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PORTUGAL: 30 ANOS DE DEMOCRACIA (1974-2006)

ACTAS DO COLÓQUIO REALIZADO NA FACULDADE DE LETRAS

DA UNIVERSIDADE DO PORTO

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FICHA TÉCNICA

Título Portugal: 30 Anos de Democracia (1974-2004)Actas do Colóquio realizado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (30 de Setembro a 1 de Outubro de 2004)Coordenadores Manuel Loff e M. da Conceição Meireles PereiraCoordenação Editorial e Revisão Sara PonteEditora da Universidade do PortoSérie Para Saber, 51ª Edição, Porto, Maio 2006© Universidade do PortoEndereço Rua D. Manuel II, 4050-345 Portohttp www.up.pt/editora | e-mail: [email protected] Design Studio Andrew HowardImpressão NorprintISBN 972-8025-47-5 ISBN (13) 978-972-8025-47-2 Depósito legal 243990/06

Com o apoio de:

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MANUEL LOFF E M. DA CONCEIÇÃO MEIRELES PEREIRA(COORDENADORES)

PORTUGAL: 30 ANOS DE DEMOCRACIA (1974-2004)

ACTAS DO COLÓQUIO REALIZADO NA FACULDADE DE LETRAS

DA UNIVERSIDADE DO PORTO

PORTO

UNIVERSIDADE DO PORTO2006

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ÍNDICE

Apresentação 09

Manuel Loff e Maria da Conceição Meireles Pereira

A DEMOCRACIA PORTUGUESA: REFLEXÕES HISTÓRICAS

A Revolução Portuguesa de 1974/75 e a Institucionalização

da Democracia 015

Fernando Rosas

O legado do Autoritarismo e a Transição Portuguesa para a

Democracia, 1974-2004 037

António Costa Pinto

Heróis do Lar, Nação AmbiValente. Portugalidade e

Identidade Nacional nos tempos dos Post 073

Abdoolkarim Vakil

Da África à Europa: quando Portugal descolonizou 103

Josep Sánchez Cervelló

Trinta anos de democracia: mudanças sociais e inconsistência

institucional 133

José Madureira Pinto e Virgílio Borges Pereira

Fim do colonialismo, ruptura política e transformação

social em Portugal nos anos setenta 153

Manuel Loff

Os Vinte Anos do 25 de Abril na “Vértice” 195

Maria da Conceição Meireles Pereira

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NOVAS INVESTIGAÇÕES

Que fazer com esta terra? Itinerários de modernização da

agricultura em Portugal (décadas de 50 a 70) 209

Dulce Freire

O Poder Local no debate constituinte (1975-76) 225

José António Ferreira A imprensa diária portuense no período revolucionário

de 1974-75 241

Ricardo Miguel Gomes

O 25 de Abril tal como é ensinado - a Democracia e o

Ensino da História 251

Tiago Matos Silva

Para a História do 25 de Abril no Norte de Portugal

- Histórias de Vida do MFA 265

Manuel Loff e Nuno Martins

O Centro de Documentação e Informação sobre o

Movimento Operário e Popular do Porto (CDI) da

Universidade Popular do Porto 287

Universidade Popular do Porto

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Recolhem-se, neste livro, as comunicações apresentadas ao Colóquio Portugal: 30 anos de Democracia, 1974-2004, organizado pelo Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 30 de Setembro e 1 de Outubro de 2004. Três décadas volvidas sobre a ruptura que o 25 de Abril operou na História Contemporânea portuguesa, abrindo caminho a um modelo de construção democrática fundamentalmente inédito na Europa, pelo menos desde 1945, pareceu-nos importante reunir quem pudesse propor interpretações globais de vertentes de um território histórico que nos abre hoje muitas e ricas perspectivas de investigação mas que não tem sido ainda significa-tivamente percorrido. Neste volume, conseguimos reproduzir a grande maioria daquelas que ocuparam os dois dias dos trabalhos.

Fernando Rosas revê a crise do regime, os impasses marcelistas e a verdadeira Primavera abrilina que o MFA fez irromper na sociedade portuguesa. A perspectiva que segue é a de explicar como “uma crise de regime (o impasse do marcelismo) se transformou numa crise revolucionária”, colocando sequencialmente duas ques-tões de fundo: “qual foi a natureza dessa Revolução de 1974/75 e qual o seu des-fecho? Perguntado de outra forma, qual foi o papel dessa revolução na democracia portuguesa actual: “um parênteses dispensável ou uma marca genética essencial? ”

APRESENTAÇÃO

Manuel Loff e Maria da Conceição Meireles Pereira | Instituto de História

Contemporânea (IHC) da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP)

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António Costa Pinto, que então comissariava as comemorações oficiais dos 30 anos do 25 de Abril de 1974, aprofunda o estudo de questões praticamente introduzidas por ele na investigação portuguesa: as da “justiça transicional” do período revolucionário, decompondo os seus vários terrenos de actuação, desde o(s) aparelho(s) do Estado até ao mundo do trabalho, dos media, avançando para os processos de reconciliação, pacificação e reintegração. Especial relevo merecem as referências ao “voluntarismo da memória”, a esse impulso tão evidentemente ime-diato no sentido de fixar a memória da repressão, da opressão, e da efémera tenta-tiva de criação súbita de propostas revolucionárias de substituição dos esquemas autoritários e fundamentalmente tradicionalistas de explicação da realidade social, trazida pela mão das chamadas Campanhas de Dinamização Cultural. Desta vez, e ampliando o terreno da investigação exposto noutras intervenções suas, Costa Pinto expõe uma avaliação da “política da memória da Democracia portuguesa”.

Abdoolkarim Vakil apresenta uma tese particularmente interpelante acerca da gestão política e intelectual que, no Portugal democrático dos últimos anos, se fez da identidade nacional – ou melhor, da crise permanentemente enunciada da identidade nacional. Vakil chama-nos a atenção para aspectos particularmen-te reveladores do debate político (e mais concretamente parlamentar) sobre esta temática em momentos marcantes como a apresentação de programas de Governo em 1976, 1978 ou 1979, ou a inevitável discussão da opção europeia do Governo Soares em 1977. Se as teses de Eduardo Lourenço não poderiam faltar numa análi-se desta natureza, já algo surpreendentes, e esquecidas, podem parecer as de Victor de Sá ou até mesmo a concepção de Salgado Zenha, em ambos os casos procuran-do reintegrar o conceito de Nação e a valorização da identidade nacional no patri-mónio ideológico da Esquerda. Para o autor, “a trinta anos de Abril, a questão da identidade nacional não radica no imigrante ou em qualquer problema levantado pelos imigrantes ou pela imigração, mas antes no facto de a historiografia portu-guesa não ter assumido os desafios do pós-colonialismo após a descolonização”.

Josep Sánchez Cervelló, que se terá tornado, à escala internacional, num pio-neiro e, seguramente, no mais importante especialista do estudo conjunto deste vasto território de investigação que constitui a Guerra Colonial, a geração do MFA, o período revolucionário e a descolonização, propõe-nos aqui uma síntese inter-pretativa que vai desde a revisão da situação militar no final da Guerra Colonial até ao legado final do processo descolonizador, passando pelo impacto desigual do 25 de Abril em cada uma das colónias e os processos políticos de transição que então se abriram. Este historiador concede-nos ainda a oportunidade de revermos as posturas que no início do processo revolucionário se confrontaram em Portugal

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em torno da estratégia a seguir pelo Estado português na transição para um modelo político pós-colonial que, no essencial, o MFA não definira em 1973-74.

José Madureira Pinto e Virgílio Borges Pereira revêem criticamente aspec-tos fulcrais da evolução social e política dos 30 anos da democracia portuguesa – Estado e organizações políticas; padrão da actividade económica e reorgani-zação global do território; população e migrações, com a consequente mudança da identidade portuguesa; papel social das mulheres; formação escolar e pro-fissional; mercado de trabalho; percepção social do Estado e do serviço públi-co; a“cultura da pobreza”– num esquema argumentativo que sustenta a tese de que prevalecem “importantes fenómenos de inconsistência institucional” que decorrerão em grande parte da“presença na sociedade portuguesa de um Estado formalmente sólido, mas frágil e inconsequente enquanto factor de desenvolvi-mento, inovação e equidade social”.

Manuel Loff procede a uma revisão dos processos de transformação social e política por que passou a sociedade portuguesa nesses vinte anos decisivos que constituíram a década de 1960 e a de 1970. Primeiro, para sustentar a tese de que “a Guerra Colonial veio acelerar e dramatizar várias das mudanças que estavam já a alterar a sociedade portuguesa bem antes da Revolução do 25 de Abril, con-tribuindo para que a inevitável crise do regime não pudesse ser resolvida por um processo de transição controlada”; depois para concluir que “massificação social, democracia política e descolonização ficaram como os legados fundamentais do período revolucionário que ocupa a franja central dos anos 70 em Portugal”.

Maria da Conceição Meireles Pereira revisita a efeméride do vigésimo aniver-sário do 25 de Abril na conhecida revista de cultura Vértice, assinalando presen-ças, (con)textos, discursos e testemunhos.

Uma das apostas mais empenhadas da organização deste Colóquio foi a de abrir espaço à apresentação pública de novas investigações. Dulce Freire apre-sentou o seu projecto de investigação sobre “o papel da agricultura e da socieda-de rural nas profundas mudanças que ocorreram em Portugal e no Ocidente nos 30 anos anteriores à década de 80”, cobrindo, entre outros períodos, o da transi-ção democrática revolucionária de 1974-76, escolhendo, como estudo de caso, o concelho de Alpiarça no contexto de um Ribatejo que “surge [nos anos 60 e 70] como a região onde a modernização da agricultura de acordo com o modelo defen-dido no pós” II Guerra poderia ser aplicado com mais rapidez, eficiência e menores investimentos públicos e privados”. Se a de Tiago Matos Silva corresponde a uma investigação centrada na área dos estudos culturais que se pode considerar como concluída; outras, como as de José António Ferreira e de Ricardo Miguel Gomes,

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constituem verdadeiros exercícios de síntese de investigações realizadas no âmbito do curso de Mestrado em História Contemporânea da FLUP, as quais, no momento da sua apresentação, não haviam sido concluídas ainda; outras, por fim, correspon-dem a projectos em curso, iniciados há anos, no âmbito de associações cívicas – a Associação 25 de Abril (projecto apresentado por Manuel Loff e Nuno Martins) e a Universidade Popular do Porto (projecto apresentado por Silvestre Lacerda) – que têm desenvolvido (especialmente a segunda) um importante trabalho de levan-tamento, tratamento e conservação de fontes históricas, designadamente orais, relevantes para a História da região do Porto durante o século XX.

As largas dezenas de participantes no Colóquio tiveram ainda o privilégio de assistir às conferências de Fernando Catroga e Joaquim Azevedo. A primeira, inti-tulada Memória e História, fez uma abordagem amplamente cultural da voga euro-peia da celebração de efemérides iniciada na centúria de Setecentos, vindo aquele catedrático de Coimbra a deter-se no caso específico do “comemoracionismo” do 25 de Abril em Portugal. Por sua vez, o especialista em educação e professor da Universidade Católica do Porto, Joaquim de Azevedo apresentou um tema pleno de actualidade e interesse subordinado ao título Educação: balanço e perspectivas.

Os organizadores agradecem, penhorados, os patrocínios e apoios concedi-dos pela Reitoria da Universidade do Porto e sua Faculdade de Letras, Fundação para a Ciência e Tecnologia e Fundação Calouste Gulbenkian, sem os quais este evento não se poderia ter realizado.

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A DEMOCRACIA PORTUGUESA:REFLEXÕES HISTÓRICAS

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A revolução portuguesa despoletada pelo golpe militar de 25 de Abril de 1974 foi a última revolução de esquerda da Europa do século XX e a sua influência, pelo menos, no processo de transição para a democracia em Espanha, após a morte de Franco, em 1975, parece ser hoje inegável, a despeito do quase silêncio que sobre isso guarda a maioria da historiografia espanhola.1

Indiscutível é, também, a surpresa com que ela apanhou as chancelarias eu-ropeias (onde os governantes socialistas e social-democratas da Internacional Socialista (IS) ouviam com condescendente bonomia os avisos de Mário Soares sobre a iminência de uma rotura) e a própria Administração norte-americana. Nixon despachara, como embaixador, para este fim do mundo onde não se pas-sava nada, um amigo pessoal em busca de uma reforma tranquila, que se passe-ava pelos Açores quando eclodiu o golpe. Durante semanas a fio será incapaz de perceber (e informar) o que se está a passar. A própria antena da CIA (Serviços Secretos americanos) em Lisboa estaria desactivada. E, no entanto, a iminência de um golpe militar, da ocorrência de “qualquer coisa”, viesse da extrema-direita ou do que se pensava serem os “spinolistas”, era o tema de todas as conversas e preocupações dos meios políticos lisboetas.

A REVOLUÇÃO PORTUGUESA DE 1974/75 E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA

Fernando Rosas | Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências

Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (FCSH - UNL)

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O que penso ser interessante procurar entender, em primeiro lugar, é em que condições históricas uma crise de regime (o impasse do marcelismo) se trans-formou numa crise revolucionária, ou, se se quiser, como é que um golpe militar aparentemente tradicional dá lugar a um processo revolucionário. Em segundo lugar, qual foi a natureza dessa Revolução de 1974/75 e qual o seu desfecho? Perguntado de outra forma, qual foi o papel dessa revolução na democracia por-tuguesa actual: um parênteses dispensável ou uma marca genética essencial?

1. DO GOLPE DE ESTADO À REVOLUÇÃO

Já antes tivemos oportunidade de sugerir que da falência do marcelismo como via de solução política para a guerra colonial e, por consequência, como processo de transição democrática, nasce para o regime uma situação de impasse e de alto risco. O regime fica sem soluções para os resultados inelutáveis da sua política: o cansaço da guerra, a crise económica e financeira induzida pelo fim da pros-peridade europeia e pelas despesas militares, a agitação político-social crescente. Desse impasse surgem duas circunstâncias determinantes para a evolução próxi-ma dos acontecimentos e que agem conjugadamente: uma situação de alta tensão político-social e uma conspiração militar de características muito particulares.

Quanto à primeira, a panela de pressão social e política a que a involução do marcelismo conduzira o país, a realidade falava por si: 100 mil grevistas nas in-dústrias e nos serviços do Outono de 1973 a Abril de 1974; as Universidades em pé de guerra, ocupadas pelos “gorilas” ou pelos polícias, paralisadas no seu funcionamento, com praticamente todas as associações de estudantes encerra-das e dezenas de estudantes presos; o boicote das “oposições” às eleições para a Assembleia Nacional de 1973, desafiando as sanções legais contra tal atitude e o reencontro da unidade PCP/PS; o regresso das homologações políticas prévias das direcções sindicais eleitas; as cargas da polícia de choque sobre os oposicio-nistas reunidos no Congresso de Aveiro de 1973; o encerramento administrati-vo das cooperativas culturais; o agravamento generalizado da violência policial, em particular da polícia política; o assassinato a tiro do estudante José António Ribeiro Santos, a 12 de Outubro de 1972, durante um meeting estudantil con-tra a repressão, em Lisboa. Mas esta agitação política e social, por expressiva que fosse, era insusceptível, só por si, de levar ao derrube do regime. Não havia uma“situação insurreccional”, uma “situação revolucionária” da qual o Movi-mento das Forças Armadas (MFA) seria a expressão armada, como pretendem certas tentativas tardias de ressuscitar as teses do “levantamento nacional”.2 O país era, sem dúvida, uma panela de pressão, mas ela só iria explodir pela porta

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que, em larga medida involuntariamente, o golpe militar lhes vai abrir. Convém ter presente que o MFA das primeiras horas do pronunciamento quer manter as pessoas em casa, quer evitar a contaminação da“rua”. É sintomático que a Mari-nha, o sector das Forças Armadas (FA) onde existe uma influente organização clandestina do PCP antes do “25 de Abril”, se remeta a uma posição inicial de expectativa, a mesma que aquele partido sempre tomara em golpes anteriores, atitude estranha para os que deveriam ser os intérpretes destacados da expressão militar da insurreição... Ou seja, como veremos, o golpe, pelas suas característi-cas, contribui decisivamente para a explosão revolucionária, mas ele não é nem inicialmente quer ser, a explosão revolucionária. Antes pelo contrário.

A segunda circunstância respeita a essa conspiração militar que vai condu-zir à eclosão de um golpe militar de natureza absolutamente singular na história dos pronunciamentos militares do Portugal contemporâneo. Singular quanto à génese: é um golpe fruto do cansaço da guerra colonial. É sabida a dificuldade de vencer ou prolongar indefinidamente as “guerras anti-subversivas”, sobretu-do em países com liberdade de opinião e de associação. Em Portugal, a guerra só pode durar o que durou pela existência de um regime ditatorial que a impôs como dogma indiscutível, ligado ao próprio destino da nacionalidade. Treze anos depois, não podendo esse cansaço manifestar-se livremente em termos de intervenção cívica e política legal contra a guerra, ele instala-se nas Forças Armadas, especialmente ao nível dos oficiais intermédios que a conduzem no terreno. Essa é a segunda singularidade do golpe, e talvez a mais importante, a que respeita ao nível hierárquico dos conspiradores. Na realidade, os oficiais superiores dos três ramos estão maciçamente ao lado do Governo e da política de guerra. Com duas excepções de decisiva importância: a do Chefe do Estado-maior General das Forças Armada (CEMGFA), General Costa Gomes, e a do seu Vice-Chefe, general António Spínola. A cobertura institucional que dão à cons-piração – mesmo que não se envolvam directamente com ela − é essencial para o progresso do movimento sem graves acidentes repressivos, pelo menos até ao “16 de Março” de 1974. Depois, o livro Portugal e o Futuro, da autoria de Spínola e “autorizado” formalmente pelo CEMGFA, é uma espécie de sinal verde para o pronunciamento, não tanto pelas soluções já ultrapassadas que advoga para a questão colonial, mas pela evidenciação que dele resulta da inanidade da guerra e da política do Governo para lhe pôr cobro.

É, portanto, ao nível dos oficiais intermédios do Exército, dos capitães, co-mandantes de companhia, que se instala o fulcro do descontentamento, do can-saço e da conspiração. A companhia era a pedra angular da quadrícula defensiva

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do território no dispositivo militar colonial. E o capitão que a comandava era um jovem oficial que acumulava a chefia operacional, logística, de pessoal e de infor-mações a esse nível. Uma concentração de responsabilidades a que se somavam a consciência, fruto do conhecimento vivido, da falácia do “Portugal pluriconti-nental”, a noção da injustiça da guerra e a sucessão de comissões de serviço sem fim à vista. Tudo isso fazia da conspiração, sobretudo, um “movimento de capi-tães”, com alguns majores, e muito poucos tenentes-coronéis e coronéis. Coad-juvados, com o superar das contradições corporativas da fase inicial, por oficiais milicianos e outros oficiais subalternos, sob o chapéu distante, mas essencial, de dois generais que formalmente se não comprometem...

A terceira singularidade respeita ao rápido processo de politização da conspi-ração a que já antes aludimos. De Junho (as primeiras reacções contra o Congresso dos Combatentes) e Julho de 1973 (o início da reacção colectiva ao decreto-lei n.º 353/73 que dificulta, a favor dos oficiais milicianos, a progressão na carreira dos oficiais do quadro) a Março de 1974, os cerca de trezentos oficiais intermédios en-volvidos nestas movimentações passam, de plenário em plenário, da reivindicação corporativa centrada na carreira ou na “honra das Forças Armadas”, para a cons-ciência da necessidade de derrubar o governo pela força e instaurar a democracia como condição para pôr termo à guerra colonial. Esse torna-se o objectivo central do movimento, nascendo os demais da progressiva compreensão da sua impres-cindibilidade para o cumprir: só com a democracia se acabaria com a guerra.

Essa politização (lembre-se que, mesmo com os recuos legislativos do Governo em Agosto de 73, ou até quando ele suspende o diploma, em Outubro desse ano, a conspiração não só não pára como assume, já sem álibi, os seus propósitos políticos) tem causas próximas conhecidas: a influência do forte movimento anti-colonialista estudantil nas fileiras (quer por via dos oficiais milicianos recrutados, quer através de oficiais da Academia que têm de frequentar as Universidades); o ambiente de descontentamento da sociedade portuguesa do fim do marcelismo, com expressão na desmotivação e desmoralização nas casernas; o papel individual de alguns pou-cos oficiais já politizados, e até com ligações políticas às oposições, tanto na Marinha como no Exército e que rapidamente tomam saliência no movimento (é o caso típico de Melo Antunes, redactor do Programa do Movimento das Forças Armadas onde se consagram boa parte das reivindicações das oposições de esquerda).

Seja como for, em Março de 1974, nas vésperas do pronunciamento, o Mo-vimento das Forças Armadas clandestino criara uma situação de equívoco abso-lutamente singular: retirara ao Governo e à hierarquia militar, sem que eles dis-so ainda se apercebessem, capacidade operacional sobre o Exército e os demais

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ramos; mas retirara-a também aos generais dissidentes minoritários, por muito que o general Spínola estivesse convencido do contrário. O que terá a maior im-portância para o futuro próximo. O Estado e a hierarquia não têm verdadeiro controlo sobre as Forças Armadas no 25 de Abril: quando o golpe estala, no Exér-cito, na Marinha e na Força Aérea, os que não o apoiam recusam-se a combatê-lo ou passam-se para ele quando o percebem vitorioso. Mas o general Spínola tam-bém não ganha o controlo perdido pela “brigada do reumático”: só nessa noite, durante os acalorados debates no quartel-general dos revoltosos, na Pontinha, compreende que o MFA se substituira, revolucionariamente, à hierarquia tradi-cional das Forças Armadas fazendo dele um general quase sem tropas.

Assim sendo, a vitória deste movimento de oficiais intermédios de que o MFA passa a ser a expressão, gera um conjunto de consequências da maior im-portância na eclosão do processo revolucionário:

a) Rompe a cadeia hierárquica de comando das FA, subtraindo-as ao con-trolo tradicional do Estado e dos comandos hierárquicos por ele desig-nados e, dessa forma, paralisa ou anula a função normal das FA como órgão central da violência do Estado, ou seja, como espinha dorsal do poder do Estado. Em certo sentido, no sentido da organização da vio-lência do Estado, deixa de haver FA e passa a haver uma dupla e paralela hierarquia: os restos da hierarquia tradicional retomada por Spínola e pela Junta de Salvação Nacional (JSN) que ele tenta mobilizar sem su-cesso “contra o caos” e em “defesa da ordem” e o MFA enquanto mo-vimento político-militar revolucionário que tratará, pouco depois, de controlar os principais sectores operacionais dos três ramos através do Comando Operacional do Continente (COPCON), cuja chefia é entre-gue a Otelo Saraiva de Carvalho.

b) Essa deliquescência do poder militar enfraquece, pulveriza e paralisa to-dos os demais órgãos do Estado. Logo a 26 de Abril o poder divide-se entre a JSN, o Conselho de Estado (CE) e o Governo Provisório (sem controlo sobre as FA e, realmente, destituído de força coerciva dada a paralisação da PSP e da GNR objecto de forte contestação popular). No CE está re-presentada a direcção do MFA (a Comissão Coordenadora do Programa) que detém o poder militar e, na realidade, condiciona tudo o mais. É um poder político policêntrico, com competências sobrepostas ou contradi-tórias, tecnicamente em ditadura, mas destituído de unidade política ou de força militar para se fazer valer face à onda revolucionária que atraves-

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sa o país. Até porque quem a tem, o MFA, não obstante hesitações e con-tradições várias, tenderá a colocar-se do lado do processo revolucionário, substituindo-se os seus delegados, em quase todas as circunstâncias mais complicadas ou conflituais, à burocracia normal dos ministérios.

c) Finalmente, a imediata cessação da guerra colonial nas três frentes: era para isso que o golpe se fizera. Em breve toda a máquina militar colo-nial estará paralisada: confraternização da tropa com os guerrilheiros; assembleias de oficiais e soldados, convocados pelo MFA, pressionan-do para abertura de negociações com os movimentos de libertação nos termos apresentados por estes; exigências de litoralização do dispositi-vo com vista ao embarque para casa; manifestações em Portugal contra novos embarques; tudo isso vai traçar os limites estreitos em que se vai processar a descolonização, após Spínola ter cedido na aprovação da lei de Julho de 1974 que abre o caminho do fim do “império”: uma desco-lonização negociada pelo poder político-militar de Lisboa sem FA, sem uma autoridade forte e dotada de clara legitimidade negocial, expressão da fragmentação do Estado também no plano da sua representação ex-terna, sem opinião pública interna e sem opinião pública externa (ONU e OUA exigem o reconhecimento do direito à autodeterminação e inde-pendência a favor, como únicos interlocutores reconhecidos, dos movi-mentos armados de libertação nacional).

Juntam-se assim três circunstâncias a explicar a transformação do golpe de Es-tado em explosão revolucionária: o apagamento e neutralização das FA como instrumento da violência do Estado e até a transformação de parte delas em movimento político-militar revolucionário; a pulverização e enfraquecimento geral do poder do Estado, e a explosão, facilitada e apoiada pelas circunstâncias anteriores, da tensão social e política acumulada, qual panela de pressão, na fase terminal do regime anterior. Perante o enfraquecimento do Estado e a mudança de papel e de natureza nas FA, libertam-se as tensões acumuladas, explodem em catadupa as esperanças, protestos e reivindicações e o movimento popular toma, por todo o lado, a ofensiva. Ele compreendia que podia vencer o Estado sem que este o pudesse vencer, que o poder estava fraco, dividido e já não podia governar, sendo que ele, com o apoio do movimento militar, podia agora fazê-lo. Era o ar-ranque da Revolução portuguesa de 1974/75.

A este propósito há duas ideias que convém precisar. Historicamente, as grandes revoluções não são, nunca foram, cerebrais operações de Estado Maior

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claramente delineadas na sua direcção principal, etapas, planeamento, etc. São uma desordem subversora em marcha, grandes movimentos telúricos de massa visando derrubar a ordem estabelecida e que explodem, a mais das vezes, sem que nenhum directório político as convoque. Onde seguramente existem partidos e movimentos políticos actuando, antes e depois, mas onde a vaga social de choque em muito os transcende. Sendo explosões que resultam de condicionalismos e factores historicamente acumulados, as revoluções não deixam de constituir pro-cessos estruturalmente espontâneos no seu eclodir, nas suas dinâmicas. Mas que demonstram uma misteriosa inteligência colectiva, uma dupla e quase sempre certeira intuição difusa: a intuição do momento (a compreensão da correlação de forças: “nós podemos vencer e eles não têm força para nos derrotar”) e a intuição da força própria (a consciência da gente simples, dos mais fracos, do mundo do trabalho, de que, naquele momento, é possível mudar o mundo com as suas mãos, que o futuro está ao seu alcance, que vale a pena intervir, que tudo é possível). Foi isto que foi a revolução portuguesa de 1974/75. Sendo certo que não faz sentido avaliar a natureza historicamente revolucionária de um movimento social pelo seu desfecho, circunstância em que só haveria revolução vitoriosas...

A Revolução de 1974/75 foi um processo revolucionário pactuadamente contido, primeiro, e depois largamente esvaziado no decurso de um longo pro-cesso político-legislativo contra-revolucionário, provavelmente ainda não con-cluído. Mas durante os 19 meses que durou, entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975, procuraria mudar de forma radical a face económica, social, política e cultural do país. E a democracia institucionalizada em 1976, fruto, é certo, da sua contenção, é por ela genética e decisivamente marcada. É uma de-mocracia que sai, apesar de tudo, do processo revolucionário e não, como pre-tende a revisão conservadora da história do período, que se imponha contra ela.

2. AS MUDANÇAS DA REVOLUÇÃO

O movimento revolucionário, nas suas ondas de propagação, conhece dois períodos ofensivos de particular importância: entre Maio e Agosto de 1974, o período de arranque mais marcadamente espontâneo, com vários movimentos sociais desencadeados contra a vontade e as palavras de ordem do PCP e da In-tersindical; e de Março a Agosto de 1975, uma fase mais politicamente marcada pela influência do PCP e do activismo de esquerda radical e que se exprimiria na Reforma Agrária, nas nacionalizações, no controlo operário, etc.

De uma forma geral pode dizer-se que a Revolução de 1974/75 representou historicamente o mais profundo e ameaçador abalo sofrido por uma oligarquia que

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desde sempre, em Portugal, reinara incólume e segura de si. Assente no privilégio, na desigualdade de direitos, no arbítrio, na injustiça social e que desde o advento da ordem liberal nenhuma convulsão ameaçara seriamente. O “25 de Abril” foi o “grande susto” dos que se tinham habituado a ter o mundo a seus pés. Os seus her-deiros, os actores do processo de reconstituição das classes dominantes e das suas elites pós-revolução, também o não esqueceram e não necessariamente para o pior. O “grande medo” não acabou, como então se pretendia, com os oligarcas, mas talvez tenha contribuído para a modernização da cultura política e social das suas elites.

Mas houve realidades que mudaram profundamente, ainda que algumas de-las efemeramente. Qual foi, então, a “obra” da Revolução de 1974/75?

Foi um movimento revolucionário, como vimos, que pôs termo à guerra colonial e iniciou o processo de descolonização, marcado pelos dramáticos condicionalismos políticos e militares que a coincidência desse processo com a convulsão revolucioná-ria originou. Amputado o país do “império”, colocava-se-lhe um dos mais complexos e graves desafios estratégicos da sua História: o de se redefinir em termos do seu posi-cionamento internacional. Problema singularmente mal consciencializado, mal dis-cutido e mal compreendido entre os safanões convulsivos do processo revolucioná-rio ou no seu duro e conflitual rescaldo. O país irá escorregando para a Comunidade Económica Europeia, onde se integrará, sem acerca disso se ter alguma vez realizado um debate digno desse nome ou sequer uma consulta referendária.

Foi um movimento revolucionário pela democratização do Estado, domínio em que a iniciativa popular largamente substituiu e ultrapassou o movimento militar. Num duplo aspecto. Em primeiro lugar, na destruição do núcleo duro do aparelho repressivo do anterior regime. Foi o povo que assaltou a sede da polícia política em Lisboa (singularmente poupada pela ordem de operações do 25 de Abril)− aí morreram várias pessoas abatidas pelos disparos dos agentes da polícia barricados−, que se concentrou junto aos Fortes de Caxias e de Peniche impondo a libertação incondicional de todos os presos políticos (a que Spínola se opunha), que “caçou os pides” nas ruas, que assaltou e destruiu a sede da Censura, que, em amplos plenários de empresa, de escola, de ministério, saneou os que considerou como responsáveis por actos de repressão ou ligados ao regime anterior. Em se-gundo lugar, porque esse movimento popular conquistou as liberdades públicas (de associação, de expressão, de reunião) na rua, por iniciativa própria, muito an-tes da sua consagração legal pelo Governo Provisório. As liberdades fundamen-tais não foram outorgadas, mas conquistadas e essa é uma das mais importantes marcas genéticas da democracia portuguesa: uma democracia política cujos fun-damentos são um fruto directo e imediato do processo revolucionário.

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Foi um movimento revolucionário pela justiça social que, por força da sua própria dinâmica, alterou, ao menos durante alguns anos, as relações historica-mente iníquas entre o capital e o trabalho no nosso país. Conquistando no pró-prio processo da luta social, e logo desde os últimos dias de Abril, o direito à greve e a liberdade sindical; alcançando reivindicações básicas e duradouras no tocante à redistribuição do rendimento: salário mínimo, redução do horário do trabalho, férias pagas, subsídios de doença e de alimentação, e saneando das empresas os elementos acusados de “colaboradores do fascismo” ou de “sabotagem económi-ca”. Também a democracia social seria um produto directo da iniciativa popular.

Foi um movimento revolucionário que deu lugar à maior democratização do acesso à vida pública e à mais profunda remodelação e ampliação das elites na História do país. Através da democratização do acesso ao ensino e da vida políti-ca e social a todos os níveis, com a multiplicação de órgãos electivos e de eleitos a nível das instituições públicas representativas nacionais e locais, mas também de universidades, escolas, sindicatos e associações de todo o tipo. Não só se regis-tará uma renovação muito substancial da elite política da Administração central (deputados, ministros, governadores civis, directores-gerais, professores univer-sitários, ainda que com fortes continuidades no tocante à magistratura e à diplo-macia), como muitos milhares de cidadãs e cidadãos, frequentemente oriundos de extractos sociais normalmente arredados de qualquer forma de participação, serão escolhidos para exercer funções em autarquias, sindicatos, órgãos directi-vos de escolas, comissões de moradores e de trabalhadores, associações cultu-rais, etc. Por muito que esta vontade de participação tenha recuado com o tempo, algo de profundo e essencial mudou estruturalmente no tocante ao alargamento, diversificação e especialização das elites em Portugal.

Foi um movimento revolucionário que tentou introduzir profundas altera-ções na estrutura económica e social do país, nacionalizando o capital financeiro e os grandes grupos económicos, ocupando e expropriando as terras dos latifun-diários, instituindo o controlo operário. Desde a primeira ofensiva do Verão de 1974 se vinham a verificar casos de ocupação e autogestão pelos trabalhadores de empresas abandonadas pelos patrões ou de intervenção por parte do Estado. Mas é no rescaldo do “11 de Março” de 1975, sob forte influência do PCP, que se vão decretar as nacionalizações e legalizar, pela legislação da Reforma Agrária, os ocupações de terras pelos assalariados rurais que se tinham iniciado no princípio do ano. Daqui decorrerão as tentativas, quase sempre débeis e mal conseguidas, de controlo operário nas empresas nacionalizadas e a criação das cooperativas e Unidades Colectivas de Produção (UCPs) nas terras ocupadas. Mais espontâneo

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e marginal, a partir das zonas de habitação degradada do Porto, de Lisboa e Setú-bal, seria o movimento popular de ocupação de casas, por vezes conjugado com as experiências de autoconstrução do projecto SAAL.3 Escusado será dizer que foi nestes domínios − os que respeitavam, afinal, à base material e social do poder − que se verificou, de forma mais imediata, mais profunda e mais continuada a contra-revolução política e legislativa dos governos constitucionais. As privati-zações das empresas nacionalizadas, a devolução das terras ocupadas e a desocu-pação das casas tornar-se-iam, desde o I Governo constitucional aos nossos dias, o pano de fundo permanente do argumentário sobre a “normalização democrá-tica”, a “recuperação económica” ou a “integração europeia”.

Foi um movimento revolucionário que criou, localmente e de génese espontânea, nas empresas e nos bairros, novas formas de poder, de representação e de gestão, os “órgãos de poder popular”: comissões de trabalhadores e comissões de moradores que virão a ter consagração institucional e legislativa. São eles que, directamente elei-tos pelo universo dos trabalhadores ou moradores, dirigem as lutas, ocupam, gerem, exercem o controlo operário, organizam, frequentemente em conflito com a organi-zação sindical ou com os órgãos da administração local. Uma e outro acabariam, aliás, por as subordinar à sua lógica de funcionamento, onde o refluxo do movimento po-pular não ditou a desmobilização e o seu quase total desaparecimento.

Foi um movimento revolucionário que permitiria lançar as bases de uma nova geração de políticas de carácter universal, geral e tendencialmente gratui-to para os principais serviços de interesse público: a democratização do acesso à educação, o Serviço Nacional de Saúde e a generalização de segurança social que, com inflexões e particularidades várias, mas dentro do mesmo paradigma, persistiram até à recente contra-reforma legislativa nestes domínios.

Foi um tempo de reificação e radicalização da política como referencial or-ganizador do privado e do quotidiano. De explosão de partidos, de militâncias esforçadas e convictas, de participação intensa no partido, no bairro, na fábrica, na escola, na manifestação, no comício, de sectarismos cegos e apaixonados, de não ter medo de usar da palavra ou de estar em minoria, de revoluções também nos hábitos e nos comportamentos, de nova televisão, de nova rádio, de novos filmes e teatro, de murais pintando as ruas e as praças, de corajosas ousadias e de certezas firmes, de entrega e de esperança sem fim, de algumas vitórias e de derrotas. Tempo de revolução, em suma.

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3. O DESFECHO DA REVOLUÇÃO. A DEM OCRACIA PARLAMENTAR

Podemos considerar três grandes fases na evolução do processo revolucionário de 1974/75. Não é propósito deste ensaio proceder à sua análise detalhada, aliás, objecto de recentes importantes trabalhos de investigação,4 mas tão só procurar entender como evoluem e se organizam as grandes escolhas em presença e qual o desfecho do seu enfrentamento.

De acordo com esta lógica de abordagem não me parece muito pertinente o debate presente em alguma da historiografia sobre este período acerca do predo-mínio dos militares ou da hegemonia dos partidos no processo revolucionário.5 Não tanto porque o problema se não ponha com relevância para a análise históri-ca do período, mas porque ele é uma resultante, aliás instável e variável, de rea-lidades mais substanciais. Penso que o essencial é detectar, em cada fase do pro-cesso, quais os grandes campos políticos e sociais em que se dividem as forças em presença, o que está em causa em termos de sociedade presente e futura, em torno de quê se travam os combates pela hegemonia do Estado e pelo controlo da economia. Cada um deles correspondia a interesses, aspirações e estratégias que tinham a sua expressão político-partidária e também militar. E as relações entre ambas, a forma como, conjunta ou separadamente, intervêm no processo, o maior ou menor protagonismo que assumem, a respectiva capacidade de lide-rança, vão variar ao longo de cada etapa do processo, não sendo possível estabe-lecer teorias gerais sobre o predomínio dos partidos ou dos militares.

Sendo certo que, detendo as facções militares em que se dividem as FA e o MFA o essencial da força, cabendo-lhes em exclusivo, ou quase, o argumento fi-nal do uso das armas, e sendo o controlo estadual ou partidário que sobre elas se exercia sempre algo difuso e imprevisível, a verdade é que elas terão sempre, até ao fim, um peso substancial nas decisões finais. Não é que veja nisso uma espécie de transcendental “inteligência estratégica” da “instituição militar”, habilmente “metamorfoseado” em MFA ou em vários MFA’s para pilotar as transformações do país.6 Pela razão simples, como antes sugeri, que a instituição militar deixou de existir, enquanto tal, no “25 de Abril”, fragmentando-se em distintos grupos político-militares lutando entre si pela direcção do processo revolucionário, com estratégicas antagónicas para o futuro do país e distintos sistemas de alianças po-lítico-partidárias para as realizar. Os restos da hierarquia contra o MFA, até ao 28 de Setembro de 1974, as várias facções do MFA em luta intestina que roçaria a guerra civil, a partir do “11 de Março” até 25 de Novembro de 1975. Mas esses diferentes grupos militares, essas facções antagónicas das Forças Armadas, de-terão (salvo distribuições excepcionais de armas a civis) o monopólio do uso da

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violência armada, ganhando com isso, com a ausência do poder tutelar do Estado e com as dificuldades do controlo partidário, um poder de influência sobre os acontecimentos sempre incontornável.

No primeiro período, entre 25 de Abril e 28 de Setembro de 1974, a fase spi-nolista do processo, é derrotada a tentativa do general Spínola realizar o programa que Marcelo Caetano não tinha querido ou podido levar a cabo, aliado ao que res-tava da hierarquia militar e às forças políticas do centro e da direita que o apoia-vam. Uma “democracia musculada” no plano interno e uma solução federalista no plano colonial. Tendo como fundo uma vasta explosão de lutas e reivindicações do mundo do trabalho que vai obter as suas primeiras conquistas históricas neste período, o MFA, apoiado pelos partidos de esquerda, consegue opor-se às iniciati-vas de Spínola para assumir o controlo do aparelho de Estado e das Forças Arma-das. Mais: vai impor-lhe a lei da descolonização e levá-lo à demissão, após ter feito abortar a mobilização final da “maioria silenciosa” para a manifestação de 28 de Setembro, destinada a apoiar Spínola como Presidente da República (PR).

O período seguinte, que se pode considerar ir até ao “11 de Março” de 1975, inicia uma primeira fase de radicalização do processo à esquerda, com o PCP saindo da sua contenção inicial para, ao abrigo da “Aliança Povo-MFA”, iniciar uma política de forte investimento junto dos militares revolucionários e das es-truturas das FA. Transforma-se a V Divisão do EMGFA, controlada por quadros do PCP ou seus apoiantes da Marinha e do Exército, numa aparelho multiface-tado de propaganda e difusão ideológica; lançam-se no Norte as “campanhas de dinamização cultural”; ganha-se a batalha da unicidade sindical; recusa-se, como excessivamente moderado, o “plano Melo Antunes” para o desenvolvi-mento económico (elaborado com a ajuda de especialistas próximos da área do PS); tenta-se eliminar a extrema-esquerda; começa a falar-se no adiamento das eleições para a Assembleia Constituinte em nome de consolidar a revolução que passa a ter um rumo claro: o socialismo. O PCP inicia nesta fase a sua estratégia de aproximação do poder através da progressiva hegemonização do MFA, do aparelho militar, da administração local, da máquina sindical e dos principais centros de decisão e de informação (jornais, rádios e RTP). O alvo é cumprir os objectivos da “revolução democrática nacional” e avançar “ordeiramente” para uma democracia popular de modelo soviético.

O outro pólo que então começa a delinear-se é à volta do Partido Socialista, ain-da com escassa influência no MFA e mais empenhado em recuperar Spínola e os spinolistas como braço militar da resistência à subida de influência do PCP. O so-cialismo de que falam é outro: “em liberdade”, parlamentar, pluralista e “ocidental”

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e afirmam-se, sobretudo, pela recusa e resistência às medidas e propósitos que de-nunciam no PCP, designadamente quanto à unicidade sindical. Mas o seu cavalo de batalha, o seu cuidado permanente, é assegurar que as eleições para a Constituinte não deixem de se realizar. Lucidamente, Soares e os seus apoiantes compreendiam ser esse o cerne da questão: opor à legitimidade revolucionária que conduziria o PCP ao poder, a legitimidade das urnas e do voto popular que faria a balança pender para o lado das forças que se lhe opunham, mudando, mais cedo do que tarde, o rumo de todo o processo.

Nesta altura, ainda o PCP, apesar de algumas contradições, exercia forte influên-cia sobre os oficiais revolucionários anti-spinolistas mas não comunistas do MFA, reunidos em torno de homens de prestígio na direcção do movimento como Melo Antunes, Vasco Lourenço, Victor Alves, Pezarat Correia, Franco Charais, etc. Neste sector há simpatias pela ideia de um MFA/“vanguarda” do processo revolucionário, pela experiência peruana do general Alvarado, por um socialismo outro, de laivos, dizia-se então, “terceiro-mundistas”, que não fosse nem a burocracia opressora do modelo de leste, nem a deliquescência social-democrata europeia. Mas este sector ainda está, por enquanto, mais próximo das posições do PCP, votando pela unicidade sindical contra o forte protesto do PS. Vai ser preciso a aceleração do “11 de Março” para o MFA se cindir em vários grupos portadores de projectos contraditórios.

Os dois campos que dividem as águas da sociedade portuguesa no período final do processo revolucionário começam a clarificar-se após 11 de Março de 1975, quando falha uma improvisada intentona do General Spínola para retomar o poder e todo o processo se radicaliza num sentido esquerdizante sob a cres-cente hegemonia do PCP e dos seus aliados militares. Cada um desses campos consubstancia alianças muito vastas, heteróclitas e contraditórias.

O campo a que chamarei da revolução socialista compunha-se nitidamente de dois subcampos com uma aliança instável. O principal era o do PCP e seus aliados no MFA e no Governo Provisório, onde obtivera, em qualquer dos casos, sólidas influências políticas, institucionais e operacionais. Sob o impulso da drástica radi-calização originada pela derrota da intentona spinolista (havia quem lhe chamasse “inventona” para salientar o facto de os spinolistas terem “saído da toca” prematu-ramente, reagindo a uma provocação montada pelos seus adversários) é criado o Conselho da Revolução como comando único central do processo revolucionário (dissolvem-se a JSN, o CE e a Comissão Coordenadora do MFA). São efectuadas numerosas prisões nos sectores conservadores e na extrema-esquerda maoísta mais virulentamente opositora do “social-fascismo” (como designava o PCP), ten-tando ilegalizar-se o MRPP e a Aliança Operária Camponesa (AOC). E é decretada

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a nacionalização da banca (que arrasta a dos principais grupos financeiros), apro-va-se a Lei da Reforma Agrária, pressiona-se pelo controlo operário, aceleram-se as ocupações de terras. Culminando negociações iniciadas antes do “11 de Março” é celebrado, a 11 de Abril, o I Pacto MFA-Partidos (subscrito pelo PS, PPD, PCP, MDP e CDS) onde se estabelecem limites à acção da futura Assembleia Consti-tuinte, consagrando previamente o papel institucional dos órgãos do MFA.

O objectivo de instaurar um regime de “democracia popular” era prossegui-do, sobretudo, através do entrismo nas instituições político-militares apoiado, sempre que necessário, pela pressão de rua.

O outro subcampo era o do COPCON, chefiado pelo General Otelo Saraiva de Carvalho, dotado de forte poder operacional e apoiado por vários grupos da esquerda radical. Nesta área, onde a dispersão político-ideológica era muito acentuada, pretendia-se um “poder popular” assente nos órgãos populares de base e num assalto ao poder pela mobilização revolucionária armada nas ruas e nos campos, apoiada pelo COPCON.

Serão estes sectores da esquerda radical, sempre com o apoio ou a protecção do COPCON, que vão protagonizar, a partir de Maio de 1975, alguns dos con-frontos mais emblemáticos num país que parecia encaminhar-se para a guerra civil: o “caso República” e o da Rádio Renascença-RR, (começado antes),7 ou seja, a “apropriação” do jornal do PS e da rádio da Igreja Católica por sectores de ac-tivistas que os passam a controlar, até o primeiro ser encerrado (mas não devol-vido ao PS) e a segunda silenciada à bomba por uma operação dos comandos, ou o assalto à embaixada e consulado da Espanha em Lisboa como protesto pela execução de nacionalistas bascos ordenada por Franco.

A reacção do PS e da Igreja Católica a esta escalada foi a que se poderia prever. O PS (seguido do PSD) abandona, no seguimento do caso República, o Governo Provisório e desce à rua em grandes manifestações para barrar o passo ao “gon-çalvismo”. E a hierarquia católica faz o mesmo, em defesa da RR e da “liberdade religiosa”. A breve trecho, nesse Verão, enquanto a extrema-direita se lança, a partir dos seus santuários em Espanha, no terrorismo contra partidos e perso-nalidades de esquerda e prepara acções militares de maior vulto, certos sectores da hierarquia católica nortenha secundam essas manobras e aproveitam as con-centrações religiosas para açular parte da população contra o PCP, o MDP ou a UDP, cujas sedes são assaltadas e incendiadas em cadeia. O padre Max da UDP é assassinado num atentado bombista do MDLP.

É preciso entender que, realmente, a inversão da correlação de forças contra o campo hegemonizado pelo PCP começara bem mais cedo: na derrota eleitoral que

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este partido sofre nas eleições para a Assembleia Constituinte de 25 de Abril de 1975, onde o PS (37.8%) e o PPD (26.3%) emergem como os partidos largamente mais votados, contra uns escassos 12.5% do PCP (mais 4.1% do MDP). Não tendo tido força para impedir a realização das eleições constituintes, o PCP e a esquerda radical vêm a legitimidade revolucionária que invocavam para liderar o processo ser desafiada pela política e simbolicamente fortíssima legitimidade das urnas. Afi-nal, fora em nome da democracia e da liberdade de escolha que se fizera o“25 de Abril”... Tudo o mais que se irá passar daí para adiante andará à volta desta questão incontornável: tentar desconhecer, minimizar, apagar, o resultado dos constituin-tes− o que se esforçarão por fazer o PCP (ainda que não explicitamente a nível do discurso oficial) e os seus aliados dentro e fora do MFA− ou sujeitar-se a eles e à lógica política da legitimidade eleitoral. Como acabará por acontecer.

É em torno deste problema crucial que se vai fraccionar o MFA com o apa-recimento do “documento dos nove” entregue ao PR a 7 de Agosto de 1975. For-mado, já lá iremos, um contra-campo apoiado na maioria das urnas e na ideia da necessária compatibilização do “socialismo” com o “pluralismo” e a democracia parlamentar, o recuo da frente “gonçalvista” foi inevitável, até porque no momen-to de maior aperto foi também abandonada pelos “otelistas” do grupo COPCON: a Frente de Unidade Revolucionária (FUR) que agrupava vários grupos de esquerda radical sob o patrocínio do COPCON, não conta senão por escassos três dias (de 25 a 28 de Agosto) com o apoio (apressadamente expresso por equívoco) do PCP; a 5.ª Divisão é encerrada a 27 de Agosto quase sem reacção dos “gonçalvistas”; os “nove” são readmitidos, a 25 de Agosto, no CR; a 29 de Agosto, Pinheiro de Azevedo é formalmente encarregado de formar o VI Governo Provisório e Vasco Gonçalves é demitido de 1.º Ministro a 12 de Setembro. Na Assembleia extraor-dinária do Exército reunida em Tancos, a 2 de Setembro, Vasco Gonçalves não consegue impor-se como candidato a CEMGFA. Na Assembleia do MFA, também reunida em Tancos três dias depois, os “gonçalvistas” perdem a maioria dos con-selheiros que são afectos no CR, incluindo o próprio Vasco Gonçalves. No Norte, a 13 de Setembro, o “gonçalvista” Eurico Carvalho é definitivamente substituído pelo conservador Pires Veloso no comando da Região Militar.

O vento mudara. E como consequência disso, em jeito de fuga para frente, como reacção aos graves reveses sofridos pelo PCP nesse Verão de 75, entre Setembro e Novembro, sob o impulso da esquerda radical e com o apoio de im-portantes sectores do PCP (nem sempre da sua direcção), cresce uma vaga de mobilização política culminante a 13 de Novembro no cerco dos grevistas da construção civil à Assembleia Constituinte reunida em S. Bento. Pouco depois,

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a 25 de Novembro, numa operação programada, são ocupadas as bases aéreas e o comando da 1.ª Região Aérea de Monsanto pelos pára-quedistas e, em articu-lação com isso, são tomadas posições estratégicas em Lisboa − designadamente a RTP e a Emissora Nacional − pelas tropas do COPCON, acompanhadas por apelos à greve geral por parte dos sindicatos e por mobilizações civis. O objec-tivo invocado é a demissão do CEMGFA Morais e Silva e dos representantes da Força Aérea no CR e obrigar Vasco Lourenço a demitir-se de comandante da Região Militar de Lisboa, onde substituira Otelo Saraiva de Carvalho a 21 de Novembro. Os radicais, à revelia do PR e CEMGFA, o único referente da legali-dade aceite na altura, tinham dado o passo crucial no sentido do confronto. Era só disso que estavam à espera os seus adversários.

O outro campo chamar-lhe-ei, tão heteróclito ele é, o da não revolução. O seu núcleo militar é o “Grupo dos 9”, nove oficiais do Conselho da Revolução que emitem num documento, subscrito por muitos mais, de compatibilização dos objectivos socialistas da revolução com a democracia parlamentar, aceitando as “conquistas da revolução” mas no quadro de uma legitimação democrática, por eleições, das novas instituições. É preciso dizer que entre os “nove” ainda pesa com bastante nitidez a concepção de um certo vanguardismo militar. Mas o es-sencial era que ele e o “socialismo” que prosseguia se reconheciam subordinados à legitimidade das urnas e ao pluralismo partidário. Esse era o ponto de encontro com a componente civil principal desta fronda anti-“gonçalvista”, o Partido So-cialista. O PS é a trave mestra do campo civil que suporta esta opção e esta via do “socialismo em liberdade”. Ambos são os guarda-chuvas sob os quais se abrigam todas as forças da direita política e militar hostis ao processo revolucionário. Lá cabendo alguns grupos de extrema esquerda mais perseguidos pelos “gonçalvis-tas” ou pelo COPCON, a Igreja católica e a extrema-direita terrorista, exilada em Espanha ou agindo clandestinamente no Norte do país, e não só, através do bom-bismo, do assassinato político e do ataque a sedes e pessoas da esquerda comu-nista e afins. De há muito o “Grupo dos 9” constituíra um estado-maior militar e estabelecera um plano de operações para reagir, preventiva ou repressivamente, às possíveis manobras ofensivas do outro campo. Com a sanção do Presidente da República, General Costa Gomes, a 25 de Novembro as tropas do General Rama-lho Eanes passam à acção e vencem sem dificuldades as tropas de um COPCON sem comando − Otelo recusa assumir a chefia das operações − e abandonadas pela atempada retirada do PCP do teatro de operações.

