Por uma abordagem territorial da história ambiental: uma leitura de Claude Raffestin.
Haruf Salmen Espindola1
Universidade Vale do Rio Doce
Núcleo de Estudos Históricos e Territoriais
A proposta de uma abordagem territorial da história ambiental nos remete a questão do
espaço e de como o concebemos, bem como à relação entre história-geografia. O espaço é
concebido pelos historiadores como um dado de fato da realidade, uma delimitação espacial,
um fixo e um fechado, ou seja: localização, limite, cenário e trajetória dos acontecimentos
(onde e aonde). Entretanto essa leitura do espaço não corresponde à realidade espacial, pois
esse é sempre contingente, relacional e aberto. Aqui se tem outra concepção: espaço como
coetâneo, simultaneidade de diferentes, heterogêneos, acasos, surpresas, incertezas, invisíveis,
imprevistos, possibilidades que se abrem ou se fecham, trajetórias múltiplas, encontros,
desencontros e não-encontros. A ferramenta do historiador é o tempo/narrativa, que cobra seu
preço para a história ser bem sucedida e agradar ao leitor. O historiador/autor cria a sucessão e
a transpõe para o texto. Ele consegue isso fazendo recortes, rejeitando ou incluindo dentro da
sucessão, delimitando e eliminando contradições, evitando pluralidades que desviariam o
leitor e produziriam digressões.
Dominado pelo tempo, o espaço se tornou um dado, um fixo, que podia ser recorte,
esquadrinhado, classificado e mapeado. O espaço foi naturalizado e convertido no quadro
geográfico no qual ocorre o que realmente importa – a narrativa. Assim, o espaço é
fechamento e horizontalidade, enquanto o tempo é mudança e abertura para um futuro novo.
Contra isso Doreen Massey (208, p. 94-95) se manifesta: “Se o tempo deve ser aberto, então o
espaço tem de ser aberto também. Conceituar o espaço como aberto, múltiplo e relacional,
não acabado e sempre em devir, é um pré-requisito para que a história seja aberta”.
O historiador ao recortar e precisar seu objeto, inquirir as testemunhas e examinar as
fontes, elimina as contradições de forma a construir sua narrativa. Isso permite organizar as
singularidades em história, dando-lhes unidade no texto, que a faz ter sentido (tudo fica
explicado/contado, sem lacunas e contradições). A narrativa é o modo de fazer do acaso, do
contingente ou, como diria os antigos, da fortuna determinações do processo e do produto
1 Professor Titular da Universidade Vale do Rio Doce – Univale; Coordenador do Programa de Pós-graduação
Stricto Sensu em Gestão Integrada do Território – GIT/Univale. Doutor em História Econômica pela USP. As
pesquisas contaram com recursos do CNPq.
(texto) História. Como nota Willian Cronon (1992, p. 1349-1350): O sucesso da narrativa é
proporcional à extensão com que escondem as descontinuidades, elipses e contradições que
solapariam o sentido pretendido para a história. Qualquer que seja seu propósito público, não
pode evitar um exercício coberto de poder: inevitavelmente, sanciona algumas vozes
enquanto silencia outras. (tradução livre)
A História Ambiental tem muito a contribuir se adotar outra imaginação do espaço,
diferente daquela que tem dominado a ciência da história. O espaço como relacional
permitiria abrir a narrativa a diferentes estratos do tempo (Koselleck, 2014) e, desta forma,
estabelecer uma nova maneira de escrever a história ambiental, dos biomas, dos seres
diferentes, heterogêneos e múltiplos, tanto humanos como não-humanos, uma história que
mais do que não estar centrada no humano, não seja determinada por categorias de poder,
particularmente a unidimensionalidade espaço-temporal do Estado e do Nacional. O geógrafo
Claude Raffestin, cuja obra “Pour une Géographie du Pouvoir” foi publicada em 1980, tem
muito a contribuir. Seu pondo de partida é a critica à geografia política, que fez do Estado a
única forma de organização dotada de poder político suscetível de se inscrever no espaço. Em
sua opinião a verdadeira geografia só pode ser uma geografia do poder ou dos poderes
(RAFFESTIN 1993: 22 ). No objetivo de um diálogo interdisciplinar, concentraremos nossa
atenção na nova geografia política, a partir dessa obra inaugural. É preciso tomar a geografia
para além da antiga consideração de disciplina auxiliar da história, trazendo conceitos que de
fato proporcione uma contribuição epistemológica para a história ambiental.
Ao se partir da premissa da existência “tecida por relações” e, consequentemente,
constituidora de “um vasto complexo relacional”, se chegará a uma problemática muito
diferente daquela que dominou a geografia, ou seja, a problemática morfofuncional que se
fundamenta numa geografia triangular: “querer ver, saber ver, poder ver”. A problemática
relacional permitiria romper com a narrativa e escala unidimensional do Estado e, além disso,
superar o compromisso descritivo dominante na geografia morfofuncional, para assumir uma
postura intelectual ativa e crítica, conforme propõe Raffestin (1993, p. 31): uma geografia
“fundamentada por um triângulo - querer existir, saber existir, poder existir”. Trata-se de uma
mudança epistemológica radical, pois exige “outras interrogações e outras inquietações
sociais que, num outro enfoque, se inscrevem num contexto que não é o da testemunha, mas
sim o da ‘participação crítica’”.
