PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: UMA RELAÇÃO DIALÉTICA
ENTRE O GARANTISMO PENAL E A TEORIA DO DIREITO PENAL
DO INIMIGO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
DANIEL AQUINO DE SOUSA
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2017
DANIEL AQUINO DE SOUSA
A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: UMA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE O
GARANTISMO PENAL E A TEORIA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito Penal, sob a
orientação do Professor Doutor Gustavo Octaviano
Diniz Junqueira.
São Paulo
2017
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________
________________________________________________
_______________________________________________
À minha Lizy, fonte constante de inspiração, pelo apoio irrestrito em todos
os momentos, sobretudo nos mais difíceis.
Ao amado Vini, recém chegado e já razão de tudo.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Enilson e Noêmia, exemplos de vida, honra e dignidade, que tanto me
incentivaram nos estudos do Direito; e aos meus queridos irmãos, Diego e Alysson, eternos
companheiros.
Ao meu orientador, Professor Doutor Gustavo Octaviano Diniz Junqueiro, pela oportunidade
única e por abrir os caminhos rumo ao aprofundamento nas teorias penais.
Ao Professor Érico Xavier Desterro e Silva, que me concedeu inúmeras oportunidades e
ensinamentos, exemplo de profissional e de amigo.
RESUMO
O estudo em voga utiliza as propostas que objetivam a redução da idade penal como base para
aprofundar as análises das teorias de direito penal que influenciam as políticas criminais
adotadas atualmente pelo ordenamento jurídico brasileiro. Parte-se da premissa de que o
constitucionalismo brasileiro adota em seu interior as bases de uma teoria garantista, na forma
delineada por Luigi Ferrajoli, onde a própria existência do Direito Penal justifica-se pela
necessidade de prevenção geral dentro de um modelo mínimo e garantista. Em seguida, a partir
da constatação de que as leis e normas penais estão cada vez mais rígidas e emergênciais, tidas
como único meio de combate ao constante crescimento dos índices de criminalidade, a pesquisa
volta-se aos estudos que tratam dos movimentos de Lei e Ordem, destacando as tendências das
políticas criminais de exclusão social características das sociedades liberais desenvolvidas, a
pretexto de manutenção da ordem, com destaque para as proposições de Ralf Dahrendorf, sem
deixar de lado as críticas de David Garland, Jock Young e Douglas Husak. É dessa constatação
que emergem as reflexões sobre a inserção de práticas próprias de um Direito Penal do Inimigo
no interior do sistema criminal brasileiro, como diagnosticado em uma das fases de Gunther
Jakobs. Por fim, busca-se entender se as Propostas de Emenda à Constituição que visam reduzir
a idade penal seguem uma tendência estigmatizante e discriminatória, com base em análises de
direito comparado, de dados estatísticos, das normas postas no Estatuto da Criança e do
Adolescente, dos fins da pena privativa de liberdade e de um Direito Penal Simbólico.
Palavras-chave: Redução – Maioridade Penal – Garantismo – Lei e Ordem – Direito Penal do
Inimigo.
ABSTRACT
The current study uses the proposals that aim to reduce the penal age as a base for further
analysis of criminal law theories that influences the criminal policies currently adopted by the
brazilian legal system. It starts with the premise that brazilian constitutionalism adopts within
it the bases of a guarantism theory, as outlined by Luigi Ferrajoli, where the very existence of
the criminal law is justified by the need for general prevention within a guarantor and minimum
model. Then, based on the fact that criminal laws and regulations are increasingly rigid and
emergency, considered the only means of combating the crime rates constant growth, the
research turns itself to study the Law and Order moviments, emphasizing the tendencies of
criminal policies based on social exclusion as a characteristic of the developed liberal societies,
under the pretext of maintaining order, especially the proposals of Ralf Dahrendorf, without
neglecting the criticisms of David Garland, Jock Young and Douglas Husak. It is from this
observation that the reflections on the insertion of an Enemy Criminal Law practices within the
Brazilian criminal system emerges, as diagnosed in one of Gunther Jakobs phases. Finally, it is
tried to understand if the Amendment Proposals to the Constitution that aim to reduce the penal
age follow a stigmatizing and discriminatory tendency, based on analyzes of comparative law,
statistical data, norms inside the Child and Adolescent Statute, the custodial sentence purpose
and a Symbolic Criminal Law.
Keywords: Reduction - Criminal Majority - Garantism - Law and Order – Enemy Criminal
Law.
LISTA DE FIGURA
Figura 1 - Distribuição das sentenças de pessoas presas no Brasil ....................................... 109
Figura 2 - Percentual da população por raça e cor no sistema prisional e na população ...... 110
Figura 3 - Distribuição por faixa etária no sistema prisional e na população ....................... 111
Figura 4 – Grau de instrução da população prisional ............................................................ 112
LISTA DE TABELA
Tabela 1 - Idade de responsabilidade penal de jovens e adultos. ............................................ 95
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11
1. O GARANTISMO PENAL E O SISTEMA PENAL BRASILEIRO 15
1.1 FUNDAMENTOS BÁSICOS DO GARANTISMO DE FERRAJOLI ............................. 19
1.2 SOCIEDADE DE RISCO E GARANTISMO .............................................................. 29
1.3 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE
DIREITO PENAL E OS PRINCÍPIOS TÍPICOS DO GARANTISMO PENAL ...................... 38
1.4 O GARANTISMO ENQUANTO VINCULANTE DAS NORMAS PENAIS .................... 47
1.5 O GARANTISMO PENAL SOCIAL OU GARANTISMO PENAL INTEGRAL ........... 51
2. O ENDURECIMENTO DA LEGISLAÇÃO PENAL NO BRASIL:
DOS MOVIMENTOS DE LEI E ORDEM AO DIREITO PENAL DO
INIMIGO ........................................................................................................... 55
2.1 A LEI E A ORDEM EM RALF DAHRENDORF ...................................................... 58
2.1.1 A anomia em Durkheim ........................................................................................ 64
2.2 MOVIMENTOS DE LEI E ORDEM E O ESTADO SOCIAL BRASILEIRO................ 66
2.3 A INFLUÊNCIA DA LEI E ORDEM NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA E NA
CRIAÇÃO DA FIGURA DO INIMIGO ............................................................................ 76
2.4 COMENTÁRIOS AO DIREITO PENAL DO INIMIGO EM GUNTHER JAKOBS ....... 80
2.4.1 Entendendo as fases de Gunther Jakobs ............................................................. 87
3. AS PROPOSTAS DE EMENDA A CONSTITUIÇÃO TENDENTES
A REDUZIR A MAIORIDADE PENAL ........................................................ 91
3.1 CONTEXTUALIZAÇÃO ........................................................................................ 91
3.1.1 Direito Comparado ................................................................................................ 94
3.1.2 Critérios para fixação da maioridade penal ........................................................ 96
3.1.3 A constitucionalidade (ou não) da medida ........................................................... 98
3.2 CARACTERÍSTICAS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NA PROPOSTA DE
REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL ......................................................................... 100
3.2.1 Sistema penal garantista e as normas próprias de um Direito Penal Inimigo 103
3.3 ANÁLISE ESTATÍSTICA SOBRE O PERFIL DO “INIMIGO” NO BOJO DO SISTEMA
PENAL BRASILEIRO .................................................................................................. 107
3.4 REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E (RE)INSERÇÃO SOCIAL ........................ 114
3.4.1 Análise sobre os fins da pena privativa de liberdade no sistema de execução
penal brasileiro ............................................................................................................... 117
3.4.2 Eficácia da medida de internação adotada pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente ..................................................................................................................... 122
3.4.3 Direito Penal simbólico ........................................................................................ 123
CONCLUSÃO ................................................................................................. 127
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS .......................................................... 131
11
INTRODUÇÃO
O Direito Penal, por suas características restritivas, deve justificar-se no sentido de
afastar as injustiças do seu míster punitivo. É o que nos propõe o Garantismo Penal em sua
acepção filosófica, na forma como introduzido por Luigi Ferrajoli, onde a própria existência do
Direito Penal justifica-se pela necessidade de prevenção geral dentro de um modelo mínimo e
garantista.
O Garantismo Penal está calcado na visão teórica de direito própria de um Estado Social
e Democrático, como é o Brasil. A Constituição de 1988 apresenta em seu corpo todos os
princípios próprios de um Direito Penal que, ao menos em tese, justifica-se perante a sociedade,
sendo o principal deles o da Legalidade. Tais características levam a crer que estamos vivendo
em um Estado que adota o garantismo em sua Constituição, posto que todos o Poderes estão
limitados pelos bens e valores constitucionais.
Não se pretende nesta pesquisa elaborar um resumo da teoria garantista, mas apenas
demonstrar que o constitucionalismo brasileiro é aquele próprio do Garantismo Penal
trabalhado por Luigi Ferrajoli como forma de crítica às práticas do Direito Penal Italiano na
década de 80, que introduz um modelo de Direito ideal, com absoluta prioridade aos direitos e
garantias individuais e coletivos. A presente pesquisa pretende fazer uso desse modelo ideal de
direito, demonstrando que o constitucionalismo brasileiro adota em seu interior as bases da
teoria garantista, que não se amolda a determinadas práticas penais reacionários ao clamor
social por vingança e contenção das mazelas sociais, caracterizadas por um direito penal de
emergência.
Assim sendo, é de se questionar a idéia, por vezes preponderante, de leis e normas penais
cada vez mais rígidas e emergenciais, como único método de combate ao constante crescimento
dos índices de criminalidade, que findam por extrapolar os direitos e garantias individuais e
coletivos, e os deveres fundamentais do Estado. Vale lembrar que, em simetria ao que ocorreu
na Itália, foram tais violações que ensejaram o desenvolvimento da teoria garantista naquele
sistema penal.
Para uma melhor compreensão desse fenômeno – das práticas e leis penais que
extrapolam os direitos e garantias dos cidadãos – é que se buscam os estudos que tratam dos
movimentos de Lei e Ordem, sobretudo as proposições de Ralf Dahrendorf, autor que apresenta
12
sua crítica e diagnóstico sobre o aumento da criminalidade nos Estados Liberais modernos. Para
ele, as sociedades modernas, pela não aplicação das sanções devidas, criam situações de
“anomia” (entendida aqui como uma condição oposta à ordem social), na medida em que podem
ocorrer rupturas sociais em que as normas reguladoras do comportamento das pessoas perdem
sua validade, o que, fatalmente, conduz a um estado de erosão da lei e da ordem.Destacando-se
que para bem compreender a anomia de Dahrendorf será necessário deiferenciá-la da
construção de Durkeim.
Trata-se, portanto, de um aprofundamento naquilo que se compreende por violência e
criminalidade, com fim de apresentar alternativas à condição econômica e aos atos isolados das
pessoas como fatores preponderantes ao crime. Para o autor a única garantia contrária à anomia
é a preservação da lei e da ordem, com o seu fortalecimento através da construção de instituições
que garantam a sua aplicabilidade.
A fim de demonstrar a forma de atuação das nações modernas e desenvolvidas, no
sentido de extrapolar os direitos e garantias fundamentais a pretexto de combater o crime,
realizando verdadeiro controle social, a análise que ora se propõe serve de base para que
possamos entender o processo de “hipercriminalização”, como exposto nos estudo de Douglas
Husak, bem como o processo histórico de passagem, durante o século XX, de uma sociedade
inclusiva para uma sociedade excludente, como bem demonstraram David Garland e Jock
Young, críticos dos movimentos de Lei e Ordem vividos nos Estados Unidos da América, cujas
bases filosóficas e contexto social não são exatamente os mesmos de Dahrendorf, apesar das
fortes semelhanças em suas conclusões
Porém, a grande problemática que a presente pesquisa tem a pretensão de enfrentar é a
possível constatação de que, além desse fortalecimento da lei e da ordem, por meio do
fortalecimento das instituições, da hipercriminalização e da inobservância dos direitos e
garantias fundamentais, a fim de se evitar a anomia ou a crescente criminalidade, estejam sendo
criadas no Brasil normas penais internas tendentes ao Direito Penal do Inimigo, como
diagnosticado em uma das fases de Gunther Jakobs, tida como seu momento legitimador, em
que os Estados adotam frontalmente, em determinado momento histórico, uma política voltada
para o combate de inimigos, o que, em um olhar menos aprofundado, contradiz todas as
proposições do nosso pretenso Estado Democrático e Social de Direito, calcado em um
constitucionalismo garantista e na unversalidade dos direitos humanos.
13
Nesse sentido, destaca-se que a principal preocupação de Gunther Jakobs, em se
tratando do Direito Penal do Inimigo, é justamente a contaminação do Direito Penal do cidadão
por fragmentos do Direito Penal do Inimigo, quando este não está devidamente delineado.
Segundo a teoria de Jakobs, inspirada no contrato social de Rousseau e valendo-se de um
alicerce cognitivo, todo indivíduo criminoso que agride o Direito Social, nas formas por ele
expostas, deixa de ser membro do Estado e assim estaria sujeito a um Direito Penal do Inimigo,
que para a pessoa do criminoso seria apenas coação física. Em contrapartida, para aqueles ainda
abrangidos pelo laço social, o “Direito Penal do Cidadão” estaria presente para garantir a
vigência da norma. Portanto, ficam claramente estabelecidas as figuras do indivíduo perigoso
(criminoso) e do cidadão, cabendo a cada um uma forma específica de Direito Penal.
O presente trabalho pretende adentrar mais profundamente no estudo dessas teorias e
investigar se as Propostas de Emenda à Constituição que visam reduzir a idade penal, que em
vários momentos tramitam pelo Congresso Nacional, inclusive com textos aprovados perante a
Câmara dos Deputados, seguem essa tendência estigmatizante e discriminatória, no intuito de
traçar um panorama sobre os rumos que estão sendo trilhados pela política criminal no Brasil
que, vez por outra, volta-se à responsabilização penal das pessoas menores de 18 (dezoito) anos
de idade. Para validar a pesquisa serão buscados dados estatísticos oficiais do sistema prisional
que apontem para o perfil do criminoso no Brasil, no intuito de contrapô-los a outros dados que
indiquem a prática de crimes por menores de 18 (dezoito) anos, como fim de traçar a figura de
um dos possíveis inimigos do sistema penal brasileiro.
Assim, utilizar-se-á o garantismo desenvolvido por Ferrajoli como teoria de base para o
estudo que se propõe. Sendo o garantismo entendido, e como veremos mais adiante, como
reação ao Direito Penal de emergência, da mesma forma que se desenvolveram os movimentos
dos Direitos Humanos, como forma de reação aos excessos avaliados durante o pós-guerra. Do
mesmo modo, a pesquisa adotará a teoria do Direito Penal do Inimigo de Jakobs, que surge
exatamente como fruto desse Direito Penal de emergência ou de combate, próprio das
sociedades pós-modernas, em que se verifica o aumento do risco e da sensação de insegurança,
conduzindo a uma hipertrofia legislativa (irracional) e à criação de tipos e instrumentos
processuais cada vez mais distantes do modelo penal clássico, de cunho iluminista.
A par disso, apresenta-se a problemática da presente pesquisa: “Seriam as Propostas de
Emenda à Constituição que visam reduzir a maioridade penal exemplos de normas tendentes
ao Direito Penal do Inimigo no interior do sistema penal de cunho garantistabrasileiro?”.
14
Portanto, esta é a importância teórico-prática da pesquisa: aprofundar os estudos das
teorias do Garantismo Penal e do Direito Penal do Inimigo, valendo-se, ainda, da análise dos
Movimentos de Lei e Ordem, dos estudos sobre a sociedade de risco e sobre os fins da pena
privativa de liberdade para um juízo de adequação da proposta de redução da maioridade penal,
com minuciosa análise de textos próprios que tramitam no Congresso Nacional.
Além da contribuição científica para as discussões em torno da aprovação ou não de
Propostas de Emenda à Constituição tendentes a reduzir a maioridade penal, a pesquisa buscará
analisar, de forma crítica, a viabilidade jurídica das propostas de redução da maioridade penal,
levando-se em consideração, sobretudo, a relação de contraposição existente, ao menos em tese,
entre as teorias do Garantismo Penal e do Direito Penal do Inimigo no sistema penal brasileiro.
Destaca-se, como citado acima, que o presente trabalho buscará, a título de conclusão,
uma revisão crítica dos princípios constitucionais relacionados à aplicação e execução das penas
no Brasil, em especial do princípio da (re)inserção social, através da indicação de suas fontes,
fundamentos e irradiações, norteando-se, ainda, pelas premissas expostas por Friedrich
Nietzsche quanto aos fins da pena, sem, contudo, desconsiderar que, in casu, estamos tratando
de jovens e adolescentes que poderão estar expostos ao regime de cumprimento das penas
privativas de liberdade existente em nosso país, e que, na condição de pessoas em
desenvolvimento, na forma da Constituição Federal, necessitam de uma adequada socialização.
15
1. O GARANTISMO PENAL E O SISTEMA PENAL BRASILEIRO
O Direito Penal pátrio tem suas bases fincadas em uma Constituição dotada das
características próprias de um Estado Social e Democrático de Direito, a qual, por sua natureza,
irradia seus princípios para guiar o legislador, inclusive o penal, em todos os aspectos sociais
e, in casu, na atividade punitiva estatal. É nesse sentido o magistério de Junqueira e Vanzolini
ao tratar dos princípios constitucionais, in verbis:
“Dos traços gerais que desenham o Estado Social e Democrático de Direito,
materializados juridicamente na Carta Constitucional, extraem-se
importantes diretrizes ao legislador penal, reveladas, geralmente, pelo que eu
vou chamar de princípios penais. Tais princípios dizem respeito aos mais
variados aspectos da atividade punitiva do Estado: forma de incriminação
(tais como: legalidade e irretroatividade), conteúdo da incriminação
(exclusiva proteção a bens jurídicos, fragmentariedade, intervenção mínima,
ofensividade etc.), possibilidade de imputação (culpabilidade e pessoalidade)
e atribuição da sanção penal (individualização e humanidade).”1
Evidencia-se, assim, a forma de atuação do legislador constituinte, que para regular a
vida em sociedade e garantir o pleno funcionamento do Estado Social e Democrático, fixou os
limites e fins de atuação do legislador infraconstitucional através da normatização dos
princípios constitucionais, que, para esta pesquisa, tem sua relevância no tocante à atividade
punitiva, destacando-se por ora os que dizem respeito ao conteúdo da incriminação e à
atribuição da sanção penal, intimamente ligados aos temas do garantismo penal e da redução
da maioridade penal.
Conforme a passagem destacada da obra de Junqueira e Vanzolini, dentre os princípios
que tratam do conteúdo da incriminação, e que serão objeto de estudo ao longo do trabalho,
temos os princípios da intervenção mínima e o da exclusiva proteção aos bens jurídicos. Ambos
trabalham sobre a temática dos bens jurídicos, sendo que a exclusiva proteção indica que apenas
aquelas condutas socialmente intoleráveis devem submeter-se ao controle do Direito Penal,
ressalvando-se a posição doutrinária de Günter Jakobs, para o qual o papel do Direito Penal é a
manutenção das expectativas normativas, como veremos na temática do Direito Penal do
Inimigo. Já a intervenção mínima nos conduz ao entendimento de que o bem jurídico deve ser
protegido através dos meios menos gravosos para o cidadão, tendo a pena estatal o sentido de
ultima ratio.
1 JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal: parte geral. 2 ed. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 33.
16
Os princípios inseridos na temática de atribuição da sanção penal, conforme Junqueira
e Vanzolini, são o da individualização das penas e o da humanidade das penas. Em relação à
individualização das penas, que atua como verdadeiro fator de isonomia, já que prima pela
peculiar condição do indivíduo na aplicação da pena, destaca-se para os fins desta pesquisa sua
aplicação na fase de execução da sanção, onde devem ser observadas as condições do local de
cumprimento da pena em conformidade com as características peculiares do condenado, além
da observância dos privilégios e castigos no curso da execução da sanção penal. A humanidade
das penas, por seu turno, é uma das vertentes da dignidade da pessoa humana, estabelecendo-
se a manutenção da condição humana e a salvaguarda dos demais direitos fundamentais que
não foram restringidos pela sanção penal, além das proibições constitucionais explícitas à pena
de morte, à prisão perpétua, à pena de trabalhos forçados, à pena de banimento e às penas cruéis.
Portanto, os princípios em voga merecem destaque por estarem no centro das discussões
quando se fala em garantismo penal, como veremos no desenvolvimento do capítulo mais
adiante.
Ainda à guisa de contextualização, Paulo Queiroz, ao conceituar o Direito Penal, parte
para um entendimento bem mais amplo da matéria, estabelecendo que a Constituição Federal e
o Código Penal definem as bases e os princípios que informam o Direito Penal, traçando o seu
perfil, limites e contornos, ou seja, dão-lhe a conformação político-jurídica2. Assim, adota a
seguinte definição:
“Cabe conceituar assim, e preliminarmente, o direito penal como o conjunto
das normas jurídicas que, materializando o poder punitivo do Estado, define
as infrações penais (crimes e contravenções) e comina as sanções
correspondentes (penas, medidas de segurança ou outra consequência legal),
estabelecendo ainda os princípios e garantias em face do exercício deste
poder, ao tempo em que cria os pressupostos de punibilidade.”3(grifei)
Percebe-se que o autor faz explícita referência às garantias do cidadão face ao exercício
do direito de punir do Estado, deixando claro que esse poder possui limites introduzidos no
próprio texto constitucional, evidenciando-se o caráter instrumental do Estado e do Direito
Penal como meios de regulação dos conflitos tidos como graves no seio social, no intuito de
servir ao cidadão, mas não como fins em si mesmos.
2 QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 4.
3 Idem, p. 5.
17
A teoria garantista desenvolvida com destaque por Luigi Ferrajoli, dentre os seus
diversos aspectos, adota tal caráter instrumental do Estado e do Direito Penal e nos conduz a
um ponto de partida claro, qual seja, “a rejeição à estrutura autoritária de Estado, como
impossibilidade de sobrevivência de um ambiente garantista”4. Dessa forma, temos que o
arbítrio estatal distancia-se do Estado Democrático, posto que a lei, representada aqui pela
própria Constituição, é o pressuposto da ordem social e política.
O que se pretende demonstrar no presente capítulo é que o Estado Brasileiro, por sua
natureza jurídica, é detentor de uma ordem jurídica baseada nos princípios de cunho garantistas
já presentes na Constituição Federal, haja vista que tais princípios constitucionais, em se
tratando de Direito Penal, buscam a limitação do poder estatal, vinculando-se, por isso mesmo,
a uma das acepções da teoria garantista, que se baseia em um modelo normativo de direito
tendente a buscar um sistema vinculante para a atividade punitiva estatal como garantia aos
direitos dos cidadãos, sendo garantista, nas palavras de Ferrajoli, “todo sistema penal que se
conforma normativamente com tal modelo e que o satisfaz efetivamente” 5.
É importante deixar claro, ainda, que a teoria garantista será adotada neste trabalho
como uma reação ao direito penal de emergência que, como dito anteriormente, caracteriza-se
por uma hipertrofia legislativa e a adoção de práticas que deixam de lado as garantias
processuais e constitucionais, em busca de uma sensação de segurança no interior da sociedade
pós-moderna permeada de inseguranças constantes, tal qual o foi os movimentos de direitos
humanos reacionários aos excessos vividos nos períodos de guerra.
Segundo Comparatto6, após a 1ͣ guerra mundial e de três quinquênios de massacres e
atrocidades advindos do fortalecimento do totalitarismo estatal nos anos 30, ficou evidente para
a humanidade, mais do que em qualquer outra época, a grande importância da dignidade
humana. Para ele, e segundo a sabedoria grega, o sofrimento serviu como força de compreensão
do mundo e dos homens, aprofundando “a afirmação histórica dos direitos humanos.
4 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Garantismo Penal Integral. Prefácio à 3ª Ed.
5 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
p. 684.
6 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
68
18
Piovesan7, frisando a importância do pós-guerra, destaca que a internacionalização dos
direitos humanos constitui-se em um movimento extremamente recente, que surgiu como
“resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo”.
Essa característica reacionária do garantismo, tal qual a afirmação histórica dos direitos
humanos, foi tratatada por Anitua da seguinte maneira:
“O minimalismo ou garantismo emerge do enfrentamento contra a existência
de uma legislação autoritária e contra o surgimento de uma legislação
antiterrorista, que tanto na Itália como na Espanha ameaçavam os princípios
de um direito penal ilustrado que ainda não havia chegado a se desenvolver
completamente, e que poderia ser usado mais por suas promessas, do que por
suas concreções. Essa estratégia jurídica seria especialmente útil para as
necessidades do progressismo neste contexto, mas principalmente diante da
prática não legal, paralegal ou ilegal desenvolvida pelo neoliberalismo na
América Latina.
Diante do excesso de um poder punitivo que regressava aos passos do Estado
Ilimitado do Antigo Regime, mas com a precisão dos métodos e a eficiência
da modernidade tardia, parecia uma necessidade do pensamento crítico fazer
– como foi feito no Iluminismo – uma defesa das garantias e do Estado de
Direito.” 8
Ao final do capítulo será trazida à baila a visão mais crítica ao garantismo tradicional,
denominada “garantismo penal social” ou “garantismo penal integral”, que busca uma análise
aperfeiçoada da teoria garantista por um viés não somente de preservação da segurança jurídica
individual frente aos excessos do Estado, mas também de proteção de todas as gerações de
direitos humanos, próprias do constitucionalismo moderno, a fim de ser reconhecido pelo
próprio Estado e pela comunidade e de forma a proteger não somente o indivíduo perante o
poder punitivo estatal, mas também os anseios da sociedade.
7 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14. Ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 191.
8 “El minimalismo o garantismo emergió en el enfrentamiento contra la pervivencia de la legislación autoritaria y
contra la emergencia de la legislación antiterrorista, que tanto en Italia como en España amenazaban los principios
de un derecho penal ilustrado que no había llegado a desarrollarse del todo, y que podia ser usado más por sus
promesas, por tanto, que por sus concreciones. Esa estratégia juridicista sería especialmente útil a las necesidades
del progresismo en esse contexto, pero sobre todo frente a la práctica no legal, paralegal o ilegal desarrollada por
el neoliberalismo en América Latina.
Frente a la desmesura de un poder punitivo que volvía sobre los pasos del Estado ilimitado del Antiguo Régimen,
pero con la precisión de métodos y el efieientismo de la modernidad tardía, parecía una necesidad del pensamiento
crítico hacer -como se había hecho en la Ilustración- una defensa de las garantías y del Estado de derecho.”
(tradução livre)
ANITUA, Gabriel Ignacio. Historias de los pensamientos criminológicos. 1. Ed. Buenos Aires: Del Puerto, 2005,
p. 450.
19
1.1 FUNDAMENTOS BÁSICOS DO GARANTISMO DE FERRAJOLI
Em sua obra intitulada “Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal”, de 1989, (no
original Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale) Luigi Ferrajoli apresenta as bases de
seu entendimento sobre o Direito Penal, teoria esta que se encontra calcada na visão de um
direito próprio de um Estado Social e Democrático, como o é a República Federativa do Brasil.
Ferrajoli propõe um modelo de Direito Penal no qual os direitos fundamentais, assegurados
pelas conquistas históricas dos séculos XVIII e seguintes, passam a exercer um papel de
limitação do poder punitivo estatal, fornecendo, em verdade, os fundamentos de tal punição.
Importante destacar, uma vez mais, que a teoria do garantismo foi desenvolvida por
Ferrajoli em um determinado momento histórico de endurecimento da legislação penal na Itália,
sendo que sua origem remete a um movimento dos anos setenta comandado por juízes da
magistratura italiana que lutavam por um uso alternativo do Direito9.
Bobbio10, prefaciando a primeira edição da obra de Ferrajoli, destaca o caráter idealista
desse modelo de garantismo, do mesmo modo que se pretende utilizá-lo nesta pesquisa, do qual,
segundo ele, “nos podemos mais ou menos aproximar”. Assim, Bobbio trata o garantismo como
um objetivo a ser alcançado, devendo, para tal, estar bem definido em todos os seus aspectos
no interior de um sistema jurídico, retratando a obra de Ferrajoli da exata maneira que segue:
“Como modelo, representa uma meta que permanece como tal, ainda que não
seja alcançada e não possa jamais ser alcançada inteiramente. Mas, para
constituir uma meta, o modelo deve ser definido em todos os aspectos.
Somente se estiver bem definido poderá servir de critério de valoração e de
correção do direito existente.
À descrição do modelo está dedicada essencialmente a primeira parte, toda
ela centrada sobre a pura contraposição entre o momento da legislação e o
da jurisdição: o primeiro encontra seu elemento constitutivo no
convencionalismo; isto é, na teoria conforme a qual é delito o que a lei
estabelece como tal, em contraste com as doutrinas objetivistas do delito,
para as quais há ações más em si mesmas; e o segundo, com seu elemento
constitutivo na doutrina contrária, do cognitivismo, segundo a qual incumbe
ao juiz verificar ou refutar a hipótese acusatória por meio de procedimentos
que tornem possível o conhecimento dos fatos. Com uma feliz antítese, feliz
por seu caráter sintético, que está centralizada nos dois conceitos gerais do
"poder" e do ''saber", a contraposição entre legislação e jurisdição, segundo
o abstrato modelo garantista, se expressa com estas duas máximas: acerca
9 FISCHER, Douglas. O que é Garantismo Penal Integral?. P. 14.
10 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3. Ed. Prefácio à primeira edição. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 09.
20
da legislação - Auctoritas, non veritas facit legem\ acerca da jurisdição -
Veritas, non auctoritas facit judicium.”
Segundo Bobbio, então, a primeira parte da obra de Ferrajoli se dedica à descrição do
modelo garantista, basicamente como uma contraposição entre o convencionalismo e o
cognitivismo. Porém, ele continua para dizer que os problemas fundamentais do direito e do
processo penal serão analisados à luz do modelo para, ao final, serem avaliadas as práticas
penais na Itália e extraírem-se os resultados para construir um modelo geral do garantismo.
Vejamos:
“A segunda e a terceira parte analisam, à luz do modelo, os problemas
fundamentais que constituem a matéria tradicional do direito e do processo
penal - a pena, o delito, o processo -, respondendo com calculada simetria,
em cada um dos três temas, às quatro perguntas: se, por que, quando e como
"punir"; se, por que, quando e como "proibir"; se, por que, quando e como
"julgar". O modelo, uma vez apresentado em todas as suas partes, serve de
critério de valoração da situação atual do direito e do processo penal na
Itália: tal juízo, ao qual está dedicada a quarta parte, é muito severo e trata
de demonstrar até que ponto a realidade do sistema penal vigente está longe
do modelo, pela presença de três subsistemas desviados, o do direito penal
comum, ainda caracterizado pela sobrevivência do código fascista e de
algumas deficiências ou lacunas da mesma Constituição; o das diversas
medidas de polícia que se põem ao largo do direito penal comum e a ele se
sobrepõem; enfim, o introduzido pelas leis excepcionais, frente à chamada
emergência. Enquanto as três primeiras partes se caracterizam por seu rigor
argumentativo e pela complexidade da construção sistemática, a quarta se
distingue pela amplitude da documentação, que faz dela um verdadeiro e
próprio repertório das partes enfermas de um sistema, de que tanto o
advogado quanto o juiz, o político ou o funcionário quanto o jornalista podem
obter proveito. Chamo a atenção também para a extensão das notas
bibliográficas e históricas, nas quais o leitor encontrará interessantíssimas
notícias relativas à história de cada um dos problemas.
A última parte, enfim, é uma tentativa de extrair dos resultados obtidos na
descrição do modelo garantista penal as grandes linhas de um modelo geral
do garantismo: antes de tudo, elevando-o a modelo ideal do Estado de direito,
entendido não apenas como Estado liberal, protetor dos direitos de liberdade,
mas como Estado social, chamado a proteger também os direitos sociais; em
segundo lugar, apresentando-o como uma teoria do direito que propõe um
juspositivismo crítico, contraposto ao juspositivismo dogmático; e, por
último, interpretando-o como uma filosofia política, que funda o Estado sobre
os direitos fundamentais dos cidadãos e que, precisamente, do
reconhecimento e da efetiva proteção (não basta o reconhecimento!) destes
direitos extrai sua legitimidade e também a capacidade de se renovar, sem
recorrer à violência subversiva.”11
11 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3. Ed. Prefácio à primeira edição. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 09-10.
21
Evidencia-se, com a parte final da análise de Bobbio, o uso que se pretende fazer da
teoria garantista neste trabalho, haja vista a construção destacada do garantismo como modelo
ideal do Estado de direito e protetor das liberdades e dos direitos sociais, além de ser apontado
como uma filosofia política que busca a construção do Estado sobre os direitos fundamentais
dos cidadãos. Não por acaso, é exatamente desta forma que a Constituição de 1988 construiu o
Estado Social e Democrático de Direito do Brasil.
A fim de obter um maior entendimento sobre essa teoria e sobre sua aplicação no Direito
Penal pátrio, alguns pontos merecem ser destacados, tais como suas acepções e fundamentos
básicos.
Apesar de Luigi Ferrajoli haver concedido maior destaque à teoria garantista em suas
obras, a expressão “garantismo” é muito anterior, podendo ser remetida ao século XVIII,
quando Mario Pagano12 já considerava o garantismo como uma doutrina voltada à limitação da
discricionariedade potestativa do juiz teoria, ou ainda ser referenciada aos neologistas do século
XIX13.
A escola de Charles Fourier (1112-1837) utilizava o termo “garantisme” para
caracterizar a passagem necessária para o alcance do ideal supremo de uma perfeita e harmônica
sociedade comunitária, na forma de um sistema de segurança social para a salvaguarda dos mais
fracos, concedendo a eles as garantias dos direitos essenciais através de uma série de mudanças
tanto na esfera pública quanto na privada14.
No segundo pós-guerra o termo garantismo ganha o sentido de proteção das garantias
constitucionais das liberdades fundamentais, fortalecendo-se, ainda, como linguagem
filosófico-jurídica. E na década de 70 a expressão foi introduzida no Direito Penal italiano,
quando também passa a ser estendida a todo o sistema de garantias dos direitos fundamentais,
passando a constar nos principais dicionários e a ser semanticamente definido da seguinte
forma:
Em primeiro lugar, o caráter próprio das constituições democrático-liberais
mais evoluídas, consistente no fato de que essas estabelecem instrumentos
12 Francesco Mario Pagano, jurista, filósofo e político italiano, falecido em 1799.
13 TRINDADE, André Karam. Raízes do garantismo e o pensamento de Luigi Ferrajoli. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2013-jun-08/diario-classe-raizes-garantismo-pensamento-luigi-ferrajoli. Acesso em
19/08/2017.
14 IPPOLITO, Dario. O garantismo de Luigi Ferrajoli. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria
do Direito (RECHTD). Janeiro a Junho de 2011, p. 35.
22
jurídicos sempre mais seguros e eficientes (como o controle de
constitucionalidade das leis ordinárias) com a finalidade de assegurar a
observância das normas e dos ordenamentos por parte do poder político
(governo e parlamento). Em segundo lugar, é a doutrina político-
constitucional que propõe uma sempre mais ampla elaboração e introdução
de tais instrumentos. Poder-se-ia parafrasear: (i) garantismo como dimensão
específica do constitucionalismo rígido, (ii) garantismo como teoria
normativa do constitucionalismo rígido.15
É nesse sentido que se estabelece a ligação do termo garantismo para com as teorias
democráticas, liberais e constitucionalistas, haja vista que, como destaca o próprio Ippolito, tal
definição amolda-se ao tempo em que foi construída, pois reflete as legislações de emergência
necessárias à política italiana para o enfrentamento do terrorismo, quando a cultura jurídica
reafirmava o primado dos direitos individuais “de imunidade e de liberdade diante dos poderes
punitivos do Estado”:
“Garantismo se torna, então, o nome da teoria liberal do direito penal, ou
seja, do paradigma normativo – de matriz iluminista – do “direito penal
mínimo”.16
Como dito, o grande destaque da teoria do garantismo no âmbito penal passa,
necessariamente, pelo estudo do Direito Penal na visão de Ferrajoli, que, em sua obra, apresenta
algumas acepções do garantismo penal, tratando-o, em primeiro lugar, como um modelo
normativo de Direito ou um modelo de “estrita legalidade”, próprio do Estado de Direito, que
sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo e,
sob o político, apresenta-se como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a
maximizar a liberdade. Além disso, do ponto de vista jurídico, caracteriza-se por um sistema
de vínculos impostos à função punitiva do estado em garantia dos direitos do cidadão17.
Avaliando o tipo de sistema construído por Ferrajoli, Tatiana Viggiani Bicudo destaca
que:
15 IPPOLITO, Dario. O garantismo de Luigi Ferrajoli. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria
do Direito (RECHTD). Janeiro a Junho de 2011, p. 36.
16 Idem.
17 FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 35
23
“O modelo construído pelo autor é normativo, sendo modelo compreendido
como um conjunto coerente de definições que identificam traços que
caracterizam um sistema jurídico perfeito. De acordo com essa acepção, o
modelo garantista é um modelo do Direito como dever ser e, portanto, é
normativo com relação ao Direito existente.”18
Em uma segunda acepção, o garantismo designa uma teoria jurídica que trata de
validade e efetividade como categorias distintas, não só entre si, mas, também, pela existência
ou vigência das normas19. Nesse caso, pode ser citada, a título ilustrativo, a divergência
existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentemente garantistas)
e as práticas operacionais (tendentemente não garantistas), interpretando-a através da antinomia
que subsiste entre validade (e não efetividade) dos primeiros e efetividade (e invalidade) das
segundas.
