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POR UMA ANTROPOLOGIA DO DIREITO, NO BRASIL 1
Roberto Kant de Lima
Introdução
Antropologia se constitui como disciplina científica nos quadros do pensamento
social europeu do século XIX em torno,dentre outras,das problemáticas obrigatórias do
“progresso” e da “evolução social”. Competia `a disciplina assim constituída a tarefa de
explicar as diferenças entre as diversas sociedades e suas instituições, em especial aquelas
pertencentes aos “povos exóticos “ encontrados e dominados no mundo todo, pela Europa.
Para cumprir sua tarefa desenvolveu metodologia própria, calcada inicialmente na
comparação de relatos elaborados por viajantes, missionários, militares, administradores
coloniais etc. e posteriormente naquele obtidos através de observações direta, em trabalho
de campo, de profissionais especializados.
A questão central da comparação, em torno da qual se organiza o saber
antropológico, envolve uma série de problemas delicados e sutis. Na trajetória de sua
constituição de muitas maneiras foram respondidas as questões de o quê, como e por quê
comparar, Essas respostas se sistematizaram em corpos teóricos e hoje fazem parte do
patrimônio da disciplina . O que lhes é comum, no entanto, é que embora dirigida para o
conhecimento de outras sociedades, do “ Outro”, a Antropologia é uma ciência européia e
1 Originalmente publicado em Joaquim Falcão (org.) Pesquisa Científica e Direito, Recife, Editora Massangana, 1983, p. 89-116. Republicado em Arquivos de Direito, Nova Iguaçu, Universidade Iguaçu, Ano 2, no. 3, v.1, 1999,p. 223-253. No processo de sua elaboração, o autor agradece à inspiração dos professores Roberto DaMatta e Luiz de Castro Faria (póstumo) do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, UFRJ. A este último, especial agradecimento pelas sugestões,empréstimo de material, indicações bibliográficas e estímulos no que diz respeito à discussão aqui empreendida sobre o Tribunal do Júri . Agradeço também a Renato de Andrade Lessa, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense, pelas preciosas indicações no que se refere à tomada de decisões dos jurados e suas implicações políticas mais gerais. Aos Profs. Francisco José dos Santos Ferraz e Marco Antônio da Silva Melo, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense e ao Prof. Augusto F.G.Thompson, da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes, meus agradecimentos pelas sugestões, informações e apresentações sem as quais este trabalho não seria possível. Ao Professor Joaquim Falcão, a oportunidade de apresentar, discutir e publicar primeiramente este trabalho.
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ocidental basicamente comprometida com os pontos de vista de sociedade onde se tornou
necessário sua constituição.
A prática sistemática da comparação levantou desde logo o problema das categorias
do discurso antropológico, comprometidas com as línguas e instituições ocidentais e por
isso alvo d permanente suspeição de incapacidade de operar convenientemente a tradução
do “Outro” .Da discussão surgiu uma permanente consciência crítica da disciplina sobre
seus próprios produtos intelectuais, que acaba por caracteriza-la e apontar-lhe papel da
maior relevância metodológica no seio das Ciências Sociais.
As vicissitudes e avanços do método comparativo acabaram por permitir que a
Antropologia assuma integralmente seu papel: utilizando-se do conhecimento das
diferenças entre as sociedades humanas,”estranhar”sua própria sociedade,descobrindo nela
aspectos inusitados e ocultos por uma familiaridade embotadora da imaginação
sociológica. Ao compreender que o discurso comparativo é um discurso fundamental
valorativo,enunciado por um sujeito preso a um sistema de valores (o antropólogo) sobre
um sujeito também enredado em um sistema de valores (o “objeto” de estudo), a
Antropologia pode afirmar sua natureza crucialmente interpretativa, separando-se
definitivo das Ciências Naturais, preocupadas em descobrir leis que expliquem
regularidades observadas.
A imensa diversidade de costumes encontrados em suas investigações permitiu á
Antropologia o exercício crítico da construção de seu objeto teórico16. A arbitrariedade dos
fatos culturais liberta a reflexão antropológica dos liames da “Natureza”, percebida e
reencontrada em tão diversas formas e definitivamente classificada como invenção da
“Cultura”. O domínio do “natural” fica restrito apenas aos fenômenos biológicos comuns
aos indivíduos da espécie humana. É apenas a base comum que nos permite a ousadia de
tentar entender tão fortes distinções e afirmá- las compreensíveis e comparáveis. Os
fenômenos de que se ocupam as Ciências Sociais são de outra ordem,aqueles que
significam e , portanto, aqueles que dizem respeito à vida humana em sociedade, fundada
na heterogeneidade e na oposição. Assim, é possível apreender que a “ Economia” nada
tem a ver com o estômago, a “Religião”,nada a ver com o espírito, a “Política”nada a ver
com o Estado, o “Parentesco”,nada a ver com instintos naturais, relações” de sangue” ou
sexuais,o Direito,nada a ver com Códigos ou tribunais.
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A armadilha, no entanto, está posta: como pensar outras sociedades em termos
comparativos senão em termos dessa compartimentalização inventada por nós para pensar
nossa vida social dividida nesses domínios definidos? Fica clara a impossibilidade de
resolver o dilema da Antropologia em seus termos de nossas categorias, mas pode-se
melhor entender nossas categorias e nossa sociedade ao perceber como elas são exclusivas
e arbitrárias, ao invés de “gerais” e “naturais”. Cumpre-se a vocação primeira da
Antropologia oculta por tanto tempo em seus disígnios explicitados de conhecimento do
“Outro”. Com a Psicanálise tradicional ela forma os limites do conhecimento que se
instituiu em torno do Homem ,embora com opostas trajetórias: A Psicanálise procurando o
conhecimento do “Eu” para entender o “Outro”, a Antropologia buscando o conhecimento
do “Ouro” para entender a si mesma.
Tais reflexões tornam-se possíveis condicionadas por fatores muitas vezes
independentes das correntes teóricas centrais da disciplina. A formação de quadros de
Antropólogos profissionais nas sociedades periféricas aos núcleos de produção do saber
científico impôs tarefas das mais difíceis a essas profissionais, pois a Antropologia
evidentemente não conseguiu produzir nenhum estudo etnográfico de peso sobre a própria
Europa ou os Estados Unidos. Isso faz com que a medida e o padrão ocultos da
comparação, tão “natural” para as sociedades centrais, seja inexistente para quem tem sua
origem cultural nas sociedades periféricas. Há que constituir um espaço teórico que
viabilize a conjunção do saber antropológico com o saber nativo através de seu produtor,
ele mesmo antropólogo-nativo. A relação sujeito-objeto de conhecimento, já complicada
na Antropologia porque seu objeto é também um sujeito de valores, complica-se ainda
mais quando o sujeito-antropólogo pertence ao sistema nativo e sua tarefa é produzir um
discurso por todos compreensível.
Os problemas que se colocam para a disciplina antropológica continuam
extremamente excitantes e traçar-lhe a trajetória futura é sempre arriscar o incógnito e a
surpresa. A tarefa se impõe, no entanto, ainda mais devido ao papel crítico desempenhando
por esse saber frente às outras disciplinas das Ciências Sociais .
A Tradição Antropológica e o Estudo do Direito :
Como já foi apontado, o estudo dos “compartimentos”(Economia, Religião,
Parentesco, Política, Direito, etc.) foi estendido à investigação de outras sociedades onde
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sempre se procurou identificar instituições e práticas semelhantes às nossas.Esse
processo,mais ou menos velado,mais ou menos etnocêntrico, oculta sistematicamente um
dos pólos da comparação: a sociedade do observador, seus valores e instituições. A rigor,
não se trata de um esforço de conhecimento,mas de re-conhecimento, de observação de
possíveis reflexos do observador no observado. A reação ao não encontrar o “mesmo” é
sempre valorativa-negativa: ou contra a sociedade do observado, apontada como “
pervertida” e “ impura” diante de supostas inocências e “ naturalidade “ perdidas.