Não restam dúvidas que muitos militantes e activistas do PCP estão envol-vidos nas movimentações civis que têm lugar em Lisboa, em articulação com as

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movimentações militares de tropas do COPCON (apelo à greve geral por parte de sindicatos da CGTP, ordens de mobilização de grupos de civis, concentração à porta de quartéis, etc.). E é certo, igualmente, que vários oficiais próximos do PCP participam activamente no planeamento e na direcção dos eventos militares, a partir do COPCON, ou sobretudo do SDCI (Serviços de Detecção e Coordenação de Informação). Mas há todas as razões para duvidar que Álvaro Cunhal e a direc-ção do PCP patrocinassem e dirigissem a “aventura” de um assalto ao poder que, sem sombra de dúvida para os dirigentes do partido, iria desembocar numa guer-ra civil (o “Norte”, onde se refugiaram deputados constituintes e dirigentes dos partidos “anti-gonçalvistas”, preparava-se, com apoio logístico e militar estran-geiro, para esmagar a “Comuna de Lisboa”) de que o PCP seria a principal vítima. Não era essa, como vimos, a “via” do partido para a tomada do poder. E ainda que ele se não quisesse demarcar da vaga de radicalização que se erguera, não se identificava, por natureza, por cultura táctica, com a deriva “aventureirista” e tra-tou de retirar-lhe o tapete desde o início dos acontecimentos (não deixando sair os fuzileiros do Alfeite, desmobilizando a CGTP, “agarrando” os seus efectivos, etc.), depois de previamente assegurar um processo de contenção da guerra civil. O PCP terá tido as suas dificuldades em controlar sectores civis embalados pela onda de crescimento da mobilização radical, maiores ainda em segurar oficiais próximos ideológica e politicamente mas com um grau de vinculação e disciplina partidária mais do que duvidoso. O que faz do “25 de Novembro” uma operação militar com o PCP, mas não do PCP.

Na realidade, mais do que o início de um processo de contra-revolução, o 25 de Novembro é, sobretudo, uma contenção pactuada − aparentemente, mesmo negociada8 − do processo revolucionário entre o PCP e o “Grupo dos 9” do MFA, deixando razoavelmente à margem tanto o PS como as forças da direita e da extre-ma-direita que não escondem a sua incomodidade ou a sua frustração. Um acordo de contenção que não só faz a economia de uma contra-revolução (salvaguardan-do as liberdades públicas e o funcionamento de todos os partidos, mantendo o PCP incólume no VI Governo provisório), como recebe formalmente no pós-25 de Novembro o património essencial das conquistas revolucionárias (o objectivo do socialismo, a reforma agrária, as nacionalizações, o controlo operário, etc...) que terão, aliás, larga consagração na Constituição aprovada em 2 de Abril de 1976.

Mas uma contenção que tem um duplo conteúdo essencial. Em primeiro lugar, im-põe uma alteração das legitimidades do poder a entronizar: a legitimidade revolucio-nária cede definitivamente o passo à legitimidade das urnas que, aliás, despontara logo nas eleições para a Constituinte em Abril de 1975 e viria a constituir um empecilho

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central e permanente à lógica revolucionária da tomada do poder. É precisamente nes-se sentido que se encaminha o II Pacto MFA-Partidos, assinado em 25 de Fevereiro. Revogava o I Pacto, onde o poder civil reconhecia poderosas limitações ao seu exercí-cio decorrentes do vanguardismo dos órgãos militares revolucionários.

Assim sendo, a gestão das “conquistas revolucionárias”, em si mesmo não con-testadas, ficaria por conta das futuras maiorias parlamentares e dos futuros gover-nos e PR saídos das eleições legislativas e presidenciais realizadas pela primeira vez, ao abrigo da Constituição, respectivamente em Abril e Junho de 1976. E, a eles sim, caberia iniciar o processo de contra-revolução legislativa que esvaziará ou revogará progressivamente boa parte dos objectivos e das realizações mais avançadas do processo revolucionário.

Mas, em segundo lugar, a contenção do 25 de Novembro significaria, também, e de forma igualmente essencial, a reposição da hierarquia e da cadeia de comando nas FA, o regresso das FA ao seu papel tradicional no Estado e, com isso, a liqui-dação do MFA e o desarmamento e neutralização, a prazo, da esquerda político-militar. Foi isso que ordenou a Lei constitucional n.º 7/75 aprovada pelo CR em Dezembro de 1975: a submissão das FA ao poder político e a anulação do seu pa-pel político autónomo. Sobraria como restício do papel dos militares, o Conselho da Revolução, reduzido a vigilante da constitucionalidade das leis e a uma espécie de travão do acelerado revisionismo que as novas instituições vão impor, gradual mas sucessivamente, ao património político herdado do período revolucionário.

Tudo isto não deixou de se fazer sem mais de uma centena de prisões de oficiais revolucionários, sem o início de um processo de saneamento ou marginalizarão nas FA que não pouparia os próprios oficiais do “Grupo dos 9” e sem um signifi-cativo saneamento político nos órgãos de informação (jornais, rádios, RTP) que respondia, aliás, ao que antes fora promovido pelo PCP. A tropa volta a obedecer ao Estado e regressa aos quartéis e a mobilização popular arrefece e desmobiliza. Sem o apoio militar do MFA e do COPCON, as “conquistas revolucionárias” tor-navam-se pouco mais do que uma retórica, mesmo que fosse uma retórica com consagração constitucional. A revolução dava lugar à institucionalização da de-mocracia, mas deixava-lhe marcas genéticas essenciais e duradouras.

4. A REVOLUÇÃO, MARCA GENÉTICA DA DEMOCRACIA PORTUGUESA

É certo que a revolução acabou, fruto de um processo de contenção, e se lhe se-guiu, no quadro da legitimidade democrática e constitucional, um processo de contra-revolução legislativa que esvaziou progressivamente a parte mais avan-çada do património revolucionário: a meta do socialismo, a Reforma Agrária, as

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nacionalizações, o controlo operário e, de uma forma geral, boa parte das expres-sões da democracia directa.

Mas ficou como património que tem sido, até agora, estável, herdado do pro-cesso revolucionário, um núcleo de aquisições fundamentais que subsiste, que tem subsistido, como sua marca genética: na democracia política, na democracia social, na democracia educativa, no embrião do Estado Providência, num certo consenso em torno do papel regulador do Estado na economia e na sociedade em nome da justiça social.

Esse traço distintivo, essa marca genética da democracia portuguesa reside no facto de ela ser fruto de uma revolução. Quer isso dizer que a conquista das liber-dades públicas e dos direitos fundamentais, dos direitos sociais, dos avanços no domínio da saúde, da educação, tal como a destruição de boa parte das estruturas e das políticas mais odiosas do antigo regime (a polícia política, a censura, a delação, as milícias, o partido único...), foram, em boa medida, fruto da iniciativa e da com-batividade cidadã, alcançadas na rua, na empresa, na escola, antes de se plasmarem nas leis e na Constituição. A democracia portuguesa, naquilo que tem de essencial, é uma democracia conquistada e não outorgada, fruto de uma rotura revolucioná-ria que se sucedeu à incapacidade histórica da iniciativa autoreformadora do regi-me ou mesmo de qualquer espécie de transição pactuada. A revolução, com todos os seus acidentes, foi a génese da democracia portuguesa e esta, apesar de tantos acidentes de percurso e de não poucas desfigurações, tem sido dela indissociável.

Não se trata, todavia, de uma constatação imutável. E talvez um dos desafios centrais da cidadania dos nossos dias seja o de saber se o processo histórico de esvaziamento das conquistas fundamentais da democracia logrará ou não trans-formá-la num ente radicalmente contraditório com a sua génese. Mas esse, pro-vavelmente, já só pode ser o olhar da História do futuro.

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NOTAS1 Não obstante, a primeira obra académica sobre a Revolução portuguesa e a sua influência na transição espanhola foi de um autor catalão: SANCHEZ CERVELLÓ, Josep – A revolução portuguesa e a sua influência na transição espanhola. Lisboa: Assírio & Alvim, 1993.

2 Cf. CUNHAL, Álvaro – A verdade e a mentira na revolução de Abril: a contra-revolução confessa-se. Lisboa: Ed. Avante!, 1999. pp. 98-103.

3 Cf. BANDEIRINHA, José António – O processo SAAL e a arquitectura no 25 de Abril de 1974. Coimbra: Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2001. Tese de doutoramento.

4 Cf. REZOLA, Maria Inácia – O conselho da Revolução e a transição para a democracia em Portugal. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tese de doutoramento [a apresentar].

5 Cf. SANCHEZ CERVELLÓ, Josep – Ob. cit.; REIS, António – A dialéctica entre as componentes militar e civil no processo revolucionário do 25 de Abril. In Revista de História das Ideias. 17 (1995); FERREIRA, José Medeiros – Portugal em transe. Vol. 8. In MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994.

6 Cf. FERREIRA, José Medeiros – Ob. cit.

7 Cf. SANTOS, Paula Borges – A Igreja e o 25 de Abril: o“caso Rádio Renascença”: 1974-1975. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2003. Tese de mestrado em História dos séculos XIX e XX: secção século XX [a apresentar].

8 Melo Antunes e outras fontes falam em negociações directas daquele oficial com Álvaro Cunhal, o que este contradita ao falar de uma “saída política do golpe”, “não negociada, não debatida”, mas resultante numa “aliança conjuntural e objectivamente existente” entre o PC e os oficiais “golpistas” defensores da continuação da democracia. Cf. CUNHAL, Álvaro – Ob. cit., pág. 228.

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As transições democráticas colocam as elites e a sociedade, perante o desafio de enfrentar os legados dos regimes ditatoriais, e, a portuguesa, foi particularmente importante sob este ponto de vista, quer pela longa duração do regime autoritário quer pela natureza de ruptura no tipo de mudança de regime.1 Acresce que o caso português, enquanto o primeiro da chamada “terceira vaga”, teve escassos mode-los de inspiração e nenhum de contágio e foi, como alguém a definiu recentemente, uma experiência, de “democracia depois da guerra”, onde os militares desempe-nharam um papel determinante no derrube da Ditadura (Bermeo, 2004).

O presente artigo tem como objectivo analisar a forma como as elites e a sociedade portuguesa lidaram com duas dimensões do legado autoritário duran-te a transição: as elites e as instituições associadas com o antigo regime. A natu-reza de ruptura da transição portuguesa e a crise do Estado abriu uma “janela de oportunidade” que fez com que a “reacção ao passado” ultrapassasse largamente as presentes noutros casos na Europa do Sul e a aproximasse de alguns casos do imediato pós Segunda Guerra Mundial.2 Por outro lado, a forte dinâmica da pró-pria transição, constitui por si só um outro legado a consolidação da democracia.3 Por outras palavras trata-se de observar como a natureza da transição afectou parte do legado do autoritarismo e fez desaparecer ou transmutar o seu impacto na “qualidade da democracia” em Portugal.4

O LEGADO DO AUTORITARISMO E A TRANSIÇÃO PORTUGUESA PARA A DEMOCRACIA, 1974-2004

António Costa Pinto | Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa

(UL); Comissário das Comemorações dos 30 anos do 25 de Abril

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A Natureza da Transição Portuguesa

O golpe militar 25 de Abril de 1974 em Portugal abriu a 3ª vaga dos processos de democratização na Europa do Sul (Pridham, 2000). Ainda sem grandes cons-trangimentos internacionais pró-democratizadores e em plena guerra-fria, a rup-tura provocada pelos militares portugueses, deu lugar a uma crise acentuada do Estado, potenciada pela simultaneidade entre democratização e descolonização do último império colonial europeu (Schmitter, 1999).

A grande singularidade do caso português foi precisamente a intervenção democratizante do movimento dos capitães, rara senão única no século XX, e que estava longe de ser previsível, muito embora uma guerra colonial em três frentes africanas (Angola, Moçambique e Guiné-Bissau) alimentada desde 1961 pelo regime autoritário de Salazar, os tivesse tornado actores inevitáveis de qual-quer mudança política (MacQueen, 1997; Pinto, 2000).

Apesar do efeito surpresa da acção do movimento dos capitães, a intervenção militar deu-se num contexto ditatorial onde existiam elites alternativas com laços com vários segmentos da sociedade civil. A presença de uma oposição semi-legal e clandestina diversificada ao Salazarismo, ainda que com escassa ligação aos militares que desencadearam o golpe de Estado, foi fundamental, pois constituiu de imediato uma opção legitimada pelo combate à Ditadura. Por outro lado, o afastamento por doença do ditador e a sua substituição por Marcello Caetano, em 1968, que ensaiou uma breve experiência de “liberalização”, bloqueada 2 anos depois, também con-solidou a emergência de uma “ala liberal”, dissidente da Ditadura. A fundação da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES) em 1970 expres-sou bem a convergência reformadora dessa elite (Fernandes, 2005).

Considerando transição como “o período fluido e incerto em que as estrutu-ras democráticas estão a emergir”, mas onde ainda não é claro que regime vai ser instaurado (Morlino, 1998: 19), a fase mais complexa do caso português decorre entre 1974 e 1976, ano da aprovação da Constituição e das primeiras eleições legislativas e presidenciais. Concentraram-se nestes 2 anos tensões poderosas na sociedade portuguesa, com alguns elementos de uma conjuntura revolucionária.

Ao contrário de Espanha, Portugal conheceu uma transição por ruptura, ou seja sem qualquer pacto ou negociação entre a elite da Ditadura e as oposições, mas não existe uma relação directa entre esta acentuada descontinuidade e algu-ma radicalização subsequente. Outros processos de transição por ruptura não arrastaram consigo uma crise acentuada do Estado, como no caso português (Linz e Stepan, 1997; Alivizatos and Diamandouros, 1997).

Muito embora uma forte mobilização anti-ditatorial tenha sido determinante

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nos primeiros dias após o golpe de 1974, nomeadamente na imediata dissolução das instituições mais conotadas com o Estado Novo, como a polícia política ou o Partido único, e nas ocupações de muitos sindicatos, organismos corporativos e Câmaras Municipais, o primeiro governo provisório, uma parte da elite militar e das organizações de interesses apontavam para uma rápida institucionalização de um regime democrático, com eventuais contornos presidencialistas.

A clivagem em torno da descolonização, motor inicial do conflito entre os capi-tães dirigentes do golpe e o General Spínola e outros oficiais generais conservadores, marcou a emergência política do MFA. Este factor abriu um espaço de mobilização política e social e concomitante crise do Estado, que pode explicar a incapacidade das elites moderadas dominarem “por cima” a rápida institucionalização da democracia representativa. Muitas análises da transição portuguesa salientaram justamente esta grande “revitalização da sociedade civil”, como factor de radicalização, de facto, como sublinhou Philippe Schmitter “Portugal conheceu uma das mais intensas e generali-zadas experiências de mobilização das neo-democracias” (Schmitter, 1999: 368) mas convém sublinhar que esta mobilização se desenvolveu em paralelo com a presença deste “chapéu” protector, e é dificilmente imaginável sem ele.

Os tímidos movimentos de ruptura simbólica e de elites com o passado come-çaram então a desenvolver-se. O rápido e multidireccionado movimento de “saneamentos”, nome dado em Portugal às purgas políticas, foi disso exemplo. Após uma rápida decisão de afastamento dos elementos mais “visíveis” da elite política da Ditadura e de alguns militares conservadores, este movimento de “des-fascização” começou desenvolver-se na administração pública e no sector priva-do, caracterizando-se pela sua progressiva radicalidade, atingindo quadros muito abaixo da elite política nacional do regime deposto, ainda que de forma desigual. As reivindicações de criminalização da polícia política, a conhecida PIDE-DGS, e de outros organismos repressivos também cresceram de imediato.

Foi também neste conjuntura que os partidos que iriam representar a direita e o centro direita se formaram, o CDS e o PPD (Bruneau,1997; Lopes e Freire, 2004). Após a ilegalização de várias organizações de direita e extrema-direita logo em 1974, o seu esforço de exclusão de nomes associados ao Estado Novo e de procura de dirigentes com legitimidade democrática foi grande e os seus programas politicas encontravam-se a esquerda da matriz politica dos seus mili-tantes e eleitores. Apesar disso, o CDS, responsável pela integração no sistema democrático dos segmentos da sociedade portuguesa que expressavam valores autoritários conservadores, iria estar na fronteira da ilegalização até às primeiras eleições para a Assembleia Constituinte em 25 de Abril de 1975.

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A queda de Spínola e a viragem à esquerda do MFA, com a Reforma Agrária e as nacionalizações dos grandes grupos económicos portugueses, são símbolos e motores de uma acentuada crise do Estado que alimentaram poderosos movimentos sociais. A decisão do MFA de respeitar o calendário eleitoral foi o elemento central da abertura de uma legitimidade fundadora do regime democrático e a sua realização, em 25 de Abril de 1975, dotou os partidos moderados de uma alavanca poderosa.

Seria simplista considerar o “verão quente” de 1975, apenas como a tenta-tiva dos comunistas portugueses imporem uma ditadura apoiada pela União Soviética. Muito embora seja natural que a elite política democrática tenha con-centrado aqui o fundamental do seu discurso fundador, ele está longe de esgo-tar o tema. O desenvolvimento de fortes estruturas políticas de base, como as comissões de trabalhadores, o desafio que a extrema esquerda representou nesta conjuntura de crise, e a própria penetração política desta nas forças armadas são exemplos de uma maior complexidade, que passou pelos “casos” da ocupação por jornalistas de extrema esquerda da Emissora Católica Rádio Renascença, do jornal República (até aí porta-voz da esquerda moderada), ou pela dinâmica de ocupação de propriedade urbana em Lisboa. As clivagens políticas no interior das forças armadas também introduziram alguma autonomia que não pode ser reconvertida em mera “conspiração programada”. Mais uma vez, como salientou um analista da transição portuguesa, a crise de Estado foi um “factor de oportuni-dade” para alguma radicalização dos movimentos sociais e este factor não deverá ser evacuado da análise do período (Muñoz, 1997).

Portugal conheceu então uma conjuntura de polarização rara, sobretudo pela mobilização anti-revolucionária da província. Muito embora protagonizada pelo Partido Socialista e pelo Partido Social Democrata em Lisboa e no Porto, à medida que o sector moderado do MFA se preparava para o golpe de 25 de Novembro de 1975, a mobilização de província a norte do Tejo só foi possível com a entrada em cena da hierarquia da Igreja Católica e da mobilização paroquial, em conjunção com a notabilidade local. Acompanhada pela mobilização de elementos de direita e extrema direita, militares e civis, a ofensiva anti esquerdista passou por uma onda de violência política contra as sedes do PCP, da extrema esquerda e sindicatos a eles associados, e daria origem a organizações terroristas de direita (Cerezales, 2003).

Portugal sofreu também, durante este curto período de 1974-75 uma significativa intervenção externa, não só diplomática, como também na própria estruturação dos partidos políticos, organizações da sociedade civil (como sindicatos e organizações de interesse) e na estratégia político-militar anti-esquerdista no “verão quente” de 1975. Por outro lado, o caso português foi tema divergente nos fora internacionais, da

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NATO, à CEE, passando pela relações entre estas instituições e o então bloco socia-lista, dirigido pela União Soviética. Quaisquer que sejam os indicadores escolhidos, parece não oferecer dúvidas que o período de 1974-75 em Portugal conheceu grande “saliência internacional” (Pridham, 1991; Opello, 1991; Teixeira, 2004).

Apanhada de surpresa pelo golpe, a comunidade internacional, com particular relevo para os EUA, concentrou-se no apoio às forças políticas democráticas de centro esquerda e de direita, na metrópole, e no acompanhamento e intervenção no rápido processo de descolonização, particularmente em Angola (Maxwell, 1995). Utilizaram-se então métodos herdados do após 2ª guerra mundial, particularmente em Itália. Perante uma fortíssima mobilização política e social esquerdista, um teci-do económico com um forte sector nacionalizado e a fuga generalizada de capitais e da própria elite económica, os partidos moderados só conseguiram um mínimo de implantação e funcionamento nesta conjuntura de crise com um apoio financeiro e de formação de quadros significativos por parte da administração norte americana e das organizações internacionais das “famílias políticas” europeias, com as segundas servindo por vezes de mediadoras do apoio da primeira.

A natureza de ruptura da transição, mas sobretudo a crise do estado que esta desencadeou, é fundamental para explicar algumas características mais radicais da transição e algumas dimensões das atitudes perante o passado autoritário, durante este período. Ambas confluíram num duplo legado à consolidação democrática (Pinto, 1998 e 2001).

1. AJUSTANDO CONTAS COM A DITADURA: 

A “justiça transicional” Portuguesa

A “justiça transicional” portuguesa concentrou, em pouco meses, todas as faces contraditórias da tentativa de punir as elites autoritárias, os agentes da repressão ditatorial e seus colaboradores.5 Numa segunda fase atingiu também as elites eco-nómicas e empresariais. O fundamental das medidas de punição real e simbólica dos colaboradores mais visíveis da Ditadura deu-se em 1974 e 1975, antes do funcionamento pleno de uma nova legitimidade democrática. Crise do Estado, poderosos movimentos sociais e intervenção militar caracterizaram este perío-do, marcando as atitudes perante o passado e a punição das suas elites, caracteri-zada por um escasso recurso ao sistema judicial.

A natureza de golpe de Estado “não hierárquico”, com a intervenção quase imediata de forças democráticas e a mobilização popular, acentuou a natureza de ruptura real e simbólica com o passado. A breve resistência das forças mais associadas à repressão, como a Polícia Política ou a Legião Portuguesa (LP), e a

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entrada na cadeia de muitos funcionários da primeira foi um elemento fundador desta mobilização política pró-criminalização.

As primeiras medidas da Junta de Salvação Nacional, presidida pelo general Spínola, estabeleciam um programa rápido e ligeiro de saneamentos, aliás pre-vistos no programa do MFA, apenas para as Forças Armadas. O reagrupamento dos membros do último governo da Ditadura que se quiseram juntar a Marcello Caetano e ao ex-presidente da Republica, e o seu envio para a Ilha da Madeira, de onde seriam autorizados quase imediatamente a seguirem para o exílio no Brasil, pensando de imediato nas reivindicações de criminalização política, caso tivessem ficado detidos em Portugal, são exemplo desta preocupação. A polícia política e a velha milícia anticomunista Legião Portuguesa, que ainda tentaram alguma resis-tência, foram prontamente desarmadas e alguns dos seus dirigentes e funcionários presos. O partido único, a organização oficial da juventude, e outras instituições do antigo regime foram também dissolvidas (vide Quadro n.º 1). O Movimento das Forças Armadas, que dirigiu o golpe, propôs a passagem à reserva de 60 generais, a maioria dos quais tinha, imediatamente antes da queda da Ditadura, demonstrado publicamente solidariedade política com Marcello Caetano.

A principal pressão, praticamente unânime à esquerda, de criminaliza-ção política de elementos associados ao antigo regime, dizia respeito à Polícia Política. Esta pressão decorreu aliás da própria dinâmica do golpe militar e do cerco popular à sede da PIDE/DGS em Lisboa, provocando a rendição e prisão de muitos agentes que se encontravam na sede. Apesar de algumas tentativas de assegurar a sua sobrevivência nas colónias, dada a colaboração entre esta e as Forças Armadas, ela acabaria por ser dissolvida, com parte dos seus agentes presos e outros em fuga nos primeiros dias após o golpe.6

Pouco tempo depois seria criada uma Comissão de Extinção da PIDE-DGS, a Mocidade Portuguesa (MP) e LP, dirigida por militares, que iniciaria também a prisão de alguns informadores. A vida desta comissão seria agitada, com denún-cias regulares de manipulação política por parte de forças de extrema-esquerda e do partido comunista. Esta teve como funções preparar os processos para julga-mento dos seus funcionários e “informadores” mais destacados, e ainda a cola-boração com as comissões de saneamento, dado o seu monopólio de acesso às fichas individuais de cidadãos que a polícia política mantinha. Em Julho de 1975 a lei 8/75 aprovava o julgamento em tribunal militar dos agentes da PIDE/DGS e outros responsáveis pela repressão durante a Ditadura, na base de uma “legiti-midade revolucionária” definida no seu preâmbulo. Esta lei previa penas de 2 a 12 anos de prisão e os crimes não prescreviam (Costa, 40).

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A primeira legislação publicada pela Junta de Salvação Nacional legitimou a demissão do Presidente da República e dos membros do governo, bem como dos dirigentes do partido único, da Legião Portuguesa e de vários altos dirigentes da administração pública. A nível local, a oposição clandestina e semi-legal ao antigo regime – em particular o Movimento Democrático Português, uma orga-nização frentista ligada ao Partido Comunista, mas com bastantes independentes – ocupou a maioria das câmaras municipais e afastou os seus antigos dirigentes. Muito sindicatos corporativos foram tomados pelos trabalhadores e os seus diri-gentes imediatamente afastados.

As primeiras declarações políticas dos partidos de esquerda foram, em geral, bas-tante cautelosas em relação aos saneamentos. O Partido Socialista e os comunistas fizeram declarações moderadas. Não obstante, os primeiros afastamentos ocorre-ram espontaneamente em vários empresas e as exigências de saneamentos fizeram parte das palavras de ordem das primeiras greves. Nas Universidades de Lisboa e de Coimbra alguns professores e funcionários que tinham colaborado com o anterior regime viram a sua entrada nas faculdades negada pelas associações de estudantes.

Em resposta a estes movimentos, o governo provisório anunciou, 2 meses após a queda da Ditadura, os primeiros regulamentos sobre saneamentos na administração pública, criando uma Comissão Interministerial de Saneamento e Reclassificação, na dependência da Presidência do Conselho de Ministros, encarregada da coorde-nação das comissões existentes ou a criar em todos os ministérios. Era da sua com-petência escrutinar comportamentos “contrários à ordem estabelecida após o 25 de Abril de 1974” (Diário do Governo, 1, n.º 146: 744). Estas comissões funcionaram

INSTITUIÇÕES MEDIDAS TOMADAS

Presidência da Republica Exílio [do presidente]

Governo Exílio [da maioria do governo e do Chefe do Governo]

Assembleia Nacional Dissolução

Câmara Corporativa Dissolução

Acção Nacional Popular (Partido Único) Dissolução

Legião Portuguesa Dissolução

PIDE (Polícia Política) Dissolução

Comissão de Censura Dissolução

Tribunal Plenário (para “crimes políticos”) Dissolução

Corporações-Grémios Dissolução e/ou reorganização

“Sindicatos Nacionais” Ocupação e/ou reorganização

QUADRO N.º 1 INSTITUIÇÕES POLÍTICAS REPRESSIVAS E AUTORITÁRIAS E MEDIDAS TOMADAS NA TRANSIÇÃO

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até 1976, e a legislação foi revista várias vezes, mantendo-se assim a par da radicali-zação da conjuntura política. No início de 1975 o texto legal referia-se já ao regime anterior como “regime fascista” e as acções dos funcionários públicos antes do 25 de Abril tornaram-se objecto de saneamento (Diário do Governo, 1, n.º 59: 375). Em Março de 1975, quando o General Spínola fugiu do país, a dinâmica anti-capitalista provocou uma segunda vaga no movimento de saneamentos. Esta seria uma fase nova com características e agentes difusos.

Os relatórios oficiais sobre o processo de saneamento declaravam em Fevereiro de 1975 que tinham sido afastadas ou suspensas das suas anteriores posições, por meios legais ou ilegais, cerca de 12.000 pessoas (O Século, 27 de Fevereiro de 1975). Entre Março e Novembro de 1975 o número de afastamentos e suspensões deve ter aumen-tado significativamente, quando todo o tipo de sanções, desde simples transferências a demissões, são consideradas, incluindo algumas forças policiais, como a PIDE-DGS, e os chamados “saneamentos selvagens” nas empresas (vide Quadro n.º 2).

Elite Politica, Militar, Administrativa Policial-Repressiva (PIDE-DGS)

Económica e Empresarial

Punição Saneamento administrativo Julgamento Saneamento, ocupação, intervenção, nacionalização

Agente Formal Governo e Comissões oficiais Tribunal Militar Comissões de Trabalhadores e Governo

QUADRO N.º 2 ELITES E TIPO DE PUNIÇÃO

Os principais actores no processo de saneamentos vinham de diferentes ori-gens. Se excluirmos as medidas tomadas pela Junta de Salvação Nacional e pelo MFA imediatamente a seguir ao golpe, os principais agentes políticos dos saneamentos foram o Partido Comunista e os pequenos, mas conjunturalmen-te influentes, partidos de extrema-esquerda, ainda que parte da dinâmica nas empresas e na própria função pública escapasse muitas vezes a um controle partidário. O estabelecimento de Comissões de Saneamento da administração pública, foram aprovados pelos primeiros governos provisórios, com represen-tação do PCP, PS e PSD e pretenderam disciplinar legalizar muitas acções de afastamento que já estavam em curso.

Os pedidos de saneamento eram muitas vezes formulados pelas Comissões de Trabalhadores (constituídas no seio das empresas e independentes dos sindi-catos), onde o PCP tinha de partilhar o controlo com os outros partidos da extre-ma-esquerda. A grande maioria dos “saneamentos selvagens” foi implementada por estas comissões, muitas vezes fora do controlo do PCP.

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Em termos gerais, o processo de saneamento não se regeu por estratégias cla-ras nem por um padrão coerente. Diferiu muito de sector para sector. O conceito de “colaborador” também mudou neste período pré-constitucional. Em 1974, os primeiros saneamentos baseava-se num conceito estrito de colaboracionismo. No entanto, em 1975, vários tipos de atitudes autoritárias de industriais e empre-sários foram consideradas como associadas ao antigo regime.

As Forças Armadas

A primeira instituição a ser alvo de saneamentos foi, por razões óbvias, as Forças Armadas. Imediatamente após o golpe, o MFA deu a Spínola a lista acima citada de 60 generais que a Junta de Salvação Nacional passará à reserva. O saneamento nas Forças Armadas fazia parte do programa do MFA e, contrariamente aos dese-jos de Spínola, acabaria por se expandir.

A justificação para esta primeira lista de oficias superiores foi o apoio polí-tico a Marcello Caetano numa cerimónia pública nas vésperas do golpe. A ceri-mónia de Março de 1974 dirigira-se contra o MFA clandestino e os Generais Spínola e Costa Gomes.

Nos meses seguintes comissões militares especiais realizaram os inquéritos decididos pelo MFA. Em Outubro de 1974, 103 oficiais da marinha foram sane-ados, passando à reserva (O Século, 1 de Outubro de 19747 e, no final do ano, 300 oficiais de várias patentes seriam afastados do activo nos três ramos das Forcas Armadas. Neste último caso, o critério oficial para o seu saneamento seria a incompetência. Era difícil manter critérios políticos formais tais como “cola-boração com o antigo regime”, porque todo o establishment da Defesa colaborara com o Estado Novo durante a guerra colonial (Pinto, 2001).

Quando Spínola se exilou, após a tentativa de golpe de 11 de Março de 1975, o movimento de saneamentos foi reforçado e a maioria dos oficiais do entourage de Spínola foram afastados. Alguns saneamentos atingiram também a Guarda Nacional Republicana, uma instituição policial militarizada. O Conselho da Revolução – organização suprema do MFA – deu instruções para passar à reserva todos os oficiais que “não obedeçam aos princípios definidos pelo MFA” (Diário do Governo, 1, n.º 62: 430-4).

No início dos anos 80, com a consolidação da democracia, e antes, através das vicissitudes dos vários movimentos militares que se desenvolveram durante a transição, mais militares passaram precocemente a reserva ou foram alvos de processos de afastamento e exílio. Após a vitória da esquerda moderada do MFA, militares afectos à esquerda revolucionária e o Partido Comunista foram alvo de

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saneamento. Os seus simpatizantes dentro das Forças Armadas seriam afastados e outros exilaram-se em Angola e em Moçambique, então dominados por regi-mes socialistas. Após a dissolução do Conselho da Revolução alguns dirigentes do MFA também tiveram que abandonar as Forças Armadas. Alguns seriam rein-tegrados mais tarde e imediatamente passados à reserva após morosos processos judiciais que se desenrolaram até aos anos 90.

As Forças Armadas foram talvez a instituição onde a ruptura entre passado e presente mais claramente se definiu (Maxwell, 1982). Uma nova geração em breve ascenderia às patentes mais altas das Forças Armadas, tendo a maior parte da elite militar associada com o regime autoritário sido obrigada a retirar-se. A institucionalização da democracia em Portugal significou assim uma mudança importante na vida de muitos militares, e teve aí, provavelmente, maiores con-sequências do que em qualquer outro sector das elites.

O saneamento da Administração Pública

A primeira legislação aprovada pelo governo provisório enunciava três razões para o saneamento do funcionalismo público: comportamento antidemocrático no desempenho de funções após o golpe; incapacidade de adaptação ao novo regime democrático; e incompetência. A punição mínima era a transferência de serviço e a máxima apontada era a demissão da função pública.8 As penas máximas aplicaram-se sobretudo às prioridades definidas pouco depois pelo governo: elite governamental da Ditadura, colaboração com a polícia política, direcção da Milícia e partido único e direcção da comissão de censura. Os pro-cessos eram elaborados pelas Comissões, levados à Comissão Interministerial, que ratificava ou não o parecer sobre a pena a aplicar pelo ministro respectivo. Os protestos dos sindicatos e dos próprios membros das comissões de sanea-mento perante a ineficácia e a lentidão burocrática, mas sobretudo o evoluir da conjuntura política, levaria à adopção de nova legislação em Março de 1975, que já incluía saneamentos baseados no comportamento individual anterior à instauração da democracia.

É difícil chegar-se a uma conclusão quantitativa global sobre os processos de saneamento no seio da burocracia estatal. O processo decorreu de forma dife-rente de ministério para ministério, dependendo da pressão dos sindicatos e dos limites da legislação. No final de 1974, oito meses após o golpe, cerca de 4.300 funcionários públicos tinham passado por processos de saneamento (O Século, 27 de Fevereiro de 1975). No balanço realizado pela própria comissão que coor-denava os processos era fácil observar a extrema desigualdade de actuação das

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diversas comissões ministeriais, dependendo da atitude do ministro responsável e da pressão sindical ou das comissões de trabalhadores.

Uma das áreas que menos sofreu foi a do Ministério da Justiça, particularmen-te o corpo de Juízes dos tribunais políticos da Ditadura, os “tribunais plenários”. Boa parte da elite da esquerda moderada associada ao partido socialista era cons-tituída por advogados que tinham participado nos grandes julgamentos políticos durante o “Estado Novo”, ora como réus ora como advogados de presos, na maio-ria comunistas. A elite do Salazarismo, por sua vez sempre teve uma acentuada componente de Professores de Direito, e o regime sempre se caracterizou por uma grande obsessão de legitimação jurídica de todos os seus actos (Pinto, 2001). Estes factores levariam a crer que existisse uma forte pressão a favor da sua cri-minalização política, o que não se verificou. Alguma solidariedade corporativa e sobretudo a moderação dos dirigentes socialistas que asseguraram as pastas da Justiça nos primeiros governos provisórios foram aqui importantes.

O saneamento do corpo de magistrados teve ainda vários entraves suple-mentares, ligados à autonomia do aparelho judicial, e os ministros da justiça não o impulsionaram. Respondendo a críticas da opinião pública, o secretário da Comissão de Saneamento do Ministério da Justiça, reconhecia em 1975 não ser “necessário nem viável nesta conjuntura um saneamento mais profundo” (A Capital, 19 de Abril de 1975).

De um corpo de 500 magistrados, foram alvo de processos de saneamento em 1974-75, 42 juízes, a maioria por terem pertencido a tribunais políticos, ou exercido funções no governo ou na censura.9 Dois anos mais tarde alguns dos mais conhecidos juízes, que tinham sido alvos de demissão ou aposentação compulsiva, seriam rein-tegrados pela Comissão de Análise de Recursos de Saneamentos, dois dos quais no Supremo Tribunal de Justiça, perante o protesto de parlamentares da esquerda.10

Mais complexos, extensivos e radicais foram os saneamentos realizados nas áreas dependentes do Ministério do Trabalho, herdeiro do Ministério das Corporações e Previdência, responsável pelo desmantelamento de parte do aparelho corporativo. A inclusão na lei dos saneamentos não apenas daqueles que tinham mantido um laço formal com a PIDE/DGS mas de todos os que com ela tinham, de uma forma ou de outra, colaborado “legalizou” um grande número de processos de “saneamen-tos selvagens”. Por outro lado, com as nacionalizações e a intervenção do Estado em empresas privadas, aqui se concentraram a maioria dos processos de afastamento, mais marcados pela dinâmica anti-capitalista dos movimentos sociais.

O número de saneamentos aumentou também no Ministério da Educação e no sistema educativo, em particular nas Universidades. Alguns conhecidos escritores,

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professores universitários e liceais, fizeram parte da Comissão de Saneamento.11 A Junta de Salvação Nacional afastou todos os reitores das Universidades, direc-tores de faculdades e vários altos funcionários do Ministério foram transferidos, já sob forte pressão estudantil. Nas escolas secundárias, as acções mais radicais do movimento estudantil precisaram por vezes da intervenção militar para pro-teger os acusados, mas foi nas universidades que, dada a fortíssima pressão do movimento estudantil, os saneamentos legais e “selvagens” foram mais rápidos. Alguns membros da Comissão demitiram-se rapidamente, em protesto contra estes últimos, decididos sem base legal.12

Os estudantes simplesmente negaram a entrada a alguns professores após votação em Assembleia, dos quais apenas uma minoria chegaria a ser legalmente saneada pela Comissão de Saneamento do Ministério da Educação. O mesmo aconteceu com alguns funcionários das escolas superiores e secundárias, sus-peitos de colaboração com a Polícia Política. Os casos de maior radicalidade em termos de saneamentos “selvagens”, deram-se na Faculdade de Direito de Lisboa, onde uma assembleia dominada por um partido maoísta decidiu sanear Professores membros do Conselho de Estado e dirigentes de partidos conserva-dores, contra a opinião dos estudantes comunistas.

A repressão do movimento estudantil pró-democratico durante os últimos anos da ditadura, associado ao comportamento autoritário de muitos profes-sores, terá motivado alguns destes “saneamentos selvagens”. Os professores e funcionários alvos de processos legais tinham uma base mais sólida: ou o exer-cício de altos cargos durante a Ditadura ou a colaboração com a polícia política na repressão e denúncia de estudantes e professores da oposição. Foi aqui que, como na área do Ministério do Trabalho, os saneamentos atingiram escalões mais baixos de funcionários, que prestavam informações à polícia política.

Alguns professores alvo de processos de saneamento dedicaram-se a outras actividades profissionais, enquanto outros emigraram para o Brasil. Quando o governo introduziu o numerus clausus, condicionando o acesso às universidades do Estado, muitas universidades privadas seriam criadas em torno de professo-res que tinham sido afastados em 1974, muito embora a grande maioria tenha sido mais tarde reintegrada.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros os saneamentos limitaram-se a alguns membros do corpo diplomático que tinham exercido funções governativas no anterior regime. Quando foi nomeado ministro dos negócios estrangeiros, Mário Soares, apenas transferiu alguns embaixadores, e a comissão de saneamento, ainda que formada, concentrou-se em alguns Consulados, onde a colaboração com a

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polícia política era mais importante, nomeadamente no controle das actividades dos exilados políticos em países de forte presença de comunidades portuguesas emigradas, como no Brasil ou em França.

No aparelho de Estado o saneamento foi assim limitado e muito diversificado. Onde existia uma forte pressão sindical e das comissões de trabalhadores, como nos ministérios do Trabalho e da Educação, os afastamentos foram frequentes. Muito embora os relatórios apontem para um número maior de saneados dos escalões mais altos da administração, esta atingiu também, os pequenos funcio-nários, sobretudo por colaboração com a polícia política. No entanto, a demora nos processos de saneamento legal reduziu a sua abrangência e tornou possível uma rápida reintegração ao cabo de alguns anos. Não obstante, as alterações no topo da administração foram visíveis. A maior parte desses altos funcionários seriam reintegrados entre 1976 e 1980, embora a grande maioria não tenha regressado às posições estratégicas que antes tinham ocupado.

A Ruptura a Nível Local

A ruptura a nível da administração local é muito mais difícil de avaliar. Em 24 de Abril de 1974 vários milhares de pessoas administravam 304 municípios e mais de 4.000 freguesias. Durante os primeiros meses após o golpe, a Junta de Salvação Nacional e o Ministério do Interior designaram comissões administrativas pro-visórias. Estas nomeações legitimaram a tomada do poder local por membros da oposição democrática ao Estado Novo. O principal agente de saneamento a nível local foi o MDP. Este partido sucedera à Comissão Democrática Eleitoral que em 1969 tinha obtido uma significativa maioria perante a CEUD – a frente eleitoral próxima da oposição socialista e republicana. O MDP era dominado pelo PCP mas contava igualmente com independentes, notáveis da oposição democrática local.

Durante o “Verão Quente” de 1975, acções anticomunistas provocaram a queda de muitas destas comissões administrativas, cujo isolamento se tornou visível no Centro e Norte do País. Os partidos de centro-direita e o próprio Partido Socialista estavam ainda mal organizados em 1974 (Bruneau, 1997). Não tinham uma organização partidária estruturada e foi apenas mais tarde, durante o período pré-eleitoral, que começaram a exigir posições a nível local.

É difícil medir a extensão do processo de continuidade e de ruptura na admi-nistração local, dada a inexistência de estudos. A legislação excluiu as principais figuras da gestão local nos últimos anos da ditadura da possibilidade de se candi-datarem às primeiras eleições (Constituição da República, 1986: 92-93), mas o seu impacto deve ter sido pequeno.

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A Elite Económica

Nos dois primeiros anos da transição a elite económica foi fortemente abalada, com as nacionalizações e a intervenção estatal, mas igualmente com a fuga de industriais e empresários para o estrangeiro. Apesar das tentativas de compro-misso entre Spínola e os dirigentes dos principais grupos económicos, os movi-mentos grevistas e as fortes perspectivas de uma intervenção estatal provocaram as primeiras fugas. Foram igualmente iniciados, por vezes de forma ilegal alguns dos mais importantes processos de saneamento, em contraste com os do fun-cionalismo público e das Forças Armadas, o que assustou visivelmente a elite empresarial. O saneamento era, logo em Maio de 1974, a terceira reivindicação de um conjunto de 149 conflitos laborais, e continuará estável até finais do ano seguinte (Patriarca, 1999: 141).

Seria apenas no princípio de 1976 que foi dado estatuto legal e competência a duas comissões de saneamento para tratar dos sectores da banca e dos seguros, agora nacionalizados. Estas comissões encontravam-se subordinadas à comissão geral para a função pública. A principal função destas, mais do que sanear, era já a de reintegrar os que tinham sido objecto de “saneamentos selvagens”, sem respeito pelos “princípios fundamentais de isenção e defesa dos acusados no processo” (Diário do Governo, 1, n.º 17: 122-13).

O êxodo de figuras importantes do mundo empresarial tornou-se comum em 1975 e a nomeação de novos gestores para as empresas intervencionadas pelo Estado também. Os “saneamentos selvagens” concentraram-se nas gran-des empresas da área industrial de Lisboa e nos sectores da banca e dos seguros. No sector empresarial, a dinâmica ultrapassou largamente a eventual punição da colaboração individual com a repressão ou com as instituições políticas do Estado Novo, fazendo parte integrante de uma vaga de reivindicações sociais com uma acentuada marca anti-capitalista que remetia também para formas de autoritarismo de comportamentos por parte de proprietários e quadros. Na maioria das pequenas cidades do norte do país, devido à fraqueza dos sindicatos e comissões de trabalhadores locais e à natureza do tecido empresarial, deram-se menos “saneamentos selvagens” (Muñoz, 1997).

A estratégia das nacionalizações pretendia desmantelar os grandes grupos económicos e controlar os principais sectores da economia portuguesa. Para além das nacionalizações directas, o Estado manteve várias empresas sob controlo indirecto por um período de tempo. A Constituição de 1976 confirmou as nacio-nalizações mas reduziu a intervenção. Um estudo realizado permite-nos concluir que 19% dos industriais abandonou as suas posições (2% foram saneados) e que

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os saneamentos atingiram essencialmente a área industrial de Lisboa e Setúbal, e quase não tocaram no sector têxtil nortenho (Makler, 1983: 251-283). O Brasil foi o país favorito de exílio, no entanto, muitos regressaram entre 1976 e 1980. Quando visitou este país em 1976, Mário Soares, primeiro-ministro do I Governo Constitucional, apelou ao seu regresso.

Durante o período pré-constitucional a vaga de nacionalizações, saneamen-tos e demissões afectou profundamente o sector empresarial. A maioria des-tes foram reintegrados entre 1976 e 1980, mas as nacionalizações provocaram mudanças mais duradouras na estrutura do sistema económico português e tor-naram-se num legado central da transição à nova democracia portuguesa.

Os Meios de Comunicação Social

A comunicação social sofreu alterações significativas na sua relação com o Estado e com o poder económico (Maxwell, 1983). Os conselhos de administração e de gestão das estações radiofónicas e da televisão, bem como dos principais jor-nais, foram forçados a afastar-se. Apenas alguns directores de jornais privados, já dominados pela oposição durante o antigo regime, lograram manter-se nos seus lugares. Se os primeiros afastamentos foram da responsabilidade dos militares, os agentes de saneamento na comunicação social eram principalmente jorna-listas e tipógrafos ligados ao Partido Comunista e às organizações de extrema-esquerda, cuja preponderância continuou até ao 25 de Novembro de 1975.

Os serviços de censura foram saneados e dissolvidos. A imprensa oficial do antigo regime tinha, contudo, uma circulação limitada e maioritariamente entre a administração pública. O diário associado ao partido único, A Época, artificial-mente mantido através de assinaturas de organizações oficiais, desapareceu ime-diatamente após a ocupação das suas instalações. Mas mais importantes seriam os processos nos jornais diários não oficiais, onde jornalistas e tipógrafos com ligações aos partidos de esquerda controlaram os saneamentos.

A comunicação social sofreu profundas mudanças durante o processo de transição. A luta política pelo controlo dos meios de comunicação causou grande impacto em Portugal. A ocupação da estação radiofónica da Igreja católica pelos seus jornalistas, a Rádio Renascença, e a subsequente autogestão da estação, pola-rizou a opinião pública. Esta estação de rádio tornou-se num porta-voz da extre-ma-esquerda em 1975, até que os seus poderosos transmissores foram destruídos alguns meses mais tarde por um comando militar e a estacão devolvida à Igreja.

O velho jornal República teve sorte semelhante. De todos os diários, era o único democrático que sobreviveu ao Estado Novo. Este jornal apoiou o Partido

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Socialista e entrou em autogestão depois dos seus antigos directores se terem demitido em 1975. O diário seria doravante apoiante da esquerda revolucionária até à sua devolução aos antigos directores. Muito embora os comunistas não esti-vessem na origem dos acontecimentos, a esquerda moderada associadas ao PS fez do “caso República” uma das campanhas “anti-totalitárias” de maior sucesso, associando-as à eminência da tomada do poder pelo PCP e entrecruzando bem a esfera nacional e a solidariedade internacional.

Após as nacionalizações dos grupos económicos, que controlavam uma parte substancial dos jornais nacionais, a maioria da imprensa passou para o controlo do Estado. Mais tarde, no auge da radicalização política, surgiram novos órgãos de imprensa apoiados pela esquerda moderada e pelos partidos de direita, alguns recuperando jornalistas saneados. A fundação de muitos contou com apoio financeiro das democracias ocidentais.

O Voluntarismo da Memória

Durante 1974-75, várias iniciativas voluntaristas de mobilização cívica de inicia-tiva estatal foram desenvolvidas para denunciar o legado do passado e “democra-tizar” certos sectores da sociedade portuguesa, desde as chamadas “Campanhas de Dinamização Cultural”, desenvolvidas pelo MFA com a colaboração de civis de esquerda, a certas componentes do chamado “Serviço Cívico Estudantil”. O go-verno criaria também, na dependência da presidência do Conselho de Ministros, a chamada “Comissão do livro negro sobre o fascismo”, constituída por intelectu-ais e políticos da esquerda republicana e socialista. Com acesso aos arquivos das instituições de repressão da Ditadura, esta comissão tinha como função a denún-cia dos actos ilícitos da Ditadura, através da publicação de dezenas de livros com documentos denunciando os métodos repressivos, a censura, a colaboração entre empresas e a polícia política, ou sobre os presos políticos, etc. Aquando da sua dissolução, em 1991, o seu objectivo era a criação de um “museu da resistência”, projecto que não se concretizou. Outra iniciativa, mais emblemática do período de 1974-75, mas associada à sociedade civil e aos partidos e organizações populares foi, por exemplo, a da constituição do “Tribunal Popular Humberto Delgado”.

As Campanhas de Dinamização cultural visavam fundamentalmente a “democratização” do mundo rural. Iniciativa de sectores do MFA, com uma forte presença de intelectuais de esquerda e de comunistas, estas campanhas passaram por iniciativas culturais de denúncia do passado repressivo e de apelo à participa-ção cívica. Perante a resistência conservadora no norte e as críticas dos partidos políticos moderados, que nelas viam uma afirmação política dos militares e a

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criação de um departamento de propaganda próprio, estas foram interrompidas no centro e norte do país, desaparecendo a 25 de Novembro de 1975, com a dissolução da 5ª Divisão, um departamento militar dominado por elementos associados ao partido comunista.

O serviço cívico estudantil foi produto de 2 factores confluentes: a incapa-cidade do sistema universitário absorver os candidatos ao ensino universitário provindos de um ensino secundário em explosão, e uma conjuntura ideológi-ca que apontava para as vantagens de um contacto entre estudantes o “povo”. Durante um ano escolar, os estudantes, antes da sua entrada nas universidades, passaram pois a trabalhar junto das comunidades locais em campanhas de alfa-betização e outras tarefas de apoio à população. Uma destas actividades, ligada a uma gigantesca campanha de recolha etnográfica de materiais e memória da cultura popular, deveria servir de base a um núcleo museológico que recolhesse a memória oral e material dos vestígios de resistência “operária e camponesa” ao Estado Novo (Branco e Oliveira, 1993; Oliveira, 2004).

Ainda que com diferentes nuances, ambas as iniciativas contaram com resis-tências políticas e sociais variadas, sobretudo no norte do país, onde a notabili-dade conservadora e os párocos da igreja católica encaravam com desconfiança estas iniciativas da esquerda, para além das classes médias urbanas, temerosas desta saída dos estudantes da esfera de controlo da família. As Campanhas de Dinamização Cultural serão terminadas logo em 1975 e o serviço cívico seria também abolido pelo ministério da educação pouco tempo depois.

O Tribunal Popular Humberto Delgado, remetia para uma solução do crime mais célebre da polícia política portuguesa, que se arrastava desde 1965, quando a PIDE atraiu e assassinou em Espanha, a poucos quilómetros da fronteira portugue-sa, o mais conhecido dos seus opositores, um general dissidente que se tinha apre-sentado nas eleições presidenciais de 1958, contra o candidato de Salazar e que se tinha exilado pouco tempo depois. O crime foi sempre negado pela Ditadura e o primeiro advogado da família do general seria um dos seus grandes opositores, Mário Soares. Criado após a transição, este tribunal destinava-se a mobilizar a opi-nião pública para o julgamento dos seus autores, agentes da PIDE, então fugidos à justiça. Estes acabariam por ser efectivamente condenados à revelia.