A terceira acepção que temos para o garantismo é a que designa uma filosofia política
que requer do Direito e do Estado o ônus da justificação externa, com base nos bens e nos
interesses, aos quais a tutela ou a garantia constituem sua finalidade, pressupondo a doutrina
laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e
ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser”
do Direito20.
É através dessas três acepções que Ferrajoli, ao discutir o sistema penal, “em suas bases
filosóficas, políticas e jurídicas, destrói velhos vícios teóricos e práticos para, em seguida,
construir a teoria geral do garantismo como modelo ideal – um sistema normativo dotado de
garantias que lhe tragam racionalidade –, a partir da qual são analisados os problemas
fundamentais da pena, do delito e do processo penal”21. Teoria geral esta que deve apresentar
os seguintes elementos: “o caráter vinculado do poder público no Estado de direito; a
divergência entre validade e vigor produzida pelos desníveis das normas e um certo grau
irredutível de ilegitimidade jurídica das atividades normativas de nível inferior; a distinção
entre ponto de vista externo (ou ético-político) e ponto de vista interno (ou jurídico) e a conexa
divergência entre justiça e validade; a autonomia e a prevalência do primeiro e em certo grau
irredutível de ilegitimidade política com relação a ele das instituições vigentes”22.
18 BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria Geral da Pena. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 135.
19 Idem, p. 36
20 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 685
21 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. apresentação
22 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 686
24
Da análise de tais elementos para construir uma teoria garantista, os estudos de Ferrajoli
demonstram que o Direito Penal possui custos e objetivos advindos da forma própria do Estado
de Direito, caracterizado por um sistema baseado na disciplina legal e no monopólio estatal do
uso da força, com a finalidade de excluir ou minimizar a violência entre as relações
interindividuais. A democracia, por seu turno, tem sido definida como técnica de convivência
orientada à solução não violenta de conflitos. Nesse sentido, no Estado Democrático de Direito
não deve existir outra violência legal senão a mínima necessária, a fim de prevenir outras
ilegalidades, mais grave e vexatórias.
Democracia, segundo a doutrina de Norberto Bobbio, reflete a igualdade, já que o
próprio significado da palavra traduz-se em “governo do povo”, mesmo que as formas
democráticas de governo tenham evoluído ao longo dos séculos o seu significado descritivo
geral não se alterou, entendendo-se, ainda hoje, que o governo do povo é preferível ao governo
de um ou de poucos, assim o titular do poder político é sempre o povo. Por isso, a solução não
violenta dos conflitos deve ser a máxima.23
Destarte, os estudos de Bobbio nos ensinam que o ideal a ser alcançado por um governo
democrático é o da igualdade. Mas essa igualdade deve ser aquela compatível com a liberdade,
tal como propõe a doutrina liberal, devendo ser entendida (a liberdade) como a que não conflita
com a liberdade dos outros, em outras palavras, pode-se fazer tudo o que não ofenda a igual
liberdade do próximo.24
Desse ideal de igualdade, presente em todos os Estados liberais modernos, surgem os
dois princípios fundamentais presentes em todas as normas constitucionais, a igualdade perante
a lei e a igualdade dos direitos. É das bases desses dois princípios que se destaca o entendimento
de que a violência legal deve ser a mínima necessária no bojo de uma sociedade democrática,
já que, segundo Bobbio:
“Enquanto a igualdade perante a lei pode ser interpretada como uma forma
específica e historicamente determinada de igualdade jurídica (por exemplo,
no direito de todos ter acesso à jurisdição ou aos principais cargos civis e
militares, independentemente do nascimento), a igualdade nos direitos
compreende a igualdade em todos os direitos fundamentais enumerados numa
constituição, tanto que podem ser definidos como fundamentais aqueles, e
somente aqueles, que devem ser gozados por todos os cidadãos sem
23 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. UNB, p. 38.
24 Idem, p. 39.
25
discriminações derivadas da classe social, do sexo, da religião, da raça,
etc.”25
Fica claro, então, que a violência legal deve ser a mínima possível, porque no interior
de uma democracia típica dos Estados Liberais modernos o caráter da igualdade em todos os
direitos fundamentais vigora, tendo todos os cidadãos o direito constitucional à fruição de tais
direitos, devendo a lei respeitá-los e, sendo o caso de restringi-los, fazê-lo minimamente.
A violência das penas só é legítima na medida em que seja capaz de prevenir violências
maiores e produzidas por delitos ou que seriam produzidas na sua ausência e, como supracitado,
restringindo-se minimamente os direitos fundamentais, de forma a estabelecer-se um critério
de legitimação ou invalidade para a violência legal ou supérflua, seja penal ou extrapenal.
É nesse contexto que Ferrajoli trata do modelo de “estrita legalidade”26, princípio tido
por ele como uma norma meta-legal que condiciona a validade de leis que autorizam o exercício
da violência a uma série de requisitos correspondentes a um conjunto de garantias
constitucionais, penais e processuais, além de apresentar-se como uma técnica legislativa para
disciplinar da forma mais rígida possível a violência institucional e os poderes coercitivos.
Segundo Ferrajoli, a estrita legalidade está intimamente ligada a um dos elementos
constitutivos do modelo garantista, qual seja, o convencionalismo penal, que exige duas
condições do direito penal: o caráter formal ou legal do critério de definição do desvio e o
caráter empírico ou fático das hipóteses de desvio legalmente definidas27. Nesse sentido, a
estrita legalidade funciona como um freio nos critérios de formulação da norma penal, já que
não irá admitir “normas constitutivas”, mas somente “normas regulamentares” dos atos tido por
típicos e antijurídicos, exigindo que a normas penais prescrevam algo, ou seja, estabeleçam uma
proibição com conteúdo de ação, cabendo também a omissão, não sendo passível de punição
qualquer hipótese indeterminada de desvio, mas somente comportamentos empíricos
determinados e que podem ser atribuídos à culpabilidade de um sujeito.
De tais condições advêm dois efeitos fundamentais do Direito Penal próprio dos Estados
modernos. O primeiro é a garantia para os cidadãos de uma esfera intangível de liberdade,
assegurada pelo fato de ser punível somente o que está proibido na lei. O segundo é a igualdade
25 Idem, p. 41.
26 FERRAJOLI, Luigi.Op. cit., p. 31
27 Idem, p. 30.
26
jurídica dos cidadãos perante a lei, ou seja, as ações ou os fatos, por quem quer que os tenha
cometido, podem ser realmente descritos pelas normas como "tipos objetivos" de desvio e,
enquanto tais, ser previstos e provados como pressupostos de igual tratamento penal.28
Ainda na análise do Direito Penal, e de seus custos e objetivos, a teoria de Ferrajoli
fundamenta-se na análise da prática penal como uma técnica de definição, individualização e
repressão de desvios, que se manifesta através de coerções e restrições aos potenciais infratores,
àqueles suspeitos e àqueles condenados. Tais restrições são de três ordens: criminais, penais e
processuais, e, segundo o autor:
“Esse conjunto de constrições representa um custo que deve ser justificado,
vez que pesa não apenas sobre os culpados, mas também sobre os inocentes.
Embora todos estejam sujeitos às limitações da liberdade de ação prescritas
nas proibições penais, nem todos, e nem mesmo somente aqueles culpados
pela violação destas veem-se sujeitos ao processo e à pena.”29
A esse custo, a doutrina garantista concede a denominação de “custo da justiça”,
dividindo-se em cifra da ineficiência e cifra da injustiça30. A cifra da ineficiência é o que
convencionou-se chamar de “cifra negra”, ou seja, aqueles casos que a justiça penal não
alcança, culminando em impunidade. Contudo, a cifra da injustiça é a mais preocupante para o
garantismo, uma vez que muitos inocentes, reconhecidos por sentença absolutória, devem ser
submetidos ao processo penal e, até mesmo, à prisão cautelar. Além dos casos daqueles
condenados definitivamente e, depois, inocentados em grau de revisão criminal, bem como os
casos de erros judiciários que nunca são ou foram reparados.
Dessa forma, o custo da cifra da injustiça é moral, ético e, logicamente, insuportável,
pois é fruto de uma carência normativa e da não efetividade prática das garantias penais e
processuais, dando margem ao erro e ao arbítrio.
Segundo Cirino dos Santos31, a relatividade do crime, ocasionada pelas chamadas cifras
negra e dourada, é um dos fatores que enfraquece as teorias da criminologia tradicional, pois o
crime varia conforme o tipo de sociedade e o estágio de desenvolvimento tecnológico. Para
melhor definir a cifra da injustiça e justificar a aplicação da pena e do processo penal, quatro
questões devem ser formuladas: “se, quando, como e por que da intervenção penal; se, quando,
28 Idem, ibidem.
29 Direito e Razão, p. 168
30 idem
31 SANTOS, Juares Cirino dos. A criminologia radical. 3. Ed. Curitiba: Lumen Juris, 2008, p. 12-13.
27
como e por que punir; se, quando, como e por que proibir; se, quando, como e por que julgar”32.
Trata-se de uma clara crítica à postura observada na maioria dos ordenamentos jurídicos quando
das questões sobre o por que punir, objeto de grande discussão na doutrina e no meio
acadêmico.
A questão do “por que punir” ganha relevo quando pensamos no papel do Direito Penal
na atualidade, em que existe uma demanda cada vez maior de controle normativo para
solucionar os novos riscos da sociedade altamente tecnológica , diferentemente do que ocorria
no iluminismo, tempo em que houve o desenvolvimento do Direito Penal, da pena e do
pensamento garantista na forma como conhecemos hoje, graças aos estudos dos pensadores
penalistas da época, dos quais destacamos Cesare Beccaria, Jeremy Bentham e Stuart Mills. É
por isso que a questão do “por que punir” passa necessariamente pela compreensão temporal
do Direito Penal e da pena, como bem destaca a doutrina de Tatiana Bicudo.33
As mudanças ocorridas com o Direito Penal no iluminismo passam pelo fundamento do
crime e da pena, afastando-se a religiosidade e a imagem de Deus, como ocorria no período
medieval, e estabelecendo-se a figura do Estado, seja o rei ou a sociedade. Beccaria e Bentham
trabalham suas obras sobre essa nova ótica do Direito Penal, com a distinção de crime, pecado
e direito, da moral e da religião, dentro de uma visão utilitarista do Direito PenalPara Duek
Marques, a filosofia liberal do século XVIII, muito caracterizada pela Revolução Francesa,
apresentou no campo penal o fim gradativo dos suplícios impostos pela vingança pública. A
sociedade impunha uma alternativa para que os criminosos fossem punidos de forma justa, mas
humana, através da proporcionalidade entre a transgressão e o castigo.34
O Marquês de Beccaria é considerado como o primeiro autor a trabalhar a abolição da
pena de morte, considerando-a inútil por sua crueldade e ferocidade, de forma a posicionar-se
de firmemente ante os excessos e injustiças do absolutismo do século XVIII. Destaca-se
também o seu trabalho pelo abrandamento das penas, esclarecendo a importância de que haja
uma relação entre a necessidade da pena, visando a prevenção geral, e a liberdade individual,
conciliando-se a máxima segurança e a máxima liberdade.35Jeremy Bentham contribuiu de
32 Idem, p. 169
33 BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria Geral da Pena. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 14.
34 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016, p.
103.
35 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016, p.
109/110.
28
forma decisiva no direito inglês, opondo-se às práticas penais e instituições legais da Inglaterra,
pois as considerava arbitrárias, obscuras, assistemáticas e injustas, de modo a gerar apenas
incertezas e dificuldades de acesso à justiça. Por isso, propôs reformas ao sistema penal vigente
com sua visão utilitarista, criando uma teoria geral para o ensino do Direito e para as atividades
práticas baseada na sua ideia de se proporcionar maior felicidade à sociedade, obrigação a ser
suportada por governantes e legisladores, no sentido de compensar ou punir as ações que
promovessem a felicidade ou que a impedissem. Segundo Biccudo:
“É um sistema claramente fundado na ética utilitarista, que busca o prazer
do maior número de pessoas, configurando uma utilidade social. Nisso,
distingue-se essa ética da praticada no século XVIII, hedonista, que considera
o prazer o único bem possível.”3637
Bobbio destaca o uso mais comum do termo Utilitarismo38, utilizado para designar
doutrinas normativas, mas que detëm um conceito comum, qual seja, o de que “a justificação
moral de uma ação depende exclusivamente de sua utilidade”, significando que deve ser
sopesado o valor das conseqüências conexas a essa ação. A diferença entre essas doutrinas
reside, segundo Bobbio, no entendimento sobre uso do Utilitarismo, seja como método
deliberativo ou como processo decisório e o “Utilitarismo entendido como sistema ético”.
Importante tratar, mesmo que muito resumidamente, sobre as contribuições de Mill39,
que deu continuidade aos pensamentos benthamnianos, defendendo um tipo de utilitarismo
combinado com o socialismo, o que resultava no altruísmo. Para esse tipo de utilitarismo seria
necessário imaginar as pessoas felizes e ricas, tendo como resultante uma existência “isenta e
36 BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria Geral da Pena. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 15.
37 Falando de Utilitarismo, Bobbio, em seu dicionário de política, destaca a contribuição de Jonh Stuart Mill que,
ao lado de Bentahm, utilizou inicialmente o termo para tratar de um sistema de ética normativa, tendo – o termo
Utilitarismo – variado constantemente ao longo do tempo para ser usado hoje como significado de uma série de
doutrinas ou teorias, das quais destacamos os significados como teorias fatuais: a) “Utilitarismo como teoria
metaética”, que se ocupa da metaética, ou seja, da natureza dos conceitos e termos éticos, distinguindo termos da
deontologia, tais “como "moralmente reto", "obrigatório", "necessário" e "proibido" e termos axiomáticos como
"bom", "desejável", "preferível" e todos os seus contrários”, nos dizendo como estes devem ser entendidos; b)
“Utilitarismo como teoria psicossocial”, que trata do estudo da origem e do desenvolvimento de “nossas
concessões e de nossas atitudes morais”, através das experiências de prazer e de dor que estão ligadas aos
comportamentos do homem, “enquanto for capaz de simpatia ou provido de inato sentido de benevolência”,
desenvolvendo atitudes favoráveis em relação a estes tipos de comportamento, por meio das experiências
agradáveis e atitudes desfavoráveis em relação aos comportamentos que provocam experiências dolorosas; c)
“Utilitarismo como teoria analítico-explicativa”, que desenvolve uma teoria particular para analisar e tornar
“explícitos os critérios do agir moral próprios da moral comum”, bem como tenta explicar o porquê das regras
morais e suas variações em regras morais vigentes nos dias de hoje e em épocas e culturas diversas. BOBBIO,
Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. Carmen C. Varriale. 11.
Ed. Brasília: Ediora Universidade de Brasília, 1998, p. 1274. 38BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. P. 1275.
39 MILL, Jonh Stuart. Utilitarismo. Tradução de Pedro Galvão. Portugual: Porto, 2005, p. 48-49.
29
o mais livre possível da dor”, em que prevalecesse o contentamento. Assim, o padrão moral
deveria ser a finalidade dos atos do homem e de toda a humanidade, de maneira a promover o
maior grau de felicidade a todos os envolvidos. Felicidade essa consubstanciada no prazer e na
ausência de dor, como finalidade da existência humana.
Dessa forma, esses expoentes do utilitarismo penal, Beccaria, Bentham e Mill
desenvolveram teorias relevantes para o entendimento do Direito Penal moderno, adotando um
modelo de sistema racional que trabalhava o fundamento da pena aplicada de acordo com o
julgamento proferido, já que a humanidade era o fim precípuo. Destaca-se, nesse sentido, a
preocupação de Bentham com o modelo de sistema prisional da época, tendo desenvolvido um
modelo arquitetônico que buscava a transparência das prisões, nomeado como Panóptico.40
1.2 SOCIEDADE DE RISCO E GARANTISMO
A par dessa visão moderna do Direito Penal, que apresentou o utilitarismo das penas e
do próprio Direito Penal, sabemos que as preocupações e necessidades do mundo
contemporâneo são diferentes daquelas presentes nos séculos XVIII e XIX, haja vista que
vivemos em uma sociedade de risco e altamente globalizada. De risco porque são crescentes as
inseguranças como um todo, sobremaneira quanto à validade das normas e ao modo que se deve
proceder e decidir diante das mais variadas situações presentes na vida cotidiana, o que acaba
por gerar rotineiramente grandes embates sociais e políticos.41 Além do que, o alto
desenvolvimento econômico, tecnológico, social e político geram riscos que tendem cada vez
mais a fugir do controle das instituições e das formas de controle criadas para tal. E esses riscos
são todos advindos das próprias atividades e decisões humanas ou dos danos que a própria
coletividade se inflige, diferentemente de tempos anteriores em que os riscos eram atribuídos à
natureza ou à vontade divina, como causas externas às decisões da sociedade, já que a noção de
sociedade não detinha o senso de globalização atual.42 Por esse motivo, Bicudo pontua que:
“Assim, a sociedade de risco também toca em dois pontos importantes à
racionalidade moderna: a noção de tempo e de espaço. Tempo, como duração
que se prolonga de maneira indeterminada, e espaço, que perde seus limites
40 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016, p.
123.
41BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria Geral da Pena. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 16.
42 Idem, p. 128
30
tradicionais, confundindo-se como uma massa amorfa, em um horizonte mais
distante.”43
Acerca da sociedade de riscos, Moraes aduz que:
“A sociedade moderna é caracterizada pelo individualismo de massas, pela
mudança do sistema de organização e de comunicação, assim como pela
globalização , traços preponderantemente responsáveis pela formatação da
´sociedade de riscos´, onde a sensação de insegurança coletiva convive com
os novos bens jurídicos alçados à tutela do Direito (como os interesses
jurídicos difusos), desencadeando a descodificação do Direito, a hipertrofia
e irracionalidade legislativa.”44
Refletindo sobre a evolução da sociedade moderna para uma sociedade de risco,
Giddens, Beck e Lash45 demonstram que a modernização concebida por um processo de
inovação autônoma passa pela obsolescência da sociedade industrial, a qual, necessariamente,
conduz à emergência da sociedade de risco, pois a sociedade industrial desenvolve-se para
controlar os riscos sociais, políticos e econômicos, deixando de lado as instituições. Esse
desenvolvimento, segundo os autores, se dá em duas fases, a primeira em que “os efeitos e as
autoameaças são sistematicamente produzidos”, mas ainda não são problemas públicos ou o
principal motivo dos conflitos políticos, porque ainda consiste o conceito sobre sociedade
industrial e as ameaças são apenas riscos reiduais. A segunda fase surge exatamente quando as
ameaças e perigos próprios da sociedade industrial dominam o cenário político e os debates
públicos, momento em que essa mesma sociedade (industrial) produz e legitima as ameaças que
não controla, e alguns de seus aspectos “tornam-se social e politicamente problemáticos”.
Nesse cenário, os autores ilustram o que ocorre no processo de tomada de decisões e na
realização das ações da sociedade moderna, vejamos:
“Por um lado, a sociedade ainda toma decisões e realiza ações segundo o
padrão da velha sociedade industrial, mas, por outro, as organizações de
interesse, o sistema judicial e a política são obscurecidos por debates e
conflitos que se originam do dinamismo da sociedade de risco.”46
Beck, Giddens e Lash deixam claro que essa transição de uma sociedade industrial para
“o período de risco da modernidade” não ocorre de maneira desejada, mas trata-se de uma
43 Idem, ibidem.
44 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal.
Curitiba: Juruá, 2008, p. 331.
45 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na
ordem social moderna. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p.
15.
46 Idem, p. 16.
31
transformação que vem despercebidamente e compulsivamente por força do “dinamismo
autônomo da modernização, seguindo o padrão dos efeitos colaterais latentes”47. Não se trata
de uma escolha, mas do mencionado processo de modernização autônoma que vem
acompanhado de seus efeitos e ameaças, abalando os alicerces da sociedade industrial. Ocorre
que, a sociedade industrial não está verdadeiramente preparada para os problemas e incertezas
da sociedade de risco, pois as certezas daquela ainda dominam o “pensamento e a ação das
pessoas e das instituições”48.
Com essas bases, os autores apresentam seu conceito de “modernização reflexiva”,
como a “autoconfrontação com os efeitos da sociedade de risco que não podem ser tratados e
assimilados no sistema da sociedade industrial - como está avaliado pelos padrões institucionais
desta última”49.
Portanto, instalada a sociedade de risco, os velhos conflitos sobre a distribuição de
renda, emprego, seguro social e etc, de prevalência central para a sociedade industrial clássica,
são transferidos para os chamados conflitos de “distribuição de malefícios”50, vez que incorrem
sobre a forma de lidar com os riscos que acompanham a produção de bens, de modo a distribuí-
los, evitá-los, controlá-los e/ou legitimá-los. Daí já se pode extrair um conceito social de
sociedade de risco:
“No sentido de uma teoria social e de um diagnóstico de cultura, o conceito
de sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam
a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade
industrial.”51
Esse conceito de sociedade de risco, nas palavras dos autores, gera “transformações
notáveis e sistêmicas em três áreas de referência”52, sendo: a) “o relacionamento da sociedade
industrial moderna com os recursos da natureza e da cultura, sobre cuja existência ela é
construída”, que estão desaparecendo conforme a modernização se estabelece, como por
exemplo a ordem social com base na diferenciação entre os sexos; b) “o relacionamento da
47 Idem, ibidem.
48 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na
ordem social moderna. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p.
16.
49 Idem, ibidem.
50 Idem, p. 17.
51 Idem, ibidem.
52 Idem, p. 18-19.
32
sociedade com as ameaças e os problemas produzidos por ela”, vez que essas ameaças, em
muitos casos, se sobrepõem ao que se tinha por ideal de segurança, fazendo com que se
transformem “as suposições fundamentais da ordem social convencional”, seja na área dos
negócios, do direito ou da ciência, gerando consequências nas ações políticas e na tomada de
decisões; e c) “as fontes de significado coletivas e específicas de grupo”, como no caso das
mudanças verificadas na consciência de classe ou da crença no progresso, que tendem a se
dissipar. Esse processo fortalece o que os autores chamam de “processo de individualização”,
verificado com o esforço crescente de definição dos indivíduos, ocorrido, sobretudo, nas
democracias e sociedades econômicas do século XX, mas que, com o advento da sociedade de
risco, muda de figura, transferindo-se de um processo de libertação “das certezas feudais e
religiosas-transcendentais para o mundo da sociedade industrial”, para o processo de transição
da sociedade industrial em direção às “turbulências da sociedade de risco global”, em que o
indivíduo detentor de direitos e deveres tem que tomar as decisões que antes eram tratadas em
um grupo familiar ou em uma comunidade, haja vista que estes núcleos sociais vem se
degradando e perdendo sua “posição central na sociedade”.
É nesse cenário que o “por que punir” ganha novo significado, haja vista a complexidade
dessa sociedade contemporânea, em que as teorias do Direito Penal, como é o caso do
Garantismo, buscam, de modo geral, harmonizar o poder punitivo estatal com os princípios
próprios de um Estado liberal moderno, que adota a democracia como forma de governo. Não
se trata, portanto, da simples conclusão de que porque existe pena se deve punir, é, sim, uma
questão muito mais complexa.
Para a teoria garantista, é absolutamente duvidosa a eficácia do Direito Penal em coibir
crimes através da ameaça da sanção penal, não se podendo deixar de lado as complexas razões
sociais, psicológicas e culturais do delito. A prevenção do delito e as exigências de segurança
e defesa social não podem sobrepor a prevenção às penas arbitrárias e as garantias do acusado.
É essa lógica que diferencia o Direito Penal dos demais sistemas de controle social, ou seja, a
tutela do inocente e a minimização do delito. Por isso, o Direito Penal nas sociedades evoluídas
é um custo, um preço a pagar.
Sendo assim, fica claro que o objetivo do Direito Penal é a minimização da violência na
sociedade, impedindo-se, em qualquer caso, o exercício das próprias razões, seja por parte do
delinquente, ao cometer o crime, seja na ofensa típica da vingança desregrada, desproporcional,
33
que atinge, vez por outra, inocentes. A Lei penal, na visão garantista, é voltada a minimizar essa
dupla violência53.
O Direito Penal não é passível, portanto, de ser reduzido a mera defesa social dos
interesses constituídos contra a ameaça que os delitos representam. O ideal é que se entenda
que quando da prática do delito, o infrator encontra-se em uma posição mais forte, porém
quando entra em cena a vingança, os sujeitos públicos e privados são solidários à vítima,
tornando-a a parte mais forte. É o que vem acontecendo na maioria dos ordenamentos, o Estado
monopoliza a força, delimitando os pressupostos e as modalidades, afastando o exercício
arbitrário da força daqueles não autorizados. Na teoria garantista essa é a ideia na base das
finalidades preventivas, previnem-se os delitos e as penas arbitrárias.
Essa dúplice finalidade garantista visa à tutela dos valores e direitos fundamentais do
acusado, mesmo a contra sensu aos interesses da maioria, buscando a imunidade do cidadão
contra as arbitrariedades punitivas e proibitivas do Estado. Por isso, para a teoria garantista de
Ferrajoli, a legitimação do modelo garantista não decorre de um processo “democrático” –
somente no sentido de prevalência da vontade da maioria – democrático, pois, por certo, vai
contra a vontade geral de punição, mas em favor do deliquente, deixando de lado o
entendimento majoritário de que a pena é um mal menor se comparada com as reações não
jurídicas e apresenta um custo social menor do que os da anarquia punitiva. Nasa palavras do
autor:
“Esta legitimidade, como mostrarei nos parágrafos 37 e 57, não é
"democrática" no sentido que não provém do consenso da maioria. É, sim,
"garantista", e reside nos vínculos impostos pela lei à função punitiva e à
tutela dos direitos de todos. "Garantismo", com efeito, significa precisamente
a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo
contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito
penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das
proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais
para todos, a dignidade da pessoa do imputado, e, conseqüentemente, a
garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito à sua verdade. E
precisamente a garantia destes direitos fundamentais que torna aceitável por
todos, inclusive pela minoria formada pelos réus e pelos imputados, o direito
penal e o próprio princípio majoritário”.54
Não se quer dizer que o modelo garantista é antidemocrático, o que Ferrajoli afirma é
que a legitimação do seu modelo de Direito possui um caráter que não é democrático, no sentido
53 Direito e razão, p. 271
54 Direito e razão, p. 271 .
34
de que não provém do consenso da maioria, mas justifica-se pela tutela dos valores ou direitos
fundamentais em face dos arbítrios estatais. Para ele, é a garantia dos direitos fundamentais que
torna aceitável para toda a população, inclusive para a minoria formada por réus e acusados, o
Direito Penal e o próprio princípio majoritário ou democrático.
Ainda falando de legitimação não democrática, e a fim de melhor ilustrar a questão, para
o autor, a legitimação da atividade jurisdicional não é do tipo democrática ou de maioria, já que
se trata de um poder estatal imposto a todos os cidadãos, sendo ela, em verdade, e por sua
margem inseparável de discricionariedade, carente de uma legitimação formal ou substancial.
Em suas palavras:
“Na medida em que é potestativa – e mais ainda se for exercício do poder de
disposição – a atividade jurisdicional, como se disse no parágrafo 12, é
carente de legitimação, seja formal ou substancial. A carência de legitimação
legal que é proveniente dos espaços de discricioriedade potestativa no juízo
não é na verdade suprível mediante outras fontes de legitimação. Em
particular, já se disse, não o é mediante uma legitimação de tipo
"democrático" ou de maioria, como ocorreria com um controle
governamental ou parlamentar sobre as funções judiciárias e sobre as de
postulação, ou com o caráter eletivo de juízes e/ou acusadores, ou até mesmo
com formas de jurisdição democrática direta ou representativa. E isso pela
razão já exposta de que a legitimação majoritária não torna verdadeiras as
proposições jurisdicionais falsas nem suscetíveis de verificação ou
falseamento aquelas não verificáveis nem falseáveis. Disso deriva que a
carência de legitimação legal e racional – em uma palavra "garantista" – do
Poder Judiciário, na medida em que é inevitável, é também irremediável, não
sendo pertinentes e sim contrastantes com a natureza mesma da jurisdição
quaisquer outras formas de legitimação.”55(grifei)
Sob esse prisma, Ferrajoli assume a posição de justificar a existência do Direito Penal,
a partir de uma visão normativa externa e outra interna (justiça e validade)56, segundo a qual
justifica-se a existência do Direito Penal pela necessidade de prevenção geral através da ameaça
legal dentro de um modelo mínimo e garantista, vez que a prevenção geral, nos sistemas
punitivos modernos e sem estar inserida em um modelo mínimo e garantista, vem se
demonstrando ineficaz. É o que ocorre, por exemplo, nos casos dos crimes de opinião, de aborto
e os de drogas, que, em geral, não demovem o infrator da ideia, ou pior, geram uma estrutura
de poder paralela, mais nociva à sociedade, como a clandestinidade e o crime organizado.
Sem a visão típica do garantismo, o processo penal e punitivo moderno, graças às suas
contaminações e à quebra das formas garantistas, encaminha-se para um sistema de controle
55 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. P. 439.
56 Direito e razão, p. 171
35
mais informal e sempre menos penal, que “é o verdadeiro problema penal de nossa época”57.
Tal situação se dá, principalmente, pelas legislações de emergência, de caráter essencialmente
administrativo, além das sanções extra, ante ou ultra delictum, de caráter escarnecedor,
estigmatizante – caso das prisões processuais –, medidas de segurança, medidas protetivas e
medidas probatórias policialescas, como busca e apreensão e censura telefônica.
De tal maneira, em não se aplicando os preceitos da teoria garantista, vive-se tal qual a
perspectiva iluminista com o problema das garantias penais e processuais penais, ou seja,
devem ser aplicadas técnicas normativas mais idôneas para minimizar a violência punitiva e
evidenciar ao máximo a tutela dos direitos.
Devemos entender que modelo garantista proposto por Ferrajolli objetiva à proteção do
mais fraco em relação ao mais forte e, segundo Tatiana Bicudo58, assume, nessa questão, o
critério de justiça equitativa de John Rawls, conforme sua Teoria de Justiça, no sentido de ser
justa a sociedade criada por homens que não conhecessem o lugar que poderiam ocupar nessa
sociedade, nas condições denominadas pelo autor de “véu da ignorância”.
A teoria de Rawls busca uma concepção de justiça que tem como pano de fundo a teoria
do contrato social, na forma proposta pelos pensadores clássicos Locke, Rousseau e Kant, mas
não para estabelecer um modo de governo, na visão original, e sim para fazer valer os princípios
da justiça como estrutura fundante da sociedade. Contudo, no seu entendimento, a única
maneira para que as pessoas aceitem inicialmente esses princípios de justiça seria quando
estivessem em uma posição inicial de igualdade, a fim de estabelecerem validamente os termos
fundamentais de sua associação. Essa maneira inicial de considerar os princípios de justiça,
Rawls chama de justiça como equidade.59
O “véu da ignorância” é justamente essa maneira inicial de considerar os princípios de
justiça, é a característica da justiça como equidade, em que as partes assumem essa condição
inicial para associar-se racionalmente e mutuamente desinteressadas, no sentido de que umas
não tenham interesses nos interesses das outras. É nessa, e somente nessa posição que os
princípios de justiça devem ser escolhidos quando do contrato social.60
57 Direito e Razão, p. 276
58 BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria Geral da Pena. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 138.
59 RAWLS, Jonh. Uma teoria de justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 13.
60 Idem, p. 15.
36
Na verdade, na doutrina de Rawls, o véu da ignorância é essa posição inicial, em suas
palavras a “posição original”, tida como essencial para que os consensos básicos estabelecidos
sejam equitativos, delimitando-se, assim, o conceito de justiça como equidade. Essa forma de
união contratual garante, ainda, a racionalidade da escolha, associando-se a questão da justiça
à teoria da escolha racional.61
Assim, inexistiria a possibilidade de os homens garantirem benefícios próprios, sem
causar prejuízos aos demais. É dessa forma que estaria assegurada a igualdade de condições e
oportunidades para todos, sem importar a sua posição social.
Mormente para permitir-se rendimento crítico diante das demandas da soceidade de
risco, é importante tratar da visão da criminologia sobre essa teoria. De acordo com os estudos
de Anitua62, o abandono da sociologia era algo que a criminologia crítica e os minimalistas ou
garantistas sempre reprovaram, por isso, as versões atuais de direito penal mínimo ou de
garantias são mais jurídicas, mas não menos políticas, do que as dos primeiros criminólogos
críticos. Isso porque, segundo o autor, nas ocasiões em que ocorrem vulnerações mais profundas
e graves dos direitos dos homens, a maioria dos indivíduos críticos busca guarida nos
postulados da criminologia crítica e do direito penal liberal, como freio aos abusos. Essa
postura, para Anitua, se deve a um tipo de estratégia para os novos criminólogos críticos, que
buscavam atuar dentro de certa definição legal de delito, e o minimalismo seria a trincheira para
aqueles que pretendiam trabalhar com a justiça como poder. Os pensamentos minimalistas,
então, surgem em um contexto em que a defesa do liberalisno legal era como que uma
necessidade de sobrevivência63.
Interessante notar a distinção que Anitua faz entre os estudos de Baratta e os de Ferrajoli,
que reside na confiança de um futuro melhor, posto que, segundo ele, Baratta, sobretudo em
sua obra “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal”, defende uma nova disciplina
integradora e, também, um novo discurso sobre política, igualmente integrador, de modo a
propiciar uma refundação do Estado e do Direito, criando-se uma nova concepção de
democracia baseada no princípio da inclusão das vítimas e de todos aqueles que mais sofrem64.
61 Idem, p. 19.
62 ANITUA, Gabriel Ignacio. Op. cit. p. 448
63 Idem, p. 449.
64 Idem, p. 453.
37
Já, para Anitua, a versão negativa sobre o Direito Penal que defendia Ferrajoli constitui
o mais relevante esforço para desenvolver-se um papel limitador para as violências do direito
penal, numa tentativa de impor limites às ampliações que se verificavam na época nesse poder
punitivo, que se vislumbrava não só no presente, mas também no futuro em que os Estados
liberais e sociais desejavam existir65.
Dessa forma, o Direito Penal mínimo de Ferrajoli recebeu a denominação de garantista,
e adveio, segundo Anitua66, de uma visão pessimista de futuro, pois o desaparecimento do
sistema penal levaria a existência de uma anarquia punitiva, com respostas selvagens diante de
uma ação reputada reprovável, ou a existência de uma sociedade disciplinar, em que seria
impossível a existência de ações reprováveis, diante de uma vigilância social ou estatal total.
São essas “utopias regressivas”, nas palavras de Ferrajoli, que o Direito Penal garantista
objetiva enfrentar como alternativa progressista. Portanto, o prognostico para o futuro poderia
ser bem pior sem a presença do sistema penal67.
Anitua destaca, ainda, a contrariedade da teoria de Ferrajoli ao direito penal de
emergência, diametralmente oposta à Hobbes, que defendia a capacidade soberana de impor o
estado de exceção. Vejamos:
“Algo que FERRAJOLI se mostrava claramente contrário ao pensamento de
HOBBES, era no que se refere a capacidade soberana de impor o “Estado de
exceção”. A obra do italiano será especialmente necessária para denunciar
a ilegitimidade do direito penal autoritário e do de “emergência””.68
Essa análise de Anitua evidencia a abordagem que a pesquisa feita neste trabalho
pretende em relação ao Garantismo, a de que se trata de uma teoria que busca uma visão do
Direito, sobretudo do Direito Penal, como reação às legislações penais de “emergência”.
65 ANITUA, Gabriel Ignacio. Op. cit. p. 454
66 Idem, ibidem.
67 Idem, p. 455.
68 “En lo que FERRAJOLI se mostraba claramente en contra del pensamiento de HOBBES, es en lo referente a la
capacidad soberana de dictar el "Estado de excepción". La obra del italiano será especialmente necesaria para
denunciar la ilegitimidad del derecho penal autoritario y el de la "emergencia"”.Tradução livre. ANITUA. Juan
Ignacio. Op. cit., p. 456.
38
1.3 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE DIREITO
PENAL E OS PRINCÍPIOS TÍPICOS DO GARANTISMO PENAL
Antes de adentrar no objeto específico deste tópico, cabe destacar a diferença
fundamental entre princípios e regras. Nos termos propostos por Robert Alexy69, o princípio
constitui-se em um “mandamento de otimização”, sem fornecer um parâmetro fixo, definido e
claro para a vida cotidiana, como é o caso da ampla defesa (art. 5º, LV, CF/88). Já as regras são
comandos simples e objetivos, que precisam ser cumpridos, como ocorre no art. 5º, LXIV, da
CF/88, dispondo que “o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou
por seu interrogatório policial”. Em todo o caso, sejam princípios ou regras constitucionais,
ambos estão em posição superior à legislação ordinária.