O recapitular da trajetória antropológica no estudo do Direito passa por extensa
enumeração e crítica de trabalhos de variada tradição intelectual em especial aqueles
realizados na França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Não é meu objetivo aqui
enumerá-los, catalogá-los e criticá-los exaustivamente. Aqueles que por essa tarefa se
interessem devem consultar algumas resenhas disponíveis(Nader, 1965; Moore, 1978).
Meu objetivo será fazer uma reflexão metodológica, a “ posterior “, sobre algumas das
tendências que se verificaram na especialidade, no intuito de obter material que possibilite
a formulação de sugestões para seu possível desdobramento.
O início das reflexos antropológicas sobre o Direito verifica-se nos quadros do
evolucionismo social do século XIX (Maine, 1861; Bachofen 1861; Maclennam, 1865;
Durkheim, 1893). Tal perspectiva teórica, mais ou menos nítida de acordo com tendências
intelectuais individuais, caracteriza-se por atribuir ao tempo a responsabilidade por
transformações necessárias vistas como “ estágios” de evolução social. Mais ou menos
oculto nessa perspectiva, dependendo do autor, está o fato de que no topo da escala
evolutiva situam-se sempre formas “ superiores” e “complexas” de organização social
encontradiças na sociedade do observados.
Exemplo quase caricatural dessa tendência teórica pode ser encontrado no texto de
Morgan sobre a “Sociedade Primitiva”, vulgarizado por Engels em seu trabalho sobre as
origens da família , da propriedade privada e do Estado (Morgan, 1877; Engels, 1884,
Leacok, 1978;). Morgan imagina a Humanidade evoluindo em uma única linha evolutiva
que pode ser dividida em estágios denominados de “selvageria”, “barbárie” e “civilização”,
cada um deles dividido em inferior, médio e superior de acordo com característica
tecnológicas distintas,escolhidas, obviamente, por Morgan. No topo do esquema evolutivo,
a “civilização superior”, estava “naturalmente” a sociedade vitoriana do século
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XIX,monoteísta, parlamentar, monogâmica, capitalista, contratual e claro, conhecedora e
apreciadora das teorias do autor. No estágio mais “baixo” estava a “ selvageria inferior”,
que era exatamente o oposto disso, caracterizando-se por “promiscuidade
sexual”,”comunismo primitivo”,”anarquia” política e jurídica,”supertições”, incoerentes
etc. É evidente que nunca nenhum evidência empírica foi encontrada da existência dessas
formas desorganizadas de vida humana em sociedade.
O esquema se revelou absolutamente fantasioso na medida em que foram ficando
disponível mais e mais informações sobre as sociedades ditas “primitivas”,em que ficou
patente a necessidade de, no mínimo, proceder-se à criação de vários esquemas evolutivos
para dar conta da diversidade do desenvolvimento das culturas e sociedades humanas. A
utilização do critério tecnológico como redutor da as demais esferas das relações sociais,
admitindo-se, de início, que à simplicidade tecnológica correspondem simplicidades
políticas, jurídicas, religiosas,de parentesco, etc., também não sustentou. Sem entrar na
discussão de que a técnica se mede por sua eficácia e adequação a contextos dados e não
por sua sofisticação, encontraram-se sistemas culturais de extrema complexidade e
sofisticação(como o parentesco australiano, por exemplo) aliados a economias de
tecnologia considerada não sofisticada e”primitiva” (mas eficaz...) como é a dos aborígines
australianos . O que ficou desta perspectiva, algumas vezes rotulada de “evolucionismo
unilinear do século XIX”ou de “falso evolucionismo “ (Lévi-Strauss, 1960), foi a certeza
das dificuldades em se tentar estabelecer linhas gerais que dêem conta da evolução
supostamente uniforme de todas as sociedades, ou da “Humanidade”, como foi possível
estabelecer no campo da Biologia em relação à espécie humana. Na mesma medida em
que se acentuou a unidade psíquica do homem, considerando-o genericamente apto a
atingir os diferentes “ estágios” evolutivos, acentuou-se o vínculo entre as diferentes
instituições e domínios das relações sociais, embora considerando-as erroneamente como
interligadas de maneira necessária e sucessiva.
A questão fundamental na Antropologia do Direito nesse quadro, teórico era como
descrever e classificar as diferentes formas de controle social bem como descobrir a
origem e leis de seu desenvolvimento. O modelo do falso evolucionismo quando
empregado nesta tarefa opera duas reduções arbitrárias: a primeira, de ordem especial,
colocando o espaço europeu no espaço dos outros continentes; a segunda, temporal, ao
tornar civilizações e sociedades contemporâneas no passado europeu, negando-lhes,desta
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maneira, a História. Os costumes, culturas, regras de conduta, diferentes da sociedade
européia são o “ Outro”, o “Exótico”, o “Estranho”, a quem não se reconhece o direito de
existir diversamente. Toda a diferença é reduzida temporal e espacialmente em um
processo de re-conhecimento de reflexos de uma mesma sociedade, identificada como
detentora da única Humanidade possível.
Herdeiros intelectuais e sofisticados dessa perspectiva são os esquemas
evolucionistas multilineares, que estabelecem tipologias distintas de evolução social para
diferentes grupos ou tipos de sociedades. A par da insistência na redução tecnológica para
definir a evolução, essas perspectivas estão em geral associadas intimamente às categorias
e instituições de nossa sociedade . As coisas, afinal, sempre evoluem do simples para o
complexo, sendo simples o que é “indiferenciado”, “homogêneo”,”descentralizado”,”não-
especializado”, etc.
Assim são sistematicamente construídas as tipologias que apontam para o crescente
“progresso” das sociedades no sentido da especialização de suas funções jurídicas, como é
o caso daquelas em que podem ser encontrados mediadores, árbitros, juízes, tribunais,
códigos, etc.(Diamond,1935,1951,1965;Hoebel,1954;Gulliver,1963; Bohannan,1957,1965,
1967). Como aponta Clastres sobre a discussão da origem do Estado na Antropologia
Política, continua-se a lidar das “ausências” para as “presenças” no próprio idioma da
disciplina (Clastres, 1974). O pensamento social, encarregado da tarefa de descobrir,
classificar e comparar o exótico, reproduz em suas categorias a fala do etnocentrismo. À
semelhança de nossos descobridores, que vêem nossos “índios” apenas “sem lei nem rei”
apesar de seus vinte mil anos de civilização, qualificam-se sempre as sociedades diferentes
de “simples”e “ primitivas” por definição e obrigação, imputando-lhes as ausências:
sociedades sem Estado, “sem escrita”, “sem instituições jurídicas especializadas”,etc.
O método antropológico traz suas surpresas, no entanto. Eis que a princípio a
maioria das informações disponíveis sobre sociedades “não européias” eram catalogadas
por não especialistas, em geral envolvidos de alguma forma com a sociedade descrita em
virtude de suas ocupações como missionários, militares, viajantes, administradores
coloniais, etc. A constituição da Antropologia como um campo legitimado do saber social
vai tornar possível a transferência desta tarefa para antropólogos profissionais.
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O catálogo dessas “ausências” vai então ser preenchido por observação direta, “in
loco”,quase sempre longa, participante e envolvente, que tem fundamentalmente a
conseqüência genérica de transformar esse “Outro” exótico em algo cotidiano e familiar.
Teoricamente, a conseqüência é a incorporação das teorias sociais nativas ao discurso
antropológico, até mesmo como pano de fundo para considerações de ordem mais geral
que envolvem a sociedade do observador.
A marca dessa reflexão é a compreensão da inter-relação dos fenômenos sociais,
que não podem ser explicados separadamente, atomizadamente, mas devem sempre ser
referidos a seu contexto e significação específicos. Sem abandonar as categorias em que
compartimentalizamos nossa sociedade, passa-se a reconhecer a funcionalidade e a
interdependência dos fatos sociais. O direito aparece como um caso privilegiado de
controle social, não só para reprimir comportamentos indesejáveis mas também como
produtor de uma ordem social definida. A instância jurídica não só reprime, mas produz
(Malinowski, 1922, 1926, 1942; Radcliffe-Brown,1952).