A Assembleia Constituinte discutiu em 1975 uma ampla panóplia de propostas de criminalização política da elite autoritária e dos agentes da repressão da Ditadura, mas, (para além das disposições transitórias prevendo o já referido julgamento dos agentes da PIDE) a única herança legal da transição em termos de medidas de punição associada com a Ditadura, foi a introdução na Constituição, em 1976, da proibição de

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partidos baseados numa “ideologia fascista”, que se manteve em ulteriores revisões. Nos anos 90, apesar das críticas sobre a sua utilidade, ela não só foi mantida pelo par-lamento, como seria utilizada contra um pequeno grupo de extrema-direita.

Como vimos atrás no entanto, a elite politica, militar, administrativa e económi-ca acabou por ser fortemente atingida por medidas de punição politica, ainda que de forma desigual, durante os dois primeiros anos da transição (vide Quadro 3).

Queda da Ditadura Crise Consolidação da Democracia

Abril 1974-Março 1975 Março 1975-Abril 1976 Abril 1976-Outubro 1982

+ Saneamentos Legais

-Saneamentos “selvagens”

+ Saneamentos Legais

+Saneamentos “Selvagens”

Reintegração

Diminuição das penas

QUADRO N.º 3 AS FASES DA TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA E O PROCESSO DE SANEAMENTO

Como o Quadro n.º 3 ilustra, tratou-se de uma “justiça transicional imediata”, para utilizar a tipologia de Jon Elster, (Elster, 2004: 75), acompanhando as duas fases da transição e desenrolando-se rapidamente. Como em outros países europeus, como a Franca ou a Itália, a consolidação democrática significou o fim o processo e a rea-bilitação. Só um aspecto desta será debatido bastante mais tarde: a compensação aos “anti-fascistas”. O legado da guerra colonial e da descolonização também se vai arrastar por bastante mais tempo, de facto durante os 30 anos seguintes.

2. O DUPLO LEGADO E CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA

As elites moderadas que dominaram o processo de consolidação da democracia portuguesa herdaram uma conjuntura complexa. A intervenção militar de 25 de Novembro de 1975, marcou o passo da institucionalização da democracia, mas ainda tutelada pelos militares através do Conselho da Revolução (CR) até 1982. No campo económico, um fortíssimo sector nacionalizado e intervencionado pelo Estado e a implementação de medidas de austeridade, na sequência de um primeiro acordo com o FMI, foram símbolos de recessão e de redução drástica dos salários reais. No campo social, o regresso de algumas centenas de milhares de retornados de África, na sequência da descolonização. Algum terrorismo de extrema-direita, herdado do “verão quente” de 1975, continuou a manifestar-se, ao qual se juntou, algum tempo mais tarde, a emergência conjuntural do terrorismo de extrema-esquerda.

“Reconciliação” e “pacificação” da vida política seriam elementos impor-tantes do discurso oficial dos primeiros governos constitucionais, dirigidos por Mário Soares, primeiro-ministro socialista, apoiados pelo primeiro Presidente democraticamente eleito, o General Ramalho Eanes.

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Os saneamentos foram prontamente interrompidos e reavaliados, sob pressão dos partidos de centro-direita e direita, que os consideravam um “excesso” de 1974-75. Durante o mesmo período, desencadeou-se um processo de afasta-mentos políticos contra a esquerda comunista, civil e militar. Vários militantes de partidos da extrema-esquerda e do PCP foram afastados das suas posições no aparelho de Estado e nas empresas públicas. Nas Forças Armadas foram também afastados muitos militares “gonçalvistas” e “otelistas”.

A actividade terrorista de extrema-direita do MDLP e do ELP foi desenvolvida fundamentalmente por militares ou ex-militares, que se desmobilizaram progressi-vamente. Poucos anos depois o general Spínola regressou a Portugal e o movimento foi dissolvido. Alguns dos seus elementos operacionais foram presos, mas a extensão das suas ligações a elementos moderados, durante o “Verão quente” de 1975, e as promessas de esquecimento oferecidas a muitos, tornou o seu julgamento bastante melindroso, arrastando-se por longos anos e provocando algumas vendettas entre os atingidos. Mais complexo seria o processo de repressão à espuma terrorista da extre-ma-esquerda, as “Forças Populares 25 de Abril” que envolveria o chefe operacional do golpe de 25 de Abril e animador da esquerda revolucionária, Otelo Saraiva de Carvalho, que se arrastou até à viragem do século.

Este clima de “reconciliação política” que caracterizou o final dos anos 70 influenciou assim processos relacionados com o legado do anterior regime. Foi este o caso do julgamento dos membros da antiga polícia política. Após a atmos-fera de caça aos pides contra os que não tinham fugido do país, seguiu-se um perí-odo de dois anos em que os funcionários da DGS aguardaram julgamento na prisão ou em liberdade condicional. Estes julgamentos foram organizados de acordo com o novo ethos político, consequentemente os que não se tinham apro-veitado da liberdade condicional para emigrar foram punidos com leveza por tribunais militares (coincidindo muitas penas com os 2 anos de prisão preventi-va que já tinham cumprido) especialmente benevolentes para com aqueles que

Legado Período de eliminação

Constituição fortemente ideológica à esquerda 1982-89

Grande sector público nacionalizado 1982-1989

Reforma Agrária 1976-1989

Forte Prorrogativa Militar – Conselho da Revolução 1982

Elite Económica no estrangeiro 1976-1980

Paralisação parcial do sistema judicial e da Policia 1976

QUADRO N.º 4 LEGADOS DA TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA

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tinham bons cadastros militares nas guerras coloniais. Ainda que se sucedessem manifestações e movimentos de opinião contra a leveza das penas, elas deram-se numa conjuntura de reforço da legalidade jurídica e do Estado de direito perante os “excessos” dos anos turbulentos de 1974-75. Os 2 anos passados diluíram significativamente a “emoção” de 1974 e a elite política no poder favoreceu a desmobilização institucional.

A reintegração dos Saneados de 1974-75

O processo de reintegração dos saneados deu-se entre 1976 e os primeiros anos da década de 80.13 Baseando-se em nova legislação, as medidas mais rápidas foram introduzidas no sector económico, onde fora mais frequente o “sanea-mento selvagem”. Logo a seguir ao 25 e Novembro de 1975 o CR mandou regres-sar aos quartéis “todos os militares destacados para fazer parte das comissões de saneamento em empresas privadas”.14 Em conjuntura de crise económica, o governo implementou um conjunto de incentivos direccionados para o regresso dos exilados e dos gestores saneados. A lei declarou legalmente inexistentes os saneamentos desencadeados pelos trabalhadores no sector privado e público por factores políticos e ideológicos que se tinham verificado entre 1974 e 1976, “quando não tenham sido observadas” as disposições legais vigentes à data do afastamento (Decreto-lei n.º 471, de 14 de Junho de 1976).

Aproveitando a nova conjuntura os saneados organizaram-se no “Movimento Pró-Reintegração dos Despedidos sem Justa Causa” e a nova imprensa privada representou também um instrumento poderoso na defesa da reintegração.15 O movimento sindical ensaiou várias greves e mesmo ocupações esporádicas das empresas, contra o regresso dos saneados. Estas acções realizaram-se acima de tudo no Estado e no sector público recém nacionalizado e tiveram escasso sucesso.

As comissões de saneamento nos ministérios cessaram as suas actividades em 1976 e o Conselho da Revolução, que herdou as competências destas comissões e a direcção da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, reforçou os mecanismos legais permitindo aos saneados desencadearem processos de reabilitação. Um membro moderado do CR, o capitão Sousa e Castro, ficou responsável por todo o processo. Foi então criada a Comissão de Análise de Recursos de Saneamento e de Reclassificação (CARSR), na dependência do CR, que se manteve em funções até meados dos anos 80 e reabilitou a maioria dos casos apresentados. Esta Comissão foi constituída por militares e civis com formação jurídica sem ligações ao antigo regime. Segundo o relatório de actividades da CARSP “era necessário reparar os males feitos” em 1974-75, em muitos processos onde imperou o “mero arbítrio”

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(IANTT/CR, CARSP, Relatório de Actividades, 1976-1977-1978). As penas de demis-são foram, na gigantesca maioria dos casos, substituídas ou pela reforma compul-siva ou pela reintegração pura e simples e as restantes diminuídas, muitas vezes com reposição de vencimentos e contagem de tempo de serviço. Em alguns casos, perante eventual resistência dos sindicatos ou das associações de estudantes, os reintegrados foram transferidos de instituição ou aguardaram em casa alguns anos. Em algumas universidades o regresso dos “saneados” só se deu no início dos anos 80. Um ou outro processo “famoso” foi alvo de discussão no CR, caso de Veiga Simão, mas a gigantesca maioria ficou a cargo de Sousa e Castro e da CARSR.

Entre 1976 e 1978 foram constituídos 3.351 processos provenientes de Ministérios, empresas públicas e, na sua maioria referentes a funcionários da extinta policia politica. No caso dos funcionários da PIDE, a Comissão seguiu os critérios dos Tribunais Militares que julgaram os agentes da polícia política, que defendiam não ser na época “matéria ilícita, o facto de os agentes julgados terem pertencido à ex-PIDE/DGS”, reabilitando nos seus direitos de funcionários públi-cos todos os que não tinham “indícios de práticas ilegais” (IANTT/CR, CARSP, Relatório de Actividades, 1976-1977-1978).

Com o fim do CR, alguns processos foram transferidos para os Tribunais Administrativos, enquanto a Comissão de Extinção da PIDE/DGS, quase só reduzida ao seu gigantesco arquivo, passou para a dependência do Parlamento. Os debates parlamentares em torno da questão dos arquivos, seriam por vezes apaixonados e alguns partidos conservadores, nomeadamente o CDS, propuse-ram a sua destruição. A sua passagem para os Arquivos Nacionais e sua abertura à consulta com restrições temporais, foi uma vitória de alguns historiadores e dos partidos de esquerda, não isenta de debates acesos.

A Politica da Memória no Portugal democrático

No âmbito das celebrações oficiais dos 25 anos da democracia portuguesa, e sob o patrocínio da Presidência da República e do Governo, inaugurou-se uma expo-sição oficial sobre o século XX português em Novembro de 1999. Vocacionada para o grande público e para os estudantes, milhares de portugueses passaram pelos corredores escuros do Salazarismo, por salas de tortura da polícia políti-ca, por corredores com fotografias de presos políticos, onde personalidades da oposição, imprensa pró-democrática e militantes clandestinos eram valorizados. A exposição continuava depois pelo corredor ameaçador da guerra colonial até recuperar a luz com o derrube do regime. Significativamente, a seguir ao estabele-cimento da democracia a exposição acabava. O período conturbado dos primeiros

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anos da transição foi omitido, a favor de painéis temáticos, expressando o grande processo de mudança social e política do país, 25 anos após a queda da Ditadura.

Seria difícil abordar o período da transição numa exposição oficial, devido à herança complexa dos primeiros 2 anos da transição. O discurso oficial do par-tido socialista de Mário Soares, acompanhado pelos partidos democráticos de direita, durante o período de consolidação de democracia, foi o do “duplo lega-do”: o do autoritarismo de direita do “Estado Novo” e o da ameaça autoritária de esquerda, em 1974-75.

O regresso a Portugal dos exilados de direita, o recrudescimento da imprensa dos “espoliados” do período de 74/75, e a procura de alguns “heróis militares” anticomunistas, apagou-se com escasso rasto. A descolonização, agravada pela incapacidade de mobilização dos “retornados”, marcou o fim de uma época na cultura política da direita radical portuguesa.

A integração relativamente pacífica dos retornados das ex-colónias não foi apenas produto dos “brandos costumes” portugueses ou dos acentuados esfor-ços de apoio financeiro do Estado. Factores constitutivos da comunidade branca africana, como a sua extracção relativamente recente (e os consequentes laços familiares com a metrópole), ou a emigração directa para outros países, nomea-damente a África do Sul, amorteceram o choque.

O final dos anos 70, marcado pelo progressivo afastamento dos militares da cena política, pela consolidação dos partidos parlamentares e pela fixação do seu eleitorado, marcou também, não só o fim de qualquer possibilidade de reconversão política dos “barões” do anterior regime, bem como de algumas figuras militares com tentações populistas de capitalizar o sucesso da sua acção anti-esquerdista em 1975.

Com o desaparecimento da legislação sobre saneamento da elite da Ditadura e dos seus colaboradores e a consolidação democrática, algumas das figuras dirigen-tes do anterior regime regressaram a Portugal. O último Presidente da República do Estado Novo, Almirante Tomás (que se manteria “politicamente silencioso” até à sua morte), e alguns ministros regressaram do Brasil. Marcello Caetano recu-sou-se a regressar e morreria no Rio de Janeiro em 1980. No entanto, nenhum deles quis ver-se associado com um eventual renascimento da direita radical e poucos se integraram os partidos democráticos. Algumas excepções confirmam a regra: Adriano Moreira, ex-ministro do Ultramar, foi deputado e secretário-geral do CDS, por um curto espaço de tempo. No caso da elite ministerial de Marcello, os números aumentariam, sendo Veiga Simão, o autor da reforma modernizadora do sistema escolar pouco antes da queda da ditadura, o caso mais evidente.

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Em 1985, nas vésperas da adesão portuguesa à União Europeia, as heranças do duplo legado estavam praticamente extintas. À direita nenhum partido de algum modo veículo da elite ou dos valores autoritários herdados do Salazarismo tinha expressão parlamentar ou eleitoral. À esquerda, sucessivas revisões da constituição retiraram-lhe a carga socialista e a tutela militar, herdada de 1975.

As novas instituições democráticas associaram-se ao legado político da opo-sição à Ditadura. A natureza semi-presidencial do sistema político e o facto de, primeiro o General Ramalho Eanes, e depois dois presidentes com um passa-do de oposição anti-salazarista (Mário Soares e Jorge Sampaio) terem reforçado os símbolos anti-ditatoriais foi um importante factor. Nos primeiros 30 anos de democracia, os sucessivos Presidentes da República concederam aos antigos mili-tantes oposicionistas a Ordem da Liberdade, ou reintegraram, a título póstumo, vítimas da ditadura. O exemplo mais emblemático foi o do General Humberto Delgado, cujas honras militares seriam postumamente reconfirmadas. Os nomes de importantes individualidades oposicionistas, republicanos, socialistas e comu-nistas, seriam também introduzidos na toponímia, e o nome de Salazar apagado de monumentos e praças, nomeadamente na primeira ponte sobre o rio Tejo.

Desde os anos setenta que existiam tentativas de recompensa para os mili-tantes que lutaram contra a Ditadura, mas alguns projectos de lei não chegaram a ser aprovados pelo parlamento (Diário de Noticias, 16 de Junho de 1976). Só bastantes anos mais tarde, em 1997, os militantes da oposição seriam recompen-sados dos anos de clandestinidade ou de exílio, em termos de segurança social e pensões de reforma (Lei n.º 20/97, de 19 de Junho), por um governo socialista. Para tal os candidatos devem provar a perseguição, recorrendo aos arquivos da PIDE, o que nem sempre é fácil.16

Outro dos aspectos da tentativa de deslegitimação simbólica do passado autoritá-rio foi a alteração dos feriados nacionais. O 5 de Outubro, data da revolução republi-cana de 1910 (nunca abolido pela ditadura) assumiu maior significado, enquanto o feriado de 28 de Maio, comemorativo do golpe militar de 1926 foi substituído pelo 25 de Abril de 1974, considerado a data fundadora do novo regime democrático.

Os núcleos museológicos sobre a repressão e o autoritarismo, característicos de outros processos de transição para a democracia, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, não foram criados em Portugal. Todos os esboços e projectos dos primeiros 2 anos após a queda da Ditadura seriam abandonados ou por falta de vitalidade da sociedade civil, aqui incluindo os partidos políticos como o PS ou o PCP, ou por falta de resposta do Estado. A transformação da Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista em Museu da Resistência, a instalar numa

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antiga prisão política, não recolheu apoio de um governo de centro-direita. Seria sobretudo por iniciativa das Câmaras Municipais dominadas por coliga-ções PS-PCP, caso de Lisboa durante toda a década de 90, que algumas insti-tuições próximas seriam criadas, caso do Museu da República e da Resistência. Só no final do século é que emergiriam fundações privadas com o objectivo explícito de fixar a memória da resistência ao Salazarismo e da transição para a democracia, caso da Fundação Mário Soares, criada pelo ex-presidente após o seu abandono da política activa. Com o passar do tempo a Associação 25 de Abril, organizada pelos militares do MFA, assumiu progressivamente quer a manifestação anual comemorativa quer a dinamização da memória dos actores do golpe que derrubou o regime autoritário.

Como em outros processos de transição à democracia um tema quente durante alguns anos foi o dos arquivos das instituições repressivas. Dada a natureza do der-rube da ditadura, os militares ficaram na posse dos arquivos da polícia política, que escaparam quase intactos. Mais importante ainda, era o Arquivo do próprio ditador, que ficou na sede da Presidência do Conselho de Ministros, aquando da sua morte, em 1970. Rigorosamente organizado por Salazar, ele concentrava 40 anos de vida política portuguesa. Ambos foram depositados nos Arquivos Nacionais com uma legislação liberal de acesso, como os das restantes instituições do Estado Novo.

Só nos anos 90 se desenvolveriam debates importantes na opinião pública, quando estes foram abertos ao público. Um deles, de iniciativa do ex-ministro socialista António Barreto, vítima da PIDE, remetia para a possibilidade de devo-lução aos próprios ou aos seus herdeiros das cartas, fotografias e outros materiais apreendidos pela polícia política durante a Ditadura. Provocando algumas polé-micas parlamentares, com algumas propostas favorecendo essa hipótese, perante a reacção negativa da maioria da comunidade dos historiadores, defendendo a sua manutenção nos Arquivos Nacionais, estes últimos acabaram por vencer.17

Ocasionalmente, algumas “irrupções de memória” emergiram na opinião pública. Em 1998, quando o chefe da brigada da polícia política que assassinou Humberto Delgado, condenado à revelia a 8 anos de cadeia, deu uma entrevista a um jornalista português onde afirmava deslocar-se regularmente a Portugal. Rapidamente descoberto em Espanha onde vivia com identidade falsa, a sua vinda para Portugal seria bloqueada pela justiça espanhola, acabando o tribunal que o julgou por reconhecer que a pena tinha entretanto prescrito.

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O Autoritarismo e a Transição na memória dos Portugueses

A viragem do século foi pródiga em sondagens e “eleições” das personalidades nacionais e internacionais do século XX e o legado de Salazar e do autoritarismo foi testado sucessivamente pelos média. Quarenta anos de experiência ditatorial dei-xaram um legado durável, mas difuso e de difícil interpretação à jovem democracia portuguesa. Muitas das suas dimensões confundem-se com certas heranças histó-ricas, remetendo para características da mudança política da Europa do Sul, que extravasam largamente o legado da Ditadura (Malefakis, 1995; Hite and Morlino, 2004). O peso do Estado, a cultura da passividade, a fraqueza da sociedade civil, os valores da “ordem”, a cultura da deferência e a persistência do clientelismo, são legados que marcaram a “qualidade” da democracia portuguesa e que a longa dura-ção do Salazarismo certamente agravou. Mas o seu impacto não é fácil de analisar, muito embora este legado de despolitização e de elitismo, seja apontado por muito politólogos como um factor central das atitudes dos portugueses sobre o funciona-mento do seu regime democrático (Hite and Morlino, 2003: 49).

A partir da segunda metade dos anos 70, os portugueses foram sendo inqui-ridos sobre o tema do Salazarismo e da figura do Ditador. Como seria inevitável, imergiu de imediato uma significativa minoria que achava que tinha sido melhor governada pela Ditadura (Bruneau and Macleod, 1986). 13% dos portugueses ainda tinham uma opinião “positiva” sobre o período autoritário em 1985, perante 17% dos espanhóis (Morlino and Montero, 1995: 236). A figura de Salazar continuava a ser reverenciada por segmentos do eleitorado mais conservador, cujo retrato-tipo apontava para clivagens marcantes na cultura política portuguesa: residia no cen-tro-norte, e mais no interior do que no litoral, de Portugal; católico praticante, com mais de 40 anos, vivendo em pequenas cidades, e votante no CDS, ou no PSD. A significativa vaga de mudança social, que acompanhou o processo de crescimento económico associado à adesão de Portugal à CEE, provocou a erosão da sociedade rural a norte do rio Tejo, uma nova vaga na urbanização, terciarização e uma pro-gressiva mudança de valores na sociedade portuguesa (Barreto, 2004).

A partir dos anos 90 várias sondagens, ainda que limitadas na amostra, iam demonstrando uma atitude crítica muito mais significativa em relação ao passa-do (Público, 20-3-1999). Em 1999, no âmbito da escolha dos “políticos do século” a polémica reacendeu-se nos média, a propósito de inquéritos não valorativos que escolheram algumas Salazar e outras Mário Soares.18

No quadro das celebrações dos 30 anos de democracia vários estudos de opi-nião questionaram os Portugueses sobre a natureza da transição portuguesa e a primeira conclusão a traçar é a de que o 25 de Abril está enraizado na sociedade

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como uma ruptura central e positiva na história portuguesa: 77% dos inquiridos de um estudo de opinião têm orgulho na forma como a transição para a democra-cia decorreu. Mais importante ainda: quanto mais jovens mais orgulhosos, o que ilustra que muitos valores democráticos estão consolidados no sector para qual o 25 de Abril já é apenas história.

A maioria dos portugueses (52%) coloca o 25 de Abril como o mais importante acontecimento da história de Portugal, não havendo clivagens geracionais significa-tivas sobre o tema. Quando divido por simpatia partidária existem algumas, com a direita valorizando mais a adesão a UE ou a Independência de Espanha no séc. XVII.

Caracterização Estado Novo 25 de Abril 1974

Mais Positivo que Negativo 17% 58%

Tanto de Positivo como de Negativo 26% 23%

Mais Negativo que Positivo 50% 14%

Não Sabe- Não Responde 7% 5%

Total 100% 100%

QUADRO N.º 5 ATITUDES PERANTE O REGIME AUTORITÁRIO E O 25 DE ABRIL EM 2004

Fonte: Estudo de Opinião da Universidade Católica–Portuguesa Comissariado para as Comemorações dos 30 Anos do

25 de Abril, 25-4-2004.

O Estado Novo é caracterizado negativamente pelos portugueses e o 25 de Abril positivamente (vide Quadro 5), com uma minoria de 14%-17% que expres-sa valores autoritários e positivos perante a Ditadura e negativos perante o 25 de Abril de 1974. O regime Autoritário tem uma imagem predominantemente negativa para todos os grupos etários, excepto para os que tinham em 2004 mais de 70 anos, que se apresentam neutros. A paleta de cores aumenta naturalmente quando analisada na óptica dos grupos de simpatia partidária. Sendo natural que a imagem negativa diminua da esquerda para a direita, os simpatizantes do CDS-PP apresentam uma diferença significativa dos outros, com 62% deles afirmando que o Salazarismo teve tantas coisas positivas como negativas. A fronteira entre autoritarismo e democracia está aqui menos nítida. O que era interessante saber é se esta maior “neutralidade” dos eleitores do PP é de velhos “perdedores” de 1974-75 ou de novos eleitores descontentes. No entanto, o grande arco de rejeição do passado autoritário, que incluiu os eleitores do PSD, é o elemento a destacar 30 anos depois da queda do Estado Novo. Esta espe-cificidade do pequeno partido mais à direita do espectro politico português e coerente com as respostas sobre as consequências do 25 de Abril. Se a grande

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maioria, sem clivagens etárias, acha que elas são mais positivas que negativas, os simpatizantes do CDS-PP inclinam-se mais para a negativa.

Quando inquiridos sobre as motivações do MFA ao desencadear o golpe, a institucionalização da democracia e o fim da Guerra Colonial emergem quase em igualdade como motivação principal. Aqui os jovens tendem a seguir esta sequên-cia e os mais velhos invertem-na, mas com pouca diferença. Trinta anos depois, os próprios actores políticos alteraram a sua posição sobre o passado e talvez parte das suas próprias motivações.19 O exemplo dos militares que fizeram o 25 de Abril é nesta perspectiva muito interessante. Os portugueses pensam que as suas moti-vações eram, quase em igualdade, instaurar a democracia e acabar com a guerra colonial. Mas os militares que fizeram o golpe pensam 40 anos depois que o reali-zaram sobretudo (quase 90%) para instaurar a democracia e depois, mas com uma diferença de 20%, acabar com guerra. Alguma imagem negativa da descolonização e uma rápida adaptação à democracia pluralista talvez esteja na origem desta altera-ção da ordem das motivações. Mais interessante ainda é que os mais jovens também pensam como eles hoje, ou seja que eles queriam sobretudo democratizar. Só os mais velhos, que presenciaram os acontecimentos, têm uma ideia mais equilibrada.

Um dos inquéritos incluiu pela primeira vez uma pergunta sobre uma dimensão da “justiça transicional” portuguesa, o eventual julgamento dos dirigentes políticos ou o seu exílio.20 Como vimos atrás os principais dirigentes do regime derrubado foram para o exílio, justamente para evitar o seu julgamento. Aqui a clivagem gera-cional e ideológica é clara, com os mais jovens a acharem que os antigos dirigentes do Estado Novo deveriam ter sido julgados, perante uma muito mais moderada posição dos que viveram os acontecimentos. Aqui também a clivagem nas pontas do leque de simpatias partidárias é significativa, com os eleitores do PCP a acharem, com 74%, que os dirigentes do Estado Novo deveriam ter sido punidos e os do CDS-PP, com 57%, a pensarem que se fez bem ao permitir a sua saída do país.

São ainda importantes, trinta anos após o 25 de Abril, as clivagens de 1975, ou seja da fase mais radical da transição portuguesa? Aparentemente não. Com a excepção parcial dos simpatizantes do PCP, a resposta é negativa. Se a Constituição de 1976 é percepcionada como tendo reflectido esmagadoramente o domínio da esquerda na transição, as posteriores revisões reflectiram a influên-cia da direita. O fim do império, a consolidação da democracia, a adesão à União Europeia e a mudança social dos últimos trinta anos apagaram muitas das cliva-gens que presidiram à singularidade da transição democrática portuguesa.

A democracia parece assim ser o regime político preferido por 72% dos portu-gueses, independentemente da geração e posicionamento ideológico e o 25 de Abril

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é positivamente associado à melhoria sensível do nível de vida da população. 68% acham que Portugal está melhor graças à transição. Dito isto, a sua opinião sobre o funcionamento da democracia ou sobre a sua “qualidade” é má. Comparativamente uma das piores da Europa, já que 51% acham que ela é “uma democracia com mui-tos defeitos”. Outros estudos de opinião apontam para os mesmos resultados.

Nota Conclusiva

O processo de transição portuguesa para a democracia ensaiou um modelo de irradicação dos legados autoritários que excedeu largamente os restantes da Europa no Sul. O processo de crise do Estado e a dinâmica dos movimentos sociais em 1975, extravasou largamente o campo da punição politica da elite autoritária, provocando o maior “susto” que a elite social e económica portugue-sas sofreram no século XX.

Se a compararmos com as três transições democráticas da Europa do Sul dos anos 70, Portugal representa, na perspectiva da “justiça transicional” a mais radical. Ausente no caso espanhol, não só mas fundamentalmente devido à natureza “pac-tada” da transição, ela transcende também o caso grego, caracterizado, pelo rápido recurso ao sistema judicial e pela definição estrita dos “culpados” (os militares do golpe de 1967) (Aguilar, 1996 e 2001; Alivizatos e Diamandouros, 1997). Nesta perspectiva a “desfascização” portuguesa, enquanto elemento integrante de movi-mentos sociais e com uma resposta formal dos Governos provisórios e do MFA em conjuntura de crise do Estado, aproximou-se mais dos padrões do após Segunda Guerra Mundial, embora sem a sua radicalidade. A natureza da transição constituiu uma “janela de oportunidade” central para o tipo de “justiça transicional” portugue-sa, simultaneamente radical, difusa e com escasso recurso ao sistema judicial.

A transição portuguesa eliminou quase de imediato os legados institucionais e de elites mais evidentes que a Ditadura poderia ter deixado à democracia. Não só o fundamental das instituições politicas da Ditadura foram dissolvidas, como alguns “enclaves autoritários” que sobreviveram a muitos processos de tran-sição dos anos 70 e 80 foram eliminados e/ou sofreram processos de paralisia complexos. A dissolução das instituições mais repressivas (PIDE, Brigada de Choque da PSP, Legião Portuguesa), foi um facto e estas foram alvo de processos de saneamento e criminalização.

Se utilizarmos a caracterização de Hite e Morlino de Legados Autoritários a nível das instituições e elites verificamos que alguns deles são, no caso portu-guês, mais legados da transição do que do regime autoritário (Quadro n.º 6), caso do grande sector público da economia ou das prorrogativas dos militares.

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Em 1976, dois anos após o derrube do regime autoritário, não só o fundamental do legado autoritário estava abolido, como o fundamental da clivagem que iria presidir à consolidação da democracia remeteria para a resolução do legado da transição. Apanhada aqui, a “justiça transicional” foi rapidamente abandonada e a elite radical, sobretudo militar, submetida agora também a uma tentativa cri-minalização politica e a um processo de afastamento do aparelho de Estado e do sector nacionalizado. Sobreviveu o mais difuso e complexo dos legados do autoritarismo na cultura politica, as famosas “passividade e alienação políticas” mas este confunde-se com um legado da história.

QUADRO N.º 6 LEGADOS AUTORITÁRIOS COMO CONSTRANGIMENTOS À “QUALIDADE” DA DEMOCRACIA

Dimensão Legado Itália Espanha Portugal

Regime Instituições e Normas Leis Autoritárias X

Fraca Rule of Law

Poder Judiciário com fraca autonomia

Grande Sector Público da Economia X X

Elite Prorrogativas das Forcas Armadas X

Pouca eficiência Policial

Grupos de Direita Radical X

Fraca accountability da Elite Partidária X X X21

Cultura e Massas Estatismo X X X

Passividade X X X

Alienação Politica X X X

Atitudes não Democráticas X X X

Fonte: Hite and Morlino (2004, 70).

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NOTAS1 Este artigo é o produto de dois projectos que fui desenvolvendo a convite. O primeiro sobre a “justiça transicional” portuguesa e o segundo sobre algumas dimensões do legado do autoritarismo (Pinto, 1998 e 2001). Gostaria de agradecer a Stein U. Larsen e a Alexandra Barahona de Brito muitos comentários e sobretudo o convite para estudar o tema. A última versão foi apresentada no Kellogg Institute da Universidade de Notre Dame, no seminário “Re-Examining Portugal’s Road to Democracy: Thirty Years after the Revolution of the Carnations”, a 23 de Setembro de 2004. Queria agradecer os comentários de Nancy Bermeo, Robert Fishman e Guillermo O’Donnell.

2 Existe uma vastíssima bibliografia sobre os processos de “justiça transicional” após a segunda Guerra Mundial, vide Jon Elster (2004). Interessantes para uma análise comparativa do caso português, e lidando sobretudo com a administração, milícias e Polícias Políticas, são, como introdução geral para os casos europeus, a obra pioneira de Hertz (1982), a de Brito, Cruz e Aguilar (2001) e ainda Deak, et al. (eds.) (2000). Para o caso francês, vide Baruch (2003) e para o italiano Woller (1997).

3 Caso de Manuel de Lucena (Lucena, 1978) e muitos outros. Vide mais recentemente, Fishman, 2004.

4 Utilizo a definição de legado autoritário de Hite e Cesarini, que se referem especificamente às “regras, comportamentos, normas, padrões, práticas, relações e memórias que resultam de uma bem definida experiência autoritária do passado que (…) sobrevivem a uma transição democrática e intervém na qualidade e na praxis de uma democracia post- autoritária” (Cesarini and Hite, 2004: 4).

5 Abordaremos aqui as primeiras medidas que se referiam sobretudo ao passado, ou seja “às decisões políticas tomadas na sequência imediata da transição e dirigida a indivíduos na base do que fizeram ou lhes foi feito sob o antigo regime” (Elster, 1998:14). Vide também Elster, 2004.

6 Nas colónias a Policia Política não foi imediatamente dissolvida. Os militares pensaram na sua integração numa polícia de informações militar e só passado algumas semanas esta será desmantelada.

7 Dinis de Almeida, então uma figura importante da extrema-esquerda do MFA dividiu os saneamentos das Forcas Armadas em 4 períodos. O primeiro caracterizado pelo saneamento inicial dirigido pelo General Spínola e pelo MFA. O segundo, baseado no princípio da “incompetência”, foi mais lento e complexo. O terceiro foi marcado pelo afastamento dos militares de direita, em 1975, e o ultimo pelo afastamento dos de esquerda após o 25 de Novembro de 1975 (Almeida, 1978: 39-43).

8 Eram apresentados 4 tipos de punições: transferência com mantenimento ou descida de categoria, suspensão até 3 anos, reforma compulsiva e demissão.

9 O saneamento nas instituições dependentes do Ministério da Justiça, foi pequeno: 22 processos na Polícia Judiciária; 16 na área de Conservadores e notários; 4 directores de prisões aposentados compulsivamente (A Capital, 19 de Abril de 1975).

10 Vide o discurso do Deputado socialista Raul Rego in A Luta, 9 de Fevereiro 1977.

11 Caso de Teixeira Ribeiro, Professor na Universidade de Coimbra, que seria vice primeiro-ministro de Vasco Gonçalves, ou de Mário Dionísio, escritor e professor liceal.

12 Entre os quais Mário Dionísio (A Capital, 10 de Janeiro de 1975).

13 Esta secção deve muito a Maria Inácia Rezola que me forneceu algum material sobre o CR e os saneamentos. Vide também a sua Tese de doutoramento “O Conselho da Revolução e a transição para a Democracia em Portugal (1974-1976)”. Dissertação de Doutoramento apresentada na Faculdade de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, Policopiado, 2004.

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14 CR, Acta da reunião de 11-12-1975, anexos T e P, ANTT. Canto e Castro já tinha sido nomeado responsável pelo saneamento, mas a medida só entrou em funcionamento depois do 25 de Novembro. Vide CR, Acta da reunião de 31-10-1975, ANTT.

15 Para lá da imprensa de direita, o “Jornal Novo” e “A Luta” (este directamente associado ao Partido Socialista).

16 Segundo o seu art. 1, esta abrange o tempo “vivido no país ou no estrangeiro, em que por causa de pertença a grupo político ou de actividades políticas desenvolvidas em prol da democracia os mesmos foram vítimas de perseguição policial impeditiva de uma normal actividade profissional e inserção social” entre 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974.

17 Os processos individuais podem ser consultados com a permissão do próprio ou dos seus descendentes, ou então 50 anos após a morte. Mas a gigantesca maioria da documentação, expurgada de nomes, está aberta à consulta.

18 A pergunta colocada era, no geral, “qual é o político mais marcante do século XX em Portugal?” Enquanto algumas sondagens colocavam Mário Soares com 41,2% e Salazar com apenas 8,9%, outras davam resultados inversos. O facto foi de imediato aproveitado por alguns ex-ministros de Salazar para elogiarem o ditador (Euronotícias, 25-6-1999; O Diabo, 4-1-2000).

19 Dados do estudo da Universidade Católica e do jornal Público, 25 de Abril de 2004.

20 Vide Estudo de Opinião da Universidade Católica Portuguesa – Comissariado para as Comemorações dos 30 Anos do 25 de Abril.

21 Hite e Morlino consideram aqui a escassa alternância da esquerda e da direita no poder. Se no caso italiano isso se verifica, é um erro sublinhar esta dimensão para o caso português.

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Estamos em Lisboa em 2050. Vivemos no “paraíso” multi-cultural que a nossa classe polí-tico-jornalística tanto se esforçou por criar. Imagine uma visita de estudo de uma escola da região de Lisboa ao Padrão dos Descobrimentos: A professora está a explicar o que fizeram estes homens quando é interrompida por uma criança mulata que pergunta: “Mas quem eram estas pessoas tão estranhas? Elas não têm a nossa fisionomia! Não se parecem con-nosco! Quem foram eles?” E logo outra criança mulata acrescenta: “O meu pai disse-me que estes eram criminosos que foram ao nosso país e nos escravizaram e depois trouxeram-nos para cá”. Outra criança, descendente de paquistaneses acrescenta: “O meu pai disse-me que estes não são os nossos antepassados. Nós viemos de um país na Ásia e a nossa história não tem nada a ver com estes senhores!” Outra criança, descendente de chineses acrescenta: “O meu pai também me disse que estes não são os nossos antepassados! Nós viemos de um país muito maior e muito mais antigo!”

A cena assim conjurada, em tons de pesadelo distópico, remete e de forma parti-cularmente dramática procura concentrar e dar corpo às teses sobre “Identidade Cultural” propostas pela equipe do cibersite ImigPort em apoio das suas auto-pro-clamadas “reflexões politicamente incorrectas” quanto às supostas “consequên-cias na identidade cultural” da imigração em Portugal.1

HERÓIS DO LAR, NAÇÃO AMBIVALENTE:PORTUGALIDADE E IDENTIDADE NACIONAL NOS TEMPOS DOS PÓS-

Abdoolkarim Vakil | King’s College London

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O que torna esta imagem e os seus textos de apoio de particular interesse, é a forma como neles se cruza todo um feixe de relações que configura o momen-to actual da questão da identidade nacional. Primeiro, logo pelo próprio facto de se tratar de uma intervenção no espaço cibernético, em que a pluralização, fragmentação e articulação de blogues e sites reconfigura novos tipos e senti-dos de espaço(s) público(s) a um tempo segmentados e em rede, simultanea-mente intensificando e multiplicando velhas e novas formas de mobilização e produção de sentidos de comunidade e pertença que sustentam e se reflectem nos discursos identitários contemporâneos. Segundo, precisamente pelo facto de a sua defesa dos “portugueses de etnia europeia”, e reconfiguração do debate em termos de identidade cultural, exemplificar o registo paradigmático do novo racismo e das novas formas de xenofobia, que transformam a cultura e o cultural a um tempo em campo de batalha e máquina de guerra.2

Assim, ao Portugal velha-nação nove vezes secular, étnica, linguística e cul-turalmente homogénea, comunidade de descendência vinculada pelos valo-res cultivados ao longo do percurso histórico que a um tempo os portugueses fizeram e os fez portugueses, vemos contraposta, como futuro da sociedade de imigração, a desfiguração da memória e a desagregação da comunidade: uns “mulatos” que, não se reconhecendo no espelho da nação e da sua história, iden-ficando-se mesmo, aliás, com outras histórias, literalmente dela se estranham e auto-excluem; uma cacofonia de vozes onde a voz da professora, e com ela a dos (nossos) egrégios avós se apaga e deixa de ouvir perante a evocação de outros avós e outros passados; a gesta monumental da pequena pátria apequenada; o panteão de nobres heróis ensombrado; a História, destronada em história, sitia-da e outrada pelos outros da sua história. O que a cena conjura, numa palavra, é nada menos que o espectro da balcanização que paira sobre a Nação portuguesa em consequência da imigração, da miscegenção, e do multiculturalismo.3

Toda a encenação textual, desde o tópico da visita escolar, à escolha do monu-mento – imagem icónica de um certo Portugal e de um certo Mundo Português –deixa transparecer uma forma de entender o histórico e a pedagogização da história, um regime de arte, poder, e valores cuja ideologia remete para a óptica e a lógica do Major Alverca.4 Aquele Alverquinha para quem “Portugal é, de novo, uma nação multicultural e ecuménica”, onde o de novo diz tudo.5 Aquele em cuja opinião “em Portugal o racismo não existe. [...] Aliás, o que faz a superiorida-de rácica do português é precisamente a sua ausência de racismo. Prova disso é o nosso celebrado poder de adaptação a outros climas e outras raças (atesta-do cientificamente por 63 historiadores portugueses)”.6 Tanto mais que para os

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Alverquinhas, quando se diz que “Havia que pôr cobro ao problema dos estran-geiros em Portugal”, “para bom entendedor, referir a cor basta”.7

A figura do imigrante é uma figura predicada e configurada pela territorialização e a ordem do Estado-Nação. Uma inclusão excluinte, de residência sem cidadania. Mas enquanto esse estatuto legal se enquadra pela lógica do Estado-Nação, o imigrante como problema, o tal fantasma do ImigPort, constrói-se especificamente pela etniciza-ção da cultura, pela culturização das etnias, e pela essencialização de ambas.

Mais precisamente, o que o imigrante aqui representa, numa palavra, é o pós-colonial.8 Quando o português de seus brios que assina o texto do Imigport pro-clama com respeito à extraordinária empresa dos descobrimentos e conquistas, “querem que eu tenha vergonha disto? Desculpem mas não tenho”; quando retori-camente desafia: “e vão considerar Vasco da Gama um herói? ”, para logo, assumin-do a resposta pela negativa, responder e “como vamos resolver o problema? Vamos re-esculpir as estátuas dos nossos heróis de modo a que fiquem com um aspecto racial indefinido? ”, estamos bem no âmago da questão: uma nacional-cidadania reduzida à capacidade de identificação com uma narrativa única da História pátria e sua traducão num património nacional, aqui simbolizado na possibilidade física de um reconhecimento literal no espelho da galeria dos barões assinalados.9

A trinta anos de Abril, a questão da identidade nacional não radica no imi-grante ou em qualquer problema levantado pelos imigrantes ou pela imigração, mas antes no facto de a historiografia portuguesa não ter assumido ainda os desa-fios do pós-colonialismo após a descolonização.

Pensar mais desenvolvidamente do que aqui é possível a questão da identidade portuguesa à luz ou à sombra dos 30 anos de percurso desde a revolução implica-ria antes de mais pensar e problematizar também a relação entre a revolução, ou a memória da revolução e as formas como a identidade nacional e a revolução consti-tuem e se constituem numa certa história e historiografia portuguesa. De certa forma esta questão é a de uma relação que ficou de imediato cristalizada na tensão entre os feriados do 25 de Abril e do 10 de Junho, com a transferência da comemoração do dia de Portugal para o 25 de Abril. Ela é uma questão que passa também pelas formas como foi assumida, institucionalizada, e contestada a noção de “fidelidade ao espírito da Revolução de 25 de Abril”, incluindo a da sua constitucionalização, que por sua vez é inextricável do próprio processo revolucionário – seja pela criação do Conselho da Revolução, em reposta ao 11 de Março, por exemplo, ou a interpre-tação dos seus sentidos consagrado por exemplo no Plano de Acção Política de 21 de Junho através do qual “o MFA reconhece que [a] indepência nacional passa por um processo de descolonização interna” apenas realizável pela via do socialismo.10 É

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uma questão que passa ainda, e finalmente, pelo conceito de “viragem histórica” que o Preâmbulo da Constituição de 1976 sagrou na noção de que “Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucio-nária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa”.11

Há um outro aspecto do processo de traçar trinta anos de um percurso da identidade nacional portuguesa desde o 25 de Abril que não podendo ser aqui abordado cabe pelo menos deixar referido. Estes trinta anos desde 74 são pre-cisamente também trinta anos de uma profunda transformação nos sentidos, na teorização, na vivência, e na politização das identidades à escala global. Foi então que o modelo desenvolvimentista e a teoria da modernização, e mais tarde o paradigma da secularização também, começaram a ser seriamente postos em causa nas ciências sociais; que o feminismo e os novos movimentos sociais redefiniram os sentidos, a natureza e os espaços do político; e que as políticas de reconhecimento e identidade articularam novas formas de mobilização. Foi também então que a formação das elites e dos campos intelectuais (nacionais e transnacionais) começou a acompanhar a transformação e recomposição das sociedades e populações nas metrópoles ex-coloniais e ex-colonizadas à escala da economia-mundo, e que dela emergiu a crítica Saidiana do Orientalismo e as teorias discursivas do pós-colonialismo que desvelaram as articulações entre o saber e o poder, e, aprofundando as críticas anti-coloniais do eurocentrismo, deixaram exposto o provincialismo do Universalismo ocidental.

Um certo discurso republicano de cidadania apresenta-se como retomando com a democracia da III República o facho da I de novo alumiado após a longa noite repressiva do Estado Novo, quando não até na continuidade daquele clarão primeiro lançado na aurora vintista de oitocentos. Mas esta continuidade recla-mada é ela própria uma forma de hegemonizar o discurso do político em contes-tação de outras formas de o conceber. O que os últimos 40 anos operaram, foi precisamente uma desarticulação entre política, cidadania, identidade e nacio-nal. Em síntese, traçar a evolução do tema da identidade nacional portuguesa ao longo dos últimos trinta anos começa pelo reconhecimento de que a própria configuração do tema e seus sentidos se transformaram também.

Começando a entrar na nossa questão, a Revolução entende-se a si própria, assim como se auto-institui, como ruptura – e, em termos de narrativa histórica, como viragem refundadora. Pelo próprio peso do imaginário que acaba por confor-mar até o discurso que se lhe contrapõe, porém, o presente metaforiza-se em refe-rências históricas, e o tempo é o do Regresso das Caravelas, o fechar de um ciclo de 500 anos. Não, portanto, o fim de um ciclo colonial-identitário, obra de um Estado

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Novo que através dos seus aparelhos de Estado e em articulação com movimentos da sociedade civil procurou engendrar um nacional-colonialismo com pretensão a ideologia popular (de massas não o seria por definição); não o afinal bem mais breve, e consideravelmente mais restrito ciclo de um terceiro império africano ape-nas lançado nos anos 30, mas o de 500 anos de um mítico império de Ceuta a Timor, agora não menos mistificadamente retornado a Alcântara em contentores.

O Portugal do imaginário da Revolução é o Portugal Reencontrado da Editora Terra Livre, que, em 1975, proclama e celebra o “regresso absoluto”, das cara-velas ancoradas, cujas velas vão agora dar agasalho para quem de roupa, não de aventuras, necessita; cuja evocação das Garretteanas Viagens aponta de novo para aquela outra redescoberta da nossa terra e do nosso povo; “um país que – aos ecos do “Lusíada Exilado” de Manuel Alegre, e da promessa de um Portugal a “Recomeçar” sob inspiração de Almada – “regressa a casa depois de uma via-gem de cinco séculos”.12 Mas enquanto descolonização desdobrada em fim de mítico império, ela é igualmente a visão agonizante de um António Manuel Couto Viana, cujo “Escrito no sangue” traduz o Regresso das Caravelas na che-gada dos aviões que trazem “nas entranhas cinco séculos mortos”.13 É ainda todo o espectro político que se entrecruza e contamina nas metáforas de “regresso” e “naufrágio” “das caravelas”, que repudia Os Lusíadas pela Peregrinação ou pela História Trágico-Marítima” épicas de perdição não menos epicamente eleitas.14 Momento de regresso dos retornados e dos emigrantes regressados também, em que olhares nostálgicos se cruzam com olhares esperançosos e, na vida como na literatura, as narrativas foram de regresso.15

Contracção, desmembramento, reterritorialização, amputação, re-centra-mento: contraditórias metáforas e imagens de que se vão revestindo as tentativas de fazer sentido do momento saído do após Abril, palavras e imagens que deram nome e sentido às experiências de vida e corpo às ideologias.

Classe / Nação. Pensar a identidade no pós-74

Como começa por lembrar o caderninho a nação... o que é... E quem é pela nação? (da série “Mas...Afinal, para todos”, publicado em Dezembro de 1974), “Muito crime contra a nação trazia a assinatura por debaixo de uma frase que dizia... “a bem da nação”. “Era contra a nação quem denunciava o que a bem da nação” se decretava; e “antipatrio-ta quem lutava contra uma patrioteira (ocidental e civilizadora!...) guerra colonial”, o que, portanto, não podia deixar de implicar algum risco para quem se propunha “a recuperação da ideia de nação como algo de sério e motivo de discussão”. Para o autor, é certo, o propósito era o de pôr em confronto a abstracção ideológica de um

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sentimento nacional, fundado na vivência de um passado histórico e cultural, com as realidades da fractura de classe para em seu lugar elaborar uma abordagem da nação a partir das classes trabalhadoras como a parte mais representativa do povo, e conteúdo concreto da nação.16 A tensão inerente a qualquer recuperação de um apelo à nação, porém, fazia-se sentir.

A mesma tensão perdura igualmente na ambiguidade dos conceitos de pátria que podemos ver contrastados, por exemplo, nos espectáculo Esta é a ditosa Pátria Minha Amada e na intervenção “A Pátria tem que ser comestível”, ambos de 1977. O primeiro, um espectáculo-documento montado em Dezembro de 1977 para digressão junto das principais comunidades portuguesas na Europa, produz uma encenação didática visual e textual da narrativa histórica nacional desde D. Afonso Henriques até à instauração do 1º Governo constitucional, concebida pelos autores, Jacinto Ramos e Luz Franco, em termos da necessidade e urgência de que cada português conheça a História do seu país e que ame a sua pátria.17 O segundo, intervenção de Sérgio Godinho no espectáculo Ao qu’ isto chegou!?: feira portuguesa de opinião, que Augusto Boal organizou com o grupo de teatro da Barraca na SNBA, avisa, através de referências múltiplas – entre as quais a que se faz às guerras coloniais se afigura a mais expressiva – que: “É muito simples com a Pátria/ Ou ela nos come, a Pátria/ ou comemos todos dela”.18

A este respeito, importaria abordar aqui as intervenções historiográficas dos historiadores que procuraram repor a questão da narrativa histórica de Portugal problematizando o conceito da nação em termos especificamente da descoloniza-ção da história.19 Caso, por exemplo, de António Borges Coelho, com O 25 de Abril e o Problema da Independência Nacional (datado de Maio de 1975) em particular, e de Victor de Sá, através de intervenções várias, universitárias e públicas, entre outros. Borges Coelho interessa particularmente pela forma como problemati-za a “história nacional” por referência aos interesses e ideologias de classe. Com ressonâncias de Orlando Ribeiro, António Sérgio, Barradas de Carvalho e Álvaro Cunhal, Borges Coelho relê toda a história da formação e expansão marítima, do colonialismo e da revolução distinguindo, por um lado, o Estado da nacionalidade, e reenquadrando, por outro, as lutas de classe domesticas nas suas articulações internacionais. Atendendo porém ao facto de Victor de Sá retomar precisamen-te o fio do reencontro de Portugal consigo próprio, privilegiamo-lo aqui.20 Para este autor, conforme defendeu nas Jornadas Democráticas de Novembro de 1974, “Portugal está [...] a reencontrar-se consigo mesmo, após quinhentos anos de alie-nação nacional”.21 “Quinhentos anos” estes que, em razão da sujeição de outros povos, foram igualmente “cinco séculos de alienação da sua personalidade política

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nacional” (pág. 11). De forma que “é este corajoso e exemplar processo de des-colonização que permite o reencontro dos portugueses consigo próprios e com a sua genuína nacionalidade” (pág. 12). A descolonização representa, portanto, uma “viragem fundamental no curso da nossa história”, uma “rotação de 180º na maneira de nos situarmos no mundo e perante nós próprios” (pág. 13).

Mas, prossegue o autor, “a maior dificuldade que advém para a compreensão da importância nacional da descolonização resulta da alienação da consciência histórica do povo português, obtida através do ensino em todos os graus da dis-ciplina da História” (pág. 14), de forma que, para a compreensão lúcida dessa mesma viragem histórica “O homem novo português carece de uma visão nova do seu passado histórico, do nosso passado histórico” (pág. 20).

Como Sá declara, a partir de 1974 “o homem português irá por isso interrogar de um modo diferente a sua história” (pág. 23). Em consequência, logo declaradamen-te assumida nas linhas de orientação para um curso de História Contemporânea na Faculdade de Letras do Porto, “quanto ao método pedagógico”, atendendo à miti-ficação da História Nacional, “deve partir-se de uma atitude crítica, senão mesmo céptica, relativamente a tudo o que julgamos saber da História de Portugal”.22 A compreensão da viragem histórica requere uma viragem historiografica.