O sentido de princípios como mandamentos de otimização em Alexy indica que se
tratam de normas que demandam a realização de algo na maior medida possível, consideradas
as possibilidades fáticas e jurídicas, o que aponta para o fato de que os princípios podem ser
concretizados ou satisfeitos em vários graus, a depender das possibilidades fáticas e,
principalmente, jurídicas. De outra maneira, as regras, enquanto comandos simples e objetivos,
são satisfeitas ou não são satisfeitas e, sendo válidas, deve-se fazer exatamente aquilo que está
prescrito. Nesse ponto reside a principal distinção entre princípios e regras, os primeiros tem
grau de satisfação variável, já as regras tem grau de satisfação fixo, consideradas as condições
fáticas e jurídicas apresentadas no caso concreto.70
A visão de Ronald Dworkin, que inspirou a de Alexy, é também no sentido de
diferenciar princípios e regras do ponto de vista lógico, considerada a solução do caso concreto.
Nesse prisma, as regras são aplicadas de forma “tudo-ou-nada” de acordo com sua validade, ou
seja, em sendo válida, a regra deve ser aplicada por completo, sem meio termo, em sendo
inválida, ela é afastada por completo. Já os princípios não possuem tal estrutura disjuntiva,
servindo apenas como razões que contribuem em prol de uma decisão ou outra, já que não
determinam por completo a situação do caso concreto.71 Além disso, Dworkin esclarece que os
princípios possuem uma dimensão que as regras não possuem, qual seja, a “dimensão do peso”.
69 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2008, p. 90/91.
70 Idem, ibidem.
71 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.
39/40.
39
Acontece que, de forma bastante resumida, cada princípio possui um peso ou uma importância
diferenciada em relação a outro e, caso ocorra a colisão de princípios em um caso concreto, um
é apenas afastado em detrimento do outro, mas ambos ainda permanecendo válidos no
ordenamento jurídico. No caso das regras isso não ocorre, já que, no caso de colisão,
obrigatoriamente uma deve ser declarada inválida, não mais pertencendo ao ordenamento
jurídico em questão.72
Na contramão de Alexy e Dworkin, Humberto Ávila, de forma a criticar as teorias
propostas para a diferenciação entre princípios e regras, parte de uma premissa própria para
construir sua teoria dos princípios, considerando a impossibilidade de se distinguir princípios e
regras como espécies de normas, pela possibilidade de sua coexistência em razão de um mesmo
dispositivo, inclusive, especificando que no caso do conflito de regras, nem sempre a aplicação
é do tipo tudo-ou-nada, uma vez que existem casos concretos em que a regra foi afastada, mas
não invalidada. Em sua visão, as normas são construídas pelo intérprete a partir dos dispositivos
(texto), por isso não se pode chegar à conclusão que este ou aquele dispositivo contém uma
regra ou um princípio. No entanto, não se quer dizer que o intérprete é livre, tudo depende dos
fins determinados pelo ordenamento jurídico.73
Em suma, após propor alguns critérios de dissociação, que dependem: a) da natureza do
comportamento prescrito, b) da natureza da justificação exigida, e c) da medida de contribuição
para a decisão, Ávila estabelece conceituações distintas para as regras e para os princípios,
como segue:
“As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente
retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja
aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na
finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente
sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a
construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente
prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para
cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de
72 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.
42/43.
73 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 26.
40
coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como
necessária a sua promoção.”74
É importante deixar claro, também, que para a caracterização de um sistema penal
garantista, como idealizado por Ferrajoli, é necessário que o Estado de Direito tenha suas bases
firmadas em princípios ou “princípios axiológicos fundamentais”, que:
“(...) não expressam proposições assertivas, mas proposições prescritivas;
não descrevem o que ocorre, mas prescrevem o que deva ocorrer; não
enunciam as condições que um sistema penal efetivamente satisfaz, mas as
que deva satisfazer em adesão aos seus princípios normativos internos e/ou a
parâmetros de justificação externa. Trata-se, em outras palavras, de
implicações deônticas, normativas ou de dever ser, cuja conjunção nos
diversos sistemas, que aqui se tornarão axiomatizados, dará vida a modelos
deônticos, normativos ou axiológicos”75.
Segundo Salo de Carvalho, o modelo teórico garantista apresenta uma estrutura de
princípios que pretende assegurar o maior grau de racionalidade possível ao sistema jurídico-
penal, deixando nas mãos dos aplicadores do direito as ferramentas mais idôneas para que esteja
assegurado o máximo grau de proteção dos direitos fundamentais.76
Esses princípios correspondem às restrições necessárias ao poder punitivo nos Estados
democráticos de direito, de forma que não seria admissível a imposição de uma pena sem que
tenha sido cometido um fato previsto legalmente como crime, de necessária proibição, gerador
de efeitos danosos a terceiros, caracterizado por uma conduta humana exterior provocada por
uma pessoa culpável. Ainda, por esses princípios, é imprescindível que o fato seja demonstrado
e comprovado empiricamente pela acusação, perante um juiz parcial, em um processo público
realizado em contraditório, através dos procedimentos de controle formalmente estabelecidos
em lei.77
Os princípios do garantismo concretizam-se em onze categorias do direito penal
material e do direito processual penal, sendo pena, delito, lei, necessidade, ofensividade,
conduta, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa78. Além disso, derivam necessariamente
das máximas históricas originadas do princípio da “estrita legalidade”, que, segundo Ferrajoli,
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 70.
75 Direito e Razão, p. 74
76 CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2015,
p. 255.
77 Idem, ibidem.
78 Idem, p. 256.
41
segue a tradição escolástica79, sendo tais máximas: a) Nulla poena sine crimen; b) Nullum
crimen sine lege; c) Nulla lex poenalis sine necessitatis; d) Nulla necessitatis sine injuria; e)
Nulla injuria sine actione; f) Nulla actio sine culpa; g) Nulla culpa sine juditio; h) Nullum
judicium sine accusatione; i) Nulla accusatio sine probatione; e j) Nulla probatio sine
defensione.
Portanto, os 10 (dez) princípios (garantias penais e processuais) expressos por tais
máximas, pilares do sistema garantista, são os seguintes80: 1) Princípio da retributividade ou da
sucessividade da pena em relação ao delito cometido; 2) Princípio da legalidade, em seu sentido
lato ou estrito; 3) Princípio da necessidade ou da economia do Direito Penal; 4) Princípio da
lesividade ou da ofensividade do ato; 5) Princípio da materialidade ou da exterioridade da ação;
6) Princípio da culpabilidade; 7) Princípio da jurisdicionalidade; 8) Princípio acusatório ou da
separação entre juiz e acusação; 9) Princípio do encargo da prova ou ônus da prova; e 10)
Princípio do contraditório.
Analisando brevemente tais princípios e suas alocações na Constituição Federal e nas
leis penais, de forma a estabelecer os fundamentos garantistas do nosso ordenamento jurídico,
passamos a tratar de cada um dos axiomas supracitados.
A Retributividade, além de advir da própria forma democrática do Estado, tem previsão
expressa em nosso ordenamento, que fixou como direito fundamental a máxima da teoria
garantista: Nulla poena sine crimen, na forma do art. 5º, XXXIX, da Constituição, do qual fica
estabelecido que “não há pena sem prévia cominação legal”. Disso decorre toda a descrição de
fatos típicos previstos no Código Penal, em que, após a descrição do preceito primário, com a
previsão da conduta, há o preceito secundário com a previsão da sanção correspondente. Trata-
se da garantia ao cidadão de ter conhecimento prévio das consequências dos seus atos no caso
de violação da lei, seja em relação à quantidade da pena (pena mínima e pena máxima), seja em
relação à qualidade da sanção, se a pena é restritiva de direitos, de detenção ou de prisão.81
Ademais, a retributividade está presente em uma das acepções do princípio da
culpabilidade, na sua forma mais aceita pela doutrina no Brasil, quando entendida – a
culpabilidade – como fundamento e limite da pena, de forma a justificar a sanção imposta e
79 Idem, p. 74
80 Direito e Razão, p. 75
81 JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal: parte geral. 2 ed. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 481.
42
impedir a medida além do referencial da própria culpabilidade82, ou seja, deve o julgador, após
a devida condenação, mensurar a pena correspondente com sua atenção voltada para a
culpabilidade, dentro da mínima e máxima previstas.
A Legalidade é o princípio basilar de todo o ordenamento jurídico brasileiro, do sistema
penal e também da teoria garantista, apresentando-se como a primeira grande barreira ao jus
puniendi estatal, também previsto no art. 5º, XXXIX, quando informa que “não há crime sem
lei anterior que o defina”. Junqueira e Vanzolini destacam duas funções da legalidade: a)
Política, justamente quando funciona como garantia ao cidadão contra a violência estatal, além
de funcionar como parâmetro para excluir as penas ilegais e constituir as penas legais; e b)
Jurídica, quando assume a função principal do Direito Penal e da pena de prevenção geral dos
delitos, na medida em que delimita as condutas proibidas na descrição dos tipos penais.83
Ressalta-se, ainda, que para que a legalidade alcance toda a sua efetividade no interior
do ordenamento jurídico, alguns aspectos devem ser observados, sendo: a) a irretroatividade da
lei penal, que, em linhas gerais, não deve retroagir para prejudicar o réu; b) a reserva legal,
proibindo-se a criação de crimes e penas por meio do direito consuetudinário; c) a proibição da
analogia, não sendo possível a aplicação da analogia para ampliação dos limites do Direito
Penal; e d) a taxatividade, que afasta as cominações típicas vagas e inderteminadas.84
A Necessidade, também conhecida como Subsidiariedade do Direito Penal ou
intervenção mínima, estabelece que o Direito Penal somente deve atuar na proteção de bens
jurídicos imprescindíveis à convivência pacífica da sociedade e que não podem ser protegidos
de forma menos agressiva, ou seja, entende-se que o Direito Penal é a ultima ratio no bojo do
ordenamento jurídico. Não há previsão específica na Constituição, mas advém da própria
natureza do Estado Democrático.
Em se tratando da subsidiariedade, Roxin entende que esta é uma das vertentes do
princípio da proporcionalidade, o qual é derivado do princípio constitucional do Estado de
Direito, resultando no fato de que, sendo o Direito Penal a mais dura das intromições na
liberdade do indivíduo, esta somente se justifica quando outros meios menos duros não
82 Idem, p. 72.
83 Idem, p. 35.
84 Idem, p. 36/38.
43
obtenham êxito suficiente, do contrário estaríamos diante de uma vulneração à proibição do
excesso. 85
A Lesividade ou Ofensividade do ato nos informa que somente aquelas condutas que
ataquem concretamente bens jurídico-penais devem ser incriminadas, fazendo com que os atos
comuns da vida em sociedade não sejam objeto da lei penal, decorrendo, também, do tipo de
Estado adotado pela Constituição. Desse princípio decorre que aquelas ofensas desprovidas de
qualquer idoneidade lesiva, mesmo que atinjam bens jurídicos relevantes, não serão objeto de
tutela na esfera penal, portanto: inexiste a incriminação de mera atitude interna, bem como não
se sustenta a incriminação dos estados pessoais ou de condições existenciais, inerentes do ser
humano
O princípio da materialidade também aborda a relevância da conduta do agente e a
exterioridade da ação, deixando claro que os crimes somente podem ser objeto da ação humana
empiricamente observada, decorrendo, da mesma forma, do Estado Democrático e Social de
Direito. Confunde-se com o princípio da alteridade, pois somente será objeto de tutela penal a
conduta que extrapolar do âmbito interno do agente, devendo não ser punida a ação ou omissão
que não lesa interesse juridicamente protegido de outro, mas somente do próprio autor.
A Culpabilidade, na forma como prevista e entendida em nosso ordenamento jurídico,
dever ser vista sob três aspectos. O primeiro se trata da questão da subjetividade da
responsabilidade penal, sendo inadmissível a responsabilização objetiva do agente, sem que se
verifique o dolo ou a culpa. Apesar disso, e somente a título argumentativo, existem casos de
responsabilização objetiva na legislação penal pátria. O segundo aspecto indica o grau de
reprovabilidade sócio-normativo da conduta86, podendo ser observado no art. 59 do Código
Penal. Por fim, o último aspecto é o da culpabilidade como fundamento e limite da pena,
justificando-a e estabelencendo-se o seu referencial.
O princípio da jurisdicionalidade, ou garantia da jurisdição, ou inafastabilidade da
jurisdição, tem previsão expressa no artigo 5º, XXXV, da CF/88 e, em Processo Penal, aponta
para a competência da jurisdição penal de acordo com as competências estabelecidas na
Constituição, estando abarcado também pelo devido processo legal na forma do art. 5º, LIV e
LV, da Constituição Federal.
85 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997, p. 66.
86 Artigo Constituição e Garantismo, 244
44
Aury Lopes Jr ensina que a garantia da jurisdição não significa apenas a garantia de um
juiz competente, exige ainda um juiz imparcial, natural e comprometido com a máxima eficácia
da própria Constituição. Ainda, como característica de um sistema penal garantista, aponta o
autor que:
“O juiz assume uma nova posição no Estado Democrático de Direito, e a
legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional,
consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais de todos e
de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição contrária à
opinião da maioria. Deve tutelar o indivíduo e reparar as injustiças cometidas
e absolver quando não existirem provas plenas e legais (abandono completo
do mito da verdade real).”87
Por seu turno, o princípio acusatório indica a estrita separação entre a pessoa do
acusador e do julgador, sendo sua caracterização constitucional estabelecida no art. 129, I, da
Constituição Federal, que atribui à função acusatória ao Ministério Público. Cabe destacar que
a Constituição não prevê expressamente um processo penal orientado pelo sistema acusatório,
contudo, sendo fundamento do projeto democrático a valorização do homem e do valor
dignidade da pessoa humana, além das diversas regras que desenham tal modelo de sistema,
restam estabelecidos os pressupostos básicos do sistema acusatório, enquanto contraponto de
um sistema inquisitorial. É por isso que o princípio acusatório figura como uma das garantias
próprias do Estado Democrático de Direito.88
O Ônus da prova, que está ligado ao princípio acusatório, estabelece a função da
acusação em comprovar a responsabilidade pelo ato ilícito do imputado, tendo sua base
constitucional no contraditório e na ampla defesa, previsto no art. 5º, LV, da Constituição. Por
outro lado, tem íntima ligação com a presunção de inocência do réu, já que, segundo o sistema
processual pátrio, além de a carga da prova ser inteiramente do acusador, a presença de fundada
dúvida quanto à autoria deve conduzir o julgador inexoravelmente à absolvição.89
Por fim, o princípio do contraditório, decorrente do devido processo legal, informa o
direito precípuo do réu de conhecer a sua acusação, propiciando-lhe a mais ampla defesa, que,
como já mencionado, tem previsão no art. 5º, LV, da Constituição Republicana. Interessante
notar que do contraditório advém toda a ritualística própria do processo penal, pois se trata de
87 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 50/51.
88 Idem, p. 77.
89 Idem, p. 79.
45
um método de confrontação da prova e comprovação da verdade sobre um conflito entre partes
contrapostas, garantindo-se, ainda, que a sociedade não fique refém de acusações infundadas e
permaneça imune a penas arbitrárias, sendo, por isso mesmo, nas palavras de Lopes Jr,
imprescindível para a existência da estrutura dialética do processo.90
Falando do contraditório e da ampla defesa, é importante trazer à baila a discussão
acerca da aplicabilidade ou obrigatoriedade desses princípios na fase investigativa do processo
penal. Oliveira91 enfatiza que para a jurisprudência pátria o tema encontra-se pacificado no
sentido de não se aplicarem tais princípios na fase de investigação. Contudo, destaca o autor,
que a matéria é hoje fruto de grandes discussões na doutrina brasileira, ganhando força o
entendimento de que o contraditório seria uma exigência constitucional. Para ele esse
posicionamento não deve prosperar, senão vejamos:
“Do ponto de vista da ordem jurídica brasileira em vigor, não vemos como
acolher a ideia. Embora a instauração de investigação criminal, por si só, já
implique uma afetação no âmbito do espaço de cidadania plena do
investigado (isto é, na constituição de sua dignidade pessoal e de sua
reputação social, além do evidente transtorno na sua tranquilidade), não
podemos nela identificar um gravame que, sob a perspectiva do Direito
positivo, possa ser equiparado a uma sanção. Fosse assim, não hesitaríamos
em exigir o efetivo exercício do contraditório e da ampla defesa já nessa
fase.”92
Ademais, Oliveira aduz que nem mesmo as alterações legislativas promovidas para a
participação do assistente técnico implicam o estabelecimento do contraditório na fase de
investigação, como no caso da Lei nº 11.690/08, que instituiu essa possibilidade de participação,
objetivando a apreciação da perícia oficial através, inclusive, da apresentação de pareceres e
esclarecimentos orais, como restou determinado no art. 159, parágrafo 5º, do Código de
Processo Penal. E isso porque o próprio Código de Processo Penal, em seu artigo 159, parágrafo
4º, estabelece que “o assistente somente ingressa a partir de sua admissão pelo juiz e após a
elaboração do laudo oficial, e, mais, que a sua participação se dará no curso do processo judicial
(§ 5º, CPP)”93. Dessa forma, inexiste a possibilidade de produção da respectiva prova em
contraditório, já que não há previsão de acompanhamento da perícia oficial.
90 Idem, p. 80.
91 OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 15. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 54.
92 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit. p, 54.
93 Idem, p. 54-55.
46
Apesar de destacar tal inaplicabilidade, Oliveira considera a utilidade do contraditório
nessa fase, mesmo a par do risco das interferências na regular tramitação da investigação,
conforme argumentos a seguir:
“De se ver que o contraditório na fase de investigação, em tese, pode até se
revelar muito útil, na medida em que muitas ações penais poderiam ser
evitadas pela intervenção da defesa, com a apresentação e/ou indicação de
material probatório suficiente a infirmar o juízo de valor emanado da
autoridade policial ou do Ministério Público por ocasião da instauração da
investigação. O risco, evidente e concreto, é a perturbação da regular
tramitação da investigação pela intervenção técnica protelatória. Não há
como recusar essa realidade, se bem examinadas as coisas no cotidiano de
nosso Judiciário. Em relação às provas periciais, então, reiteramos que o
contraditório já deveria ser realizado, e o quanto antes, particularmente para
aquelas hipóteses em que o objeto da perícia (corpo de delito) corra o risco
de perecimento no tempo ou de alteração substancial de suas características
mais relevantes.”
Portanto, e ressalvadas as posições em contrário, do ponto de vista legal e
jurisprudencial permanece a impossibilidade de se exigir o cumprimento do contraditório e da
ampla defesa na fase do inquérito policial, permanecendo o entendimento de que a investigação
é procedimento adimnistrativo, que não exige a participação direta da defesa.
Em se tratando do princípio da legalidade no bojo da teoria garantista, é de suma
importância a distinção entre mera legalidade e “estrita legalidade”. A mera legalidade é
entendida como a conformidade da lei para com os requisitos de sua formulação, ou seja, é uma
formalidade procedimental. É um princípio necessário ao sistema garantista, mas não
suficiente, sendo necessário que a legalidade esteja intimamente ligada ao princípio da estrita
legalidade. Dessa forma, a estrita legalidade, como já tratado neste estudo, deve ser entendida
como a conformação das normas aos conteúdos imperantes no constitucionalismo, no qual estão
assegurados os direitos fundamentais próprios do Estado Democrático.
Resta claro, então, que a Constituição de 1988 é detentora de todas as características
próprias do garantismo, já que apresenta os fundamentos e princípios próprios do Estado Social
e Democrático de Direito, mesmo que nem todos esses princípios estejam expressamente
previstos no artigo 5º, como dito, outros estão previstos de forma indireta, decorrendo da
estrutura de valores e da forma de Estado que o texto constitucional consagra. São essas as
ferramentas da Carta Magna para a busca de seus objetivos, como bem destacou André Serretti,
in verbis:
47
“Assim, a promoção do bem comum e a efetivação dos objetivos mais
elevados do Estado Democrático de Direito serão, se não alcançados, ao
menos buscados. É o mínimo que se pode fazer para se promover uma
sociedade livre justa e igualitária, objetivos de nossa Constituição da
República, que, do ponto de vista formal, também é chamada de constituição
cidadã, mas que, para nosso infortúnio, é ainda muito timidamente aplicada,
assim comprometendo a plenitude da cidadania por ela prometida.”94
Como dito, os princípios são elementos de orientação, seja do Legislativo ou do
Judiciário, sendo superiores axiologicamente a uma regra95, posto que tem alcance muito maior,
abarcando normas já em vigor ou ainda em elaboração, sob pena de serem alcançadas por nosso
rígido controle de constitucionalidade.
1.4 O GARANTISMO ENQUANTO VINCULANTE DAS NORMAS PENAIS
Sendo a Constituição Federal detentora dos princípios próprios do Garantismo, urge a
reflexão, já iniciada no título anterior, acerca da necessária vinculação das demais normas que
estão inseridas no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo em matéria penal, uma vez que,
segundo a doutrina especializada, a melhor compreensão da tese central do garantismo requer
a observância não só dos direitos fundamentais, mas também dos deveres fundamentais
previstos na Constituição Federal96.
Pela hierarquia das normas jurídicas, sabe-se que as leis e até mesmo as alterações
constitucionais, ou as interpretações judiciais não podem restringir as prescrições
constitucionais, principalmente quando se fala em direitos e deveres constitucionais. Seguindo
essa lógica presente em nosso ordenamento jurídico e no intuito de elevar ao grau máximo os
fundamentos da teoria garantista, o intérprete do Direito ou o legislador deve sempre ter em
vista os valores e critérios que limitam o poder punitivo estatal, seja em matéria penal ou
processual penal.
É por esse motivo que Ferrajoli claramente opta por um modelo normativo dotado de
positividade97, utilizado no Estado de Direito, em que, segundo Tatiana Bicudo, “a produção
94 SERRETTI, André Pedrolli. A Teoria do Garantismo Penal e a Constituição da República: Um estudo sobre a
legitimidade da tutela penal estatal. Revista Jurídica da Presidência: Brasília, 2010. Vol. 12, p. 255.
95 NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos Humanos versus Segurança Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p.
24.
96 Garantismo Penal Integral, p. 39.
97 Positividade aqui está inserida no sentido de Direito Positivo como pensado por Hans Kelsen.
48
jurídica está disciplinada por normas formais e, também, condicionada por normas de conteúdo
substanciais”98, e continua para esclarecer que:
“Outro aspecto da positivação do Direito, assumida pelo autor, diz respeito
a considerá-lo como posto pela autoridade, caracterizado por sua
artificialidade e convencionalismo, na medida em que expressa o que os
homens querem e o que pensam. Neste contexto, Ferrajoli assume a acepção
de Direito proposta por Bentham, que interpretava a lei como expressão da
vontade humana do legislador, traduzida em comandos de caráter
imperativo.”99
Ora, a Constituição é a norma maior, que se encontra no ponto mais elevado do nosso
ordenamento, sendo, por isso mesmo, de sua natureza funcionar como a base da qual se irradiam
os princípios fundamentais, é por isso que a aplicação e interpretação das demais normas de
natureza penal não podem ocorrer de forma isolada, afinal, segundo a doutrina
constitucionalista de Konrad Hesse, a Constituição possui a sua “força normativa”, já que nela
se expressa uma vontade, uma tendência de orientar o comportamento humano de acordo com
a ordem ali estabelecida, vejamos:
“Em outras palavras, a força vital e a eficácia da Constituição assentam-se
na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu
tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva. A
Constituição converte-se, assim, na ordem geral objetiva do complexo de
relações da vida.”100
Falando de justificação externa e legitimação interna, Ferrajoli, assumindo o
juspositivismo de Kelsen, esclarece que um sistema penal somente pode ser considerado
legítimo do ponto de vista externo se for “justo”, tomando por base critérios “morais, ou
políticos, ou racionais, ou naturais, ou sobrenaturais, ou similares”, e legítimo internamente se
“válido”, ou seja, se estiver de acordo com as normas de direito positivo que orientam a sua
produção. O Consitucionalismo jurídico, assim, encontra-se dotado de uma dupla função, o
respeito aos procedimentos e o limite do legislador quanto a determinadas matérias, sendo esse
ponto do positivismo jurídico fundamental para a estrutura de Ferrajoli.
É nesse sentido de validez da norma que o garantismo encontra-se inserido no sistema
penal brasileiro, posto que a Constituição Federal indubitavelmente repousa sobre esses
critérios de justiça e validade, sendo imprescindível que a normas infraconstitucionais estejam
98 BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria Geral da Pena. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 136.
99 Idem, p. 136.
100 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Rio Grande do Sul:
Sergio Antonio Fabris Editos, 1991, p. 18.
49
de acordo com os seus princípios e fundamentos, sob pena de serem consideradas inválidas
diante de um rígido controle de constitucionalidade. Nesse sentido, Ferrajoli esclarece que:
“Existe, pois, uma correspondência biunívoca entre justificação externa ou
ético-política e garantismo penal. Um sistema penal é justificado se, e
somente se, minimiza a violência arbitrária na sociedade. E atinge tal objetivo
à medida que satisfaz as garantias penais e processuais do direito penal
mínimo. Estas garantias se configuram, portanto, como outras condições de
justificação do direito penal, no sentido que somente a atuação destas vale
para satisfazer-lhes os objetivos justificantes.”
Ferrajoli fala em Direito Penal Mínimo, cabendo esclarecer que, conforme Alessandro
Baratta, as garantias dos direitos humanos e o princípio da intervenção mínima estão
correlacionados, na medida em que os direitos fundamentais, nos dois casos, assumem uma
dupla função, qual seja, a negativa, relacionada aos limites da intervenção penal, e a positiva,
que visa a delimitação do objeto penal, como forma de alcançar um sistema penal de defesa e
garantia dos direitos humanos, através dos princípios-guia da democracia e da soberania
popular101.
O Direito Penal, dessa forma, reveste-se de um papel político, servindo de instrumento
para a efetiva tutela dos direitos fundamentais, de acordo com os princípios do
constitucionalismo e do garantismo. Na verdade, o que se pretende é apontar para o fato de que
existem outros instrumentos possíveis para a resolução dos conflitos sociais, devendo fazer-se
uso do Direito Penal, e por consequência legitimando-o, somente nos casos de ameaça aos
direitos fundamentais. É por isso que Ferrajoli afirma que:
“Finalmente, uma política penal de tutela de bens tem justificação e
credibilidade somente quando é subsidiária de uma política extrapenal de
proteção dos mesmos bens. Os resultados lesivos prevenidos pelo direito
penal podem ser evitados, e, em muitos casos, mais eficazmente, por meio de
medidas protetoras de natureza administrativa.”102
Portanto, no interior de um sistema penal próprio do Estado Democrático e Social de
Direito, as garantias advindas dos direitos fundamentais funcionam como condicionantes e
vinculantes do poder punitivo do Estado, tanto formalmente como substancialmente, na forma
de uma política criminal apta à efetivação dos valores éticos de uma democracia substancial.
Havendo, de fato, uma mudança do foco legitimador do poder punitivo, movendo-se da mera
101BARATTA, Alessandro. Princípios do Direito penal mínimo: Para uma teoria dos direitos humanos como objeto
e limite da lei penal. Tradução Francisco Bissoli Filho. Texto publicado na Revista “Doutrina Penal” n. 10-40,
Buenos Aires, Argentina: Depalma, 1987, p. 623-650.
102 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. 2002. 3 ed. p. 379.
50
busca da paz social e segurança, para a efetividade das garantias fundamentais dos homens e na
busca de uma justiça equitativa, através da proteção do mais fraco e da efetiva realização da
democracia em sociedade.
Contudo, a par das bases teóricas do garantismo penal, uma problemática salta aos olhos
dos operadores do Direito, consubstanciada na inserção do garantismo em um sistema penal
enquanto técnica legislativa e judicial, haja vista que o próprio Ferrajoli reconhece tratar-se de
um modelo dotado de um defeito fundamental, por possuir limites e por ser amplamente
idealista, nunca tendo sido de fato realizado e nem realizável. Isso ocorre porque, segundo ele,
no plano de aplicação do direito pelo juiz, a ideia de um silogismo judicial perfeito, em que
sejam verificados somente os fatos legalmente puníveis, trata-se de uma ilusão metafísica, posto
que na atividade judicial existem espaços de poder específicos e de certa forma insuprimíveis.103
São justamente esses espaços de poder do juiz que findam por invalidar a versão clássica
do modelo penal garantista de Ferrajoli, conferindo-lhe um caráter utópico, ou ideal. No
entanto, argumenta ele que tal fato não impede que o modelo garantista tenha a possibilidade
de ser satisfeito em maior ou menor medida, conforme as técnicas legislativas e judiciais
adotadas, e distinguindo-se os limites intrínsecos de sua inaplicação, sendo eles inevitáveis, no
caso da interpretação da lei pelo juiz, ou evitáveis, como a ausência de normas que
regulamentem os direitos fundamentais. Dessa maneira, mesmo se tratando, em suas palavras,
de uma utopia, o modelo garantista de Ferrajoli, uma vez traçados com precisão seus limites e
requisitos, minimamente serve como parâmetro e como fundamento de racionalidade para
qualquer sistema penal garantista, além disso, o modelo garantista pode ser utilizado como
critério de valoração do grau de validez ou legitimidade das instituições penais e processuais
no bojo de um Estado liberal dotado das ferramentas garantistas.104
Nessa linha, é válido citar Salo de Carvalho105, para quem o modelo garantista de teoria
geral das normas, mesmo que Ferrajoli assuma o caráter ideal-típico, não se contenta com a
mera proposição descritiva sem qualquer respaldo no plano da eficácia, pois além de deixar de
lado a imagem analítica da norma jurídica, requer relevantes redefinições no papel do jurista,
sobretudo do julgador, na função específica do controle de consitucionalidade. Isso porque, em
103 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 33.
104 Idem, p. 34/35.
105 CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 102.
51
regra, sendo o controle da legitimidade constitucional das leis posterior e eventual, em muitos
casos concretos ocorre de uma norma inválida entrar e prosseguir em vigor até que sua
invalidade não seja formalmente declarada.
Streck destaca a importância da Constituição enquanto fundamento último do
ordenamento jurídico, e como a representação da primazia axiológica à pessoa para a
legitimação do Direito e do Estado, que se sobressai no caso de uma “Constituição social ou
cidadã”, como a do Brasil. Em suas palavras:
“É relativamente fácil, alerta o professor italiano, delinear um modelo
garantista em abstrato e traduzir seus princípios em normas constitucionais
dotadas de claridade e capazes de deslegitimar, com relativa certeza, as
normas inferiores que se apartem dele. Difícil, porém, é modelar as técnicas
legislativas e judiciais adequadas para assegurar efetividade aos princípios
constitucionais e aos direitos fundamentais consagrados por eles. Por isso,
faz uma forte crítica à ciência penalista que teoriza sobre o monopólio penal
e judicial da violência institucional, que esquece as práticas autoritárias e as
ilegalidades da polícia, confunde a imagem normativa do Direito Penal como
técnica de tutela de direitos fundamentais e de minimização da violência: o
sistema jurídico por si só não pode garantir absolutamente nada, as garantias
não podem estar sustentadas apenas em normas, nenhum Direito fundamental
pode sobreviver concretamente sem o apoio da luta pela realização por parte
de quem é seu titular e da solidariedade da força política e social, conclui.”106
Assim, para que se tenha a efetividade do modelo garantista, sobretudo em nosso Estado
Social e Democrático, é necessário que se potencialize o valor normativo da Constituição,
devendo o sentido de seu discurso contaminar todo o direito infraconstitucional, de modo a
forçar a interpretação das demais normas somente à luz da Carta Magna. E o objetivo precípuo,
do ponto de vista garantista, é conceder a força normativa necessária ao sistema de garantias
penais e processuais, como um “sistema de proibições inderrogáveis”107.
1.5 O GARANTISMO PENAL SOCIAL OU GARANTISMO PENAL INTEGRAL
No contexto desta pesquisa, a fim de se obter uma visão mais amlpa em relação à teoria
do garantismo penal, é relevante tratar de uma nova vertente ou de uma nova interpretação do
garantismo, que propõe a aplicação integral do garantismo de forma a alcançar todos os direitos
e garantias constitucionais, e não somente os direitos fundamentais individuais, ou seja,
106 STRECK, Lênio Luiz. Da utilidade de uma análise garantista para o direito brasileiro. Revista da Famergs,
Porto Alegre, v. 2, p. 3-37, 1999.
107 Idem, ibidem.
52
estariam englobados nessa nossa nova perspectiva os direitos fundamentais coletivos e sociais,
bem como os deveres do Estado Social. Trata-se do chamado Garantismo Penal Integral ou
Garantismo Penal Social.
Streck, refletindo sobre esse novo viés da teoria garantista e tomando por base o
neoconstitucionalismo e uma nova visão sobre o princípio da proporcionalidade – da vedação
do excesso e da proibição de proteção deficiente –, entende que não se deve interpretar o
garantismo somente de maneira negativa, no sentido de um limite ao poder punitivo estatal, é
necessário que o interprete também de forma positiva, ou seja, assegurando a aplicação de todos
os direitos, inclusive os de obrigação estatal. Vejamos, in verbis:
“Ou seja, é preciso ampliar a perspectiva do direito penal da Constituição na
perspectiva de uma política integral de proteção dos direitos, o que significa
entender o garantismo não somente no sentido negativo como limite do
sistema punitivo (proteção contra o Estado), mas, sim, também como
garantismo positivo, o que, no dizer de Baratta, aponta para a resposta às
necessidades de assegurar a todos os direitos, inclusive os de prestação por
parte do Estado (direitos econômicos, sociais e culturais), e não apenas
aqueles que podem ser denominados de direitos de prestação de proteção, em
particular contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de
determinadas pessoas.”108
No intuito de que essa nova perspectiva seja aplicada no sistema penal e processual
penal brasileiro, Fischer109 defende uma “leitura mais racional da tese central do garantismo”,
fazendo com que sejam respeitados, além dos direitos fundamentais (individuais e coletivos),
os deveres fundamentais previstos na Constituição de 1988.
Essa proposta pressupõe que as normas de hierarquia inferior e as interpretações
judiciais não podem contrariar ou restringir os princípios gerais previstos constitucionalmente
no que diz respeito aos direitos e deveres fundamentais.
Fischer esclarece que não se trata apenas das garantias e deveres previstos no texto do
artigo 5º da Constituição brasileira, devendo o intérprete analisar o caso concreto de forma a
dar a máxima amplitude aos fundamentos garantistas, como segue:
108 STRECK, Lênio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de
proteção deficiente (untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas Penais inconstitucionais.
Disponível em < http://www.leniostreck.com.br/lenio/artigos/>, Acesso em 04/11/2017.
109 FISCHER, Douglas. O que é garantismo (penal) integral. In Garantismo Penal Integral: questões penais e
processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil. Organizadores Bruno Calabrich,
Douglas Fischer e Eduardo Pelella. 3. Ed. São Paulo: Atlas, p. 39.
53
“Embora eles não estejam previstos única e topicamente ali, convém acentuar
que o art. 5º da Constituição está inserto em capítulo que trata “dos direitos
e deveres individuais e coletivos”. Assim, como forma de maximizar os
fundamentos garantistas, a função do hermeneuta está em buscar quais
valores e critérios que possam limitar ou conformar consitucionalmente o
Direito Penal e o Direito Processual Penal.”110
Trata-se de utilizar a Consituição em sua função central no interior do sistema jurídico,
da forma pretendida pelos postulados básicos do garantismo, interpretando-se e aplicando-se
seus comandos no sentido de ordenar e dirigir as ações sociais111, os quais, em matéria penal e
processual penal, cuidam explícita e implicitamente da necessidade de proteção de bens
jurídicos indiviuais e coletivos, além da defesa da sociedade e das pessoas investigadas no
âmbito de um processo penal, onde devem ser aplicados os pressupostos “integrais do sistema
garantista”112.
Na ótica do autor, em muitos casos não está sendo destacada e assimilada toda a
extensão da teoria garantista, podendo-se concluir que existe uma visão distorcida dos “reais
pilares fundantes da doutrina de Luigi Ferrajoli”, da qual se extrai uma compreensão de
garantismo penal “monocular e hiperbólica”. In verbis:
“Daí que falamos, em nossa crítica, que se tem difundido um garantismo
penal unicamente monocular e hiperbólico: evidencia-se
desproporcionalmente e de forma isolada (monocular) a necessidade de
proteção apenas dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos que se
veem investigados, processados e condenados.”113
Destaca, ainda, que para os estudos de Ferrajoli “as garantias são verdadeiras técnicas
insertas no ordenamento”114, cujo objetivo é a aproximação estrutural da normatividade e da
efetividade, de forma a elevar ao máximo a eficácia dos direitos fundamentais, como requer a
própria Constituição. O que, para a sua compreensão integral do garantismo, proporciona uma
aplicação dos direitos fundamentais que garanta, também, eficiência e segurança.
E é na eficiência/segurança que sobressai o sentido de proporcionalidade em seu duplo
viés para evidenciar o garantismo positivo ou integral ou social, como destacado anteriormente.
Ou seja, da mesma forma que a proporcionalidade objetiva a vedação de excesso e a proibição
110 Idem, Ibidem.
111 FISCHER, Douglas. Op. cit., p. 39.
112 Idem, ibidem.
113 Idem, ibidem
114 Idem, p. 44.
54
da proteção deficiente, o garantismo não só otimizará a proteção do indivíduo contra eventuais
irracionalidades punitivas do Estado, como também resguardará eficazmente os anseios da
sociedade.