A percepção da diferença, entretanto, leva freqüentemente este tipo de reflexão a
dilemas insolúveis: Um deles, a constratação teoricamente inútil de que as coisas em uma
sociedade “funcionam” de uma determinada maneira, embora diferentemente em cada uma
delas, o que apenas nos garante que as sociedades têm estratégias próprias de reprodução.
A garantia da especificidade é, no entanto, inibidora da generalização. Descamba-se muita
vez em um relativismo radical que implica em admitir a impossibilidade do saber
antropológico pela inviabilidade da comparação entre heterogeneidades irredutíveis
(Bohannan, 1957, Gluckman, 1965). Tais posturas algumas vezes até mesmo parecem
ignorar o fato de que nas raízes do saber antropológico está a dominação política dessas
sociedades, que é preciso melhor conhecer para melhor controlar. Acobertados na razão
instrumental, prática, em que tudo é “ útil” quando “ funciona”, confundam-se os objetos
de análise, nas Ciências Sociais voltados para a interpretação de significados somente
possíveis na diferença e não para a descoberta de regularidades e semelhanças organizadas
em tipologias, infinitamente ameaçadas por sub-categorias da diversidade, como em
imensa coleção de borboletas. O “Outro” resgata sua identidade às cultas de uma diferença
irredutível que nada nos pode ensinar. Na esteira dessas reflexões etnocêntricas e
colonialistas estão as tentativas de “ preservação dos objetos de “ pesquisa” em seu “
estado natural “, a saber, as sociedades e costumes “ primitivos” e “ tradicionais”, como se
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o próprio reconhecimento e instituição de sua existência não fossem já sua incorporação e
utilização. Como se a “invenção” dessas sociedades como objeto de poder-saber já não
fosse a antecipação de sua dominação.
O aprofundamento metodológico da questão da comparação leva a outros caminhos
o problema da diversidade. Após tornar o “exótico”, semelhante, mas “primitivo”, para
depois torná-lo familiar, mas “diferente”, há que tornar o familiar, exótico, e finalmente
realizar em sua plenitude a proposta do saber antropológico de contemplar-se com os olhos
do outro, implodindo, definitivamente, a “Natureza” na “Cultura”. A diferença é um
artefato heurístico vivido em fenômenos específicos e experimentado de maneira intensa
nessa operação da experiência para o conhecimento. O processo de produção do saber é
uma eterna segmentação de um “Sujeito”, que torna sempre possível mais uma divisão,
produtora de diferença e de oposoções significativas, passíveis de novas interpretações. A
“Humanidade” originalmente objetificada, após diluir-se em infinitas combinações de
“sociedades”, recupera-se na instância do específico, da construção da interpretação
daquilo que é apenas e sempre mais uma de suas alternativas viabilizada concretamente.
A própria sofisticação da técnica antropológica na construção de seus objetivos
concebidos como manifestações que se atualizam de maneira particular em certos lugares,
de onde as sociedades se oferecem melhor à compreensão,permite a discussão mais rica em
termos da questão da generalização sociológica. Embora estudando um lugar em que
método o leva a trabalhar em “pequena escala”, não é esse o seu “objeto” embora como tal
muitas vezes fosse tomado. Não está ali estudando “um sistema de parentesco”, “um
sistema jurídico”, “uma comunidade”, sobre os quais enunciará um discurso limitado pela
sua “pouca” capacidade de generalizar. A passagem da quantidade à qualidade não é
empírica, mas teórica. É porque está estudando “em um tribunal”, com experiências
específicas e concretas, estabelecendo relações que se podem exprimir em “casos” e a
partir deles, é que a experiência qualitativa da Antropologia é geral e desvendadora da
capacidade das generalizações ocas e das especificidades rasteiras.
É assim que a Antropologia volta seus olhos para formas de Direito das”sociedades
complexas”, munida de toda essa trajetória crítica. Incrementa-se o exercício da diferença
dentro da própria sociedade, refundo-se as classificações sempre etnocêntricas a que está
submetida em sociedades modernas, urbanas e industriais, divididas ou não em classes
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sociais. Refutam-se os abjetivos de “tradicionais”, “primitivos”, “ embrionários”, para
rotular as formas dominadas de saber existentes nas “sociedades complexas”; mostra-se
dinâmica da complementaridade e a lógica paradoxal da construção das identidades em
sociedades divididas. Questiona-se o mito da centralização e progressiva racionalização
das práticas do poder, que oculta sua capacidade de inscrição e homogeneização de
unidades sociais, súbita e surpreendentemente identificadas com “indivíduos” erigidos em
sujeitos de direitos e obrigações. Põe-se a nu os paradoxos encerrados na percepção do
Estado como “organizações” e sua imagem de todo homogêneo e centralizador: quanto
mais complexa a sociedade, tanto mais centralizada, mas tanto mais camadas de regras, e
mais adjacentes, numerosas e diversas as jurisdições, instâncias e campos autônomos. À
aparência de centralização e controle racional corresponde uma efetiva delegação no
governo e na administração, constituindo-se mais áreas de discrição e semi-autonomia mas
assim constituídas subpartes da sociedade, sejam formalizadas ou informais.
Acima de tudo, entretanto, o olhar antropológico é crítico e impiedoso com seus
próprios produtos intelectuais e aqueles das suas companheiras Ciências Sociais. A
permemente etnografia de seu próprio conhecimento, o desvendamento das categorias que
organizam seu saber e sua sistemática implosão são os objetivos definitivos da
Antropologia, enquanto disciplina científica.
A Contribuição da Antropologia para a Pesquisa Jurídica no Brasil
A tradição antropológica prima, como se viu, por incorporar aspectos de seu objeto
de estudo a suas reflexões teóricas. Tal tarefa se realiza no plano prático pelo utilização do
método etnográfico, cujo ponto ecentral é a descrição e interpretação dos fenômenos
observados com a indispensável explicitação tanto das categorias “nativas” como aquelas
do saber antropológico utilizado pelo pesquisador. Tal método pode exercer-se não só
sobre fenômenos sociais de que participa diretamente o observador como também sobre
quaisquer produtos culturais de uma dada sociedade, oque inclui tanto discursos orais
como escritos. A convivência e participação na vida dos grupos costuma-se denominar de
“observação participante”. O fato de que a Antropologia tenha privilegiado sociedades de
tradição oral (“sem escrita”...) fez com que esse aspecto do método etnográfico fosse
privilegiado, em especial nas tradições Inglesa e Americana do Norte.
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Mas a reflexão etnográfica sobre textos tem também sue lugar no saber
antropológico, o desvendar de sua lógica e das categorias centrais que o organizam,
acompanhamento ou não de observação participante, tendo sido objeto de especial atenção
por parte, por exemplo, de Marcel Mauss e seus discípulos. Em ambas as situações,
entretanto, a boa técnica é a mesma: utiliza-se o familiar para estabelecer diferenças e dele
descobrir significados insuspeitados, que aparecem por contraste onde haviam sido
confundidos pelo olhar opaco da familiar idade cotidiana.
A contribuição que se pode esperar da Antropologia para a pesquisa jurídica no
Brasil será evidentemente vinculada à sua tradição de pesquisa. Desde logo há a advertir
que o estranhamento do familiar é um processo doloroso e esquizofrênico a que
certamente não estão habituadas as pessoas que se movem no terreno das certezas e dos
valores absolutos. A própria tradição do saber jurídico no Brasil, dogmático, normativo,
formal, codificado e apoiado numa concepção profundamente hierarquizada e elitista da
sociedade, reflita numa hierarquia rígida de valores autodemonstráveis, aponta para o
caráter extremamente etnocêntrico de sua produção, distribuição, repartição e consumo.