Em 1977, com Repensar Portugal: reflexões sobre o colonialismo e a descoloniza-ção, Victor de Sá retoma, desenvolve e aprofunda estes temas. Como o próprio autor declara em explicação do título na exacta primeira frase do livro, “Repensar Portugal é uma consequência inerente ao retorno dos portugueses à pátria genuí-na”.23 Com este texto, portanto, Sá repõe a descolonização como “problema cen-tral do nosso tempo” (pág. 24).24 No concreto porém, é do colonialismo, e da sua importância na história de Portugal, e mais especificamente, do colonialismo como desvio, e das suas consequências para Portugal e os portugueses, que o autor trata. Assim, aquele historiador precisa que se contam “560 anos desde o início da expansão ao fim do colonialismo”, período durante o qual a vida dos portugueses esteve, nas suas várias dimensões, “condicionada por um factor pre-ponderante que transcendia a sua própria e genuína nacionalidade”. O qual é contrastado com os meros “276 anos”, “desde que D. Afonso Henriques adoptou o título de rei até à nossa primeira conquista africana”, “que durou a constituição e organização da nossa nacionalidade autêntica e legítima” (pág. 35).

A esta orientação do ensino universitário da História, aliás, redefinido de ensi-no em investigação, correspondeu, nos currícula escolares da reforma elaborada por Magalhães Godinho logo para o ano lectivo 74-75, assim como nos seguintes, uma orientação para a cidadania interventiva que aqui interessaria explorar em

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termos das suas diferenças e semelhanças com esta historiografia intervencionista que privilegia classe em lugar de cidadania.25 Mas outra posição contrastante logo desponta também. É de Maio de 1977 um artigo de Vasco Pulido Valente sobre “A Identidade Nacional” que oferece um contraponto radical. Desta perspectiva, contraposta à imagem Salazarista do “Portugal é Grande” “veio o 25 de Abril e o Império acabou numa orgia de autoflagelação. Afinal a obra civilizadora que nos levara, como se dizia ‘a tão longínquas paragens’ não passara de exploração de po-pulações indefesas a benefício de meia dúzia de monopolistas”. Se estamos aqui perante uma imagem espelho da anterior, o que verdadeiramente choca, tanto mais quanto, parte de um historiador, é a forma como a crítica ao terceiromundis-mo e ao PCP resvala para o mais puro paternalismo eurocêntrico, e cuja retórica do “Como estaria hoje a África sem a colonização europeia, ninguém se lembrou de perguntar” em nada se diferencia da apologia do colonialismo que nunca se cansou de o perguntar... e responder.26 O tempo neo-colonial do “ultrapassar” dos “complexos de colonizador” e das “culpas já expiadas” cedo fez escola. Por fins de ’78, já Sá Machado, discorrendo sobre o “ser europeu, ocidental e atlântico como decorrente da ‘nossa própria identidade nacional’ podia apresentar “a op-ção europeia” no Parlamento como encerrando “o ciclo das ambiguidades e dos equívocos pós-revolucionários [...] marcado pela tentação espúria de um terceiro-mundismo que não representava, no fundo, outra coisa que a afloração visível de um absurdo complexo de culpa”, o qual, para mais, “na forma contraditória como se exprimem, por via de regra, estas manifestações de uma certa patologia colecti-va, mais não era do que o prolongamento e a herança da mentalidade colonial”.27

Esta viragem aponta, porém, para um aspecto que me parece particularmente importante: o abandono dessa mesma euforia que acabava por ser o reverso da imagem salazarista pós-25 de Novembro, foi o que trouxe consigo a questão da identidade nacional.

A Crise no Parlamento

A 3 de Agosto de Agosto de 1976 o Diário da Assembleia da República publica o Programa do I Governo Constitucional saído das eleições de 25 de Abril daque-le ano. A declarada grande linha de orientação do Governo aí apresentada, em continuidade com a plataforma com que se propora ao eleitorado, era “vencer a crise, reconstruir o país”. Ora, como o mesmo Programa desde logo explicita, essa profunda crise que o país vive, era de “identidade nacional”, e o que por esta se entende – e a redacção quase estenográfica é ela própria significativa – é: “Portugal reduzido aos seus limites europeus”.28

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Em intervenção parlamentar de 4 de Junho, enunciando a posição do Grupo Parlamentar do PPD, também Sá Carneiro cita “a crise da nossa identidade” a par das dimensões económicas e sociais da crise, mas a contracção geográfica, que não aparece directamente referida, é transposta agora para a dimensão temporal: a de um “povo, voltado historicamente para a aventura do universal e hoje em risco de ficar sentado à lareira a contar sempre as mesmas velhas e ressabidas histórias”. O mesmo “reencontrar-se consigo próprio” definido em termos de uma mobilização colectiva para um projecto nacional, representa-se assim como um “virarmo-nos para diante [...] redescobrir o novo sentido universal da nossa cultura própria e da nossa história presente e futura”, ou seja, portanto, como superação do passadismo.29 Ainda outra variante transparece no discurso de apresentação do Presidente da República na Assembleia após a sua eleição a 14 de Julho. Mais uma vez, é de “reencontro”, desta feita “com a dignidade e a nossa identidade nacional”, que se fala. E, mais uma vez, as frases são as de convenção: o “encerrar” do “ciclo do império”, a “tarefa de con-tinuar a Pátria” reduzida “às suas primitivas dimensões”, mas, significativamente, é em termos de um desafio de vida em sociedade, não já apenas de comunidade moral que ele aqui se entende.30

No discurso de apresentação formal do Programa do Governo ao Parlamento pelo Primeiro-ministro, a 1 de Agosto, a percepção de crise é constante. Mário Soares utiliza o termo “crise” doze vezes em cerca de três curtos parágrafos. Na caracterização desta crise apodada de nacional, a referência à identidade nacional é característica: “Todos sabem que vivemos uma crise profunda, crise essa que é, antes de mais, uma crise acerca da nossa própria identidade nacional, visto que o País, depois de durante séculos ter vivido fora dos seus limites territoriais pró-prios, vem agora de novo reencontrar-se nos seus limites originais”. Certo é que outros aspectos da crise são de seguida enumerados: às guerras coloniais é atri-buído “um trauma profundo à consciência nacional”, e um dos factores listados como causa da crise económica é a “perda das colónias”. Mas, tratando-se de uma “antes de mais” crise de identidade nacional, o que sobressai é o facto de que esta é sempre referida apenas em termos de uma evidência; a crise de identidade pouco mais parece ser, afinal, que o próprio facto da contracção geográfica.31

No capítulo do Programa de Governo referente às relações internacionais, afirma-se que a revolução pôs fim ao isolacionismo Salazarista, e, “de um momen-to para o outro, Portugal abriu-se ao mundo numa autêntica política ecuménica”, o que de imediato sugere uma articulação entre a contracção física territorial e a projecção global das suas relações com outros Estados, ou seja, um complemento externo, e invertido, da redefinição da imagem da nação.32 É igualmente referido

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que “a actividade internacional do Estado assume papel essencial na defesa da independência nacional”.33 Curiosamente, porém, nenhuma articulação é sugeri-da em termos destes dois aspectos interrelacionados, interno e externo, da rede-finição da imagem da nação.

Será Lucas Pires, em intervenção no debate sobre o programa que de certa forma alude a esta questão quando afirma que “a identidade nacional, a cuja crise o Programa faz referência, poderia mais facilmente reencontrar-se através de uma configuração precisa e emblemática dos nossos compromissos e contornos externos. É a este nível que mais necessário é, como de gaullisticamente se diria, fazer uma certa ideia de Portugal”. Centrar a questão por aqui não apenas corresponderia, segundo o inter-veniente, ao facto de a importância da redefinição da política externa decorrer ainda mais logicamente do “encerramento do ciclo do império”, mas, talvez de maior acui-dade, de assim oferecer uma plataforma de consenso “numa circunstância em que os motivos políticos internos são ainda menos constantes e mais divisores”.34

O sentido com que o conceito de identidade nacional, e muito particularmente o de identidade nacional em crise, é empregue, fica algo mais claro no decurso do debate, quando Francisco Sá Carneiro comenta que “o Programa é apresentado e a si próprio se apresenta num quadro de crise de identidade nacional e como programa de conjuntura. Para nós não há, neste momento, uma crise de identidade nacional. E não há porque o povo português, juntamente com as forças democráticas, soube preservar a sua identidade nacional. Mas há uma séria e grave crise nacional”.35

Ao que o Primeiro-ministro, Mário Soares, respondeu: “Não me atardarei, naturalmente, a considerar se estamos verdadeiramente numa crise de identida-de nacional ou não, visto que seria isso um problema que eu classificaria como um tanto “metafísico”. Na realidade, depois de Portugal ter vivido sobre as suas colónias durante cinco séculos, depois de ter regressado agora aos seus limites originais e de estar a adoptar o seu sistema de vida a novas instituições e a novas condições estruturais, económicas, sociais e até geográficas, parece-me que não será de mais falar de crise de identidade nacional. Mas, quer essa crise exista, quer não, a verdade é que o País, o nosso povo, está perante uma crise nacional que certamente não será, no seu alcance, significação e largueza, inferior às grandes crises da nossa história, nós que vivemos estes dois anos conturbados, e heróicos a tantos títulos, de 1974 a 1976. Muitas vezes todos nós teremos pensado nas opções que se puseram ao nosso povo em 1383 a 1385, em 1640, em 1820. E certamente na lembrança dessas crises, como certamente nas energias de que deu sempre provas o povo português para as vencer, nós encontramos razões de esperança e razões de confiança”.36

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Uma nova concepção e nova formulação da relação entre descolonização, redefinição de imagem da nação e projecto mobilizador, que vai ao encontro destas críticas, está já perfeitamente patente no discurso do Primeiro Ministro à Assembleia em Março de 1977 em apresentação da proposta de adesao à comu-nidade europeia, onde esta é apresentada como prosseguimento lógico e fideli-dade ao programa do 25 de Abril, e como o reassumir das fronteiras europeias da nação e da sua verdadeira identidade em consequência da descolonização.37 Mas a sua marca, directa ou indirectamente, encontra tradução exacta no Programa do II Governo Constitucional, apresentado em 1978. É de crise ainda que se fala neste documento, o que está patente logo na forma como a propósito dela se faz referência à identidade nacional, ainda que a relação dos termos seja já muito diferente. Segundo o programa, “Da redução geográfica e económica de Portugal aos seus limites europeus, em consequência do fenómeno histórico e inelutável da descolonização – o país procura uma nova identidade”.38 Por outro lado, e integrado como orientação fundamental da política externa, pode ler-se: “Após a descolonização, que pôs fim a um círculo histórico da vida portuguesa, Portugal encontra-se envolvido num processo de afirmação da sua nova maneira de estar no mundo e de redescoberta da sua vocação nacional. O aumento das inter-relações políticas, culturais e económicas com os restantes povos é uma forma de reforçar, por contraste, a identidade nacional”.39

Por outro lado, quer o discurso do chefe do I Governo Constitucional em soli-citação de um voto de confiança sobre a sua declaração de política geral, quer as intervenções de Lucas Pires e Freitas do Amaral na discussão do voto, deixam transparecer uma redefinição do conceito, que se prende mais com uma noção de crise de confiança: nas palavras do Primeiro-Ministro, “uma certa insegurança quanto à nossa verdadeira identidade nacional”, que contribui para “uma crise de confiança, de tipo acentuadamente psicológico”.40 Este sentido, de certa forma, permanecerá como uma das vertentes que informa um dos feixes de referências à identidade nacional nos debates parlamentares e linhas programáticas dos progra-mas dos governos: a necessidade de gerar autoconfiança – a “acentuação da ideia nacional”, a “vitalização da Nação como comunidade”, e “valorização das coisas nacionais” subscrita no programa Mota Pinto do IV Governo Constitucional.41

Esta ênfase posta no que, ao apresentar o programa para apreciação no Parlamento, Mota Pinto referiu como o “reforço da consciência de identidade nacional”, suscitou algumas reacções igualmente significativas quanto à progres-siva redefinição dos sentidos de identidade nacional no debate político.42 Salgado Zenha, em particular, que em três outras ocasiões viria a reforçar o mesmo ponto,

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opera uma redefinição importante. Em resposta directa a Mota Pinto, começa por rejeitar a identificação de identidade nacional com qualquer mera recuperação acrítica de instituições ou momentos políticos do passado nacional em legitima-ção de ideologias políticas no presente, defendendo antes que “identidade nacio-nal é solidariedade nacional na diversidade, na justiça social e na liberdade”.43

Uma semana mais tarde, polariza mais marcadamente a existência de diferentes tradições políticas e histórias nacionais irredutíveis a “identidades nacionais” ideologicamente unitárias, e de novo proclama a definição de identidade nacio-nal como solidariedade nacional, mas agora explicitada como uma leitura socia-lista do termo.44 Em nova intervenção em Janeiro de 1980, acaba por declarar o discurso de crise de identidade nacional como uma mistificação da direita, para encobrir a sua crise de identidade democrática.45

Um outro comentário, de António Reis, quanto à incidência do almejado “reforço da consciência da identidade nacional” no domínio da política cultural, ficando-se ele, embora, pelo aviso contra a tentação de acção tutelar governa-mental do tipo SNI, prenuncia, uma outra vertente de referências à identidade nacional, com respeito ao património, que importa pelo menos referir.46 A breve intervenção de Manuel Gusmão por ocasião do Dia Internacional dos Museus, em Maio de 1979, e a apresentação de dois projectos lei sobre defesa do patrimó-nio por Victor de Sá, em Junho de 1980, convergem na denúncia da nacionaliza-ção mistificadora da alta cultura como cultura nacional e da subalternização das culturas populares pelo discurso da cultura nacional.47

Duas outras referências nos debates parlamentares reflectem, por último, a recon-figuração dos sentidos e dos usos do termo identidade nacional aqui, e que se vinham desenhando desde há algum tempo: por um lado, as intervenções por ocasião da comemoração do 25 de Abril de 1977, e a de Sá Machado do CDS em particular, pela forma como articulam as estratégias de legitimação político-partidária com a apropriação do sentido e legado da Revolução, e desta com o sentido e devir da his-tória portuguesa.48 A segunda, é uma alusão de Menéres Pimentel, do PSD, ao então recém-publicado Labirinto da Saudade de Eduardo Lourenço, que faz transparecer precisamente o conceito de identidade nacional em termos de discursos e imagens dos portugueses.49 Entre estes dois sentidos gera-se a tensão de toda e qualquer refe-rência à identidade nacional num contexto como este: a construção de uma imagem da nação enquanto estratégia de legitimação da proclamada representatividade da nação; e a crise desse sentido pela desconstrução das imagens e reflexividade.

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Através do Labírinto: a Identidade nacional em discurso crítico

A já citada referência de Meneres Pimentel a Eduardo Lourenço e a alusão ao Labirinto da Saudade, fazendo lembrar que, por muito que às vezes o esqueça-mos, os debates parlamentares acompanham também, reflectem e enformam os discursos académicos e os debates no espaço público, permitem uma breve con-sideração sobre a evolução paralela da questão nestes vários campos. De forma demasiado sucinta, poderíamos sugerir um andamento em três tempos.

Um primeiro tempo, ficou marcado menos pelo debate do que por interven-ções de natureza empenhada que procuram dar sentido cultural à ruptura do 25 de Abril. Nestas intervenções a identidade nacional, ainda sem qualquer preocu-pação teórica, aparece como sinónimo de imagem-projecto histórico da comuni-dade aqual, em momento de refundação, procuram moldar em termos de uma visão política para o Portugal do pós-autoritárismo e pós-descolonização. De um sentido descritivo, o conceito gradualmente passa a adquirir o sentido de crise.

De um segundo tempo de redefinição podemos destacar quatro vertentes. As intervenções de José Fernandes Fafe no início da década de 80 são a melhor expressão de uma delas. Embora o aspecto porventura mais significativo tenha sido o facto de o autor procurar pensar e influir sobre o debate público com base nos estudos políticos e nas ciências sociais e informado por uma razão compa-rativa, o seu valor reside antes na forma como despatologizou, passe a palavra, a questão. Fafe aceita como descritivamente neutra a constatação de que Portugal sofre uma crise de identidade (“Como haveria de não sofrer? Uma história come-çada no século XV terminou e a que se lhe segue dá os primeiros passos”), mas no sentido em que tais crises são naturais, implicando e implicadas em processos de reorganização da personalidade.50 Assim, segundo o autor, aqueles que quiserem perante tal constatação tomar uma atitude interventiva podem contribuir ou pela difusão das visões da história que evidenciam o histórico como processo, ou contribuindo para a definição de projectos mobilizadores do nacional. Quanto ao resto, declara, “ou é um tópico de retórica, que não tendo virtudes exorcistas, a certa altura já ninguém escuta, ou é um suspiro pelos bons velhos tempos salaza-ristas que, bons ou maus, já não voltam mais”.51

Três contribuições de Eduardo Lourenço convergem com esta leitura. Com uma delas, que não tem sido suficientemente comentada, Lourenço explicitamente assumiu exactamente o tipo de análise-intervenção a que Fafe alude. Com a afirma-ção de que “Desde o início, a Revolução cometeu uma falta que, esperamo-lo não lhe seja fatal. Hipnotizada pelo puro combate ideológico... a Revolução descurou em excesso o sentimento nacional. [...] a ideia de Nação e o “nacionalismo” no seu

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sentido de radicação e consubstanciação com o interesse nacional, não só não são antagónicos do interesse revolucionário como lhe comunicam a sua força afecti-va”, Lourenço dava um passo significativo no sentido da recuperação do vínculo politico e mobilizador do nacionalismo e da desideologização do debate sobre as articulações entre cidadania e identidade nacional.52 Articulação esta, aliás, para a qual as comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas recomeçavam a constituir nova plataforma.53 Uma segunda verten-te das intervenções de Eduardo Lourenço, que tem sido muito comentada, mas principalmente pela negativa, refere-se ao resvalar do discurso lourenciano sobre Portugal que de discurso meta-crítico se desdobra afinal em apenas mais um filão enformando as imagens que os Portugueses têm de si. A crítica situa este resva-lar em duas características do discurso lourenciano: o privilegiar das imagens literárias (crítica que a mais das vezes tendenciosamente ignora a referência do próprio Lourenço, logo no Repensar Portugal, à necessidade de fazer incidir sobre a questão as abordagens das ciências sociais), e aquilo que denuncia como o tom profético da intervenção lourenciana, que assim se institui, portanto, como voz mimética do discurso do ser português.54

A contribuição com que o nome de Eduardo Lourenço mais está associado, porém, e que precisamente dá corpo e sentido a este segundo tempo do debate sobre a identidade nacional em Portugal, é a do conjunto de ensaios reunidos no Labirinto da Saudade, publicado em 1978. A sua importância, no sentido restrito do processo que aqui procuro caracterizar, foi o de irreversivelmente ultrapassar o ensaio em torno das “fixações caractereológicas” do “homem português”, dos “Enigmas”, das “Honras”, e das “Artes”, fáceis ou difíceis de “Ser Português”, das “feições persistentes” da “personalidade portuguesa”, das “singularidades” e “ori-ginalidades” da literatura portuguesa, e do “carácter nacional”, e, submetendo-as à análise crítica, as revelar como construções discursivas.55

O terceiro tempo, caracterizado pela diversidade de abordagens, de metodo-logias (e de qualidade!), é o das ciências sociais e dos estudos culturais. No seu pior, o primeiro assume a forma dos mais diversos inquéritos sobre as atitudes e práticas dos portugueses, embora alguns atinjam grau de sofisticação que cons-tituem valiosas achegas, e está hoje principalmente representado pelos estudos de Psicologia Social. Um momento forte deste tipo de estudos foi, sem dúvida, a publicação em 1989 do inquérito encomendado dois anos antes ao Instituto de Ciências Sociais pelo Instituto de Defesa Nacional, que passa a aprtir de entao a figurar como referência incontornável da questão, e que simbolicamente marca novo ponto de redefinição da própria questão da identidade nacional. Publicado

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no jornal Expresso, na revista Nação e Defesa, e nas Actas do Colóquio organizado em torno da divulgação dos resultados, “o relatório” nas palavras do artigo publi-cado naquele jornal, “realça a forte identidade dos portugueses, o que confirmaria aliás a impressão de qualificados observadores, como Eduardo Lourenço, de que não existe em Portugal qualquer crise de identidade”.56 Com base no mesmo estu-do, o próprio Manuel Braga da Cruz publicará ainda o capítulo sobre o tema da identidade nacional no livro The New Portugal: Democracy and Europe coordenado por Richard Herr (volume saído de um colóquio sobre Portugal desde a Revolução organizado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 1990), que assim ganhou nova projecção, e por sua vez constitui referência obrigatória com que António Costa Pinto e Nuno Gonçalo Monteiro concluem o capítulo sobre “Mitos Culturais e Identidade Nacional” do seu Modern Portugal oito anos mais tarde.57

Um segundo tipo de estudos críticos que importaria notar é o de uma historio-grafia concebida em dialogo com as ciências sociais, e a antropologia em parti-cular, onde convergem, por um lado, os estudos sobre os lugares da memória, a monumentalização dos espaços públicos, a nacionalização das massas, dos ima-ginários e do património, e, por outro lado, as reconceptualizações das teorias e dos processos de “invenção” da tradição, da nação como comunidade imagina-da, do papel das elites culturais e políticas, das escolas e do ensino da história, e a operatividade do banal no reforço do nacional.58 O colóquio de 1987 sobre “A Memória da Nação” pode ser aqui citado, um pouco simbólicamente, como marco da consolidação de abordagens desta natureza nos estudos académicos em Portugal, aliás excelentemente representado para além dele por outros auto-res e estudos. Um segundo corpo de estudos neste campo interdisciplinar das ciências sociais que tem como ponto de partida a teorização da especificidade da formação portuguesa nas Onze Teses e nos ensaios de Boaventura Sousa Santos sobre a Cultura de Fronteira, o Estado como imaginação do Centro, abre-se por seu turno para as análises do contemporâneo que focam o quotidiano e as culturas populares, as contraculturas e os grupos alternos e subalternos.59

A coincidência da data do colóquio citado com o ano do lançamento do ciclo comemorativo dos 500 anos dos Descobrimentos Portugueses e da formação da primeira Comissão Nacional presidida pelo Comandante Serra Brandão, porém, perfeitamente ilustra também os desfasamentos entre os discursos académicos e políticos que convém não esquecer.60

Chegados aqui, a questão não está em proclamar, como o Francisco de Sá do romance Vícios e Virtudes, de Hélder Macedo, em alto e bom som que “O tanas a identidade nacional, não há tal coisa”.61 A questão está, isso sim, em que a retori-

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ca, o discurso e as práticas da identidade nacional constituem uma das formas de estruturação se não a estruturação paradigmática da vida e formas de organiza-ção políticas, e da governamentalidade nas sociedades contemporâneas.

Num artigo pioneiro de 1989 António Costa Pinto delineou uma importante síntese das transformações do discurso de indentidade nacional no universo das ideologias políticas e da configuração da direito portuguesa.62 Várias vezes retoma-do ao longo destes últimos 15 anos, o argumento mantém-se e ve-se confirmado com a passagem dos anos. O Estado Novo apropriou o discurso do nacionalismo português que já vinha detrás, consolidando e popularizando o discurso regene-racionista com ênfase na dimensão colonial, e reconciliando o catolicismo e a tra-dição corporativas como traves da identidade portuguesa numa leitura da história mitificada. O Mito do império vai-se impondo, particularmente através das esco-las nos anos 30 e 40, e reafirma-se nos anos 60 com as guerras coloniais, mas sem o eco na sociedade portuguesa que por vezes se presume. Com a descolonização, este filão central do nacionalismo português terá desaparecido. Sem o império, a direita vê-se destituída do seu “cimento ideológico mais importante”. Por sua vez a incapacidade de mobilização política dos retornados, cuja integração se ficou essencialmente a dever às redes de apoio familiar e informal, e o não reassumir do legado ou dos discursos políticos do antigo regime pelas figuras do mesmo após o regresso do exílio, selaram o fim da extrema direita portuguesa.63 No artigo de 89 Costa Pinto notava, cautelosamente, a ausência “até agora” de “significativa emi-gração (sic) estrangeira e correspondente xenofobia popular em contexto de crise económica” como factores de mobilização da direita. Retomando a questão mais tarde, o autor refere a presença crescente de imigrantes na sociedade portuguesa mas conclui que que manifestações de racismo e xenofobia não estão integradas ainda no discurso nacionalista e que o factor imigração/racismo é ainda relativa-mente fraco.64 Em conclusâo, os “tempos do mito colonial definitivamente acaba-ram”.65 “Os portugueses não atravessam nenhuma crise de identidade nacional. A identidade nacional mantém-se forte”.66

No momento que atravessamos, porém, o discurso de identidade nacional sofre uma inflexão fundamental. Por um lado, como actualmente estatuído nas bases do conceito estratégico de defesa nacional, e como tem crescentemente se tem vindo a constituir a referência ao conceito total de defesa nacional nos próprios programas dos governos desde os anos 90, o conceito de defesa nacional foi transposto da sua base territorial para o conceito de identidade nacional.67 Tendo em conta a forma como a defesa desta identidade nacional por sua vez se reforça pela identificação com a História e com os símbolos do Estado-Nação, a securitização está crescentemente a

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ser essencialmente redefinida culturalmente. Por outro lado a transplantação e rede-finição das noções de defesa e segurança em torno da coesão cultural têm convergido e servido as demagogias populistas com plataformas assimilacionistas, anti-imigração e securitárias “culturalizando” as exclusões.68

Perante este processo, a trinta anos de Abril, cumprir Abril não é apenas lem-brar que não apenas os imigrantes ou seus descendentes mas que nenhum portu-guês, e menos alguma portuguesa, com a excepção do redactor do Imigport, se reco-nheceria ao espelho das esculturas do Monumento dos Descobrimentos. Cumprir Abril é assumir sem medos o facto de que a Lisboa de 2050 será uma sociedade multi-cultural, que Portugal terá uma história portuguesa feita também de outras histórias e que a verdadeira defesa da nação passa pela qualidade da sua democra-cia, não pelo securitarismo de uma identidade cultural xenófoba.

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ANEXO 1

Discurso do Primeiro-ministro na AR, Sessão de 18 de Março de 1977:

O Programa do Governo, que foi, em devido tempo, apresentado à Assembleia da

República e por ela aprovado, anunciava a intenção do Governo de solicitar, nos termos

dos Tratados de Paris e de Roma, a adesão de Portugal às Comunidades Europeias. Esta

intenção inseria-se, não só na busca de uma nova identidade nacional, que a descoloniza-

ção tornara urgente, mas também na necessidade de apresentar ao País um projecto verda-

deiramente nacional, que simultaneamente permitisse situar Portugal no espaço político,

geográfico, económico e social a que, por direito próprio, pertencia. Só um projecto dessa

natureza e dessa dimensão poderia – e estamos certos que assim sucederá – galvanizar

o País e justificar os esforços e mesmo os sacrifícios que será indispensável enfrentar se

quisermos – como queremos vencer a crise e dar ao povo português o nível de vida a que

tem direito e a Portugal o lugar que merece na cena internacional. [...] Mas se o condicio-

nalismo económico existente assim o determinava, outras razões e mais profundas, tal

como a busca de uma nova identidade através do regresso à Europa a que pertencíamos e

até a necessidade de participarmos e contribuirmos para uma Europa que sentimos numa

fase de transição, em busca de novas formas políticas, sociais e económicas, todo este

conjunto de razões foram igualmente decisivas na intenção do Governo Constitucional

de apresentar o pedido de adesão às Comunidades Europeias. Pensamos também que a

consolidação da democracia em Portugal assumirá um novo vigor em virtude da opção a

que nos decidimos. [...] A integração europeia é um grande projecto nacional, que baliza e

dá sentido à nossa experiência revolucionária, tal como ficou expressa no Programa do 25

de Abril e na Constituição da República, a que somos e continuamos integralmente fiéis.

Feita a descolonização – cujos reflexos transcendentes no nosso viver colectivo continu-

am a fazer-se sentir –, Portugal, regressando às suas fronteiras europeias, reassume a sua

verdadeira identidade – na integração europeia, onde melhor se realçarão as nossas poten-

cialidades nacionais, sem esquecer a vocação universalista e africana. Mas ninguém tenha

ilusões quanto à facilidade do caminho, que, pelo contrário, exige disciplina inabalável,

racionalidade e muito esforço colectivo. A integração europeia não pode ser entendida

como um novo expediente – como uma nova índia, um novo Brasil ou como uma nova

África – a dar-nos riqueza sem trabalho persistente, na improvisação e na aventura.

(Diário da Assembleia da República n.˚88 de 19.3.1977. Pp.3013-14).

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ANEXO 2

Conceito Estratégico de Defesa Nacional (1994)

Resolução do Conselho de Ministros n.º 9/94: 3 - Conceito de acção estratégica

a) Princípios gerais de acção. Para a consecução dos objectivos da política de defesa nacio-

nal, a estratégia do Estado tem em conta o enquadramento internacional, o carácter e

objectivos da defesa nacional e ainda os seguintes aspectos fundamentais:

1) O fortalecimento da coesão da população portuguesa em torno do sistema de va-

lores que historicamente enformam a Nação e lhe determinam a individualidade e a

independência; tendo em vista o reforço da vontade colectiva de defesa [...]

b) Orientações para as estratégias gerais.

2 – No plano político interno: a) Educação e cultura:

Promover acções visando um maior esclarecimento dos princípios que enformam a defesa

nacional e dos valores a defender. Na execução dessas acções, privilegiar a intervenção do

Instituto da Defesa Nacional, que preparará programas de acção para aquela finalidade;

Divulgar e difundir juntos dos jovens e da população em geral o conhecimento e o

interesse sobre a história de Portugal, assim contribuindo para a o reforço da identi-

dade nacional e para a afirmação da especificidade portuguesa num mundo cada vez

mais interdependente;

Contribuir para a preservação dos valores histórico-culturais e patrimoniais portugueses

espalhados pelo mundo [...]

Conceito Estratégico de Defesa Nacional (2003)

[...] afigura-se oportuno a elaboração de um novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional,

que é o resultado de um debate crítico, participado e multidisciplinar sobre as questões de

Segurança e Defesa.

2 – Enquadramento Internacional.

A acrescer a este conjunto de riscos mais imediatos, é hoje possível identificar um outro

conjunto de factores que não deixarão de influenciar e condicionar o ambiente interna-

cional e que se prendem com: [...]

o crescimento dos fluxos migratórios, o carácter multicultural das sociedades e zonas

de não integração das novas comunidades; [...]

4 – Os valores permanentes da defesa nacional

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O Conceito Estratégico de Defesa Nacional obedece às disposições constitucionais e legais

que enformam a política de Defesa Nacional. Por isso se afirma que a Defesa Nacional tem

por objectivo garantir a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a

segurança das populações, contra qualquer agressão ou ameaça externas. À Defesa Nacional

incumbe, ainda, garantir a liberdade de acção dos órgãos de soberania, o regular funciona-

mento das instituições democráticas, a possibilidade de realização das tarefas fundamentais

do Estado, o reforço dos valores e capacidades nacionais, assegurando a manutenção ou res-

tabelecimento da paz, em condições que correspondam aos interesses nacionais.

Nos termos da lei, o Conceito Estratégico de Defesa Nacional visa a definição dos aspectos

fundamentais da estratégia global do Estado, em ordem a alcançar os objectivos da política

de Defesa Nacional.

4.1. A estratégia de Defesa Nacional está ao serviço da preservação do Estado soberano e

independente que é Portugal.

A política de defesa do Estado Democrático assegura a continuidade de Portugal enquan-

to país europeu, de centralidade atlântica e vocação universalista.

Como garante insubstituível da Segurança e Defesa do país, o Estado obriga-se a valo-

rizar os factores de identidade nacional, protegendo a língua portuguesa, promoven-

do o conhecimento da nossa história, fazendo respeitar os símbolos nacionais, presti-

giando as Forças Armadas e defendendo os interesses de Portugal no mundo. [...]

4.2. A Defesa Nacional pressupõe a defesa da coesão nacional. Esta, tem expressão

no património cultural comum, na unidade nacional, na partilha de direitos e obri-

gações perante o interesse geral e na solidariedade intergeracional e interterritorial,

entre todos os Portugueses. [...]

4.4. O Estado não declina responsabilidades na promoção de um adequado espírito de

Segurança e Defesa junto da população portuguesa.

A articulação da política de defesa com a política de educação constituirá uma prioridade,

que se encara como elemento importante do exercício da cidadania. É uma obrigação na-

cional reforçar a educação para o patriotismo, cuidar das componentes de Segurança

e Defesa nos programas escolares e proteger, modernizando, as instituições de ensino

especificamente militares.

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ANEXO 3

Programa do XI Governo Constitucional

(17 Ago 87- 31 Out 91) A. Cavaco Silva

Tendo presentes os objectivos permanentes da política de defesa nacional e os meios a

empregar para a sua prossecução, será promovido o desenvolvimento da solidariedade e

o fortalecimento da vontade colectiva de defesa.

Nesta perspectiva e em amplo consenso se procurarão as soluções para os grandes interes-

ses nacionais de defesa com base nos valores éticos, morais e culturais que moldam a cons-

ciência nacional e a vontade colectiva do povo português.

Neste quadro de verdadeira dimensão cívica e nacional, assume especial relevância o apro-

fundamento dos valores humanistas da sociedade, a defesa da instituição familiar e dos sen-

timentos de solidariedade existentes nas comunidades primárias de relação social, a forma-

ção básica e o desenvolvimento cultural da língua, património e da história portuguesas.

A modernização do País é, na essência, um processo eminentemente cultural. Ela torna-se

hoje ainda mais premente no período de transição para uma plena integração europeia,

que preserva integralmente a realidade histórico-cultural portuguesa. [...]

Por tudo isso, a renovação estrutural da economia e da sociedade não poderá ocorrer sem

uma política de educação que valorize a nossa matriz cultural e permita vencer os de-

safios inadiáveis do presente e do futuro próximo.

O processo de modernização global da educação nacional tem por referência três eixos

estratégicos. [...] O segundo eixo tem a ver com o reforço da identidade nacional. O siste-

ma educativo é o garante da continuidade cultural dos Portugueses, na dupla verten-

te da preservação da herança essencial e patrimonial que lhes é peculiar e do sentido

de renovação que assegura a própria sobrevivência de Portugal.

A integração na Europa postula o apreço por esse sentido de identidade nacional,

que representa um contributo indispensável para o enriquecimento da civilização

europeia e para o diálogo com outros povos e culturas. A reinserção de Portugal no

mundo moderno pressupõe a redescoberta na escola dessa identidade, pelo conheci-

mento da realidade nacional, pelo estudo da sua cultura, pelo apreço pela sua história e

por um sentido de formação global que Integre os valores essenciais, sejam eles de natu-

reza humanística, cívica, social, cientifica ou tecnológica, e o respeito pelos outros povos e

culturas numa perspectiva universal.

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Programa do XII Governo Constitucional

(31 Out. 1991 – 28 Out. 1995): A. Cavaco Silva

I. Modernizar o Estado. Afirmar Portugal

1 – Defesa nacional. elegendo-se assim como grandes objectivos a atingir:

Assegurar a integridade territorial e a Independência Nacional.

Preservar os valores nacionais e consolidar a identidade nacional.

4 – Política externa

Nesta óptica, considera o Governo como objectivos gerais a atingir na nossa acção externa:

Valorizar a identidade portuguesa, particularmente através da difusão e promoção da

nossa língua, da nossa história, do nosso património, dos nossos valores e potenciar atra-

vés das comunidades portuguesas a afirmação da presença de Portugal em todos os Con-

tinentes

4.1. Objectivos gerais

A construção da União Europeia deve, no entender do Governo, continuar a pautar-se

por princípios e orientações que têm sido, no passado, condição de sucesso, e que agora

se reafirmam:

O respeito pelas identidades nacionais, rejeitando a diluição de culturas e o aparecimento

de qualquer hegemonismo.

4.5. Promoção da língua e da cultura portuguesas

A par de um processo de integração europeia em que, entre outras vertentes, se pretende

valorizar e dar conteúdo ao conceito de cidadania europeia, importa defender e valori-

zar a identidade portuguesa, particularmente através da difusão e promoção da nos-

sa língua, da nossa história, do nosso património, dos nossos valores.

III. Apostar no homem. Valorizar o futuro

1 – Cultura

Uma política cultural tem de entender-se como a linha de orientação do Governo na pers-

pectiva do enaltecimento da componente cultural da identidade nacional e da inter-

venção do Estado na defesa daqueles valores culturais cimeiros que pela sua especificidade

– como é o caso da Língua Portuguesa e do Património têm, por ele, de ser assegurados. (...)

Vivemos uma época em que só a enfatização das culturas próprias pode garantir uma di-

versidade de mensagens capaz de tocar todos os públicos e de preservar o espaço da cria-

tividade. Por isso a valorização do que nos distingue e orgulha, como povo há mais de

oito séculos independente, é prioridade do Governo no domínio da cultura. É assim

que se atribui especial importância dentro da investigação nas Ciências Sociais, à que

respeita à História e suas Ciências auxiliares, de relevância inequívoca para a reafir-

mação da nossa identidade, numa época de integração em espaços mais vastos.

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Nesta perspectiva será marcante na actividade cultural a evocação de feitos que engran-

decem a nossa Nação e que se tornaram património universal. Essa é a melhor forma de

mostrar a riqueza da tradição cultural portuguesa, como o exemplo da Europália bem está

a demonstrar.

9 – Descobrimentos

No presente contexto nacional e internacional, as Comemorações dos Descobrimentos

Portugueses surgem como um modo privilegiado de colocar os Portugueses perante al-

guns dos valores mais altos da sua História e da sua identidade.

Programa do XIII Governo Constitucional

(28 Out. 1995 – 25 Out. 1999) António Guterres

A democratização do acesso à cultura, a articulação da produção cultural com o sistema

educativo, a comunicação social e o audiovisual, a difusão e consolidação da língua portu-

guesa como um dos idiomas mais falados à escala planetária, constituirão vectores essen-

ciais para a afirmação de Portugal no Mundo.

É que, no Mundo cada vez mais interdependente e de mercados mais abertos em que vi-

vemos, é na afirmação da identidade cultural de Portugal que se encontra um dos funda-

mentos mais sólidos da independência nacional.

3. Defesa Nacional

O imperativo constitucional que comete ao Estado assegurar a defesa nacional deve tra-

duzir-se numa política tanto quanto possível consensual, quer ao nível do sistema político

quer da sociedade civil. Para atingir tal desiderato o Governo compromete-se a, sem abdi-

car das suas responsabilidades, promover de forma constante um consenso alargado em

torno da política de defesa nacional, mantendo, para o efeito, um diálogo permanente com

todos os órgãos e entidades com atribuições relevantes nesta área. Na sua prossecução

procurar-se-á uma maior consciencialização e adesão dos Portugueses aos objectivos

de defesa nacional e às instituições que a asseguram.

Mas a defesa nacional não estará garantida se não for sentida e partilhada pelos Por-

tugueses. Para tal, torna-se necessário promover uma informação contínua relativa às

questões da defesa nacional, bem como fomentar a difusão do conhecimento da nossa

História, como elementos determinantes do reforço da identidade e da consciência

nacional.

V – Educação, Ciência e Cultura

4. Cultura

A política do Ministério da Cultura assentará, pois, em cinco vectores fundamentais: de-

mocratização, descentralização, internacionalização, profissionalização e reestruturação.

A necessidade da internacionalização decorre de uma concepção da cultura como factor

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de construção e afirmação da identidade nacional, numa perspectiva de universalismo

e de diálogo intercultural.

Programa do XIV Governo Constitucional

(25 Out. 1999-6 Abril 2002) António Guterres

F) Afirmação da identidade nacional no contexto europeu e mundial – política externa

G) A Defesa como elemento estruturante da identidade nacional e da afirmação de

Portugal no mundo

A política de defesa nacional num momento de viragem na cena internacional

No plano interno, a conjugação das componentes militares e não militares da política de

defesa nacional continuará a ser uma preocupação central, de forma a conseguir um maior

conhecimento e adesão dos Portugueses aos objectivos de defesa nacional e às institui-

ções que a asseguram, numa perspectiva de coesão nacional. Estes objectivos serão pros-

seguidos quer através da integração mais sistemática da temática da defesa nacional nos

curricula escolares quer através de uma política de informação e comunicação centrada

no papel contemporâneo das Forças Armadas, em estreita articulação com o novo sistema

de recrutamento já adoptado na lei.

Desenvolvimento, sobretudo através do Instituto de Defesa Nacional, de acções de infor-

mação, reflexão e esclarecimento de militares e civis, sobretudo jovens, sobre os gran-

des temas da defesa nacional em todo o País, em articulação com o sistema de ensino,

com os estabelecimentos de ensino directamente inseridos na estrutura militar e com as

Universidades, Institutos e centros de reflexão e análise estratégica em geral;

Programa do XV Governo Constitucional

(6 Abril 2002-17 Julho 2004) Durão Barroso

Para atingir estes desígnios, o Governo promoverá:

– o envolvimento, num esforço comum, dos vários órgãos de soberania na prossecução

da política de Defesa Nacional e das Forças Armadas, que é estruturante da identi-

dade nacional;

O cumprimento das medidas acima definidas pressupõe o envolvimento empenhado de toda a

Nação, exigindo, ainda, a adopção de outras medidas, a saber: a criação de sistemas de educa-

ção para os valores do patriotismo, dando, assim, oportunidade a todos os jovens de se sen-

tirem motivados para a Defesa Nacional, ainda que dispensados da incorporação militar, se

não escolherem o voluntariado;

DEFENDER E AFIRMAR A LÍNGUA E A CULTURA PORTUGUESAS

A identidade nacional face à globalização e à integração europeia e peninsular, afir-

ma-se no mundo através de factores culturais e da defesa da língua portuguesa.

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4 – CULTURA

O Governo atribui à política cultural um papel central e transversal no conjunto de todas as

políticas sectoriais.

Os riscos de fragmentação da sociedade e a sua possível vulnerabilidade a crescentes

pressões exteriores exigem que a Cultura desempenhe um papel aglutinador, funda-

mental para que a comunidade nacional seja cada vez mais um conjunto harmonioso,

articulado e com sentido, que estimule o desenvolvimento livre, integral e solidário de

todas as pessoas e afirme os seus valores no mundo.

Sendo a Cultura um verdadeiro laço entre o passado e o futuro e uma componente

determinante da identidade nacional, a política cultural tem por segundo objectivo a

promoção dessa identidade.

O Estado não pode nem deve pré-determinar a vida cultural e ainda menos, criar os valo-

res em que os Portugueses se revêem e que reconhecidamente contribuem para a preser-

vação e reforço da identidade nacional. Tem antes o dever de protegê-los, estimulando,

apoiando e promovendo acções nesse sentido.

O Contributo das Comunidades Portuguesas no exterior para o reforço da identidade na-

cional será devidamente valorizado.

Deve ser sublinhado que o referido papel identitário e estruturante da Cultura só pode

ser integralmente realizado pelo acesso do maior número possível de cidadãos aos bens e

actividades culturais

Programa do XVI Governo Constitucional

(17 Julho 2004-12 Março 2005) Santana Lopes

1. DEFESA NACIONAL

– o envolvimento, num esforço comum, dos vários órgãos de soberania na prossecução

da política de Defesa Nacional e das Forças Armadas, que é estruturante da identidade

nacional;

– a realização, como dever militar legalmente consagrado, do Dia da Defesa Nacional diri-

gido a todos os cidadãos que atinjam a maioridade;

DEFENDER E AFIRMAR A LÍNGUA E A CULTURA PORTUGUESAS

A identidade nacional face à globalização e ao processo de integração europeia afirma-se

através de factores culturais e da defesa da língua portuguesa.

Sendo a cultura um verdadeiro laço entre o passado e o futuro e uma componente deter-

minante da identidade nacional, a sua tradução política deverá ter por objectivo primor-

dial a promoção dessa mesma identidade.

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NOTAS1 “Identidade Cultural”, texto assinado em nome de “A equipa do IMIGPORT 1999”, http://www.libreopinion.com/members/imigport/idcult.htm. Segundo refere o Relatório Anual do SOS Racismo 2002, o sítio Imigport estava então sob investigação pela Polícia Judiciária, ver: http://www.sosracismo.pt/rel2002/direita.htm.

2 Assim, o texto “Racismo e Xenofonia” com que o IMIGPORT antecipadamente “rejeit[a] liminarmente as acusações de racismo e xenofonia”, é a todos os títulos paradigmático dos subterfúgios da transposição culturalista do novo racismo e xenofobia – evadindo o discurso de raça, o novo racismo mobiliza-se através de um discurso culturalista predicado na essencialização da diferença que reduz “a cultura” à imutabilidade da velha categoria de raça. V. http://www.libreopinion.com/members/imigport/racismo.htm. (As referências no site a Peter Brimlow, autor de Alien Nation, são, a este título, reveladoras).

3 Sobre a retórica e os prospectos da balcanização, ver Stepan G. MĚSTROVIĚ- The Balkanization of the West. Londres: Routledge, 1994.

4 O saudoso e “salazarento” herói português criado nas páginas de “O Independente” (1991-94) pela dupla Manuel João RAMOS / Rui ZINK, V. Major Alverca. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

5 Como Nasce Um Herói. O Independente. (22.11.91). In Major Alverca, pág.12.

6 O Racismo Nunca Existiu. O Independente. (10.4.92). In Major Alverca, pág.78.

7 Acolher Obrigatório. O Independente. (19.4.93). In Major Alverca, pág.90.

8 Ver Stuart Hall – The multicultural question. In Barnor Hess ed. – Un/Settled Multiculturalisms. London: Zed, 2000. Pp.209-41; S. SAYYID - Slippery People: The immigrant imaginary and the grammar of ethnic relations. In: Ian Law, Deborah Phillips e Laura Turney eds. - Institutional Racism in Higher Education. Londres: Trentham Books, 2005; e AbdoolKarim

VAKIL – Vasco da Gama. In S. SAYYID et al eds. - A Postcolonial People: South Asians in Britain. Londres: Hurst, 2006.

9 Ver Stuart HALL – Whose Heritage?, Un-Settling ‘The Heritage’, Re-Imagining the Post-Nation. Third Text 49 (Winter-Spring 1999-2000). Pp.3-13; e Robert Shannan PECKHAM ed. - Rethinking Heritage: Cultures and Politics in Europe. Londres: I.B. Tauris, 2003.

10 “fidelidade...”: Programa do II Governo Constitucional [1978], I- Introdução; Instituição do CR: Lei nº5/75 de 14 Março; Plano de Acção Política do MFA [Jornal Novo, 21.6.75]: 1.1, Centro de Documentação 25 de Abril: http://www.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=poderpol12.

11 Constituição da República Portuguesa, 1976, Preâmbulo.

12 Portugal Reencontrado. Lisboa: Terra Livre, 1975. Ano II da Revolução.

13 António Manuel COUTO VIANA - Escrito no Sangue [21.11.76]. In Uma Vez Uma Voz. Poesia Completa, 1948-1983. Lisboa: Verbo, 1985.

14 Eduardo LOURENÇO – Da Contra-Epopeia à Não-Epopeia: De Fernão Mendes Pinto a Ricardo Reis. Revista Crítica de Ciências Sociais 18/19/20 (Fev. 1986). Pp. 27-35.

15 “Embora um grande número de romances ainda hoje aborde viagens feitas ou em curso, a maioria dessas viagens narradas são agora de retorno”, Isabel ALLEGRO DE MAGALHÃES – Narrativas Masculinas e Femininas Sobre a Guerra Colonial: Dois exemplos de perspectivas marcadamente sexuadas. In Sentido que a Vida Faz: Estudos para Óscar Lopes. Porto: Campo das Letras, 1997. pp.285-86. Breve porém o regresso de emigrantes afrouxa, a emigração retoma os seus índices, e passa a cruzar-se com o novo fenómeno de imigração.

16 Mas...Afinal?! a nação... o que é... E quem é pela Nação? Colecção Para Todos, série A. Lisboa: Prelo Editora, 1974.

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17 Jacinto RAMOS; Luz FRANCO – Esta é a Ditosa Pátria Minha Amada: Espectáculo-Documento. Lisboa: Terra Livre, 1977.

18 Sérgio GODINHO – A Pátria tem que ser comestível. In Ao Qu’isto Chegou: feira portuguesa de opinião. Lisboa: Estampa, 1977. Pp. 272-275.

19 O campo historiográfico espera ainda o tipo de abordagem acrítica que António SOUSA RIBEIRO desenvolveu para o campo literário com: O Povo e o Público. Reflexões sobre a Cultura em Portugal no pós-25 de Abril. Revista Crítica de Ciências Sociais 18/19/20 (Fev. 1986). Pp.11-26; e Configurações do Campo Intelectual Português no pós-25 de Abril: o campo literário. In Boaventura SOUSA SANTOS (org.) Portugal – Um Retrato Singular. Porto: Afrontamento, 1993. Pp. 481-512.

20 António BORGES COELHO – O 25 de Abril e o Problema da Independência Nacional. Lisboa: Seara Nova, 1975.

21 Victor de SÁ – Um Ensino da História para a Compreensão da Actualidade Portuguesa. In A História em Discussão, Lisboa: Dom Quixote, 1975. Pp. 9-25 (pág.10). Outras citações do mesmo texto em parênteses.

22 Orientação Para Um Curso de História Contemporânea. In A História em Discussão. Pp. 73-84 (p.76).

23 Victor de SÁ – Repensar Portugal: reflexões sobre o colonialismo e a descolonização. Lisboa. Livros Horizonte, 1977, pág.9.

24 Victor de SÁ - Repensar Portugal: reflexões sobre o colonialismo e a descolonização. Lisboa. Livros Horizonte, 1977.

25 V. Raquel Pereira HENRIQUES - A Revolução no Ensino da História. Confronto entre o período anterior e posterior a Abril de 1974. In Maria Cândida PROENÇA (coord.) – Um Século de Ensino da História. Lisboa: Colibri, 2001. Pp. 93-128.

26 Vasco Pulido VALENTE – A Identidade Nacional. Diário de Notícias (27.5.77), in O País das Maravilhas, Lisboa: Intervenção, 1979. Pp.135-138; ver porém, do mesmo autor, A Identidade Nacional. In Tentar Perceber. Lisboa: IN-CM, 1983. Pp. 311-359.

27 Sessão de 11 de Dezembro de 1978, DAR (12.12.78), pág. 544.

28 Diário da Assembleia da República. Suplemento ao n.˚17 (3.8.76), pág. 438(2).

29 Sessão de 4 Junho 1976, DAR. n.˚2 (5.6.76), pág. 27.

30 Sessão de 14 de Julho 1976, DAR. n.˚6 (15.7.76), Pp. 111-13.

31 Sessão de 1 de Agosto de 1976, DAR. n.˚17 (3.8.76), pág. 404.

32 DAR. Sup. n.˚17 (3.8.76), pág. 438(65).

33 Id., pág. 438(64).

34 Sessão de 9 de Agosto de 1976, DAR. n.˚20 (10.8.76), Pp. 501-2.

35 Sessão de 11 de Agosto de 1976, DAR. n.˚22 (12.8.76), pág. 626.

36 Id., Pp. 635-36.

37 Sessão de 18 de Março de 1977, DAR. n.˚88 (19.3.77), Pp. 3013-14. Ver Anexo 1.

38 Programa do II Governo Constitucional, II.2.a.

39 Id., III.6.2.1.

40 Sessão de 6 de Dezembro de 1977, DAR. n.˚ 17 (7.12.77), Pp. 481-2.

41 Programa do IV Governo Constitucional, I. Linhas Gerais da Acção Programática, I.b.

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42 Sessão de 4 de Dezembro de 1978, DAR. n.˚13 (5.12.78), pág. 370.

