, mais conhecido como
Centro IMANI. Além de oferecer graduação em Estudos Amazônicos, o centro
realiza pesquisas nas áreas de ecossistemas terrestres e aquáticos, ecologia humana
tropical, história e geografia da Amazônia e biotecnologia. Presta também serviços
de consultoria e de avaliação de impacto ambiental. Segundo PALACIO (2009), o
desenvolvimento acadêmico e científico deve ser uma alternativa para a
sustentabilidade da cidade e também ser reconhecido como uma contrapartida ao
crescimento da presença militar. O investimento em capital humano é uma forma de
sustentabilidade e de autonomia da região. A Universidade Nacional de Colômbia
tem contribuído com o mestrado em Estudos Amazônicos; em Tabatinga, a
Universidade do Estado do Amazonas está contribuindo com a formação
profissional; a Universidade Federal do Amazonas em Benjamin Constante está
contratando professores qualificados. Como não há acordos que garantem a
aceitação do diploma do outro lado da fronteira, quase não há intercâmbio de
estudantes. Outro fator que dificulta a frequência de alunos brasileiros à
universidade colombiana é o fato de seus cursos serem pagos. Ainda assim,
153
153
representantes das três nacionalidades têm realizado encontros para discutir a
possibilidade de criação de uma universidade das três fronteiras.
4. Ticuna
O Município de Benjamin Constant possui aproximadamente vinte
comunidades (aldeias) ticuna. O povo Ticuna habita a região do Alto Solimões, com
uma população em torno de “26.000 indivíduos, divididos em mais de 100 comunidades
(aldeias), com dimensões variáveis e localizadas desde a calha principal do rio Solimões
até o alto de seus igarapés” (Conselho Geral da Tribo Ticuna, 1999). Eles estão
distribuídos em seis municípios do Estado do Amazonas: Tabatinga, São Paulo de
Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Iça, Tonantins e Jutaí.
O povo Ticuna situado nas extremidades da região do Alto Solimões,
assentado na racionalidade da sustentabilidade ecológica dos recursos naturais da
Floresta Amazônica desde o século XVIII e aí permanecem e é provável que continuem
porque são os mais adaptados ao convívio da mata e dos rios e ao convívio social da
cidade.
Segundo GLUBER (1997), a floresta é um sistema sustentável, existe
muitos anos antes da existência humana, oferece todos os recursos de que se precisa
para viver. Ela é a cobertura da terra, composta de plantas, em especial as árvores, rios e
animais. A árvore é a principal fonte de alimentos. Os frutos constituem uma parcela
significante da dieta e servem de ração e de moradia aos animais. A madeira é usada na
construção de casas da aldeia, canoas, instrumentos de caça e pesca, artefatos de casa e
festa e brinquedos para as crianças. A casca, a folha, a resina, o óleo e o leite de
algumas árvores são usados como remédio.
A sustentabilidade da floresta é um equilíbrio de árvores, rios, pessoas e
animais. Cada um é uma peça do sistema, com uma função e um significado preciso, e
ocupa um espaço e tempo necessário. Algumas árvores são da terra firme, outras da
várzea, mas podem ser encontradas espalhadas na mata ou agrupadas, como o buriti, o
açaí, a seringueira, a castanheira, o tucumã e outras. A época de frutas é tempo de
fartura e local de caça. Os animais alimentam-se debaixo das árvores, tornando presa
fácil aos caçadores.
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154
A floresta está sempre em movimento. Há uma vida dentro dela que se
transforma sem parar. Vem o vento. Vem a chuva. Caem as folhas. E
nascem novas folhas. Das flores saem os frutos. E os frutos são alimentos.
Os pássaros deixam cair a semente. Das sementes nascem novas árvores. E
vem a noite. Vem a lua. E vêm as sombras que multiplicam as árvores. As
luzes dos vaga-lumes são estrelas na terra. E com o sol vem o dia. Esquenta
a mata. Ilumina as folhas. Tudo tem cor e movimento. (GLUBER, 1997, p.