Constitui-se, mesmo, o “mundo do Direito” em domínio afirmado como esfera à
parte das relações sociais, onde só penetram aqueles fatos que, de acordo com critérios
formulados internamente, são considerados como jurídicos. Essa identidade formal do
objeto a que devo dirigir minha reflexão tam conseqüências imediatas. É evidente o fato de
que seus contornos nítidos apontam para facilidades empíricas na definição preliminar de
meu campo de análise, como representado pelo “nativos”: o Direito é ensinado em
Faculdades de Direito, que usam tratados didáticos sistemáticos em que se inscreve seu
saber e formam profissionais que praticarão atividades classificadas de jurídicas, em
lugares também determinados e específicos, como tribunais, delegacias, cartórios, etc. A
essa aparente facilidade se opõe, de imediato, a questão de que essa nítida definição de
limites não pode ser tomada ao pé da letra se quero exercer coerentemente a observação
antropológica: se as agências específicas tratam do Direito, elas não tratam, certamente, só
do Direito. É óbvio que os profissionais do Direito estabelecem uma teia de relações entre
si e com os grupos que os circundam, que as Faculdades se ligam a ministérios, que os
Cartórios e Delegacias não são apenas instâncias “auxiliares” do “Poder Judiciário”, etc.
Impõe-se também raciocínio inverso. A experiência antropológica ensina que o Direito é
parte do controle social, que reprime mas também pedagogicamente produz uma ordem
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social definida, embora freqüentemente desarmônica e conflituosa. Se o estudo dos
Tribunais e demais agências especializadas não é só o estudo do Direito, o estudo do
Direito também não se no estudo dessas agências especializadas. Mais: é inútil tentar
compreendê-las sem contextualizá-las.
Preliminar à investigação é também a própria representação que o Direito tem em
nossa sociedade. O que ele representa para a sociedade brasileira, quais são as expectativas
que se tem em relação a seu significado e papel e aos das instituições judiciárias em geral?
O Direito, também, não pode ser visto como um saber monolítico. Ele estará
necessariamente fragmentado em diferentes codificações substantivas e processuais,
descobertas atrás de uma aparente homogeneidade: os princípios que informam o Direito
Fiscal, Tributário, Trabalhista, Penal, Comercial, não são os mesmos, nem se aplicam nos
mesmos contextos, Tribunais e casos concretos. Cada domínio destes aglutina diferentes
saberes eventualmente incompatíveis. O mito da coerência e sistematicidade do Direito
serve a sua instituição como saber dogmático e fonte de poder.
O problema de que o direito de uma sociedade capitalista tem características
comuns a todos os Direitos de todas sociedades capitalistas, em especial àquelas que
apresentam configurações jurídicas semelhantes, não frustra meu ímpeto antropológico.
Pelo contrário, o , discurso da antropologia é sempre ancorado em uma experiência
específica, onde se descobrem aspectos inusitados dos significados sociais que se quer
interpretar. Se o fato de por estarmos estudando em uma sociedade capitalista e dependente
um Direito adequado a essas condições gerais não pode ser ignorado, não se deve recusar o
conhecimento de suas especificidades para melhor exercitar nossa tarefa sociológica (Da
Matta, 1979, especialmente Introdução).
Minha reflexão passará a se desdobrar em torno de três eixos, procurando apontar
para a perplexidades que nos esperam no decorrer de uma etnografia: o primeiro deles, a
questão do saber jurídico, como se constitui e reproduz na Brasil; a segunda, a questão da
aplicação desse através de instituições e práticas especializadas; a terceira, a questão da
relação entre esse saber jurídico e sua aplicação e os outros saberes jurídicos
eventualmente existentes na sociedade e por eles dominados, onde se coloca basicamente o
problema do acesso ao Direito.
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Os dados utilizados provêm de minha experiência como aluno e bacharel em
Direito (1964 – 1968), de uma curta experiência de campo no Pará (1977) e de dados
recolhidos em pesquisa de campo que realizo atualmente no Estado do Rio de Janeiro
desde setembro de 1981. Como pano de fundo atua certamente minha recente permanência
nos estados unidos, que me serve de padrão de contrate (1979-1981).
Quanto à questão do saber jurídico, é preciso primeiro defini-lo não como saber
restrito e especializado a ocupar espaço limitado dentro da sociedade brasileira, ma como
saber que se difunde e pervague todas suas esferas e camadas sociais, enquanto sistema de
representações sobre a sociedade, seus fundamentos e seu modo de existência e operação.
Nesse sentido constitui-se em representação consensual, em termos formais, dos formatos
que organizações em geral devem incorporar, por exemplo, desde times de futebol a
empresas públicas. A manipulação técnica desse saber pertence a uma hierarquia de
especialistas que com maior ou menor eficiência “explicam” o arcabouço jurídico em que
estamos envolvidos em nossas atividades cotidianas.
Conseqüência imediata dessa situação é o sentimento comum de que a ordenação
de nossas atividades não é algo passível de surgir de um consenso imediato entre os
diretamente interessados, que contratualmente estabeleçam regras para sua convivência,
mas deverá sempre ser fruto de uma “adequação” a desconhecidas fórmulas legais para que
possa ter eficácia. Por isso esse saber é um poder difuso mas nem por isso menos eficaz em
produzir conteúdos e orientações formais para a ação social de uma maneira geral. Seu
exercício é instrumental e formal em sua capacidade de agregar conteúdos aparentemente
contraditórios em torno de eixos de significação específicos, destinados a “resolver”
paradoxos observados em casos particulares. Incorpora facilmente outros saberes,
atualizando-se, sem perder suas propriedades fundamentais, que não residem
exclusivamente em seu conteúdo mas nas formas de sua utilização como poder.
Sua impregnação na sociedade brasileira, que se representa legalista e formal,
evidencia-se em nossa prática social densamente povoada de normas, regulamentos, artigos
e parágrafos que pairam em existência ainda mais ameaçadoras a nossos desígnios
imediatos porque contraditórios, difusos, desordenados e implícitos. Há sempre a
possibilidade de que desconheçam normas (em geral, de formal e “obrigatório”
conhecimento de todos) que possa ser subitamente invocada para nos impedir (ou
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favorecer ....), uma atividade muitas vezes corriqueira e diuturnamente repetida. Nossa
única possibilidade de sucesso, então, deixa de repousar em nossa única possibilidade
individual e coletiva, para deslocar-se sistematicamente para a habilidade e prestígio de
nossos patronos do momento, capazes de sempre e sistematicamente “controlar” a
situação, mas dificilmente de fazer valer nossos direitos.
Essa prática geral, que poderíamos rotular de clientelística e hierarquizante em
nosso cotidiano,pode ser observada em sua produção e reprodução nas instituições
“jurídicas” de maneira geral e , em especial, nas Faculdades de Direito. Esse é o lugar por
excelência da instauração e constituição explícita desse saber e de suas formas de
operação. Por essas instituições e por seu processo socializador passam, no Brasil não só os
profissionais do Direito, como juízes, advogados, promotores e juristas, mas também
delegados, escrivães, policiais, funcionários públicos, donas de casa, empresários,
políticos, enfim membros os mais diversos das camadas dominantes e dominadas da
sociedade, que ali vão em busca de “status” e reconhecimento social em seus respectivos
grupos de referência. Mas, se o obtém, será sempre às custas da iniciação nessas práticas
dogmático-formais de representar a sociedade ideal como um conjunto de lógicos em
harmonia com razão, que detém, em princípio, um conhecimento definitivo sobre as
origem e o conteúdo das formas de vida humana em sociedade.
Na prática, essa socialização se complementa tecnicamente no cotidiano do
exercício profissional, mais ou menos bem sucedido de acordo com as posições que se
consiga ocupar em uma estrutura hierarquizada e corporativa que é como se representam
organizadas as profissões jurídicas. A Faculdade, sempre “acusada” de ineficaz para o
ensino da “prática do direito”, cumpre eficazmente seu papel de socializar, iniciar,
consagrar e ampliar para além da esfera propriamente jurídica as representações
consensuais ali apresentadas como parte de uma “Ciência do Direito”.