43 Sessão de 6 de Dezembro de 1978, DAR. n.˚14 (7.12.78), pág. 399.

44 Sessão de 19 de Dezembro de 1978, DAR. n.˚19 (20.12.78), pág. 653.

45 Sessão de 18 de Janeiro de 1980, DAR. n.˚8 (19.1.80), Pp. 325-26.

46 Sessão de 11 de Dezembro de 1978, DAR. n.˚16 (12.12.78), pág. 370.

47 Sessões de 17 de Maio de 1979, e 5 de Julho de 1980, DAR. n.˚61 (18.5.79), pág.2156, e DAR. (5.7.80), Pp. 2886-7, respectivamente.

48 Sessão de 25 Abril 1977, DAR. n.˚100 (26.4.77), Pp. 3362-3.

49 Sessão de 29 de Agosto de 1978, DAR. n.˚92 (30.8.78), pág. 3382.

50 Como aliás logo o próprio título indica: Crise de identidade não é doença de identidade [Dez. 1982]. In José Fernandes FAFE” Portugal, Meu Remorso de Todos Nós. Lisboa: Caminho, 1993.

51 FAFE – Portugal (op cit.): Crise de Identidade..., [Dez. 1982]. Pp.57-61; Reflexões sobre “a crise de identidade nacional” [Jan. 1984]. Pp. 75-81; e A Cruzada que temos de empreender [ Março 1985].Pp. 86, 90.

52 Eduardo LOURENÇO – O Labirinto da Saudade. 3ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1988. Pág. 63

53 Ver Camões e a Identidade Nacional. Lisboa: IN-CM, 1983; e as reflexões, críticas e acríticas, geradas em 1980 por ocasião do centenário do tricentenário de 1880.

54 LOURENÇO – Labirinto. op. cit., pág. 70; em resposta às críticas ver Eduardo Lourenço: Entrevista. In Cyberkioske: http://ciberkioske.pt/arquivo/ciberkioske3/entrevistas/elourenco.htm

55 No mesmo sentido caberia aqui mencionar também o ensaio crítico de Onésimo Teotónio PEREIRA – Filosofia Portuguesa. Alguns equívocos. In Cultura, História e Filosofia IV (1985). Pp. 219-55.

56 Sofia PINTO COELHO – Nacionalismo: o orgulho provinciano. Expresso-Revista (10 Junho 1989). Pp. 35-39. Nacionalismo e Patriotismo na Sociedade Portuguesa Actual. sl: IDN, 1989.

57 Richard HERR, ed. – The New Portugal: Democracy and Europe. Berkeley: University of California Press, 1992. Pp. 151-180; Nuno G. MONTEIRO e António COSTA PINTO – Cultural Myths and Portuguese National Identity. In António COSTA PINTO (ed.) – Modern Portugal. Palo Alto: SPSC, 1998. Pp. 206-17.

58 Na sequência dos estudos de Pierre Nora, George Mosse, Eugen Webber, Eric Hobsbawm e Terence Ranger, Anthony Smith, Ernst Gellner, Benedict Anderson, Michael Billig, e Stuart Hall, para citar apenas os principais.

59 Boaventura SOUSA SANTOS, Onze Teses por Ocasião de Mais Uma Descoberta de Portugal. Via Latina (1991). Pp. 58-64; Modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteiras. Revista Crítica de Ciências Sociais 38 (1993). Pp. 11-39; ambos reproduzidos In Pela Mão de Alice. Porto: Afrontamento, 1994. Pp. 49-67 e 119-137. Boaventura SOUSA SANTOS (org.) – Portugal: Um Retrato Singular (op. cit.); Maria Irene RAMALHO e António SOUSA RIBEIRO (orgs.) – Entre Ser e Estar. Raízes, Percursos e Discursos da Identidade. Porto: Afrontamento, 2002. Margarida CALAFATE RIBEIRO e Ana Paula FERREIRA orgs. – Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Contemporâneo. Porto: Campo das Letras, 2003; Margarida CALAFATE RIBEIRO – Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo. Porto: Afrontamento, 2004.

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60 Francisco BETHENCOURT e Diogo RAMADA CURTO (org.) – A Memória da Nação. Lisboa: Sá da Costa, 1991. Além dos autores aí representados cabe referir particularmente os estudos de João Leal, Augusto Santos Silva, José Sobral, João Medina, Sérgio Campos Matos, Fernando Catroga, Luís Reis Torgal e Rui Ramos, entre outros.

61 Helder MACEDO – Vícios e Virtudes. Lisboa: Presença, 2000. Pág. 27. Cf. AbdoolKarim VAKIL – In Praise of Purpose; Or, Contra as punhetas saudosistas. In Margarida CALAFATE RIBEIRO et al (orgs.) – A primavera toda para ti. Homenagem a Helder Macedo. Lisboa: Presença, 2004. Pp. 202-207.

62 António Costa Pinto - Neo-Fascismo em Portugal. Expresso-Revista (18 Nov. 1989). Pp. 73-75

63 António COSTA PINTO - The Radical Right in Contemporary Portugal In Luciano CHELES et al (eds.) - Neo-Fascism in Europe. Londres: Longman, 1991. Pp. 167-90 (184); António COSTA PINTO e Xosé M. Núñez – Portugal and Spain. In Roger EATWELL (ed.) - European Political Cultures: Conflict or convergence?. Londres: Routledge, 1997. Pp. 172-92 (182); António COSTA PINTO Dealing With the Legacy of Authoritarianism: Political Purges and Radical Right Movements in Portugal’s Transition to Democracy, 1974-1980. In Stein U. Larsen (ed.) – Modern Europe After Fascism. Boulder: SSM, 1998. Pp.1679-1718; MONTEIRO e COSTA PINTO – Cultural Myths and Portuguese National Identity, 1998, op. cit. pág. 215; António COSTA PINTO - Saneamentos políticos e movimentos radicais de direita na transição para a democracia, 1974-1976. In Fernando ROSAS (coord.) – Portugal e a transição para a Democracia (1974-1976). Lisboa: Colibri 1999, Pp. 29-48 (47-48); António COSTA PINTO” Settling Accounts with the Past. In Alexandra BARAHONA DE BRITO et al (eds.) – The Politics of Memory: Transitional Justice in Democratising Societies. Oxford: Oxford University Press, 2001. Pp. 65-91 (85-86).

64 COSTA PINTO – Radical Right. In CHELES, op. cit. pág. 185; e António COSTA PINTO Dealing With the Legacy of Authoritarianism: Political Purges and Radical Right Movements in Portugal’s Transition to Democracy, 1974-1980. In Stein U. LARSEN ed. – Modern Europe After Fascism. Boulder: SSM, 1998. Pp. 1679-1718 (1714).

65 “The days of the colonial myth are definitely over”, MONTEIRO e COSTA PINTO – Cultural Myths and Portuguese National Identity, 1998, op. cit. pág. 217.

66 “The Portuguese are not undergoing a national identity crisis. National identity remains strong”, COSTA PINTO and Núñez - Portugal and Spain. 1997, op.cit.. pág.184 e MONTEIRO e COSTA PINTO – Cultural Myths and Portuguese National Identity, 1998, op. cit. pág. 217.

67 Ver Anexo 2.

68 AbdoolKarim VAKIL Pensar o Islão: Questões coloniais, interrogações pós-coloniais. Revista Crítica de Ciências Sociais 69 (October 2004). Pp. 17-52.

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1. INTRODUCCIÓN

La descolonización portuguesa se realizó con una o dos décadas de retraso con relación a la mayoría de independencias del Tercer Mundo. Además se hizo en medio de guerras en las colonias más importantes en Angola desde 1961, en Guinea desde 1963 y en Mozambique desde 1964. Y, si esto no fuese suficiente, en medio de la transición política de la dictadura a la democracia. Por lo que cortar los lazos multiseculares con los territorios que Portugal dominaba no fue prece-dido de un debate abierto y franco de la sociedad lo que ha acabado dejando cier-to sabor agridulce, al menos en los sectores más conservadores portugueses. De hecho, el colonialismo constituía una parte esencial del nacionalismo portugués y no solo de la derecha que estaba en el poder, sino también de la izquierda. Así, aunque el PCP reclamó el derecho a la independencia de las colonias desde 1957, la verdad es que sacrificó este postulado a la unidad de acción con otras fuerzas oposicionistas. Por eso se entiende que tras la sublevación del norte de Angola en 1961 al condenar el “terrorismo de las organizaciones africanas”,1 juntamen-te con el resto de la oposición. Las contradicciones de la oposición se pueden sintetizar en el programa electoral de la CEUD de Braga que en 1969 decía que si se perdía el Ultramar, no se hablaba de colonias, Portugal desaparecería como nación.2 Tesis más propias de la extrema derecha que de Caetano. La descoloniza-

Da África à Europa: quanDo portugal DEscolonizou

Josep Sánchez Cervelló | Universitat Rovira i Virgili, Tarragona

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ción sólo sería unánimemente aceptada por todos los sectores oposicionistas en 1973, incluyendo al ala liberal. Por tanto, el poder y de la oposición coincidieron en la premisa del mantenimiento del imperio hasta muy cerca del 25 de Abril.

La ortodoxia oficial se sustanciaba en las opiniones que en 1973 realizó al semanario Expresso un coronel - hoy general - que manifestaba de ese modo su rechazo a una salida política a la guerra: “¿negociar con quien?, ¿capitular por-qué?.... Si hubiésemos capitulado hace 60 años no tendríamos un imperio, ni independencia: seríamos, “ab origine”, una provincia de España. Si capitulá-semos ahora, renunciaríamos para siempre al imperio o mejor a la comunidad afro-luso-brasileña”. Añadía además: “No atacamos a nadie, se trata solamente de nuestra defensa. ¡El suicidio nunca! Refiérome al suicidio colectivo, evidente-mente... Nosotros preferimos resistir a todo trance”.3

2. LA SITUACIÓN MILITAR EN VÍSPERAS DEL 25 DE ABRIL

Hace falta ver por tanto, aunque sea brevemente, cual era la situación militar en vísperas del 25 de Abril, para entender el desenlace.

Un documento militar confidencial de 1972 señalaba sin ambigüedades: “Las grandes líneas que conforman el pensamiento actual de los desgastados cuadros profesionales son el producto de problemas no resueltos y que crean las pre-misas iniciales del descontento de los militares.... Los oficiales y sargentos de la Escala Activa están estigmatizados y ulcerosos en la carne y en el alma por el esfuerzo ultramarino, por lo que (en porcentaje preocupante) desean abandonar las filas. La negativa a sus peticiones de salida de las FF.AA. (Fuerzas Armadas) es considerado por militares y civiles como una forma de esclavitud que, las teorías de la línea marxista, liberalista o pseudos “cualquier cosa”, orquestan hábilmente en sus críticas y campañas de descrédito.

... Asisten con preocupación al “fenómeno-éxodo” de la Academia Militar, que no consigue polarizar la simpatía ni la vocación castrense de la juventud portuguesa. La Escala Activa está exhausta, abúlica y destruida moralmente. Esta putrefacción que comenzó hace algunos años esta conduciendo rápidamente a la gangrena, y es imposible a los mandos callar por más tiempo las profundas aprensiones que ya no se consiguen esconder.

La defensa a ultranza del Ultramar se hará cueste lo que cueste, pero se ha de premiar al personar y mimarlo. Hay que abrir inmediatamente (repito inme-diatamente) nuevas perspectivas, no de esperanzas, sino de realidad palpable, en caso contrario peligrará (ya está en peligro) la seguridad nacional.... Llegó el momento de crear las condiciones sin las cuales se dará la catástrofe total”.4

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Además en Guinea Bissau, en marzo de 1973, la guerrilla en el transcurso de la ofensiva “Amilcar Cabral” utilizó por primera vez misiles tierra-aire SAM-7 Strela abatiendo en 15 días cinco aviones. El desconcierto provocado por la nueva arma permitió al PAIGC aislar los cuarteles del sur de la colonia y desencadenar sobre ellos continuos bombardeos con artillería, ya desde Senegal o Guinea Conakry. En mayo de 1973 se apoderó de la plaza fuerte de Guilajé. El oficial portugués que mandaba la guarnición, tras tres días de continuos bombardeos y sin haber obtenido apoyo aéreo, pues Bissau pensó que se trataba de una trampa, lo aban-donó dejando allí artillería, radios y vehículos. Después de la caída de Guilajé, el PAIGC atacó Gadamael que no cayó por la llegada imprevista del general Spínola que consiguió, in extremis, detener la retirada del ejército. Con todo, la principal preocupación del Estado Mayor de Bissau no era la ofensiva “Amilcar Cabral”, ni la “Nô Pintcha” que arrasó varios acuartelamientos del norte, sino que la guerrilla pasase de la guerra de guerrillas a la guerra convencional con utilización de avia-ción y de blindados. Sólo las lluvias detuvieron el éxito militar del PAIGC y con esa certeza Spínola pidió regresar a la metrópoli en agosto de 1973.

También en Mozambique los servicios de información militar portugueses detectaron, en enero de 1974, que desde Tanzania llegarían procedentes de Rusia misiles SAM-7, algunos de los cuales serían cedidos al FRELIMO “que ya tiene en Rusia doscientos elementos para especializarse en su manejo”. Ese mismo informe admitía la posibilidad que la aviación tanzana actuase contra el Ejército portugués.5 La certeza de esta información vino confirmada cuando en vísperas del 25 de Abril hicieron su aparición los misiles Strela que acabaron también aquí con la superioridad aérea portuguesa. El FRELIMO consiguió abatir un DC3 con agregados militares extranjeros que resultaron ilesos y tres aparatos de las fuerzas aéreas rodhesianas cuyos pilotos perecieron.

La situación bélica era en Angola favorable coyunturalmente a Portugal, que controlaba todas las ciudades y las vías de comunicación. En cualquier caso tenía problemas administrativos, económicos y financieros de difícil solución y, ade-más, en una guerra subversiva casi nunca los éxitos militares son los decisivos.

Esta situación militar desfavorable para Portugal y que queda clara en la corres-pondencia entre Spínola y Marcelo Caetano y está subyacente en la aparición del Movimiento de Capitanes (MOCAP), y si la contestación inicialmente por el Decreto Ley 353, de julio, corrió a cargo de los mayores pronto, tras el Decreto Ley 409, de 20 de agosto, el relevo lo tomaron los capitanes los que realmente eran los operacionales, porque en la guerra llegar a ser mayor significaba saltar de los escenarios bélicos y pasar a las Actividades Psicológicas, a las Informaciones

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y en definitiva a los gabinetes. Claro que se puede argumentar que hasta enero de 1974 no aparecieron en los panfletos que los puros – procedentes de la AM – y los espúreos - procedentes de milicias- otras reclamaciones que no fuesen de ámbito estrictamente corporativo, pero eso es solo quedarse con una parte de la película porque la evidencia de que la fuerza del MOCAP es inversamente proporcional a la dureza de la guerra, así será más fuerte en Guinea y en Mozambique que en el resto de los territorios – por tanto hay una clara relación entre la guerra y la conspiración. Prueba de lo que digo es que en Guinea-Bissau, de la mano del Teniente-coronel Banazol en enero de 1974 se planteó la realización del primer golpe de Estado6 bien estructurado y al que los historiadores, hasta el momento, han dado poca importancia. Lo mismo sucedió en Mozambique donde después de los sucesos de Beira (21.I.1974) los oficiales del MOCAP firmaron una carta colectiva que consi-guió 180 adhesiones en dos días, lo que reflejaba el tremendo cansancio para una guerra sin solución militar. La dirección de los capitanes preparó el 22 de enero un golpe de Estado en la colonia elaborado con el nombre de código “Operación Zulú” que consistía en desplazar tropas desde Nampula a Lourenço Marques y dimitir al gobernador. El golpe fue neutralizado por presiones de la Comisión Coordinadora (CC) de Lisboa que aseguró a su homónima de Nampula que la situación aún no estaba madura. También en esa misma fecha en Guinea-Bisssau, el Teniente-coro-nel Banazol propuso la realización de otro golpe de Estado. Para ello difundió entre las unidades militares un plan gradual que consistía en que a partir del 1º de mayo las FF.AA. se negasen a realizar operaciones ofensivas contra la guerrilla. A partir del 15 las unidades y las subunidades se dirigirían a las sedes de sus batallones y el 1º de junio convergirían paulatinamente hacia Bissau donde acamparían. El documento sembró el desconcierto entre las FF.AA. y obligó al MFA de la colonia a intervenir y a exigir calma. Señalando que la toma de Guinea no era capital para la caída del régimen, y que la actuación de los conspiradores debía encuadrarse en un plan global que incluyese Portugal y las restantes colonias.

En ese contexto de disgregación militar se produjo el intento de golpe de Estado que agrupaba a varios generales de extrema derecha y que encabezaba el excomandante en jefe de Mozambique, General Kaúlza de Arriaga, el golpe fue neutralizado por la denuncia del Mayor Fabião en el IAEM, el 17 de diciembre de 1973. También los exmilicianos entregaron el 1º de enero de 1974 un documento con 108 firmas al General Spínola en el que señalaban “comprometerse y solida-rizarse con cualquier posición que Vtra. Excia. tenga”.7 En medio de este coro de protestas, Spínola decidió publicar en febrero de 1974, Portugal y el futuro, una obra poco original ya que se basó fundamentalmente en dos informes confidenciales

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que había enviado a Caetano (el primero en octubre de 1970 y el segundo en mayo de 1972). En el primero defendía el federalismo para las colonias y en el segun-do la necesidad de negociar con el adversario pues la victoria militar era inviable. Además en la obra planteaba la necesidad de la democratización del sistema. Esos mismos argumentos habían sido utilizados por innumeras personas a lo largo de la dictadura, por tanto la importancia radicaba no en lo que se decía sino en quien lo decía. Obviamente señalar que no había solución militar a la guerra y que el gobierno legítimo era aquel que se basaba en el sufragio era un torpedo de gran poder explosivo en la línea de flotación de la dictadura.

El 25 de Abril estuvo precedido aún por el del 16 de marzo, que el régimen neutra-lizó con muchas dificultades y se quedó sin fuerzas para detener la embestida final.

3. REPERCUSIONES DEL 25 DE ABRIL EN LAS COLONIAS

En Guinea-Bissau la dirección local del MFA había barajado la hipótesis de realizar un golpe de Estado simultáneamente con las acciones que debían realizarse en Portugal, el 24 de Abril se reunieron en el Agrupamiento de Transmisiones repre-sentantes de las principales unidades de Bissau y de las tres armas para evaluar la posibilidad de destruir al gobernador y tomar el poder en la colonia. Esa noche no llegaron a un acuerdo unánime y la mañana del 25 realizaron otra reunión en el Batallón Paracaidista y se distribuyeron las misiones de cada unidad, con la advertencia de que estuviese alerta para cuando fuese necesario intervenir. En una nueva reunión a las 00.15 del 26 se enteraron que el comandante de la Defensa Marítima se había puesto a las órdenes del nuevo poder y entonces 10 oficiales del MFA, con apoyo de los Regimientos de la PM y de los paracaidistas y con la mari-na en prevención, dimitieron al gobernador, General Bettencourt Rodrigues, y le enviaron con su staff por vía aérea hacia Lisboa. Siendo substituido por un oficial de la Marina, como comandante militar, y otro del Ejército, como gobernador.

En Mozambique el día 27 una compañía de paracaidistas a las órdenes del MFA se desplazó de Nampula a Lourenço Marques para dimitir al Gobernador Pimentel dos Santos que había manifestado su deseo de permanecer en el poder.

Nuevamente las actitudes de fuerza tuvieron lugar en los dos territorios en que la guerra y el MOCAP eran más importantes.

En Cabo Verde solo la Armada conocía la fecha del golpe y, por lo general, la oficialidad se enteró de los sucesos por la radio. Igual sucedió en Timor, en Sto. Tomé, en Macau y en Angola, donde se produjeron reuniones de oficiales para evaluar la situación y aguardar órdenes.

En Angola la dimisión del gobernador no se produjo hasta el 27.

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En Mozambique el gobernador dimisionario fue substituido interinamente por su segundo, que se mantuvo en el cargo un mes. En Sto. Tomé el gobernador de la dictadura no fue substituido en hasta finales de julio. En Timor el goberna-dor fue dimitido en junio y en Macau hasta octubre de 1974.

El nuevo poder emergente se consolidó en todas partes por intermedio de milita-res afectos al MFA. De hecho la propia existencia del golpe de fuerza en Lisboa quebró la jerarquía tradicional y legalizó el MFA e hizo que en las colonias se institucionali-zase, provocando roces entre la jerarquía tradicional y la revolucionaria. Esos cho-ques eran inevitables pues en todas partes el contingente expedicionario portugués entendió que la propia existencia del 25 de Abril representaba el final de la guerra y su regreso a casa. Por lo tanto otra conclusión clara que debe tenerse en cuenta en el estudio de la descolonización portuguesa, es que se hizo sin soporte militar.

Donde la indisciplina fue más grave fue en Guinea-Bissau y en Mozambique. En la primera colonia cuatro días después del golpe de Estado, 29 oficiales, sargentos y soldados de las dos Escalas redactaron una carta colectiva dirigida al general Spínola en la que le pedían el cese del fuego inmediato para entregar el poder al PAIGC y se procediese de forma inmediata a la repatriación de los soldados. Según sus autores “en 24 horas se recogieron más de 1000 firmas legibles con el nombre y el desta-camento siendo firmado por 2 o 3 batallones completos”.8 Aunque el MFA rebajó considerablemente el número de adherentes, cifrándolo en más de 300, aunque ya era un número significativo, mostraron su preocupación por el hecho de que entre los signatarios había incluso oficiales superiores.9

Pero la ola de indisciplina creció de forma gigantesca. A principios de mayo en el Batallón de Artillería 6520 que no quiso ir a Cadiqué a “rendir” un bata-llón con 16 meses de permanencia en una zona de combate y con más del 50% de bajas. La decisión fue asumida por todos con excepción del comandante (un teniente coronel). Tras días de negociación con el MFA acabaron cumpliendo la orden después de conseguir la destitución del comandante y con la concordancia jerárquica de que buscarían en el destino el cesar el fuego con el PAIGC. La protes-ta se extendió a todas las unidades sin excepción y, si en principio fue descoordi-nada, ya el 4 de mayo, 31 militares de los tres ramos organizaron el Movimiento Ampliado de Oficiales, Sargentos y Soldados (MAOSP). El MAOSP realizó dos asambleas en Bissau el 9 y el 15 de mayo, en la última – en los servicios de edu-cación de Bissau – comparecieron más de 1500 soldados y corearon consignas a favor del PAIGC, de la Paz y de volver a casa. El movimiento adoptó entonces el nombre de Movimiento para la Paz (MPP) que fue rebautizado jocosamente por el MFA como “Movimiento de Pira-te à Pressa”. Pero su fuerza obligó al MFA de

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la colonia a integrarlos en su organización, y prometerles que ejercerían todo su poder para obligar a Spínola a acelerar el proceso de descolonización, con el que también concordaban. Mientras esto sucedía la guerra no había concluido oficial-mente. En junio los informes militares portugueses hablaban de gran concentra-ción de fuerzas guerrilleras y militares en el Norte (Pirada) y en el sur, mientras que la disolución de la PIDE había dejado a las FF.AA. sin informaciones fiables, al tiempo que la moral de la tropa había caído en picado. Por eso cuando el Teniente-coronel Fabião, llegó al territorio como nuevo Encargado de Gobierno, a principios de mayo, y después de comprobar “in situ” la degradación de la situación militar, pasó a colaborar estrechamente con el MFA local. Pero las dudas sobre la desco-lonización que imponía la errática política de Spínola obligaron al MFA el 28 de mayo a escribir a la CC de Lisboa criticando a Spínola y su proyecto federalista y les pedían firmeza para obligarle a cambiar de rumbo.

Los primeros contactos oficiales con el PAIGC se establecieron en Dakar a principios de mayo y sirvieron para preparar las conversaciones del 25-31 de mayo en Londres. Las conversaciones fracasaron porqué: Spínola exigía un referéndum de autodeterminación y no incluir a Cabo Verde en las negociacio-nes mientras que el PAIGC demandaba el reconocimiento de la República de Guinea-Bissau y Cabo Verde como un solo país.

El cesar el fuego que existió mientras duraron las conversaciones se quebró tras su fracaso. Spínola cortó los contactos con la guerrilla a pesar de la oposición del MFA, que mantenía contactos extra-oficiales con el PAIGC desde media-dos de mayo, que finalmente los institucionalizó el 13 de junio permitiendo la presencia de diversas delegaciones de la guerrilla en Bissau. Esta política, ni de paz ni de guerra, no agradaba al PAIGC por eso después del fracaso de las con-versaciones de Londres, el MFA local elaboró un informe en el que con espanto advertía del probable reinicio inmediato de la guerra.10 Para impedirlo convo-caron una reunión en Bissau a la que asistieron 1000 militares, delegados de las unidades en su mayoría, en la que exigieron que se retomasen los contactos diplomáticos con el PAIGC: “no para negociar el derecho a la independencia, sino sólo los mecanismos que conduzcan a la transferencia de poderes”.11 Con ese telón de fondo se reabrieron las negociaciones el 14 de junio en Argel, sus-pendidos al cabo de tres días por la irreductibilidad de las partes. Nuevamente el MFA de Guinea consiguió demostrar al PAIGC su buena voluntad y mostrarle que la línea política de Spínola sería combatida con firmeza y derrotada. Con ese objetivo en la zona del Cantanhez se realizaron durante los días 15 a 18 de julio reuniones de alto nivel entre delegaciones de la guerrilla y del MFA. 9 días más

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tarde Spínola se vio obligado a reconocer el derecho de autodeterminación e independencia de las colonias que se plasmó por primera vez el 26 de agosto en los Acuerdos de Argel, que reconocieron la independencia de Guinea.

En Mozambique el MFA envió a Dar-es-Salam en mayo a 6 ex-prisioneros políticos para explicar al FRELIMO los objetivos democratizadores del 25 de Abril y obtener el cese el fuego. Pero éste no lo aceptó hasta que se reconociese el derecho a la independencia y prosiguió la guerra con un saldo aterrador para Portugal, pues las acciones armadas del FRELIMO prácticamente se doblaron en mayo de 1974, en relación a enero del mismo año, al tiempo que las bajas portuguesas eran superiores a las de 1973 y las de la guerrilla eran más bajas que en los años precedentes.12

También en Mozambique se produjeron escenas de insubordinación en diversas unidades militares aunque no tuvieron la intensidad de Guinea-Bissau. Los primeros contactos oficiales se produjeron el 5 y 6 de junio en Lusaka, pero acabaron abruptamente porque el FRELIMO exigió la independencia inmediata y ser reconocido como el único representante del territorio. La delegación por-tuguesa no los podía satisfacer y se empeñó sin éxito en conseguir el cese del fuego. De hecho el 3 de junio y para presionar a los negociadores portugueses 107 militares firmaron una carta colectiva en la que exigían la independencia y el reconocimiento del FRELIMO como único representante del país y el fin de la guerra.13 El problema de Mozambique era además que el contingente africano representaba más del 50% de los efectivos portugueses del territorio y que empe-zaron a inquietarse ante la perspectiva de que el FRELIMO viniese a gobernar.

Tras el fracaso del encuentro en Lusaka, la guerra se recrudeció y para ultrapa-sar el impasse una delegación del MFA de Lisboa, encabezada por Melo Antunes, se trasladó a Dar-es-Salam, en dos ocasiones (con total desconocimiento de Spínola) para estudiar el proceso de transición concordando con las peticiones del FRELIMO. El 1 de julio los oficiales de Nampula votaron afirmativamente el acuerdo alcanzado por Melo Antunes y la dirección del FRELIMO y dos días más tarde el MFA de Cabo Delgado exigió la reabertura del proceso negociador, al tiempo que la indisciplina crecía imparable, por lo que el MFA el 10 de julio publicó una declaración favorable al FRELIMO y para acabar con las ambigüe-dades, delegados del MFA de las unidades de toda la colonia el 23 de julio se reunieron en Nampula para exigir la descolonización bajo la égida del FRELIMO, después de que los delegados de Cabo Delgado y Tete ya habían hecho saber a sus superiores que impondrían el cesar el fuego unilateral si hasta finales de aquel mes no se conseguía el alto el fuego definitivo.

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El 24 de julio, completamente aislado del gobierno, el gobernador dimitió. Entonces en Boane y en Lourenço Marques las tropas allí estacionadas declararon su total apoyo al FRELIMO y en Villa Paiva de Andrade, un batallón mandado por un teniente coronel envió un comunicado al Cuartel General diciendo que habían acabado el servicio militar y que se iban a Beira para embarcar para la metrópoli y que abrirían fuego a quien se lo impidiese, al tiempo que las unidades llegadas de Portugal se negaban a ir a las zonas operacionales, contagiando a las restantes tropas.

Desde principios de agosto el FRELIMO impuso un alto el fuego tácito para per-mitir el reinicio de las negociaciones que empezarían brevemente en Dar-es-Salam. El 1 de agosto en Omar (Cabo Delgado) el FRELIMO ocupó un cuartel llevándose detenidos a 137 militares portugueses hacia Tanzania.

Las conversaciones oficiales iniciadas el 15 de agosto se celebraron bajo el impacto de lo sucedido en Omar. La delegación portuguesa quiso hablar de los pri-sioneros, pero escuchadas unas grabaciones del FRELIMO, en los que los detenidos decían que se habían entregado voluntariamente a la guerrilla y que aceptaban sus exigencias, el pormenor fue ultrapasado. La última fase de conversaciones se rea-lizó en Lusaka del 5 al 7 de septiembre y se reconocía que el nuevo Mozambique independiente lo sería con el FRELIMO como único representante del país.

En Angola a llegada, a principios de junio, del nuevo Gobernador Silvino Silverio Marques complicó aún más las cosas. Había sido gobernador en Cabo Verde (58-62) y en Angola (1962-66) tras la dimisión de Deslandes. Por tanto estaba acostumbrado a gobiernos en épocas de crisis pero la situación enton-ces era muy diferente de la crisis post-delgadista. El ni siquiera era federalista, sino integracionista y su nombramiento revela las alianzas que intentó Spínola para contrariar la descolonización. En julio se produjo el enfrentamiento entre Marques y el MFA e iniciaron una maniobra para obligarle a dimitir. El 17 de julio prepararon un golpe de Estado para ocupar Luanda en caso de que no fuese dimitido y le dieron un plazo de 72 horas, al tiempo que avisaron a Lisboa. Entretanto la paz pública se había deteriorado seriamente. El 11 de julio fue muerto un taxista blanco que provocó disturbios racistas la actitud de la PSP y de miembros del Ejército provocó que el día 15 unos 3000 soldados negros de las FF.AA. Realizasen desarmados una acción de protesta ante el cuartel general, pidiendo ser los responsables de la protección de los musseques.

El 19 de julio S.S. Marques fue destituido. Su substituto fue Rosa Coutinho. Con anterioridad la indisciplina de las unidades militares se había ido extendien-do como una mancha de aceite. Buen ejemplo de ello fue lo acontecido en el cuar-tel de Tchivovo (Cabinda) el 31 de mayo, cuando la totalidad de sus integrantes

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incluyendo a los oficiales se negaron a salir para realizar una operación de comba-te, firmando una carta colectiva que tuvo amplísimo eco en la prensa izquierdista de Portugal: “conscientes de nuestra condición de hombres libres y no de anima-les cuyo fin es el matadero (...) nos negamos a tomar parte en tales acciones”.14

El MFA procuró, después del 25 de Abril, obtener el cese el fuego con la gue-rrilla. La primera en aceptar fue la UNITA el 14 de junio, tras el cual inició una gran campaña de adhesiones entre los ovambo del Este y sur de la colonia que para contrariarla miembros del MFA que trabajaban en el servicio de Información Militar filtraron la correspondencia que Savimbi había mantenido, contactos estables, con las autoridades portuguesas, publicadas en la revista Africa-Asia (de París) a principios de julio y tuvo un eco tan amplio que Savimbi incluso llegó a pensar que su movimiento sería ilegalizado.

El FNLA aprovechó la desmovilización portuguesa tras el 25 de Abril para ampliar su zona de influencia en los distritos norteños de Zaire, Uíge, Malange y los macizos de los Dembos. A pesar de los esfuerzos portugueses para establecer un cesar el fuego con ellos no lo lograron porque en el interior de Angola no dis-ponían de cuadros superiores para negociarlo. El FNLA sin puentes con Portugal trató, para no ser marginado, de incrementar su presión militar. Así el 19 de agos-to una columna de 180 guerrilleros fue detenida por las fuerzas paracaidistas cuando trataba de atacar Luanda.

El MPLA era entonces el movimiento que despertaba mayores simpatías entre los portugueses, en función de sus antiguos vínculos con la oposición por-tuguesa. Por ejemplo, el Dr. Almeida Santos me refirió: “Todos los oposicionistas éramos amigos de A. Neto y conocíamos a muchos dirigentes del MPLA. Con Diógenes Boavida compartí piso cuando éramos estudiantes, fue compañero de orfeón de Lucio Lara y con Correia estudié en Coimbra”.15 Pero el MPLA en el momento de la descolonización estaba fuertemente dividido en tres sectores irreconciliables. Daniel Chipenda encabezaba la “Revolta do Leste” y los herma-nos Andrade la “Revolta Activa” y Neto la facción presidencialista. Además en Cabinda reapareció el FLEC que tras el 25 de Abril pasó a contar con las Tropas Especiales (TE) dirigidas por Alexandre Taty.

Otro foco de tensión separatista se produjo entre los Ovambo del sur de la colonia, tribus que se dedicaban al pastoreo en régimen nómada y seminóma-da que pasaron a contactar con la Organización de los Pueblos del Sudoeste Africano (SWAPO).

En Cabo Verde las tensiones entre el MFA y el nuevo comandante en jefe del gobierno interino que había substituido al de la dictadura, Loureiro dos Santos, se

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hacían evidentes a partir de junio, pues procuraban consolidarse no solo entre el contingente portugués sino también entre la población civil, en apoyo del PAIGC, al que la ONU y la OUA consideraban el legítimo representante del archipiélago.

El nuevo gobernador, el Capitán de fragata Silva Horta, llegó a Cabo Verde en agosto y también trató de contrariar la línea pro-PAIGC del MFA pero desde Guinea, Fabião facilitó en esa época la dislocación de dirigentes del PAIGC de Guinea al archi-piélago. Silva Horta fue destituido en septiembre tras la entrevista de Spínola con Mobutu en la isla de Sal que en principio era secreta y que el MFA filtró. Cuando Spínola llegó se encontró con una manifestación pro-PAIGC. El sustituto fue el inge-niero Caboverdiano Sergio Duarte pero a su llegada la institución militar ya esta-ba completamente neutralizada, pero esta neutralidad se quebró cuando el PAIGC aumentó cuantitativamente su presión, en un intento de decantar la situación a su favor y creó en los barrios de chabolas de Praia y Mindelo lo que calificó de “zonas liberadas” donde ondeaba la bandera del Partido e impedía la entrada de los “colonia-listas”. Esta postura de fuerza se la podía permitir por los apoyos que tenía en la isla de Santiago y en la compañía de la PM y de los soldados nativos cuyos mandos eran del MFA. Este empeño del MFA en favor del PAIGC le desprestigió a los ojos del resto de las FF.AA., por lo que ya antes de la caída de Spínola quedó circunscrito a la Armada, en la isla de San Vicente. En cambio en Mindelo, con la llegada de tropas procedentes de Guinea, el peso del MFA quedó prácticamente diluido. Por eso cuando el PAIGC, a finales de septiembre, descolgó y destrozó la bandera portuguesa y la substituyó por la suya en el ayuntamiento de Mindelo, los militares portugueses se sintieron heridos y concordaron con la orden de reposición. Del 21 al 23 de septiembre hubo enfrentamientos entre la población civil y los fusileros. El PAIGC decretó entonces la huelga general en San Vicente, Santiago y S. Nicolás, culminando las protestas con el abandono de los cuarteles de los soldados caboverdianos y su marcha por las calles de la ciudad. Esa prueba de fuerza consolidó definitivamente al PAIGC.

En Sto. Tomé, en julio, el nuevo gobernador se encontró con las FF.AA. com-pletamente descontroladas. Según escribió el Coronel Pires Veloso, en unas memorias que dejó inéditas, a su llegada convocó en una cena a los 1200 hombres que componían la guarnición que “fue particularmente incivilizada – Un soldado blanco se puso encima de una de las mesas y levantó a todo el personal que cantó al unísono y de pie el himno del PCP (Avante Camarada). El gobernador no dejó terminar la canción y reaccionando inmediatamente invitó a cantar a los presen-tes “A Portuguesa”, el himno nacional después del cual salió”.16Veloso licenció inmediatamente a todos los soldados europeos y se quedó con los 400 santoto-menses que pasaron a constituir el núcleo de la fuerza militar de la colonia.

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En Timor pasó más o menos lo mismo, tras la asunción del cargo de goberna-dor de Herdade. La agitación y la indisciplina que en principio solo se había desa-rrollado entre los milicianos se acabó extendiendo al resto del contingente, espe-cialmente tras la llegada en julio de un pelotón de la PM procedente de Portugal totalmente politizado e indisciplinado, por lo que se acabó prescindiendo de la tropa europea, cancelando nuevos envíos.17

En Macau “las tropas después del 25 de Abril – según cuenta el que fue res-ponsable del MFA del territorio desde junio de 1974 – se sublevaron con levan-tamientos de rancho y con amenazas de expulsar a los oficiales de los recintos militares, etc., pues vivían en pésimas condiciones de alojamiento y rancho. Los oficiales mayoritariamente se dedicaban a sus negocios y no tenían ningún respeto por sus subordinados”.18

Junto con la indisciplina militar lo que marcó el post-25 de Abril en las colo-nias fue la eclosión del movimiento popular, reprimido y perseguido por la dic-tadura y la aparición de un sinfín de partidos que querían disputar por la vía electoral la legitimidad de la guerrilla donde había guerra. Las manifestaciones de masas y la supresión de la censura de prensa y la disolución de la PIDE y su imposibilidad en transformarla en PIM (Polícia de Informações Militares) y la liberación de los presos políticos.

En Guinea-Bissau los disturbios más intensos se produjeron en territorio fula, la etnia más ligada a Portugal, como consecuencia de la inestabilidad psico-lógica provocada por la mudanza de estructuras, y con el cambio de última hora trataban de establecer un puente con el PAIGC que ahora sabían que era el más fuerte. El MFA para frenar la ola de agitación se sirvió de ex-presos políticos que enviaba a las zonas conflictivas, con los que constituyeron una asociación cívica denominada Comisión de Juventud para la Unidad y el Progreso de los Pueblos (CJUPP) que sirvió al MFA para tener un canal oficioso con el PAIGC.

En Mozambique el MFA trató también de utilizar expresos políticos para intentar en mayo un cese el fuego con el FRELIMO pero no se verificó.

En Angola el problema residía en la ausencia del cese el fuego con el MPLA y con el FNLA tras la llegada como presidente de la Junta Gubernativa de Rosa Coutinho en julio. El MFA que mantenía contactos oficiosos con el MPLA desde mayo, procuró auspiciar la facción presidencialista con la que se entrevistó en Zambia en junio19 y de hecho Rosa Coutinho facilitó a los militantes del MPLA del interior transporte y armas para que pudiesen reforzar a Neto en el congreso de unidad que se celebró en Lusaka en agosto de 1974. Pero la unidad no se con-siguió ni en Lusaka ni en Brazaville (septiembre). Aunque en principio – con un

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reparto de poder en la dirección del movimiento – parecía lograrse y cuando la radio de Brazaville la mañana del 3 de septiembre anunció la reconciliación de las tres facciones, Rosa Coutinho, con una celeridad harto significativa, anunció por la noche la formación del gobierno de Angola que aunque los lugares de jefatura quedaron vacantes esperando a los líderes de los tres movimientos, los secretarios de Estado que eran lugares técnicos quedaron en manos de militantes pro-MPLA. En octubre, en las planicies de Lunhamege, Portugal firmó el alto el fuego con Neto, respaldándole oficialmente como el verdadero MPLA, cuando las heridas en el partido ya eran incurables.

En Cabo Verde, como también sucedió en Santo Tomé, los movimientos de liberación PAIGC y MLSTP eran prácticamente inexistentes tras el 25 de Abril y los militantes que se atribuyeron su representatividad acabaron siendo desplazados cuando esos movimientos asentaron a los militantes exiliados, fue lo que sucedió con el Grupo de Acción Democrática de Cabo Verde y con la Asociación Cívica pro MLSTP.

En Sto. Tomé la agitación desde julio con la creación de la Asociación Cívica pro-MLSTP fue creciendo vertiginosamente como testimonió Pires Veloso: “había un clima de gran tensión, de miedo explosivo y pre-insurreccional (...) con agitación diaria en las calles y sin ninguna estructura que garantizase un mínimo de autoridad en el territorio. En las fuerzas militares reinaba una indis-ciplina total, un absoluto desrespeto por la jerarquía, la policía estaba desman-telada, los servicios municipales semi-paralizados, los funcionarios públicos en huelgas y reivindicaciones permanentes, los trabajadores de las rozas controla-ban todos los servicios, negando cualquier autoridad a los elementos nombra-dos por la entidad patronal para funciones directivas, en el comercio comenza-ban a hacerse sentir la falta de artículos y géneros, los ‘saneamientos’ también allí estaban de moda”.20

En Macao y en Timor surgieron partidos políticos y se procuró establecer cauces tranquilizadores con Pekín e Indonesia.

Antes de la caída de Spínola ya en Mozambique se produjeron gravísimos sucesos que iban a ser definitivos en el proceso descolonizador. El Acuerdo de Lusaka (5-7 septiembre) había invalidado la consulta popular que quería impo-ner Spínola, como había sucedido en Guinea, y estableció tres órganos de poder: un Alto-comisario, un gobierno de transición y una comisión militar mixta.

Al Alto-comisario, representante de la soberanía portuguesa, competía asegurar el cumplimiento del Acuerdo y actuar en concordancia con el gobierno de transición. El ejecutivo sería el encargado de preparar la independencia y de ejercer, entretanto, las

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funciones legislativas y ejecutivas. La comisión militar establecería el calendario de la evacuación de las tropas portuguesas y el desarme de las nativas.

El alto-comisario fue el Almirante Vítor Crespo, que se encontró con un panorama complicado.

Las facciones no representadas en el Acuerdo ocuparon las radios y desde sus micrófonos aseguraron que el Acuerdo de Lusaka no se cumpliría. El deno-minado Movimiento de Mozambique Livre o Movimiento de Liberación de Mozambique centró su actuación en Beira y Lourenço Marques que era donde se asentaban los aproximadamente 200.000 colonos. Su neutralización fue posible por la decidida intervención del comandante de la Fuerza Aérea general Rangel de Lima que envió tropas paracaidistas. El FRELIMO pensó que era una manio-bra para incumplir el Acuerdo, pero el MFA interfiriendo las comunicaciones del FRELIMO se desmarcó de los mandos militares y de los colonos pidiéndoles tiempo para solucionar el conflicto y el día 6 el MFA envió un comunicado ofi-cial a Dar-es-Salam desligándose de la “maniobra reaccionaria”. La aventura se saldó con un conflicto interracial que provocó la huída en masa de colonos que inicialmente preveyeron la intervención de la RAS.

El gobierno de transición encabezado por Joaquim Chisano tomó posesión el 20 de septiembre y compuesto por 9 miembros: 6 del FRELIMO y 3 portugueses.

4. LA CAÍDA DE SPÍNOLA Y SUS REPERCUSIONES EN LAS COLONIAS

La caída de Spínola tras el fracaso del 28 de septiembre tuvo enormes repercusio-nes en las colonias pues era una maniobra que pretendía enderezar el rumbo polí-tico en la metrópoli y reconducir la descolonización, especialmente en Angola. Se pretendía destituir a Rosa Coutinho y substituirlo por el segundo comandante en Angola, General Altino Magalhães que se encontraba en Lisboa y que recibiría el poder del General Spínola que el día 27 había recibido en audiencia a 28 persona-lidades angoleñas contrarias al MPLA dentro de la escenificación de la “Mayoría Silenciosa”. El día 29 la cúpula militar estaba reunida en Luanda encabezada por el brigadier Nave que esperaban órdenes de Lisboa y que tenían la intención de detener a Rosa Coutinho y a su staff y enviarlos para Portugal. El MFA había con-seguido enterarse de la conspiración porque los spinolistas estaban intentando aliciar a los 3.000 catangueses a través del Coronel Costa Campos, cuyos mandos portugueses se identificaban con el MFA. También participaban en el complot del director del influyente periódico A Provincia de Angola, Dr. Rui Freitas, y el PDCA dirigido por el Dr. Ferronha. Fracasado el golpe den Lisboa, en Luanda se desmontó con facilidad aunque el MFA hubo de ser reestructurado en octubre

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para aumentar su control de las FF.AA., tras depurar a los oficiales más conserva-dores. Aunque un informe del MFA de octubre señalaba que las únicas tropas operativas eran las TE y la Fuerza Aérea y que el MFA era inoperante y existía gran malestar en la corporación.21

El FNLA tras la derrota de Spínola, en la que no confiaba, tuvo que establecer el cesar el fuego inmediatamente para no ser marginado lo que hizo el 10-11 de octubre en Kinshasa. La única organización que lo firmó fuera de Angola, lo que no hizo sino aumentar los recelos de los revolucionarios por ser un vehículo de las pretensiones imperialistas en el territorio. A partir del cese el fuego el FNLA y los otros movimientos fueron autorizados a abrir sedes en Luanda y a disponer de fuerza militar para defenderlas. Pero tras el 28 de septiembre la colaboración entre las FF.AA. y el MPLA se hizo más intensa y los servicios de información pasaron a trabajar para este movimiento. También en noviembre fuerzas conjuntas del MPLA y las FF.AA. tomaron el control de Cabinda, lo que obligó al presidente de la Junta Gubernativa a restablecer la normalidad con dos compañías de comandos. Tras su marcha se había producido la expulsión del FLEC del Enclave y la destitu-ción de los mandos y a partir de entonces el Enclave quedó en manos del MPLA.

En noviembre las fuerzas excluidas del proceso político intentaron las últimas maniobras para impedir la descolonización tal y como se había diseñado. El movi-miento tuvo tres focos. El atentado contra Lucio Lara, máximo responsable del MPLA en Luanda. Los disturbios de los musseques y la huelga de los transportistas. Los tres fueron neutralizados, lo que reforzó el poder de Rosa Coutinho que el 27 de noviem-bre había sido nombrado alto comisario. La UNITA entretanto había sido también reconocida por la OUA representante de Angola. Fue preciso entonces ponerlos de Acuerdo para negociar los plazos de la descolonización, lo que sucedió en Mombasa el 3 de enero de 1975 y abrió las puertas a los Acuerdos de Alvor la semana siguiente que establecían que hasta la independencia el poder lo ejercería Portugal a través de un alto comisario y se formaría un gobierno de transición, con reparto proporcional entre los tres movimientos y que Portugal se encargaría de las carteras más técni-cas. Se crearía un Consejo Nacional de Defensa, en el que cada movimiento aporta-ría 8000 hombres y las FF.AA. portuguesas 24.000, teniendo Portugal que evacuar todos los excedentes hasta el 30 de abril; la creación de un mando policial unificado; y establecía el compromiso de la realización de elecciones en octubre de 1975. Los movimientos de liberación, además, debían fijarse en las regiones y locales corres-pondientes a la fecha de la celebración de los Acuerdos.

El que la cumbre se celebrase en Portugal fue un fabuloso éxito para el MPLA que fue recibido por las fuerzas del gobierno de coalición (PS, PCP, MDP/CDE y

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PPD), por los principales medios de comunicación y por los partidos de extrema izquierda que en aquella época tenían gran capacidad de movilización.

El nuevo Alto-Comisario fue el General de la Fuerza Aérea Silva Cardoso que no contaba ni con el apoyo del MPLA ni del MFA. Había sido escogido porque no había en Angola ningún otro oficial que despertase un consenso más amplio entre las FF.AA. Y porque había mantenido la disciplina de su arma.

Con todo el poder que entonces tenía el MPLA difícilmente podía ser contra-riado: flechas, catangueses, dominaba la capital lo que es fundamental en un país del Tercer Mundo cara el reconocimiento internacional. Las fuerzas opuestas a la descolonización habían sido descabezadas y Rosa Coutinho había hecho per-meable la cooperación de las FF.AA. con el MPLA más allá de su salida.

El primer enfrentamiento en la capital se produjo en enero de 1975 por el control de la Emisora Oficial de Angola en manos del MPLA siendo ocupada por tropas del FNLA que además secuestraron en su domicilio al jefe de redacción. Solucionado este conflicto se abrió otro porque el MPLA atacó el cuartel de las tropas de Chipenda en febrero. Era el primer paso en la lucha por el control de la capital. En esta fase los 400.000 blancos, como futuros electores no fueron hos-tigados, pero tras el 11 de marzo la radicalización del proceso político portugués beneficiaba al MPLA que no escondió sus pretensiones hegemónicas. Así el 15 de marzo atacó las tropas del FNLA en la capital, cuando estas se disponían a celebrar el 14 aniversario del inicio de la guerra con importantes desfiles.

Se decretó entonces el toque de queda y patrullas conjuntas FF.AA./UNITA que hasta entonces se había mantenido neutral.

Almeida Santos y Melo Antunes se desplazaron entonces a Luanda para conseguir un acuerdo de cese el fuego que si bien fue firmado el día 28 no se cumplió pues la guerra se extendió al resto de la colonia. En abril se creó el Consejo Nacional de Defensa (CND) compuesto por el Alto-Comisario y un representante de cada movimiento pero tampoco sirvió de nada y en abril se decretó el toque de queda en la capital y se tomaron medidas para desmilitarizar Luanda y expulsar a los extranjeros de Angola.

Silva Cardoso se esforzó por encontrar una salida al conflicto pero no pudo obviar en sus informes culpar al MPLA de haber repartido armas a mansalva entre los civiles de la capital. El MPLA, como reconoció el propio Rosa Coutinho, tuvo que recurrir al lumpen de Luanda dirigido por el clan de la cárcel de S. Nicolás.22

En mayo la guerra se generalizó en la capital con apoyo de armas pesadas y la población originaria de otras regiones la abandonó dejando aislado a la UNITA y al FNLA pues la población autóctona mbundu se identificaba con el MPLA.

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Los tres movimientos se reunieron en Nakaru (Kenia) en junio, para constituir un ejército nacional, expulsar a los extranjeros, desarmar a la población civil, reali-zar elecciones en octubre y proclamar la independencia el 11 de noviembre.

Esto no podía ser cumplido: el MPLA contaba con los 3000 gendarmes catangueses, el contingente de flechas lundas, lo que le permitió controlar el noroeste de Angola. Neto, según los informes secretos portugueses, pidió que no se desarmase a los catangueses y que fuesen transformados en un cuerpo policial. El presidente de Zaire, para impedir su encuadramiento al lado del MPLA les prometió amnistía si volvían a Zaire.

En julio el MPLA expulsó, tras 5 días de duros combates al FNLA de la capi-tal. Después de este suceso, a finales de julio, una supuesta patrulla del MPLA atacó un vehículo militar portugués, humilló a sus ocupantes y les disparó por la espalda. El hecho había sido montado por los colonos para provocar la reacción del Alto Comisario23 que atacó la sede central del MPLA, matando a 14 militan-tes e hiriendo a 22. El MPLA, en su momento, no pudo desmentir la autoría del atentado por la desorganización de sus huestes. Al día siguiente se desplazó a Luanda, Rosa Coutinho y el Jefe del Estado Mayor del Ejército (CEME) Fabião para impedir la expulsión del MPLA de la capital. El Alto Comisario, según los servicios secretos portugueses, actuó con tanta contundencia para desmentir la colaboración de las FF.AA. con el MPLA. Este incidente significó la defenestra-ción de Silva Cardoso muy atacado por el MPLA.