48)
As folhas e os frutos que caem enriquecem a terra de nutrientes e alimentam
animais e peixes, que por sua alimentam as pessoas. Certos animais e pássaros vivem
nas árvores, como forma de moradia e modo de alimentos. Alguns comem as sementes,
do dejeto nascem outras árvores. Os frutos das árvores que caem nas beiras dos rios
servem de alimentos para vários peixes.
A floresta é completa. Possui todos os requisitos do estado de perfeição. Além
de proporcionar um equilíbrio entre o trabalho e a ação natural, sustenta um universo
simbólico. Possui categoria do tipo metafísica que constitui a ideia de espírito humano
porque transcende a toda e qualquer experimentação individual. São conhecimentos de
natureza coletiva, anterior aos indivíduos em particular. São ideias antigas que fizeram
parte da formação da linguagem e da crença e, por fim, serviram de meio de
comunicação às relações política e econômica.
Segundo GLUBER (1997), para os Ticuna, o ngewane é a árvore dos
peixes, expressa a ideia de natureza. Existe desde o início do mundo. Ela nasce na
cabeceira dos igarapés. Quando suas folhas caem, surge no tronco das árvores ovos e
nascem as lagartas para comer as folhas, na época das chuvas entram nas raízes, com o
tempo saem na forma de vários peixes. O ngewane não morre, por isso nunca falta
alimento na floresta. Nela há um mundo paralelo encantado, ideia da linguagem
simbólica, de seres que são donos da floresta e cuidam de sua preservação. O Wüwürü é
o dono do buritizal; o Curupira e o Mapinguari são os donos da mata. O Daiyane é dono
dos frutos da árvore pé-de-jabuti e a Beru cuida dos frutos das árvores. Eware, noção
popular, onde nasceram os Ticuna, é uma categoria de representação do conhecimento
da origem das pessoas. É uma terra encantada, onde moram os irmãos Yo’i e Ipi, os dois
personagem do mito de origem do povo Ticuna, que segundo os velhos são dois que ao
pescar peixes com o fruto do jenipapo transformavam os pescados em animais e
pessoas. Hoje é comum ver alguém pintado com jenipapo. Ele protege contra as
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doenças. Quando a menina fica moça é pintada na festa da moça nova e todas as pessoas
da aldeia pintam o rosto para identificarem suas nações. A nação é designada pelo nome
de animais e árvores. Cada um sabe com quem deve casar.
O trabalho ticuna é parte da sustentabilidade da floresta. O estilo de vida do
povo Ticuna é conhecido como uma cultura pacífica que vive do trabalho da terra.
Muitos conhecimentos do desenvolvimento sustentável do Trapézio Amazônico deve à
experiência da cultura ticuna a utilização de recursos naturais sem prejudicar o meio
ambiente.
A economia ticuna está assentada no manejo da capoeira, do roçado, dos
quintais, do extrativismo animal e vegetal, produção agrícola do tipo agroflorestal, que
pode representar um aproveitamento racional dos recursos, melhor adaptado aos
ecossistemas amazônicos. Tem cultivo perene de plantas frutíferas, de hortaliças,
produtos florestais não madeireiros, corte de madeira para múltiplas utilidades,
domesticação de animais. A agricultura ticuna é sustentável, enquadra-se nas florestas
secundárias, porque mantém a cobertura da floresta.
Esse modelo, de grande valor conservacionista, porém ainda de pouca
expressão como tecnologia de produção agrícola no Amazonas, deve ser
estudado porque representa o resultado de experiência acumulada por vários
séculos. Com certeza, pode inspirar a elaboração e promoção de sistemas
produtivos sustentáveis capazes de promover o desenvolvimento regional
com justiça social e conservação ambiental. (BRASIL, 1999, p. 249)
Segundo BRASIL (1999), a atividade comum é o trabalho de roçado,
principal fonte da produção de alimentos. A produção do trabalho é basicamente para o
abastecimento familiar. Outra parte da produção abastece o mercado regional de
Benjamin Constant.