55
2. O ENDURECIMENTO DA LEGISLAÇÃO PENAL NO BRASIL: DOS
MOVIMENTOS DE LEI E ORDEM AO DIREITO PENAL DO
INIMIGO
A obra de Ralf Dahrendorf, estudioso alemão nascido em 1929, intitulada “A Lei e a
Ordem”, foi escrita em 1985, e a profunda análise de seus postulados possui extrema relevância
no contexto político e jurídico pelo qual passa a República Federativa do Brasil no momento,
pois trata das questões relativas à violência, anomia e ao contrato social, partindo da premissa
de que “a lei e a ordem representam o objeto principal de conflito nas sociedades desenvolvidas
do mundo livre”115 e da análise do processo de erosão da lei e da ordem, que pode levar a uma
situação de desordem social, intitulada de anomia.
Outrossim, o estudo dessa obra é importante para a abordagem sobre a redução da
maioridade penal realizada no presente trabalho, já que procura demonstrar, de forma bastante
crítica, a maneira como o liberalismo moderno vem agindo, ou deve agir, no que diz respeito
ao aumento dos crimes, de criminosos e, consequentemente de vítimas, apresentando ainda
algumas soluções na maneira em que os Estados liberais modernos podem tratar de tal
problemática, inserida pelo autor como uma total desordem social ou “anomia”116, causada pelo
processo de erosão da lei e da ordem.
Além disso, a análise que ora se propõe serve de base para que possamos entender o
processo de “hipercriminalização”117 no qual estão inseridos muitos desses Estados modernos,
processo esse que, frequentemente, se apresenta como uma das formas de ação dos entes
políticos no trato do problema da desordem social, ou seja, diante da desordem e da incerteza
sobre a eficácia da lei e do próprio estado social, traduzida na impunidade e na incerteza do
comportamento social das demais pessoas, pune-se mais, criam-se tipos penais, fortifica-se o
Direito Penal enquanto método de neutralização.
A problemática a ser tratada no presente capítulo leva em consideração a relevância da
pena de prisão na sua função meramente retributiva concedida pelos legisladores e operadores
115 DANHRENDORF, Ralf. A lei e a Ordem. p. 13
116 DANHRENDORF, Ralf. A lei e a Ordem. p. 27
117 Termo utilizado por ALMEIDA, Caio Patricio de. HIPERCRIMINALIZAÇÃO: O SINTOMA
TOTALITÁRIO NA POLÍTICA DA LIBERDADE. Artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais.
Vol. 123/2016. p. 207/231.
56
do Direito nos últimos vinte anos e após o período do segundo pós-guerra, com o surgimento
de uma criminologia que preconiza o controle desenfreado, como um fenômeno a ser observado
nos Estados liberais modernos, destacadamente o Brasil. Nesse contexto, o presente estudo
destaca o pensamento de David Garland, segundo o qual, a história do desenvolvimento penal
dos países desenvolvidos, tais como Estados Unidos da América e Grã-Bretanha, mostra que
foi deixado de lado na pós-modernidade uma característica surgida durante o século XX, qual
seja, o “previdenciarismo penal”, caracterizado por uma estrutura que combinava o legalismo
liberal do devido processo legal e da punição proporcional com um compromisso
correcionalista de reabilitação, bem estar e saber criminológico especializado, em prol de um
movimento reformista caracterizado principalmente pelo descrédito da reabilitação,
culminando com práticas penais mais severas que expandiram acentuadamente os níveis de
encarceramento.118
Assim, serão tratadas no decorrer do capítulo as tendências das políticas criminais de
exclusão social, operadas por sistemas de justiça criminal das sociedades liberais
desenvolvidas, que, a pretexto de manutenção da ordem, elevam as características excludentes
da sociedade civil, na forma também desenvolvida por Jock Young119. Mas não é só,
desenvolver-se-ão as técnicas advindas dessa política criminal de hipercriminalização,
previdenciarismo penal e demais práticas excludentes que terminam por acentuar a seletividade
e a vulnerabilidade do sistema criminal, fixando-se uma imagem pública de delinquente e
criando-se estereótipos estigmatizantes que se transformam em critério seletivo de
criminalização, para os quais se volta todo o rigor do sistema penal, na forma própria de um
Direito Penal do inimigo.
No contexto da presente pesquisa, cabe destacar que a teoria do Direito Penal do
inimigo, desenvolvida com destaque por Gunther Jakobs, tem como base a existência de duas
tendências ou polos no Direito Penal, uma voltada para o trato do cidadão comum, para o qual
são oferecidas todas as garantias processuais e penais para validar a sanção, e outra para o trato
com o inimigo, que “é remotamente interceptado no campo preliminar e combatido por sua
periculosidade”120, pois, como visto acima, trata-se de um estereótipo de delinquente.
118 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução André
Nascimento. Rio de Janeiro:Revan, 2008, p. 118/155.
119 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente.
Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 179.
120 JAKOBS, Gunther.
57
Portanto, o que se busca é entender as bases e fundamentos do processo de
endurecimento das legislações penais, exacerbando-se a função retributiva da pena, com o
aumento do encarceramento, até que se chegue ao ponto extremo de criação ou tipificação da
pessoa do “inimigo” do bem-estar social, por uma imagem estereotipada, para o qual se volta
toda a rigidez do sistema punitivo estatal, a ponto de caracterizar-se um verdadeiro Direito
Penal do inimigo.
O objetivo desse capítulo, e do trabalho como um todo, passa pela percepção da relação
dialética existente entre as teorias do Garantismo e do Direito Penal do Inimigo. É acentuando
essas diferenças que Anitua121 destaca as características do Direito Penal do Inimigo, quando
ocorre a perda da personalidade do inimigo pela culpa, para o qual não se aplica o sistema de
garantias que ele mesmo deixou de lado. Essas caracterísiticas serão tratadas em tópico próprio,
mas o principal por ora é o alerta que o autor realiza para diferenciar as duas teorias:
“Foi descrita no capítulo anterior a profunda crítica que o garantismo penal
de BARATTA ou FERRAJOLI fez para a explicação da "emergência", que
acima de tudo, é usada para justificar a repressão de fatos como aqueles tem
em mente JAKOBS: ataques políticos, tráfico de drogas e outras formas que
contam com organizações. Um dos mais brilhantes desses penalistas críticos
italianos, Sergio Moccia, não hesitou em ir mais longe e falar sobre uma
cultura de "perene emergência" que sempre justificou a repressão em uma
suposta exceção que então irá caracterizar todo o seu funcionamento.”122
Fica claro então que a “emergência” é o grande fator para diferenciar as duas teorias, já
que o garantismo nasce do combate às legislações desse tipo, enquanto que o direito penal do
inimigo faz uso dessa situação emergencial para justificar a repressão mais rígida de
determinados infratores.
Ademais, falando de Direito Penal simbólico, Anitua123 apresenta Dahrendorf e Jakobs
como representantes desta categoria criminológica, o que vai ao encontro das pretensões desta
pesquisa, que pretende estabelecer uma conexão direta entre os movimentos de lei e ordem e o
direito penal do inimigo.
121 ANITUA, Gabriel Ignacio. Op cit., p. 500.
122 “Se ha reseñado en el capítulo anterior la profunda crítica que el garantismo penal de BARATTA o FERRAJOLI
ha hecho a esta explicación de la "emergencia", que sobre todo se utiliza para justificar la represión de hechos
como los que tiene em mente JAKOBS: atentados políticos, tráfico de drogas, y otras formas que cuentan con
organizaciones. Uno de los más brillantes de estos penalistas críticos italianos, Sergio Moccia, no ha dudado en ir
más allá y hablar de una cultura de "perenne emergencia" que siempre ha justificado la represión en una supuesta
excepción que luego va a caracterizar a todo su funcionamiento.” Tradução livre. Idem, ibidem.
123 Idem, p. 498.
58
Na ótica do autor124, os partidários do direito penal simbólico retomaram a prevenção
geral da pena em suas versões negativa e positiva. O castigo ganhou, assim, a força de uma
mensagem, indicando o mal que foi realizado e que, por fazê-lo, desecadear-se-á uma
experiência desagradável. O principal fundamento para essa forma de ver o direito penal são as
teorias da comunicação que indicam respostas expressivas, em cotejo com os fins mais amplos
que nunca se conseguiu alcançar com as teorias funcionalistas.
Diferenciando Dahrehdorf e Jakobs no contexto do direito penal simbólico125, Anitua
sustenta que, apesar de não ser conveniente analisar-se separadamente um e outro, em Jakobs
sempre persiste o elemento do “dever ser”, enquanto que Dahrendorf descreve o que “é” (ou o
que tenha sido “mal” conforme sua análise valorativa subjetiva). Além disso, o autor indica que
os conhecimentos de sociologia fazem com que Dahrendorf reconheça uma complexidade que
Jakobs deixa escapar, advinda das especificidades que envolvem a sociedade e o Estado, de
modo a evitar “tentações” totalitárias que o próprio Jakobs, sem dúvida, repugnaria como
consequência de suas teorias.
Tais teorias serão anlisadas com maior profundidade no decorrer do presente capítulo.
2.1 A LEI E A ORDEM EM RALF DAHRENDORF
A análise realizada por Dahrendorf em sua obra “A Lei e a Ordem” parte de um
momento de desordem social vivido na Alemanha no pós segunda guerra mundial, ocasionado
pela transição entre a queda do nazismo e a tomada de poder pelos russos, no qual não havia
leis que regulassem a ação humana, sendo descrito por ele como um momento de violação da
lei e da ordem por indivíduos, bandos e multidões, que agem dessa forma quando tem a certeza
da impunidade.
Esse exemplo serve para que o autor demonstre que a incapacidade do Estado em cuidar
da segurança e proteger os bens, além da falta de punição efetiva, conduz a um processo de
erosão da lei e da ordem, em que os indivíduos adquirem um tanto da certeza da impunidade.
Para isso ele faz uso da situação vivida em determinados países durante as décadas de 50 e 60,
ilustrando os “sérios problemas de lei e ordem”. Vejamos:
124ANITUA, Gabriel Ignacio. Op cit., p. 499.
125 Idem, ibidem.
59
“Os fatos são complexos, embora em última análise, sem ambiguidade.
Apresentamos aqui alguns deles, relacionados com os países desenvolvidos e
livres do mundo, sobre os quais possuímos dados razoavelmente confiáveis.
Em muitos desses países, houve um aumento substancial dos crimes violentos
contra a pessoa desde meados da década de 50 e, de forma ainda mais
dramática, desde os anos 60. Em alguns países, os índices de assassinatos
dobraram durante esse período. Isto é verdadeiro para os Estados Unidos,
Grã-Bretanha, Alemanha, Países Baixos, Suécia. A tendência é ainda mais
generalizada e pronunciada quando se fala de assaltos, roubos com violência
e, possivelmente, estupros. Em muitos países e na maioria das grandes
cidades, a incidência desses crimes sérios, nos anos 80, é no mínimo três vezes
superior aos índices dos anos 50”.126
Portanto, Dahrendorf claramente toma por base o crescente aumento da criminalidade
violenta para explicar sua teoria sobre os problemas advindos da lei e da ordem, para, então
questionar os motivos que levam ao descumprimento da lei e da ordem, haja vista que, em suas
palavras, os desvios existem e essa observação não é muito surpreendente127, mas o que dizer
do exemplo dado por Dahrendorf de que, enquanto a incidência de crimes sérios aumenta
significativamente entre os menores de 20 anos, há uma tendência sistemática em se reduzir as
sanções para os jovens?128 É um fato que deixa clara a sua preocupação com o aumento da
criminalidade violenta.
Nesse sentido, Dahrendorf, buscando o significado do processo de erosão da lei e da
ordem, propõe os seguintes questionamentos: seria o simples fato de que mais normas estão
sendo violadas, por um processo natural? Seria por desconhecimento das normas? Para o autor,
tais perguntas são inconclusivas, apesar de serem verdades e explicarem um pouco do aumento
da prática de crimes, posto que, segundo ele, o problema da erosão da lei e da ordem não é fácil
de ser assinalado, não bastando citar as taxas crescentes de crime, o aumento do
desconhecimento e dos índices ocultos como relevante para o processo em estudo, já que,
possivelmente, são fatos que pertencem aos limites da normalidade ou, na pior das hipóteses,
que são caracterizados como “aberrações temporárias ou conjunturais”, mas que, na mudança
de certas condições sociais ou econômicas, atingirão níveis mais baixos. Fato é que tais
circunstâncias, apesar de serem verdades, são relativizadas pela presença da condição
primordial para a definição do problema de erosão da lei e ordem, que é a ausência de punição
para atos contrários às normas.129
126 DAHRENDORF, Ralf. A Lei e a Ordem. Brasília: Fundação Friedrich Nauman, 1987, p. 17.
127 Idem, p. 21.
128 Idem, p. 33.
129 DAHRENDORF, Ralf. A Lei e a Ordem. Brasília: Fundação Friedrich Nauman, 1987, p. 24.
60
Estabelecida essa premissa de que atos contrários às normas permanecem sem punição,
caracterizada como grande preocupação de Ralf Dahrendorf, pois é tida como o problema real
da lei e da ordem, na medida em que faz com que as violações de normas tornem-se
sistemáticas. Vejamos:
“A ausência crescente de punições efetivas, se estas existirem, é o significado
real da erosão da lei e da ordem. Ela não apenas descreve o fenômeno com
mais precisão do que a transgressão de normas ou falta de conhecimento a
respeito, como também retira dele os fatores conjunturais e fortuitos. Se as
violações de normas não são punidas, ou não são mais punidas de forma
sistemática, elas tornam-se, sem si sistemáticas.” 130
A grande questão, então, em se tratando da problemática da lei e da ordem na obra de
Dahrendorf reside na impunidade, que, quando ocorre de forma sistemática, conduz à anomia.
É essa situação de impunidade, crucial no estudo da lei e da ordem, que “decide a validade
normativa de uma ordem social”, funcionando como o elo entre o crime e o exercício da
autoridade.
O termo “anomia”, que brota de todo esses processos de erosão da lei e da ordem
ocasionado pela impunidade, é utilizado de diversas maneiras pelo autor para indicar uma
condição social em que a prática de crimes tende a se elevar. É um “estado de coisas em que as
violações das normas não são punidas”, onde paira uma profunda incerteza, na qual não se pode
prever o comportamento do próximo. Por outro lado, a anomia está intimamente ligada à
validade da norma, pois as sanções garantem o seu cumprimento e validade, e anomia, como
dito, é a ausência de punição pelo descumprimento da norma. Dessa forma, a anomia está
também intimamente ligada à anarquia, já que, segundo Daherendorf, a perda de validade e
eficácia das normas por ausência de punição enfraquece as autoridades, que necessitam das
sanções para manter a ordem.
Para explicar como a anomia inviabiliza a eficácia social das normas, Dahredorf invoca
Durkheim, citando a quebra da eficácia social e moral das normas, que ocorre com a ruptura
dos elos sociais, através da introdução de uma crença cultural das pessoas, produzida pela
impunidade, de que as normas não são reais e nem corretas, ou seja, as normas não mais
exercem influência na consciência das pessoas.
130 Idem, ibidem.
61
Nesse ínterim, é importante deixar claro que o próprio autor diferencia a sua utilização
do termo anomia para a anomia em Emile Durkheim, haja vista que este, ao introduzir o termo
anomia nas ciências sociais modernas, o fez como uma tentativa de explicar ou classificar o
suicídio. Dahrendorf diz que o “suicídio anômico” de Durkheim é um fator concomitante às
crises econômicas, pois, segundo a teoria de Durkheim, o homem social é compelido a produzir
uma consciência superior à própria consciência, porém, quando a sociedade é abalada por uma
crise dolorosa essa consciência superior deixa de ser exercida, como forma de influência,
ocorrendo os aumentos súbitos nos casos de suicídio.131
Na opinião de Dahrendorf, “Durkheim era curiosamente ambíguo em sua utilização do
termo anomia”, oscilando entre uma análise socioeconômica mais superficial e uma
classificação psicológica um tanto dúbia, vez que, em sua análise, “o ato individual especial e
dramático do suicídio não pode ser explicado através de referências a uma condição social
vagamente definida”.132
A anomia em Dahrendorf diferencia-se também da noção de anomia para Robert
Merton, que utilizou o termo em seu ensaio “Estrutura social e anomia”, conceituando-a da
seguinte forma:
“A anomia é então concebida como uma ruptura cultural, ocorrendo
especialmente quando houver uma aguda disjunção entre, de um lado, a
normas e os objetivos culturais e, de outro, as capacidades socialmente
estruturadas dos membros do grupo em agirem de acordo com essas normas
e objetivos”133
Sobre a anomia, esclareça-se que o assunto será tratado em tópico próprio
posteriormente, de modo a expor com maior clareza a importantíssima posição de Durkheim
sobre o assunto.
Para o autor de a lei e a ordem, a disjunção entre os objetivos culturais e os meios sociais,
na forma proposta por Merton, não serve para explicar o processo de decomposição social que
o termo anomia requer, trata-se apenas de uma descrição de um estado social extremo, que
envolve a decomposição tanto da cultura como da sociedade. Da mesma forma, a anomia em
131 DAHRENDORF, Ralf. A Lei e a Ordem. Brasília: Fundação Friedrich Nauman, 1987, p. 25/26.
132 Idem, ibidem.
133 Idem, p. 27.
62
Durkheim conduz a um entendimento equivocado de que o estado de decomposição social deve
necessariamente influenciar certas ações individuais.134
Ainda falando sobre anomia, o autor baseia a validade de sua tese nos sinais claros do
declínio das sanções nas sociedades modernas, para tanto cita os segmentos da sociedade que
se encontram fora do alcance da lei, em que as sanções de fato não são aplicadas
sistematicamente, e que são consideradas “áreas de exclusão”, onde reina a anomia. Tais “áreas
de exclusão” são tidas não só como aquelas áreas físicas que ficam ao largo da norma, mas
também existem características sociais que criam “áreas de exclusão”, como é o caso dos crimes
que por fatores culturais deixam de ser considerados infrações com o passar do tempo (o autor
cita o aborto e a homossexualidade), bem como, e o que ele considera como fato crítico, a
questão da não aplicação das sanções pelo descumprimento das normas, que, em certos casos,
vem sendo deixada de lado. É o caso do exemplo já citado anteriormente dos crimes praticados
por jovens até 20 (vinte) anos de idade, assim aduzindo:
“No mínimo, podemos afirmar que, enquanto a incidência de crimes sérios
aumenta significativamente entre os menores de 20 anos, há uma tendência
sistemática em se reduzir as sanções para os jovens.”135
Cabe ressaltar que a análise do autor foi realizada com base em dados da década de 70.
Ele continua para citar as áreas de exclusão social em que parte da população já possui
seus próprios sistemas de sanções, na ausência da sanção estatal, que, em outras palavras, pode
ser descrito como um sistema de contraviolência. Todas essas características servem para
demonstrar que o crescente aumento da criminalidade torna cada vez mais difícil, se não
impossível, a aplicação das sanções. Essa intensa escalada de violência, nas palavras de
Dahrendorf, demonstra que nos encontramos a caminho da anomia, representando “a dissipação
da lei e da ordem pela impunidade”136, a qual, em conclusão ao seu raciocínio, representa “o
problema social de nossa própria época e poderá bem continuar a sê-lo, durante muitas décadas
vindouras”137.
Como forma de entender o comportamento humano, Dahrendorf se utiliza dos grandes
pensadores sociais, Rousseau, Hobbes, Hegel, Habermas, Kant, para expor seu contraponto
134 DAHRENDORF, Ralf. A Lei e a Ordem. Brasília: Fundação Friedrich Nauman, 1987, p. 28.
135 Idem, p. 33.
136 Idem, p. 40.
137 Op.cit., p. 40.
63
quanto ao entendimento de que o homem livre toma atitudes moralmente boas e sociáveis.
Acontece que a modernidade tem custos, relacionados ao aumento das possibilidades de vida e
de liberdades, gerando efeitos na questão da lei e da ordem que podem conduzir a um processo
de anarquia, que, como visto, está intimamente ligada à anomia. É por isso que ele expõe o
antagonismo dos ideais sociais de Rousseau e Hobbes, em que uma parte do pressuposto que o
homem é mau por natureza, e o outro que a sua natureza é boa.
Nesse contexto, emergem duas visões completamente diferentes do contrato social, para
Rousseau as leis e a ordem social corromperam o homem, que tem a liberdade em seu interior,
por outro lado, na visão de Hobbes a lei e a ordem social são necessárias para aperfeiçoar o
homem, tornando possível a vida em comunidade.
Dahrendorf tende para Hobbes e Kant, posto que no ideal desses dois pensadores são as
necessidades e dificuldades que fortalecem o contrato social, fazendo com que surjam limites
claros e garantidos à liberdade. Ele não é Rousseau, porque na visão do homem bom e correto
a punição através da detenção deve ser exceção rara, é a última alternativa da política social,
enfatizando-se a necessidade de cuidados ao criminoso. Dessa forma, a teoria política e social
de Rousseau, Habermas e outros estudiosos tende a enfraquecer a sanções até o ponto da
impunidade que, na forma já extensamente debatida na presente pesquisa, é o mais grave
problema da lei e da ordem.
Danhedorf, associando-se a Hobbes e Kant, propõe um ideal mais formal de sociedade,
já que, indubitavelmente, determinados indivíduos somente obedecerão às leis sob a ameaça da
punição. Contudo, não basta isso, é necessário dar força à cultura social do homem,
solidificando-se, consequentemente, as leis e os laços culturais, pois a fonte da ordem e de
qualquer sistema normativo, como se sabe, são os hábitos e costumes. Nesse prisma, a
sociedade é condição sine qua non da liberdade, nas palavras do autor:
“Argumentamos também que, sem a sociedade, a liberdade não poderá existir
ou, melhor dizendo, começamos a discutir esse ponto, ao qual retornaremos
na próxima palestra. Não iremos ficar livres, a não ser que aceitemos as
instituições sociais como proteção e oportunidade para a sociabilidade
insociável do homem. Portento, o contrato social, as sanções e o resto são
uma condição para a liberdade.”138
138 DAHRENDORF, Ralf. A Lei e a Ordem. Brasília: Fundação Friedrich Nauman, 1987, p. 69.
64
As instituições são ponto fundamental para o completo entendimento da tese de Ralf
Dahrendorf no combate à anomia. Segundo ele é necessário construir e reconstruir as
instituições para a garantia da liberdade, e por instituições definem-se aquelas estruturas
responsáveis pelas relações no bojo do contrato social, que tem o poder de punir e definir a
medida da punição ou de legislar, ou seja, são as estruturas responsáveis pela manutenção do
contrato social e, consequentemente, dentro do que já foi estudado, da liberdade. Por essa razão,
devem ser independentes e, no caso do descumprimento dos valores necessários à vida em
sociedade, devem ser suficientemente rígidas no cumprimento de seu mister.
Obviamente, as instituições estão ligadas às normas e às sanções, mas não é só isso. O
autor deixa claro que deve haver uma certa individualização na aplicação da pena e que não se
trata apenas de ampliar as forças policiais, punir com firmeza os jovens ou reintroduzir a pena
de morte: deve haver (sim) prevenção. E a resposta para essa problemática reside na
“continuidade institucional”, na busca por uma sociedade institucional em que o domínio da lei
tenha completo sentido, não se configurando apenas como letra morta, a fim de que se tenha a
preservação da lei e da ordem como verdadeiras instituições, devendo-se, para tanto, agir da
seguinte maneira:
“A conclusão é que há momentos em que a construção de instituições poderá
significar deixar a lista como está; outros em que ela significará
reconstrução. E haverá também os momentos em que a concentração se
tornará mais importante que a extensão. Hoje é provavelmente um tempo de
reconstrução e concentração. Não precisamos de mais instituições, mas de
instituições mais fortes, e provavelmente menos do que delimitar uma
reivindicação de apoio nas sociedades contemporâneas.”139
Dessa maneira, o pensamento de Dahrendorf nos conduz à necessidade de
fortalecimento das instituições que regulam a vida em sociedade, através da reconstrução e
concentração. Para tanto, não necessitamos de novas instituições, mas de instituições
politicamente independentes, focadas no cumprimento do seu papel de manutenção da lei e da
ordem e garantia da liberdade.
2.1.1 A anomia em Durkheim
Considerando a importância teórica das obras do autor e a relevância do tema para a
visão de Lei e Ordem de Dahrendorf, é importante que se realize um estudo mais cuidadoso
139 DAHRENDORF, Ralf. A Lei e a Ordem. Brasília: Fundação Friedrich Nauman, 1987, p. 119.
65
sobre o instituto da “anomia” na visão de Durkheim. Em um primeiro momento, o autor utiliza
a anomia para indicar que a relação entre órgãos institucionais não está regulamentada de forma
a gerar solidariedade na divisão do trabalho140, conforme as premissas de sua obra “Da divisão
do trabalho social”, de 1893. Nesse sentido, o contato suficientemente prolongado entre os
órgãos solidários no que diz respeito às relações de trabalho torna impossível o estado de
anomia, pois, já que existe tal contato, supõe-se que as regras encontram-se em vigência e em
pleno funcionamento141.
Ilustrando a situação de anomia nas relações de trabalho, Durkheim cita três
exemplos142, o primeiro surge quando a divisão do trabalho se dá de forma anömica, em que
grandes mudanças sociais ocorrem, trazendo novos contextos que ficam à margem dos
regramentos existentes. A segunda forma se dá com a coação, que se caracteriza pelo
rompimento da espontaneidade dos indivíduos em interiorizar a sociedade e aceitar os
contratos. O terceiro exemplo é a falta de regularidade do trabalho, pois a continuidade das
funções é o que as torna mais ativas, aumentando, assim, a solidariedade.
Destarte, em se tratando da divisão do trabalho, as anomias surgem quando não são
alcançados contatos suficientemente eficazes entre os indivíduos, nem as regras que definem
as regulações das relações sociais e entre órgãos estãos bem definidas, a ponto de prejudicar a
solidariedade entre os envolvidos.
Durkheim apresenta outras formas de anomia em sua obra intitulada “O Suicídio”, de
1897, sendo esta – a anomia – um “fator regular e específico de suicídios” em nossa sociedade
moderna. Para tanto, chama de “suicídio anömico” aquele que ocorre quando se trata de
indivíduos para os quais a sociedade não está adequadamente presente, sendo que esta ausência
está ligada, in casu, às paixões individuais, “deixando-as assim se freio que as domine”143.
As anomias que podem provocar esse tipo de suicídio, segundo o autor, são a econômica
e a doméstica. A anomia econômica é visualizada no mundo do comércio e da indústria, pela
importância que esses fatores ganharam na vida das pessoas que, nas palavras de Durkheim,
140 DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. ...p, 385.
141 DURKHEIM, Emile. Op. cit., p, 385.
142 Idem, p. 367.
143 DURKHEIM, Emile. O suicídio: estudo de sociologia. Tradução Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 328-329.
66
“tornou-se o fim supremo dos indivíduos e da sociedade”144. O crescimento das atividades
comerciais e a regulamentação pouco rígida fazem do estado de crise e de anomia uma constante
nessa área, levando as pessoas que “esperam tudo do futuro” e que não tem nada no passado a
cometer o ato supremo contra a vida, principalmente nos momentos de “catástrofes
econômicas”145.
A anômia doméstica caracteriza-se, sobretudo, pela “crise da viuvez”146, resultante da
morte de um dos cônjuges, que gera uma desorganização da família que o sobrevivente não
consegue suportar. Mas há também a anômia doméstica advinda do divórcio e da separação de
corpos, para o que Durkheim apresenta estudos estatísticos sobre a variação diretamente
proporcional da quantidade de suicídios e de divórcios e seaprações de corpos147.
Ante o exposto, não restam dúvidas quanto aos diferentes usos da expressão “anomia”
nas obras de Durkheim, moldando-a conforme o problema a ser enfrentado. No entanto, a
conclusão mais importante para o presente estudo sobre esse assunto é a de que a anomia,
mesmo em Durkheim, indica um estado de desordem social ou pessoal, seja pela ausência de
regras ou pelo não acolhimento social adequado, deixando-se de lado a solidariedade necessária
para a vida cotidiana.
Essa análise da anomia na visão de Durkheim é essencial para possibilitar a correta
diferenciação entre os conceitos e as consequências da anomia para Dahrendorf, assegurando-
se o correto uso de cada uma das definições dos autores.
2.2 MOVIMENTOS DE LEI E ORDEM E O ESTADO SOCIAL BRASILEIRO
A fim de obter maior conhecimento sobre a política criminal em nosso país, no contexto
macro das formas de criminalização operadas nas últimas décadas, em que se verifica
claramente uma tendência de massificação da pena de prisão, sentida, sobretudo, com a
verificação das taxas de crescimento da população prisional148, é de suma importância o claro
entendimento das teorias que visam criticar a lei e a ordem, intitulada, por exemplo, de a
144 Idem, p. 325.
145 Idem, ibidem.
146 Idem, p. 329.
147 DURKHEIM, Emile. O suicídio: estudo de sociologia. Tradução Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 331.
148 Dado do INFOPEN indicam um crescimento de 33% na taxa de aprisionamento brasileira nos últimos 05 (cinco)
anos. Fonte: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/relatorio-depen-versao-web.pdf
67
“Cultura do Controle”, tendo como expoente, dentre outros, o autor e professor inglês David
Garland, que adota uma postura crítica em relação aos movimentos de lei e ordem verificados
na política criminal Norte Americana.
Douglas Husak, em sua obra intitulada “Hipercriminalização: os limites para o Direito
Penal” (tradução livre), aprofundando-se no estudo da criminalização ocorrida nos Estado
Unidos, propõe um questionamento extremamente relevante para o estudo que ora se propõe,
no sentido de entender o motivo de tantas punições e tanta criminalização em tempos de
intervenção estatal mínima149. Parece haver uma cultura institucionalizada acerca da
normalidade da pena de prisão, que, segundo Garland, veio sendo construída nas últimas três
décadas150 nos Estados Unidos, onde a população “parece agora acostumada a viver numa nação
que possui 2 milhões de cidadãos confinados”151.
O panorama é muito parecido no Brasil. Conforme os últimos dados estatísticos
disponibilizados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), o
Brasil duplicou o número de pessoas encarceradas no interstício de uma década, alcançando o
4º lugar no ranking dos países com maior número de pessoas presas. Contudo, esses fatos não
tratam de nenhuma novidade, pois Garland já previa que os problemas relacionados ao
encarceramento em massa, graças à tipicidade do estágio social, da economia e da cultura,
seriam comuns a outras sociedades pós-modernas, como segue:
“Afirmo, contudo, que os problemas institucionais e as reações política que
surgiram nestes dois países são tão semelhantes que me permitem falar, às
vezes, em tendências estruturais comuns. Isto também me leva a supor que
muitos dos problemas e das inseguranças subjacentes são, ou serão em breve,
familiares a outras sociedades pós-modernas, mesmo que suas reações
culturais e políticas e suas trajetórias sociais venham a ser muito
diferentes.”152
Dessa forma, é simples constatar que a principal caraterística do movimento de lei e
ordem em qualquer sociedade moderna, incluído o Estado Social e Democrático do Brasil, é o
encarceramento em massa, fruto da hipercriminalização advinda de uma tentativa constante de
se combater a impunidade e a anomia, principal característica da teoria introduzida por Ralf
149 HUSAK, Douglas. Overcriminalization: The limits to the criminal law. New York: Oxford University Press,
2008, p. 15.
150 GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução Andé
Nascimento. 1 Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 44
151 Idem, p. 41
152 Idem, p. 50
68
Dahrendorf. No entanto, é de se estanhar que os Estados Liberais e democráticos modernos
adotem tais práticas, típicas dos Estado Totalitários do século XX, submetendo grande parte da
população a essa “punibilidade arbitrária”153. Reside aqui a grande contradição: O Brasil é
detentor de uma Constituição Federal que prima pela liberdade individual, detentora, inclusive,
dos princípios típicos do garantismo penal, no entanto, a sua política criminal vem adotando
práticas que não asseguram a efetiva liberdade do indivíduo. Cada vez mais o Estado brasileiro
interfere na vida privada dos indivíduos, por considerar de interesse público tais
comportamentos, deixando de resguardar a autonomia individual de cada um, como um de seus
primados. Por esse motivo, Garland apresenta em sua obra alguns dos principais motivos que
levaram a essa mudança de postura estatal, culminando com a hipercriminalização e o
encarceramento em massa.
Em primeiro lugar, destaca-se “o declínio do ideal de reabilitação”154, tida como uma
das maiores mudanças em termos de política criminal, processo esse que vem sendo verificado
ao longo dos últimos trinta anos, no qual é possível notar a “reduzida ênfase na reabilitação
como objetivo das instituições penais; e da modificação nas regras de elaboração das
sentenças, que olvida a participação em programas de tratamento pelo tempo de cumprimento
da pena”155.
Diante da realidade carcerária dos países com altos índices de reclusão, como o é o
Brasil, a função ressocializadora da pena foi sendo deixada de lado, sendo vista como um ideal
impossível e como um objetivo político inútil. Trata-se de um diagnóstico preocupante, porque
a reabilitação é base de todo um sistema penal introduzido através dos ideais iluministas e
utilitaristas ao longo do século XX, com a sua dissipação caem por terra os diversos valores,
crenças e práticas “sobre o qual a pena moderna foi erigida”.
Outro ponto importante para a mudança do sistema penal em relação às penas e crimes
reside no “ressurgimento de sanções retributivas e da justiça expressiva”156, resultante direta do
abandono do ideal da ressocialização, Garland relata a ocorrência, nos últimos vinte anos, da
retribuição “justa” como um objetivo político generalizado nos Estados Unidos e na Grã-
153 ALMEIDA, Caio Patrício de. Hipercriminalização: o sintoma totalitário na política da Liberdade. Artigo
publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 123/2016, p. 207/231.
154 GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução Andé
Nascimento. 1 Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 50.
155 Idem. (verificar como se referir a citação na mesma página)
156 Idem, p. 52.
69
Bretanha, ocasionada por um consenso relacionado a injustiças oriundas do sentenciamento
individual, que contribuíram para o ressurgimento de penas decididamente retributivas, como
a pena de morte, as penas corporais e o acorrentamento coletivo de presos.
É a lei e a ordem presente no dia a dia, através do discurso da condenação e da punição
que tem tomado conta da opinião pública e das discussões acadêmicas, buscando-se explicações
racionais para as medidas retributivas.
Garland destaca também as “mudanças no tom emocional da política criminal”157, haja
vista que até meados do século XX havia “confiança no progresso do combate ao crime” e
buscava-se a “racionalização da justiça criminal”. Acontece que, hodiernamente, o medo do
crime tem ganhado novo status, de modo que o medo é um problema por si só a ser combatido
pelos sistemas penais, diferentemente do crime e da vitimização. Não se procuram mais
soluções sociais justas para combater o crime, há sim uma preocupação excessiva com a revolta
coletiva e o clamor social por penas retributivas.
Mais um motivo para a mudança em voga é o “retorno da vítima”158, apresentado por
Garland como o “notável retorno da vítima ao centro da política criminal”. Antes, o que se tinha
era a vítima e seus interesses absorvidos pelo interesse público, não havendo contrapeso aos
interesses do criminoso. Porém, atualmente, “os interesses e os sentimentos das vítimas agora
são rotineiramente invocados em apoio às medidas de segregação punitiva”159. A consequência
é que criou-se um novo significado para a vitimização, que leva em consideração a relação entre
a vítima específica, a vítima simbólica e as instituições responsáveis pelo sistema criminal.
Ganha destaque nos últimos trinta anos também a questão da proteção ao público160. É
fácil perceber hoje a grande preocupação das políticas criminais com a proteção do público,
sentidas, sobretudo, com as mudanças dos sistemas correicionais e o aumento das penas de
prisão preventiva e das sentenças condenatórias. Há uma necessidade urgente de segurança e
de paralisação imediata do perigo, passando-se, inclusive, por cima das diversas garantias
penais, a fim de que o objetivo de proteção ao público seja alcançado pelas políticas criminais.
157 Idem, p. 53.
158 GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução Andé
Nascimento. 1 Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 54.
159 Idem, p. 55.
160 Idem, p. 56
70
A “politização e o novo populismo”161 é um dos principais indicativos de mudanças no
sistema de políticas criminais, segundo o estudo de Garland. A questão é que hoje o discurso
em torno dos sistemas criminais está entremeado de questões politiqueiras, “toda decisão é
tomada sob as luzes dos holofotes e da disputa política e todo erro se transforma em
escândalo”162. É comum o uso das expressões “a prisão funciona”, “rigor nas sentenças”,
“redução da maioridade penal”, “tolerância zero”, “guerra ao crime”, de modo que a pesquisa
e o saber criminológico são relegados à segundo plano, dando lugar ao senso comum. Esse
cenário leva à produção de leis com o objetivo somente de atender a uma disciplina partidária
e submeter-se aos cálculos políticos de curto prazo.
Existe, ainda, conforme Garland, a “reinvenção da pena de prisão”163 a partir dos últimos
25 (vinte e cinco) anos, uma vez que durante o período do pós-guerra a pena de prisão era vista
como última ratio, contraproducente aos objetivos corrreicionais. Contudo, com o aumento das
taxas de encarceramento, do crescimento das condenações a pena de prisão e da duração média
das penas privativas de liberdade é possível verificar as características de uma prisão moderna,
pautada não como um meio de reabilitação social, mas como “instrumento de neutralização e
de retribuição que satisfaz as exigências políticas populares por segurança pública e punições
duras”164, além de ser um dos pilares da lei e da ordem para as atuais prática de política criminal.