O saber assim produzido será a base na qual se fundamentarão leis, regulamentos,
sentenças e acórdãos judiciais, pereceres e projetos políticos, inclusive aqueles de ordem
constitucional, assim como a chamada doutrina – princípios básicos que orientam a prática
supostamente técnico-jurídica. Mas também será a base em que serão exercidas atividades
“extra-jurídicas”, como as policiais, de serviços públicos e particulares, de associações e
organizações particulares, consciente ou incoscientemente.
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A forma de instituição desse saber implica em aparente distanciamento formal da
realidade social, que tem que ser atingida por sucessivas operações de redução lógica a
suas configurações normativas. É a realidade que se deve adaptar, em cada caso, ao
Direito. O que nos coloca diante da legitimidade dos processos de constituição dessas
representações. Cabe a nós antropólogos explicitar os mecanismos que informam as regras
de operação desse saber.
Para demonstrar como percebo operando a relação entre o conteúdo desse saber e a
legitimação de práticas sociais em nossa sociedade, deverei exemplificar com duas
situações em que o saber jurídico, através de princípios doutrinários, se inscreve em
instituições judiciárias e recusa o que explicitamente se propõe, regular “juridicamente” o
comportamento social através de regras gerais a todos aplicáveis, fundamentadas em
princípios explícitos. Ao dar tais exemplos pretendendo contribuir para uma explicitação
do tipo de contribuição que a Antropologia pode dar à pesquisa jurídica, tornando
conscientes processos que se ocultam atrás de formalismo que apenas podem servir ao
reforço do arbítrio e da exploração em nossa sociedade. Autores e situações citadas,
portanto, são aqui considerados como representativos de uma situação geral, nenhum
propósito havendo além do interesse acadêmico na interpretação de nossa sociedade, na
exposição e discussão nesse doloroso processo de estranhamento.
O primeiro exemplo dirá respeito à área de parentesco, por guardar íntima relação
com a tradição de estudos de minha disciplina. Na Antropologia Social se estabeleceu em
definitivo a convicção de que o parentesco é um fenômeno social, que diz respeito à
organização de grupos dentro da sociedade, em termos de direitos, obrigações, atitudes,
residências, alianças, inclusão e exclusão de membros. Nada tem a ver, portanto, com
“instintos individuais” ou com “leis naturais” (Lévi-Strauss, 1959, entre vasta
biblliografia).
Mas em consagrado texto de Filosofia do Direito, largamente utilizado nas cadeiras
de “Introdução à Ciência do Direito”, obrigatória no currículo das faculdades, como
comprova sua 26a. edição de 1980, encontra-se exposição sobre a “origem da família”. O
autor faz referência, sem contextualização cultural alguma, a casos de “promiscuidade”
entre melanésios para exemplificar supostas divergências entre antropólogos e sociólogos
quanto ao “estatuto originário das relações sexuais na espécie humana”, (Lima, 1980:17).
15
Segundo ele, alguns alguns admitem a existência de um alegado estado de
“promiscuidade” e “comunismo sexual” anterior à constituição da família, como Gunther,
( autor que não merece nenhuma indicação bibliográfica assim como todos os demais,
impossibilitando qualquer tentativa de conferência, contextualização e discussão
acadêmica de suas afirmações, tomadas dogmaticamente, portanto), enquanto outros (sem
indicação) afirmariam o “patriarcado” como mais antiga forma de família. Está fornecida e
estabelecida a fórmula evolucionista de pensar a instituição familiar em termos de
organização de suas regras. Após dissertar sob formas de casamento poligâmicos, o autor
volta a fazer citações. E os autores escolhidos são Westermarck e Briffault, o primeiro
afirmando a existência de um “instituto monogâmico” enraizado na natureza humana e o
segundo, que estabelece em relações transitórias e “promíscuas” os aspectos
predominantes das relações entre os sexos no “estágios inferiores da cultura” (Lima, 1980).
Outro tratadista, especialistas em Direito de Família, ensina que o parentesco
“natural” decorre apenas da consangüinidade, sendo pai e filho, por exemplo, “parentes
naturais”; seu parentesco foi criado pela própria natureza, através do sangue (Monteiro,
1964: 242) Os vínculos sociais e os direitos e obrigações jurídicas que decorrem da relação
de parentesco, estritamente sociais, parecem ter sua legitimação na Natureza. Numa
suposta natureza humana encontram também justificação os estabelecimentos arbitrários
das várias idades em que se adquire a responsabilidade civil e a habilitação para a plena
capacidade jurídica.
Na prática, o que esse saber faz é veicular certas representações, oriundas de
concepções acríticas dos fenômenos sociais, de maneira dogmática. Como é esse saber que
vai ser invocado na confecção das leis, e preencherá as justificativas que serão
apresentadas em juízo, ele tenderá a reproduzir concepções etnocêntricas e ultrapassadas
das instituições sociais. Mais que isso, ele é ensinado hoje, nas Faculdades, como atual e
base para a realização da finalidade do Direito como habitualmente definido: campo de
estabelecimento do dever social.
Entretanto, a operação dessas premissas de conteúdo discutível não se constitui nem
ao menos em regra geral pela qual podemos orientar nosso comportamento, estejamos ou
não de acordo com ele. Pois, se um pai ajuíza uma causa para livrar-se do pagamento de
pensão ao filho, por este ter atingido a maioridade, o filho, embora parte sociológica e
16
crucialmente envolvida no processo, dele não é parte legítima, formalmente falando, pois o
pacto que estabeleceu pensão foi firmado entre mulher e marido, na minoridade do filho.
Embora se comprovando a necessidade da pensão a despeito da maioridade, o argumento
formal prevaleceu, sendo decidida favoravelmente ao pai a causa, realmente ajuizada no
Estado do Rio de Janeiro em 1982.
Onde, então, buscar a legitimidade das regras capazes de assegurar orientação
segura para este domínio supostamente “natural” do parentesco, que em nossa sociedade se
apresenta, por isso mesmo, como de domínio do Direito Público, regido por normas rígidas
e não contratuais? Pois a característica desse saber é também ser impermeável ao exame
concreto e empírico das condutas, a pretexto de dirigi-las. Assim, uniões que não se
realizam segundo as “formalidades legais” também não são admitidas ao Direito em suas
condições particulares, pois estas fazem parte de um elenco limitando, de enunciação
restrita. “ Contratos de casamento” que pude manusear no Pará, em que estipulam
condições para uma vivência temporária de um casal com explicitação de deveres e
direitos mútuos e compreensíveis para ambos os contraentes, inclusive no que diz respeito
a serviços sexuais, econômicos e sociais a serem prestados por ambos os cônjuges, são
elaborados e “registrados” em cartórios ou escritórios de advogados. Servem para fundar
relações duradouras e explicitamente controladas pelas partes, uma vez que renovam ou
não periodicamente o pacto, alterando-o ou não. A garantia da vigência, entretanto, é de
ordem puramente social, constituindo-se em geral em impedimento de contrair novo pacto
na comunidade em virtude de perda da credibilidade da parte inadimplente. Eis aqui um
novo significado contratual de que não só à realidade social mas também a sua suposta
finalidade reguladora. Na prática, os contratos são incorporados sempre de maneira
implícita e sub-reptícia, às discussões e conflitos que originam. Não podem, no entanto,
aparecer explicitamente como prova ou indício no processo. Fica, de novo, inteiramente no
arbítrio dos agentes processuais sua consideração ou não.
O formalismo processual, portanto, só contribui para prolongar o arbítrio e o clima
de permanente ilegalidade que se respira em toda a sociedade brasileira, oriundo longínqua
e provavelmente de um espírito fiscalista do Império português, mais recentemente
atualizado em termos de nossa triste tradição de regimes republicanos de execução.
17
Meu segundo exemplo refere-se mais explicitamente ao trabalho que atualmente
desenvolvo sobre o júri no Brasil.