O objeto do livro “Por uma Geografia do Poder” de Claude Raffestin são as ligações
entre poder, população, território e recursos. Ele busca oferecer as ferramentas conceituais
para compreender a geografia das relações de poder na contemporaneidade. Esse é um livro,
se considerarmos a primeira edição de 1980, adiantado em relação ao seu tempo, pois trata
das tendências atuais que naquele contexto estavam apenas se esboçando. Raffestin
estabelece uma nova geografia política, ao criticar os geógrafos fundadores (momento
epistemológico de nascimento da geografia), particularmente Friedrich Ratzel, sem, contudo,
negar suas categorias fundamentais: posição, população e circulação.
Um aspecto importante do seu pensamento é a relação estabelecida entre território,
norma e recurso. Nas relações com os territórios ou com os recursos sempre estão presentes
poder e norma para a maior eficácia do controle e da gestão dos seres e das coisas. A nova
geografia do poder ou, melhor, dos poderes, pois o poder político é congruente a toda forma
de organização, desconstrói a premissa unidimensional do Estado como única forma de
organização dotada de poder político suscetível de se inscrever no espaço. São as relações que
tornam inteligíveis o poder e suas manifestações espaciais. Os elementos constituintes da
problemática relacional são: a) os atores, cada um com sua política; b) o conjunto das
intenções (finalidades dos atores); c) as estratégias que os atores utilizam para alcançar suas
finalidades; d) os diversos códigos utilizados pelos diferentes atores; e) os componentes
espaciais e temporais da relação.
As categorias de espaço e tempo (lugar, duração e ritmo) são fundamentais na
relacionalidade entre atores e para as estratégias que esses utilizam. As posições dos atores no
espaço e no tempo são diferenciadas e a suas capacidades de poder e habilidades de utilizar
suas posições e recursos disponíveis não são idênticas. Espaço e tempo funcionam como
ponto de apoio para se aplicar a alavanca que aciona o poder e por ali modifica as situações
reais no sentido do que se queira. Como o poder se apoia sobre espaço e tempo, é importante
mostrar as diferentes situações espaciais e temporais dos atores em relação, identificando
simetrias ou dissimetrias entre os polos (RAFFESTIN, 1993, p. 34).
Raffestin (1993, p. 40-41) define os atores envolvidos na relação em duas categorias:
sintagmáticos e paradigmáticos. O ator sintagmático é aquele com objetivo claro e que age
para realizar sua finalidade e, ao fazê-lo, estabelece processo e articulações sucessivas no
interior do processo (agenciamentos). Em contraste, os atores paradigmáticos são
aglomerações de seres humanos que surgem de classificações e repartições feitas pelos atores
sintagmáticos: público, contribuinte, habitante, residente, produtor, consumidor, eleitor, fiel,
massa, guerrilheiro, etc.. O que caracteriza o ator paradigmático é aparecer como trunfo nas
relações de poder, constituindo-se em unidade de cálculo para os atores sintagmáticos.
A crítica ao entendimento aceito sobre o poder é crucial: poder não é coisa nem
resulta da posse de coisa, bem como não vem de cima nem é unidirecional. O poder se
manifesta na relacionalidade e se realiza de baixa para cima, isto é, se realiza no
consentimento ou resposta positiva por parte daquele que é alvo da ação. Dois outros
entendimentos precisam ser considerados: poder é igual saber, ou seja, quem sabe tem poder e
quem tem poder sabe; como existe o poder também existe o não-poder (alienação). O poder
visa dominação sobre seres e coisas e, para conseguir sua finalidade, na relação o poder pode
privilegiar determinado trunfo (população, território e recursos) ou mobilizar diferentes
trunfos, em graus diversos.
A relação é fonte de modificação, ou seja, uma vez iniciada os atores em todos os seus
polos se modificam no curso do processo relacional. Daí Raffestin (1993, p. 64) afirmar que
somente “quando a relação se desvenda que se pode precisar, fazendo-se um orçamento
relacional, quais são as estruturas do poder”. Os atores sintagmáticos são os sujeitos
envolvidos em relação ou diferentes relações, formando organizações de seres e coisas,
porque os possuem e controlam. Os seres e coisas são trunfos que determinada organização,
ao movimentar-se e entrar em relação (agir), pode decidir colocá-los todos ou parcialmente no
jogo relacional. As organizações, no entanto, quase sempre mascaram seus verdadeiros
trunfos. Esses, em última instância, são energia e informação que as organizações controlam e
arranjam conforme seus objetivos. Assim, elas organizam os circuitos para a circulação,
distribuição e difusão ou, ao contrário, para concentração, circunscrição e rarefação da energia
e informação.
Para Raffestin (1993, p. 130) “o poder evolui sempre entre dois polos dos quais se
serve sucessivamente: a unidade e a pluralidade”. Ele pede ao leitor para reter a “lição da
biologia: nossa riqueza coletiva está na nossa diversidade”. Assim, o outro nos é necessário,
seja indivíduo ou sociedade, exatamente porque “é diferente de nós”. A diversidade é uma
“garantia da autonomia da espécie humana” e de sua “autonomia cultural, sem a qual não é
possível uma ação diferenciada”.