Observa-se, dentre as mudanças na postura estatal em relação ao crime e à pena, uma
clara “transformação do pensamento criminológico”165, que no pós-guerra era baseado no
entendimento de que o crime e o criminoso eram problemas individuais e familiares, ou como
consequência de uma segregação social, tendo como possível solução o tratamento dessas
questões pessoais. Atualmente, porém, percebe-se o surgimento das chamadas “teorias de
controle” que veem o crime como uma questão de controle inadequado, fundadas na visão de
que o ser humano é naturalmente propenso às condutas antissociais e criminosas, sendo o crime
lugar comum na sociedade de hoje. Como consequência, as políticas criminais deixam de lado
o crime e a criminalidade para concentrar seus esforços somente no “evento criminoso”, com o
161 Idem, p. 57.
162 idem
163 Idem, p. 59.
164 GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução Andé
Nascimento. 1 Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 59.
165 Idem, p. 60.
71
aumento do controle social e da alteração da rotina diária da população, sem que se trabalhe
sobre a disposição das pessoas para o crime.
Mais um motivo ou sintoma apontado por Garland é “a expansão da infraestrutura da
prevenção do crime e da segurança da comunidade”166, consistente na prevenção de crimes por
meio do envolvimento da comunidade, com técnicas de policiamento comunitário e vigilância
nos bairros. Ou seja, apesar das técnicas de neutralização e exclusão do criminoso do convívio
social, é visível a inserção dessas práticas de autopoliciamento que objetivam o controle interno
das comunidades.
Outro aspecto a ser destacado é o que diz respeito à “sociedade civil e a comercialização
do crime”167, caracterizado pela privatização das instituições penais e, consequentemente, das
técnicas de controle do crime. Trata-se de uma nova visão sobre o controle do crime, “de modo
a descentralizar não apenas as funções das instituições estatais especializadas, mas também as
racionalidades política e criminológica que lhes davam sustentação”168.
Os “novos estilos de gerência e de rotinas de trabalho”169 também marcam a mudança
estatal nas últimas décadas, são alterações nos objetivos, prioridades e ideologias na forma de
trabalho das instituições do sistema criminal, tais como a polícia, que somente visa combater o
crime; os agentes prisionais, que somente se preocupam com a guarda e vigia dos presos; e o
poder judiciário, que passou a sentenciar estabelecendo penalidades de forma mecânica. Outra
característica dos novos estilos de gerência do sistema criminal consiste na destinação dos
recursos financeiros, que hoje concentram-se muito mais no controle dos crimes mais graves e
dos criminosos mais perigosos, gerando tensões e debates sociais nos diversos segmentos da
comunidade, já que são investimento que atendem ao clamor geral da população, mas não
possuem uma clara efetividade.
Por fim, Garland apresenta o que ele chama de “uma perpétua sensação de crise”170,
sentida a partir dos anos de 1970, em que o sistema criminal vem passando por constantes
reformas e discussões, culminando com “uma onda de novas leis, reformas organizacionais
166 Idem, p. 62.
167 Idem, p. 63.
168 Idem, p. 65.
169 Idem, ibidem.
170 GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução Andé
Nascimento. 1 Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 67.
72
constantes em ritmo urgente, volátil, de desenvolvimento de políticas”. A sensação geral é de
que as técnicas modernas de controle da criminalidade não são eficazes, representando o
fracasso, que se traduz nas altas taxas de criminalidade e reincidência. Consequentemente, a
justiça criminal e os sistemas criminais como um todo estão desacreditados, seja pelos
profissionais ou pelo público em geral.
É claro, então, que o diagnóstico de Garland, realizado com base no sistema criminal
dos Estados Unidos da América, se aplica à realidade vivida hoje no Estado Social e
Democrático do Brasil, na qual as pesquisas relacionadas aos índices de encarceramento,
reincidência e criminalização, como no caso já citado do INFOPEN, indicam o caminho que o
nosso sistema penal vem tomando, já que adota as diretrizes da lei e da ordem e consagra a
hipercriminalização e o aumento das penas de privação da liberdade, seja pela via provisória,
seja pela via definitiva, como a mais efetiva forma de controle social.
É importante frisar, ainda, que todo esse processo de mudança no sistema criminal
descortinado por Garland, levou, durante o séc. XX, especificamente na Grã-Bretanha e nos
Estados Unidos, à derrocada do chamado “previdenciarismo penal”, período este caracterizado
por uma estrutura que combinava o legalismo liberal do devido processo legal e da punição
proporcional com um compromisso correcionalista de reabilitação, bem estar e saber
criminológico especializado, que evoluiu em seu objetivo correcional para atuar em um
ambiente específico de políticas econômicas e sociais, voltando-se aos problemas de
desajustamento individual, altamente concentrados nos setores mais pobres da população, e
atribuídos, consequentemente, à pobreza, à socialização deficiente e à privação social171.
Falamos em derrocada porque, segundo Garland, a partir da metade dos anos 70, o apoio
a esse previdenciarismo penal começou a ruir, motivado pela pressão de movimentos de ataque
continuado a suas premissas e práticas, que cada vez mais preconizava uma filosofia
retributivista da pena, apoiados no crescimento das taxas de criminalidade que levou a um
ceticismo quanto à efetividade da justiça criminal, culminando com a criação de uma atmosfera
de desmoralização intitulada de paradigma do fracasso das instituições penais. Ele descreve
uma mudança, no curso de poucos anos, que levou ao desaparecimento da fé reabilitadora,
ocorrida basicamente em todos os países desenvolvidos, notadamente Estados Unidos e Grã-
Bretanha, que levou reformistas e acadêmicos, políticos e intelectuais, além dos operadores do
171 Idem, p. 118/119.
73
sistema a se dissociarem dos postulados da reabilitação172. Esses movimentos reformistas
pregavam policiamento mais vigoroso e punições mais severas e certas.
O primeiro impacto sentido nas práticas criminais norte americanas e bretãs foram as
reformas nas sentenças condenatórias, deixando-se menos espaços discricionários para os juízes
com, por exemplo, a fixação de penas mínimas obrigatórias, que seguiram-se de práticas
caracterizadas pelo abandono aos programas de tratamento e os objetivos reabilitadores em
detrimento de um modelo correcional tido como justo, caracterizado pela proporcionalidade e
pela minimização da coerção penal, mas que, ao longo do tempo, conduziu a práticas políticas
mais severas relacionadas à intimidação, à prisão preventiva, à condenações expressivas e por
último, mas não menos importante, ao encarceramento em massa.
Analisando historicamente essa passagem de uma sociedade inclusiva para outra
excludente, ocorrida nos países do chamado primeiro mundo durante o século XX, Jock Young
relaciona o fenômeno com as mudanças observadas nas duas esferas de ordem, a do trabalho e
a da comunidade.
Acontece que a revolução cultural precedeu a crise econômica e o aumento das taxas de
criminalidade ocorridos no início dos anos 1970, que somente passaram a aumentar na medida
em que piorava a recessão econômica, resultando no fato de que nos anos de 1960 e 1970 foi
possível observar a ascensão do individualismo, com a criação de zonas de exclusividade
pessoal e fortalecimento das tradições da comunidade e da família.
Por outro lado, o período que engloba os anos de 1980 e 1990 foi caracterizado por um
processo social de exclusão, que se deve, em primeiro lugar, à transformação e separação dos
mercados de trabalho, bem como ao aumento maciço do desemprego estrutural e, em segundo
lugar, à exclusão proporcionada pelos métodos de controle da criminalidade crescente.
Dessa forma, o autor relata que a “erosão do mundo inclusivo do período modernista”
envolveu processos de desintegração tanto na esfera da comunidade, com o aumento do
individualismo, como na esfera do trabalho, com a própria transformação do mercado de
trabalho.
172 Idem, p. 145.
74
Os trabalhos de Young ganharam destaque no final dos anos setenta e início dos anos
oitenta com a crise da criminologia crítica, como indicam os estudos de criminologia de
Anitua173. Essa crise se deveu, segundo o autor, à fatores internos e externos. Internamente
destaca-se a incompatibilidade entre os componentes teóricos materialistas e interacionistas,
que deviam se articular para criticar a antiga criminologia e, além disso, existia uma luta entre
os compromissos políticos das diferentes tradições de esquerda, ou dos socialistas com os
libertários.
Um outro motivo interno foi o fato de que os novos criminólogos não produziam
investigações, eles apenas denunciavam uma investigação prévia e o que aconteceu depois,
muitas vezes, com poucos dados sobre o que efetivamente acontecia. É o que Anitua chama de
o “nada funciona”174 que afetava a criminologia em todas as áreas e levava os críticos a uma
perigosa inatividade que só expressava uma indignação moral diante das desigualdades e
repressões.
Externamente, os pensamentos de Anitua indicam como fator preponderante para a crise
da criminologia crítica o fim do otimismo político dos anos sessenta, com a queda dos Estados
de Bem-Estar Social, o que indicava a ascensão de posturas conservadoras no centro do
capitalismo e uma grande incerteza às margens desse sistema, assim como nos países
socialistas, cujo sistema não tardou a desmoronar175. Essa crise, assinala Anitua, se situava no
interior de uma crise maior dos indivíduos e grupos que ocorreu no final do século XX, quando
as pessoas detinham muito mais informação do que em outros tempos, fato esse que vinha
acompanhado de uma consciência da dificuldade para mudar as coisas ou fazer algo novo.
É nesse cenário que surgem diferentes respostas sobre o que se pode e o que se deve
fazer, respeitando-se as questões práticas sobre a intervenção penal e sobre os compromissos
políticos que sobrevieram no início dos anos oitenta, é que o autor destaca três correntes
surgidas no bojo do movimento crítico posterior à crise, o abolicionismo, o realismo de
esquerda e o garantismo penal, que se destacam pela capacidade de argumentar entre si em
estudos realizados na Europa176.
173 ANITUA, Gabriel Ignacio. Op. cit., p. 429.
174 Idem, ibidem.
175 ANITUA, Gabriel Ignacio. Op. cit., p. 429.
176 Idem, p. 431.
75
Young obtem destaque como representante do Realismo de Esquerda, que sobressai
após as práticas criminais verificadas nos Estados Unidos nos anos setenta e início dos anos
oitenta, que não se sabe se se concretizaram por força das críticas dos criminólogos críticos da
época, mas que levaram ao surgimento de penas indeterminadas, tendo como consequência o
aumento do número de encarcerados. Ademais, nos anos oitenta importantes acontecimentos
políticos estavam acontecendo, com o advento dos neoconservadores, mudanças de políticas
penais, aumento punitivo nos Estados Unidos e as legislações de emergência europeias, além
de mudanças nos pensamentos criminológicos e de direita177.
Anitua178 conceitua o Realismo de Esquerda como o enfoque adotado por alguns dos
mais destacados criminólogos críticos anglosaxões, com um claro enfoque marxista, mas
ingualmente britânico. E, para o autor, o livro de Young e Lea intitulado “O que fazer com a
lei e a ordem?”, de 1986, é o referencial mais claro do Realismo de Esquerda, pois apresentava
aquilo que já se falava há bastante tempo, baseado no paradigma marxista, no sentido de que as
mudanças sociais não poderiam deixar de lado uma política criminal que favorecesse a classe
trabalhadora e, mais do que isso, uma política criminal que defenda essa classe dos abusos dos
poderosos e dos delitos intra-classe179.
Nesse contexto, Young180 se destaca novamente com a publicação do artigo
“Criminologia da classe trabalhadora” que, em 1975, dava o pontapé inicial para uma enfoque
realista de esquerda, quando já defendia uma criminologia que atendesse aos interesses de
segurança da classe trabalhodora, em detrimento à coerção estatal e como um elemento de
consciência de classe.
Portanto, as análises históricas realizadas por David Garland e Jock Young, enquanto
representates da criminologia crítica, apesar de tratarem dos cenários vividos nos Estado Unidos
da América e na Grã-Bretanha, são de extrema relevância para que possamos entender a gênese
do fenômeno do endurecimento da legislação penal que, indubitavelmente, leva ao
encarceramento em massa, a pretexto de manutenção da ordem, mas realizando verdadeiro
controle social. São fenômenos que devem ser considerados para a adoção de um possível
177 Idem, p. 428.
178 Idem, p. 443.
179 ANITUA, Gabriel Ignacio. Op. citi, p. 444.
180 Idem, ibidem.
76
entendimento sobre as políticas criminais que vem sendo introduzidas no sistema penal
brasileiro.
2.3 A INFLUÊNCIA DA LEI E ORDEM NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA E NA
CRIAÇÃO DA FIGURA DO INIMIGO
Diante da conclusão de que o sistema criminal brasileiro encontra-se permeado de
práticas que seguem a tendência do discurso de lei e ordem dominante no Direito Penal da
maioria dos Estados liberais modernos, exsurge a necessidade de conhecimento acerca do
comportamento do arcabouço de leis penais que seguem essa tendência de segregação no Brasil.
À título de comparação com as práticas penais Norte Americanas, cabe citar Husak, que
destaca o alcance da legislação penal naquele país, senão vejamos:
“Os crimes são tão abrangentes que praticamente todos já cometeram um ou
outro(crime) em algum momento; o Direito Penal não distingue mais “nós”
“deles”. Talvez mais de 70% dos adultos americanos já cometeram um crime
punível com prisão em algum momento de suas vidas. Como resultado, Stuntz
alega que estamos caminhando “para um mundo em que a lei escrita faz de
todos criminosos”. Mesmo que mais leis penais produzam mais punição, elas
poderiam facilmente produzir ainda mais punições do que as que já temos.”181
O autor aduz que atualmente a legislação criminal dos Estado Unidos é tão extensa que
praticamente todos os cidadãos já cometeram algum tipo de crime em algum momento de suas
vidas, dando ênfase à conclusão de que as leis dos livros estão transformando todos em
criminosos e que, apesar da quantidade alta de punições, poderiam haver, facilmente, muito
mais condenações.
É o efeito do excessivo controle estatal sobre os atos da vida privada do cidadão, em
contrassenso a todos os preceitos do liberalismo e das garantias constitucionais. Esse efeito é
muito facilmente verificado no Brasil, que, na mesma linha da maioria das sociedades
modernas, vive hoje uma política penal voltada à criminalização das mais variadas condutas,
fruto da insegurança advinda da violência urbana e da excessiva criminalidade. É o caso, por
181 “Offenses are so far-reaching that almost everyone has committed one or more at some time or another; the
criminal law no longer distinguishes “us” from “them.” Perhaps over 70% of living adult Americans have
committed an imprisonable offense at some point in their life. As a result, Stuntz alleges we are steadily moving
“closer to a world in which the law on the books makes everyone a felon.” Although more criminal law produces
more punishment, it could easily produce even more punishment than we have already”. (tradução livre)
HUSAK, Douglas. Overcriminalization: The limits to the criminal law. New York: Oxford University Press, 2008,
p. 24.
77
exemplo, da lei de crimes hediondos, datada de 1990, lei do terrorismo, lei das organizações
criminosas, nova lei de drogas (2006) e dos projetos de lei que vêm tentando reduzir a idade
penal já há muito tempo. O Estado Social, nesse sentido da hipercriminalização, é deixado de
lado, como bem destaca Rogério Greco:
“O Estado Social foi deixado de lado para dar lugar a um Estado Penal.
Investimentos em ensino fundamental, médio e superior, lazer, cultura, saúde,
habitação são relegados a segundo plano, priorizando-se o setor repressivo.
A toda hora o Congresso Nacional anuncia novas medidas de combate ao
crime.”182
Esse “Estado Penal”, pautado pelas práticas de lei e ordem, que deixa de lado o Estado
Mínimo e prima pela hipercriminalização, adota o sistema penal como forma de controle social
e tende a criminalizar a miséria, como previu Jock Young183, no intuito de concluir um processo
de exclusão que visa a população marginalizada e empobrecida, que deve ser dominada e
contida. Nesse sentido, Wacquant aduz que:
“De resto, o Estado Penal que substitui peça por peça o embrião de Estado
social é, ele mesmo, incompleto, incoerente e muitas vezes incompetente, de
maneira que não poderia preencher as expectativas irrealistas que lhe deram
origem nem as funções sociais que, tacitamente, tem a missão de paliar.” 184
Assim, tratando especificamente da questão da seletividade discriminatória do sistema
penal brasileiro, Vera Malaguti Batista, prefaciando a obra de Loic Wacquant, enfatiza a
questão da “guerra contra as drogas” e a criminalização dos jovens negros, in verbis:
“Lá como cá, a "guerra contra as drogas" é o leitmotiv do funcionamento da
máquina mortífera. No Rio de Janeiro, a criminalização por drogas passa de
cerca de 8% em 1968 e 16% em 1988 a quase 70% no ano 20006. Lá como
cá, a clientela do sistema penal é recrutada no exército de jovens negros
e/ou pobres (ou quase negros de tão pobres), lançados à própria sorte nos
ajustes econômicos que as colônias sofreram naquela que ficou conhecida
como a "década perdida". A continuidade do fracasso retumbante das
políticas criminais contra drogas só se explica na funcionalidade velada do
gigantesco processo de criminalização gerado por ela. As prisões do mundo
estão cheias de jovens "mulas", "aviões", "olheiros", "vapores",
"gerentes" etc.” (g.n.)
182 GRECO, Rogério. Direito Penal do Inimigo. Artigo disponível em http://www.rogeriogreco.com.br/?p=1029,
acesso em 26/06/2017, às 16:00h.
183 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente.
Rio de Janeiro: Revan, 2002
184 WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2 Ed. Rio de janeiro:
Revan, 2003, p. 20.
78
Outrossim, Zaffaroni e Batista indicam que essa seletividade discriminatória é precedida
da criação no imaginário coletivo de um estereótipo, quando os atos mais grosseiros cometidos
por pessoas sem acesso à comunicação são divulgados como os únicos delitos e tais pessoas
como os únicos delinquentes. É o que ele chama de acesso negativo à comunicação por parte
desses ditos delinquentes, que, enquanto excluídos sociais, tornam-se alvos fáceis para todas as
cargas negativas da sociedade, caracterizadas como preconceitos. Fica fixada, então, a imagem
pública de delinquente, composta por elementos de classe social, étnicos, etários, de gênero e
estéticos.185
Nessa ótica, Zaffaroni e Batista estabelecem o que chamam de criminalização
secundária, que tem como principal critério o estereótipo, e como uma característica as
“uniformidades da população penitenciária associadas a desvalores estéticos”. É essa seleção
criminalizante que condiciona todo o funcionamento das instituições do sistema penal, ao ponto
de que a justiça criminal poder tornar-se inoperante para qualquer outra clientela, provocando,
ainda, uma distribuição seletiva que atinge apenas aqueles que têm baixas defesas ou não têm
defesas perante o poder punitivo, tornando-os mais vulneráveis à mencionada criminalização
secundária. E os autores concluem:
“O sistema penal opera, pois, em forma de filtro para acabar selecionando
tais pessoas. Cada uma delas se acha em um certo esta de vulnerabilidade ao
poder punitivo que depende de sua correspondência com um estereótipo
criminal: o estado de vulnerabilidade será mais alto ou mais baixo consoante
a correspondência com o estereótipo for maior ou menor. No entanto,
ninguém é atingido pelo poder punitivo por causa desse estado, mas sim pela
situação de vulnerabilidade, que é a posição concreta de risco criminalizante
em que a pessoa se coloca. Em geral, já que a seleção dominante corresponde
a estereótipos, a pessoa que se enquadra em algum deles não precisa fazer
um esforço muito grande para colocar-se em posição de risco criminalizante
(e, ao contrário, deve esforçar-se muito para evitá-lo), porquanto se encontra
em estado de vulnerabilidade sempre significativo. Quem, ao contrário, não
se enquadrar em um estereótipo, deverá fazer um esforço considerável para
posicionar-se em situação de risco criminalizante, de vez que provém de um
estado de vulnerabilidade relativamente baixo.”186
Portanto, é nesse cenário torpe e desfocado de exclusão social, pautado no sistema penal
de um Estado que adota as políticas típicas de lei e ordem, que começam a ser verificadas as
185 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume, teoria geral do Direito
Penal. 4. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 46.
186 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume, teoria geral do Direito
Penal. 4. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 49/50.
79
práticas próprias de um Direito Penal do Inimigo, na forma delineada por Gunther Jakobs, cujo
desenvolvimento será realizado mais à frente.
Tratando exclusivamente da situação do Estado brasileiro, permeado hoje pela
incessante sensação de insegurança e a necessidade de proteção de novos bens jurídicos, que
conduzem às práticas de lei e ordem, em que inexiste a possibilidade de aplicação exclusiva das
técnica legislativas de Direito Penal pautadas nos princípios clássicos de natureza iluminista, a
doutrina de Moraes destaca que determinadas características, como a descodificação do Direito,
a hipertrofia e a irracionalidade legislativa, são acentuadas, em razão do “absoluto descrédito
no Direito Administrativo e no Poder Público” para a produção de soluções alternativas à pena
de prisão na atividade de controle social.187
À título de informação e ilustração do citado quadro social, cabe frisar que os últimos
dados estatísticos disponibilizados pelo INFOPEN188 indicam que de 2002 a 2013 a população
carcerária no Brasil mais do que dobrou, alcançando um índice de 140% (cento e quarenta por
cento), enquanto que a população em geral, segundo dados do IBGE, cresceu somente 15%
(quinze por cento). É o Estado penal implantado e atuante.
Contudo, o mais preocupante são as taxas da pesquisa que indicam com clareza a tal
seletividade estigmatizante do sistema penal brasileiro. A aproximação com o Direito Penal do
Inimigo fica evidente nas palavras do próprio órgão pesquisador, que destaca essa seletividade
do sistema de justiça criminal, tendo por “preferência” o encarceramento dos “não brancos, do
sexo masculino, mais pobres, menos escolarizados, com pior acesso a defesa e reincidentes”189.
Além disso, o pesquisador do INFOPEN, ao realizar uma análise geral do senso penitenciário
e de outras pesquisas sobre o tema, aponta que:
O perfil que podemos obter dos censos penitenciários, deste modo, pode ser
tido como um recorte dos crimes de rua, filtrado pelo sistema de justiça
criminal, e obviamente este perfil seria diferente se os órgãos de controle e a
sociedade focassem nos crimes de colarinho branco”190. (g.n.)
187 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal.
Curitiba: Juruá, 2008, p. 331.
188 Dados analisados pelo Informativo Rede Justiça Criminal. Os números da justiça criminal no Brasil. Nº 08.
Janeiro de 2016.
189 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Departamento Penitenciário Nacional. INFOPEN, 2016, p. 32. Disponível em <
http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/relatorio-depen-versao-web.pdf>, acesso em 26/06/2017.
190 (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONA (INFOPEN), 2014, p. 32)
80
Evidencia-se, dessa maneira, as críticas às práticas de lei e ordem, na forma como
elaboradas por Young, Wacquant e Garland, haja vista que os dados levantados por órgãos
oficiais brasileiros apontam para a criminalização da miséria como uma pretensa forma eficaz
de controle social, além do estereótipo criado por um sistema seletivo, baseado na
vulnerabilidade. Daí emerge uma das questões centrais deste trabalho de pesquisa: estaria o
sistema penal brasileiro, pautada na lei e na ordem, caminhando para a implantação de técnicas
próprios de um Direito Penal do Inimigo?
2.4 COMENTÁRIOS AO DIREITO PENAL DO INIMIGO EM GUNTHER JAKOBS
Inicialmente, reiteramos as diferenciações realizadas na parte introdutória do presente
capítulo, baseadas nos estudos criminológicos de Anitua, mas esclareça-se, por oportuno, que
a Lei e a Ordem de Dahrendorf e o Direito Penal do Inimigo de Jakobs fazem parte de um
denominado Direito Penal Simbólico191, nas palavras do autor, em que prevalece a prevenção
geral da pena em suas versões positiva e negativa.
Para que possamos estabelecer os fundamentos da teoria do Direito Penal do Inimigo, é
necessário entender um pouco da forma como Günther Jakobs, penalista alemão, pensa o
próprio Direito Penal. Segundo Canció Meliá e Feijoo Sánchez, a teoria da pena de Günther
Jakobs passou por um processo de evolução ao longo dos anos, podendo-se constatar
essencialmente três fases distintas: uma primeira, até o princípio dos anos 90, que pode definir-
se como mais psicológica, na qual a pena tem função apenas de prevenção; uma segunda,
caracterizada pela identificação de sua teoria da pena com um conceito funcional de retribuição;
e uma terceira, que vem se apresentando nos últimos anos, e que, em síntese, representa uma
recognitivização da sua teoria da pena192. Frise-se que essas fases serão desenvolvidas com
maior profundidade posteriormente, em tópico próprio.
O Direito Penal do Inimigo surge na terceira fase, quando a sua teoria da imputação
objetiva já está bem sedimentada, claramente derivando da função da pena que ele atribui
(prevenção geral positiva), já que a aplicação da pena assume o papel de revalidar a própria
191 ANITUA, Gabriel Ignacio. Op. cit., p. 498.
192 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Traduccíon y estúdio preliminar Manuel Cancio
Meliá & Bernardo Feijoo Sanchez. Madrid: Thomson Civitas, 2006, p. 27/26.
81
norma, concedendo-se assim vigência ao ordenamento. Segundo o próprio, “a função da pena
é a preservação da norma enquanto modelo de orientação para contatos sociais” 193.
Importante destacar que o presente trabalho não tem a intenção de esmiuçar e discutir
fundamentos da teoria do delito, apenas trazer à baila alguns pressupostos sobre as ideias de
Günther Jakobs, a fim de aclarar a sua teoria do Direito Penal do Inimigo. Nesse sentido, Meliá
e Sánchez afirmam que para um melhor entendimento da teoria da pena na visão do penalista
alemão, em todas as suas fases, deve-se entender o direito “como sistema de comunicações que
se ocupa da função de estabilização de expectativas normativas, passando a ser elemento central
desta perspectiva que as expectativas estejam protegidas por sanções”194. Fica clara aqui sua
premissa de origem Luhmaniana.
Então, em relação à supracitada terceira fase de Jakobs, caracterizada pela
recognitivização da sua teoria da pena, a professora Marta Machado salienta que tal
recognitivização representa uma mudança, através de um retorno às preocupações concretas
com a garantia de segurança cognitiva na sociedade, e mais, para ela tal fase, caracterizada pelo
Direito Penal do Inimigo, é incompatível com seu conceito de imputação penal, e com o restante
da sua teoria do delito, já que “não tem significado comunicativo, não há punição com base em
culpabilidade, procede-se antes do fato e além da pena” 195.
Resta evidenciado que Günther Jakobs, ao criar o seu Direito Penal do Inimigo, na
verdade trilhou caminho diverso da sua teoria da imputação, podendo-se concluir, como o quis
o autor, pela existência de duas modalidades de direito penal em seus escritos, o do cidadão,
cuja finalidade é a manutenção da vigência do ordenamento jurídico, e o do inimigo, que visa
a segurança deste mesmo ordenamento, direcionado aos sujeitos que não detêm um “apoio
cognitivo”196.
Em sua obra intitulada “Direito Penal do Inimigo”, Jakobs deixa claro que sua intenção
não é contrapor duas esferas isoladas do Direito Penal, “mas descrever dois polos de um único
193 JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte: Del
Rey, 2009, p. 27.
194 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Traduccíon y estúdio preliminar Manuel Cancio
Meliá & Bernardo Feijoo Sanchez. Madrid: Thomson Civitas, 2006, p. 21.
195 MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther Jakobs na
dogmática penal contemporânea. Tese (doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do Direito. Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 183/209.
196 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Traduccíon y estúdio preliminar Manuel Cancio
Meliá & Bernardo Feijoo Sanchez. Madrid: Thomson Civitas, 2006, p. 55.
82
mundo ou de mostrar duas tendências opostas de um único contexto do Direito Penal. Essas
tendências podem muito bem se sobrepor, isto é, uma, a do tratamento do agente enquanto
pessoa; e a outra, a do tratamento do agente como fonte de perigo ou como meio de intimidação
de outros”197.
E continua, destacando que “deve-se notar, antes de tudo, que a denominação “Direito
Penal do Inimigo” não tem um sentido pejorativo por princípio. É certo que um Direito Penal
do Inimigo é sinal de uma pacificação insuficiente, a qual, todavia, não deve ser imputada
necessariamente aos pacificadores, podendo ser atribuída também aos insubmissos. Além disso,
um Direito Penal do Inimigo implica, em todo caso, ao menos um comportamento orientado
por regras e, portanto, não espontâneo e afetivo”198.
O autor deixa claro que o Direito Penal do Inimigo pressupõe uma questão de segurança
quando alerta para uma “pacificação insuficiente” ou “tratamento do agente como fonte de
perigo”, enfatizando, dessa forma, que o laço social (com clara referência a Rousseau) deve ser
mantido por normas, as quais, quando rompidas, ensejam a aplicação de um Direito Penal do
Inimigo.
Em todo seu texto Jakobs deixa claro que está realizando uma constatação, inclusive
citando exemplos dos ordenamentos jurídicos de alguns países ou normas globais de direitos
humanos, e que a contaminação do Direito Penal geral com “variantes” e “partículas” de Direito
Penal do Inimigo “é um mal do ponto de vista do Estado de Direito”199. Por isso mesmo que o
Estado, ao criar uma norma, deve distinguir claramente entre aquilo que se aplica apenas ao
inimigo e aquilo que se aplica ao cidadão, “pois, do contrário, o Direito Penal do Inimigo
contamina o Direito Penal do Cidadão”200.
No intuito de estabelecer um conceito e delimitar o alcance do Direito Penal do Cidadão
e do Direito Penal do Inimigo, Jakobs destaca que: “O Direito Penal do Cidadão é o Direito de
todos; o Direito Penal do Inimigo é o Direito daqueles que se contrapõem ao inimigo; em
relação ao inimigo, ele é somente coação física, chegando até a guerra. Essa coação pode estar
limitada sob dois aspectos. Primeiramente, o Estado não deve necessariamente excluir o
197 JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 1.
198 Idem, p. 2.
199 JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 17.
200 Idem, p. 68.
83
inimigo de todos os direitos. Assim, por exemplo, a pessoa submetida à custódia de segurança
permanece intacta em seu papel de proprietário de coisa material. Em segundo lugar, o Estado
não deve fazer tudo aquilo que está livre para fazer, podendo conter-se, sobretudo, para não
obstruir um acordo de paz posterior. Todavia, isso não muda em nada o fato de que a medida
contra o inimigo nada significa, mas apenas coage. O Direito Penal do Cidadão mantém a
vigência da norma, o Direito Penal do Inimigo (em sentido amplo, incluindo o Direito de
medidas de segurança) combate perigos, sendo certo que existem muitas formas
intermediárias”201.
A grande questão é que, segundo toda a teoria de Jakobs, do ponto de vista cognitivo –
parte integrante da sua terceira fase –, o inimigo não pode ser considerado como pessoa, ao
menos uma “pessoa real”, vez que representa perigo à manutenção do ordenamento jurídico.
Partindo dessa premissa, “um Direito Penal que englobe tudo não seria capaz de conduzir esse
combate, pois teria que tratar seus inimigos como pessoas e, por conseguinte, não como fontes
de perigo”202. Daí porque se faz necessária a noção do que seria esse inimigo para o autor.
Nesse ponto, destaca-se o que já foi dito sobre a terceira fase da teoria de Jakobs, quando
ocorre um processo de recognitivização, no sentido de se garantir a segurança cognitiva da
sociedade. Mas, o que seria essa segurança cognitiva da sociedade?
Para justificar a sua ideia de inimigo, Jakobs recorre a Rousseau, Fichte, Hobbes e Kant,
valendo-se especialmente deste último para dizer que em “Kant, toda pessoa está autorizada a
coagir qualquer outra pessoa a uma constituição civil para possibilitar a proteção da
propriedade. Imediatamente impõe-se a pergunta: o que diz Kant sobre aqueles que não se
deixam coagir? Em seu escrito “Para a Paz Perpétua”, ele dedica uma longa nota de rodapé ao
problema de quando se está autorizado a proceder de modo hostil contra uma pessoa: “o
homem, ou o povo, no simples estado natural priva-me...dessa segurança (necessária) e lesa-
me já por se encontrar ao meu lado nesse estado, ainda que não efetivamente (facto), mas sim
pela ausência de lei de seu estado (statu iniusto), que é uma constante ameaça para mim; e eu
posso forçá-lo a entrar comigo num estado comunitário-legal ou afastar-se do meu lado”. Assim
sendo, aquele que não participa de uma vida num “estado comunitário-legal” deve se afastar, o
que significa que será expulso (ou lançado à custódia de segurança) ou que, em todo caso, não
201 JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 8.
202 Idem, p. 69.
84
há que ser tratado como pessoa, podendo-se, como observa expressamente Kant, “tratá-lo como
um inimigo”203.
É com o objetivo de diferenciar a forma como esses estudiosos viam o inimigo, daquela
vista no Estado Moderno, que Jakobs afirma que atualmente, e em geral, no criminoso é visto
um fato normal, não um inimigo, mas um cidadão, “uma pessoa que, mediante seu
comportamento, lesou a vigência da norma e que, por essa razão, será chamado de modo
coercitivo, mas na qualidade de cidadão (e não de inimigo), a recompensar os danos a ela
causados”204. Mas, segundo ele, tudo o é assim tão “idílico” somente quando o agente tem
consciência de que feriu os princípios de conduta, oferecendo a garantia, a par de seu crime, de
se comportar como cidadão, ou seja “como pessoa que age de modo fiel ao Direito. E o fator
cognitivo reside no fato de que todas as outras pessoas “deveriam partir do princípio de que os
outros hão de se comportar em respeito à norma, ou seja, não a infringindo”205. É o que Jakobs
chama de “alicerce cognitivo”, sendo que “quando a expectativa do comportamento pessoal é
frustrada de modo duradouro, desvanece a disposição para tratar o criminoso como pessoa”206.
Acerca da dicotomia cidadão e inimigo, Moraes ensina que a teoria do direito penal do
inimigo de Jakobs busca seus fundamentos na teoria dos sistemas sociais, que é baseada na
comunicação, de forma que a pessoa somente existe em função de sua relação social.207 Com
isso, “Jackobs desenvolve uma teoria comunicativa menos radical que a de Luhman e que
representa pontos de contato com uma construção intersubjetiva”.208
Nesse sentido, para Jakobs:
“Quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece garantia de
um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão,
mas deve ser combatido como inimigo. Esta guerra tem lugar com um legítimo
direito dos cidadãos, em seu direito à segurança; mas diferentemente da pena,
203JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 6/7.
204 Idem, p. 10.
205 Idem, p. 10.
206 JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 12.
207 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. A terceira velocidade do direito penal: “o Direito Penal do Inimigo”.
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
2006, p. 162
208 FEIJOO SÁNCHES, Bernardo. Normatizacíon del derecho penal y realidade social. Bogotá: Universidad
Externado de Colombia, 2007, p.79 (tradução livre).
85
não é Direito também a respeito daquele que é apenado; ao contrário, o
inimigo é excluído”.209
Percebe-se claramente, então, o mencionado fator cognitivo da teoria do inimigo, não
devendo ser tratado como pessoa aquele que não oferece a segurança cognitiva de seu
comportamento pessoal. Da mesma forma, não pode o Estado trata-lo como pessoa, sob pena
colocar em risco o direito à segurança das demais pessoas.
Moraes esclarece que, como o conceito de pessoa é construído com base nesse sistema
social, para Jakobs os inimigos não são pessoas. E conclui para asseverar a importância dessa
segurança cognitiva, pois, na teoria de Jakobs a sociedade constituída juridicamente somente
se sustenta com um mínimo de cognição.210
Portanto, surge a figura do inimigo quando ocorre a quebra dessa expectativa cognitiva,
criando-se no ordenamento jurídico legislações de combate para “combater indivíduos que, em
sua postura, ou em sua vida econômica, ou por meio de associação a uma organização,
desviaram-se do Direito de modo supostamente duradouro, ou pelo menos decisivo, i. e., que
não fornecem a garantia cognitiva mínima necessária para que sejam tratados como pessoas”211.
Dessa forma, conclui-se que a noção de inimigo para Jakobs está formulada da seguinte forma:
o “indivíduo que não se deixa coagir a um estado de civilidade” e que, por isso, “não pode gozar
dos benefícios do conceito de pessoa”.
É válido citar o exemplo que o autor nos concede, dentro do Direito Penal Alemão, para
diferenciar o Direito Penal aplicado ao cidadão e o aplicado ao inimigo:
“um exemplo do primeiro tipo pode ser o trato com um homicida simples, que,
atuando em autoria unitária, somente se torna punível quando se prepara
imediatamente para a realização do tipo (...); um exemplo do segundo tipo
pode ser o trato com o mentor ou homem de trás (seja lá o que for isso) de
uma associação terrorista, que já é atingido por uma pena apenas mais
branda que a do autor da tentativa de homicídio, quando funda a associação
ou quando nela atua (...), ou seja, algumas vezes, anos antes do fato previsto
– de modo mais ou menos vago; na realidade, tratar-se-ia de uma custódia de
segurança antecipada denominada “pena”” 212.
209 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Porto Alegre:
Livraria do Advogado. Tradução André Luís Callegari e Mereu José Giacomolli, 2005, p. 49/50.
210 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. A terceira velocidade do direito penal: “o Direito Penal do Inimigo”.