Portugal no podía hacer nada para impedir la generalización de la guerra. Sus efectivos angoleños habían sido desmovilizados a partir de enero de 1975 cuando en el Curso de Oficiales Milicianos (COM) se insubordinaron colectiva-mente y el corolario de indisciplina de las unidades militares puede seguirse por toda la geografía angoleña y, como ejemplo puede referirse al Batallón acuarte-lado en Sá Bandeira que se insubordinó colectivamente en mayo, exigiendo su inmediato regreso a Portugal.

Ante la internacionalización del conflicto y la utilización de la guerrilla de medios de destrucción superiores a los que disponía el ejército portugués, opta-ron por la “neutralidad activa” interviniendo puntualmente para separar los contendientes pero como señaló el alto comisario eran criticados tanto cuando actuaban como cuando no lo hacían.

El 30 de julio fue nombrado alto comisario el Contra-almirante Leonel Cardoso que el FNLA y la UNITA identificaron como continuador de la línea de Rosa Coutinho. En ese momento de guerra total se inició el éxodo de los 400.000 colonos portugueses que en cifras absolutas representaron el 5,8% de la población

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total portuguesa, mientras que el 1.000.000 de franceses desplazados de Argelia representaban apenas el 2% de la población francesa.

Con el nuevo Alto-comisario llegaron nuevas tropas metropolitanas lo que venía a ser un refuerzo indirecto a las posiciones del MPLA. A nadie se le escapó que una mayor capacidad disuasoria del contingente portugués en Angola, englo-bado por unidades especiales bien disciplinadas y el Alto Comisario que los diri-giese hacia objetivos bien definidos era capital para la estrategia que defendía en Lisboa el gobierno pro-comunista de Vasco Gonçalves para la estrategia soviética en el África Austral y para el MPLA. Por eso la extrema izquierda portuguesa aliada tácticamente con los países occidentales, que era opuesta a cualquier política que beneficiase a Moscú y a sus aliados “socialfascistas”, inició una campaña contra el embarque de nuevas tropas. La punta de lanza de ese movimiento fue el MRPP que en agosto consiguió impedir el embarque de dos compañías de la PM que argu-mentaron su postura en un documento en el que señalaban: “que a pesar de que los militaristas portugueses digan que vamos a “ayudar” a un determinado movimien-to de liberación, considerándolo como la vanguardia del pueblo angoleño, no es a los portugueses a quien cabe decir quien es o dejar de ser la vanguardia del pueblo angoleño, pues esto es una cuestión que sólo compete al propio pueblo”.24

Esta actitud de la PM coincidió con el “Verano caliente” en que la lucha por el control del poder político en Lisboa era más aguda, y en vísperas de la des-titución de Vasco Gonçalves y cuando se había acabado la unanimidad de la izquierda portuguesa en favor del MPLA. La primera fuerza en quebrar el con-senso fue el PS que pasó a defender la representatividad de los 3 movimientos, mostrando a las claras que entendía el doble frente metropolitano y ultramarino de la Revolución, reconociendo implícitamente que sus enemigos políticos en Portugal no podían ser, como hasta entonces, sus correligionarios en Angola. A esa disidencia se sumó el PPD, la UDP y el MRPP entre otros.

En Angola la generalización de la guerra y acuciados por la falta de medios humanos y materiales obligó al repliegue del dispositivo militar portugués, pero sin cesar la colaboración con las fuerzas de Neto, pues la retracción de efectivos del interior hacia puntos intermedios situados en la costa coincidieron en las zonas donde el MPLA estaba implantado y cuando este era atacado se refugiaba en cuarteles portugueses como sucedió en Dondo (Lunda) lo que provocaba continuas protestas contra Portugal de los otros dos movimientos rivales.

En un panorama de guerra total la dilución del poder en Portugal fue prover-bial para el MPLA, pues las tropas portuguesas limitaban la injerencia externa y las fuerzas políticas lusas no eran capaces de encontrar una salida consensuada al

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conflicto, pues mientras PS y PPD reclamaban el cumplimiento de Alvor, el PCP y sectores del MFA defendían una orientación contraria. Como señaló Melo Antunes: “finales de julio de 1975, en el momento de mayor disputa entre los movimientos, y cuando Luanda se encontraba dominada por el MPLA y defendida militarmente por fuerzas portuguesas, después de órdenes expresas mías en ese sentido, ante una inminente ofensiva del FNLA apoyado por fuerzas regulares zairenses, defendí la tesis, tanto en Angola como después en Lisboa, de que los acuerdos de Alvor habían sido completamente superados por la realidad y que Portugal debía denunciarlos y abandonar la tesis de “neutralidad activa”, asumiendo con coraje y claramente el apoyo al MPLA (con o sin ligazón a UNITA). Tesis que se justificaba en aquel momento por el relativo neutralismo de este movimiento en las violentas confron-taciones entre el MPLA y el FNLA, y por la imperiosa necesidad práctica de aislar el FNLA, movimiento que, cada vez más claramente, quería convertir a Angola en un satélite de Zaire, sometiéndolo al imperialismo”.25

A principios de agosto el MPLA (tras dos días de combate) expulsó a UNITA de Luanda al tiempo que se intentaba conseguir en reuniones secretas el pacto entre el partido de Savimbi y el MPLA (reunión secreta del 29 de agosto en Portugal). Coincidiendo con la viabilidad de ese pacto entre las dos organizacio-nes el gobierno portugués suspendió los Acuerdos de Alvor el 22 de agosto.

La inviabilidad del pacto era consecuencia de la internacionalización del con-flicto. En el sur las tropas de la RAS entraron en Agosto estacionándose en la presa de Cunene, cuando en Angola ya habían llegado los primeros contingentes de técnicos e instructores cubanos y soviéticos.

En el norte, desde Ambriz fuerzas regulares zairenses y del FNLA se prepara-ban para ocupar Luanda el 11 de noviembre. Lo mismo hizo la RAS desde el sur por la frontera de Namibia.

El MPLA empleó el tiempo para fortificarse y destruir los puentes sobre los ríos Bengo y Quebe pero si no hubiesen esperado por la fecha de la independencia hay pocas dudas que hubiesen entrado en Luanda. Según el General Diogo Neto que aban-donó Luanda el 8 de noviembre, los miembros de la CIA del consulado de Luanda le dijeron que los EE.UU. habían llegado a un acuerdo con el MPLA sobre el petróleo de Cabinda.26 De hecho una delegación del MPLA se desplazó a Washington a finales de octubre y a su regreso expresó que la compañía Gulf podría continuar a explotar el crudo de Cabinda tras la independencia. Este acuerdo entre las multinacionales petroleras USA y el gobierno de Angola aún se mantiene en vigor.

Almeida Santos reflexionando sobre esta cuestión me dijo que en los EE.UU. habían preferido la llegada de los soviéticos para ser una vacuna para el resto de

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África occidental, si se hubiesen quedado en Angola hubiesen tenido que dar respuesta duramente la larga crisis económica de los 70 y 80 y su prestigio sería mayor, entonces sucedió lo contrario.27

El 11 de noviembre el MPLA proclamó la independencia en Luanda, el FNLA lo hizo en Ambriz y la UNITA en Nueva Lisboa, mientras el alto comisario trans-firió la soberanía “al pueblo angoleño”.

En Cabo Verde tras la dimisión de Spínola, el Gobernador Duarte Fonseca quedó definitivamente tocado. En octubre llegaron Pedro Pires y un gran número de caboverdianos procedentes de Guinea en un avión militar portugués. El MFA, en una asamblea en S. Vicente reconoció al PAIGC como único representante en noviembre. Entonces se iniciaron en Lisboa las conversaciones para la indepen-dencia que acabaron con la aprobación del Estatuto Orgánico de Cabo Verde y en el que se marcaron las fases y la mecánica de la descolonización: un alto comi-sario Almeida Eça y un gobierno de transición de siete miembros: 4 del PAIGC y 3 portugueses. Previamente a la independencia debía elegirse una Asamblea Constituyente que sería la representante de la soberanía del archipiélago.

El control social del PAIGC se realizó con la colaboración de las FF.AA, que impidieron la concreción de una oposición política, pues los principales líderes anti-PAIGC fueron detenidos en enero de 1975 y enviados al Tarrafal, y más tarde deportados hacia Portugal.

El 30 de junio se procedió a la votación para la ANP. En ella solo se pudo presentar el PAIGC y participaron según cifras oficiales el 95% de la población. La independencia se procesó el 5 de julio de 1975.

En Sto. Tomé, el radicalismo de la Asociación Cívica hizo que entre el 28 de septiembre y el 3 de octubre el gobierno del territorio enviase una delegación a Gabón para entrevistarse con la dirección del MLSTP donde vivía exiliada, lo que significó el reconocimiento implícito de esa fuerza como única representante del territorio. Tras las conversaciones el MFA convocó una reunión en octubre en la que pedía a Lisboa que reconociese al MLSTP como único y legítimo repre-sentante del territorio. Lo que se hizo a mediados de octubre. Se iniciaron las conversaciones en Lisboa que prosiguieron en Argel, pero el MLSTP no quería convocar ningún plebiscito y las conversaciones estuvieron a punto de romperse a no ser por la mediación del ministro de exteriores argelino.

La fórmula fue la misma que en Cabo Verde: un alto comisario y un gobierno de transición hasta la independencia, con la convocatoria de votaciones para la Asamblea Constituyente. Para el 7 de julio y participando el 93% del censo. El día 12 se proclamó la independencia.

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Timor. Tres partidos se habían constituido en territorio antes de la dimisión de Spínola. La Unión Democrática de Timor (UDT), partidaria de la federación con Portugal, la Asociación Democrática de Timor (ADT) posteriormente deno-minada Frente de Timor Este Independiente (FRETILIN), partidaria de la inde-pendencia y la Asociación Popular Democrática de Timor (APODETI) favorable a la integración en Indonesia.

Tras el 28 de septiembre la correlación de fuerzas fue favorable al FRETILIN y se nombró a un nuevo gobernador, el teniente coronel Lemos Pires, con la indicación de iniciar el proceso de independencia.

El recelo a Indonesia facilitó en enero de 1975 un acuerdo UDT-FRETILIN con un programa de independencia gradual que preveía la asunción total de soberanía para el pueblo maubere en 1982, pero tras el 11 de marzo el proceso se radicalizó. En abril se creó el Comité de Descolonización constituido por la jerar-quía militar con la misión de negociar con los partidos la transferencia de la sobe-ranía que con la constitución de un gobierno de transición y la elección de una asamblea consultiva que elaboraría la normativa electoral y la ley sobre partidos para elegir una Asamblea constituyente en octubre. Con esa base se organizó la cumbre de Macao para perfilar el calendario final. Indonesia presionó a la UDT para romper la coalición con el FRETILIN que decidió, para no enfrentarse sólo a los otros dos grupos, no comparecer en Macao en inferioridad de condiciones (alegó que la APODETI era un partido fantasma y que el lugar adecuado no era Macao, sino Lisboa). De la cumbre salió la Ley constitucional, el nombramiento por Portugal de un alto comisario y la formación de un gobierno de transición compuesto por 5 miembros (tres de los movimientos y dos de Portugal), que debería convocar elecciones en octubre de 1976.

Tras la cumbre de Macao, el FRETILIN se radicalizó con la organización de zonas liberadas y controles de carreteras. La UDT y la APODETI acusaron al MFA de comportarlo y para acabar con estas prácticas la UDT organizó una manifestación el 8 de agosto junto con una huelga general el día 9 tras la cual al día siguiente se ocupó la sede de la policía, se apoderó de armas y cercó el Palacio del gobierno y ocupó la capital. Al día siguiente la UDT presentó un ultimátum al gobierno que en síntesis exigía la disolución del FRETILIN, la salida de Timor de dos dirigentes del MFA y de diversas personas a las que rotulaba como comu-nistas y la constitución de un ejército timorense.

El gobernador procuró negociar con la UDT y el FRETILIN, pero no hubo acuerdo. El 12 de agosto la práctica totalidad de los europeos (272 personas) se marcharon y dos días después se iniciaba la guerra civil. El gobierno se retiró

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protegido por paracaidistas a Atauro el 29 de agosto sin que las tropas portu-guesas hubiesen intervenido en el conflicto. El FRETILIN dueño de la situación envió un telegrama al COPCON para que Portugal reconociese inmediatamen-te la independencia del territorio evitando así la intervención de Indonesia. Posteriormente ante la inminencia de la invasión indonesia pidió un gobierno provisional que en 1976 convocase elecciones para una asamblea constituyen-te. Portugal para evitar lo inevitable procuró accionar la diplomacia internacio-nal, pero sin éxito. Hasta el 29 de noviembre ondeó la bandera Portuguesa en la isla, pero tras el 25 de noviembre y ante la correlación de fuerzas en Portugal proclamaron unilateralmente la independencia. Indonesia organizó entonces el Movimiento Anti-Comunista (MAC), englobando a la APODETI y a la UDT que pidió en Balibó la integración de Timor Leste en Indonesia. El 7 de diciembre se produjo la invasión masiva de la excolonia por el ejército indonesio. Seis días después de que el presidente Ford y su secretario de estado hubiesen abandona-do Yakarta. Después vinieron 27 años de guerra, en los que la heroica resistencia maubere consiguió, en mayo del 2002, la independencia.28

En Macao se constituyeron dos partidos: la Asociación para la Defensa de los Intereses de Macao (ADIM) y el Centro Democrático de Macao (CDM) que contó con el apoyo del MFA. El nuevo gobernador, el coronel García Leandro, procuró mantener buenas relaciones con Pekín y una política conservadora lo que le enemistó con el MFA local. La tensión concluyó con la repatriación del líder del MFA Catarino Salgado el 5 de julio, después de que venciese en las elec-ciones de abril de 1975 la ADIM con el 83% de los votos para designar el miem-bro de Macao que debía representar al territorio en la Asamblea Constituyente. A partir de entonces García Leandro que se mantuvo en el cargo más allá del 25 de noviembre gobernó sin excesivos problemas y con el beneplácito de Pekín.

5. CONCLUSIONES

El proceso de descolonización portugués, a pesar de las características diferen-tes de cada territorio, tiene trazos comunes: un mismo marco cronológico; una misma fuerza conductora, el MFA; y una misma meta final, conceder el control del ultramar a las guerrillas marxistas que eran las fuerzas que más se identifica-ban con la izquierda revolucionaria que entonces detentaba el poder en Lisboa. Pues ambos estaban convencidos de que luchaban por la misma causa: el triunfo del socialismo y la liberación de la humanidad del imperialismo y de sus males.

La correlación de fuerzas en Portugal incidió de forma clara en las colonias, ya que la política descolonizadora fue genéricamente dirigida desde Lisboa, en

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función no sólo de tratarse de un mismo proceso, sino también de que el impe-rio portugués era una máquina muy centralizada. Por eso hay que señalar que las rupturas del proceso revolucionario: 25 de Abril, 28 de Septiembre, 11 de Marzo e incluso el 25 de Noviembre perfilaron el rumbo, el ritmo y el sentido de la descolonización. Sin olvidar que el 25 de Abril fue básicamente el fruto de la búsqueda de una solución política para la guerra.

El proceso, desde el 25 de Abril hasta el 28 de Septiembre, estuvo marcado por la figura del general Spínola. Su modelo “descolonizador” estuvo orientado por un vago proyecto federal, más acorde con la “Unión Francesa” que con la Commonwealth y que la izquierda calificó de neo-colonial. Por eso era bási-co para Spínola que la guerrilla unilateralmente depusiese las armas y se auto transformase en un partido político más, para concurrir a unas elecciones cuyo resultado debía decidir el tipo de relación que cada territorio establecería con Portugal. Spínola pensaba que esto le permitiría aplicar su política sin proble-mas, porque si el futuro había de decidirse según la fórmula, un hombre un voto, quien controlaba numéricamente la población no eran las fuerzas guerrilleras sino Portugal, por lo que la victoria sería fácilmente asequible. No hace falta ser un halcón para darse cuenta de que este proyecto era de una tremenda inge-nuidad. La guerrilla, obviamente, no había combatido durante una década para abandonar sus posiciones, y más cuando el 25 de Abril no era sino la evidencia del fracaso del colonialismo, y si Portugal antes no había conseguido imponerse, peor lo tenía con libertades democráticas, pues la opinión pública lusa no sólo no se reveló unánime en el deseo de permanecer en el ultramar, sino que un amplio sector de la sociedad mostró inequívocamente los signos de cansancio por el largo conflicto. Como me indicó el General Spínola: “el pueblo portugués quería la paz al precio que fuese”.

Está claro que a la paz iba a preceder una negociación y para reforzarla la gue-rrilla intensificó las acciones bélicas, mientras que Spínola trató, para no conversar bajo presión, de suspender los contactos. Sin conversaciones lo único que restaba era de nuevo la guerra por lo que el MFA, que había hecho el 25 de Abril para aca-bar con las hostilidades, se mostró decididamente partidario de hacer concesiones a los nacionalistas a cambio de que cesasen los combates, por eso presionaron, en todo momento, al gobierno central para que transigiese, pues las tropas no enten-dían porqué habían de proseguir los combates cuando se había derribado al régi-men colonial, y pronto una ola de indisciplina se dejó sentir en todos los rincones del imperio, con compañías y unidades, incluyendo sus mandos, que se negaban a entrar en combate y se insubordinaban, incluso donde no había guerra.

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Por otro lado, a partir del día 26 de abril, el MFA se apoderó de los centros de poder político-militar, tanto en Guinea como en Mozambique, donde la guerra era más dura. En Angola el impasse entre la jerarquía formal y el nuevo poder emergente se alargó por algún tiempo, finalmente, también el MFA se asentó en la dirección del proceso. El MFA en África, incluso antes que en Portugal, marcó las directivas de la descolonización, cavando un agujero a los pies de Spínola, que se vio imposibilitado de aplicar la política que había diseñado. El pulso entre el MFA y Spínola se decidió en torno a la política colonial. La evidencia clara de su fracaso fue el reconocimiento el 27 de julio del derecho de las colonias a la inde-pendencia, que fue la puerta para iniciar la descolonización, aunque el camino no quedó definitivamente aclarado hasta su renuncia el 30 de septiembre, dando paso a la definitiva hegemonía del MFA en la conducción del proceso.

El primer país que alcanzó la libertad fue Guinea. Su proceso marcó profun-damente el resto de las independencias. Un partido único revolucionario tomó el poder en Bissau sin consulta popular, marginando a otros eventuales grupos creados tras el 25 de Abril, lo que se vino a repetir en los otros territorios. Así en África, la legitimidad se estableció alrededor de las fuerzas que habían com-batido militarmente al poder colonial y sólo en Asia hubo un proceso un tanto diferente. Pero en esencia el ascenso del MFA representó también el ascenso de las fuerzas que aparecían como aliadas suyas, es decir, los grupos más decidida-mente revolucionarios y ligados al comunismo.

Para conseguir imponer sus planteamientos al resto de la institución militar, educada en los valores coloniales que habían sido constitutivos del nacionalismo portugués, el MFA, organizado originariamente por los cuadros intermedios de los militares profesionales, se alió a los oficiales de complemento creando una malla que se extendió a todas las unidades, impidiendo que los mandos tradicio-nales pudiesen desistírseles, aunque inevitablemente se produjesen choques con la jerarquía que se subsanaron con la graduación de los oficiales de patente infe-rior para que ocupasen cargos de importancia. Así pues el modelo que el MFA empleó para asegurarse el control de las FF.AA. en las colonias fue trasplantado posteriormente a Portugal, para tratar de imponer en la metrópoli la misma polí-tica izquierdista que aplicaron en África.

También los grupos nacionalistas radicales en Santo Tomé, en Cabo Verde y en Timor, procuraron aplicar las técnicas que el PAIGC, el MPLA y el FRELIMO realizaron en sus países, creando “zonas liberadas” del poder colonial, aún des-pués que Portugal hubiese reconocido el derecho a la independencia, en un intento de crear mitos heroicos en su lucha de liberación, al tiempo que mos-

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traron igual tendencia a convertirse en partidos únicos, reclamándose como exclusivos representantes de sus respectivos pueblos. Así las dos colonias que se independizaron después de la caída de Spínola, Cabo Verde y Santo Tomé, lo hicieron bajo la égida del PAIGC y del MLSTP, respectivamente. Tendencia que se aceleró tras el 11 de marzo y que se reflejo en el FRETILIN, que pretendió excluir del futuro de Timor a los restantes grupos; e incluso en Macao, donde el CDM, partido de izquierda, deseó la ilegalización del partido de derechas.

En la última etapa las rupturas que se produjeron en el seno del MFA en Portugal, durante el ‘Verano caliente de 1975’ entre radicales y moderados, se alargaron a los territorios que quedaban aún por descolonizar. Así los pro-comunistas que domi-naban el MFA en Timor y en Macao se enfrentaron a sus respectivos gobernadores moderados. Mientras, el último alto comisario pro-comunista de Angola tuvo diver-gencias con el gobierno central, ya en poder de los moderados desde mediados de septiembre, y con el MFA del territorio, contrarios a aquella tendencia.

El balance de la descolonización en la óptica del MFA fue ejemplar: dejaron países de lengua portuguesa en África y contrariaron cualquier posibilidad de neo-colonialismo, entregando el poder a fuerzas progresistas. Mientras que para los sectores que la contestaron en su momento o lo hicieron después el resulta-do fue una gran catástrofe, pues cerca de 400.000 colonos debieron abandonar Angola y 150.000 Mozambique, pues se iniciaron guerras civiles que han durado hasta 1994 y 1992 respectivamente. Mientras que en Timor aún no ha concluido. En Guinea-Bissau la independencia supuso la ejecución sumaria de una parte significativa de los cerca de 7.500 soldados africanos de Portugal. En Cabo Verde y Santo Tomé se implantó la dictadura del partido único que realizó la indepen-dencia y que se ha mantenido en el poder hasta la década de los 90.

Con todo el balance no debe limitarse a un esquematismo simplificador, como han hecho sistemáticamente los detractores, sin tener en cuenta que:

la dictadura portuguesa no previno la descolonización veinte años des-pués que Francia, Gran Bretaña, Bélgica, Holanda... hubiesen desman-telado sus imperios. La política anacrónica del salazarismo-marcelismo reforzó el maximalismo de la guerrilla, supeditándola, con poco margen de maniobra, a la estrategia soviética. A mayor duración del conflicto mayor ayuda recibió la guerrilla y mayores compromisos adquirió ésta con sus proveedores.

La dictadura ahogó el debate en relación con el mantenimiento del ultra-mar a diferencia de lo que sucedía en el resto de los países occidentales

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democráticos y no permitió la emergencia de una corriente de opinión crítica con el colonialismo. Por eso la oposición democrática no tuvo una alternativa programática en este asunto con excepción de los comunistas.

Los militares que padecían la guerra en su propia carne, especialmente los mandos intermedios, que eran el alma del MFA, querían la paz de una vez por todas, la descolonización rápida les ofrecía ese objetivo y con ella coincidió toda la izquierda que, siendo sociológicamente mayo-ritaria tras 48 años de dictadura derechista, entendió que las guerrillas marxistas eran sus aliadas naturales, apoyándolas sin ambigüedades. Solo cuando el PCP trató de implantar el modelo soviético en Portugal a partir del 11 de marzo, los socialistas y el resto de las fuerzas no identi-ficadas con aquel proyecto lo abandonaron, pero entonces el destino de la descolonización ya estaba marcado.

El seguidismo civil en relación al poder militar se reveló con total crude-za durante el proceso descolonizador, pues los militares aparecieron tras el 25 de Abril revestidos de una capa de legitimidad popular y venera-ción que las fuerzas políticas sólo consiguieron disputarles tras las elec-ciones de abril de 1975, cuando la descolonización ya era irreversible. La responsabilidad militar, o del MFA si se quiere, en este proceso debe ser también matizada por el hecho de que abandonar el ultramar era una “patata caliente” que ninguna formación partidaria quiso asumir por el elevado coste político que conllevaba.

Los comunistas pro-soviéticos fueron la única fuerza que mantuvo la misma política descolonizadora a lo largo de toda la revolución, y con el objetivo de aplicarla ocuparon los centros de poder a lo largo de 1974-75. Así el General Vasco Gonçalves fue el primer ministro de julio de 1974 a septiembre de 1975 (II, III, IV y V gobiernos provisionales) y militares que le eran afectos se instalaron en los lugares de dirección militar hasta noviembre de 1975.

Desde esta complejidad de factores la descolonización difícilmente hubiera podido ser diferente.

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NOTAS1 ANTUNES, J. Freire – O império com pés de barro. Lisboa: D. Quixote, 1980. Pág. 84.

2 PALMA FERREIRA, J. – As eleições de Outubro de 1969. Documentação básica. Mem Martins: Ed. Europa-américa, 1970. Pág. 290.

3 DURÃO, R. – Capitular, porquê? Expresso Revista (2.VI.1973). N.º 22, pp. 13-14.

4 “Anexo ao Relatório de Acção Psicológica Anual”. (1972). Texto policopiado. 12 pp. Archivo particular.

5 SCCI, “Relatório de Informações, n.º 6/74 (31.I.74) País: Tanzânia. Assunto: Apoios militares de origem comunista”, 1pág. Archivo particular.

6 Con anterioridad ese militar había propuesto la realización de un golpe de Estado en las reuniones del MOCAP celebradas en San Pedro de Estoril (24.XI.73), Óbidos (1.XII.73), Costa de Caparica (5.XII.73).

7 SPINOLA, A. – País sem rumo. Lisboa: Ed. Scire, 1977. Pág. 378.

8 COMISSÃO DE ASSUNTOS POLÍTICOS” Relatório. Situação sócio-política. Apêndice 1 (parte do Movimento das Forças Armadas, Relativo ao dia 26 de Abril de 1974. Ejemplar n.º 31. Bissau. 201800JUN74. SECRETO. 7 Pp. Archivo particular.

9 Actas do MFA da Guiné. Texto manuscrito. Archivo particular

10 COMISSÃO DE ASSUNTOS POLÍTICOS – Relatório. Situação Socio-política. Apéndice 1 (Parte de Movimiento das Forças Armadas, Relativo ao período 290800JUN A 010888 JUL 74. Ejemplar n.º 35/74. Secreto. Archivo particular.

11 Assembleia Geral do MFA na Guiné. Acta. Bissau, 1 Junho 1974. Texto policopiado. 12 Pp. Archivo particular.

12 AFONSO, Aniceto – História Contemporânea de Portugal. O Estado Novo. Lisboa: Amigos do Livro, 1985. Pág. 98.

13 Documentos para a história da descolonização de Mozambique. Baluarte, nº 1, enero 1976. Pág. 6.

14 Revolução. N.º 3 (14.VI.74). Pág. 10. Luta popular. N.º 20. (13.VI.74). Pág. 4.

15 Entrevista con el Dr. António Almeida Santos, Lisboa, 9.VI.1986. Fue ministro de Coordinación Interterritorial (1974-75). En la actualidad es presidente del Parlamento portugués.

16 VELOSO, António Elísio PIRES - Sobre a descolonização de São Tomé e Príncipe. Texto mecanografiado y manuscrito. Pp. 1 y 3. Archivo particular.

17 Entrevista con el Coronel António Arnão Metelo, Lisboa, 8.VII.1996.

18 Entrevista con el Capitán-teniente Catarino Salgado. Fue jefe de la Defensa Marítima de Macao de 1972 a 1975.

19 Memorandum formação do Governo Provisório de Angola. 21.IX.1974. Documento leído ante gravador. Archivo particular.

20 VELOSO, António Elísio PIRES - Sobre a descolonização de São Tomé e Príncipe. Texto mecanografiado y manuscrito. Pp. 1 y 3. Archivo particular.

21 Acta da Reunião da Comissão Coordenadora do Programa-Forças Armadas Portuguesas, 25 Outubro 1974, 21.30h. IAEDN. Texto policopiado. 2 Pp. Archivo particular.

22 MOREIRA, Teresa de Sá – Rosa Coutinho: continuo a pensar e a agir pela transformação da sociedade. Notícias Maputo. (29.1978). Pág. 8.

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23 CRUZ, Pompilio da - Angola, os vivos e os mortos. Lisboa: Ed. Intervenção, 1976. Pp. 221.

24 Os soldados recusam-se a embarcar para Angola. Luta Popular. N.º 75. (27.VII.1975). Pág. 1.

25 Processo de descolonização; Melo Antunes rompe o silêncio em entrevista ao Expresso. Expresso Revista. (17. II.1979). Pág. 1.

26 Entrevista con el General Manuel Diogo Neto, Lisboa, 19 de marzo de 1985. Fue miembro de la JSN del 25 de Abril al 30 de septiembre de 1974.

27 Entrevista con el Dr. Almeida Santos, cit. Sobre la situación actual de Angola ver: SÁNCHEZ CERVELLÓ, J. - Angola, 32 años de conflictos armados (1961-1993). Tiempo de Paz. N. º 27-28, primavera-verano 1993. Pp. 90-100. ID - Conflictos en África suroccidental: Angola. Curso sobre conflictos y cooperación en África Austral. Madrid: CMUNSA, 1999. 15 pp.

28 El texto fue redactado en 1998, afortunadamente el vaticinio se ha cumplido y un nuevo horizonte de esperanza y sacrificio espera a Timor Lorosae independiente.

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Com a Constituição de 1976 ficaram definidas as traves mestras do Estado de Direito e lançadas as bases do sistema de protecção social português.

Acontece que o edifício institucional nela previsto teve de enfrentar, desde o início da sua construção, alguns choques de grande envergadura, induzidos quer pelas crises económicas internacionais dos anos 1970, quer pela movimentação social e político-partidária desencadeada pela Revolução de Abril.

A década que começa em 1974 é marcada pela nacionalização da maior par-te das grandes empresas e por outras intervenções do Estado na economia, por uma Reforma Agrária com enorme impacto social e por dois exigentes progra-mas de ajustamento na balança de pagamentos conduzidos pelo FMI.

Por força da adesão à Comunidade Europeia, seguiram-se a partir de 1985 algumas reformas de fundo nas instituições, regulamentações e mecanismos de funcionamento da economia e do mercado de trabalho, bem como a concreti-zação de um plano de privatização de empresas nacionalizadas e de redução do peso do Estado no sistema produtivo.

O esforço de adequação das políticas económicas às exigências de convergência nominal de Maastricht e, depois, ao modelo de disciplina orçamental do Pacto de Estabilidade e Crescimento revela, por seu turno, para anos mais recentes, toda a

TRINTA ANOS DE DEMOCRACIA:MUDANÇAS SOCIAIS E INCONSISTêNCIA INSTITUCIONAL

José Madureira Pinto  | Faculdade de Economia (FEP) e Instituto de Sociologia da

Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP)

Virgílio Borges Pereira  | Departamento de Sociologia e Instituto de Sociologia da

Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP)

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amplitude dos impactos a que estruturas produtivas e equilíbrios macroeconómicos têm estado submetidos,1 impactos esses que hoje deixaram, aliás, de poder ser enfren-tados por alguns dos instrumentos de ajustamento económico convencionais.

No plano político-institucional, os choques endógenos e exógenos que pon-tuaram todo este período traduziram-se, desde logo, por calendários eleitorais intensos e, portanto, por grande instabilidade governamental.

Como é sabido, em Abril de 1974, o País defrontava-se pela primeira vez em cinquenta anos com a possibilidade real da democracia e, para o campo políti-co em mudança acelerada que se formava, havia na prática apenas dois grandes protagonistas partidários disponíveis: o Partido Comunista Português, o único a sobreviver à Ditadura, e o recém-formado Partido Socialista, um partido então dotado apenas de um centro e ainda pouco consistente do ponto de vista institu-cional. Os partidos que viriam a completar o campo político português que hoje conhecemos teriam, obviamente, fundação e formação posteriores.

No quadro político em gestação, onde a configuração das matrizes ideológicas e institucionais vai, desde muito cedo, ser pressionada pela urgência em concor-rer a eleições, não espanta (se deste racíocinio exceptuarmos o PCP, que se afirma como um claro partido de massas ou de militantes) que tanto no PS como no PSD - os partidos que se posicionarão no centro político e, desde então, têm vindo a partilhar, de um modo mais ou menos alternativo, o poder do Estado -, seja dífi-cil estabilizar propriedades sociais e simbólico-ideológicas relativamente claras. Tudo se passa como se, em trinta anos, estes dois partidos tenham sintetizado, e por essa via recriado, propriedades que, noutras formações sociais, levaram fre-quentemente mais de um século a estruturarem-se de um modo apurado. O resul-tado mais relevante deste processo – que se articula com a necessidade de mobi-lizar massas, mas que não resulta no desenvolvimento de formações partidárias de massas, e que é sensível à vontade de agarrar todos, mas que não redunda no desenvolvimento apurado de partidos de tipo catch-all – é que PS e PSD nunca chegam a ser organizações com características idênticas às dos grandes partidos mais conhecidos noutras democracias europeias. O facto de partilharem carac-terísticas do tipo clássico e do tipo novo de partidos é, por isso, o traço mais re-gularmente destacado pelas investigações conduzidas neste domínio. Para além das dificuldades de estabilização de matrizes ideológicas que resultam dessa inde-finição, identificam-se regularmente debilidades institucionais, bem como pro-priedades tendenciais de um tipo ainda mais recente de partido, o partido-cartel, definido sobretudo pela urgência de o mesmo se interligar sistematicamente com o Governo e o Estado como forma de garantir recursos.2

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Sendo a institucionalização da democracia em Abril de 1974 um profundo factor de mudança social e política, a configuração do campo político em torno da urgência das eleições e a orientação dos dois partidos centrais para o Governo e o Estado têm, então, gerado quadros de acção político-partidária onde serão evidentes as dificulda-des de constituição de agendas programáticas próprias, robustas e consequentes, e se multiplicam, naturalmente, cenários de inconsistência institucional.

Acontece que, a par e em articulação com este conjunto de mudanças, outras importantes transformações sociais de fundo foram ocorrendo no período que queremos analisar.3

2

Uma dessas transformações prende-se com a alteração da natureza e funções do mun-do agro-rural na sociedade portuguesa e pode aferir-se, mesmo que grosseiramente, pela diminuição drástica do peso da agricultura na actividade económica (enquanto em 1974, a proporção de activos no sector primário correspondia a quase um terço do total, ela terá baixado hoje, de acordo com o Censo de 2001, para cerca de 5%).

É certo que, em determinadas regiões, sobretudo no interior do País, a agri-cultura continua a ser a actividade económica predominante. São, porém, por vezes, tão incipientes, aí, os níveis de produtividade atingidos, e tão débil, ainda, o grau de diversificação dos respectivos tecidos produtivos, que se tem tornado progressivamente mais difícil fixar nessas regiões as gerações jovens, cada vez mais escolarizadas. Desvitalização económica, envelhecimento e crescente de-pendência dos orçamentos familiares em relação a prestações pecuniárias pro-videnciadas pelo Estado – eis alguns dos sintomas e geradores do isolamento e mal-desenvolvimento das áreas em causa.

As taxas de urbanização, por sua vez, cresceram em termos globais médios de forma significativa; mas, para perceber as tendências de ocupação do território na-cional nas últimas décadas, mais importante do que invocar tais cifras será atender ao facto de, durante o período em causa, se ter intensificado o processo de concen-tração demográfica em torno das grandes cidades tradicionais (aliás com notório declínio demográfico e envelhecimento destas últimas) e de, mais recentemente, se estar consolidando uma espécie de “arquipélago” de aglomerados urbanos de média dimensão em zonas do interior globalmente caracterizadas por forte repul-são demográfica. São transformações que, em conjugação com o desenvolvimento da malha de urbanização difusa, levaram a grandes alterações na paisagem agrária, na procura e oferta de alojamento, nas lógicas de ordenamento do território e, cla-ro, nos modos de vida (urbanos e rurais), em Portugal.4

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A promover, acompanhar e enquadrar este processo de reorganização global do território nacional, as instituições do poder local adquiriram evidentemente enorme importância. No entanto, a persistência, mesmo no interior de unidades territoriais de âmbito relativamente restrito, de assimetrias e desequilíbrios de desenvolvimento (que vários indicadores revelam com toda a evidência) tem vindo a mostrar os limites de eficácia das autarquias no combate pela coesão ter-ritorial. Percebe-se, assim, até que ponto se torna urgente encontrar o enquadra-mento institucional de nível supra-municipal adequado a estratégias de desen-volvimento sustentado do todo nacional.

3

Juntamente com as transformações já enunciadas, foi o próprio regime demográfico que, no curto período de consolidação democrática, sofreu abalos significativos.

Há três décadas, a taxa de fertilidade era, entre nós, comparativamente muito alta; hoje, baixou para cerca de metade, situando-se em torno de valores próximos da média europeia (reconhecidamente reduzida, como se sabe). Assistiu-se, por ou-tro lado, no mesmo período, ao aumento da proporção de idosos na população resi-dente, primeiro nas regiões economicamente deprimidas do interior, mas, depois, em todo o território, nomeadamente nos grandes centros urbanos do litoral.

A conjugação das duas tendências conduziu a taxas de envelhecimento no topo e na base fortemente contrastantes com as verificadas trinta anos antes, fazendo au-mentar a pressão, quer em termos de procura, quer de sustentabilidade financeira, sobre um sistema de protecção social ainda em amadurecimento.

Mas a mudança na composição da população portuguesa integra uma outra “re-volução”, agora a nível de movimentos migratórios, cujo retrato se pode esboçar as-sim: eramos há trinta anos grandes exportadores de mão-de-obra (e de desemprego...) sobretudo para a Europa; absorvemos, na segunda metade dos anos 70, bastante mais de meio milhão de pessoas oriundas da ex-colónias; somos, hoje, país receptor de ci-dadãos vindos de África, da América, de alguns países asiáticos e da Europa de Leste. Habituados secularmente a revermo-nos na diáspora lusitana, eis-nos colocados pe-rante o desafio de acolher e, na medida do possível, integrar um contingente que se aproxima dos 5% da população residente e dos 9% do emprego total. E tudo isso, sem podermos perder de vista o conjunto de portugueses que continua a ter de emigrar, muitas vezes em regime temporário e com contratos de trabalho precários – assim reactivando paradoxalmente os próprios estímulos à imigração.5

Só lentamente se tem constituído o enquadramento legislativo e institucional adequado a acolher, sem disrupções excessivas, o fluxo imigratório que tem Portugal

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como destino. Sendo, além disso, este um domínio especialmente propício a promo-ver o desfasamento entre produção e aplicação da lei, já se vê até que ponto se hão-de localizar aqui factores de conflitualidade e de dissolução de direitos sociais básicos.

4

Ao longo dos trinta anos de democracia, Portugal passa, em matéria de participa-ção das mulheres no mercado de trabalho, de taxas comparativamente muito bai-xas para taxas comparativamente muito altas. Isso tem enormes consequências em domínios da vida social que entre nós se têm furtado à objectivação, tais como os que se referem à guarda de filhos menores, aos modos de acompanhamento de ge-rações mais jovens e, de um modo geral, aos equilíbrios afectivos de âmbito fami-liar. Na ausência de enquadramentos institucionais adequados (isto é, capazes de conter dentro de limites razoáveis as contradições e disfuncionamentos operados por múltiplas e intensas mudanças sociais), essa viragem estrutural na sociedade portuguesa pode, de facto, gerar efeitos em cadeia dificilmente controláveis.

Segundo estudos comparativos recentes, o tempo médio dedicado regular-mente pelas mulheres, e, em geral, os pais, ao acompanhamento, nomeadamente escolar, dos seus filhos é, em Portugal, país que muitos exigem que continue a ser de “bons e brandos costumes”, francamente mais baixo do que a média europeia e muito mais baixo do que em países tidos por inconformistas relativamente ao modelo tradicional de família. O que acontece é que, entre nós, as mulheres que trabalham são confrontadas, por um conjunto de factores muito variados (debili-dade das estruturas produtivas, sistemas de protecção social rudimentares, trans-portes públicos deficientes, etc.), com salários relativamente baixos, horários sobrecarregados, tempos médios de deslocação casa-trabalho e/ou casa-escola muito altos e, portanto, também, com menor disponibilidade para apoiar os mais jovens nos planos afectivo e do desenvolvimento cognitivo. Com a persistência de padrões de divisão do trabalho de âmbito familiar que as penalizam fortemen-te, não é, aliás, de excluir a possibilidade de, face às tendências de envelhecimento e à fragilidade dos sistemas de protecção, serem as mulheres a responsabilizar-se, mais uma vez, pela guarda, apoio e acompanhamento dos dependentes, o que, a verificar-se, poderia conter, como efeito perverso, um retorno em força à esfera doméstica.6 Escusado será acrescentar que, sendo esse retorno uma consequência objectiva de inconsistências várias no triângulo institucional família/sistema de protecção social/mercado de trabalho, não deixará de encontrar racionalizações ideológicas que favoreçam a sua reprodução.

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5

Outro exemplo de inconsistência institucional é o que diz respeito às relações entre a escolarização e as dinâmicas (talvez melhor os impasses) da formação profissional.

Não obstante continuar a ser preocupante, sobretudo no universo dos activos, a proporção dos portugueses com baixos níveis de instrução, forçoso é reconhecer que, os progressos obtidos, no Portugal democrático, em matéria de acesso das po-pulações à escola e à instrução, são indiscutíveis. Impressionam pela amplitude, mas sobretudo pelo ritmo a que globalmente se verificaram – o que se explica, quer pela magnitude do esforço de democratização do ensino, quer pela incipiência dos nossos níveis de alfabetização no início do período sob análise. Temos, hoje, taxas de parti-cipação das populações jovens no ensino superior que não se afastam significativa-mente da fasquia europeia, ao mesmo tempo que se tem conseguido generalizar nas gerações mais jovens o cumprimento da escolaridade obrigatória. Nesse movimento, difundem-se saberes, competências, disposições cívicas, aspirações; mudam-se práti-cas culturais, hábitos de consumo e até formas de intervir na esfera pública; e também se vão alterando perfis de mobilidade enraizados no tecido social português.

A verdade, porém, é que, simultaneamente, surgem quebras tão surpreenden-tes como preocupantes na frequência e conclusão do ensino secundário, ascen-dendo, por outro lado, a níveis muito elevados as taxas de insucesso e abandono em todos os graus de ensino.7 Sabe-se que tais fenómenos são determinados, em casos extremos, por estratégias familiares de fuga à pobreza que não dispensam o trabalho de menores, assim como, em circunstâncias menos dramáticas, mas muito comuns num País que chegou tarde à generalização do ensino básico, por desfasamentos notáveis entre, por um lado, o “capital cultural herdado” no seio familiar e, por outro, os padrões dominantes da cultura escolar.

Em qualquer caso, o avanço conseguido em termos de democratização social e de formação das gerações mais jovens parece ficar aquém do patamar que o investimento educativo realizado poderia propiciar. Não será de estranhar então que, num contexto em que se multiplicam insistentes apelos à participação de todos na sociedade cognitiva e da informação, pesadas bolsas de iliteracia persis-tam em largos sectores da população portuguesa.8

E não é preciso sair do domínio educativo em sentido lato para se encontra-rem outros sinais de inadequação e incoerência institucionais. Assim, tomando o subsistema da formação profissional e da educação ao longo da vida, têm-se de-tectado insuficiências no modo como ele se relaciona tanto com o ensino regular, como com o mundo do trabalho e das empresas. A difusão e reconversão de qua-lificações profissionais, tão necessárias à modernização do aparelho produtivo

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nacional e à protecção social das gerações menos escolarizadas, não terão tido, assim, o impulso que seria de esperar face à magnitude de meios financeiros dis-ponibilizados para o efeito e à própria natureza dos consensos e acordos obtidos nesta matéria em sede de concertação social.

Só falta acrescentar que a resistência de uma parte do sector empresarial (e, por maioria de razão, da economia informal e subterrânea) à criação de condições de inserção profissional qualificantes constitui o outro lado dos problemas nacionais nesta matéria. Sem o reconhecimento e valorização, pelas empresas e outras or-ganizações económicas, das competências difundidas pelo sistema educativo e de formação, jamais o investimento na valorização dos “recursos humanos” obterá taxas de retorno aceitáveis. Ora, neste aspecto, as informações que é possível obter quer sobre propensões à inovação tecnológica e organizativa no tecido empresa-rial português, quer sobre a extensão e penetração, nesse mesmo tecido, das várias modalidades de economia informal (refractárias, por definição, a estratégias sus-tentadas de formação profissional) conduzem a algum pessimismo.

6

O conjunto de transformações referenciadas traduz-se e é determinado por uma assinalável recomposição da estrutura de classes dos activos.9 Um dos traços mais relevantes dessa recomposição passa pela perda de representatividade estatística e influência social dos lugares de classe mais directamente envolvidos com a agri-cultura. Se, no que diz respeito ao campesinato, se detectam no período em análi-se oscilações e ambiguidades na tendência descendente, o que, por seu turno, se explica pela resistência de uma agricultura familiar de baixa produtividade, hoje nas mãos de uma população idosa ou, excepcionalmente, de um segmento de agricul-tores mais jovens, pluriactivos ou temporários, já quanto aos assalariados agrícolas e ao próprio patronato o declínio foi muito acentuado. Exceptuando as regiões do País em que a agricultura se modernizou e intensificou relações com o mercado, o peso daqueles dois grupos tornou-se, de facto, residual. Também o universo do proletariado industrial sofreu forte redução, sobretudo depois de 1981, deixando de ser, definitivamente (tudo o indica), o lugar de classe modal na sociedade portuguesa. Sucede-lhe nessa posição a pequena-burguesia de execução, basicamente assimilá-vel ao conjunto de assalariados das actividades terciárias sem funções de direcção e enquadramento. Com a extensão do processo de escolarização e o reconhecimento, ainda que por vezes relutante, dos efeitos deste no campo económico, assiste-se ao longo dos últimos trinta anos a um reforço do peso estatístico e do protagonismo social dos técnicos e outros assalariados de enquadramento. Acrescenta-se a este

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protagonismo o dos empresários e dirigentes, conjunto muito heterogéneo, nomea-damente em termos de qualificações e capital económico.

Transversalmente a esta recomposição, outra se perfila – a que decorre da já assinalada acentuação da participação das mulheres no mercado de trabalho – sem dúvida, uma das mais discretas, silenciosas e emancipadoras mudanças decorrentes do processo de democratização português (de facto, uma genuína “conquista de Abril”).

Se, no espaço de trinta anos, foram tão sensíveis as recomposições da estrutu-ra de classes, então é de prever que neste período se tenha assistido a processos de mobilidade social intergeracional muito vivos. A eles está associada, por sua vez, uma espécie de revolução geradora de fortes confrontações nos sistemas de disposições, aspirações e expectativas interiorizados nos membros das diferen-tes gerações em presença, bem como no interior dos próprios lugares de classe, dando lugar a fenómenos de (in)comunicação, a dissonâncias éticas, estéticas e políticas, ora bem identificáveis, ora relativamente difusas.

Reside aqui, seguramente, um dos aceleradores mais notáveis do quadro de inconsistência institucional que temos vindo a traçar.

7

A percepção de ingovernabilidade do País, que, frequentemente associada à eli-são da sua dimensão política, é partilhada por tantos portugueses, radica, porven-tura, em grande parte, na consciência mais ou menos difusa das dissonâncias, dos desequilíbrios sociais e dos desajustamentos institucionais que vimos descreven-do. A desconfiança em relação ao Estado e à Administração Pública, bem como a tendência para o incumprimento da lei, duas características que frequentemente são atribuídas a uma espécie de matriz genética dos portugueses, vem acentuar os sentimentos de impotência dos cidadãos e, por essa via, contribui para a reprodu-ção de um ciclo vicioso de inconsistência institucional.

Acresce que, não obstante ser cada vez mais consensual a afirmação de que os processos sociais não são decomponíveis em dimensões estanques, tem sido difícil consolidar, entre nós, concepções políticas e metodologias de intervenção que privilegiem o intercâmbio em vez do isolamento institucional, a partilha de recursos e informações em vez do usufruto particular dos mesmos, a coordena-ção de esforços em vez da sua duplicação inconsequente.

Excesso de burocracia, sobreposição de funções e serviços, discricionarie-dade no relacionamento com os utentes nos serviços públicos, falta de legibili-dade da máquina do Estado” eis como se manifesta, na perspectiva do cidadão

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comum, o carácter fragmentário e desconexo das orientações políticas e práticas da administração. A forma mais “racional” de as enfrentar pode, então, passar a ser, para muitos, a mera dissidência ou então o contorno das normas e institui-ções formais, com a correspondente aproximação a vias de resolução dos proble-mas situadas na fronteira da ilegalidade.

Ensaiar a compreensão sociológica da tão mencionada tendência dos portugue-ses para o incumprimento da lei é uma tarefa que obriga a ter em conta a especi-ficidade dos processos de aprendizagem e de socialização em desenvolvimento na sociedade portuguesa.

Assim, num País em que, devido a vários dos factores que temos vindo a refe-renciar, apenas os grupos mais jovens da população têm tido um acesso gene-ralizado à educação escolar (e, mesmo assim, com as contradições já assinala-das), está, fundamentalmente, por concretizar o processo, de âmbito familiar, de estabilização cultural de disposições orientado para a promoção de práticas e representações estruturadas em torno do que uma certa sociologia qualificaria de cultura de participação” pressuposto de base de uma vida cívica democrática alicerçada na interconfiança e na reciprocidade.

Por outro lado, sendo sabido que só muito lentamente tem a escola consegui-do relacionar-se eficazmente com públicos subitamente muito diversificados, compreender-se-á porque são escassos os resultados do esforço de generaliza-ção da cultura cívica que nela estariam potencialmente contidos. Neste sentido, quer os valores nucleares do civismo quer os da participação cidadã, incluindo em ambos o do respeito e o do fazer respeitar a lei, poderão ter também na esco-la um espaço de difusão restrita.

Por fim, sem querer diabolizar o lugar dos media na construção das ideologias modais no interior das sociedades, não será difícil aceitar que muitos dos con-teúdos e programações que privilegiam coloquem dificuldades à construção da cultura cívica, nomeadamente entre as gerações mais jovens.

Na sociedade da informação em que, no espaço de trinta anos, estamos ten-dencialmente a integrar-nos, e depois de meio século de sociedade com pouca ou nenhuma informação, é também uma forte interrogação sobre o que deverão ser as missões de serviço público no domínio da comunicação social que teremos de efectuar. Igualmente relevante será assumir o trabalho, colectivo, de articu-lação do potencial educacional próprio dos media com o de outras instâncias de formação de cidadãos e, em particular, com as próprias escolas. Trata-se afinal de corrigir um caso de inconsistência institucional verdadeiramente inaceitável.

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8

Percebe-se, à luz das considerações precedentes, que as situações de pobreza, infelizmente ainda tão comuns no País, favoreçam o desenvolvimento de certas formas de delito e de incumprimento da lei.

Tem-se falado, a propósito de populações fragilizadas pela privação de recursos económicos e escolares, em “cultura de pobreza”,10 servindo a expres-são para dar conta da tendência dos mais pobres, imposta pelo conjunto das condições estruturais da sua existência, para: centrando-se no imediato, des-curarem o investimento no futuro (o que leva frequentemente a aspirações consumistas desajustadas); valorizarem o recurso a expedientes de angariação de rendimentos que não passam pelo exercício de uma profissão regular, tanto mais quanto esta está muitas vezes fora do seu alcance; e, ainda, desenvolverem qualidades de sagacidade e de convivência fácil com a transgressão, transmu-tando-as em recurso “sui generis”.