As representações sobre a instituição do júri destacam sempre sua característica de
“Instituição democrática”, em que o “povo” participa das decisões judiciais,
“humanizando” a lei. As suas decisões devem, por isso mesmo, ser obtidas através do
compromisso dos jurados, como forma reconhecida de exercício democrático e de
legitimação de instituições e normas jurídicas. Não seria muita ousadia afirmar que o júri
no Brasil reflete, conscientemente, em sua organização, nossa idéia de democracia. Tal
hipótese é reforçada pelo acirramento das polêmicas que tem suscitado, desde sua origem,
a instituição e suas práticas,inclusive aquelas originadas em sua omissão da Constituição
de 1937 (Franco, 1956).
O que demonstrarei é que o júri brasileiro se organiza e toma suas decisões de
acordo com normas e práticas associadas a certo saber jurídico, fundado em determinadas
concepções do século passado, que se atualizam através da legislação e práticas judiciais.
Para os propósitos desse trabalho tomarei apenas normas e práticas relacionadas à
incomunicabilidade dos jurados e à constituição de uma lista anual pelo juiz, de onde são
sorteados aqueles que vão assim servir.
Nas disposições dos artigos 458, parágrafo 1º e 476, do Código de Processo Penal
Brasileiro, encontram-se as disposições sobre as fórmulas prescritas para tomada de
decisão dos jurados, que incluem o instituto da incomunicabilidade. No art. 439 do mesmo
Código encontra-se a regra para a elaboração das listas de jurados.
No art. 458, parágrafo 1º, lê-se que o juiz advertirá os jurados de que uma vez
sorteados, não poderão comunicar-se com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o
processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa, de quatrocentos a mil cruzeiros.
Informantes solicitados a esclarecer o significado desse artigo, ligados às tarefas do júri,
foram unânimes em afirmar, que esta é a maneira de preservar os jurado de eventuais
influências que possam interferir em seu julgamento. Resulta, na prática em seu
confinamento ao recinto do Tribunal do Júri pelo período que durar o julgamento, muitas
vezes prolongado por dias seguidos. Um comentarista consagrado faz referência à
“severidade” dessa medida em relação a outras legislações, como a francesa e algumas
norte-americanas que permitem intervalos no julgamento, podendo o jurado retirar-se a
18
sua casa, “sujeito, então a influências as mais diversas” (Noronha, 1979: 265). O mesmo
tratadista argumenta que não seria demais que essa incomunicabilidade se estendesse aos
jurados entre si, “de modo que o voto fosse exclusivamente o resultado de sua convicção”,
mas a lei pátria, com as cautelas tomadas, cuida para que a comunicação entre os jurados
não chegue ao ponto de um influir sobre o outro. Tais cautelas são as do art. 476 do CPP,
que estipula que o juiz deve estar presente à sala secreta onde se realiza a votação dos
requisitos referentes ao julgamento para “evitar a influência de uns sobre os outros”.
A chamada quebra da incomunicabilidade, quando provada por quem a alega, é
motivo de anulação do julgamento e a realização de um outro, o que tem sido
sistematicamente ratificado pelo saber jurídico expresso nas decisões jurisprudenciais,
inclusive do Supremo Tribunal Federal (Jesus, 1982: 270 – 272 e 279).
Ora, tal característica foge inteiramente às representações que os brasileiros leigos
têm sobre o júri, inclusive réus, a maioria delas oriundas do que se vê em filmes, no
cinema ou na televisão, quando todo o encanto e força dos longos e acalorados debates
entre os jurados vão constituir-se em expressão dos valores de uma determinada sociedade.
Tais debates também veinculam a idéia de que a decisão final é fruto de um compromisso
entre jurados, após veiculação explícita de suas diferenças. O júri mesmo “bloquear-se”,
não conseguindo chegar a um veredito, caso em que o julgamento é repetido (Jacob, 1972).
Essa característica do debate permeia as várias formas que o júri toma nos estado Unidos,
enquanto processo pedagógico destinado à obtenção de compromisso entre as partes, ou de
um “senso comum” representativo do grupo.
A perplexidade diante do cerceamento da comunicação entre pessoas escolhidas a
dedo, por indicação pessoal do juiz ou de pessoas de sua confiança, como dispõe a
legislação, (art. 439 CPP) que se constituem em grupos de vinte e um, dos quais se
sorteiam em cada julgamento sete e que supostamente representam a idoneidade média da
sociedade, desaparece quando se vê o motivo da medida não reside em desconfiança
pessoal mas na eventual possibilidade de influência que possam exercer uns sobre os
outros. É bem verdade que a categoria influencia, no Dicionário de Aurélio Buarque de
|Hollanda é assemelhada a “sugestão” e também ao exercício de ascendência de uns sobre
os outros. Tal visão parece denunciar certa desconfiança com a prática da discussão entre
pessoas iguais, onde não se “influencia”, mas se convence através de argumentação.
19
A desconfiança com a influência, ou sugestão, não é nova, entretanto. Desde o
século passado faz parte de teorias da chamada “psicologia coletiva”, que entendia a
sociedade não a partir de sua constituição em grupos sociais mas como composta de
agregados de indivíduos, estes as verdadeiras unidades sociais. Tais concepções não fazem
senão radicalizar a invenção ideológica do indivíduo como sujeito de direitos e obrigações,
que aparece na ideologia ocidental como parte do processo de compartimentalização e
autonomização com que se representa (Dumont, 1960; 1967; 1977).
Explicava-se o comportamento social coletivo como comportamento de “multidão”
tendendo a ver quaisquer movimentos de massa como formas de “loucura” coletiva,
“anormalidades” psíquicas, e não como resultado de conflitos sociais emergentes.
Ora, as vinculações sobre o saber-poder do Direito e os da Psiquiatria e da
Psicologia tem sido objeto de reflexão metodológica sistemática (Foucault, 1963,
1972;1975;1977). Tendem essas associações especialmente em direito criminal, à
transformação de conflitos sociais e políticos em fenômenos relacionados ao “homem”, a
sua “personalidade” ou a seu “meio”. Cria-se com isso figura do “criminoso” do
“delinqüente, do “louco”, que vem substituir a noção clássica de “crime”,
individualizando, no campo jurídico, os procedimentos essenciais a seu controle. Passa-se,
assim, de um a estratégia repressiva e exemplar à verdadeira “produção” de certo tipo de
indivíduos úteis ao sistema. Reflexo deste movimento é o conceito de periculosidade,
utilizado para constituir um discurso médico-psíquiátrico-jurídico capaz de justificar o
controle indeterminado de desviantes ou dissidentes (Thompsom, 1983).
Pois é nessa direção da individualização de conflitos e dos procedimentos teóricos
da chamada criminologia positiva que encontramos o campo intelectual onde se constitui
como saber a “psicologia das multidões”. Não foi necessário procurar muito para encontrar
no mesmo tratadista anteriormente mencionado, agora na parte de Direito Penal (em 1982
em sua 40ª edição) referência, em seu parágrafo 141, aos “crimes de multidão” (Noronha,
1982). Não é também surpresa encontrar ali referência (como é de hábito nesse saber
dogmático sem indicação de obra ou página) aos autores “especialistas” da matéria: Lê-
Bom, Sighele e Tarde. O autor repete-lhes o conceito de multidão: “É a multidão um
agregado, uma reunião de indivíduos, informe e inorgânico, surgido espontaneamente
desaparecendo ( Noronha, 1982). Tornam-se “espontâneos” caos de perda das faculdades
20
mentais, objeto portanto de estudos psicológicos para detectar as origens dessa
anormalidade das consciências individuais sadias, momentaneamente ensandecidas,
A relação desta discussão sobre multidões com a forma de julgamento pelo júri
popular é conclusão expressa de um dos autores citados pelo tratadista e ditado entre nós
em 1954 sem nenhuma introdução crítica, passando portanto, tranqüilamente, seu
conhecimento por contemporâneo. Sighele, referindo-se a supostos erros de julgamento
cometido pelo júri afirma: “todos estes fatos (...) provam simplesmente isto: que doze
homens de bom senso e inteligentes podem dar um sentença estúpida e absurda, uma
reunião de indivíduos podem (sic) dar uma resultante oposta à que teria dado cada um
deles” (Sighele, 1954: 16).