As duas primeiras, das quatro partes de “Por uma Geografia do Poder”, são longas e
fornecem os fundamentos para a compreensão do núcleo central da obra: os conceitos de
território e territorialidade. Como território é produção e é produto, ao mesmo tempo, do
processo de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, mediado por relações de
poder e utilização, estão presentes no processo as dimensões normativas, simbólicas,
materiais, seja em uma, algumas ou todas as esferas da vida humana: sociais, econômicas,
culturais, políticas, técnicas e ambientais. Logo no início da terceira parte da obra se encontra
a citação repetida exaustivamente por todos aqueles que passaram a utilizar o termo território:
“O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por
um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao
apropriar de um espaço concreta ou abstratamente (por exemplo, pela
representação), o ator ‘territorializa’ o espaço.” (RAFFESTIN, 1993, p. 143).
É preciso ir além da citação e da suposição do que ela significa. Algumas categorias
são fundamentais para se compreender o conceito de território: apropriar, delimitar, definir e
regular. A apropriação do espaço se inicia “a partir do momento em que um ator manifeste a
intenção de dele se apoderar”. Assim, o território “é uma produção, a partir do espaço”. Por
ser uma produção, “se inscreve num campo de poder”. Para Raffestin, produzir uma
representação do espaço já é uma apropriação. O ator engajado representa o espaço a partir da
sua posição (ponto em que se encontra) e o representa para si. O ponto “fornece o suporte
egocêntrico da representação, pois esta é sempre uma manifestação do ‘eu’ em relação ao
‘não-eu’, uma explicitação da interioridade em relação à exterioridade” (RAFFESTIN, 1993,
p. 146). É pelo resultado da ação que se pode “verificar o valor da energia informada,
cristalizada na representação”. O ator decide e age a partir da representação, isto é, tendo à
frente a imagem territorial projetada.
Para Boaventura dos Santos (1988, p. 144-145) a representação do poder tende a ser
na pequena escala, porém ao passar da intensão à ação, a escala se modifica, pois a atuação
quotidiana (agir) é efetivada com base em decisões na grande escala. “O poder tende a
representar a realidade social e física numa escala escolhida pela sua virtualidade para criar os
fenômenos que maximizam as condições de reprodução do poder.” Segundo Raffestin (1993,
p. 148-149) o ator delimita “campos operatórios” e, ao fazer isso, quando age e como se as
ações se deduzissem umas das outras. Esses campos operatórios construídos pelo poder são
malhas nas superfícies do sistema territorial (recortes/regionalização). Essa representação é
fundamentada e sustentada por uma “psicossociologia e uma ideologia”. Daí a necessidade de
se “construir, ou reconstruir, o contexto sócio-histórico no qual se originou e do qual procede”
para desvelar seu significado.
O território é um sistema (sistema territorial) formado por tessituras (malhas/regiões),
nós (pontos/localidades) e redes (ligações entre pontos/localidades), apesar de nem sempre
serem discerníveis, exceto para os atores sintagmáticos. O Estado cria continuamente novos
recortes, faz novas implantações de locais e estabelece novas ligações entre os locais. Essas
operações são “atos observáveis” no espaço que podem ser analisados. Entretanto não é
apenas o Estado, pois todos os atores sintagmáticos necessitam organizar seu “campo
operatório”. Como afirma Raffestin (1993, p. 150), “nenhuma sociedade, por mais elementar
que seja, escapa à necessidade de organizar o campo operatório de sua ação”. O sistema
territorial se apresenta como uma “produção já elaborada, já realizada” (produto territorial),
apesar de suscetível de mudanças (produção territorial), cuja análise supõe uma leitura
(linguagem) e interpretação que resulte em conhecimento sobre as representações e práticas
que produziram o território e operam nele. Do Estado ao indivíduo, todos os atores
sintagmáticos ‘produzem’ o território. “Em graus diversos, em momentos diferentes e em
lugares variados, somos todos atores sintagmáticos que produzem ‘territórios’. (...) Todos nós
elaboramos diversas relações de poder.” (RAFFESTIN, 1993, p. 152)
As malhas/regiões são campos operatórios delimitados pelos atores sintagmáticos. O
Estado foi bem sucedido na sua capacidade de recortar o território em regiões, produzindo
diferentes malhas conforme suas finalidades (saúde, educação, segurança pública, justiça,
economia etc.). Regionalizar é a ação de delimitar, fixando limites/fronteiras. A
regionalização não é homogênea nem uniforme, pois o território acolhe os diferentes, diversos
e heterogêneos, seja população ou outros elementos do sistema territorial. O território é
indissociável da noção de limite/fronteira, pois toda organização delimita para definir seu
campo operacional e efetivar sua ação2. “Definir, caracterizar, distinguir, classificar, decidir,
agir implicam a noção de limite: é preciso delimitar”. As escalas utilizadas, no entanto, são
diferentes conforme os atores, suas finalidades, conhecimento, estratégias, recursos e
habilidades. Existe ator que pode intervir em todas as escalas, enquanto outro fica limitado a
uma escala dada/determinada. As diferentes regionalizações/malhas produzem as tessituras do
território, sendo que a “tessitura exprime a área de exercício dos poderes ou a área de
capacidade dos poderes”. Portanto, as “tessituras se superpõem, se cortam e se recortam sem
cessar”, formando zonas de transição. (RAFFESTIN, 1993, p. 153, 154).