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
2006, p. 163
211 Idem, p. 12.
212 JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 14.
86
Por fim, e como forma de demonstrar os traços do Direito Penal do Inimigo no interior
do sistema penal brasileiro, é importante tratar das principais características da teoria que se
encontram presentes nas legislações das sociedades modernas. Segundo Jakobs, essas
características seriam, em primeiro lugar, as normas que objetivam uma ampla antecipação da
punibilidade, com a mudança de perspectiva do fato típico praticado para o fato que será
produzido, como, por exemplo, nos casos de terrorismo e organizações criminosas. Fala, em
segundo lugar, sobre a falta de uma redução de pena proporcional ao referido adiantamento,
dando como exemplo os casos em que a pena para o mentor de uma organização terrorista é a
mesma à do autor de uma tentativa de homicídio, somente incidindo a diminuição referente à
tentativa. Cita, por fim, a clara mudança da legislação de Direito Penal para uma legislação de
luta, com o fim de combater a delinquência e, em concreto, a delinquência econômica.213
Moraes, como forma de demonstrar a presença de tais características no bojo dos
ordenamentos próprios das sociedades modernas, as sintetiza da seguinte forma:
“a) antecipação da punibilidade com a tipificação de atos preparatórios,
criação de tipos de mera conduta e perigo abstrato;
b) desproporcionalidade das penas;
c) legislações, como nos explícitos casos europeus, que se autodenominam
de ‘leis de luta ou de combate’;
d) restrição de garantias penais e processuais e
e) determinadas regulações penitenciárias ou de execução penal, como o
regime disciplinar diferenciado recentemente adotado no Brasil.”214
Não causa estranheza o fato de que essas características são facilmente identificadas no
sistema penal brasileiro, levadas a cabo por um processo gradativo de endurecimento da
legislação penal, na forma já tratada neste trabalho. A grande preocupação de Jakobs reside no
perigo de que essas legislações próprias de um Direito Penal do Inimigo estejam “misturadas”
ao Direito Penal, sendo importante para um Estado Democrático de Direito, como o é o Brasil,
213 JAKOBS, Gunther. La Ciencia Del Derecho Penal ante las exigencias del presente. Bogotá: Universidad
Externado de Colômbia: Centro de Investigaciones de Derecho Penal Y Filosofía del Derecho, Tradução: Teresa
Manso Porto, 2000, p. 55/57..
214 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. A terceira velocidade do direito penal: “o Direito Penal do Inimigo”.
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
2006, p. 168.
87
que o Direito Penal do Inimigo esteja claramente delineado, para que não afete a esfera de
liberdade do cidadão.
2.4.1 Entendendo as fases de Gunther Jakobs
Para uma melhor compreensão sobre os estudos de Jakobs e sobre o desenvolvimento
da sua teoria do direito penal do inimigo, é necessário que se obtenha um maior entendimento
acerca das fases do autor e de suas variações.
Como dito anteriormente, a teoria da imputação de Jakobs deriva diretamente da função
da pena que ele atribui ao sistema penal, por isso seus estudos variam conforme as variações
observáveis na teoria da pena. Além disso, destaca-se que para ele a função do direito penal não
reside na proteção de bens jurídicos, mas serve à proteger as expectivas de que não ocorram
agressões a bens, ou seja, sobressai a função de proteger a vigência das normas. Em suas
palavras “o Direito Penal garante a expectativa de que não ocorram agressões a bens”215.
Assim, a primeira fase de Jakobs caracteriza-se pela assunção da função de prevenção
geral positiva da pena, tendo como marco a obra “Culpabilidade e prevenção”, de 1976, em que
a pena assume a função simbólica de influenciar psicologicamente os membros da sociedade.
Nesse sentido, a pena é necessária para manter o ordenamento, sobretudo nos casos de
perturbação da ordem e das garantias jurídicas. Barreira216 destaca a aproximação de Jakobs e
Welzel, seu grande mentor, nesta fase, do que sobressaem suas bases do finalismo.
Com seu “Tratado de Direito Penal”, cuja primeira edição foi publicada em 1983,
percebe-se presente a segunda fase de Jakobs, em que a prevenção geral positiva aparece bem
mais elaborada e constata-se o seu “giro objetivo”217, haja vista que passa a argumentar que a
função da pena é a preservação da norma como modelo de orientação para os contatos sociais.
Aqui a confiança normativa ganha relevo, em detrimento às possíveis relações de psico-sociais
entre autor potencial e a norma jurídico-penal, nesse aspecto, a violação normativa e a pena são
tratadas no âmbito do significado, e não das consequências externas do comportamento.
215 JAKOBS, Gunther. ¿Qué protege el derecho penal: bienes jurídicos o la vigencia de la norma?. In Cuadernos
de Doctrina y Jurisprudencia Penal. Vol. 7. 2001, p. 23-42.
216 BARREIRA, César Mortari. Pensar o direito penal a partir de Günther Jakobs: possibilidades de inovação.
Disponível em <
http://www.academia.edu/20256182/Pensar_o_direito_penal_a_partir_de_Jakobs_possibilidades_de_inovação>
Acesso em 11/11/2017.
217 Idem.
88
Denota-se, ainda, na segunda fase uma ênfase no aspecto comunicativo do direito penal,
tendo a pena uma função que independe, como dito, dos efeitos psicosociais. Por isso, o delito
é entendido como uma falha de comunicação e a pena assume o papel de defesa da “identidade
da sociedade”218, não como o meio para tal, mas como o próprio fim. É com “Sociedade, norma
e pessoa”, de 1995, que Jakobs afasta-se de sua posição inicial, mesmo que continue a utilizar
a prevenção geral positiva, com grande ênfase ao aspecto comunicativo.
Nessa fase, Barreira219 destaca a aproximação de Jakobs a Hegel, com o estabelecimento
de uma ponte entre a prevenção geral positiva e as teorias objetivas da retribuição, como o é a
hegeliana. A diferença estaria na fundamentação de suas teorias, que em Hegel seria o conceito
abstrato de Direito e em Jakobs as condições de subsistência de uma sociedade determinada.
Nesse tema, Moraes afirma que:
“No mesmo esteio, aliás, poder-se-ia reiterar que HEGEL já definia ‘crime
como negação do direito e pena como negação da negação’ e, portanto, como
reafirmação do direito – uma antecipação de dois séculos da prevenção geral
positiva de JAKOBS, uma prévia da pena como afirmação da validade da
norma.”220
Quanto ao aspecto comunicativo, percebe-se na relação entre pessoa e sociedade:
“(...) que o conceito de pessoa refere-se ao cidadão que respeita o direito
(comunicação pessoal), e não ao indivíduo, que age de acordo com um código
de satisfação/insatisfação (comunicação instrumental). Essa distinção é
importante já que, segundo Jakobs, “o direito se estabelece para aqueles que
podem ser caracterizados como pessoas em direito””.221
Tal questão é essencial para que se entenda a terceira fase do pensamento de Jakobs, já
que voltam a ser inseridos os efeitos cognitivos em sua toeria da pena, que apresenta a
necessidade da dor da pena para a garantia das expectativas normativas da sociedade, devendo
a pena ser entendida como comunicação e “privação dos meios de interação do autor”222. Nesse
sentido, Moraes223 acentua a importância da teoria dos sistemas de Luhman no bojo da teoria
da pena de Jakobs, enquanto funcionalidade do Direito Penal para o sistema social, posto que a
218 BARREIRA, César Mortari. Op. cit.
219 Idem.
220 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. A terceira velocidade do direito penal: “o Direito Penal do Inimigo”.
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
2006, p. 136-137.
221 BARREIRA, César Mortari. Op. cit.
222 Idem.
223 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Op. cit., p. 132.
89
pena nada mais seria do que uma necessidade funcional ou uma necessidade sistêmica de
estabilização social, “cuja vigência é assegurada ante as frustrações que decorrem da violação
das normas”.
Em sua terceira fase, portanto, Jakobs procura fixar a questão da justificação da dor
penal, ocorrendo, como já se disse, uma “recognitivização”224 de sua teoria, com um retorno às
preocupações concretas com a garantia de segurança cognitiva na sociedade. Um dos marcos
dessa fase é o seu “A pena estatal: significado e finalidade”, de 2006, e a principal consequência
é a formatação da teoria do direito penal do inimigo, baseada na ideia de pessoa ou, mais
precisamente, pessoa real, como aquele sujeito que apresenta o necessário “apoio cognitivo”.
Os que não se encontram nessa categoria são punidos de acordo com um Direito Penal do
inimigo.
Barreira destaca a inconstância dos estudos de Jakobs no que diz respetito à legitimidade
do direito penal do inimigo, como segue:
“Em “Criminalização ao estado prévio à lesão de um bem jurídico” (1985)
Jakobs rechaça a solução do direito penal do inimigo, vendo a antecipação
da tutela penal como ilegítima em um Estado de liberdades. Mas em seus
escritos recentes Jakobs volta a se preocupar com a insegurança cognitiva,
que desta vez será articulada com a necessidade de vigência real da norma
desrespeitada, sendo a dor penal elemento fundamental para que esse
objetivo seja alcançado. Em “Terroristas como pessoas de direito?” (2005)
o penalista de Bonn afirma: “uma expectativa normativa dirigida para uma
determinada pessoa perde sua capacidade de orientação quando carece do
apoio cognitivo prestado por parte desta pessoa””.225
Portanto, a terceira fase está permeada por conceitos de vigência e segurança, pois no
que diz respeto ao Direito Penal aplicado à pessoa real, ou ao cidadão, o objetivo é a manutenção
da vigência do ordenamento jurídico, enquanto que, em se tratando das pessoas não reais, ou
inimigos, o Direito Penal objetiva a segurança desse mesmo ordenamento.
Cabe, nesse ponto, citar a opinião de Anitua, para quem a questão cognitiva decorre da
culpa do próprio autor. Vejamos:
“Nesta última construção, que anos antes também fez surgir da filosofia
alemã os regimes nazistas e fascitas, Jakobs seria um pouco mais cuidadoso
e não indicaria que todos os infratores são “inimigos”, mas que devem ser
tratados dessa forma aqueles que podem “perder a personalidade por sua
própria culpa”. Não estaria tentando criar um novo direito de acordo com a
224 BARREIRA, César Mortari. Op. Cit.
225 Idem.
90
existência de inimigos, mas indica que quem “desata” o sistema de direitos e
garantias não pode exigir sua vigência. Em suas próprias palavras: “a
existência de um Direito Penal de inimigos não é sinal, portanto, da força do
Estado das Liberdades, mas um sinal de que, naquela medida, simplesmente
não existe” para o inimigo tal Estado de Direito. Para aqueles seria aplicada
uma medida de exceção ou de emergência.
É importante frisar que Anitua226, em seus estudos de criminologia, apresenta Jakobs
como o mais destacado representante do Direito Penal simbólico, o qual, segundo ele,
reconhece suas origens na tradição sociológica funcionalista, cujo auge se deu na parte final do
séc. XX em toda a Europa. Ainda, a teoria do Direito Penal simbólico desenvolvida por Jakobs
teria sido fruto de uma união entre as teorias retributivas e teorias positivas de prevenção geral,
conforme treho a seguir:
“Se daria nas saídas tanto do direito penal continental europeu como do
modelo repressivo americano uma curiosa união entre teorias retributivas e
teorias positivas de prevenção geral, cujo melhor exponente é o alemão
Gunther JAKOBS ou o também alemão - e isso também seria afetado pela
infância sob o regime nazista, guerra e pós guerra - mas cidadão britânico
Ralf DAHRENDORF.”227
226 ANITUA, Gabriel Ignacio. Op. cit., p. 498.
227“Se daría en aquellas salidas tanto del derecho penal continental europeo cuanto del modelo represivo
estadounidense una curiosa unión entre teorías retributivas y teorías de prevención general positiva, cuyo mejor
exponente es el alemán Gunther JAKOBS o el también alemán -y que asimismo estaría afectado por la niñez bajo
el régimen nazi, la guerra y la posguerra- pero ciudadano británico Ralf DAHRENDORF.”
91
3. AS PROPOSTAS DE EMENDA A CONSTITUIÇÃO TENDENTES A
REDUZIR A MAIORIDADE PENAL
3.1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Com o objetivo de estabelecer e clarificar a função criminológica e social da proposta
de redução da maioridade penal, e a fim de situá-la nas teorias já estudadas do Garantismo Penal
e do Direito Penal do Inimigo, faz-se mister o conhecimento e atualização das propostas que
estão em trâmite no Congresso Nacional, destacando-se que no ordenamento jurídico brasileiro,
segundo o artigo 228 da Constituição Federal, a imputabilidade em razão da idade é imposta
por um critério meramente biológico, não sendo levados em consideração outros critérios de
ordem jurídica ou psicológica, bastando que o agente possua mais de 18 anos de idade no
momento da ação ilícita. Cuida-se, nas palavras de Junqueira e Vanzolini, de uma presunção
jures et de jures de inimputabilidade, a qual beneficia o agente do fato criminoso, menor de 18
anos, em consonância com os fundamentos das regras penais e processuais penais.
As discussões em torno da tramitação no Congresso Nacional da Proposta de Emenda à
Constituição de número 171/1993 na Câmara e número 115/2015 no Senado, que visa à redução
da maioridade penal para 16 anos de idade, são de extrema relevância no momento atual, já que
envolvem os mais diversos setores da sociedade civil e todos os operadores do Direito Penal e
Constitucional, seja nas instâncias superiores ou inferiores, gerando debates jurídicos
acalorados em todos os meios de comunicação.
Ressalta-se que esse tipo de proposta se encontra presente na pauta de discussões do
Congresso Nacional desde sempre, já que esta atual é resultante do conjunto de diversas outras
que buscam alterar o sistema socioeducativo vigente, seja com a redução da idade penal, seja
com o endurecimento das medidas socioeducativas estabelecidas no Estatuto da Criança e do
Adolescente, cabendo citar: PEC 37/1995, 91/1995, 426/1996, 301/1996, 531/1997, 68/1999,
133/1999, 150/1999, 167/1999, 633/1999, 321/2001, 377/2001, 582/2002, 179/2003, 272/2004,
48/2007, 33/2012, 223/2012, 279/2013, 15/2015, 25/2015 e 115/2015.228
228 DINIZ, Debora; BRITO, Luciana; RONDON, Gabriela; GUMIERI, Sinara. Proteção Constitucional à Infância
e à Adolescência: uma crítica à redução da maioridade penal. Artigo publicado na Revista Justiça Juvenil:
Paradigmas e experiências comparadas. Coordenação Anderson Pereira de Andrade, Bruno Amaral Machado. São
Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 95/106
92
Em 19 de agosto de 2015, a Câmara dos Deputados aprovou a proposta mais atual, com
a seguinte redação:
“AS MESAS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E DO SENADO FEDERAL,
nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte
Emenda ao texto constitucional:
Art. 1º O art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte
redação: “Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos,
sujeitos às normas da legislação especial, ressalvados os maiores de dezesseis
anos, observando-se o cumprimento da pena em estabelecimento separado
dos maiores de dezoito anos e dos menores inimputáveis, em casos de crimes
hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte.”(NR)
Art. 2º A União, os Estados e o Distrito Federal criarão os estabelecimentos
a que se refere o art. 1º desta Emenda à Constituição.
Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua
publicação.”229
Como se percebe, houve o cuidado de inserir no texto, além da imputabilidade penal do
maior de 16 anos somente nos casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal
seguida de morte, o cumprimento da pena em estabelecimento separado dos maiores de 18 anos
e dos menores inimputáveis. No entanto, pergunta-se: seriam essas medidas suficientes para o
atendimento das garantias fundamentais da criança e do adolescente presentes na Constituição
Federal de 1988? Esse é um dos temas que o presente capítulo pretende desenvolver.
Segundo as informações mais atualizadas, após a aprovação em segundo turno na
Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição foi encaminhada ao Senado
Federal, sob o número 115/2015, e, atualmente, encontra-se em tramitação na Comissão de
Constituição e Justiça da Casa, com previsão de julgamento somente para o ano de 2018230.
Apesar de os acontecimentos políticos no Brasil deixarem a matéria em segundo plano no
Congresso, é certo que as discussões em torno da aprovação da matéria se reacenderão
calorosamente, vez que a praxe em nosso país é a de que o aumento da insegurança provoque
a retomada das tratativas para a aprovação dessa medida.
Como forma de melhor contextualizar a questão da redução da maioridade penal, temas
relevantes serão abordadas no presente capítulo, como o direito comparado com outros países
229 Disponível em: < http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/122817>
230 Senado Notícias. Votação da PEC que reduz maioridade penal fica para 2018, diz Lobão. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2017/11/votacao-da-pec-que-reduz-maioridade-penal-fica-para-
2018-diz-lobao, acesso em 14/11/2017.
93
de relevância internacional, de forma a estabelcer a idade penal nessas nações; os critérios
psicológicos, cognitivos e biológicos que levaram à fixação da maioridade penal aos dezoito
anos; além da consitucionalidade das propostas de redução, levando-se em consideração o tipo
de matéria de que trata o texto constitucional.
Com base no texto desta proposta de emenda à constituição, o presente capítulo também
buscará a análise de compatibilidade de seus principais elementos para com as demais normas
penais que tem por objetivo regularizar/regulamentar a situação do jovem e do adolescente no
Estado brasileiro, sobretudo as normas presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente,
enquanto características próprias de um Direito Penal Juvenil, na forma defendida por parte da
doutrina, e como representação de normas próprias de um sistema garantista presente em nossa
sociedade liberal democrática.
Outrossim, no decorrer deste capítulo duas questões relevantes para esta pesquisa serão
tratadas, quais sejam, a análise de traços de uma política penal voltada para o Direito Penal do
Inimigo inseridos na proposta de redução da maioridade e, como forma de corroborar essa
análise, concedendo-lhe validade, serão trabalhados os últimos dados estatísticos
disponibilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional, através do Levantamento Nacional
de Informações Penitenciárias – INFOPEN, que objetivam o mapeamento de um perfil
prevalente para as pessoas que são encarceradas nas penitenciárias do país, dentro daquilo que
foi tratado como estereótipo estigmatizante.
Além disso, considerando a problemática da redução da maioridade penal, e a par do
perfil supracitado, os dados estatísticos do INFOPEN serão contrapostos a outros dados
estatísticos oficiais, produzidos pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, que cuidam
da prática de infrações penais por parte das pessoas menores de 18 (dezoito) anos, com o fito
de valorar a real importância da redução da maioridade perante a realidade criminal vivida
atualmente no Brasil.
Ao final, espera-se obter a resposta para as questões consideradas de maior relevância
para a pesquisa: a) O sistema criminal brasileiro age, mesmo que implicitamente, no combate
a um inimigo estabelecido, ou tem como preferência um cliente específico? E b) A proposta de
redução da maioridade penal está inserida no contexto de um sistema jurídico próprio de um
Estado Social e Democrático de Direito, conduzido por uma “Constituição cidadã”, ou possui
94
as características próprias do Direito Penal do Inimigo, tendo como finalidade contribuir no
combate de um inimigo específico?
3.1.1 Direito Comparado
Ainda no intuito de contextualizar o assunto, a pesquisa pretende apresentar a situação
da idade penal em outras nações. Nações estas escolhidas para comparação com o Brasil
tomando-se por base a sua forma de governo, realidade política, econômica, social e cultural,
além da referência em termos de práticas penais que vem sendo adotada neste trabalho, os
Estados Unidos da América.
Sendo assim, o quadro a seguir demonstra a idade de responsabilização penal juvenil e
a idade de responsabilização penal de adultos nos seguintes países: Argentina, Bolívia,
Colômbia, Chile, Equador, Itália, México, Paraguai, Portugal, Uruguai e Estados Unidos.
95
Tab
ela 1
- I
dad
e de
resp
onsa
bil
idad
e pen
al d
e jo
ven
s e
adult
os.
PA
ÍS
RE
SP
ON
SA
BIL
IDA
DE
PE
NA
L J
UV
EN
IL
RE
SP
ON
SA
BIL
IDA
DE
PE
NA
L D
E A
DU
LT
OS
OB
SE
RV
AÇ
ÃO
AR
GE
NT
INA
16
18
O S
iste
ma
Arg
enti
no
é T
ute
lar.
A L
ei N
° 2
3.8
49
e o
Art
. 7
5 d
a C
onst
ituci
ón d
e la
Nac
ión A
rgen
tina
det
erm
ina
que,
a p
arti
r d
os
dez
esse
is
ano
s, a
do
lesc
ente
s p
od
em
ser
pri
vad
os
de
sua
lib
erd
ade
se c
om
ete
m d
elit
os
gra
ves
e p
od
em
ser
inte
rnad
os
em
alc
aid
ías
ou p
enit
enciá
rias
.
BO
LÍV
IA
12
16/1
8/2
1
O a
rtig
o 2
° d
a le
i 2
02
6 d
e 1
99
9 p
revê
que
a re
spo
nsa
bil
idad
e d
e ad
ole
scen
tes
inci
dir
á entr
e o
s d
oze
e o
s
dez
oit
o a
no
s. E
ntr
etanto
outr
o a
rtig
o (
22
2)
esta
bel
ece
que
a re
spo
nsa
bil
idad
e se
ap
lica
rá a
pes
soas
entr
e o
s
do
ze e
dez
esse
is a
no
s. S
end
o q
ue
na
faix
a et
ária
de
dez
esse
is a
21
ano
s se
rão
tam
bém
ap
lica
das
as
no
rmas
da
legis
laçã
o.
CH
ILE
14/1
6
18
A L
ei d
e R
esp
onsa
bil
idad
e P
enal
de
Ad
ole
scente
s chil
ena
defi
ne
um
sis
tem
a d
e re
spo
nsa
bil
idad
e d
os
quat
orz
e
aos
dez
oit
o a
no
s, s
end
o q
ue
em g
eral
os
ado
lesc
ente
s so
mente
são
res
po
nsá
vei
s a
par
tir
do
s d
ezes
seis
ano
s.
No
cas
o d
e u
m a
do
lesc
ente
de q
uat
orz
e an
os,
auto
r d
e in
fraç
ão p
enal
, a
resp
onsa
bil
idad
e se
rá d
os
Tri
bunai
s
de
Fam
ília
.
CO
LÔ
MB
IA
14/1
6
18
A l
ei c
olo
mb
iana
10
98 d
e 2
00
6,
regula
um
sis
tem
a d
e re
spo
nsa
bil
idad
e p
enal
de
ado
lesc
ente
s a
par
tir
do
s
quat
orz
e an
os,
no
en
tanto
a p
rivaç
ão d
e li
ber
dad
e so
mente
é a
dm
itid
a ao
s m
aio
res
de
dez
esse
is a
no
s, e
xce
to
no
s ca
sos
de
ho
mic
ídio
do
loso
, se
ques
tro
e e
xto
rsão
.
EQ
UA
DO
R
12
18
-
ES
TA
DO
S
UN
IDO
S
6/1
2
12/1
6
A i
dad
e m
ínim
a é
det
erm
inad
a p
or
cad
a es
tad
o.
Na
Car
oli
na
do
No
rte é
de
seis
ano
s.[2
8]
To
dav
ia,
apen
as
quin
ze e
stad
os
esta
bel
ecem
um
a id
ade
mín
ima,
que
quand
o p
rese
nte
var
ia d
e se
is a
do
ze a
no
s. O
s est
ado
s q
ue
não
est
abel
ecer
am
id
ades
mín
imas
julg
am
em
base
à c
om
mo
n law
(d
irei
to c
onsu
etud
inár
io),
ou s
eja,
set
e an
os
de
idad
e na
mai
ori
a d
os
esta
do
s. P
ara
crim
es
fed
erai
s a
idad
e m
ínim
a é
de
onze
ano
s.
ITÁ
LIA
14
18-2
1
Men
ore
s en
tre
quat
orz
e e
dez
oit
o a
no
s sã
o j
ulg
ad
os
pel
a Ju
stiç
a ju
ven
il e
envia
do
s a
pri
sões
juven
is, S
iste
ma
de
Joven
s A
dult
os
até
21
ano
s.
MÉ
XIC
O
11
18
A i
dad
e d
e in
ício
da
resp
onsa
bil
idad
e ju
ven
il m
exic
ana
é em
sua
mai
ori
a ao
s o
nze
ano
s, p
oré
m o
s es
tad
os
do
paí
s p
oss
uem
leg
isla
ções
pró
pri
as,
e o
sis
tem
a ai
nd
a é
tute
lar
PA
RA
GU
AI
14
18
Cri
min
oso
s entr
e q
uat
orz
e e
dez
esse
te p
od
em
ser
pun
ido
s p
or
rest
riçã
o d
a li
ber
dad
e p
or
até
oit
o a
no
s.
PO
RT
UG
AL
12
16-2
1
Sis
tem
a d
e Jo
ven
s A
du
lto
s at
é 2
1 a
no
s.
UR
UG
UA
I 13
18
-
Fo
nte
: W
ikip
edia
. D
isponív
el e
m h
ttps:
//pt.
wik
iped
ia.o
rg/w
iki/
Mai
ori
dad
e_pen
al , a
cess
o e
m 1
4/1
1/2
01
7.
96
A demonstração da idade de responsabilização juvenil em outros países é importante
para que se possibilite uma real comparação com a situação do Brasil, haja vista que, mesmo
com a maioridade penal aos dezoito anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a
responsabilização de jovens com idade a partir dos 12 (doze) anos231. Apenas Estados Unidos
e México preveem a responsabilização juvenil em idade inferior. Ademais, essa faixa etária
será relevante para os estudos posteriores deste capítulo que, dentre outros assuntos, tratarão da
existência de um Direito Penal Juvenil no Brasil.
No tocante à idade penal, fica claramente demonstrado que a grande maioria dos países
adota a responsabilização a partir dos dezoito anos, o que serve para fomentar maiores reflexões
sobre a necessidade da medida que visa à diminuição, até mesmo porque alguns países que
seguiram essa direção retornaram ao status quo ante, como é o caso da Espanha, destacado por
Rangel:
“O Código Penal da Espanha instiuído pela Ley Orgánica 10/95 é o Código
Penal mais moderno da Europa e, ao entrar em vigo, em maio de 1996, voltou
a imputabilidade penal de 16 para 18 anos (art. 19), e a razão é simples: a
violência não diminui, e sim aumentou, explodindo na Espanha. O efeito foi
contrário do que imaginavam as autoridades espanholas.”232
3.1.2 Critérios para fixação da maioridade penal
Ao se falar em redução da maioridade penal, é necessário que se esclareçam os critérios
que levam determinado ordenamento a fixar determinada idade penal. Existem hoje três
critérios definidos para fixação da inimputabailidade penal em determinda legislação, sendo
eles: o biológico, o psicológico ou o biopsicológico (misto)233.
231 Establece a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente):
(...)
Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente
aquela entre doze e dezoito anos de idade.
(...)
Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes
medidas:
232 RANGEL, Paulo. A redução da menor idade penal: avanço ou retrocesso social? a cor do sistema penal
brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 210.
233 CAVAGNINI, José Alberto. Somos inimputáveis: o problema da redução da maioridade penal no Brasil. São
Paulo: Baraúna, 2013, p. 62.
97
O critério biológico, segundo Cavagnini234, está baseado em certos estados da patologia
mental, de desenvolvimento mental deficiente (idade) ou transtornos mentais transitórios,
patológicos ou não, bastando apenas que uma dessas características esteja presente para
configurar a inimputabilidade. Não importa se realmente faltam elementos psíquicos que
tornariam o agente imputável, mas apenas a presença de um desses “estados anormais do
espírito”, o que leva a uma deficiência desse critério, como destaca o autor:
“O critério biológico é deficiente, pois não basta a existência de determinado
estado anômalo mental para fazer concluir pela exclusão dos elementos
psíquicos da imputabilidade. Em geral, depende da natureza, do grau ou do
momento da evolução da perturbação mental. Seguem esse critério os códigos
brasileiro, francês, espanhol, belga, austríaco, chileno, japonês e grego.”235
De outro modo, o critério psicológico tem por caracaterística a enumeração legal de
certos aspectos da atividade psíquica que, quando ausentes, tornam o agente inimputável, por
exemplo a “falta de inteligência ou vontade normais, ou fatores equivalentes”236. Essa
enumeração, contudo, não leva em consideração as causas patológicas que determinam essa
ausência de atividade psíquica, o que torna esse critério “muito impreciso e capaz de ser
estendido abusivamente a condições que o legislador não entendeu incluir na hipótese, como
ocorreu no Código Penal anterior (1890), com referência a completa privação, alterada depois
para completa perturbação, dos sentidos e da inteligência”237.
odiernamente, contudo, verifica-se que o critério mais utilizado é o biopsicológico ou
misto, que, nas palavras de Cavagnini:
“...se refere a determinados estados anormais do espírito, com a exigência de
certas consequências psicológicas, porém não consequências psicológicas
puras, mas relacionadas com a norma de comprtamento social.”238
Na verdade, o critério biopsicológico, como a própria nomenclatura sugere,
consubstancia-se na fusão dos dois critérios anteriores, unindo-se a enfermidade mental e a
perturbação consequente para confirgurar a inimputabilidade, de modo a gerar no agente a perda
do entendimento de suas ações e da livre determinação de sua vontade.
234 Idem, ibidem.
235 Idem, p. 63.
236 Idem, ibidem.
237 Idem, ibidem.
238 CAVAGNINI, José Alberto. Op. cit., p. 64
98
Para a aplicação prática desse critério, observa-se que, em um primeiro momento, atesta-
se o estado de perturbação mental para, a fim de confirgurar-se a inimputabilidade, conjugá-lo
com a ausência dos atributos psíquicos legalmente determinados. É o que ocorre nos sistemas
jurídico-penais alemão, italiano, suíço, argentino e uruguaio239.
No Brasil o critério adotado pela Constituição Ferderal é o biológico, posto que se leva
em consideração somente o fator idade para a configuração da inimputabilidade penal, não
havendo importância o discernimento ou não acerca do ato ilícito cometido. Nesse sentido,
Junqueira e Vanzolini aduzem que:
“O critério atualmente adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro é
puramente biológico, ou seja, nenhuma consideração, seja de ordem
psicológica, seja de ordem jurídica, interfere na verificação da
inimputabilidade em razão da idade. Trata-se, portanto, de uma presunção
jures et de jures de inimputablidade.”240
Por fim, é interessante notar que antes do Código Penal de 1940 e da Constituição de
1988, as legislações brasileiras adotavam, via de regra, o critério biopsicológico para fixação
da inimputabilidade penal, sempre levando em consideração a presença ou não do
discernimento para o entendimento da conduta. Inclusive, o Código Penal Militar (Decreto-lei
n. 1001/1969) adota o critério biopsicológico, estabelecendo a possibilidade de
responsabilização do menor de dezesseis anos mediante a configuração do discernimento para
entendimento do ato ilícito, o que, por óbvio, não foi recepcionado pela Constituição Federal
de 1988.
3.1.3 A constitucionalidade (ou não) da medida
Ainda com o fito de contextualizar eficazmente a questão da redução da maioridade
penal em nosso sistema jurídico, é indispensável que esta pesquisa aborde o tema afeito à
constitucionalidade da emenda tendente a reduzir a maioridade penal.
Acontece que, grande parte da doutrina entende que a idade penal prevista no artigo 228
da Constituição Federal trata de verdadeira cláusula pétrea. São nomes como os de Dallari,
239 Idem, ibidem.
240 JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Op. cit., p. 404.
99
Piovesan e Ariel Dotti, que defendem a tese de um direito fundamental, inserido no rol das
cláusulas pétreas da Constituição241.
Em suma, esses autores apresentam o argumento de que o tratamento diferenciado
conferido pela Constituição aos menores de dezoito anos consitui-se em verdadeira garantia
fundamental da pessoa humana em formação, equiparando-se àquelas garantias previstas no rol
do artigo 5º, que sabemos não ser exaustivo. Por isso, falar-se em cláusula pétrea, que não pode
ser objeto de emenda constitucional tedente a suprimi-la ou diminui-la, sob pena de sucumbir
diante do controle de constitucionalidade.
Nesse sentido, Rangel esclarece que a regra da imputabilidade penal é uma limitação
material explícita ao poder reformador, não podendo ser alterada na ordem jurídica vigente,
justamente por se tratar de uma garantia individual. Vejamos:
“Por essa razão é que a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto e
universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias
individuais formam o substancial núcleo intocável chamado pela doutrina de
limitação material explícita da Constituição.
Os direitos e garantias fundamentais não se encontram restritos ao rol do art.
5º da CR, “resguardando um conjunto mais amplo de direitos constitucionais
de caráter individual dispersos no texto da Carta Magna”, e, por óbvio, a
regra limitadora de restrição de direitos do art. 228 CR se encontra na esfera
de proteção do art. 60, § 4º, da CR.” 242
No entanto, tal posição não é pacífica, haja vista que outros grandes nomes da doutrina
penal entendem pela possibilidade de redução da maioridade penal. É o que sustentam, por
exemplo, Nucci e Reale Júnior, para os quais inexiste qualquer impedimento no âmbito das
regras de controle de constitucionalidade que impeça a alteração da idade penal.
O fundamento é exatamente o contrário ao exposto anteriormente por parte da doutrina
que defende a inconstitucionalidade da medida, já que esses autores aduzem que a regra da
idade penal não está inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais do artigo 5º da
Constituição Federal e, por isso, não se constitui em cláusula pétrea. Ou seja, não se trataria de
um direito fundamental em sentido material ou formal243.
241 JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Op. cit., p. 405-406.
242 RANGEL, Paulo. Op. cit., p. 215.
243 JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Op. cit., p. 405.
100
Dessa forma, para os fins desta pesquisa, o mais importante em relação à questão da
constitucionalidade da medida que visa reduzir a idade penal é que se tome conhecimento da
discussão, tal qual exposta, sabendo-se qual é o entendimento adotado por cada um dos lados,
mesmo que a Cämara dos Deputados, como representante do Poder Legislativo, já tenha
aprovado algumas propostas que lá tramitaram, inclusive a mais atual.
3.2 CARACTERÍSTICAS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NA PROPOSTA DE REDUÇÃO
DA MAIORIDADE PENAL
Foi visto neste trabalho que a teoria do Direito Penal do Inimigo desenvolvida por
Jakobs está inserida, no bojo da criminologia, como uma representação do Direito Penal
simbólico, que tem por característica a retomada da prevenção geral da pena em suas versões
negativa e positiva, reconhecendo-se no castigo a função inibitória para a prática de atos ilícitos.
Também consta desta pesquisa que o Direito Penal do Inimigo possui algumas
características próprias que, segundo Jakobs, seriam, em primeiro lugar, as normas que
objetivam uma ampla antecipação da punibilidade, com a mudança de perspectiva do fato típico
praticado para o fato que será produzido, como, por exemplo, nos casos de terrorismo e
organizações criminosas. Em segundo lugar, a falta de uma redução de pena proporcional ao
referido adiantamento, dando como exemplo os casos em que a pena para o mentor de uma
organização terrorista é a mesma à do autor de uma tentativa de homicídio, somente incidindo
a diminuição referente à tentativa. Cita, por fim, a clara mudança da legislação de Direito Penal
para uma legislação de luta, com o fim de combater a delinquência e, em concreto, a
delinquência econômica.244
A redução da maioridade penal no seio de um Estado social e democrático é fruto de
diversas questões relacionadas ao controle social e ao sistema punitivo, como o é a terceira
característica trazida acima por Jakobs. Os que defendem tal medida, em geral, são os
detentores do discurso de lei e ordem, que veem na punição a solução para a anomia. Contudo,
em se tratando de parcela específica da população (crianças e adolescentes), tal prática pode
conduzir ao entendimento de que estamos diante da forma penal própria do Direito Penal do
Inimigo.
244 JAKOBS, Gunther. La Ciencia Del Derecho Penal ante las exigencias del presente. Bogotá: Universidad
Externado de Colômbia: Centro de Investigaciones de Derecho Penal Y Filosofía del Derecho, Tradução: Teresa
Manso Porto, 2000, p. 55/57..
101
Para melhor entender o tratamento concedido pelo sistema jurídico brasileiro à criança
e ao adolescente, é de se notar que a Constituição Federal trata em seu artigo 227, § 3º, inciso
V, dos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento. Ora, em qualquer hipótese de medida privativa de liberdade todos esses
princípios devem ser observados e, no caso dos crimes hediondos – como anteriormente exposto
na PEC mais atual –, todos são considerados graves e culminados com penas consideradas altas,
o que, por si só, gera grave atrito com a legislação menorista atual, na qual o tempo máximo de
internação de um jovem é de três anos. Assim, já se tem uma problemática a ser enfrentada
legislativamente, sob a hipótese de aprovação da proposta que se encontra em discussão, posto
o flagrante desrespeito ao princípio da brevidade da pena privativa de liberdade.
Porém, a maior preocupação que se coloca quando se fala em redução da idade penal é
a afronta às garantias constitucionais, consubstanciada nesse caso no princípio da proteção
integral, que prega o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, mesmo que
a proposta de emenda mais recente faça consta em seu texto a previsão de cumprimento de pena
em estabelecimento separado de adultos e outros menores de idade. E nesse ponto vem à tona
a discussão baseada na função da pena privativa de liberdade, como executada hoje no Brasil,
se serve tão somente para satisfazer os anseios da sociedade em geral (retribuição) ou se possui,
ainda, um caráter de (re)socialização do criminoso, tema esse que será mais aprofundado em
momento posterior. Importa agora citar Pascuim, que assinala que:
“Nós cremos, sinceramente, que jogar, literalmente, o indivíduo que praticou
um crime no ergástulo, sem outros cuidados – quer assistencial, quer
religioso, quer psiquiátrico, quer familiar – em nada vai adiantar. Tão-só a
sociedade livrar-se-á de um indivíduo nocivo. E ao se libertar, estará como
entrou ou mais nocivo ainda”245.