Prossegue o autor dizendo que o único caso em que os caracteres do “agregado e
das unidades que o compõe se correspondem é quando existe semelhança,
“homogeneidade, entre suas unidades. (Sighele, 1954: 21).
“Uma reunião cosmopolita não pode evidentemente refletir em seu conjunto os
diversos caracteres dos indivíduos que compõe, com a mesma exatidão que uma reunião de
indivíduos todos italianos, ou todos alemães, refletiria no seu conjunto os caracteres
particulares desses italianos ou desses alemães. O mesmo se poderá dizer de u júri, no qual
o acaso cego colocou o tendeiro junto de um homem de ciência, em comparação com uma
Assembléia de peritos” (Sighele, 1954:22, Grifo nosso).
Vê-se bem porque a tendência da homogeneização em termos de classe social,
profissão, etc, que se constata nas listas de jurados, muitas vezes conscientemente desejada
no Brasil, não se constitui em preocupação de obter a maior representatividade social,
estimulando-lhe a composição diferenciada, como nos procedimentos até mesmo aleatórios
de escolha nos EUA ( Jacob, 1972:124).
Não são menos arraigadas no tempo e nos conceitos da psicologia coletiva as
normas e práticas que tendem a formas um permanente corpo de jurados, para que melhor
se adeque as suas finalidades julgadoras. Não é portanto o julgamento do “homem comum”
ou do “homem médio” que se procura, mas o julgamento de um jurado profissional:
“Mas não basta que as unidades sejam muito semelhantes entre si, para estabelecer
analogia entre seus caracteres e os do agregado que os compõe; é necessário ainda que
21
essas unidades estejam unidas entre si por uma relação permanente e orgânica” (Sighele,
1954:22). E mais ...” as reuniões adventícias e inorgânicas de indivíduos, como as que
temos num júri, num teatro, numa multidão – não podem reproduzi nas suas manifestações
os caracteres das unidades que as compõe, do mesmo modo que o ajuntamento confuso e
desordenado de uma determinada quantidade de tijolos não podem reproduzir a forma
retangular de um sé desses tijolos. Por conseguinte neste último caso é necessário a
disposição regular de todos os tijolos, para construir uma parede do mesmo modo, no
primeiro caso, para que um agregado dê as qualidades dos indivíduos que compõe, é
necessário que nestes indivíduos estejam unidos entre si por meio de relações permanentes
e orgânicas, como, por exemplo, os membros de uma mesma família, os indivíduos que
pertencem à mesma classe da sociedade” ( Sighele, 1954: 23, grifos do autor).
A seguir, citando Bentham a propósito das Assembléias políticas e do júri inglês,
diz que ele já “fazia notar a grande diferença que há entre as manifestações dos corpos
políticos que têm um existência permanente, e as manifestações dos corpos políticos que
têm uma existência na ocasião e passageira e dizia que os primeiros dão mais facilmente
que os segundos resultados que correspondem aos verdadeiros interesses e às verdadeiras
tendências de seus membros” (Sighele, 1954:23, nota 19, grifos do autor).
Para esses autores, como se vê, a sociologia não tem um objeto que lhe seja próprio,
como já desde 1888 estabelecera Durkhein (1888; 1895). O comportamento social não é
fruto de representações coletivas diferentemente apropriadas pelos grupos, e existentes
apesar dos indivíduos que os compõem, mas fruto de contato entre os indivíduos, ou de
imitação. A grande preocupação de Sighele, aliás, é retirar da sociologia spenceriana, que
estabelecia que os agregados eram resultado do comportamento dos indivíduos, o estudo
dessas “multidões”, segundo ele regidas pela lei da intimação e pelo mecanismo da
sugestão. Pela imitação se verifica o “contágio moral”, responsável, por exemplo pelas
euforias e depressões econômicas e políticas (Sighele, 1954: 35) A imitação é atualizada
em comportamento através da sugestão, pela qual os homens se influenciam
reciprocamente. No caso da multidão, entretanto, essa sugestão atua sempre
negativamente, perdendo as melhores influências para as más. Isto porque: “a média de
muitos números não pode ser igual aos mais elevado desses números, do mesmo modo que
um agregado de homens não pode refletir nas suas manifestações as faculdades mis
elevadas, próprias de alguns desses homens; refletirá apenas as faculdades que se
22
encontram em todos ou no maior número de indivíduos. As últimas e melhores
estratificações do caráter, diria Sergi, as que a civilização e a educação conseguiram
formar alguns indivíduos privilegiados estão eclipsadas pelas estratificações médias que
são patrimônio de todos: na soma total estas prevalecem e as outras desaparecem (...).
sucede, na multidão, no ponto de vista intelectual. A companhia enfraquece – em relação
ao resultado total – tanto a força do talento como os sentimentos caritativos (Sighele, 1954:
58 – 59).
Justificada está a fiscalização permanente dos jurados, para que não se
“influenciem” apesar de selecionados com todo o rigor. Não dependendo de sua vontade
mas de simples fato de sua reunião a decadência moral e a decadência moral e intelectual
a que estarão submetidos. É claro que o fato de se tratarem de brasileiros, e não de
americanos e franceses faz com que essa fiscalização certamente se exerça com maior “
rigor e cautela” fechando-os portanto no recinto do Tribunal enquanto dura o julgamento ...
Tais idéias opõem-se evidentemente à idéia liberal clássica de que indivíduos livres
e iguais entre si deverão atingir um compromisso através de discussão de que participem
argumentando e contra-argumentando explicitamente. O compromisso surge dessa
discussão e a decisão não se constitui em manifestação, através de suas consciências
individuais, de um consenso anteriormente imposto pela socialização pré-existente e de
cujo conteúdo são receptáculos supostamente passivos, acríticos e repetidos. A diferença é
um mal a ser evitado, a homogeneidade um bem em si. Ais que isso, a diferença implica em
uma hierarquia “natural” entre os indivíduos, classificados de acordo com uma tabela de
valores definidos, evidentemente, Poe camadas dominantes na sociedade. São esses valores
aqueles que cumpre reproduzir através de engenhosos esquemas de poder-saber,
pedagogicamente destinados a veiculá-los eficazmente, inclusive através de suas
instituições mais democráticas. É evidente que o domínio do Juiz singular está
resguardado, pois juízes, por formação e profissão, são “homogêneos” e “permanentes”.
Mas não é necessário para que se tenha uma justiça elitista e anti-democrática, reprodutora
de um mesmo saber comprometido com a homogeneidade e a estratificação.
Tais representações sobre a prática da tomas de decisões em grupo se atualizam
concretamente no júri, pedagogicamente informando aos jurados como deve ser sua
atuação enquanto grupo. A permanência de unas mais que os outros nas listas de jurados,
23
ao arbítrio do juiz, reflete que esse processo de socialização tem mesmo um fiscal de sua
incomunicabilidade e sugestionabilidade. De outro lado, essas visões individualizadoras do
crime e de “ multidões” são freqüentemente levadas à tribuna por advogados e promotores,
que freqüentemente citam idéias, num processo de convencimento e inscrição sobre um
grupo social do saber-poder de que estão dotados.
Tal socialização, que se estende ao “aprendizado” na resposta a quesitos e na
circunstância de que a maioria dos jurados, em cidades grandes, é “bacharel”, mostra que o
sentido pedagógico deste julgamento está perfeitamente de acordo com aquilo que seus
ardorosos defensores propugnam. Ele é realmente o espelho de nossa “democracia”,
tutelada e hierarquizada.
Conclusão
A etnografia do judiciário passa pela compreensão de que suas instituições, práticas
e representações estão inseridas na sociedade brasileira e com ela mantêm uma relação de
influência e interdependência. Também passa pelo paradoxo de verificar as causas de que
essa “ineficiência” secularmente atribuída às instituições judiciárias se alia seu imenso
potencial reprodutor e difusor, para todas as áreas da sociedade, desse saber-poder.