Os pontos são posições ocupadas pelos atores. Conhecer a posição é saber “onde se
situa o outro, aquele que pode nos prejudicar ou nos ajudar, aquele que possui ou não tal
2 Fixar objetos da ação já constitui uma “delimitação em relação a outros objetivos possíveis”.
coisa, aquele que tem acesso ou não a tal recurso etc”. O ponto é local onde se encontra
coisas, indivíduos e grupos. O local é lugar de poder e de referência, sendo que é nele que se
dá efetivamente a existência, seja uma aldeia, cidade, capital ou metrópole gigante. O local
representa a posição do ator, que pode ser definida de forma absoluta ou relativa, porém ele
sempre está em relação e estabelece ligações entre pontos/localidades. Os atores criam redes
porque, ao agirem, “procuram manter relações, assegurar funções, se influenciar, se controlar,
se interditar, se permitir, se distanciar ou se aproximar”. As redes mantidas pelos atores
podem ser abstratas ou concretas, invisíveis ou visíveis, podendo ter a finalidade de garantir
ou de impedir a comunicação.3 Uma rede, ao mesmo tempo, pode garantir e impedir a
comunicação, dependendo da escala considerada: redes rodoviárias e ferroviárias para
atenderem a lógica nacional podem arruinar a comunicação quando examinadas na grande
escala (no nível local). (RAFFESTIN, 1993, p. 156, 157; negrito é nosso)
A categoria de fronteira não se refere apenas a territorialidade animal, mas também é
indissociável da territorialidade humana. Fronteira (limite, margem) é um invariante
(universal) biossocial que está presente para todos os grupos humanos. Se define como
interface com quatro funções: tradução, regulação, diferenciação e relacionamento. São essas
quatro funções que permitem apreender o que é a fronteira e a sua finalidade. Não existe
fronteira natural, pois toda fronteira é uma construção social a partir de uma vontade e por um
ato de poder. Entretanto, ela é sempre ambígua, pois se por um lado é controle, separação,
constrangimento e proibição; por outro é local de encontro e passagem. No sentido simbólico
ou real a fronteira sempre será, ao mesmo tempo, fixação/controle e transição/transgressão.
A fronteira possui a propriedade de influenciar a relação entre seres humanos (da pessoa em
relação ao seu grupo; ou do grupo em relação a outros grupos) e a relação dos seres humanos
com seu ambiente (relação com o não-humano), fazendo emergir o fenômeno da
territorialidade humana.
A definição de territorialidade que se encontra em Raffestin (1993, p. 158-159) é
citada por quase todos os autores brasileiros que tratam do assunto, independente de sua
filiação materialista ou cultural. Nessa passagem se encontra a questão da relação com a
natureza, porém esse aspecto foi negligenciado pelos diversos autores que a utilizaram.
De acordo com a nossa perspectiva a territorialidade adquire um valor bem
particular, pois reflete a multidimensionalidade do “vivido” territorial pelos
membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral. Os homens “vivem”, ao
3 A rede que desenha limite/fronteira para impedir a comunicação é uma “rede de disjunção”.
mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um
sistema de relações existenciais e/ou produtivistas. Quer se trate de relações
existenciais ou produtivistas, todas são relações de poder, visto que há interação
entre os atores que procuram modificar tanto as relações com a natureza como
as relações sociais.(O negrito é nosso)
Antes de analisarmos as implicações dessa citação, seria interessante conhecermos o
ponto de vista de Raffestin (1993, p. 160) sobre o tipo de relação que é a territorialidade.
Antes de enunciar sua definição, ele crítica o que denomina concepção restrita de
territorialidade,4 porque em seu ponto de vista trata-se de uma relação triangular: “no sentido
de que a relação com o território é uma relação que mediatiza em seguida as relações com os
homens, com os outros”. Trata-se, portanto, de um “sistema tridimensional sociedade-espaço-
tempo”, sendo que a territorialidade é “a maneira pela qual as sociedades satisfazem, num
determinado momento, para um local, uma carga demográfica e um conjunto de instrumentos
também determinados, suas necessidades em energia e em informação.” Essas necessidades se
referem ao que torna possível a existência (social, política e cultural) e a produção
(economia). Por tratar de relações entre atores sintagmáticos e desses com atores
paradigmáticos, são sempre relações de poder, que se dão no tempo e espaço. Essas, no
entanto, não se restringem à dimensão social, visto a intensão de produzir mortificação não
apenas nas relações sociais, mas também nas relações com a natureza. Se existir equilíbrio,
temos relações simétricas, do contrário são dissimétricas. Portanto, a territorialidade é
“consubstancial a todas as relações”, constituindo-se na "face vivida" da "face agida" do
poder. Como a territorialidade é o vivido territorial, sua análise “só é possível pela apreensão
das relações reais recolocadas no seu contexto sócio-histórico e espaço-temporal”.