A economia ticuna abastece o mercado de Benjamin Constant com matéria-
prima principalmente do trabalho da pesca e do roçado, são as principais fontes de
alimento da população urbana. A banana, a farinha e o peixe são os principais produtos
comercializados, depois a macaxeira, as hortaliças, a carne de caça, a galinha caipira, a
madeira e a palha para construção de casas e embarcações e as plantas medicinais.
A agricultura é o trabalho do roçado, da capoeira e dos quintais. O cultivo
pode ser feito na terra firme ou na várzea. O roçado é a plantação da mandioca e da
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macaxeira e o cultivo de plantas durante o uso do roçado, como a banana, a cana, o
abacaxi, o mamão, o maracujá, o milho, a melancia. Com a colheita da mandioca e da
macaxeira e a produção da farinha, o roçado é chamando de capoeira.
A capoeira é utilizada pelas mulheres e crianças no manejo das plantas
cultivadas no roçado. É também utilizada na caça de pequenos animais e no uso da
apicultura. O quintal é utilizado na plantação de plantas frutíferas e hortaliças e na
criação de galinhas, patos e porcos. A pesca e a caça são as principais fontes de
alimento para os indígenas. É uma atividade basicamente masculina (BRASIL, 1999, p.
249).
O cultivo das hortaliças é feito basicamente nos quintais das moradias. O
cuidado dos canteiros é feito diariamente. O roçado é distante da casa dos moradores de
Filadélfia, levando de 30 a 50 minutos de canoa de motor de popa, com um custo médio
de 10 a 20 reais de gasolina. A roça não exige o trabalho diário, podendo ser alternado
os dias da semana, diferente do trabalho da horta que todo dia deve ser aguado e
retirado as pragas.
A rotina de trabalho é simples. Acordam entre 4 a 5 horas da manhã, preparam
uma refeição e todos os membros da família, desde as crianças de colo, se deslocam ao
roçado, trabalham até o fim do dia; lá pelas 6 horas é quando vão fazer outra refeição. À
noite, enquanto a mãe e as filhas cuidam da higiene das crianças e da casa, o pai e os
filhos maiores vão pescar e caçar. No dia seguinte, o produto dessa atividade é dividido
entre parentes e amigos e a família não precisa ir ao roçado, pode ficar em casa. As
mulheres fazem artesanato e limpam os quintais e os homens descansam e preparam os
instrumentos de caça e de pesca. Ainda sobra tempo para os jovens jogar futebol.
Na atividade do roçado, se algum bem é acumulado, é investido na construção
ou reforma da casa, na compra de nova canoa e outro motor de popa, de alguns
eletrodomésticos, como televisão, geladeira e fogão, e roupa para os filhos. Os ticuna
não acumulam bens como forma de rentabilidade; não constituem empresas. Não
invertem no mercado econômico para fins lucrativos. O trabalho é a única fonte de
sustento da família.
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Apesar do papel significativo do trabalho ticuna no abastecimento da
economia regional, ainda falta o reconhecimento do valor e do direito do povo indígena
como cidadão brasileiro.
A escolarização indígena é um processo recente. Os pais não receberam o
conhecimento dos livros, da aprendizagem da leitura e da escrita, meios que constituem
a comunicação da sociedade global, cujo instrumento é indispensável à participação da
sociabilidade do processo de conscientização da vida política. A política nacional de
educação disponibiliza para os centros urbanos os recursos para a implantação de
escolas e universidades e deixa as comunidades indígenas na dependência dos interesses
da política local. Além da ausência de uma política educacional voltada aos interesses
das comunidades indígenas, há uma “guerra” silenciosa em torno da demarcação das
terras indígenas, cujo conflito gera prejuízo, tanto para os habitantes da cidade quanto
para os indígenas, que é a criação da demarcação entre duas culturas, cujo fenômeno
pode representar, em termos de analogia, o retorno do preconceito racial do século XIX,
entre os “brancos” e “negros”. Assim pode ser descrito o problema. Os moradores
tradicionais da cidade, inclusive as autoridades locais, não aceitam a lei de demarcação
de terras indígenas. Os maiores interessados, os índios, que cientes dos limites de suas
terras; pela falta de uma educação política, têm dificuldade de reivindicar os seus
direitos junto aos órgãos competentes, além de sofrerem com a falta de recursos para
deslocamentos e informação.