Pois bem: em contextos que favoreçam a emergência de combinatórias institucio-nais objectivamente inconsistentes e permissivas (por exemplo: economia informal/incentivo ao trabalho de menores/ausência de rede policial de proximidade/aloja-mento em espaços fechados sobre si próprios e estilhaçados em termos urbanísticos/acesso dificultado aos serviços da administração pública/justiça morosa/acção social incipiente...), é então de admitir que, no universo dos mais pobres, surjam propensões elevadas ao incumprimento, embora também se possa prever que, na generalidade dos casos, este seja, em termos relativos, um “pequeno” incumprimento.

Bem diferente é a situação de alguns daqueles que se caracterizam por tra-jectórias de ascensão baseadas na acumulação rápida de recursos económicos e de capital social (relacional). Havendo tendência para se desenvolver, também neste âmbito, e diferentemente do que é característico de outros sectores sociais relativamente favorecidos, alguma propensão para o imediatismo, o expediente, o consumo excessivo, são, no entanto, notáveis as diferenças de comportamen-tos nos domínios que nos têm aqui interessado.

Digamos, sinteticamente, que o “pequeno incumprimento” fomentado pela “cultura da pobreza” tende a ser substituído, aqui, por uma espécie de incum-primento “especulativo”. Ou seja: perante confluências de falhas institucionais homólogas das anteriormente referidas, a diferença de escala em matéria de recursos e oportunidades disponíveis promove modalidades de incumprimento e acesso a vantagens que são quantitativa e qualitativamente distintas. Num caso, existe, sobretudo, incumprimento como expediente de sobrevivência; no outro, o incumprimento será, sobretudo, uma estratégia de acumulação.

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Tudo se pode passar, então, como se, até no desrespeito da lei – que num Estado de Direito se espera seja escrupulosamente reprimido – a desigualdade no acesso aos recursos económico-sociais desse lugar ao acentuar de dualis-mos. Dualismos tanto mais iníquos, quanto mais se verificar a tendência do sistema judiciário para punir (ainda que com atraso) o pequeno delito e ignorar ou deixar prescrever o macrodelito.

9

Recorremos profusamente ao longo desta comunicação ao conceito de inconsis-tência institucional, presumindo que é óbvia a sua heuristicidade, mas abdican-do de qualquer preocupação de fundamentação teórica substantiva.

Para tentarmos, nesta altura, compensar parcialmente esta ausência, começare-mos por recordar que o conceito de instituição é comummente utilizado em socio-logia para dar conta de complexos relativamente autónomos de práticas regulares, sancionadas por conjuntos específicos de normas e papéis interligados, que contri-buirão para a reprodução das estruturas sociais. Nesse sentido, fala-se, por exemplo, de instituições económicas, que asseguram e regulam a produção e distribuição de bens e serviços, de instituições políticas, através das quais se regula o uso e o acesso ao poder, de instituições familiares, que asseguram a reprodução biológica e as dinâ-micas várias da socialização, de instituições culturais e educativas, que definem as condições sociais da produção e acesso a saberes e bens simbólicos.

Fora dos quadros teóricos marcados pelos pressupostos mais ortodoxos do estruturo-funcionalismo, há um reconhecimento generalizado, na sociologia, de que as instituições não são entidades imutáveis nem essências absolutas da natureza humana, são, isso sim, configurações de relações sociais em permanen-te mutação e que entre si estabelecem laços de interdependência, eles próprios eminentemente instáveis. Por isso é frequente o refúgio da pesquisa sociológica na ideia de institucionalização, e não tanto na de instituição.

Perante processos sociais como os que entre nós se desenvolveram após o 25 de Abril de 1974, só pode crescer a convicção de que a análise sociológica centrada em quadros institucionais rígidos é inadequada.

Vimos, por exemplo, como no campo político e numa instituição fundamen-tal como é o Estado, a criação ex novo de partidos não impediu sucessivos proces-sos de ajustamento a choques e transformações sociais exógenos, dando lugar a configurações institucionais e modalidades de acção política sui generis.

Por sua vez, o campo das actividades económicas e do emprego assistiu a uma revolução que nos transportou de uma sociedade marcada pela agricultura e pelo

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modo de vida camponês para uma sociedade (sub)urbanizada, orientada por valores modernos e pós-modernos. Enquanto, por outro lado, através da emergência de um sistema regulado de relações industriais, se foi consolidando uma zona de empregos formalmente protegidos, não deixou de se estender, no mesmo campo, o espaço de manobra das actividades informais e da precariedade laboral extrema.

Também no plano das instituições familiar e educativa o panorama a que o pro-cesso de democratização conduziu é bem elucidativo da plasticidade e variedade das transformações ocorridas. Uma sociedade juvenilizada e com uma enorme maioria de mulheres acantonadas no reduto físico e simbólico da domesticidade metamorfo-seou-se, em três décadas, em sociedade envelhecida com grande participação do sexo fraco em segmentos do mercado de trabalho outrora reservados ao sexo forte, sem que, simultaneamente, mudassem substancialmente as regras e as formas – que por vezes mais parecem autênticas leis de bronze – da divisão do trabalho doméstico. A escola básica deixou de ser um privilégio destinado a um minoria para se alargar, mais no acesso do que em condições de sucesso, a uma maioria, interferindo activamente, ainda que nem sempre com realismo, nos sistemas de aspirações sociais, nomeada-mente os que dizem respeito às transições para a vida activa. Os media invadiram o imaginário da generalidade dos cidadãos, distribuindo instrumentos de reflexividade mas impondo também limites ao seu uso emancipador, não sem que fossem cortadas pontes institucionais óbvias entre eles e outros pólos do campo cultural e educativo.

Para tentar assinalar de forma sintética e expressiva a especificidade do mo-vimento de configuração e ajustamento institucional decorrente do processo de democratização do País, recorremos, então, à expressão inconsistência institucio-nal. Trata-se da transposição de uma solução conceptual adoptada na teoria das classes e da estratificação social, sob a designação de “inconsistência de status”. Tem-se reservado esta última fórmula, para dar conta dos efeitos que, no plano das disposições, aspirações e comportamentos dos actores sociais, decorrem do seu posicionamento em sistemas de estratificação e de hierarquia de status emi-nentemente pluridimensionais. A descoincidência entre posicionamentos parce-lares conduz a “perfis de status” diferenciados e sugere a identificação de “direc-ções de inconsistência” várias, uns e outras muito relevantes para perceber certas particularidades dos comportamentos individuais e da interacção social.

Na análise que propusemos, multiplicaram-se as referências a estádios de desen-volvimento da sociedade portuguesa caracterizados por ritmos de maturação insti-tucional muito desiguais, por incompletudes na interligação entre normas e papéis das diferentes instituições, por descoincidências notáveis entre comportamentos prescritos e comportamentos efectivados, por articulações interinstitucionais débeis

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e disfuncionais. Perante o enunciado de tantas clivagens presentes no processo de transformação social dos últimos trinta anos, então não parece abusiva a trans-posição conceptual sugerida.

10

Observe-se, para terminar, que talvez seja a percepção mais ou menos difusa dos desequilíbrios e desajustamentos que designámos por “inconsistência ins-titucional” que está na base da reivindicação, muito generalizada entre nós, de “reformas estruturais”.

A verdade é que, contrariamente ao que por vezes se pensa, a persistência de tais disfuncionamentos, para além de ter, como vimos, causas que em última análise remetem para o complexo de traços estruturais da sociedade portuguesa, não radica tanto em falta de iniciativa ou de produtividade no plano legislativo, como, sobretudo, no desfasamento entre intenções e conteúdos das leis, por um lado, e criação de condições para a sua aplicação efectiva, por outro.

A tendência para mudar de referenciais normativos, muito antes de estarem testadas com rigor a sua fecundidade e adequação práticas, tendência essa que, desde a esfera económica, até à da protecção de direitos sociais básicos, con-duz a perturbações sérias nos sistemas de expectativas dos cidadãos, é outro dos aspectos relacionados com esta tentação para reduzir a resolução dos problemas à aprovação formal de um conjunto de enunciados legais.

Estamos em qualquer caso perante sintomas, que são também causas, de impor-tantes fenómenos de inconsistência institucional – os que decorrem da presença na sociedade portuguesa de um Estado formalmente sólido, mas frágil e inconse-quente enquanto factor de desenvolvimento, inovação e equidade social.

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ANEXOS

Composição da população activa por Sectores de Actividade Económica 1970 2001

População activa no sector primário 31,7 5

População activa no sector secundário 32,3 33

População activa no sector terciário 36,0 56

Composição da população activa por Sectores de Actividade Económica 1970 2001

População activa no sector primário 34,3 12

População activa no sector secundário 33,0 34

População activa no sector terciário 32,7 54

Indicadores demográficos 1970 2001

Taxa de natalidade (%o) 20,1 10,9

Índice sintético de fecundidade (número médio de filhos por mulher com idade entre os 15

e os 49 anos)

3,0 1,47 ª

Taxa de mortalidade infantil 55,5 5,0

População de 0-14 anos 28,4 16,0

População de 65 e + anos 9,7 16,4

População de 65 e + anos - Alentejo 22,3

População de 65 e + anos” Norte 14,0

População de 65 e + anos” Porto cidade 19,4

População de 65 e + anos” Porto, número de freguesias com valores superiores a 20% 7

Índice de envelhecimento (número de pessoas com 65 ou mais anos, por cada 100 com

menos de 15 anos)

34 102,2 ª

QUADRO N.º 1

QUADRO N.º 2

QUADRO N.º 3

Fonte: Recenseamentos Gerais da População de 1970 e 2001.

Fonte: Inquéritos ao Emprego.

Fonte: Machado e Costa, 1998 e Censo 2001.

ª 2002

Fonte: Machado e Costa, 1998 e Censo 2001.

ª 2002

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Emigração média anual

1970-1974* 123 946

1998-2002** 23 911

Permanentes 6 256

Temporários 17 655

População estrangeira, com estatuto legal, residente em Portugal

1970 24 703

2002 238 746

Composição da população activa por Sectores de Actividade Económica 1970 2001

Taxa de actividade global 39,4 48,2

Taxa de actividade feminina 19,0 42

Actividade profissional Trabalho doméstico e cuidados prestados à família

Homens 9h02m 1h54m

Mulheres 7h49m 5h00m

Tempo médio gasto em uma deslocação pendular 1991 2001

Média nacional 22,3 21,4

Lisboa 29,9

QUADRO N.º 4

QUADRO N.º 5

QUADRO N.º 6

QUADRO N.º 7 DISTRIBUIÇÃO DAS FORMAS DE TRABALHO POR SEXO (DURAÇÃO MÉDIA)

QUADRO N.º 8

* Fonte: MNE.

** Fonte: INE.

Fonte: INE.

Fonte: INE.

Fonte: IOT – 1999.

Fonte: Censo 2001.

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Indicadores de escolarização 1970 2001

Taxa de analfabetismo 25,6 9,0

População que atingiu os 4 e os 6 anos de escolaridade 52,2 47,7

População que atingiu os 9 e os 12 anos de escolaridade (ou o equivalente) 7,8 26,5

População que atingiu o ensino médio ou superior 1,6 11,5

Indicadores de escolarização Portugal - 2001 Média europeia

em 2001” 15

Percentagem da população dos 18 aos 24 anos que completou no máximo o

ensino básico e que não se encontra em educação e formação

44,9 19

Indicadores de escolarização Portugal Média

OCDE

Percentagem de alunos de 15 anos por níveis de literacia em leitura no nível 0 10 6

Percentagem de alunos de 15 anos por níveis de literacia em leitura nos níveis 4 e 5 21 31

Participação em actividades de educação ou de formação na população dos 25 aos 64 anos 2,6 8

Indicadores sobre níveis de qualificação das empresas 1985 1999

Taxa de enquadramento em sentido restrito na indústria transformadora 2,3 4,3

Taxa de enquadramento (em sentido restrito) do emprego assalariado (quadros superiores

mais quadros médios/total do emprego x 100)

3,8 7,6

Índice de qualificação (pessoal altamente qualificado + pessoal qualificado)/ (pessoal semi-

qualificado + pessoal não qualificado)

1,4 1,7

Índice de qualificação na indústria transformadora 1,3 1,5

QUADRO N.º 9

QUADRO N.º 10

QUADRO N.º 11

QUADRO N.º 12

Fonte: Recenseamentos Gerais da População de 1970 e de 2001.

Fonte: Eurostat, 2002.

Fonte: Eurostat, 2002.

Fonte: Quadros do pessoal – Ministério do Trabalho.

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Emprego segundo nível de habilitação escolar 2002

Até ao ensino básico de 9 anos 77,9%

Ensino secundário e superior 22,1%

Estrutura de classes 1970 1997

Empresários e dirigentes 3,0 11,5

Profissionais técnicos e de enquadramento 4,9 14,6

Trabalhadores independentes 7,3 6,9

Camponeses 15,2 11,1

Empregados executantes 19,4 28,1

Operários industriais 33,9 25,9

Assalariados agrícolas 16,2 1,9

Mulheres empresárias e dirigentes* 10,6 31,3

Mulheres profissionais técnicas e de enquadramento* 38,6 54,1

Mulheres empregadas executantes* 46,2 64,0

Desigualdades na distribuição do rendimento Portugal UE-15

Quociente entre os percentis 80 e 20 6,4 4,6

QUADRO N.º 13

QUADRO N.º 14

QUADRO N.º 15

Fonte: Inquérito ao Emprego.

Fonte: Machado e Costa, 1998; Costa et al., 2000.

* Proporção de mulheres no total de efectivos da categoria.

Fonte: Eurostat – 1999.

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NOTAS1 Para uma periodização da economia portuguesa nas últimas décadas, ver LOPES, José Silva – Políticas económicas, 1960/1995. Lisboa: Cadernos do Público, nº 5, 1996.

2 LOPES, Fernando Farelo; FREIRE, André – Partidos políticos e sistemas eleitorais: uma introdução. Oeiras: Celta, 2002.

3 Para um balanço da mudança social no período em referência, cf. COSTA, António Firmino da; VIEGAS, José Manuel (organizadores) – Portugal: que modernidade? Oeiras: Celta, 1998.

4 PORTAS, Nuno; DOMINGUES, Álvaro; CABRAL, João (orgs.) – Políticas urbanas. Tendências, estratégias e oportunidades. Lisboa: CEFA/Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

5 Para uma visão panorâmica da evolução demográfica em Portugal nas três últimas décadas, veja-se ROSA, Maria João Valente; VIEIRA, Cláudia – A população portuguesa no século XX. Lisboa: ICS, 2003.

6 Sobre alguns destes aspectos da condição das mulheres em Portugal, cfr. TORRES, Anália; VIEIRA DA SILVA, F. - Guarda das crianças e divisão do trabalho entre homens e mulheres. In Sociologia – Problemas e Práticas. N.º 28, Lisboa, CIES/ISCTE, 1998.

7 Encontrar-se-á um balanço sintético de algumas das principais transformações recentes do sistema educativo português em RESENDE, José Manuel; VIEIRA, Maria Manuel – Educação. In Portugal Social, 1991-2001. Lisboa: INE, 2003.

8 BENAVENTE, Ana (coordenadora) – A literacia em Portugal. Resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica. Lisboa: FCG/SNE, 1996.

9 Para uma perspectiva comparativa da transformação da estrutura de classes nas sociedades europeias, incluindo a portuguesa, ver COSTA, António Firmino da; et. all. - Classes sociais na Europa. In Sociologia – Problemas e Práticas. N.º 34. Lisboa: CIES/ISCTE, 2002.

10 Ver a este propósito ALMEIDA, João Ferreira de; et al. – Exclusão Social. Factores e tipos de pobreza em Portugal. Oeiras: Celta, 1992.

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1. UMA SOCIEDADE EM TRANSFORMAÇÃO, EM DIRECÇÃO À CONTEMPORANEIDADE

Para o estudo do contexto no qual a Revolução do 25 de Abril emerge, rompedora, na trajectória contemporânea portuguesa, creio ser fundamental reflectir sobre a emergência no nosso país de uma sociedade de massas. Essa expressão da moderni-dade instalou-se entre nós nos anos 60 e 70. Procurarei justificar, ao longo deste texto, a ideia de ser quase certo que só depois de tal ocorrer é que poderiam os portugueses protagonizar um processo revolucionário como o de 1974-76 e construir uma democracia. E creio ser assim porque até então não fora possível perceber que a grande maioria da sociedade portuguesa partilhava um conjunto de códigos e símbolos culturais que só a escola e alguns meios de comunicação de massa, justamente, conseguem propor e, as mais das vezes, impor; não existira até então um sistema de produção que incluísse redes de trocas económicas que colocassem em relação verdadeiramente todos os tipos de produção e de produto-res; não se verificara até então um nível de concentração urbana suficientemente significativo e que resultasse de movimentos migratórios muito amplos e mais ou menos simultâneos, que propiciassem contemporaneamente uma desruralização suficiente para que arrancasse a industrialização e a terciarização qualificada da economia, bem como um consumo mais ou menos generalizado e padronizado;

Fim do Colonialismo, RuptuRa polítiCa e tRansFoRmação soCial em poRtugal nos anos setenta1

Manuel Loff | Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Letras da

Universidade do Porto (FLUP)

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não havia sido até então suficientemente forte o conjunto dos instrumentos de mobilização (Estado, igrejas, organizações sociopolíticas de massas) que permitis-sem suscitar reacções verdadeiramente simultâneas aos acontecimentos políticos, sociais e económicos que marcam um verdadeiro quotidiano colectivo; e, por fim e por consequência, não se percebera até então na maioria da população uma forte politização que permitisse divulgar e desenvolver, de forma generalizada, séries mais ou menos coerentes de interpretações ideológicas da realidade social.

O que procurarei defender na primeira parte deste ensaio é que a Guerra Colonial, lida aqui como a experiência histórica mais massivamente mobiliza-dora e transformadora da História contemporânea portuguesa, ao ocorrer num processo em curso de industrialização, urbanização e êxodo rural, veio acelerar e dramatizar várias das mudanças que estavam já a alterar a sociedade portuguesa bem antes da Revolução do 25 de Abril, contribuindo para que a inevitável crise do regime não pudesse ser resolvida por um processo de transição controlada.

1.1 O quadro socioeconómico

Façamos, então, um esforço para visualizar numa espécie de flash a sociedade portuguesa dos anos 60 e 70. Quanto mais afastamos a lente e depuramos a nossa percepção do que, ao longe, vemos que se mexe, ganha cor, ganha identidade - o que percebemos? Antes de mais, um movimento incessante: uma parte muito, mas mesmo muito, significativa da população move-se de um lado para o outro, primeiro mais lentamente, depois muito depressa. São os homens, e sobretu-do os homens adultos mais jovens, que protagonizam a grande maioria deste movimento, desta pressa em mudar, resolver as suas vidas, emigrando para o estrangeiro ou procurando outra vida numa das duas áreas metropolitanas do litoral português, sobretudo a de Lisboa; em qualquer caso, correndo para pró-ximo de Paris, de Lisboa, do Porto, secundariamente para alguma grande cidade da Renânia industrial, na Alemanha, ou para algum ponto de New Jersey ou do Massachussetts, na Costa Leste dos Estados Unidos, ou ainda para Caracas, na Venezuela, trocando o mundo rural pelo (sub)urbano. Se o não fizeram antes de cumprir o serviço militar, desde 1961 que o Estado, que nesses anos começaria a interferir nas suas vidas muito mais que em algum momento do passado havia interferido na vida dos portugueses, os empurrava em números elevadíssimos para dois anos (e depois de 1968, para quatro anos) nas fileiras do que se trans-formara num dos mais numerosos exércitos da Europa, empenhado numa guer-ra de contraguerrilha nas três grandes colónias portuguesas em África: Angola (desde Fevereiro de 1961), Guiné (desde 1963), Moçambique (desde 1964).

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Nunca na nossa história em tão curto período de tempo tantos mudaram (social, geográfica e experiencialmente) os destinos das suas vidas. Caso único na Europa, a população do então chamado território metropolitano português baixa de 8,89 para 8,61 milhões (-3,1%) nos anos 60; a queda é evidente sobretudo na franja dos 15-64 anos (-4,7%). Esta situação demográfica verdadeiramente excepcional ocorria numa fase em que a natalidade portuguesa tinha o nível mais elevado de toda a Europa Ocidental e Central: nasciam por ano mais de 200 mil crianças, cerca do dobro das que nascem actualmente e mais do dobro do número de pessoas que anualmente morriam (cf. BARRETO, 1996: tabela 1.10). Calcula-se que 1,43 milhões de pessoas terão deixado o país nos anos 1960-74. Em 1960, antes de começar a guerra em Angola, emigraram 33 mil, mas em 1962, um ano depois do início da guerra em Angola, o número já subira para 38 mil, em 1965 para 117 mil, em 1970 para 173 mil... No total daqueles 14 anos, mais de 40% viu-se obrigado a fazê-lo de forma ilegal (e de forma crescente com os anos), pagando a passadores minhotos, transmontanos ou beirões, sujeitando-se, na calada da noite, a caminhadas de muitos quilómetros através da chamada raia seca, outras vezes agachados em barcaças que atravessavam o rio Minho, aterrorizados com a possibilidade de que um guarda civil espanhol os apanhasse numa qualquer estrada secundária, ou já dentro de um autocarro ou de um comboio a caminho de França, e os mandasse de volta, para uma realidade quotidiana tão plena de constrangimentos que os havia forçado a uma decisão tão difícil quão determi-nante nas suas vidas. Mais de três em cada cinco destes emigrantes ficou-se por França, um em cada oito pela Alemanha Ocidental, outros tantos pelos Estados Unidos, muito poucos, já, pelo Brasil, ao contrário do que sucedera durante os cem anos anteriores. (cf. BAGANHA, 1999).

Fora destas contas encontravam-se aqueles poucos, comparativamente com estes contingentes, que terão preferido deixar-se ficar, uma vez cumprido o serviço militar, feita a guerra, por alguma das colónias africanas, especialmente por Angola (onde em 1974 viviam cerca de 170 mil mais portugueses que em 1961 – cf. BENDER, 1980: 322) e só secundariamente por Moçambique, de alguma forma contribuindo assim para a política oficial do Salazarismo de consolidar a soberania portuguesa nas posses-sões africanas graças ao reforço da supremacia branca. Ao contrário do que esperariam os próceres da ditadura colonial, é com o conjunto destes números que se pôde dizer que os portugueses tinham votado com os pés contra aquela que era então a opção fun-damental para a qual a ditadura havia empurrado o país.

Até ao início da década de 80, pelo contrário, a população portuguesa vol-tará a subir, até atingir os 9,83 milhões, número para o qual terá contribuído

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o chamado retorno a Portugal de quase meio milhão de pessoas que, em 1981, diziam residir nas excolónias em Dezembro de 1973, muitas das quais, ao ter nascido nelas, dificilmente poderiam ser consideradas retornadas. Haverá que acrescentar a estes números os cerca de 100 mil soldados portugueses que se encontravam destacados em 1974 para as frentes de guerra africanas e, sobre-tudo, os 182 mil emigrantes que regressam então a Portugal entre 1975 e 1981 e que quase compensam os pouco mais de 200 mil que emigram no mesmo pe-ríodo (cf. CÓNIM, 1992, e BAGANHA, 1999).

O Portugal rural e interior havia entrado, entretanto, num processo de con-vulsão interna que mais se pareceu com uma implosão das suas estruturas secu-lares. Os dez anos que separam 1960 de 1970 constituíram a década que mais rapidamente agudizou a sangria populacional do Portugal rural – e, consequen-temente, o desequilíbrio entre o litoral e o interior. Em 1973, nas vésperas da implantação da democracia, viviam nos distritos de Bragança e Vila Real, respec-tivamente, menos 22,7% e 18,3% habitantes que em 1960; nas Beiras interiores, as percentagens variavam entre menos 25,2% na Guarda e menos 14% em Viseu, com Castelo Branco numa posição intermédia; no Alentejo interior, o êxodo fora mais notório ainda: menos 20,3% em Évora, menos 25,2% em Portalegre, menos 31,3% em Beja; em vários concelhos destas regiões a quebra populacional, só entre 1960 e 1970, havia rondado ou sido superior até aos 40% (Mértola, Miranda do Douro, Vila Nova de Foz Côa, Sabugal, Ourique; mais próximo do litoral do Continente, Pedrógão Grande). Pelo contrário, cresciam a olhos vistos as zonas suburbanas do que são hoje as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, as quais, no seu conjunto, passariam de reunir menos de 2,4 milhões de habitantes em 1960 (26,5% da população portuguesa) a quase 2,8 milhões em 1970 (31,9%); enquanto os municípios de Lisboa e Porto, em vias de terciarização, perdiam já habitantes, à volta de Lisboa cresciam desmesuradamente concelhos como o do Seixal (+86,1%), Barreiro (+68,3%), Loures (+63,1%), Sintra (+55,6%) ou Cascais (+55,4%); os subúrbios do Porto cresciam menos acentuadamente: mais 29,1% de habitantes tinha Espinho em 1970, Gondomar crescera 24,2%, Valongo 23,9%, Matosinhos 20%. Mesmo que dificilmente se pudesse dizer que o país se urbani-zava (em 1970, não mais de 26,5% dos portugueses vivia em povoações de mais de 10 mil habitantes), a verdade é que ele se suburbanizava, pelo menos.2

O modelo especificamente português de concentração regional das altera-ções produzidas pelas migrações e pelo desenvolvimento industrial e urbano propiciou um desequilíbrio que favorecia de forma inegável o litoral, ao mesmo tempo que, não apenas desvalorizava o interior do país, mas também incitava ao

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seu despovoamento. É evidente que as alterações no tecido económico ajuda-vam enormemente a explicar toda esta evolução. Vejamos o seguinte quadro:

Evolução do emprego em Portugal Continental (in SANTOS, 1989: 131):

1960 1973

Emprego total 3.112.000 3.124.300

Emprego P.I.B. Emprego P.I.B.

Sector primário 43,6% 25,1% 26% 12,2%

Sector secundário 28,7% 36,5% 36,7% 51,7%

Sector terciário 27,7% 38,4% 37,3% 36,1%

O Portugal rural, elemento estrurante da identidade histórica do país e condiciona-dor profundo dos seus ritmos de mudança, entrara irreversivelmente numa fase de transformação e regressão rápidas. Nos anos 60 e nos primeiros anos 70, anteriores à queda do regime autoritário, esse Portugal rural sobredimensionado, contra o qual pareciam terem-se estilhaçado até então as principais linhas de força das mudanças históricas da contemporaneidade, evolui de tal forma que, em 1973, não ocupa mais de um quarto do emprego dos portugueses, e um oitavo do seu rendimento.

De entre a série de factores de mudança socioeconómica que actuam neste âmbi-to, o quadro reflecte um fenómeno de industrialização de baixo nível (tecnológico, de produtividade), iniciado na década anterior, mas que, fracassadas algumas tentativas anteriores de consolidação de um tecido industrial nacional, abre finalmente o seu ca-minho na economia portuguesa nos anos 60 até representar metade do rendimento nacional em vésperas da queda da ditadura. Se o sector terciário é aquele que, durante idêntico período, mais emprego gera, a sua comparativamente escassa produtividade reserva-lhe uma porção relativamente baixa do rendimento.

Os últimos quinze anos da ditadura foram, muito contra a vontade do Sala-zarismo e de um patronato por ele protegido, anos de uma significativa melhoria do nível salarial dos portugueses, o que é ainda mais relevante se tomarmos em conta que havia aumentado fortemente o trabalho feminino, uma vez que este era pago a níveis bastante inferiores do trabalho masculino, desigualdade salarial que, como bem sabemos, continua ainda hoje a discriminar as mulheres portuguesas. Mudanças substanciais nas relações laborais, que se processavam debaixo de um autoritarismo político que limitava os direitos do trabalho desde os anos 20, ter-se-ão dado para que dos 37,8% que correspondiam, em 1958/59, ao peso das re-munerações salariais (excluídas as contribuições patronais à Previdência Social) no conjunto do rendimento nacional (cf. SANTOS, 1989: 133), se passasse para

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50,3% em 1973. Não nos surpreenderá que no clímax do período revolucionário esses números subissem para 55,6% em 1974 e até 68,5% em 1975, excepção evi-dente numa economia capitalista. Contudo, era bom que tivéssemos consciência de que já no final da década de 70, com aquilo a que o pensamento dominante actual chama a progressiva normalização do processo político e social português, o peso do factor trabalho no conjunto do rendimento nacional tinha regredido para 56,5% (1979), e para 51,7% quando o cavaquismo conquistou a sua primeira maioria absoluta parlamentar (1987) (LEÃO, 1992: 177, 187, 197). Em terrenos socioeconómicos como este, os anos 80 já coincidiam com os últimos anos da ditadura, e os últimos 15 anos vieram até a acentuar uma tendência ainda mais desfavorável aos trabalhadores. Também aqui, evidentemente, os anos da Revo-lução e do pósrevolução representaram um momento excepcional e irrepetido da nossa história, quase como se se tivessem tratado de um parêntesis.

No campo da saúde, se a evolução verificada ao longo dos anos 60 já foi acentu-ada, será a democracia a trazer, como nos diz a nossa memória colectiva, avanços radicais. Peguemos, também aqui, nuns quantos dados reveladores. Em 1960, o número de consultas médicas prestada em média a cada português por ano, em estabelecimentos de saúde, não chegava a uma; dez anos depois, subira para duas, em 1975 para 2,7 e em 1980 para quase 2,9. Em 1960, as urgências haviam atendi-do o equivalente a menos de 6,6% dos portugueses, e o equivalente a 5,2% haviam sido internados em algum momento do ano; em 1970, estas proporções subiram para 10,5% e 7,2%, em 1975 para 22,7% e 8,4%, e em 1980 para 48,5% e 9%, respecti-vamente. Coerentemente, cada cem mil portugueses dispunham, em 1960, de 79,6 médicos, e o número não subiria espectacularmente durante os anos 60 (94,7 em 1970), mas sim, pelo contrário, depois do 25 de Abril (119,3 em 1975, 196,8 em 1980). Um bom exemplo tanto da evolução da prestação dos serviços de saúde mas também da mudança de mentalidades é o da proporção de partos assistidos: no início da década de 60, apenas 18,4% dos quase 220 mil partos foram medicamente assistidos em estabelecimentos de saúde; dez anos depois a percentagem subira para o dobro (37,5%) e outros dez anos mais tarde, em 1980, voltaria a duplicar para 73,8% de um total de 159 mil partos. Em 1960, mais de um em cada oito por-tugueses que morreram nesse ano haviam sido vítimas de tuberculose ou de uma doença infecciosa ou parasitária; dez anos depois, essa proporção havia descido para 1/18, e em 1980 para 1/71 (cf. BARRETO, 1996: cap. 2).

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1.2 Massificação social e (re)politização de massas

O sistema social passava da mesma forma e, seguramente pela primeira vez na sua história, por um processo de massificação que arrastou a maioria da popula-ção portuguesa para outras experiências e vivências sociais que, em si mesmas, tinham muito de políticas. Antes de mais, a da escolarização. Se a estratégia sa-lazarista de uso intensivo com fins ideológicos e doutrinais da formação básica havia, desde os anos 30, implicado uma descida gradual do analfabetismo literal (40,4% daqueles com mais de 7 anos em 1950, 32,1% em 1960, 26,2% em 1970) – e, no entanto, este mantinha-se de longe o mais alto de todo o continente eu-ropeu – concluía-se uma etapa de generalização do ensino obrigatório dos pri-meiros quatro anos, que, não obstante as reservas explícitas por parte do Estado, fazia disparar a exigência de um ensino secundário e superior, por parte da du-vidosamente chamada classe média e da maioria dos estratos populares urbanos, processo naturalmente acentuado pela democratização do país.

Alunos matriculados (números absolutos em milhares; índice)3

1960/61 1970/71 1980/81

ENSINO SECUNDÁRIO 1 115,4 - 100 243,7 - 211 394 - 341

ENSINO SUPERIOR 2 24,1 - 100 49,5 - 205 87,3 – 362

17º-11º anos de escolaridade, tipo liceal e técnico, público e privado.2 Universitário e não-universitário, público e privado.

No terreno das práticas culturais, contudo, nem todas acompanharam este cres-cimento da escolarização. Umas apresentaram um ritmo de crescimento supe-rior. Foi o caso do uso público das bibliotecas: as 89 bibliotecas existentes em Portugal em 1960 tinham tido nesse ano menos de um milhão de leitores; em 1973 tinham passado a existir 257, com 3,2 milhões de leitores; em igual medi-da, o número de consultas anuais quase triplicou entre 1960 e o final da década. Quanto à imprensa, e sendo impossível dispor de números fidedignos quanto a tiragens e, sobretudo, à leitura efectiva de jornais, a verdade é que os primeiros anos 70, antes ainda do 25 de Abril, parecem ter constituído uma fase excep-cional na história da imprensa escrita portuguesa: o número total de jornais e periódicos, 468 em 1960, atingiria os 1316 em 1973, nível não mais atingido, curiosamente, até 1995 (cf. BARRETO, cap. 8).

Algumas outras práticas culturais permaneceram claramente restritas no seu âmbito elitista: no conjunto estatístico da afluência aos espectáculos de música,

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bailado e variedades, os dados relativos aos anos 60 variaram em torno dos 150-180 mil espectadores anuais (com excepção de 1968: 262 mil), nível que, por exemplo, superava largamente o dos anos 80 e que só voltaria a ser ultrapassado a partir de 1991. Por outras palavras, o equivalente a dois em cada cem habitantes assistia uma vez por ano a tais espectáculos na década de 1960. Nestes anos, o teatro era uma arte performativa incomparavelmente mais popular do que é hoje, e muito mais alta era a sua frequência: o número de espectadores por ano naquela década andou à volta de 1,1-1,3 milhões, número que se reduziria gradualmente para des-cer abaixo dos 250 mil em 1997. O espectáculo cultural público com mais sucesso em Portugal, como no resto do Mundo em que irrompera a cultura de massas, permanecia o cinema, apesar de os anos 60 serem já sinónimo de estagnação: 25,1 milhões de bilhetes vendidos em Portugal em 1960, 23,2 milhões em 1965, 26,5 milhões em 1973. Será literalmente a democratização e o fim da censura a permi-tir um boom do interesse pelo cinema, já em contraciclo com o resto do Mundo, muito especialmente durante o período revolucionário: 32,8 milhões de especta-dores em 1974, 38,7 em 1975, 40,5 em 1976, decaindo depois ininterruptamente até aos pouco mais de 7 milhões em 1994 (cf. BARRETO, 1996: cap. 8).

Outro factor que explica a relativa pujança do cinema nos hábitos de massas em Portugal tem a ver com o impacto tardio da Televisão, que só surge em 1957 e que manterá audiências relativamente baixas quando comparadas com o resto da Europa ou a América do Norte. Em 1958, a RTP não cobre mais do que 44% do território continental, onde viviam 58% dos portugueses; só em 1972 chegará à Madeira, e em 1975 aos Açores. Mais significativo ainda é dizer que em 1959 não estavam vendidos mais do que 32 mil receptores de TV, número que subiria para 68 mil em 1961 e para 450 mil em 1964; em 1967, calculava-se que o número de telespectadores andaria por volta dos 2,2 milhões, cerca de um quarto da popula-ção, portanto.4 Em todo o caso, é difícil garantir que a TV tenha tido ainda antes do 25 de Abril um peso muito significativo nas vidas e nos processos de formação de opinião e de gostos da grande maioria dos portugueses. Semelhante afirmação já seria possível fazer, por exemplo, relativamente apenas aos jovens do mundo urbano e às camadas da pequena e média burguesia; mas não, isso não, ao universo popular, sobretudo rural. Para tanto haveria que esperar pela democracia.

Por outro lado, o conjunto da sociedade era afectado por um traumático fenóme-no de mobilização militar para uma Guerra Colonial que, desencadeada em 1961 em Angola, se havia estendido à Guiné e a Moçambique. Duas gerações, grosso modo, de jovens são arrastadas pelo regime para África, chamadas às fileiras durante dois anos, que passam a quatro em 1968, dois dos quais obrigatoriamente cumpridos em África.

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O resultado estatístico é impressionante: 920 mil homens são mobilizados nos treze anos que dura o conflito, 250 mil outros escapam (os refractários) à incorporação, quase todos emigrando ilegalmente, a salto. Se recordarmos que os Estados Uni-dos num conflito de dimensões tão importantes como o do Vietname, ocupando um percurso cronológico semelhante e paralelo ao da guerra colonial portuguesa, superando-o um pouco, aliás, deverão ter mobilizado cerca de duas vezes e meia o número de homens mobilizados pela ditadura portuguesa, numa população 25 vezes superior à nossa, poderemos ter uma perspectiva mais nítida do tremendo esforço imposto aos portugueses pela opção militar de Salazar, reiterada por Caeta-no. E se esse é o resultado estatístico, assustador é o resultado humano: oficialmente, e se atendermos ao contingente militar metropolitano, são assumidos 9 mil mortos, 28-32 mil feridos, e um número entre 30 e 120 mil, segundo diferentes critérios mé-dicos e políticos, de excombatentes padecendo de uma neurose de guerra. As Forças Armadas portuguesas jamais divulgaram números de quantas vítimas terão sido fei-tas entre população civil e guerilheiros africanos, calculando-se, no entanto, entre 30 e 50 mil angolanos mortos (SILVEIRA, 1989: 88-89) em represálias (os chamados contramassacres) que se desencadeiam por todo o Noroeste de Angola apenas nos pri-meiros seis meses de guerra em Angola, e sem contar com aqueles perpetrados nos musseques de Luanda no primeiro semestre posterior ao assalto às prisões da capital angolana, do 4 de Fevereiro de 1961), número necessariamente muito inferior ao so-matório das vítimas de 13 anos de combates nas três frentes de combate.

1.3 O contexto sociopolítico

De um modo geral, portanto, e partindo desse pressuposto de que nos finais dos anos 50 dificilmente podemos qualificar a sociedade portuguesa como sendo de massas, é razoável concluir que a mudança socioeconómica começa muito antes da mudança sociopolítica, pelo menos no plano das suas manifestações explíci-tas. Neste último campo, a sociedade portuguesa ressentia-se de uma larguíssima tradição autoritária da representação simbólica e das práticas do poder social e político, que nem o liberalismo elitista monárquico (1834-1910) e nem o repu-blicano (1910-26) conseguiram ou sequer procuraram inverter.

No contexto europeu, em Portugal tinham sido muito incipientes os níveis de participação política e associativa nos anos 20, o período final e socialmente mais reivindicativo da I República, e até esses seriam rapidamente reprimidos nas primeiras décadas de ditadura. Em nenhum momento anterior da época contemporânea tinham sido constituídas organizações sociais e políticas auten-ticamente de massa e independentes do Poder político.

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Neste contexto, tenhamos bem presente que só a introdução do sufrágio uni-versal, nas eleições constituintes de 1975, no ano da queda da ditadura, vem en-cerrar verdadeiramente um século e meio de hegemonia absoluta de diferentes concepções elitistas da participação e cidadania políticas.5 Não terá sido simples ca-sualidade que fórmulas políticas tão diferentes como a Monarquia Constitucional dos Braganças, a República mais ou menos jacobina, mas antioperária, e um Sala-zarismo que casava, como vários outros regimes europeus casaram, modernidade fascista e tradicionalismo católico, tenham partilhado todas uma ideia tão restritiva do cidadão (no masculino, exactamente, porque todos os eleitores portugueses até 1933 foram homens, e quase todos até 1975, em qualquer caso) politicamente ac-tivo e, consequentemente, eleitoralmente habilitado. Por cima dos programas dou-trinários mais específicos de cada um desses regimes pairava uma mesma cultura política profundamente elitista que fazia praticamente coincidir direitos políticos com uma identidade social burguesa, culturalmente definida pela escolarização. Se nas últimas eleições marcelistas, anteriores ao 25 de Abril, apareciam recenseados para votar apenas 23% dos portugueses (o que representava grosso modo 35% dos maiores de idade de ambos os sexos), a evolução nem sequer tinha sido muito sig-nificativa se os comparássemos com os 19% de inscritos em...1890, ou os 15% das eleições presidenciais de 1958. É neste contexto que não será difícil perceber que as organizações sociopolíticas criadas no período revolucionário se revelem ainda profundamente marcadas pela iniciativa de redes de personalidades das elites so-ciais, numa lógica de capilaridade organizativa de cima para baixo.

Em todo o caso, o problema político central que motivou a desestruturação do sistema político da ditadura, levando, por fim, a sociedade à consciência da in-suportabilidade do autoritarismo, é o da crise definitiva do paradigma colonial, que o Salazarismo havia inserido no segundo pósguerra mundial, preparando conscientemente, e com eficácia conjuntural, a resistência à vaga emancipadora dos povos da Ásia e de África. É inevitável que nos detenhamos um pouco a ana-lisar uma questão que, ao longo de toda a época contemporânea, propiciou que se configurasse um verdadeiro Sonderweg português, uma via pela qual seguiram problemática política, economia e identidade nacional portuguesas, aparente-mente distintas daquela seguida pela generalidade das sociedades à sua volta.

Depois dos colonialismos nacionalistas liberais do segundo e do último quartel do século XIX e o republicano do primeiro quartel do século XX, o Salazarismo concebeu nos anos 30 um primeiro colonialismo, de semântica assumidamente imperial e tom fascista, que se tornaria necessariamente inade-quado à realidade emergente da derrota nazifascista de 1945. Desde os últimos

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anos da guerra e até à reforma constitucional de 1951, prepara-se dentro das fileiras do regime um magma ideológico e simbólico com o qual se pretendia reformular a dimensão colonial portuguesa, o qual, justamente, coincidia com uma fase de verdadeira consolidação da presença administrativa, militar e eco-nómica do seu estruturalmente débil colonialismo.

Como em todas as (re)definições identitárias segregadas e impostas por um apa-relho político, começava-se por uma explicação pseudohistórica mais ou menos pedagógica. De maneira semelhante ao que tinham sustentado todas as anteriores versões do nacionalismo português, defendia-se que a independência de Portugal tinha dependido sempre da conservação das suas colónias. Na conjuntura de um pósguerra em que assumiam protagonismo os nacionalismos asiáticos e árabes, e na qual se via surgir o mais que certo “wind of change” soprado pela “African National Consciousness” de que falaria em 1960 o Primeiro Ministro britânico MacMillan, a elite política e intelectual do Salazarismo recupera uma vez mais a tese mais ou menos tradicional de que reconhecer o direito à autodeterminação das colónias sig-nificaria significaria expor Portugal aos apetites espanhóis. Por estes tempos, mais que em conjunturas passadas, o património colonial aparecia, com alguma razoa-bilidade no plano teórico (mas apenas nesse, como a realidade se encarregaria de demonstrar), como uma das bases sobre as quais se podia construir o modelo eco-nómico de desenvolvimento industrial e comercial que o regime finalmente decide assumir. A lógica emergente é a de que a solvência económica portuguesa dependia desse laço fundamental com, antes de mais, África, em aberta contradição com o rumo então imposto por todas as demais potências europeias.

O regime salazarista começa por resistir diplomática e ideologicamente no plano internacional, para logo levantar armas contra a rebelião armada dos movi-mentos de libertação nacional das colónias africanas. No primeiro caso, contra si tem uma Índia recém independente que exige o abandono dos três enclaves por-tugueses (Goa, Damão e Diu) – o que acabará por ocorrer em Dezembro de 1961 – e, a partir de 1956, a maioria anticolonialista da ONU, uma plataforma aguerrida face à qual se foi revelando, ano após ano, o isolamento internacional do Governo português, pese embora a sua tentativa de se apresentar na vanguarda da “defesa da civilização europeia” contra os “imperialismos soviético e chinês”.

Submetido à pressão do emancipalismo, o Salazarismo opta por limpar par-cialmente a fachada do sistema colonial português, assumindo tardiamente as doutrinas francesas do assimilacionismo cultural e político dos indígenas ou nativos, substituindo na Constituição a terminologia colonialista típica (Ultramar em vez de Império Colonial, e Províncias Ultramarinas em vez de Colónias), sem fazer desaparecer,

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até 1961, a discriminação essencial do Estatuto do Indigenato, cuja última versão impõe em 1954, três anos depois da revisão constitucional a que aludi. O mundo académi-co e político decidia-se, por fim, a investir nas investigações sociais que serviriam o novo modelo assimilacionista, supostamente original no conjunto das experiências coloniais da História moderna e contemporânea. As décadas de 50 e 60 são anos da recuperação académica e política do luso-tropicalismo, criação anterior do brasileiro Gilberto Freyre,6 que na experiência portuguesa de contacto com o mundo tropical encontra “convivência multirracial”, um “paternalismo brando”, um “colonialis-mo antieconómico”, teses que até ao final da II Guerra Mundial não teriam aco-lhimento favorável dos construtores da ideologia colonial portuguesa, incomo-dados com argumentos que favoreceriam a visão que desde as demais potências coloniais europeias se tinha do colonialismo português – a de um modelo pobre e incompetente de dominação colonial.

A repressão violenta de toda a mobilização de índole social, política ou simples-mente identitária que se detectasse no espaço colonial, leva, ao fim de uma década, os movimentos de libertação à opção pela luta armada, em 1961 em Angola, em 1963 na Guiné, em 1964 em Moçambique. O conflito torna-se, rápida e inevitavelmente, um verdadeiro beco sem saída possível dentro do âmbito do regime autoritário, pela acumulação de problemas que representa. Antes de mais, pela tensão que provoca en-tre necessidades de desenvolvimento socioeconómico e a “imobilização de recursos pela guerra colonial” (SANTOS, 1989): se já num período de preparação para o em-bate militar, cerca de 36% da despesa pública metropolitana lhe é dedicado em 1958, com oito anos passados desde o início da guerra chega-se aos 55% (1969), e num mo-mento de profunda crise económica internacional a não menos de 46% (1973).

Por outro lado, a guerra é o ponto fulcral de mobilização interna e externa contra a ditadura, e, portanto, fonte de divisão interna da sociedade, e que acabará por dividir as fileiras do próprio regime. O dogma colonialista que Salazar tinha tentado impor como política de consenso nacional cedia. Em 1957, o Partido Co-munista (PCP) estabelece no seu V Congresso, na clandestinidade, a autodeter-minação como saída política para as colónias portuguesas. Muito mais reveladora da mudança que se processava dentro das elites tradicionais era a posição de “um reduzido grupo de militares, apoiantes clandestinos da candidatura de Humberto Delgado, que (...) tomou posições mais frontais contra a política colonial, preven-do a inevitabilidade da guerra e condenando, desde o seu início, a forma como o Governo a desencadeou” (CORREIA, 1999: 159). O chamado Movimento Militar Independente, que participa na tentativa fracassada de golpe de Março de 1959, que ficou conhecido como golpe da Sé, perguntava-se nas páginas da sua publicação

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clandestina Tribuna Militar, meses antes da rebelião angolana,“até onde se levará a acção repressiva já iniciada, em Cabo Delgado [- Moçambique -], (...) em Angola (...) e na Guiné?”, antecipando que “a gente salazarista prepara-se para deixar em África um rasto de sangue, que fará a memória de Portugal ser odiada e banida” (cit. in CORREIA, 1999: 160).

É possível, portanto, isolar um grupo de militares que “apresentam já uma ideia clara sobre a defesa da paz e do direito dos povos das colónias à indepen-dência, linguagem que só muitos anos depois a oposição não comunista viria a adoptar” (CORREIA, 1999: 161). De facto, o Programa para a Democratização da República, concebido no interior da oposição republicana e liberal, apresentado em 1961, poucas semanas antes do início do conflito, admite a necessidade de uma solução política sem discutir a “unidade nacional”, mas acabaria necessa-riamente por evoluir em direcção a um reconhecimento do direito à autodeter-minação, como ocorre com as duas candidaturas oposicionistas (CDE e CEUD) admitidas à campanha eleitoral de 1969, convocada pelo sucesssor de Salazar, Marcelo Caetano, num vislumbre de abertura controlada do regime que não pro-duziria resultados satisfatórios. No outro extremo do espectro político, o Gover-no de Lisboa sentia-se pressionado por boa parte das minorias brancas das suas colónias africanas, tentadas por uma saída à rodesiana.7

Os tempos eram, assim, de repolitização da sociedade. Os problemas não eram simplesmente políticos porque a sua natureza imediata assim os apresentava. Tudo se tinha tornado político ao mesmo tempo: os anos da Guerra Colonial e da emigra-ção eram os mesmos da industrialização, das migrações internas e da urbanização, da expansão do sistema escolar e do arranque da emancipação da mulher, da con-testação juvenil fora e dentro das fronteiras portuguesas. O chamado marcelismo, enquanto experiência política de aparente renovação (a chamada “evolução na con-tinuidade” de que falava o próprio Marcelo), que lançou muito evidentes espe-ranças de uma certa liberalização, rapidamente fracassaria enquanto resposta à remobilização política das oposições democráticas, que não cessava praticamente desde 1958 e que vinha provocando a desarticulação dos mecanismos de reprodu-ção sociopolítica do regime, dele afastando gradualmente segmentos importantes dos jovens socialmente favorecidos que passavam por uma Universidade cada vez mais contestatária, ou activistas católicos de base que se sentiam os represen-tantes em Portugal dos princípios consagrados no Concílio Vaticano II, contra o imobilismo da hierarquia católica, ou até alguns dos jovens oficiais militares que começavam a achar serem os que verdadeiramente arcavam com todo o peso de uma guerra que não tinha fim político à vista.

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O fracasso tornou-se rapidamente visível quando a última tentativa de reno-vação do pessoal político do regime – os tecnocratas ligados às políticas da cha-mada modernização económica e educacional, os protagonistas da ala liberal que deveriam aceitar funcionar como leal oposição no interior das fileiras da ditadura – rejeitam, ao fim de dois/três anos de colaboração, o papel que Caetano deles esperava face às pressões triunfantes dos ultras para que nada de decisivo se alte-rasse no sistema salazarista. O imobilismo representado pela (nula) revisão da Constituição do Estado Novo, em 1971, e a reeleição de Tomás para a Presidência da República, em 1972, bastaram para eliminar qualquer resquício de esperança em Marcelo. A realidade percebida pelos portugueses não estava em nenhuma evolução marcelista, mas sim na agudização da repressão política, que atingia e ultrapassava os piores momentos da ditadura, vividos nos anos da Guerra de Espanha (1936-39)8, na radicalização das oposições e, acima de tudo, no impasse colonial: nenhuma das grandes, e sangrentas, operações militares dirigidas nos períodos em que Costa Gomes comandou as forças militares em Angola (1969-72) e Kaúlza de Arriaga em Moçambique (1970-73) haviam eliminado, como prometido, as guerrilhas independentistas. Pelo contrário, a situação na Guiné agravara-se até atingir um ponto sem retorno, que permitira ao PAIGC procla-mar unilateralmente, em Setembro de 1973, a independência da Guiné-Bissau, reduzindo cada vez mais a presença colonial portuguesa a uma desprotegida faixa litoral. Simultaneamente, o escândalo internacional provocado pelos massacres em Moçambique perpetrados às ordens de Kaúlza, o mais simbólico dos quais o de Wyryamu, permitia acentuar a mobilização internacional contra a ditadura portuguesa, que bem procurava passar despercebida no meio de Estados ociden-tais que, na sua maioria, lhe continuavam a fornecer armas por debaixo da mesa, incumprindo o boicote internacional decretado pelas Nações Unidas.

O mal estar criado dentro das fileiras militares pela acumulação das suces-sivas comissões de dois anos que os jovens capitães eram obrigados a cumprir nas três frentes africanas agravara-se com a demissão de Spínola do cargo de Governador da Guiné (Agosto de 1973), e de Costa Gomes do de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (Fevereiro de 1974). O último ano do marcelismo será sempre recordado entre a grande maioria dos portugueses, que nada sabiam do grau efectivo de conspiração que se vivia dentro das Forças Armadas, como o do vazio retórico de um cinzento e antiquado catedrático de Direito que, com voz nasal, lhes falava na TV naquilo que pateticamente decidira chamar Conversas em família, face à expectativa de um pronunciamento militar que pudesse ser lançado, para acabar com a guerra, por oficiais como Spínola ou

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Costa Gomes, ou para, pelo contrário, arrastar mais recursos ainda para o esforço militar às mãos dos ultras em torno de Kaúlza, como aqueles que se haviam reu-nido no Porto, em Junho de 1973, no chamado Congresso dos Combatentes...