Por isso, alguns autores consideram o simples fato de o adolescente não estar sujeito ao
sistema penal comum (do inquérito policial à execução da pena) o grande trunfo em se tratando
de redução da maioridade penal. É o que nos esclarece Reale Júnior:
“O recolhimento em casa de contenção com adolescentes não deixa de ter
conteúdo retributivo, mas pode, se for não de mais de cem menores, realizar
uma tarefa educativa facilitadora do enfrentamento dos conflitos no mundo
livre no futuro. Daí a absoluta inconveniência da redução da idade da
imputabilidade, pois o adolescente submetido ao Estatuto, sequer entra em
contato como cliente do falido sistema criminal, desde o inquérito policial
245 PASCUIM, Luiz Eduardo. Menoridade Penal. Curitiba: Juruá, 2006. p. 163.
102
até a execução da pena, sendo ou devendo ser outra a formação e a
perspectiva dos responsáveis por sua custódia” 246. (grifo nosso)
De fato, o trato com o adolescente necessita de cuidados especiais, como já debatido ao
longo deste capítulo. Todo o sistema penal juvenil precisa estar preparado para lidar com esse
ser humano em formação e, a depender do modo com que o caso concreto é conduzido,
consequências negativas e nefastas poderão advir. Resulta disso a importância, em conjunto ao
princípio da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, dos outros já citados (da
brevidade e da excepcionalidade) na aplicação da pena privativa de liberdade, que, acima de
tudo, deve se sobressair no conteúdo pedagógico, visando tão somente à socialização e
educação do jovem em conflito com a lei. O contrário disso indica o desrespeito às garantias
individuais, com ênfase a uma legislação de combate e/ou de emergência, que visa tão somente
o atendimento aos anseios de parcela da população.
Nesse contexto, em comento com as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente,
deve ser ressaltado que, in casu, a pena privativa de liberdade é a mais drástica das medidas, ao
retirar o adolescente do seu habitual convívio social para inseri-lo noutro, completamente
distinto e com inúmeras regras próprias, podendo gerar graves danos sociais no seu
amadurecimento enquanto pessoa.
Ainda, em se tratando do respeito à condição peculiar da pessoa em desenvolvimento,
há que se preocupar com o cumprimento integral do dispositivo que trata do cumprimento da
pena em estabelecimento próprio, na forma da PEC que se encontra em tramitação no Senado
Federal. Como se sabe, e como destacou acima o professor Reale Júnior, o sistema de execução
das penas no Brasil está falido, sofrendo, sobretudo, com o problema da superlotação247. Assim,
teria o Estado condições de arcar com os custos para a criação de presídios próprios para os
adolescentes na faixa etária entre 16 e 18 anos? É viável a proposta nesse sentido, do ponto de
vista da quantidade de crimes hediondos, homicídios dolosos e lesões corporais seguidas de
morte praticados por essas pessoas?
Dados do ano de 2015 do Ministério Público de São Paulo indicam que no caso da
aprovação dessa proposta de emenda à constituição, os adolescentes entre 16 e 18 anos que se
tornariam imputáveis representariam apenas 0,32% dos criminosos totais. Em outras palavras,
246 PASCUIM, Luiz Eduardo, 2006. Apud REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p. 213/214.
247 Sobre a superlotação do sistema carcerário brasileiro: RANGEL, Paulo. A redução da menor idade penal. São
Paulo: Atlas, 2016. p. 80/81.
103
de cada 1.000 (um mil) delitos praticados da natureza dos previstos na proposta, em média
somente três são praticados por adolescentes248.
Em assim sendo, a Proposta de Emenda à Constituição que tramita no Congresso
Nacional atualmente, além de se demonstrar inviável do ponto de vista econômico e prático, e
de ter sua constitucionalidade amplamente questionada249, passa ao largo dos objetivos e
fundamentos do Princípio da Proteção Integral, que tem na criança e no adolescente a prioridade
absoluta da nação, não cabendo expô-los a um sistema penal que não demonstra condições
mínimas de (re)socializá-los, como pretende a função da pena adotada pelo sistema penal
brasileiro.
Das idéias ora expostas, pode-se concluir que o Princípio da proteção integral é próprio
de um ordenamento jurídico voltado para as garantias da pessoa humana, nesse caso, a criança
e o adolescente, tema esse que será melhor desenvolvido no tópico seguinte, mas que, por ora,
explicita a incompatibilidade do princípio para com as normas de caráter emergencial, fruto de
um Direito Penal simbólico.
3.2.1 Sistema penal garantista e as normas próprias de um Direito Penal Inimigo
Diante de uma das conclusões expostas no primeiro capítulo desta pesquisa, no sentido
de que as bases do sistema constitucional brasileiro são próprias de um sistema penal garantista,
indaga-se sobre a existência de um direito penal voltado para o inimigo no interior desse sistema
garantista, haja vista que, conforme a teoria de Jakobs, o Direito Penal do Inimigo é um tipo
diverso do Direito Penal comum, e a proposta de emenda constitucional que objetiva a redução
da idade penal age dessa maneira – como um Direito Penal diferenciado –, pois vai de encontro
a todo o sistema de garantias elaborado no texto da Constituição Federal, no tocante à criança
e ao adolescente.
248 Dados disponíveis e analisados em: < http://www.tijolaco.com.br/blog/crimes-hediondos-de-menor-de-16-a-
18-anos-sao-3-em-mil-delitos-a-gota-no-mar-da-hipocrisia/> ; < http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,7-
em-cada-10-atos-infracionais-em-sp-envolvem-adolescentes-de-16-a-18-anos,1704774>; e <
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/noticias/noticia?id_noticia=13583640&id_grupo=118>.
249 A inconstitucionalidade da proposta é defendida pelos autores que entendem ser a imputabilidade penal em
razão da idade uma garantia individual asseguradora do direito de liberdade, conforme já debatido neste trabalho.
Sobre o assunto: SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009, p. 90/92.
104
Atualmente, percebe-se que a Lei nº 8.069/1990, que criou o Estatuto da Criança e do
Adolescente, seguindo os ditames da novel Constituição e de toda a doutrina presente nos
documentos da ONU relacionados à criança e ao adolescente, incorpora com força normativa
no ordenamento jurídico pátrio o Princípio da Proteção Integral e, assim como o texto
constitucional, atribui responsabilidades ao governo e à sociedade em geral, na medida em que
busca primariamente a proteção integral de crianças e adolescentes, sem deixar de lado, nos
casos de infrações, a aplicação das medidas sócio-educativas.
É claro, então, que o Estatuto abandonou o velho entendimento construído pelo Código
de Menores (Lei nº 6.697/1979), no sentido de que a questão era tão somente tratar da
delinquência juvenil, preocupando-se com a proteção apenas para os carentes e abandonados,
enquanto que a vigilância recaia sobre os inadaptados e infratores, o que ficou conhecido como
doutrina da situação irregular250. Agora o que se tem é a certeza de condições de exigibilidade
de todos os direitos para todas as crianças.
Nesse sentido de descontinuidade da antiga doutrina, o Estatuto da Criança e do
Adolescente inclusive abre mão do termo “menores” para estabelecer, em seu artigo 2º, que
menores até 12 anos são crianças e dos 12 até os 18 anos de idades são adolescentes. Com razão,
Miranda Júnior destaca que “o objetivo da mudança foi, entre outros, retirar o peso
estigmatizante que a história relacionou ao termo menor”251.Importante frisar a condição de
primazia, perante a comunidade latino-americana, do Estatuto da Criança e do Adolescente
enquanto norma de incorporação dos termos da Convenção das Nações Unidas de Direitos da
Criança, transformando o Brasil em referência no estudo do Direito Infracional ou Penal
Juvenil.
A fim de se obter um maior entendimento sobre o sentido jurídico do Estatuto da Criança
e do Adolescente, enquanto materialização do Princípio da Proteção Integral, devemos ter em
mente que ele não se aplica, exclusivamente, ao acompanhamento do adolescente em conflito
com a Lei, mas, sim, à todas as crianças e adolescentes, cerceados ou não de sua liberdade. Por
isso, está ele estruturado em três grandes sistemas de garantias, harmônicos entre si, sendo eles:
250 Sobre doutrina da situação irregular: SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Apud BELOFF, Mary. Modelo de la Proteción Irregular Del niño y la
situación irregular: um modelo para armar y outro para desarmar. In Justicia y Derechos Del Niño. Santiago de
Chile: UNICEF, 1999, p. 9/21.
251 PASCUIM, Luiz Eduardo, 2006. Apud MIRANDA JÚNIOR, Hélio Cardoso. A pessoa em desenvolvimento –
O discurso psicológico e as leis brasileiras para a infância e a juventude. Porto Alegre: Síntese, 2000, p. 57.
105
“a) o Sistema Primário, que dá conta das Políticas Públicas de atendimento
a crianças e adolescentes (especialmente os arts. 4º e 86/88) de caráter
universal, visando a população infanto-juvenil brasileira, sem quaisquer
distinções;
b) o Sistema Secundário, que trata das Medidas de Proteção dirigidas a
crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social, não autores
de atos infracionais (embora também aplicável a estes, no caso de crianças,
com exclusividade, e de adolescentes, supletivamente – art. 112, VI, do
Estatuto da Criança e do Adolescente), de natureza preventiva, ou seja,
crianças e adolescentes enquanto vítimas, enquanto violados em seus direitos
fundamentais (especialmente os arts. 98 e 101). As medidas protetivas visam
a alcançar crianças e adolescentes enquanto vitimizados.
c) o Sistema Terciário, que trata das medidas socioeducativas aplicáveis a
adolescentes em conflito com a Lei, autores de atos infracionais, ou seja,
quando passam a condição de vitimizadores (especialmente os arts. 103 e
102)” 252.
Nesse caso, os sistemas funcionam de modo gradual e integrado, ou seja, não sendo
possível a aplicação do sistema primário, que visa a prevenção, recorre-se ao secundário, que
tem como principal agente o Conselho Tutelar e, em última ratio, estando o adolescente em
conflito com a Lei, quando da prática de um ato infracional, está ele no alcance do sistema
terciário, sujeito às medidas sócio-educativas253.
Esse modus operandi do Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo como base a
doutrina da proteção integral, se deve ao que se pode chamar de fase garantista do direito da
infância e da juventude, por isso mesmo entendida como uma espécie de direito penal juvenil254.
É o que se tem, sobretudo, com a aplicação das medidas sócio-educativas, de inegável natureza
penal, já que o ato infracional nada mais é do que um ato típico e antijurídico, equivalente a
crime ou contravenção penal (artigo 103 do Estatuto), e, em se tratando de autor ainda
adolescente, deve-se ter muito mais cuidado no respeito às garantias e direitos individuais
próprios do ser humano em formação.
Forçoso, nesse caso, citar a posição doutrinária contrária a este entendimento de se ter
no Estatuto um Direito Penal Juvenil, com a existência, em verdade, de um Direito Infracional,
haja vista que não se poderia falar, para crianças e adolescentes, em punição/retribuição, já que
inimputáveis, tendo a medida de internação um caráter não penal, de viés educativo, ainda que
com a privação da liberdade, buscando-se, como objetivo final, a (re)educação do jovem. Nessa
252 SARAIVA, João Batista Costa. Op. cit. p. 87/88.
253 JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Ato infracional e Deireitos Humanos. Campinas: Servanda, 2014, p.80.
254 JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Op. cit., p. 81/82.
106
linha, Nedel pontua que “os adeptos da vertente minoritária do Direito Infracional afirmam o
caráter autônomo, diferenciado e extrapenal das normas que regem a apuração e julgamento
dos atos infracionais praticados por adolescentes infratores ou em conflito com a lei”255.
A par dessa posição, é inegável a existência, ao menos em tese, de um Direito Penal
Juvenil e, junto a ele, de todo o aparato do garantismo penal, posto que as sanções impostas aos
adolescentes, ainda que inimputáveis, podem interferir, limitar ou suprimir temporariamente o
direito fundamental à liberdade. Isso, sem dúvida, deve ocorrer sob a égide dos princípios
próprios do garantismo penal, tais como o devido processo legal, a legalidade/reserva legal, a
presunção de inocência, a culpabilidade, a intervenção mínima, a proporcionalidade e a
humanidade das penas. É o que esclarece Saraiva:
“Dito tudo isso, há que se afirmar que a discussão da questão infracional na
adolescência está mal focada, com, muitas vezes, desconhecimento de causa.
Ignora-se, por exemplo, que o Estatuto da Criança e do Adolescente instituiu
no país um Direito Penal Juvenil, estabelecendo um sistema de
sancionamento, de caráter pedagógico em sua concepção, mas evidentemente
retributivo em sua forma, articulado sob o fundamento do garantismo penal
e de todos os princípios norteadores do sistema penal enquanto instrumento
de cidadania, fundado nos princípios do Direito Penal Mínimo.”256
Ao se reconhecer no Estatuto da Criança e do Adolescente a natureza jurídica de um
Direito Penal Juvenil, por suas características próprias, não se está, de forma alguma, a afastar
o princípio da proteção integral e, consequentemente, as bases do Garantismo Penal, pois no
Estatuto estão presentes os princípios próprios da proteção especial a que faz jus a população
juvenil, como prevê a Constituição Federal, que, nos casos de aplicação de sanção privativa da
liberdade (artigo 227, § 3º, V, da CF), estabelece os princípios da brevidade, da
excepcionalidade e da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, todos,
indubitavelmente, respeitados na norma em comento.
Portanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente, apesar das críticas existentes à letra
dessa Lei257, representa a formalização do Princípio da Proteção Integral e aplicação do
255 SOUZA, Tatiana Sampaio de. A doutrina da proteção integral e a possibilidade de um direito penal juvenil.
Apud. NEDEL, Christian. Justiça instantânea: uma análise dos mecanismos de integração operacional para o
atendimento inicial de adolescentes em conflito com a lei. 2007. p. 158.
256 SARAIVA, João Batista Costa. Desconstruindo o Mito da Impunidade: Um Ensaio de Direito (Penal)
Juvenil. Brasília: 2002, p. 47.
257 Muitos autores, dentre os quais Ana Paula Motta Costa e Mário Luiz Ramidoff, sustentam que o Estatuto é
vago ao prever os casos de aplicabilidade da medida de internação, abrindo espaço para a adoção de critérios
independentes por parte da justiça especializada.
107
garantismo, caracterizando a posição do ordenamento jurídico brasileiro em relação ao Direito
infanto-juvenil, conforme as normas da Organização das Nações Unidas258.
É diante desse quadro de primazia pela proteção integral das crianças e jovens que a
redução da maioridade penal para 16 (dezesseis) anos representaria a quebra de todo um sistema
garantista, para instaurar um Direito Penal próprio do inimigo, que, como dito, prioriza as
normas de combate e emergenciais, com o fim de atender ao clamor de parte da população.
Vale citar Rangel, que, a guisa de um diagnóstico, aproxima o discurso da redução da idade
penal com as práticas de encarceramento em massa, como forma de controle social:
“E pior: em pleno século XXI, o Estado, por não conseguir resolver seus
problemas de desigualdade social; por falecer competência, nos últimos 500
anos, para dar oportunidade a todos, independentemente da cor da sua pele;
por não ser capaz de colocar os jovens dentro da escola e dar-lhes futuro
digno com mais oportunidades e estudo de qualidade; por não ter como
adequar sua política de segurança pública a uma política de bem-estar social,
não pode, sequer discutir, a diminuição da menor idade penal.”259
E continua:
“Mas não adianta: o discurso é do encarceramento; da punição; do
isolamento do indivíduo indesejado, pernicioso, que não se ajusta em
sociedade e não respeita os padrões da civilização.”260
3.3 ANÁLISE ESTATÍSTICA SOBRE O PERFIL DO “INIMIGO” NO BOJO DO SISTEMA
PENAL BRASILEIRO
Levando em conta o Direito Penal do Inimigo e a noção de inimigo para a doutrina de
Jakobs, o presente tópico pretende analisar de forma crítica os dados estatísticos do último
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN, divulgados pelo
Ministério da Justiça, por meio do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN.
Justifica-se a utilização desta pesquisa por seu caráter oficial, enquanto senso da
população carcerária nacional.
O último INFOPEN, divulgado em 26/04/2016, leva em conta as estatísticas da
população carcerária brasileira até dezembro de 2014, de forma ampla, os dados foram
258 NORMAS DA ONU sobre infância e juventude.
259 RANGEL, Paulo. Op. cit., p. 112.
260 RANGEL, Paulo. Op. cit., p. 113.
108
levantados em toada as Unidades da Federação, envolvendo as mais diversas informações,
porém, para os fins deste artigo científico, nos utilizaremos dos dados identificados na pesquisa
como “PESSOAS NO SISTEMA PRISIONAL E PRISÕES NO BRASIL” 261, mais
especificamente aqueles que constam do “Perfil e situação das pessoas privadas de liberdade
no sistema prisional brasileiro” 262.
Com relação à “natureza dos crimes cometidos pelas pessoas condenadas”, é
interessante notar o que diz o órgão de pesquisa: “O perfil criminal das pessoas privadas de
liberdade pode variar no tempo em função de diversos fatores: mudanças na dinâmica criminal,
alterações na legislação, ênfase maior ou menor do sistema de justiça criminal sobre certos
crimes e criminosos e diversos outros fatores. Assim, mudanças no perfil criminal não refletem,
necessariamente, “tendências criminais”, mas, antes, preferências e práticas do sistema de
justiça criminal. É preciso lembrar também que se trata de um perfil bastante enviesado do
“criminoso”, pois os encarcerados, em geral, apresentam um perfil diferente do criminoso em
geral: eles cometeram crimes mais visíveis e ou mais violentos e passaram pelos filtros do
sistema de justiça criminal. Como é sabido, após as sucessivas etapas – polícia, Ministério
Público e judiciário – sobram os criminosos não brancos, do sexo masculino, mais pobres,
menos escolarizados, com pior acesso a defesa e reincidentes. As pesquisas de crimes auto
reportados (Self Repported Crimes) revelam um perfil menos enviesado dos criminosos e
sugerem a participação maior de mulheres, brancos, mais ricos e escolarizados no universo do
crime. O perfil que podemos obter dos censos penitenciários, desde modo, pode ser tido como
um recorte dos crimes de rua, filtrado pelo sistema de justiça criminal, e obviamente este perfil
seria diferente se os órgãos de controle e a sociedade focassem nos crimes de colarinho branco.
Feitas estas ressalvas, é importante acompanhar como evolui a natureza dos crimes pelos quais
as pessoas estão privadas de liberdade no Brasil, pois isto diz diretamente com o que nossa
sociedade, neste momento, reputa como crime e criminoso” 263.
A aproximação com o Direito Penal do Inimigo fica evidente nas palavras do
pesquisador, haja vista a seletividade do sistema de justiça criminal, que tem por “preferência”
261 BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias. INFOPEN – Dezembro 2014. Brasília, DF, 26 abr. 2016, p. 18. Disponível em <
http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf >. Acesso em: 23 set. 2016.
262 Idem, p. 27.
263 BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias. INFOPEN – Dezembro 2014. Brasília, DF, 26 abr. 2016, p. 32. Disponível em <
http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf >. Acesso em: 23 set. 2016.
109
o encarceramento dos “não brancos, do sexo masculino, mais pobres, menos escolarizados, com
pior acesso a defesa e reincidentes” 264. Vejamos, então, o que nos dizem os dados referentes
às sentenças condenatórias no Brasil:
Figura 1 - Distribuição das sentenças de pessoas presas no Brasil
Fonte: INFOPEN, dez. 2014, p. 33
Importante destacar que, segundo o órgão pesquisador, as sentenças condenatórias para
os crimes de roubo e tráfico de entorpecentes respondem por mais de 50% das pessoas
condenadas265, mais especificamente, conforme o gráfico acima, os crimes contra o patrimônio
somados aos crimes da lei de drogas representam um total de 74% dos ilícitos cometidos pelos
condenados.
Quanto à raça ou cor das pessoas presas, apesar de a pesquisa apontar para uma
desproporção ocasionada pelas características raciais das pessoas em cada Unidade da
Federação, este trabalho considerará apenas os dados unificados do país, na forma que segue:
264 Idem, p. 32.
265 BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias. INFOPEN – Dezembro 2014. Brasília, DF, 26 abr. 2016, p. 33. Disponível em <
http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf >. Acesso em: 23 set. 2016.
110
Figura 2 - Percentual da população por raça e cor no sistema prisional e na população
Fonte: INFOPEN, dez. 2014, p. 36.
Devemos notar que o pesquisador faz um comparativo com as características raciais da
população brasileira em geral, abrindo margem para divergências, posto que na pesquisa
nacional de raça/cor do Instituto Nacional de Geografia e Estatística – IBGE (Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios - PNAD) o entrevistado autodeclara a sua cor, enquanto que os
questionários das prisões são respondidos pelos gestores das unidades. Porém, como já se
afirmou anteriormente, para este trabalho científico o mais importante é saber a relação de
raça/cor no interior das unidades prisionais, onde negros/pretos e pardos respondem por 61,67%
das pessoas condenadas.
Em se tratando do sexo das pessoas presas, a pesquisa faz um comparativo entre homens
e mulheres presos por Unidade da Federação, contudo o mais importante é destacar que “a
participação de mulheres na população prisional brasileira é, em geral, pouco significativa. A
média brasileira é 5,8% de mulheres presas para 94,2% de homens” 266.
266 BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias. INFOPEN – Dezembro 2014. Brasília, DF, 26 abr. 2016, p. 39. Disponível em <
http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf >. Acesso em: 23 set. 2016.
111
Um dos dados mais relevantes para esta pesquisa, que foram levantados pelo INFOPEN,
dizem respeito à faixa etária das pessoas presas, onde também se achou por bem realizar um
comparativo com a faixa etária de toda a população brasileira, conforme figura 3 abaixo:
Figura 3 - Distribuição por faixa etária no sistema prisional e na população
Fonte: INFOPEN, dez. 2014, p. 42.
O que se nota, em se falando da faixa etária da população carcerária brasileira, é que se
trata de pessoas jovens, em sua maioria com idade entre 18 a 29 anos, já que esse índice chega
a 55,08% do total dos condenados, sendo que 30,12% são jovens de 18 a 24 anos.
Os últimos dados relativos ao perfil da população carcerária pesquisados pelo INFOPEN
são aqueles ligados ao grau de escolaridade das pessoas presas, que foram colhidos na forma
do gráfico a seguir:
112
Figura 4 – Grau de instrução da população prisional
Fonte: INFOPEN, dez. 2014, p. 46.
Para melhor interpretar os dados acima, o pesquisador nos informa que “pessoas
analfabetas mais aquelas que têm até o ensino fundamental completo representam 75,08% da
população prisional, contra 24,92% de pessoas com ensino médio completo ou incompleto,
ensino superior completo ou incompleto e acima de ensino superior incompleto” 267.
Adotando as premissas do Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs, em que medidas
são tomadas no interior do Direito Penal para afastar as pessoas que não apresentam a segurança
cognitiva para o convívio social, pessoas que, por isso mesmo, não podem ser consideradas
como “pessoas reais”, mas como inimigos, para os quais o sistema criminal cria normas
específicas que tendem a ser mais duras, afastando-os por princípio e como medida de
segurança. É por isso que Jakobs considera a pena como uma custódia de segurança antecipada,
onde o objetivo é a mera proteção contra o agente (criminoso), “seja através de uma custódia
de segurança legitimada como tal, seja por meio de uma pena privativa de liberdade que garanta
uma proteção, i. e., proporcionalmente longa” 268.
267 BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias. INFOPEN – Dezembro 2014. Brasília, DF, 26 abr. 2016, p. 46. Disponível em <
http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf >. Acesso em: 23 set. 2016.
268 JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 61.
113
Percebe-se que a finalidade da pena privativa de liberdade no caso do Direito Penal do
Inimigo é completamente diferente da função normal atribuída por Jakobs (prevenção geral
positiva). Nesse caso o inimigo “é remotamente interceptado no campo preliminar e combatido
por sua periculosidade” 269. Daí surge uma das principais reflexões deste trabalho: os dados do
INFOPEN, que apontam para uma seletividade do sistema de justiça criminal brasileiro por
indivíduos “de 18 a 29 anos, não brancos, do sexo masculino, mais pobres, menos
escolarizados, com pior acesso a defesa e reincidentes” 270, podem induzir à conclusão de que
a pena para esse grupo de indivíduos possui o caráter de uma custódia de segurança antecipada.
O certo é que os dados do INFOPEN apontam para algo que Jakobs tanto combate em
sua obra: “a introdução, no Direito Penal geral, de uma quantidade que vem se tornando
praticamente incalculável de variantes e partículas de Direito Penal do Inimigo”, o que, e ele
continua, “é um mal do ponto de vista do Estado de Direito” 271.
A análise de tais dados estatísticos deixa claro que a proposta de emenda à Constituição
tendente a reduzir a maioridade penal está de acordo com as atuais práticas do sistema penal
brasileiro, que tem preferência por jovens, do sexo masculino, sem escolaridade e de raça negra
ou parda. É por essa razão que podemos concluir não haver coincidência na proposta.
Por outro lado, e como já se demonstrou neste trabalho, dados do ano de 2015 do
Ministério Público de São Paulo indicam que no caso da aprovação da proposta de emenda à
constituição que visa reduzir a idade penal, os adolescentes entre 16 e 18 anos que se tornariam
imputáveis representariam apenas 0,32% dos criminosos totais. Em outras palavras, de cada
1.000 (um mil) delitos praticados da natureza dos previstos na proposta, em média somente três
são praticados por adolescentes272.
Sobre a seletividade do sistema penal e a redução da idade penal, aproximando o
processo das práticas próprias de um direito penal do inimigo, Rangel aduz que:
269 JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 14.
270 BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias. INFOPEN – Dezembro 2014. Brasília, DF, 26 abr. 2016, p. 32. Disponível em <
http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf >. Acesso em: 23 set. 2016.
271 JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 17.
272 Dados disponíveis e analisados em: < http://www.tijolaco.com.br/blog/crimes-hediondos-de-menor-de-16-a-
18-anos-sao-3-em-mil-delitos-a-gota-no-mar-da-hipocrisia/> ; < http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,7-
em-cada-10-atos-infracionais-em-sp-envolvem-adolescentes-de-16-a-18-anos,1704774>; e <
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/noticias/noticia?id_noticia=13583640&id_grupo=118>.
114
“A diminuição da menor idade penal nada mais é do que adoção de um
processo ideológico de desumanização e inferiorização do outro, por meio de
uma política racista, demagógica e eleitoreira.
O que se faz por meio desse discurso fascista é associar, silenciosamente o
perigo à cor; ou seja, diz Adorno: se é negro, é mais perigoso; se é branco,
talvez não seja tão perigoso.”273
Ressalvado o discurso um tanto quanto agressivo do autor, não se pode negar o fator
empírico das suas afirmações, haja vista a clareza dos dados estatísticos analisados na pesquisa
do INFOPEN, que foram objeto deste trabalho.
3.4 REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E (RE)INSERÇÃO SOCIAL
De início, cabe informar que a utilização da expressão ressocialização, ou reinserção
social, ou reintegração social, ou outra assemelhada, é de uso regular na dogmática penal e
objetiva transmitir a idéia de que aquele que cometeu uma infração penal encontra-se afastado
da sociedade, devendo ser reinserido através do cumprimento da pena. Ocorre que, por um viés
crítico, o uso desse tipo de expressão (precedidia do “re”) é incorreto, pois do ponto de vista
cognitivo (no mesmo sentido utilizado por Jakobs) o sujeito que está sendo alvo do sistema de
persecução penal nunca participou dessa “sociedade formal”, sendo impossível a tentativa de
se reinserir alguém que na verdade nunca esteve inserido em uma vida social, no sentido de ter
acesso aos serviços de saúde, educação, mercado de trabalho formal e etc274.
Dessa maneira, o cumprimento de pena visaria uma verdadeira socialização do
indivíduo e não a ressocialização, ou a sua inserção na vida em sociedade, não a reinserção
social, já que nela nunca esteve inserido.
Ao longo desta pesquisa, procurou-se desmonstrar que a redução da maioridade penal
pode indicar a introdução de elementos próprios de um Direito Penal do inimigo no
ordenamento jurídico brasileiro, já que afastaria para os jovens de dezesseis a dezoito anos todo
o aparato das garantias constitucionais aplicáveis à criança e ao adolescente. Nesse contexto, e
diante da realidade carcerária do Brasil atualmente, propõe-se a reflexão que diz respeito ao
alcance da função preventiva especial positiva da pena privativa de liberdade – cujo objetivo
precípuo é inserir ou readequar o sujeito ao convívio em sociedade –, como aquela função a ser
273 RANGEL, Paulo. Op. cit., p. 112
274 JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Op. cit., p. 474.
115
idealmente alcançada em nosso sistema de execução penal, sobretudo no trato da criança e do
adolescente.
Vimos que a Constituição, no trato dos jovens, estabeleceu o princípio da prioridade
absoluta em seu art. 227, bem como, no parágrafo 3º inciso V do mesmo dispositivo, fixou os
princípios da brevidade, da excepcionalidade e da condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento nos casos de aplicação de sanção privativa da liberdade. Sabedores de que o
princípio da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento garante a prevalência do
conteúdo pedagógico da pena, visando tão somente à socialização e educação do jovem em
conflito com a lei.
Falando de ressocialização, e assumindo-se a aprovação da medida de redução da idade
penal, cabe esclarecer que a Lei de Execução Penal brasileira estabelece em seu art. 1º a
finalidade de integração social da pena privativa de liberdade, seja para a figura do condenado
ou do internado. Trata-se de um “princípio orientador vinculante na fixação e execução da
pena, como consectário da própria humanidade das penas, visto que a dessocialização ou
impedir a livre e produtiva construção do sujeito quando do término de sua pena e de seu
retorno ao meio social seria algo desumano”275.
O ideal ressocializador encontra-se inserido no interior das teorias relativas ou
preventivas da pena, na qual a pena, para ser legítima, deve ter um objetivo futuro, que seria
justamente o de diminuir a criminalidade e colaborar com a perpetuação da vida em
sociedade276. As teorias preventivas dividem-se em especiais e gerais. As gerais dirigem-se a
toda a sociedade através da intimidação ou reafirmação do direito perante seus membros, e as
especiais concentram-se exclusivamente no delinquente, objetivando que ele não volta a
transgredir normas criminais, seja pela sua reeducação ou ressocialização ou por sua segregação
do meio social277.
Por óbvio, a ressocialização encontra grandes dificuldades de materialização prática,
como informa Bitencourt:
“Um dos grandes obstáculos à ideia ressocializadora é a dificuldade de
colocá-la efetivamente em prática. Parte-se da suposição de que, por meio do
275 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; VANZOLINI, Patrícia. Op. cit., p. 482-483.
276 Idem, p. 417.
277 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da Pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
P. 137.
116
tratamento penitenciário – entendido como um conjunto de atividades
direigidas à reeducação e reinserção social dos apenados –, o interno
converterá em uma pessoa respeitedora da lei penal. E, mais, por causa do
tratamento, surgirão nele atitudes de respeito a si próprio e de
responsabilidade individual e social em relação à sua família, ao próximo e
à sociedade. Na verdade, a afirmação referida não passa de uma carta de
intenções, pois não se pode pretender, em hipótese alguma, reeducar ou
ressocializar uma pessoa para a liberdade em condições de não liberdade,
constituindo isso verdadeiro paradoxo.”278
É essa clara dificuldade do sistema penal brasileiro em alcançar o ideal ressocializador
que faz sobressair a função do Estatuto da Criança e do Adolescente enquanto instrumento
adequado para o trato com o jovem infrator, dentro da realidade social que vivemos hoje, haja
vista que tal norma de controle dos atos infracionais foi desenvolvida de modo a confortar os
princípios constitucionais aplicáveis à criança e ao adolescente, além de estar de acordo com as
normas das Nações Unidas para o trato com esse tipo de indivíduo. É exatamente por isso que
o art. 6º do Estatuto apresenta a seguinte redação:
“Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se
dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e
coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento.”
Aparentemente, a exposição do jovem a um sistema penal como o brasileiro afastaria
cada vez mais a possibilidade de alcance do princípio da inserção social, posto que hoje, mesmo
existindo um instrumento próprio para esse fim, o ideal ressocializador se apresenta cada vez
mais como um paradoxo do que como uma realidade. Vejamos o posicionamento de Saraiva
sobre o tema:
“A crise no sistema de atendimento a adolescentes infratores privados de
liberdade no Brasil só não é maior que a crise do sistema penitenciário, para
onde se pretende transferir os jovens infratores de menos de dezoito anos.
Essa crise, do sistema dos adolescentes, se agudiza quando os arautos do
catastrofismo, sob argumentos os mais variados, até mesmo de defesa dos
direitos humanos, deixam de demonstrar uma série de experiências notáveis
que se desenvolvem nesta área no País, passando uma falsa idéia de
inviabilidade do sistema, que tem, quer se goste, quer não se goste, um efetivo
perfil prisional em certo aspecto, pois é inegável que do ponto de vista
objetivo, a privação de liberdade do internamento faz-se tão ou mais aflitivo;
em face ao usuário a que se destina, que a pena de prisão do sistema penal
adulto.”279
278 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 5. Ed. São Paulo: Saraiva,
2017, p. 161-162
279 SARAIVA, João Batista Costa. Não à redução da idade penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.
16. N. 71. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 50-69.
117
Por fim, é importante tratar da crítica de Roxin280 à finalidade ressocializadora, no
sentido de que a ideia da ressocialização não deve justificar todo o sistema penal, de forma a
levar a um abandono das etapas precedentes, para as quais pode não ser eficaz. Nesse sentido,
“os esforços de ressocialização apenas são legítimos e bem sucedidos sob todos os aspectos no
sentido descrito, dentro dos limites que atrás cuidadosamente traçamos”. E ele mesmo
esclarece:
“Tal significa que não é lícito ressocializar com a ajuda de sanções jurídico-
penais pessoas que não são culpadas de agressões insuportáveis contra a
ordem dos bens jurídicos, por mais degeneradas e inadaptadas que sejam
essas pessoas. Caso este ponto de vista seja ignorado, estaremos sob a
ameaça do perigo de uma associação coletivista que oprime o livre
desenvolvimento da personalidade.”281
Para o autor, então, é preciso respeitar a garantia constitucional da autonomia da pessoa
mesmo na execução da pena. Sabe-se, contudo, que Roxin não quer deixar de lado a função de
integração social da pena, ele apenas defende que ela deve estar acompanhada de outras
finalidades, como veremos mais adiante.
3.4.1 Análise sobre os fins da pena privativa de liberdade no sistema de execução penal
brasileiro
A redução da idade penal, por uma visão garantista do Direito Penal, suscita diversas
preocupações, e, talvez, a principal delas, como visto anteriormente, diz respeito à efetiva
inserção social de jovens infratores, já que é a finalidade pedagógica da medida de internação
que hoje vigora em nosso ordenamento. É por isso que, assumindo-se o risco de aprovação da
proposta de redução, juntamente com todas as consequências a ela associadas, devemos ter o
claro conhecimento sobre as finalidades da pena privativa de liberdade no sistema de execução
penal brasileiro.
Não se pode tratar de (re)inserção social sem, contudo, abordar o tema afeito aos fins da
pena privativa de liberdade, mesmo que se saiba que a medida socioeducativa de internação
não tem a mesma natureza jurídica da pena de prisão, o estudo é importante para o regular
280 ROXIN, Claus. Problemas funadmentais de direito penal. 3. Ed. Tradução Ana Paulo dos Santos e Luis
Natscheradetz. Lisboa: Vega, 2004, p. 40-41.
281 ROXIN, Claus. ROXIN, Claus. Problemas funadmentais de direito penal. 3. Ed. Tradução Ana Paulo dos Santos
e Luis Natscheradetz. Lisboa: Vega, 2004, p. 41.
118
desenvolvimento dessa pesquisa e para as conclusões a que se pretende chegar, no que diz
respeito à proposta de redução da idade penal.
É sabido que, corriqueiramente, os estudos sobre as finalidades da pena classificam suas
teorias em absolutas, relativas ou mistas, as quais podem ser divididas em dois grandes grupos,
o das absolutas ou de retribuição, e o das preventivas. As primeiras carecem de qualquer fim
utilitário voltado para o futuro, enquanto que as segundas visam impedir a prática de futuras
infrações, seja intimidando-se a sociedade, seja intimidando-se o autor da prática delitiva.
Em se tratando das teorias absolutas, a pena tem a função apenas de retribuição, no
sentido de compensar o mal do crime. Já para as preventivas, nas quais se incluem as relativas
e as mistas, temos, em um primeiro momento, a função já destacada de prevenir novos crimes
e, de outro modo, além da prevenção, nas teorias mistas, busca-se também a retribuição do mal
do crime282.