(RAFFESTIN,1993, p. 161 e 162)
O território possui determinada densidade normativa conforme a maior ou menor
complexidade das redes de circulação e comunicação. Quando maior a densidade normativa
mais forte é o domínio territorial e, consequentemente, demandará um fluxo crescente de
informação, exigindo grandes quantidades de energia. A tomada do poder não é possível sem
uma estratégia capaz de possibilitar a apropriação e o controle das redes de circulação e
comunicação. “Controlar as redes é controlar os homens e é impor-lhes uma nova ordem que
substituirá a antiga” (RAFFESTIN, 1993, p. 213).
4 A territorialidade não foi objeto de teorização pelas ciências humanas e permaneceu marginal, até na geografia,
mesmo depois da publicação da obra de David Sack, propondo uma teoria da territorialidade humana (Human
territoriality its theory and history. Cambridge: Cambridge University, 1986).
As relações do ator com os outros e com a natureza (entendida aqui como o não-
humano geológico, biológico, tectónico, atmosférico, geográfico etc.) é mediatizada pelo
território, por meio de diversos mediadores que lhe são próprios: limites/fronteiras,
linguagem, normas, cultura, comunicação, circulação, relações de produção, mercado, ciência,
técnicas, entre outros. Esses mediadores próprios do território configuram sua territorialidade,
abarcando a cotidianidade e as estruturas que tornam possíveis essa cotidianidade: estruturas
de repetição e estruturas transcendentes, para usar dois termos de Koselleck (2014, p. 24). A
territorialidade é vivida e, quase sempre, não é percebida pela consciência, exceto quando o
ator se vê privado parcial ou totalmente dela (turismo, migração, degredo, guerra, revolução
política, ocupação estrangeira, crise econômica, catástrofe, colapso ambiental etc.). É
fundamental ter clareza de que a territorialidade não é estática, mas está em permanente
modificação no decorrer do tempo e no transcurso dos próprios processos
relacionais. Também é decisivo entender que trata de relações mediatizadas pelo território,
não apenas relações entre os seres humanos, mas relações entre humanos e não-humanos.
Isso nos leva de volta à definição de territorialidade proposta por Raffestin (1993, p.
158-159), conforme citado anteriormente, particularmente quando afirma que os “atores que
procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais”. As relações
sociais têm retido a atenção dos estudiosos ou daqueles que aplicam a territorialidade em
programas e políticas públicas, especialmente nas áreas dos ministérios do Desenvolvimento
Agrário (MDA), do Desenvolvimento Social (MDS) e da Cultura (MinC). Entretanto, a
variável negligenciada ocupa um lugar central na reflexão proposta no livro “Por uma
Geografia do Poder”. A quarta parte do livro é toda dedicada a analisar a relação dos
atores/sociedade com a natureza.
Raffestin (1993, p. 223-236), que fundamenta os próximos parágrafos, inicia com a
crítica da noção largamente aceita de recurso natural. Sua ideia central pode ser resumida na
citação: “... é uma concepção histórica da relação com a matéria que cria a natureza
sociopolítica e socioeconômica dos recursos. ‘Os recursos não são naturais; nunca foram, e
nunca serão!’” (p. 225). A natureza é igual matéria, que é igual espaço, ou seja, não tem
significa em si mesmo, exceto ser o que é. A distinção entre matéria e recurso é crucial, sendo
a primeira um dado natural e a segunda uma realidade histórica. Na perspectiva da
problemática relacional proposta por Raffestin a matéria, recurso e tecnicismo são
equivalentes ao espaço, território e territorialidade, respectivamente. Isso nos remete a um
primeiro entendimento que afeta o uso convencional das noções de “meio ambiente”,
sustentabilidade, proteção ambiental etc.: o ambiente não se refere à natureza – matéria –
espaço; a relação é outra: ambiente - recurso - território.
Matéria é a substância natural encontrada na superfície ou subsolo da Terra, é um
“dado” que preexiste à ação humana. A matéria equivale ao espaço, se esse é tomado no
sentido de anteceder à intervenção/ação do ator. As forças que produziram a matéria não
resultaram de uma prática (humana). A matéria, tal como o espaço, é um “vasto campo de
possibilidades”, dentre as quais algumas podem se realizar conforme a intencionalidade do
ator (conhecimento e prática)5. O que interessa na matéria são as propriedades que ela contém
e a possibilidade que oferece à manipulação física, química e biológica. A valorização dessas
propriedades se liga à relação que os humanos estabelecem com ela, ou seja, elas não são
dadas, mas “inventadas”, pois resultam do trabalho (energia informada) – saber/ciência que
identifica as propriedades, o como se manipula e quais utilidades cumprirão. Portanto, não é a
matéria em si, mas determinadas propriedades que são integradas a uma prática. Todavia,
nenhuma ação ou emprego esgota as propriedades da matéria.
As práticas não são estáveis, modificam-se no espaço e tempo, sendo que as mudanças
de práticas podem constituir nova relação com a matéria, podem evidenciar novas
propriedades. Por mais rudimentares que sejam as práticas, essas são sempre complexas –
“sequência que apela a um ou a vários conhecimentos”. Uma matéria, mesmo conhecida,
pode ser “sem nenhum valor particular antes de ter sido integrada numa prática”. O valor do
espaço e o valor da matéria são condicionados aos contextos sócio-históricos-técnicos,
fazendo com que a realidade material sofra alteração ao longo do tempo e do espaço. O
número das propriedades contido na matéria pode crescer, pelo avanço das práticas do qual é
objeto, ou pode desaparecer. A hipótese de um colapso da capacidade de “inovar” e de
“inventar” novas propriedades, transformando as práticas, pode ser admitida em
circunstâncias localizadas ou temporariamente, mas não para a espécie humana.