Outra problemática enfrentada pela cultura ticuna é a chamada violência
branca, que nega a possibilidade de cidadania à população indígena.
A população é privada, por omissão do Estado, de documentos básicos da
vida civil e política, como: registro de nascimento, carteira de identidade,
título de eleitor, carteira de trabalho, CPF etc. Documentos que qualificam o
indivíduo como sujeito de direitos e cidadão pertencente e integrado numa
comunidade política, capaz de lhe proteger e abrigar. (Ministério Público do
Estado do Amazonas, 2011, p. 5)
A taxa de registro de nascimento da população ticuna ainda é muito baixa,
causa uma exclusão social porque o indivíduo pode participar das prerrogativas de
cidadão brasileiro.
Segundo o delegado da Polícia Federal do Amazonas Sergio Fontes, com o
avanço da economia da cocaína no Trapézio Amazônico na localidade e nas
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proximidades da região de Loreto, na fronteira do Brasil com o Peru, que tem população
basicamente constituída de ribeirinhos, ticunas e peruanos da religião dos israelitas, que
tem o nome de Associação Evangélica da Missão Israelita do Novo Pacto Universal das
cidades de Islã Santo Rosa e Islândia, localizadas em frente a Benjamim Constant, esse
estreito espaço em que na seca pode-se andar a pé é o provável lugar de repasse da
cocaína aos traficantes.
Os prejuízos, os riscos e ameaças causados pelo plantio de coca no solo
peruano, junto à fronteira do Brasil, são problemas que se repetem na
fronteira com a Colômbia, onde proliferam cultivos de coca, em sua maioria
realizados por indígenas Ticunas, no interior de áreas reservadas (A Crítica,
2013d).
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CONCLUSÃO
A tese contempla três acontecimentos históricos. A história do poder
ecológico, a história da cocaína e a história de Benjamin Constant.
O poder ecológico se manifesta como um modo de governo do homem
amazônico. Com a forma de uma razão ecológica soberana cujo gesto original foi posse
do território, da população, do recurso e de tantas vidas; na Europa a razão punitiva é
subtraída pela razão disciplinar de correção que é equivalente da razão ecológica que
combina povoamento, trabalho obrigatório, violência física, escravidão e punição no
que podemos chamar de conduta ecológica indígena, enquanto a razão disciplinar
punitiva agia na implantação do adestramento do corpo, do ordenamento e divisão do
espaço e do tempo e na majoração da força humana, a razão ecológica na versão
soberana funciona na forma da guerra, da escravização e do extermínio de populações
inteiras.
A certificação da razão ecológica do século XX na fórmula do poder
ecológico está na introdução da natureza no centro das racionalidades de governo como
modo, não somente de extração, mais como uma política de ambientalização da
população, do meio ambiente, da sustentabilidade, da biodiversidade, da saúde, da
educação e da segurança. O deslocamento da razão ecológica soberana para as
racionalidades da matéria-prima do látex, da madeira e da coca no processo da empresa
capitalista, o poder ecológico rompe a barreira local aos processos globais do poder
Ocidental, ultrapassando a biopolítica da população e da cidade e interagindo com a
preservação e sustentabilidade do planeta, como uma governamentalidade do ambiente
planetário. A governamentalidade da natureza é o conjunto das relações mundiais do
poder inclinada pela posição da Amazônia na representação do mundo: primeiro como
um ponto de convergência do tráfico internacional de cocaína na tensão dos conflitos
mundiais, depois pelos mecanismos ecológicos absorvem a teoria do ecossistema,
ampliando e completando a fórmula do poder-saber para além dos muros das
instituições médicas, hospitalares e penais e antropológicas.