Tradicionalmente são destacados Kant e Hegel como os principais representatantes das
teorias absolutas da pena, contudo, enquanto Kant busca uma fundamentação ética para a sua
teoria, Hegel baseia-se na ordem jurídica. É que Kant trabalha sua concepção retributiva da
pena sobre a ideia de que a lei penal é um imperativo categórico. Segundo Bitencourt:
“De acordo com as reflexões kantianas, quem não cumpre as disposições
legais não é digno do direito de cidadania. Nesses termos, é obrigação do
soberano castigar “impiedosamente” aquele que transgrediu a lei. Kant
entendia esta como imperativo categórico, isto é, como aquele mandamento
que “representasse uma ação em si mesma, sem referência a nenhum outro
fim, como objetivamente necessária””.283
Em suma, para Kant “aquele que pratica um mal deve receber um mal por um imperativo
de justiça, e a necessidade de justiça se confunde com a própria racionalidade humana”284.
A retribuição jurídica de Hegel resume-se da seguinte forma: “a pena é a negação da
negação do Direito”285. A sua visão mais jurídica do que a kantiana justifica-se pela necessidade
de se restabelecer a vigência da vontade geral, simbolizada na ordem jurídica e que foi negada
pela vontade do delinquente. Nesse sentido, Junqueira e Vanzolini:
282JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; VANZOLINI, Patrícia. Op. cit., p. 467.
283 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 133-134.
284 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; VANZOLINI, Patrícia. Op. cit., p. 468.
285 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 137.
119
“Partindo do método dialético, o crime seria a antítese da ordem jurídica, e
a pena, instrumento para que a síntese seja a continuação da referida ordem.
Quando alguém pratica um crime, propõe uma nova ordem em que sua ação
seria permitida. Essa nova ordem se opõe à ordem tradicional e é anulada
por meio da pena, que impõe a continuidade da antiga ordem, vindo inclusive
a reforça-la.”286
Um dos principais críticos das teorias retributivas é Roxin. Para ele, esse tipo de teoria,
que chama também de expiação, “não nos serve, porque deixa na obscuridade os pressupostos
da punibilidade, porque não estão comprovados seus fundamentos e porque, como profissão de
fé irracional e além do mais contestável, não é vinculante”287. Por isso mesmo, é Roxin defensor
de uma “teoria unificadora dialética”288, que, em verdade consiste em uma posição mista ou
eclética, reconhecendo-se na pena mais de uma finalidade, sendo que uma dessas finalidades é
limitada por outra. Junqueira e Vanzolini assim definem a proposta de Roxin:
“Tendo como exemplo a proposta de Roxin, é possível justificar a pena a
partir de propostas de prevenção geral e especial positivas, mas o limite
máximo da pena será inspirado em proposta retributiva vinculada à
culpabilidade, sendo que a finalidade de reinserção social poderá alterar
minimamente a pena, desde que respeitado o limite mínimo da necessidade e
o máximo da culpabilidade.”289
A propósito, a teoria da pena defendida por Roxin encontra-se inserida no rol das teorias
ecléticas ou mistas, que juntamente com as teorias relativas formam o grupo das teorias
preventivas. As teorias relativas dividem-se em prevenção geral e especial, dirigindo-se,
respectivamente, à coletividade e à pessoa do condenado.
De acordo com a exposição anterior sobre a questão da (re)inserção social, as teorias
relativas ou preventivas da pena surgem como forma de diminuir e prevenir a criminalidade,
para as quais a pena, para ser legítima, deve ter um objetivo futuro, que seria justamente o de
diminuir a criminalidade e colaborar com a perpetuação da vida em sociedade290. As teorias
preventivas dividem-se em especiais e gerais. As gerais dirigem-se a toda a sociedade através
da intimidação ou reafirmação do direito perante seus membros, e as especiais estão focadas
286 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; VANZOLINI, Patrícia. Op. cit., p. 469.
287 ROXIN, Claus. Problemas funadmentais de direito penal. 3. Ed. Tradução Ana Paulo dos Santos e Luis
Natscheradetz. Lisboa: Vega, 2004, p. 19.
288 Idem, p. 44.
289 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; VANZOLINI, Patrícia. Op. cit., p. 478.
290 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; VANZOLINI, Patrícia. Op. cit., p. 417.
120
exclusivamente no delinquente, objetivando que ele não volta a transgredir normas criminais,
seja pela sua reeducação ou ressocialização ou por sua segregação do meio social291.
Para Duek Marques292, a pena como retribuição pura afasta do âmbito punitivo as
conquistas científicas relativas aos estudos do comportamento humano, afastando o Direito
Penal de outras práticas cientificamente fundamentadas, de modo que a prevenção especial pela
reintegração social na fase de execução penal é a única humanização conservada ao delinquente.
No Brasil, entende-se pelo art. 59 do Código Penal e pela Lei da Execução Penal
brasileira (LEP) que é adotada a teoria mista, ou seja, a pena tem como objetivo retribuir o mal
do crime e também prevenir a prática de novos crimes (seja através da prevenção geral ou
especial, positiva ou negativa).
Mediante a leitura da própria Convenção Americana de Direitos Humanos, se confirma
essa interpretação sobre as funções da pena privativa de liberdade para os Estados membros da
OEA, da qual o Brasil faz parte. É que o artigo 5º, item 6, do Pacto de São José da Costa Rica,
prevê a ressocialização como função primordial das penas privativas de liberdade, o que foi
incorporado de forma supralegal pela ordenação brasileira.
O Artigo 10 da Lei de Execução Penal dispõe que “a assistência ao preso e ao internado
como dever do Estado objetiva prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em
sociedade, estendendo-se esta ao egresso”.
Para Duek Marques e Junqueira293, se considerados os princípios constitucionais
relacionados à aplicação da pena e o vetor dignidade da pessoa humana, como fundamentos da
Constituição, em consonância com a lei penal brasileira, conclui-se que a finalidade da
aplicação da pena no Brasil é a afeita à prevenção geral positiva, tendo como limetes a própria
dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição.
A função preventiva especial positiva da pena, que destacamos nesse trabalho, tem sua
eficácia empírica no projeto de ressocialização, sendo avaliada a partir do dado da reincidência
no sistema carcerário nacional. Entre os especialistas e estudiosos do assunto, predomina a
291 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da Pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
Pág. 137.
292 Idem, pg. 161.
293 DUEK MARQUES, Oswaldo Henrique; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Os fins da pena no Código
Penal Brasileiro. In Boletim do IBCCrim. N. 167. São Paulo, 2006.
121
opinião sobre a incapacidade da prisão brasileira na ressocialização do condenado, para o que
remetemos o leitor ao intem anterior desta pesquisa.
Ainda no tema afeito aos fins da pena, é relevante para essa pesquisa abordar a visão
puramente racional de Nietzsche, como forma de estabelecer um ideal mais realista e menos
romântica da questão. Duek Marques294 analisa com propriedade o tema, e apresenta duas
importantes distinções para o castigo nos escritos de Nietzsche: em primeiro lugar, “o que é
relativamente duradouro nele, o uso, o ato, o “drama”, uma certa sequência rigorosa de
proceduras”, em segundo lugar, “o que é fluido nele, o sentido, o fim, a expectativa que se
vincula à execução de tais proceduras”, destacando que os procedimentos relacionados à
aplicação do castigo são mais antigos do que a sua finalidade, ou utilidade, que foi apresentada
posteriormente na história da humanidade como forma de interpretação.
Para Nietzsche o castigo possui algumas finalidades, sendo: a) para impedir novo dano;
b) como indenização do dano; c) como intimidação aos que determinam ou executam o castigo;
d) como segregação de um indivíduo degenerante; e) para quitação das vantagens auferidas
pelo autor; f) como escarnecimento do inimigo abatido; g) como um fazer memória, com o fim
de aprendizado para o autor e para as testemunhas da execução; e h) como declaração de guerra
contra o inimigo295.
Como se percebe, a reflexão de Nietzsche é bastante ampla no que se refere às finalidade
do castigo, estando ai abarcados traços das teorias mais modernas que buscam explicar a função
da pena. É nesse mesmo sentido a ideia de vingança em seus estudos, dos quais se podem extrair
duas espécies: a vigança que objetiva a autoconservação e a vigança restaurativa. A primeira
tem o condão de neutralizar uma agressão iminente e a segunda objetiva a demonstração da
ausência de medo, com o fim de restaurar a honra atingida296.
O homem integrante de uma sociedade, conforme a ideia do contrato social, quando
busca a aplicação de uma pena está, na verdade, buscando a vingança dessa sociedade, de modo
a restaurar-se a honra privada e a honra social. É por isso que para Nietzsche a pena é vingança,
vez que a sanção penal também teria o objetivo de autoconservação da sociedade, como uma
294 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Os fins da pena: reflexões a partir da análise de vingança e do castigo
em Nietzsche. In Nietzsche, coleção Guias da Filosofia. Vol. II. São Paulo: Escala, p. 44-48.
295 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Os fins da pena: reflexões a partir da análise de vingança e do castigo
em Nietzsche. In Nietzsche, coleção Guias da Filosofia. Vol. II. São Paulo: Escala, p. 44-48.
296 Idem.
122
legítima defesa para evitar um novo dano, através da intimidação. Essa confusão de conceitos
da pena, causada pelos diferentes tipos de vingança que ela carrega, faz com que a pena esteja,
verdadeiramente, desprovida de motivação, já que se desconhece o que se pretende, por isso
mesmo, tratar-se de mera vingança297.
3.4.2 Eficácia da medida de internação adotada pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente
Seguindo a sistemática do Estatuto da Criança e do Adolescente, temos como a mais
drástica das medidas socioeducativas ali previstas, a de internação, que somente deve ser
aplicada na presença das circunstâncias previstas no art. 122, sendo: a) tratar-se de ato
infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; por reiteração no
cometimento de outras infrações graves; e, por descumprimento reiterado e injustificável da
medida outrora imposta.
A internação, portanto, assume o caráter de ultima ratio, somente podendo ser aplicada
nas hipóteses supracitadas. Trata-se do fiel cumprimento ao princípio da excepcionalidade da
medida de privação da liberdade, previsto na Constituição.
Nesse sentido, o Estatuto é ainda mais explícito, ao estabelecer no parágrafo 2º do art.
122 que “em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada”.
Além disso, o art. 123 do Estatuto, e seu parágrafo único, apontam para a necessidade
de cumprimento da medida de internação em estabelecimento exclusivo, de acordo com a
natureza do delito, a idade e o sexo do adolescente. Ainda, fica fixada a obrigatoriedade de se
proporcionar atividades pedagógicas aos jovens.
A par das regras legais para execução e cumprimento da medida de internação, sabe-se
que a realidade prática é um tanto quanto diferente dos preceitos legais, fazendo com que a
medida de internação assuma as características da pena privativa de liberdade, mesmo que suas
naturezas jurídicas sejam distintas. É nesse sentido a fala de Junqueira:
“Medida socioeducativa não é pena, no aparente teor da lei. Se ao adulto já
se questiona sobre a real efetividade do cumprimento de uma prisão,
analisada quão um mal necessário, com não menos razão assistem os
adolescentes ora privados da sua liberdade. Concretamente, acreditamos,
297 Idem.
123
tem sido pena, tornando imperceptível uma maior diferenciação, eis a grande
verdade. Há práticas, por assim dizer, “menos piores”, se é que, desta
maneira, podemos situá-las, as quais, sem embargo, não se encontram
atreladas, por completo, ao que propugnado na Constituição e no ECA,
embebidas da situação irregular, compartilhando inúmeras de suas
nuances.”298
Mesmo assim, retornamos à conclusão exposta no tópico anterior, referente à integração
social, no sentido de que de que a grande vantagem e a maior eficácia da medida de internação,
em comparação com a pena privativa de liberdade, reside na questão do sistema penitenciário.
A exposição de adolescentes ao sistema penitenciário brasileiro seria extremamente prejudical
para o desenvolvimento desses indivíduos. É essa a opinião de Saraiva:
“A propósito dessa medida privativa de liberdade - internação na linguagem
da lei -, o que a distingue fundamentalmente da pena imposta ao maior de l8
anos é que, enquanto aquela é cumprida no sistema penitenciário - que todos
sabem o que é, nada mais fazendo além do encarcerar - onde se misturam
criminosos de toda espécie e graus de comprometimento - aquela há que ser
cumprida em um estabelecimento próprio para adolescentes infratores, que
se propõe a oferecer educação escolar, profissionalização, dentro de uma
proposta de atendimento pedagógico e psicoterápico, adequados a sua
condição de pessoa em peculiar estágio de desenvolvimento.
Se o sistema de privação de liberdade de adolescentes no Brasil é deficitário,
o certo é que, apesar disso, não há cotejo com o atual sistema carcerário que
o País ostenta.”299
Por fim, Saraiva300 deixa claro que cabe somente ao programa de execução da medida
socioeducativa, seja de internação ou não, a persecução da “finalidade pedagógica a que se
propõe”.
3.4.3 Direito Penal simbólico
É sabido que um dos principais fatores para a crescente discussão em torno da medida
e para a manutenção de propostas que objetivam a redução da maioridade penal reside na
“opinião popular” e no apoio massivo da mídia em geral, que procuram destacar as infrações
mais graves cometidas por jovens e adolescentes. Daí a necessidade de conhecimento mais
aprofundado sobre os conceitos de um intitulado Direito Penal simbólico, cujo principal
298 JUNQUEIRA. Ivan de Carvalho. Ato infracional e direitos humanos: a internação de adolescentes em conflito
com a lei. Campinas: Servanda, 2014, p. 128.
299 SARAIVA, João Batista Costa. Não à redução da idade penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.
16. N. 71. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 50-69.
300 Idem, ibidem.
124
objetivo é a manutenção dos valores mais tradicionais de uma determinada sociedade,
perpetuando-se assim uma sensação de segurança que se justifica justamente por esses valores,
que, em tese, seriam os mais racionais e mais aceitos por uma pretensa maioria.
Esta pesquisa, em capítulo anterior, ao expor a teoria de Jakobs, demonstrou que do
ponto de vista criminológico o Direio Penal do inimigo está inserido no contexto de um Direito
Penal simbólico, para o qual prevalece a prevenção geral da pena em suas versões positiva e
negativa.
Cabe aqui esclarecer que, conforme alerta realizado por Anitua301, Jakobs chega a um
resultado diferente para a finalidade da pena, no bojo da sua teoria, já que a esta caberia
confirmar a configuração da sociedade – o que, em tese, não se aplicaria ao inimigo. Nesse
caso, na sua versão da prevenção positiva, a pena tem a missão de se dirigir às pessoas ou aos
cidadãos e de confirmar a sua confiança na norma, como um esquema orientador para o seu
papel na personalidade. A pena assume, assim, o papel de mais um mecanismo comunicativo
na sociedade, sob o pretexto de, caso assim não o seja, verificarem-se desvios cada vez mais
graves.
O que acontece é que a pena, dessa forma, passa a legitimar todo o sistema, contribuindo
para o “o universo repressivo que tem caracterizado a modernidade”302. Assim, para o autor, há
uma contribuição da teoria de Jakobs para as políticas penais atuais, que trazem em si uma
função simbólica de impor valores morais tradicionais, como segue, ipsis literis:
“As políticas criminais implementadas pelos vários governos atuais têm uma
função simbólica declarada de impor valores morais tradicionais. Para isso,
é utilizada a ferramenta tradicional de, ao mesmo tempo, reprimir e construir
subjetividades. Mas é possível perceber que a punição não é apenas um
"meio", porque em si mesma tem as condições de reprodução de uma
organização social hierarquizada e baseada na exclusão. É neste ponto, e em
atenção aos resultados históricos das sociedades modernas, que não há
espaço para uma análise "interna", se devendo criticar politicamente essa
fundamentação do castigo, que, segundo alguns autores, tem a vantagem de
não ser falso.”303(tradução livre)
301 ANITUA, Gabriel Ignacio. Op. cit.,p. 500.
302 Idem, p. 501.
303 “Las políticas penales que implementan los diversos gobiernos actuales tienen una función simbólica declarada
de imponer los valores morales tradicionales. Para ello se utiliza la herramienta tradicional de reprimir y construir,
a la vez, subjetividades. Pero es posible percibir que lo punitivo no es sólo un "medio", pues en sí mismo tiene las
condiciones de reproducción de una organización social jerarquizada y basada en la exclusión. Es en ese punto, y
en atención a los resultados históricos de las sociedades modernas, que no cabe el análisis "interno" y se debe
125
Ou seja, essas “campanhas simbólicas de lei e ordem”304 justificam-se para a
manutenção de determinados valores, que não seriam viáveis em momentos de mudança, já que
tais valores não poderiam ser impostos se eles pertencessem apenas a uma pequena parte da
população, por mais poderosa que fosse. “Pelo menos não com o único recurso da punição”.
Segundo Anitua305, o grande dilema das sociedades atuais gira em torno do valor da
"comunidade", numa eterna vontade de mantê-lo, ao invés de se proporem debates sobre o novo
senso de comunidade e identidade, baseados no individualismo, na diversidade e na
desconstrução dos valores aceitos. Ocorre que, “os poderes do Estado tentam transformar a
história sobre esses valores "tradicionais" através de um aumento da violência punitiva”.
O resultado é o diverso do esperado, gera-se mais violência e não mais compreensão.
Essa violência resulta da imposição desses valores "poderosos" e, também, por parte daqueles
que se definem ou se identificam com valores diferentes, ao menos em parte, além, obviamente,
da violência ocasionada pela exclusão daqueles que não participam dessa nova identidade.
No entanto, como as críticas acima se dirigem à teoria de Jakobs, cabe o esclarecimento
de que para o inimigo, que não é cidadão, não se deve falar em pena, pois inexistente, para ele,
o Estado de Direito, cabendo-lhe, tão-somente, uma medida de exceção ou de emergência. Que
é exatamente o que o Garantismo de Ferrajoli procura combater: a emergência para justificar o
combate de certos atos tidos por ilícitos, deixando-se de lado as garantias fundamentais da
pessoa humana.
Moraes reconhece que o modelo de Jakobs detém as características próprias de um
direito penal simbólico, ao esclarecer que:
“É inquestionável que a resposta demagógica de políticos do mundo todo à
onda de criminalidade por meio de edição de legislações irracionais retrata
o caráter meramente simbólico que vem se atribuindo ao Direito Penal. Tal
característica não é, logicamente, exclusiva do modelo preconizado por
JAKOBS.” 306
Essa característa, destaca o autor, é evidenciada pelo uso dos meios midiáticos, que
contribuem para um discurso de insegurança quando fazem propaganda massiva de fatos
criticar políticamente a esa fundamentación del castigo, que según algunos autores tiene la ventaja de no poder ser
falseable”. Idem, Ibidem.
304 ANITUA, Gabriel Ignacio. Op. cit.,p. 501.
305 Idem, ibidem.
306 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Op. cit., p. 218.
126
atemorizantes, provocando na população um “verdadeiro estado de pânico, do qual se
aproveitam os movimentos políticos, geralmente autoritários, para se apresentarem como
possuidores de fórmulas infalíveis contra a onda criminosa que afirmam existir”.307 Rangel bem
ilustra esse fato:
“É a adoção do Direito Penal de emergência em que o Congresso Nacional
se move motivado por crimes ou tragédias que chocam a sociedade e traz
grande repercussão midiática, exigindo das autoridades, naquele momento,
que algo seja feito. É como imaginar que a lei nova irá, milagrosamente,
inibir ou diminuir a violência de um dia para o outro.”308
E segundo Busato309, é exatamente o que acontece com o tema da redução da maioridade
penal, que ganha impulso midiático e sensacionalista, por exemplo, pelos casos concretos de
homicídios praticados por menores de idade, mas cuja opinião, em sua óptica, não deve ser
levada em consideração, sob pena de piora das condições sociais dos envolvidos e agravamento
do problema, pois apenas possibilitaria a exposição de mais pessoas aos “nefastos e degradantes
efeitos da intervenção do sistema penal”.
Assim, repise-se Zaffaroni e Batista, que abordaram a chamada seletividade
discriminatória, a qual é precedida da criação no imaginário coletivo de um estereótipo,
ocorrendo quando os atos mais grosseiros cometidos por pessoas sem acesso à comunicação
são divulgados como os únicos delitos e tais pessoas como os únicos delinquentes. É o que os
autores chamam de acesso negativo à comunicação por parte desses ditos delinquentes, que,
enquanto excluídos sociais, tornam-se alvos fáceis para todas as cargas negativas da sociedade,
caracterizadas como preconceitos. Fica fixada, então, a imagem pública de delinquente,
composta por elementos de classe social, étnicos, etários, de gênero e estéticos.310
Nesse ponto, deve-se frisar, como bem demonstrou Moraes311, que o próprio Jakobs, em
muito criticado por sua teoria, questiona diretamente o uso excessivo do Direito Penal para
suprir a falta de um consenso valorativo na sociedade312, esclarecendo expressamente que esse
uso de sua teoria não é benéfico para a sociedade.
307 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Op. cit., p. 219.
308 RANGEL, Paulo. Op. cit., p. 72.
309 BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013, p. 560.
310 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume, teoria geral do Direito
Penal. 4. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 46.
311 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Op. cit., p. 219-220.
312 JAKOBS, Gunther. Fundamentos de Direito Penal. Tradução André Luis Callegari. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003, p. 142.
127
CONCLUSÃO
Reduzir a maioridade penal é terreno que suscita grandes discussões, seja no campo da
política, na área social ou no meio jurídico. A pesquisa realizada procurou utilizar as propostas
que objetivam a redução da idade penal como pano de fundo para expor as principais teorias de
direito penal que determinam, ou fundamentam, os rumos da política criminal no Brasil
atualmente.
É assim que, em um primeiro momento, foi possível concluir que o ordenamento
jurídico brasileiro tem no Garantismo o seu principal sustento, já que presentes todos os
princípios ou “princípios axiológicos fundamentais” da teoria de Ferrajoli, sendo eles os
princípios da retributividade, da legalidade, da necessidade, da ofensividade do ato, da
materialidade, da culpabilidade, da jurisdicionalidade, do acusatório, do ônus da prova e do
contraditório.
Isso por que, o Garantismo se baseia em um modelo normativo de direito tendente a
buscar um sistema vinculante para a atividade punitiva estatal como garantia aos direitos dos
cidadãos, sendo garantista todo aquele sistema penal que se conforma normativamente com o
modelo e que o satisfaz efetivamente, com respeito aos princípios supracitados – ou direitos
fundamentais do cidadão.
Nesse contexto, ganha relevo uma visão mais atual do garantismo, propondo sua
aplicação integral, de forma a alcançar todos os direitos e garantias constitucionais, e não
somente os direitos fundamentais individuais, ou seja, estariam englobados nessa nossa nova
perspectiva os direitos fundamentais coletivos e sociais, bem como os deveres do Estado Social.
É o chamado Garantismo Penal Integral ou Garantismo Penal Social.
Ocorre que, a par do processo de modernização, conforme os preceitos de Beck, Giddens
e Lash, fica estabelecido que a sociedade de risco é dotada de uma perene sensação de
emergência, exigindo, junto dela, um direito penal diferenciado, caracterizado por essa
emergência, que é exatamente o contrário da teoria de Ferrajoli, evidenciando-se a sua visão do
Direito, sobretudo do Direito Penal, como reação às legislações penais de “emergência”.
Assim, os Estados modernos adotam determinados processos como forma de ação dos
entes políticos no trato do problema da desordem social, que, diante da desordem e da incerteza
sobre a eficácia da lei e do próprio estado social, traduzidos na impunidade e na incerteza do
128
comportamento social das demais pessoas, punindo-se mais, criando-se tipos penais,
fortificando-se o Direito Penal enquanto método de neutralização.
Trata-se da problemática da lei e da ordem, em que se destacou o posicionamento de
Dahrendorf, segundo o qual a impunidade, quando ocorre de forma sistemática, conduz à
anomia. É essa situação de impunidade, crucial no estudo da lei e da ordem, que “decide a
validade normativa de uma ordem social”, funcionando como o elo entre o crime e o exercício
da autoridade.
Dessa maneira, as tendências das políticas criminais de exclusão social, operadas com
destaque por sistemas de justiça criminal característicos das sociedades liberais desenvolvidas,
a pretexto de manutenção da ordem, elevam as características excludentes da sociedade civil,
como diagnosticou Young.
A principal caraterística do movimento de lei e ordem em qualquer sociedade moderna,
incluído o Estado Social e Democrático do Brasil, é o encarceramento em massa, fruto da
hipercriminalização advinda de uma tentativa constante de se combater a impunidade e a
anomia. E a constatação que se faz é a de que o sistema criminal brasileiro encontra-se
permeado de práticas que seguem a tendência do discurso de lei e ordem dominante no Direito
Penal da maioria dos Estados liberais modernos.
É assim que, em uma análise fluida e contínua, realizou-se o estudo dos movimentos de
lei e ordem e a passagem, através de determinadas práticas, para um Direito Penal do Inimigo.
Ressaltando-se que Anitua, falando de Direito Penal simbólico, perfilou Dahrendorf e Jakobs
como representantes desta categoria criminológica, estabelecendo uma clara conexão entre os
movimentos de lei e ordem e o Direito Penal do inimigo.
A teoria de Jakobs propõe a adoção de um fator cognitivo, não devendo ser tratado como
pessoa aquele que não oferece a segurança cognitiva de seu comportamento pessoal. Da mesma
forma, não pode o Estado trata-lo como pessoa, sob pena de colocar em risco o direito à
segurança das demais pessoas. Explica-se, assim, o seu conceito de pessoa e o porquê de, para
ele, o inimigo não ser pessoa.
Restou demonstrado que as principais características do Direito Penal do inimigo estão
presentes nos diversos normativos do sistema penal brasileiro, sendo: a) antecipação da
punibilidade com a tipificação de atos preparatórios, criação de tipos de mera conduta e perigo
129
abstrato; b) desproporcionalidade das penas; c) legislações de luta ou de combate; d) restrição
de garantias penais e processuais; e e) determinadas regulações penitenciárias ou de execução
penal, como o regime disciplinar diferenciado.
Tais características, em cotejo com as premissas do Garantismo, permitem concluir que
existe uma diferenciação muito clara nessas teorias, uma vez que o garantismo nasce do
combate às legislações de luta ou de combate, enquanto que o direito penal do inimigo faz uso
dessa situação emergencial para justificar a repressão mais rígida para determinados infratores.
A principal consequência desse fato para o objeto da pesquisa, tratando-se
especificamente das propostas de redução da maioridade penal, é a constatação de que tais
propostas passam ao largo dos objetivos e fundamentos do Princípio da Proteção Integral, que
tem na criança e no adolescente a prioridade absoluta da nação, como representação de um
verdadeiro direito penal juvenil, dotado de todas as garantias a ele inerentes. O contrário indica
o afastamento das garantias fundamentais da criança e do adolescente, com a criação de
verdadeiras legislações de combate.
Possibilita-se, assim, o reconhecimento no Estatuto da Criança e do Adolescente,
juntamente com as normas constitucionais, da natureza jurídica de um Direito Penal Juvenil,
por suas características próprias, de modo a abranger o princípio da proteção integral e,
consequentemente, as bases do Garantismo Penal, através dos preceitos que formam os direitos
e garantias fundamentais da criança de do adolescente.
Por isso, as tentativas de redução da maioridade penal e a análise estatística do perfil
das pessoas encarceradas, podem indicar a seletividade do sistema penal brasileiro, que, por
meio dessa proposta, objetiva o combate a um “inimigo” já conhecido, para o qual se justifica
a restrição de garantias e a formulação de legislações emergenciais de combate, impulsionadas
por um Direito Penal simbólico.
A grande preocupação é que, sob o pretexto de um Direito Penal da modernidade,
carregado de simbolismo, flexibilizem-se garantias e princípios ao ponto de ser deixado de lado
o principal fim da medida de internação para os adolescentes, que é a finalidade pedagógica.
Resultando na sua exposição ao sistema penitenciário brasileiro, o que, em comparação ao que
hoje acontece, seria extremamente prejudicial para o desenvolvimento desses indivíduos.
130
Ocorre que, o sistema de execução penal do Brasil não vem alcançando o seu ideal de
(re)inserção social, como parte integrante da função preventiva especial positiva da pena
privativa de liberdade, abrindo-se margem, com a redução da idade penal, para se inserir
adolescentes nesse sistema deficitário em sua principal finalidade. Esse fato leva
necessariamente à reflexão quanto aos reais fins da pena em nosso sistema penal, evidenciando-
se a conclusão de Nietzsche no sentido de que a pena é mera vingança, desprovida de qualquer
motivação.
Portanto, conclui-se com segurança que o ideal garantista da Constituição Federal está
sendo deixado de lado na prática penal brasileira em prol de um Direito Penal simbólico, que
surge como característica da modernidade, apoiado por pressões sociais e da mídia em geral, e
que se mostra, em certas ocasiões, como um verdadeiro Direito Penal do inimigo, a exemplo
das tentativas de redução da idade penal, em que o peso das medidas de exceção voltam-se para
um determinado estereótipo, o qual, cognitivamente, não é considerado pessoa ou cidadão. E
essa conclusão deve ser acompanhada das reflexões de Jakobs, no sentido de que a inserção de
fragmentos de Direito Penal do Inimigo no âmbito do Direito Penal do cidadão, ou do Direito
Penal geral, é algo extremamente prejudicial para o Estado de Direito.
131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008.
ALMEIDA, Caio Patricio de. Hipercriminalização: o sintoma totalitário na política da
liberdade. Artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais.
ANITUA, Gabriel Ignacio. Hstorias de los pensamientos criminológicos. 1. Ed. Buenos Aires:
Del Puerto, 2005.
ÁVILA, Humberto.Teoria dos princípios:da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
4. ed. São Paulo: Malheiros.
BALDAN, Édson Luís. Fundamentos do direito penal econômico. Curitiba: Juruá, 2005.
BARATTA, Alessandro. Princípios do Direito penal mínimo: Para uma teoria dos direitos
humanos como objeto e limite da lei penal. Tradução Francisco Bissoli Filho. in Revista
“Doutrina Penal”. n. 10-40, Buenos Aires, Argentina: Depalma, 1987.
BARREIRA, César Mortari. Pensar o direito penal a partir de Günther Jakobs:
possibilidades de inovação. Disponível em <
http://www.academia.edu/20256182/Pensar_o_direito_penal_a_partir_de_Jakobs_possibilida
des_de_inovação> Acesso em 11/11/2017.
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política,
tradição e estética na ordem social moderna. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1997.
BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria Geral da Pena. São Paulo: Saraiva, 2015.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 5. Ed.
São Paulo: Saraiva, 2017.
BIZATTO, José Ildefonso. Adolescente infrator: uma proposta de reintegração social
baseada em políticas públicas. São Paulo: Baraúna, 2014.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO Gianfranco. Dicionário de Política.
Trad. Carmen C. Varriale. 11. Ed. Brasília: Ediora Universidade de Brasília, 1998.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:
Brasiliense, 2000.
BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional
de Informações Penitenciárias. INFOPEN – Dezembro 2014. Brasília, DF, 26 abr. 2016, p. 18.
Disponível em < http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf >.
Acesso em: 23 set. 2016.
BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013.
CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
132
CARVALHO, Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2 ed. São Paulo:
Saraiva, 2015.
CAVAGNINI, José Alberto. Somos inimputáveis: o problema da redução da maioridade
penal no Brasil. São Paulo: Baraúna, 2013.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 7. Ed. São
Paulo: Saraiva, 2010.
DAHRENDORF, Ralf. A Lei e a Ordem. Brasília: Fundação Friedrich Nauman, 1987.
DINIZ, Debora; BRITO, Luciana; RONDON, Gabriela; GUMIERI, Sinara. Proteção
Constitucional à Infância e à Adolescência: uma crítica à redução da maioridade penal. in Revista Justiça Juvenil: Paradigmas e experiências comparadas. Coordenação Anderson
Pereira de Andrade, Bruno Amaral Machado. São Paulo: Marcial Pons, 2017.
DUEK MARQUES, Oswaldo Henrique. Fundamentos da pena. 3 ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2016.
DUEK MARQUES, Oswaldo Henrique Os fins da pena: reflexões a partir da análise de
vingança e do castigo em Nietzsche. In Nietzsche, coleção Guias da Filosofia. Vol. II. São
Paulo: Escala.
DUEK MARQUES, Oswaldo Henrique; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Os fins da
pena no Código Penal Brasileiro. In Boletim do IBCCrim. N. 167. São Paulo, 2006.
DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social.Trad. Eduardo Brandão. 2. Ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
DURKHEIM, Emile O suicídio: estudo de sociologia. Tradução Mônica Stahel. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
FEIJOO SÁNCHES, Bernardo. Normatizacíon del derecho penal y realidade social. Bogotá:
Universidad Externado de Colombia, 2007.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002.
FISCHER, Douglas. O que é garantismo (penal) integral. In Garantismo Penal Integral:
questões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no
Brasil. Organizadores Bruno Calabrich, Douglas Fischer e Eduardo Pelella. 3. Ed. São Paulo:
Atlas.
GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade
contemporânea. Tradução André Nascimento. Rio de Janeiro:Revan, 2008.
GRECO, Rogério. Direito Penal do Inimigo. Artigo disponível em
http://www.rogeriogreco.com.br/?p=1029, acesso em 26/06/2017.
133
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes.
Rio Grande do Sul: Sergio Antonio Fabris Editos, 1991.
HUSAK, Douglas. Overcriminalization: The limits to the criminal law. New York: Oxford
University Press, 2008.
IPPOLITO, Dario. O garantismo de Luigi Ferrajoli. Revista de Estudos Constitucionais,
Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD). Janeiro a Junho de 2011.
JAKOBS, Gunther. ¿Qué protege el derecho penal: bienes jurídicos o la vigencia de la
norma?. In Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal. Vol. 7. 2001.
JAKOBS, Gunther, Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
JAKOBS, Gunther, Fundamentos de Direito Penal. Tradução André Luis Callegari. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
JAKOBS, Gunther. La Ciencia Del Derecho Penal ante las exigencias del presente. Bogotá:
Universidad Externado de Colômbia: Centro de Investigaciones de Derecho Penal Y Filosofía
del Derecho, Tradução: Teresa Manso Porto, 2000.
JAKOBS, Gunther. La pena estatal: significado y finalidad. Traduccíon y estúdio preliminar
Manuel Cancio Meliá & Bernardo Feijoo Sanchez. Madrid: Thomson Civitas, 2006.
JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do injusto penal e culpabilidade.
Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas.
Porto Alegre: Livraria do Advogado. Tradução André Luís Callegari e Mereu José Giacomolli,
2005.
JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal:
parte geral. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Ato infracional e Deireitos Humanos. Campinas: Servanda,
2014.
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de
Günther Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese (doutorado). Departamento de
Filosofia e Teoria do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007.
MERTON, Robert K. Sociologia: teoria e estrutura. Tradução Miguel Maillet. São Paulo:
Mestre Jou, 1970.
MILL, Jonh Stuart. Utilitarismo. Tradução de Pedro Galvão. Portugual: Porto, 2005.
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Departamento Penitenciário Nacional. INFOPEN, 2016.
Disponível em < http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/relatorio-depen-versao-
web.pdf>, acesso em 26/06/2017.
134
MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. A terceira velocidade do direito penal: “o Direito
Penal do Inimigo”. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Direito da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. 2006.
MORAES, Alexandre Rocha Almeida, Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do
direito penal. Curitiba: Juruá, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos Humanos versus Segurança Pública. Rio de Janeiro:
Forense, 2016.
OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 15. Ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2011.
PASCUIM, Luiz Eduardo. Menoridade Penal. Curitiba: Juruá, 2006.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14. Ed.
São Paulo: Saraiva, 2013.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
RANGEL, Paulo. A redução da menor idade penal: avanço ou retrocesso social?: a cor do
sistema penal brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2016.
RAWLS, Jonh. Uma teoria de justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ROSSETO. Enio Luiz. Teoria e aplicação da pena. São Paulo: Atlas, 2014.
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997.
ROXIN, Problemas funadmentais de direito penal. 3. Ed. Tradução Ana Paulo dos Santos e
Luis Natscheradetz. Lisboa: Vega, 2004.
SANTOS, Juares Cirino dos. A criminologia radical. 3. Ed. Curitiba: Lumen Juris, 2008.
SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2009.
SARAIVA, João Batista Costa, Não à redução da idade penal. in Revista Brasileira de
Ciências Criminais. Vol. 16. N. 71. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
SERRETTI, André Pedrolli. A Teoria do Garantismo Penal e a Constituição da República:
Um estudo sobre a legitimidade da tutela penal estatal. In Revista Jurídica da Presidência. Vol.
12. Brasília, 2010.
SOUZA, Tatiana Sampaio de. A doutrina da proteção integral e a possibilidade de um direito
penal juvenil. In Direito e Liberdade. V. 15. N. 2. Natal: ESMANRN, p. 159-179.
STRECK, Lênio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (übermassverbot)
à proibição de proteção deficiente (untermassverbot) ou de como não há blindagem contra
normas Penais inconstitucionais. Disponível em <
http://www.leniostreck.com.br/lenio/artigos/>, Acesso em 04/11/2017.
135
STRECK, Lênio Luiz, Da utilidade de uma análise garantista para o direito brasileiro. In
Revista da Famergs, Porto Alegre, v. 2, p. 3-37, 1999.
TRINDADE, André Karam. Raízes do garantismo e o pensamento de Luigi Ferrajoli.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jun-08/diario-classe-raizes-garantismo-
pensamento-luigi-ferrajoli. Acesso em 19/08/2017.
WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2 Ed.
Rio de janeiro: Revan, 2003.
YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na
modernidade recente. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume, teoria
geral do Direito Penal. 4. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
ZAFFARONI, E. Raúl. El enemigo em el Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 2006.
Top Related