Sem a prática não haveria relação com a matéria nem produção, logo a matéria
permaneceria na sua condição de matéria: os atores se interessam pelas propriedades e
correspondente classes de utilidades. A relação modifica o quadro natural e, igualmente, os
atores envolvidos, produzindo desta forma o ambiente. Trata-se de uma relação de poder que
se inscreve no campo político por intermédio do modo de produção. Como já foi citado, “é
5 Raffestin não desconhece a possibilidade-limite de criação de matéria que não existe na natureza, como
resultado do avanço técnico-científico.
uma concepção histórica da relação com a matéria que cria a natureza sociopolítica e
socioeconômica dos recursos” (RAFFESTIN, 1993, p. 225).
A relação com a natureza, que a modifica para recursos, é mediatizada pelo território
por meio de diversos mediadores combinados: técnica (capacidade de manipular as
propriedades identificadas); sociocultural (demanda por essas propriedades), econômica
(capacidade de transportar, produzir e fazer circular para o consumo); e político-jurídica
(norma jurídica estabilizadora da posse da coisa, domínio/propriedade absoluta e controle do
acesso às fontes, bem como poder político monopolizando a força capaz de assegurar esse
direito). O contexto técnico-econômico deve ser considerado, pois o número de propriedades
correlativas às classes de utilidade pode crescer com o tempo, conforme a técnica avança6 e as
outras circunstâncias históricas se modificam (social, cultural, econômica, político-jurídica).
O inverso também pode ocorrer, pois as mudanças podem provocar redução ou
desaparecimento de certas propriedades, por não apresentarem mais interesse ou utilidade. As
propriedades da matéria (recursos) são função da prática, representada por (Ar), isto é, ator
capaz de mobilizar uma técnica. Assim, não tem sentido pensá-las em função do tempo, como
uma curva regular (progressiva), pois existem patamares, quebras e saltos.
A tecnicidade é um subconjunto da territorialidade, constituída pelo conjunto de
relações que o homem, enquanto grupo, mantém com as matérias às quais pode ter acesso. A
técnica pode ser simétrica: relação não destrutiva com o meio material (natureza); ou
dissimétrica: relação destrutiva com o meio material. A sociedade atual tem uma tecnicidade
dissimétrica, prevalecendo a tendência de faltar certas matérias num futuro mais ou menos
próximo. A fragilidade aumenta com o crescimento da complexidade da técnica, pois a
mudança, mesmo que mínima, pode gerar consequência no conjunto. Recorrendo a Milton
Santos (1996, p. 119) existe uma relação epistemológica entre técnica e norma, pois ambas
promovem condicionamentos e determinam funcionamento. As técnicas complexas e os
objetos técnicos são portadores de crescente rigidez normativa, tanto na produção,
manipulação e utilização. A técnica pertence a esfera do poder, exprime relações de poder
entre os homens para os quais as propriedades da matéria são trunfo. “A produção dos
recursos supõe, pois, uma dominação mínima de uma porção do quadro espaço-temporal
6 Uma nova propriedade é função do avanço da técnica mobilizada pelo trabalho, porém não ocorre crescimento
exponencial dos recursos, pois isso exigiria progresso técnico exponencial, que não se confirma pela história da
ciência e técnica. A ideologia do progresso imagina um avanço exponencial, ou seja, os impactos negativos da
economia sobre as dimensões sociais e ambientais seriam resolvidos pela evolução futura da ciência e
tecnologia.
dentro do qual, e para o qual, a tecnicidade interage com a territorialidade” (RAFFESTIN,
1993, p. 227-228). Toda relação com a matéria é uma relação com o espaço e com o tempo e,
portanto, é crucial a questão do controle do acesso ao espaço e da duração.7
Os recursos são classificados em dois campos: renováveis e não-renováveis. No
primeiro caso existe uma dependência da fotossíntese e, consequentemente, do funcionamento
dos ecossistemas. Rupturas na cadeia dos fatores bióticos e abióticos podem comprometer o
conjunto da vida, pois sem vegetal não há energia de base para a vida animal. A quantidade de
recursos renováveis não é estável, podendo aumentar em extensão (acréscimo de superfície
terrestre ocupada) e/ou intensidade (aumento da tecnicidade). A relação com o solo pode ser
simétrica ou dissimétrica, dependendo da mobilização ou não de técnicas de preservação.
Dois problemas devem ser considerados: a Terra é um espaço finito, logo existe limite para
aumentar a extensão; a “lei dos rendimentos decrescentes” faz com que a maior intensidade só
produza aumento de rendimento até certo ponto. Solo e água são os dois recursos necessários
aos ecossistemas agrícolas.