Da introdução da concepção do poder ecológico amazônico algumas
considerações podem ser feitas em termos teóricos e históricos. As três matrizes de
poder são certificadas com o pressuposto da vida e da morte, na Amazônia colonial,
tendeu para o lado da morte; na extrativista tendeu para normalizar a sociedade para o
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trabalho capitalista. As três juntas cobrem o tecido do que é vivo e tem matéria; vão da
alma primitiva e urbana ao corpo supliciado e majorado da população indígena ao corpo
da população urbanizada, dobrado sobre às teorias do ecossistema, cuja função antiga da
de morte é substituída pela preservação do planeta.
O aparecimento do poder ecológico é um dos mais importantes
acontecimentos para se compreender as relações de dominação nas quais o ser humano
e a natureza tornaram-se objetos de interesses mundiais que determinaram modos de
objetivação do indivíduo, modos de regulação da população e modos de normalização
do meio ambiente. Dentro desse processo, registra-se o tema geral da tese de fazer a
história do poder ecológico na dinâmica estrutura institucionalizada da Amazônia de
modo a evidenciar o modo de governo da cocaína e da cidade.
A história do poder ecológico na Amazônia é carente da reflexão histórica.
Essa abordagem na história da colonização é ausente. A história da formação da
Amazônia brasileira é rica de informações historiográfica da época colonial e da época
moderna da cidade de Belém do Pará e da cidade de Manaus no Amazonas, embora
ausente de informações sobre a região do Alto Solimões, em especial da cidade de
Benjamin Constant que representou a primeira frente de expansão da colonização
portuguesa; das obras escritas sobre a região nenhuma delas constroem um cenário
teórico e histórico em torno de uma concepção de poder geral e local do poder.
A introdução ao poder ecológico é um átomo na iniciativa de preencher a
lacuna da historia da tríplice fronteira. O esforço metodológico foi introduzir o
pensamento do século XX sobre as racionalidades ecológicas retroagindo até a
colonização da Amazônia, a partir daí construindo a hipótese do desenvolvimento de
um poder original na forma de um governo dos homens e da natureza. A partir desta
preocupação delimitou-se o propósito do presente estudo: fazer a história da cocaína
reconstruindo as relações de poder-saber da realidade do crime e do castigo na
experiência local da cocaína na cidade, de que se pode afirma a rede planetária
ecológica atravessa a experiência da cocaína através da forma do governo federal,
intensifica a ponto de banalizar a experiência tradicional da cocaína pela aplicação da
norma da dependência química pela legislação dos tóxicos e pela publicação
constitucional do crime hediondo do tráfico de cocaína. O desencanto da experiência da
cocaína é correlativa ao crescimento da máquina do Estado sobre a realidade de
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Benjamin Constant, Tabatinga e Letícia, completando a banalização da experiência de
massa da cocaína, com índice alto de ocorrência polícia de crime de tráfico de cocaína,
lotando as cadeias públicas, de resto vamos ter também um desencantamento com a
finalidade da lei de tráfico de drogas em relação á experiência do sistema carcerário
local.
A experiência da cocaína passa pelo momento da banalização; o consumo
da cocaína é generalizado entre os maiores de idade, com um certo de nível de
liberdade; a venda é também generalizada em qualquer esquina pode-se comprar
cocaína com um preço acessível ao consumidor; a polícia militar tem o conhecimento
cotidiano tráfico; em contrapartida, o aumento da criminalidade, a falta de segurança em
relação aos assaltos à mão-armada e o pequeno efetivo da polícia militar e da policia
civil, ajudam a responsabilidade pela lotação da delegacia da cidade, causa também da
banalização e do desencantamento com o sistema policial, penal e com as leis dos
tóxicos. Ademais, as novas modalidades do crime estão suplantando o tráfico de
cocaína. O crime do tráfico está estável tendo em vista que o cultivo da folha e da
produção da basta na região está aumentando embora não esse perceba um movimento
ascendente do crime tráfico de cocaína na escala da criminalidade em Benjamin
Constant, embora esta informação precise de mais levantamento histórico sobre a
criminalidade da cidade.
162
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