É necessário fazer a etnografia dos mecanismos que presidem a formação dessas
decisões milagrosamente racionais e imparciais num de “jeitinho” e privilégio, enumerado
cuidadosamente suas circunstâncias e sue agentes, formal e informalmente admitidos ao
processo. Problemas e discussões familiares à Antropologia no estudo das instituições
jurídicas em geral e no seio das chamadas sociedades mediterrâneas em particular, com sua
elaborada processualística e seu característico sentimento de honra que, afinal se atualiza
em qualquer litígio e entre seus agentes, bem como com sua infindável multiplicação de
instâncias mediadoras associadas com freqüência e erroneamente a sociedades “simples” e
“irracionais”.
Certamente deveremos analisar as conseqüências que uma ordem jurídica liberal,
supostamente fundada na igualdade de indivíduos diferentes e na isonomia das partes
apresenta quando aplicada a sociedade que se representam hierarquizadamente.
Individualidade associada a representações igualitárias da sociedade constitui-se em
discurso sustentador de liberdades individuais e respeito a diferenças. Individualidade
24
associada a representações hieráquica da sociedade significam sempre distorções atribuídas
a ordens da efetividade “egoísmo” ou da insanidade (genialidade e loucura), resultando
quase sempre em “necessidade” de imposição de ordens autoritárias, freqüentemente
associada à exploração selvagem dos mais fracos, a quem não se dá nem a proteção da
casta e a garantia de uma posição e identidade sociais quaisquer (DaMatta, 1979; 1982;
Falcão, 1981).
Estaremos também problematizando as definições e limites dos domínios do
público e do privado, tradicionalmente operados em uma ótica personalizante no seio da
magistratura brasileira (Schwartz, 1979).
Será preciso, pois, rasgar os véus do poder e implodir suas férreas categorias a que
sempre correspondem práticas casuísticas e arbitrárias, mas eficazes em sua manutenção e
reprodução. É preciso tornar todas as práticas jurídicas, substantivas e processuais,
conhecidas e explícitas, para que regras definidas e a todos acessíveis governem as
atividades judiciárias. A democracia do judiciário passa pelas concepções de democracia
arraigadas na sociedade e portanto por esse poder-saber difuso que se inscreve em seus
objetos a cada instante.
Será preciso abandonar concepções legalistas de que decretos e leis são a melhor
forma de governar, privilegiadas via de transformação social, em vez de conceber esse
processo invertido de produção legal como um abdicar de direitos, não sua expressão. É
preciso libertar-nos de concepções positivas e naturalistas na representação dos fenômenos
e saberes que se produzem socialmente, e que resultam sistematicamente em mitos como
os de neutralidade de partes e agentes de decisões, individualizações de conflitos sociais,
criminosos, processos e prisões.
Será preciso desfazer-se, finalmente, da idéia funcional-instrumental de que o
judiciário é um lugar de “resolução de conflitos”, suposto promotor de uma harmonia
social sempre ameaçada pelo litígio e pela diferença dos indivíduos e dos grupos sociais
capazes de exprimir, criar e extinguir diferenças e semelhanças fundamentais ao convívio
social e ao exercício da diferença e da heterogeneidade (Nader, 1965).
É preciso fazer a etnografia das instituições judiciárias. É preciso percorrer seus
Espaços, as salas e os corredores, assistir audiência, reparar em quem lá comparece, como
25
se veste e comporta. É necessário contar as presenças e as ausências, descrever-lhes
significados e utilização. Depois, é preciso entender seu tempo, seus prazos infindáveis,
suas audiências formalmente ininterruptas, seus hierarquizantes rituais de espera e poder.
É imperioso contar-lhes os servidores e serventuários, descrever suas práticas,
observe suas transformações no contato contagiante do poder. Perceber a rede de suas
relações pessoais e sua expressão na maior ou menor facilidade de acesso às informações e
‘as decisões processuais. É preciso fascinar-se com o jogo do formal e do informal,
contaminar-se com ele, vestir-se como um deles e com eles se confundir. Portar-se
diferentemente e deles se diferenciar.
É preciso ir além: saber quem vai aos tribunais e porque. Contar-lhes os números,
os motivos, os valores morais e financeiros envolvidos, por quê vale e por quê não vale a
pena litigar judicialmente. É preciso ir ‘as varas cíveis e criminais, de Família e de
Falências, à Defensoria Pública e ás Promotorias. Depois é preciso ir aos cárceres. Às
Repartições Públicas e mais uma vez percorrer tudo como policial, como advogado, como
antropólogo e como cidadão e deslindar essa mágica transformação dos serviços da
Admistração em Poder Administrativo.
E nesses casos observar como o Poder se organiza súbito, coerente, frente a casos
concretos que investe, organiza e silencia. É preciso ouvir os silêncios desse saber-poder, o
que nele está implícito naqueles procedimentos sempre tão ritualizados, abertos e formais,
de quem nada teme porque nada deve, expressão máxima de seu arbítrio definitivamente
impune e irresponsável.
Fundamentalmente, é preciso não deixar nada de lado, nem um recanto e nem um
escaninho, não para que se reproduza a realidade no anseio de sua transparência positivista,
nem para que surja renovada de uma quimeira racional. Apenas para finalmente perceber
que não estamos diante de nenhum “judiciário”, mas diante de uma janela de onde é
possível constituir u interpretar alguns dos aspectos de nossa sociedade, aprofundando seu
conhecimento e ocupando afinal, um espaço vago.
Depois de nos ver pelos Tribunais, é preciso não esquecer a sociedade. É preciso
percorrer-lhe as formas urbanas e rurais de legislar, judicar e executar a lei no silêncio
embrutecido de um Direito elitista. É preciso aprender com sua variedade, colaborando em
26
sua distinção e nunca temendo sua diversidade e autonomia que afirma “a priori” sua
capacidade para o exercício do Poder. É preciso aprender com essas formas jurídicas,
sofrer com elas, deixar-se educar por seu conhecimento que antropologicamente se
desvenda. Colabora-se assim na destruição das estratificações injustas e na construção de
hierarquias expressivas da realidade social. É preciso tomar desses saberes dominados a
implosão dessa razão instrumental, oportunista e impiedosa sistematicamente utilizada para
dominar e explorar.
Há que conhecer-se com os olhos do “Outro” .
Numa outra perspectiva é urgente e imprescindível encetar e encorajar estudos
comparativos nessas áreas e nesse espírito, pensando antropologicamente em outros
sistemas de sociedades aparentemente semelhantes ou muito distintas da nossa. A
perspectiva comparada precisa do exercício da convivência com a diferença para afiar seus
instrumentos. Só assim será possível produzir um saber, a partir de nossas especificidades
culturais e a elas adequado.
Se queremos levar a sério a proposta de pensar democraticamente a diferença em
nossa sociedade, libertando-nos dos prismas do colonialismo econômico e cultural, interno
e externo, bem como explicitar as tendências etnocêntricas e homogeneizantes por ele
suscitadas há que aprender com a perspectiva antropológica a valorização heurística das
diferenças. Começar por descobri-las e pó-las a nu em nosso cotidiano, estranhando o
“natural” e familiarizando-nos com o exótico, eis o longo caminho democrático a
percorrer. Na área do direito, como apontei, o percurso é tanto mais árduo porque implica
na transformação das próprias bases onde se ancora um saber-poder que se difunde muito
além do “jurídico” em nossa socialização.
Não há glória ou fama nessa luta, nem objetivo a ser alcançado. Em nossa melhor
tradição, “porfia-se porquanto é bom porfiar”.
BIBLIOGRAFIA
BACHOFFEN, J.J. Das Mutterecht. Stuttgart, Krais and Hoffmam, 1861.
27
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SHELTON, Davis, (org.) Antropologia do Direito. Rio de Janeiro, Zahar, p.
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