O solo cultivável existe em quantidade limitada, mas que pode diminuir por usos não
agrícolas, por erosão, por proibição (reserva legal).8 As relações de produção e relações
jurídicas (propriedade) interagem e constituem um sistema de relações de poder, no qual a
propriedade privada define uma relação de produção dissimétrica com o solo. Em relação à
quantidade de água tem-se uma constante invariável, pois essa não pode ser incrementada
nem diminuir.9 A procura, controle e administração da água fazem parte das sociedades de
todas as épocas.10 Raffestin previu corretamente (1980) que a água se tornaria um trunfo que
obrigaria o Estado a voltar-se prioritariamente para sua regulação e gestão. A importância
desse trunfo aumenta nos contextos de escassez, fazendo surgir diferentes redes de relações e
controle do acesso, inclusive forma de controle ilegal.11 Os conflitos que envolvem as águas
são relações de poder que se manifestam em todas escalas, de fazendeiros a Estados vizinhos.
7 Raffestin menciona como exemplo a crise do petróleo de 1973, quando a OPEP buscou controlar o espaço
petrolífero e controlar a duração (quantidade extraída e comercializada). As novas relações de poder inauguradas
com a crise do petróleo afetaram a tecnicidade dos países consumidores. 8 Na Europa e EUA prevalecem a tendência de diminuição pelas três razões, porém em países como o Brasil
ainda ocorre incorporação de novos solos cultiváveis, mas isso tem provocado discussões ambientais acirradas,
especialmente em relação ao uso do Cerrado e da Amazônia. 9 A informação dessa invariabilidade da quantidade de água, atualmente, está reproduzida em centenas de
milhares de sites na Internet. 10 Nas civilizações antigas, tais como Egito, Mesopotâmia, Índia e China, a gestão das atuas ocupou o centro das
preocupações do poder. 11 Raffestin (p. 232) utiliza Israel e as águas do Jordão como exemplo, pois elas estão no cerne dos conflitos
entre judeus e palestinos, porém temos no Brasil o exemplo clássico do sertão nordestino.
“O controle e/ou a posse da água são, sobretudo, de natureza política, pois interessam ao
conjunto de uma coletividade” (RAFFESTIN, 1993, p. 231). O avanço técnico-científico tem
aumentado a capacidade de utilização do solo e da água, porém as novas técnicas são
crescentes consumidoras de recursos não-renováveis, em particular, de energia.
Os recursos não-renováveis, sejam energético ou minerais, uma vez consumido se
esvanecem. Como objetos de uma relação de apropriação técnica, constituem trunfos que
diminuem no ritmo de sua exploração. Se para os recursos renováveis existem mecanismos de
regulação ajustados aos ecossistemas, para os recursos não-renováveis a regulação somente
pode ser jurídica: não utilizar, utilizar pouco, utilizar muito. Trata de escolha-decisão,
portanto de relações de poder e conflito entre interesses privados e coletivos e entre interesses
do presente e do futuro. O esforço dos Estados para atingirem níveis elevados de crescimento
do PNB, ao longo do século XX, exigiu consumo de grande quantidade de recursos não-
renováveis. Os indicadores desse crescimento eram os consumos de energia, ferro, aço etc. Os
maiores consumidores, que são os países mais avançados tecnicamente, buscaram alternativas
tecnológicas, principalmente no campo energético. A intensificação técnico-científica fez
aumentar aceleradamente a quantidade de informação que está na base da relação com a
matéria, confirmando o prognóstico de Raffestin (1993, p. 233), de 1980: crescimento das
tecnologias consumidoras de grande quantidade de recursos não-renováveis. A vontade de
ganhar tempo aumenta o poder de intervenção no meio acelera o consumo de recursos não-
renováveis12. Como trunfos, são particularmente importantes para as relações de poder, pois
são objetos das disputas de grande intensidade.
A mobilização dos recursos pressupõe prospecção, inventário, avaliação, análise
custo/benefício, antes da decisão de iniciar a exploração. Não existe uma decisão em caráter
absoluto, mas sempre conforme circunstâncias espaço-temporais, ou seja, dependerá do
contexto de redes econômicas e políticas e é relativa a esse contexto. Se a decisão é pela
exploração, restarão ainda considerar as circunstancias técnicas e jurídicas. Portanto a
mobilização dos recursos demanda estratégia complexa, na qual intervém conjunto de atores
sintagmáticos que fornecem, uns aos outros, os fatores necessários à realização do projeto.
Entretanto, são três tipos de orientações estratégicas que governam o comportamento em
relação aos recursos: exploracionista, preservacionista e conservacionista.
12 Esse é o caso recente dos BRIC, cujo crescimento econômico provocou um novo ciclo de expansão e
valorização das commodities minerais e energéticas, particularmente na década de 2000.
O vetor estratégico exploracionista visa produzir o máximo possível, pois estava
regulado pelo mercado: enquanto for vantajoso prosseguiria a exploração, sem preocupar com
esgotamento. Ao recorrer à informação do tipo funcional, que interessa a todas as técnicas de
valorização, em qualquer nível, tem como informação reguladora o “preço” das commodities
no mercado. Essa lógica econômica clássica privilegia o bem presente em detrimento do bem
futuro (privilegiar a informação funcional é privilegiar o bem presente). Como os menores
custos são prioritários para maximizar os lucros e, portanto, o valor das ações na bolsa, as
comunidades locais e seus ambientes, o humano e o não-humano local, não são levados ou
são fracamente levados em consideração. Essa categoria de vetor estratégico foi e é
característica da fase de crescimento econômico, que se pode denominar de período de
modernização e industrialização conduzido pelo Estado. No século XIX e princípio do XX a
estratégia exploracionista dominou mundialmente, protagonizando histórias brutais que
marcam a era do capitalismo denominada de imperialismo. A era dos impérios, na expressão
consagrada por Hobsbawm, e o neocolonialismo foram constituídos por episódios fortemente
dissimétricos em função daquilo “que se chamou de luta ou de batalha pelas matérias-
primas”. (RAFFESTIN, 1993, p. 134-135). No exploracionismo a dimensão político-jurídica
é decisiva para a efetivação e continuidade, pois ele demanda garantia para ganhos de longo
prazo e segurança frente aos conflitos e disputas que sucinta. Isso porque a propriedade
privada e as relações de produção envolvem relações de poder muito dissimétricas, tanto em
relação aos humanos como aos não-humanos.
O vetor estratégico preservacionista não se inscreve numa perspectiva de crescimento,
mas de estagnação. A informação reguladora domina: a exploração é controlada e moderada
para garantir que o meio sofra o menor impacto possível; e os atores renunciam a um ganho
elevado imediato. Essa estratégia pode ser utilizada voluntariamente por proprietários
individuais, comunidades territorialmente localizadas e até por empresas, porém sua
utilização nacional dependerá fundamentalmente da imposição de normas jurídicas rígidas e
do poder político do Estado para sancioná-las e sustenta-las. Não é uma estratégia ecológica,
mesmo que existam coincidências de linguagem e discursos, pois a finalidade e as
considerações são bem diferentes: renunciar aos ganhos máximos possíveis
momentaneamente, para atualizar com mais benefícios no futuro. Ao entrar em contradição
com a vontade de crescimento, o preservacionismo é muito pouco difundido e dificilmente se
encontram exemplos de seu emprego efetivo. A adoção nacional de uma lógica política
preservacionista dificilmente seria alcançada, pois necessitaria de um consenso relativo do
diferentes atores que compõem a população (coletividade territorial) e o domínio das
estruturas econômicas. (RAFFESTIN, 1993, p. 135-136)
O vetor estratégico conservacionista busca maximizar, ao mesmo tempo, agora e
depois, na perspectiva das necessidades e dos objetivos da coletividade do presente e do
futuro. Tende para relação simétrica, marcado por forte espírito de gestão de longo prazo.
Essa orientação depende do Estado, que por definição representa a população que quer viver e
sobreviver num território, pois está mais habilitado que outras organizações para “gerenciar o
patrimônio nacional”. Esse pressuposto é marcado por “idealismo limitado pela ingenuidade”,
porque os recursos são objeto de apropriação privada e da propriedade privada. Mesmo nos
países socialistas, no qual a propriedade é estatal, “a situação não é muito diferente”13. “O
problema da produção de recursos reside no desequilíbrio entre informação funcional e
informação reguladora.” O conservacionismo está no cerne das relações de poder, com
vantagem para o exploracionismo, pois a regulação sempre buscou potencializar a informação
funcional, favorecendo o máximo aproveitamento econômico.
Raffestin, como se viu, estruturou o livro “Por uma Geografia do Poder”, conforme
entende os trunfos do poder: população-território-recursos. Essas são as três partes na qual
está dividido o livro, depois de iniciar com a discussão do poder. Para o autor as três
categorias (população-território-recursos) formam um sistema que precisa ser interrogado em
suas “ordens” e enquadramentos. Assim, ele desenvolve, nos dois últimos capítulos da quarta
parte, uma aplicação dessas categoriais, discutindo questões que são contemporâneas à escrita
do texto (1980). Raffestin trata dos componentes da estratégia dos atores em relação aos
recursos, particularmente sobre a transferência de tecnologia. Ao discutir essa questão, ele
trata das estratégias fundamentadas nas “tecnologias intermediárias” e “tecnologias
apropriadas”. O último capítulo discute os “recursos como armas políticas”, particularmente o
petróleo, os cereais e os minérios de cobre e alumínio. Ganha destaque a OPEP, cuja
importância emergiu da crise do petróleo de 1973, e o poder global dos EUA, especialmente
no caso dos cereais e do cobre. Esses capítulos finais estão de acordo com seu ponto de vista
de que a geografia deve “enfrentar aquilo que se convencionou chamar de ‘atualidade’
aparentemente incoerente e incompreensível” (Raffestin, 1993, p. 269).
Referências:
13 O caso exemplar é o desaparecimento do Mar de Aral no Cazaquistão, cujo início do desastre remonta à
política soviética de desvio das águas dos rios formadores, incitada em 1918, principalmente para irrigação.
CRONON, William Place for stories: nature, history, and narrative. The Journal of
American History, vl. 78, n. 4, mar., 1992, p. 1347 a 1376.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro:
Contraponto: PUC-Rio, 2014.
MASSEY, Doreen. Pelo Espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993.
SANTOS, Boaventura de Sousa. (1988). Uma cartografia simbólica das representações
sociais. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 24, 1988, p. 139-172.
SANTOS, Milton. Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo:
HUCITEC, 1996.
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