A fonte de pressão que, por ser mais subterrânea, se revelou, portanto, mais permanente e decisiva era aquela que advinha do cansaço da guerra, quer de uma sociedade metropolitana de onde fugiam os mancebos em idade militar, como dos jovens oficiais que, nos primeiros anos 70, iam já a iniciar, em muitos casos, a quarta comissão de dois anos em território africano. São esses os que se deixam politizar em contacto com muitos oficiais e soldados milicianos que chegavam de Portugal com uma razoável consciência do quadro político de explicação da guerra. A estes factores somava-se, em 1973, a percepção militar clara de que a guerra estava já perdida na Guiné. Políticos e militares passaram, então, a temer os efeitos de uma espécie de teoria do dominó, que suporia que o abandono de uma das colónias levaria ao abandono das demais, ao mesmo tempo que muitos ofi-ciais rejeitam a possibilidade de que se viesse a repetir o ocorrido com os seus companheiros depois da invasão de Goa pela Índia, após a qual, relembremo-lo, Salazar optou por responsabilizar exclusivamente os militares pelo facto de não terem obedecido às suas ordens de resistência até à morte. Adicionado a este contexto um conflito de natureza corporativa que funciona como pretexto para a mobilização dos oficiais de patente intermédia que suportavam o peso da guerra, reuniram-se as condições que conduzem ao Movimento das Forças Armadas, que na madrugada de 25 de Abril de 1974 pôs fim a 48 anos de ditadura em Portugal que, precisamente, outros militares haviam instalado no poder.

2. O PERÍODO REVOLUCIONÁRIO (1974-76): UM CICLONE NA 

HISTÓRIA PORTUGUESA

2.1 A libertação

Apenas sete meses depois do golpe de Pinochet, os capitães portugueses inver-tiam numa conspiração militar o sentido do golpe chileno: abrir o caminho à democracia e, seguramente sem o imaginarem, a uma experiência revolucioná-ria absolutamente surpreendente na Europa Ocidental desde o fim da II Guerra Mundial. A tomada espontânea da rua por parte da população logo na manhã de 25 de Abril de 1974, contra todas as expectativas dos militares rebeldes, repre-senta bem uma metáfora do processo de súbita mobilização para a actividade política, que os militares rebeldes não haviam previsto no seu modelo de trans-formação. Esta mobilização política revelar-se-á, é certo, efémera no médio prazo, mas a verdade é que constituiu o momento da mais forte e massiva participação

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política da História portuguesa, adquirindo muito rapidamente um tom tão for-temente esquerdizado que contaminará o discurso de todas as forças políticas com actividade legal. Os dois anos que separam o golpe de 1974 da aprovação da Constituição, em Abril de 1976, abrem na História portuguesa a mais com-pleta e típica das conjunturas revolucionárias contemporâneas pela qual o país passou,“[representando] historicamente o mais profundo e ameaçador abalo sofrido por uma oligarquia que desde sempre, em Portugal, reinara incólume e segura de si” (ROSAS, 2004: 138). Dentro deste desenho cronológico, um subpe-ríodo mais intenso desenha-se entre a tentativa falhada do golpe involucionista de 11 de Março de 1975 e o golpe moderado de 25 de Novembro seguinte, contra os sectores militares mais próximos do PCP e da extrema-esquerda.

Antes de mais, assiste-se, como ocorre sempre em grandes momentos liber-tadores da História, à libertação da palavra, das atitudes, dos afectos, das atitudes e das práticas sexuais. Contestam-se, ou simplesmente suspendem-se, uma infi-nidade de rituais sociais e símbolos que se percebem como representativos do autoritarismo. Expõe-se, honra-se, publicita-se a memória da repressão, se bem que rapidamente se deixe de o fazer durante as duas décadas seguintes.9

Por outro lado, descreve-se a realidade com palavras muito diferentes. O arran-que da mobilização de massas protagonizada pelas forças sociopolíticas da esquer-da mais assumida, obriga a que todos os protagonistas da mudança política, mili-tares obviamente incluídos, definam como Revolução o processo aberto pelo golpe militar, e desse modo o discurso político enche-se da terminologia revolucionária que antinomiza Revolução/Reacção; propugna por um Poder Popular, a Unidade Po-pular de tons chilenos, a exigência d’a Terra a quem a trabalha!, logo ampliada para o princípio de organização política d’o Poder aos trabalhadores!; a ideia de necessidade da mobilização permanente, d’o povo alerta em oposição às manipulações reaccionárias, nas quais também o processo português será rico. No terreno mais específico da disputa entre a extrema esquerda e o PCP, a primeira recupera conceitos stalinistas dos anos 30 como o socialfascismo ou o socialimperialismo para os aplicar ao papel desempenhado, à escala internacional, pela URSS e, à escala nacional, pelo PCP.

Sob o impulso dos movimentos sociais, procede-se ao quase eufórico des-mantelamento do Estado autoritário, e em boa medida do próprio autoritaris-mo tão óbvio em sociedades com características como a portuguesa. Em alguns campos, o contexto social é praticamente libertário, já que, uma vez esvaziado de conteúdo o sistema de poder anterior, não se chega a edificar um alternativo.

Neste terreno, a interpretação do processo de mudança radical que se desencadeia em tão pouco tempo na sociedade portuguesa centrou-se quase sempre, tudo indica

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que excessivamente, em esquemas explicativos que reproduzem verdadeiras teorias da conspiração de lógicas muito semelhantes àquelas que presidem às explicações que, em tantos outros casos de mudanças revolucionárias, as elites tradicionais – vítimas da mudança, desapossadas do poder – subscrevem. O avanço da pouca investigação que se tem produzido no nosso país em torno dos movimentos sociais ocorridos e/ou organizados neste período tem permitido relativizar – só não sabemos se também na leitura do público em geral – uma explicação do período revolucionário, daque-le que ainda hoje se gosta de designar por PREC (Processo Revolucionário em Curso), centrada no papel sobreavaliado dos directórios dos partidos revolucionários (PCP e extrema esquerda), ou no de uma dezena de dirigentes da esquerda militar, aos quais se teriam contraposto os directórios dos partidos democráticos ou moderados (PS e di-reita parlamentar), aliados a outra dezena de dirigentes militares moderados e a uma rede ainda pouco estudada de forças internacionais, globalmente representativas do Ocidente. Esta matriz de explicação é em tudo coerente com uma sociedade como a portuguesa, cujo modelo de desenvolvimento permitiu que as elites sociais e polí-ticas reservassem para si um papel comparativamente superior àquele que noutros casos nacionais as elites conseguiram preservar, percepcionando a generalidade dos processos de mudança social como produto do impulso das elites, ou de segmentos delas, e raramente como processos mais ou menos espontâneos originados no seio das massas populares e dos grupos sociais dominados. Em minha opinião, não so-mente as elites conservadoras que se sentiram ameaçadas pelo processo revolucioná-rio de 1974-76 embarcaram neste tipo de explicações, como já em 1910 ou em 1820 haviam embarcado, se analisarmos a história das direitas contemporâneas portugue-sas e a sua particular leitura da História; também no seio das elites autorrepresentadas como progressistas este mesmo comportamento pode ser detectado, ainda que, natu-ralmente, o sentido da sua leitura história seja o inverso.

Em qualquer caso, viveu-se naqueles anos uma experiência absolutamente única de participação política, dificilmente comparável, pela intensidade e du-ração, a qualquer outra europeia desde o início da Guerra Fria. A rua tornara-se um espaço permanente de manifestação. A primeira convocatória de eleições com sufrágio universal, em Abril de 1975, mobiliza 91,2% dos inscritos. Até 1983, a participação eleitoral nas legislativas mantém-se bastante acima dos 80% (83,3% em 1976, 87,5% em 1979, 83,1% em 1980), um nível significativamen-te mais elevado do que na Espanha dos mesmos anos, envolvida no processo da Transição, por exemplo, e, há que sublinhá-lo, do que em quaisquer eleições desde então. Nos organismos sociais verte-se o grosso dessa participação, des-de as assembleias e os comités de empresa aos sindicatos, nas cooperativas de

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autogestão que resultam do abandono patronal de uma infinidade de empresas, nas comissões de moradores organizadas informalmente. Nestas muito variadas experiências, geraram-se em última análise os sistemas de gestão democrática dos organismos públicos e as entidades independentes de controlo dos serviços públicos que se consolidaram no período constitucional.

De tudo isto, resulta uma sociedade muito mais livre, substancialmente mais lai-ca, com o passar do tempo mais urbana ou urbanizada, na qual a maioria da popula-ção se pode permitir valorizar mais o capital escolar, e que, por conseguinte, dispõe de mais oportunidades distribuídas de forma significativamente menos desiguali-tária, que consome muitos mais produtos culturais do que no passado, e, apesar de concluída a massificação social do consumo dos media, muito mais diversificados.

Especialmente significativa é a mudança no universo feminino. As mulheres portuguesas ocupam boa parte do espaço público do qual antes estavam ausen-tes, recuperando em pouco tempo muito do caminho entretanto percorrido pelas mulheres da Europa. Por alturas do final da década, as mulheres trabalham mui-to mais fora do reduto doméstico e familiar, ocupam a maior parte dos lugares discentes do ensino secundário (aqui também dos lugares docentes) e superior; dentro da família, consagra-se o direito ao divórcio para os matrimónios católi-cos (1975) e a reforma do Código Civil (1976), que instaura a igualdade total de direitos entre homens e mulheres e revoga legalmente princípios e conceitos do passado que se haviam tornado inaceitáveis para a maioria da sociedade, como a subordinação da mulher dentro do casal e da família, a ilegitimidade dos nascidos fora do matrimónio ou a perseguição legal dos homossexuais.10

2.2 Uma revolução no mundo do trabalho e da propriedade

O universo das relações laborais é aquele em que o fenómeno revolucionário terá operado transformações mais profundas. Um sem fim de reivindicações históri-cas do movimento dos trabalhadores encontra a sua consagração legal: o salário mínimo, o direito à contratação colectiva, a greve, a restrição do direito patronal do despedimento, que passa a ser submetido a um critério de “justa causa”, a uni-versalização dos sistemas públicos de segurança social, o controle político dos pre-ços dos “bens de primeira necessidade”... 1974 e, sobretudo, 1975 são anos de um aumento muito significativo do nível retributivo: os salários reais beneficiaram de um crescimento de 12% em 1974 e de 9% em 1975 (cf. LEÃO, 1992: 177).

A esquerda política e social fracassará, isso sim, na defesa do “Estado de Bem Es-tar” como legado inexpugnável daquilo a que se chamariam as conquistas da Revolução. Antes de qualquer outra consideração, porque se deu conta que não tivera tempo de

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Beneficiários e recursos das políticas sociais 

(cf. BARRETO, 1996: 99, 134-35, 417)

1960 1970 1975 1980

Beneficiários Segurança Social1 1.187,4 2.386,7 3.288,7 3.733,1

Gastos Segurança Social/P.I.B. 1,7% 3,8% 9,1% 8%

Gastos públicos Educação/P.I.B. ---- 1,9%2 2,8% 4,1%

Gastos públicos Saúde/P.I.B. 0,9% 1,8% 3,7% 4,2%

1 Em milhares.2 1972.

lançar as bases da sua construção, e havia antecipado etapas na sua edificação. Pro-curava-se atribuir ao sistema escolar particulares capacidades de correcção da discri-minação social, ampliando a escolaridade obrigatória (dos seis anos adoptados em 1964, sob a ditadura, para os nove que não se adoptariam antes de 1986), declarando todo o sistema gratuito quando obrigatório, e “tendencialmente gratuito” nos seus níveis subsequentes. Não obstante, os desequilíbrios sociais e regionais engoliam as transformações legais, sabotando-as com obstáculos como os níveis elevadíssimos de fracasso e abandono escolar, o elitismo das práticas curriculares e a óbvia incapaci-dade do sistema escolar de alterar profundamente a própria lógica da sociedade.

No campo da saúde, as resistências corporativas à construção de um Sistema Na-cional de Saúde e a evidente falta de empenho dos Governos pósrevolucionários, contemporâneos já da vaga neoliberal que varria entretanto a Europa, em opor-se à hegemonia dos interesses privados, configurou um verdadeiro paradoxo histórico no caso português: quando, trinta anos depois do final da II Guerra Mundial, se reu-niram as condições políticas para tentar universalizar em Portugal políticas sociais, o ambiente político-ideológico na Europa ocidental começava a mudar, ajudado pela conjuntura de recessão económica internacional, invertendo a grande aposta no Wel-fare State e gradualmente reduzindo o empenho governativo na sua prossecução.

Estatisticamente, no entanto, não restam dúvidas de que o período pósrevolu-cionário, apesar de todas as suas contradições, lançou as bases de um empenho mais forte por parte do Estado português na sua função social, sobretudo com a universalização legal de cobertura da Segurança Social. Contudo, de modo mui-to mais telúrico, são as grandes mobilizações populares dos anos 1974 e 1975 que alteram o aspecto, pelo menos esse, do país.

Por todo o lado, se bem que muito mais no Sul do que no Norte, ocupam-se casas e constituem-se comissões de moradores que se autoatribuem funções de

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gestão local dos bairros, algumas conseguindo a colaboração de distintos ac-tivistas e/ou técnicos que desencadeiam procedimentos espontâneos de rees-truturação urbana de áreas degradadas, escapando a um controle efectivo por parte dos poderes públicos institucionais.11 Os movimentos laborais reivindi-cativos, que evoluíam com demasiada rapidez em direcção ao mecanismo da greve, que, finalmente, deixara de ser (automaticamente) reprimida, expuse-ram ressentimentos, cumplicidades entre entidades patronais e Estado repres-sor, e uma infinidade de queixas e denúncias. Verificada pelo lado patronal a perda de controlo dos mecanismos de produção, os proprietários optaram pela fuga de capitais (cf. LEÃO, 1992: 179), seguida do abandono das suas empresas e até do País, constituindo, em Espanha, no Brasil ou na África do Sul, uma re-taguarda de apoio aos ambientes conspiradores da ultradireita involucionista (cf. SÁNCHEZ, 1993).

De forma mais sequencial que contemporânea destes comportamentos, assem-bleias de trabalhadores decidem-se pela ocupação de empresas, que logo acabaram intervencionadas pelo Estado ou autogeridas pelas Comissões de Trabalhadores. Em alternativa, procede-se ao saneamento das hierarquias empresariais e de muito do pes-soal técnico, tido como cúmplice dos antigos proprietários. As movimentações são, maioritariamente, dirigidas por activistas do PCP e da extrema esquerda, sobretudo a de matriz maoísta, que lhes disputa permamentemente a liderança e procura de-monstrar o carácter burguês e revisionista dos anteriores; mais raramente, algum acti-vista do PS apareceria envolvido nestes processos, mais habitualmente enquadrado em curiosas coligações com a extrema esquerda do que com comunistas.

Receoso dos efeitos desestabilizadores daquilo que poderia ser percebido como um excessivo impulso das reivindicações populares, o PCP actuou geral-mente como elemento moderador nos primeiros meses posteriores ao 25 de Abril. O impulso da extrema esquerda e o desafio involucionista terão conduzi-do, a partir de inícios de 1975, a uma transformação substancial do papel desem-penhado pelos comunistas, que embarcam numa competição com os grupos à sua esquerda, contribuindo para radicalizar as lutas operárias.

Nesse ano, sobretudo a partir do fracasso do golpe spinolista de 11 de Março, o Estado, num processo que “resultou sobretudo de factos consumados impos-tos pelas forças político-sociais dominantes no momento, não tendo obedecido a nenhum plano consciente e previamente elaborado”, nacionaliza várias empre-sas, começando por todo o sector da banca e seguros, nas mãos de uns quantos grupos económicos – os chamados sete magníficos – que, até então, controlavam amplíssimos sectores da economia. Daqui resultou um “sector empresarial do

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Estado, que até então tinha tido uma dimensão e significado praticamente irri-sórios, e que atingiu uma importância e uma proporção muito próximas das da generalidade dos países da Europa Ocidental” (LEÃO, 1992: 175).

Provavelmente, o mais simbólico dos movimentos sociais, entre todos os que poderiam escolher-se como representativos do período revolucionário, terá sido o das ocupações de terras,“fortíssimo indício da diversidade social, cultural e política da realidade nacional” (FERREIRA, 1993: 121), já que se concentrou quase exclu-sivamente na área da grande propriedade fundiária, ou seja, praticamente toda a metade meridional do país (Alentejo, boa parte do Ribatejo, franjas da Beira Baixa e do Algarve) – aquela que se chamará Zona de Intervenção da Reforma Agrária (ZIRA).

Distinguem-se três fases (cf. BARROS, 1981: 60-75) no processo, numa se-quência de aceleração. Na primeira, entre o final de 1974 e Julho de 1975, a paralisia total dos investimentos e das contratações e o abandono patronal das propriedades empurra os trabalhadores, ainda pouco enquadrados pelos sindi-catos agrícolas, para a realização das primeiras ocupações, que correspondem a cerca de um oitavo das terras que se ocuparão até ao final do período. A segunda decorre no chamado Verão Quente da Revolução portuguesa, Agosto-Setembro de 1975, e nela se procede, já sob a acção dirigente dos sindicatos agrícolas he-gemonizados pelo PCP, a um conjunto de ocupações que correspondem a um pouco mais de um quarto das terras ocupadas, conseguindo-se politicamente a legalização do movimento através da expropriação e da nacionalização das grandes propriedades envolvidas. A terceira, por fim, cobre o último trimestre de 1975 e Janeiro de 1976, período dividido em duas metades pelo golpe mi-litar moderado de 25 de Novembro de 1975 que encerra a breve hegemonia política da esquerda militar, mas que, contudo, não evita, por algum tempo, a onda de ocupações, que nesta última fase compreendem cerca de 60% da terra socializada (todos os cálculos proporcionais em BARRETO, 1989: 459). Em circunstâncias políticas crescentemente hostis, os ocupantes da terra procura-vam nessa fase consolidar o processo, ampliando-o, e arrancar do Estado um compromisso de crédito de emergência.

De todo o processo resulta a socialização de 35% do território da ZIRA; esta, por sua vez, representava 41% da superfície do território peninsular por-tuguês e 46% da sua superfície agrícola cultivada. Neste terço da metade Sul de Portugal,“sem que houvesse um projecto claro de qual o tipo de unidade de pro-dução que deveria suceder ao sistema capitalista fundiário” (BARROS, 1981: 107), constituem-se, durante aqueles anos, meio milhar de Unidades Colectivas de Produção (UCP’s) sobre uma propriedade do solo legalmente transferida para

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as mãos do Estado, que, no seu conjunto, empregam 60 mil trabalhadores.12 Por seu turno, passa a operar um muito débil sector cooperativo, sintomaticamente associado àqueles que politicamente confluíram no Partido Socialista (PS).

A estratégia de legalizar a Revolução conduziu à inclusão no texto constitu-cional de um conjunto de preceitos que procurava assegurar a irreversibilidade legal da apropriação colectiva da grande propriedade fundiária, e desse modo resguardar, com a lei na mão, a Reforma Agrária das transformações políticas que se aproximavam. Não obstante a boa implantação eleitoral do PCP em todo o território da ZIRA (33,4% e 37,6% dos votos nas duas eleições parlamentares de 1975 e 1976), que lhe permitiu controlar um segmento muito consistente do respectivo poder local (com 41,8% dos votos) nas primeiras eleições municipais de 1976 (cf. As Eleições..., 1980), os comunistas, a extrema esquerda e alguns ele-mentos da ala esquerda socialista (que se reviam sobretudo no seu dirigente Lo-pes Cardoso) foram incapazes de impedir o início da reversão legal definitiva do movimento de ocupações uma vez aprovada, pelo primeiro Governo socialista de Mário Soares com a ajuda da direita parlamentar, a Lei Barreto (Lei n.º 7/77, 29 de Setembro). O fenómeno ficava politicamente liquidado com a primeira revisão da Constituição, em 1982, culminando um processo de esvaziamento da Reforma Agrária seguida pelos Governos socialistas, conservadores e mistos.

2.3 A pluralidade das forças e das opções sociopolíticas na construção da 

democracia

A conspiração dos capitães de Abril tinha previsto, desde o seu início, um pro-cesso de abertura política que permitiria resolver o problema militar e colonial. De modo algum, contudo, tinha deliberadamente querido propiciar um proces-so democratizador que evoluísse em direcção a um quadro revolucionário que alteraria tão radicalmente a paisagem política portuguesa.

Antes de mais, esse quadro criou dificuldades insuperáveis à reorganização do espaço político ocupado pelas elites do regime anterior, o Estado Novo. Ao con-trário do caso espanhol, e excepção feita a altos comandos militares, foram rarís-simos os casos de destacados membros da hierarquia política derrubada em 1974 que conseguiram criar para si próprios um caminho no Portugal democrático.13

A primeira geração de organizações que procuravam recuperar elementos dos níveis intermédios do antigo partido único – a Acção Nacional Popular, versão marcelista da velha União Nacional salazarista – incluiu experiências tão eféme-ras como o Movimento Federalista Português, logo chamado Partido do Progres-so, o Partido Liberal, o Movimento Popular Português ou o Partido Nacionalista

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Português. Todos parecem ter resultado de uma tentativa artificial de oferecer ao isolado primeiro Presidente da República designado pelo Movimento das For-ças Armadas, o general Spínola, um apoio à sua resistência à descolonização e às suas teses pseudofederalistas. Nos arquipélagos atlânticos, os Açores e a Madeira, constituem-se, com especiais ligações a meios políticos norteamericanos, a Fren-te de Libertação dos Açores (FLA) e a Frente da Libertação da Madeira (FLAMA), que optam por uma inédita postura separatista que se poria em prática, no teste-munho de alguns dos envolvidos, se um sistema de modelo soviético se implantasse em Lisboa.14 A consumação da derrota política de Spínola e a sua demissão em 30 de Setembro de 1974, leva à ilegalização de todos estes grupos, conservando-se somente o Partido da Democracia Cristã, que, impedido de apresentar-se nas eleições constituintes de 1975, se ficará pelos 0,5% dos votos nas legislativas de 1976. Eleitoralmente, de resto, a ultradireita que se manteve organizada à mar-gem dos partidos da direita clássica (CDS e PSD) – o que exclui, portanto, os ciclos de viragem mais abertamente populista protagonizados por líderes como Manuel Monteiro, Paulo Portas ou Santana Lopes – nunca conseguiu reunir apoios signi-ficativos (1,1% em 1976, 0,2% em 2005).

Os ambientes assumidamente involucionistas submergem-se desde o Outo-no de 1974 numa aparente clandestinidade, constituindo grupos armados – o Exército de Libertação de Portugal, o Movimento Democrático de Libertação de Portugal, ou o plano Maria da Fonte, que recrutavam os seus operacionais entre os ultras antimarcelistas da fase agonizante da ditadura, autodesignados combatentes do Ul-tramar. Entre Maio de 1975 e Dezembro de 1976, o “anticomunismo terrorista” de que fala Sánchez Cervelló leva a cabo mais de meio milhar de operações ter-roristas, das quais resultam, pelo menos, 14 vítimas mortais. Coberto pelo medo dos meios moderados ao avanço do PCP, a sua estruturação “baseou-se em quatro componentes: o apoio da hierarquia eclesiástica, cujo epicentro foi o arcebispado de Braga; a ajuda operacional, técnica e económica de Espanha, que além disso proporcionava uma retaguarda segura; a colaboração com os militares contrários ao 25 de Abril que vertebraram todo o movimento, tornando-o eficaz; e, por úl-timo, a concordância de todas as forças políticas desde os socialistas até à direita, maioritárias nos distritos do centro e norte do País” (SÁNCHEZ, 1993: 237).

As actuações conspiradoras desta galáxia, que traçam um sombrio “tempo proscrito” (cf. DÂMASO, 1999) de que se falou até agora muito pouco na revisão do período revoucionário português, ajudam-nos hoje a interpretar o comporta-mento das elites sociais conservadoras, como se Portugal, ou pelo menos a sua metade meridional e os seus centros urbanos, estivessem a viver em 1975 um

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Grande Terror revolucionário, versão portuguesa. A amplitude das cumplicidades, que vão dos saudosistas da ordem salazarista até ao líder socialista Mário Soares, do embaixador norteamericano, Frank Carlucci (futuro número dois da CIA) até à esquerda moderada militar de tendência terceiromundista, passando pelos prelados católicos e pelas elites intermédias do Norte e Centro rurais, dão-nos um indício de como se terá propagado o medo da tomada do poder político por parte dos co-munistas. De uma forma ou de outra, todos confluíram, durante a segunda metade do ano de 1975, na preparação do golpe de 25 de Novembro que afasta definitiva-mente do poder a esquerda militar próxima ao PCP e à extrema esquerda.

No outro lado da barricada política, aparece-nos o PCP, que, apesar da sua nula experiência legal, se revela a mais forte e mais antiga (nascida em 1921) organiza-ção oposicionista portuguesa, um caso paralelo ao da França ou da Itália da última guerra mundial, ou ao da Espanha do Franquismo.“O PCP foi o único partido capaz de manter um aparelho clandestino eficaz, facto que determinou a sua hegemonia no movimento de resistência ao longo da maior parte do período [de 1941-74]” (RABY, 1990:16). É o próprio Mário Soares quem entende que “o único partido que foi capaz de resistir à clandestinidade, embora com inúmeras baixas causa-das pela impiedosa repressão, foi, nesses anos cinzentos, após a reorganização de 1941, o PCP, apesar da longa prisão do seu principal líder, Álvaro Cunhal, ocorrida em 1949” (SOARES, 1996: 938) A longa clandestinidade, que praticamente cobre toda a história do partido até ao 25 de Abril, juntamente com a solidez da lide-rança carismática de Álvaro Cunhal, ajudarão a entender um percurso ideológico muito diferente dos seus congéneres europeus, bem como a maior proximidade às teses do PCUS, acentuada com as críticas que, a partir de 1975, os eurocomunistas italianos e espanhóis, empenhados em esquemas de reconciliação nacional, formu-lam ao PCP. Os comunistas portugueses, pelo contrário, desde a fuga de Cunhal e de outros nove dirigentes, em 1960, da prisão da PIDE no Forte de Peniche, que haviam feito uma autocrítica relativamente tanto à estratégia da “solução pacífica” para conseguir o fim da ditadura, formulada em 1957, como quanto às “ilusões putschistas” alimentadas, havia poucos anos, dentro do partido, mas sobretudo pelos grupos moderados da oposição antifascista desde praticamente o 28 de Maio de 1926. Como sustenta Raby, “embora a Revolução do 25 de Abril de 1974 fosse obra do MFA, a explosão popular que se lhe seguiu ficou a dever-se, em grande parte, ao persistente trabalho político do PCP ao longo das décadas anteriores, às ideias que difundiu”, bem como, naturalmente, “ao exemplo de homens como Humberto Delgado, Henrique Galvão e Manuel Serra e ainda à crescente acção da esquerda revolucionária a partir do início dos anos 60” (RABY, 1990: 279).

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À saída da ditadura, a capacidade organizativa, sem comparação com as demais forças políticas emergentes, a sua muito importante implantação regio-nal no Sul agrícola e nas cinturas industriais de Lisboa e Porto, atraem ao PCP um número crescente de inscritos (14 mil em Julho de 1974, 29 mil em Outubro de 1974, 100 mil em Março de 1975), muitos dos quais tê-lo-ão eventualmente tomado, de forma precipitada, por um partido de poder. Ora, a tese maioritária entre os observadores contemporâneos do período revolucionário, sobretudo aqueles cuja perspectiva ideológica acabará por se tornar dominante, interpreta o comportamento do PCP como obedecendo a uma estratégia de hegemonia políti-ca que passaria previamente pelo controle das alavancas fundamentais do poder numa sociedade fundamentalmente conservadora que passava então por um transe revolucionário. Tal estratégia suporia integrar numa aliança a maioria dos militares rebeldes de Abril de 1974, a conquista das instâncias do poder formal (governo central e municipal), a hegemonia no movimento sindical e dentro das estruturas unitárias às quais havia dado vida a oposição democrática no consulado marcelista (caso do Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral, MDP/CDE); por último, o controlo dos meios de comunicação social.

Nas suas linhas gerais, não só o PCP terá fixado efectivamente aqueles objec-tivos, mas o mesmo também o terão feito, nuns casos mais do que noutros, todas as grandes famílias sociopolíticas, isto é, o PS, a nova direita pósmarcelista, ou a própria extrema esquerda, por separado ou em conjunto. E se é certo que o PCP foi o único dos grandes partidos a participar em todos os seis Governos provisó-rios constituídos até às primeiras eleições legislativas, apenas num deles – o V, dirigido como os três anteriores por um militar que lhe estava próximo, Vasco Gonçalves – no qual não tinham querido participar socialistas e populares de-mocráticos, conseguiu impor as suas grandes opções; a sua vigência não superou cinco semanas entre Agosto e Setembro de 1975.

Na avaliação retrospectiva do peso dos comunistas portugueses no processo revolucionário, ocupa um lugar central a aparente surpresa que causou nos obser-vadores moderados os 12,5% dos votos que o PCP consegue no conjunto nacional em Abril de 1975, o que constitui metade da percentagem que obtém na metade Sul do país, e muito abaixo do peso político que reivindicava e se lhe atribuía. Em-bora fosse possível tentar somar-se-lhe o resultado obtido pelo MDP/CDE, o seu aliado táctico sempre que não confluía com a extrema esquerda, com os seus 4,1%, a dimensão eleitoral não confirmava a aparente dimensão política, o que, por sua vez, propiciou que no comportamento dos comunistas transparecesse cada vez mais uma explicação leninista do processo revolucionário, no qual eles próprios ocupa-

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vam a posição de vanguarda. Uma visão retrospectiva do fenómeno mostra-nos os comunistas, submetidos à pressão radicalizadora da extrema esquerda, tentando a partir de então estender até ao mais longe possível aquilo a que chamavam “as con-quistas da Revolução”, para logo esperar o refluxo da maré revolucionária e passar à defensiva, quase seguramente conscientes da impossibilidade real de tomar o po-der, ou pelo menos sem nunca arriscar qualquer confontação directa, armada.

A médio prazo, os comunistas perderão todas as grandes batalhas políticas em que se empenham, as quais, em última análise, se resumem à tentativa de defender um modelo político-constitucional inédito na Europa ocidental, no qual uma sociedade economicamente organizada ainda em moldes capitalistas se declarava constitucionalmente “empenhada na sua transformação numa so-ciedade sem classes” e em “transição para o socialismo” (arts. 1º e 2º da Consti-tuição da República Portuguesa, texto vigente entre 1976 e 1982). Paradoxalmente, conseguiram ampliar o seu espaço eleitoral nos dez anos seguintes (1976: 14,6%; 1979:19%; 1985: 15,6%), para logo defrontar-se com o impacto negativo da im-plosão do sistema soviético (1991: 8,8%; 1995: 8,6%) que, produzindo conse-quências em todo o quadro político mundial e na evolução da esquerda europeia em particular, trouxe efeitos lacerantes para o interior do PCP.

A última fase da ditadura e o fulgor revolucionário que se lhe seguiu abriu es-paço político às muito variadas famílias da extrema esquerda portuguesa. A con-quista de um enraizamento significativo entre os jovens, sobretudo os estudan-tes das camadas médias e altas urbanas, e a sua grande capacidade de atracção de elementos populares automobilizados fora da área do PCP, apesar da sua escassa implantação operária, reserva-lhe um papel central na radicalização do processo revolucionário. Como ocorre na generalidade dos casos europeus, a sua origem pode ser situada numa cisão comunista, aquela que em 1963 Francisco Martins Rodrigues protagoniza dentro do PCP, criando a Frente de Acção Popular. Mas na década seguinte tentaram consolidar-se cinco grandes correntes.

Os maoístas em primeiro lugar. Os mais constantes, criam em 1964 o Comité Marxista-Leninista Português, que, mudando sucessivamente de designação e de modelo de organização, confluiu na mais bem sucedida das entidades políticas des-te sector, a União Democrática Popular, que detém autonomamente um assento parlamentar entre 1975 (0,8% dos votos) e 1983 (1,4% nas eleições de 1980), e tor-nará a possuir uma representação parlamentar mínima ao confluir com trotskistas e radicais de esquerda, em 1999, numa das mais bem sucedidas experiências eu-ropeias de renovação deste sector político, a da criação do Bloco de Esquerda (BE: 2,4% dos votos nas legislativas de 1999, 2,8% em 2002, 6,4% em 2005).

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No campo variadíssimo dos que reivindicavam uma inspiração na via chine-sa, emergem organizações prioritariamente hostis ao PCP, com um fortíssimo poder de atracção nos ambientes estudantis da burguesia, e que, mais do que noutros casos, se esvaziaram muito rapidamente no final do período revolucio-nário, numa diáspora política e profissional, em direcção aos grandes partidos moderados do sistema, o mundo empresarial, a universidade ou os media. O mais apelativo terá sido o Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP) que resulta, em 1970, da Esquerda Democrática Estudantil. Juntamente com outras organizações Marxistas-Leninistas (ML), travará batalhas constantes contra o “revisionismo dos socialfascistas do PCP”, constituindo uma pequena frente esquerdista abertamente oposta aos militares do MFA.

Nas suas margens, emergem organizações que enveredam pela luta armada durante a ditadura, com escassíssimos resultados: a Liga de Unidade e Acção Re-volucionária (LUAR, criada em 1967), as Brigadas Revolucionárias (criadas em 1971) que se fundem com o Partido Revolucionário do Proletariado (PRP/BR) em 1973, que opta por permanecer clandestino depois do 25 de Abril. O im-pacto simbólico de algumas das suas acções, não obstante, terá levado o PCP, na última fase da Guerra Colonial, a criar um efémero braço armado, a Acção Revo-lucionária Armada (1970-72), que se limita a operações de sabotagem militar. Nenhum dos dois fenómenos terá ligações com a única e breve experiência de luta política armada em Portugal desde finais dos anos 70, as Forças Populares 25 de Abril, desmanteladas em 1984, tendo como referência um militar de Abril politicamente inclassificável, Otelo Saraiva de Carvalho.

A componente trotskista, muito débil, desta esquerda é uma das últimas a comparecer aos debates políticos da oposição mais radicalizada contra a ditadu-ra. O seu sector maioritário constituirá os Grupos de Acção Comunista em 1972, a Liga Comunista Internacionalista no ano seguinte, e consolidar-se-á no Partido Socialista Revolucionário (1978), que revelará grande adaptabilidade ideológi-ca nos anos 90, até conseguir atrair descontentes dos dois grandes partidos da esquerda portuguesa e idealizar o BE, cuja identidade ideológica está sobretudo marcada pelo legado do PSR e pelos impulsos políticos de uma nova geração de activistas, grande parte dos quais oriundos do mundo universitário, que tem empurrado o papel do BE mais para um terreno mais semelhante àquele que, no âmbito daquelas que aparecem descritas como grandes questões de civilização, de-sempenhava o Partido Radical italiano nos anos 70 e 80, do que propriamente para experiências semelhantes às da Refundação Comunista italiana ou da extre-ma esquerda francesa (LCR e LO) dos últimos anos.

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Por último, a franja eleitoralmente mais numerosa da extrema-esquerda do período revolucionário (representará 2,1% dos votos em 1975, 1,2% em 1976) foi a que reuniu jovens católicos progressistas e activistas sindicais que estive-ram na origem quer do Movimento de Esquerda Socialista, quer da Frente So-cialista Popular, uma cisão pela esquerda do PS do final de 1974. Os primeiros, ao ingressar nas fileiras socialistas em finais da década (entre eles, o actual Pre-sidente da República, Jorge Sampaio), farão o percurso inverso dos activistas da segunda, a única entre todas estas organizações que colaborará frequentemente com o PCP. No momento crítico (Agosto/Setembro) do Verão Quente de 1975, o ponto de mais forte radicalização à esquerda do PCP, estas organizações, jun-tamente com MDP/CDE, os trotskistas, a LUAR e o PRP/BR, confluem com os comunistas numa efémera Frente de Unidade Revolucionária.

Representando eleitoralmente, e em toda a sua variedade, 4 a 5% do eleito-rado nas eleições de 1975 e 1976, o canto do cisne da extrema esquerda acabará por ser a candidatura presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho, que em Julho de 1976 reúne 16,7% dos votos frente ao triunfante candidato conjunto dos so-cialistas e da direita, Ramalho Eanes.

No terreno eleitoral, a chamada esquerda sociológica estará na sua grande maio-ria representada no PS, que se configura organizacionalmente como um amplo comité eleitoral, crescentemente sustentado no poder local. Os socialistas portu-gueses, seguindo em boa parte o modelo dos seus companheiros franceses da SFIO dos anos 40, 50 e 60, ao não poder reivindicar uma forte raiz operária, são herdeiros de uma tradição republicana burguesa que se aglomera em torno de organizações efémeras de notáveis nos anos 40 e 50, evoluindo em direcção a formas mais assumi-damente socialistas como a Acção Socialista Portuguesa (criada em 1964, admitida em 1972 na Internacional Socialista) e, só em 1973, um Partido Socialista. Entre o PS e a ASP, não mais de 190 activistas assegurariam, entre 1964 e 1974, a presen-ça política deste sector na vida portuguesa.15 A figura de Mário Soares (Primeiro Ministro em 1976-78 e 1983-85, Presidente da República em 1986-96, de novo candidato presidencial em 2005-06) resulta imprescindível à interpretação do fenó-meno, e insubstituível na liderança socialista na primeira década da democracia.

Desde o início de 1975 que o papel do PS se torna central na configuração do processo democratizador português. A demissão de Spínola (Outubro de 1974) e a consequente viragem involucionista das forças conservadoras, juntamente com a debilidade organizativa da direita política, tinha a sua imagem especular no impulso revolucionário das reivindicações sociais e na forma como os comu-nistas demonstravam a sua capacidade para ocupar gradualmente os espaços

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políticos e institucionais deixados vazios pela implosão das estruturas do Estado autoritário. Livre da sua ala mais radical no Congresso de Dezembro de 1974 (saída dos socialistas populares de Manuel Serra), o PS de Soares, como frente de resistência anticomunista, passa então a atrair os apoios das elites e poderes tra-dicionais, empenhando-se em combates frontais com o PCP em temas como a rejeição da unicidade sindical que os comunistas querem impor, ou a sua presença julgada excessiva na direcção dos meios de imprensa. Desde a vitória eleitoral nas constituintes de Abril de 1975 que os socialistas se tornam, numa lógica muito tí-pica da Guerra Fria, na peça fundamental na estratégia normalizadora das potências ocidentais, os norteamericanos em primeiro lugar, juntamente com a Internacio-nal Socialista, e muito particularmente o SPD alemão, o que lhes permite pressio-nar decisivamente na direcção do afastamento dos militares próximos ao PCP do Governo, negando-se a participar neste entre Julho e Setembro, e empenhando-se eficazmente nos manejos secretos que conduzem ao golpe de 25 de Novembro e à viragem anticomunista que definitivamente se produz nesse momento.

Quase a partir do nada, o PS encontra-se, em 1975, com uma presença transver-sal na sociedade. Outorgam-lhe a sua confiança a pequena burguesia urbana dos ser-viços e a rural, os operários menos organizados (particulamente no Norte), os seg-mentos ideologicamente independentes do mundo profissional liberal, com uma concentração eleitoral típica dos movimentos modernizadores da sociedade portu-guesa, isto é, no litoral e nas cidades. São estes, conjunturalmente apoiados durante o período revolucionário por todos quanto confluíam no PS para “barrar o caminho ao PCP”, que lhe fazem reunir 37,9% dos votos em 1975 e 35% um ano mais tarde.

O crescimento e a consolidação do PS resulta também da incapacidade, ou a im-possibilidade prática, do mundo católico em formar uma ampla frente política de-mocrata cristã como as constituídas em Itália ou na Alemanha do pósguerra. Resul-ta curiosa, neste sentido, a coincidência entre dois processos democratizadores tão distintos como o português e o espanhol. O carácter católico tão “ideologicamente intrínseco” do regime salazarista, como definiu Braga da Cruz (1980: 17), a confes-sionalização assumida de todas as suas políticas sociais – na educação em primeiro lugar, na saúde e na assistência social – das organizações de doutrinamento de mas-sas (Mocidade Portuguesa, masculina e feminina, Legião Portuguesa, Organização das Mães para a Educação Nacional, organismos corporativos, Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), de todas as formas de propaganda e de censura, em suma, das dimensões institucionais do regime e da versão da própria identidade nacional que este tentou impor, dificultaram enormemente a emergência de quaisquer manifes-tações de autonomia ideológica do mundo católico perante o regime.

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Comportamentos dissidentes isolados como os do padre Abel Varzim ou do bispo do Porto, em 1958, vêem-se reforçados com o Concílio Vaticano II. Abre-se por aí um caminho à relativamente pouco numerosa, mas muito simbólica, corrente dos católicos progressistas que, nos anos 60, se reúnem em redor da revista O Tempo e o Medo, da cooperativa cultural Pragma, dos GEDOC (Grupos de Estudo, Documentação, Intercâmbio, Experiências), e ganham protagonismo na Liga Operária Católica e nas Juventudes Escolar e, sobretudo, Operária Católicas. Os mais avançados partilham com activistas da oposição democrática, entre os quais estão muitos comunistas, as listas eleitorais das Comissões Democráticas Eleitorais de 1969 e 1973, e protagonizam nos últimos anos da ditadura con-frontos com o regime que a este resultam particularmente irritantes pela identi-dade católica dos opositores. Depois de 1974, boa parte deles milita já no PS ou estão politicamente dispersos por alguma extrema esquerda (MES), muito mais raramente no PCP, através do seu activismo sindical.

A maioria do activismo católico e a hierarquia da Igreja permanecem nesta con-juntura, essas sim, fiéis a uma visão reaccionária do mundo, que vê com verdadeiro terror a contestação moral e ética que, durante o período revolucionário, se produz contra o seu peso na vida quotidiana e na formação de opinião, ao mesmo tempo que sofre a denúncia da política de compromisso com a ditadura. Embora os protagonis-tas do novo regime democrático e das forças da esquerda tradicional (comunistas e socialistas) tenham aparentemente usado de cautelas extremas para evitar cair na confrontação aberta entre Estado e Igreja como a que se desencadeou na Primeira Re-pública (1910-26), o ímpeto revolucionário, a laicização rápida das práticas sociais, em revelador contraste com o crescente pluralismo das crenças que se acentua com o fenómeno do afluxo dos excolonos de África, crispa os integristas e o segmento mais involucionista da hierarquia (dioceses do Norte, e em particular o arcebispado de Bra-ga nos tempos de D. Francisco Maria da Silva), que se misturam nas movimentações da extrema direita, tornando-se a chave da luta anticomunista do Verão de 1975.16 A Igreja mobilizar-se-á regular e eficazmente em todos os períodos eleitorais, embora o faça sobretudo de forma negativa, contra o PCP e, quando a direita se apresenta unida logo no final dos anos 70, o PS. O período mais intenso deste comportamento termi-na com as eleições presidenciais de 1986, nas quais os dois candidatos que se defron-tam (Mário Soares e Freitas do Amaral) acrescentam à sua identidade política uma contraposição laica/confessional, e teve um ressurgimento em 1998 com o referendo à discriminalização do aborto.17

Um dos dois grandes partidos da direita democrática, o Centro Democráti-co e Social (CDS), tenta apresentar-se logo no período revolucionário sob uma

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identidade democrata cristã, mas o seu escasso peso eleitoral – 7,7% em 1975, 16% em 1976 – no conjunto das direitas eleitorais impede que a Igreja, como faz noutros casos nacionais, aposte definitivamente numa única opção política. A reforçar estes obstáculos iniciais, as tentativas de organizar um sindicalismo cristão não se conseguiram consolidar. O CDS ofereceu, contudo, a elementos jovens do marcelismo uma via possível de reciclagem democrática, embora te-nha conservado um tal elitismo sociológico, concentrado nos meios tradiciona-listas de Lisboa e do Norte e Centro do país, que dificilmente superaria o invento político mais bem sucedido da direita, o Partido Popular Democrático (PPD), rebaptizado Social Democrata (PSD) em 1976.

O PPD, que, ao contrário do CDS, é convidado a participar em todos os Gover-nos provisórios do período revolucionário, e que, como o PS, rejeitará ingressar em apenas um deles (o V), funcionou rapidamente como elemento aglutinador das forças conservadoras e populistas, socialmente não elitistas e que maioritaria-mente não se autodefinem como confessionais. Uma parte dos seus fundadores, além disso, podiam, uma vez mais em contraste com o CDS, revindicar um papel publicamente destacado na oposição final à ditadura, ao ter constituído a chamada Ala Liberal dos deputados oficialistas em 1969-72, que rompe abertamente com Marcelo Caetano ao comprovar a sua falta de vontade de abertura. Juntam-se-lhes alguns tecnocratas marcelistas, católicos moderados, os elementos das elites tradicionais do Norte e no Centro que não se revêem no CDS, e destacados re-presentantes dos excolonos de África, que afluem a Portugal em 1975-76. O PPD reúne, assim, em 1975, 26,4% dos votos e, um ano depois, 24,4%, consolidando-se definitivamente como a força hegemónica da direita portuguesa ao hegemonizar a Aliança Democrática que ganha as eleições de 1979 e 1980 e, sobretudo, ao ser o primeiro partido da história da democracia a conseguir a maioria absoluta dos votos e dos lugares parlamentares (1987 e 1991).

O país eleitoral que o sufrágio desenha, pela primeira vez na História contempo-rânea, e que conserva até hoje a sua distribuição no espaço, aparece claramente divi-dido em duas metades, separadas por uma linha transversal que passa algures a Nor-te do Tejo, entregando à direita o Norte e Centro da pequena e média propriedade juntamente com as ilhas (com a excepção dos Açores depois das eleições regionais de 1996), e à esquerda o Sul da grande propriedade e de estrutura industrial pesada nascida nos anos 50, juntamente com pontos significativos do litoral Norte e Centro, como, na grande maioria das eleições legislativas e presidenciais, a área metropoli-tana do Porto, as zonas industrializadas do Minho e a região de Coimbra. Apesar do fenómeno da concentração eleitoral nos grandes partidos do centro esquerda (PS)

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e do centro direita (PSD) – 64,3% em 1975, 50,6% em 1985 (o seu ponto mais bai-xo), 79,7% em 1991 (o seu ponto mais alto), 73,7% em 2005 – que alternam rotati-vamente no poder, a pluralidade do sistema representativo, numa paisagem política de que estão ausentes partidos de âmbito regional, garante, ainda hoje, a presença parlamentar a cinco candidaturas distintas (uma menos que em 1975, uma mais que no período 1983-85 e 1991-99): PS, PSD, coligação PCP/Verdes, CDS, BE.

Outra componente do sistema sociopolítico é, evidentemente, o movimento sindical. Historicamente débil em Portugal, uma sociedade com pouca tradição sin-dical, em cujo tecido económico predominava uma economia agrária de baixíssimos conteúdos tecnológicos, ao lado da qual vegetava um aparelho industrial que não acabaria de mudar estruturalmente a economia até ao segundo pósguerra mundial, o movimento sindical manteve, até ao derrube da República liberal, uma hegemonia anarcosindicalista, produtora de organizações confederais como a União Operária Nacional (UON, 1914-18) e a Confederação Geral do Trabalho (CGT, criada em 1919 e definitivamente ilegalizada em 1927, assumindo uma acção rigorosamente clandes-tina desde o fracasso da greve geral de 1934). Esta última teria conseguido em 1925, na sua fase mais tardia de acção legal, a sindicalização de qualquer coisa como 21% dos trabalhadores activos na indústria e nos serviços, dos quais haveria que retirar provavelmente cerca de 1/7 que corresponderiam a trabalhadores rurais.18

São efectivamente as estruturas sindicais constituídas pelo regime salaza-rista a partir de 1933, e que comunistas e católicos progressistas começam a penetrar desde finais dos anos 60, a constituir uma herança natural para os acti-vistas que pretendiam, a partir do 25 de Abril, construir um movimento sindi-cal que participasse activamente nas transformações revolucionárias. O grande elemento de continuidade formal, embora evidentemente não de conteúdo, resultava do facto de que a Primavera Marcelista dos primeiros anos do governo de Caetano ter permitido, graças à aprovação de legislação (cf. Decreto-Lei n.º 49.058, de 14.6.1969) que relaxava o controlo directo exercido pelo Governo sobre as direcções sindicais, permitindo a eleição, nos anos imediatamente subsequentes, de muitos activistas comunistas e católicos progressistas para os orgãos directivos de alguns dos sindicatos mais representativos. As Reuniões Intersindicais que congregam desde 1970, de forma semiclandestina, as direc-ções de uma vintena de sindicatos constituem a experiência fundadora da Intersindical Nacional (IN).19 O processo de desmantelamento daqueles a que a ditadura chamava os Sindicatos Nacionais, começa com aquilo que a IN definiu em 1974 como a sua “iniciativa autónoma de democratização” daqueles (cf. CGTP-IN - 20 anos...), propondo-se desde logo controlar o seu património. A

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partir da viragem à esquerda do Outono de 1974, com a demissão de Spínola, desencadeia-se aquilo que habitualmente se descreve como tendo sido a “estra-tégia maximalista e afinal suicidária do PCP” (FERREIRA, 1994: 165) na ques-tão da unicidade sindical, em grande parte seguida de acordo com os activistas católicos do mundo sindical, e que pretendia consagrar legalmente, em Abril de 1975, o desdobramento de organismos sindicais representativos do mesmo sector profissional. Os comunistas e os seus aliados defrontam-se então com os socialistas, que beneficiam do apoio conjuntural de alguma extrema esquerda, que perdem a batalha legal em 1975 para logo ganhá-la na redacção definitiva do texto constitucional aprovado em 1976, que consagrava “a liberdade da consti-tuição de associações sindicais a todos os níveis” (art. 57º).

Com a segunda vitória eleitoral socialista, em Abril de 1976, e a constituição do primeiro Governo Constitucional, “é como partidos do poder (e consequen-temente do Estado) que PS e PSD”, com a colaboração activa do CDS, coorde-nam uma estratégia de criação de sindicatos alternativos aos agrupados à volta da IN, com o apoio financeiro e logístico das fundações políticas alemãs (a social-democrata Friedrich Ebert, a liberal Naumann, e a democrata cristã Adenauer) com as quais estabelece laços orgânicos (cf. FERREIRA, 1994: 160), de forma muito similar ao que ocorreu quase contemporaneamente em Espanha. Nasce assim, a partir de cima, o movimento Carta Aberta que reúne uma centena de direcções sindicais e que rompe, em Agosto de 1976, com a IN no processo de convocatória do Congresso de Todos os Sindicatos (Janeiro de 1977), no qual a IN se transforma na Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP- IN).

Da Carta Aberta nascerá em Outubro de 1978, a União Geral dos Trabalhadores, e a constituição da segunda central sindical permite perceber os contornos finais do modelo sindical português. Nos anos seguintes, consolida-se uma relação de forças que favorece uma confederação (CGTP-IN) de maioria comunista, partilhada com sectores católicos progressistas, socialistas de esquerda e elementos da extrema esquerda, que assegurou até meados dos anos 80 a afiliação de praticamente três quartos dos sindicalizados; e uma confederação socialista-liberal-cristã (UGT), so-bretudo representada no terciário, agrupando um quinto dos filiados nos sindica-tos portugueses. Neste sentido, mas apenas neste, reproduz-se de alguma forma um modelo semelhante ao que até aí dominava nos demais países latinos da Europa Ocidental nos anos 70 e até meados dos 80. Em finais desta ultima década, o redi-mensionamento do predomínio da CGTP-IN (57% dos sindicalizados em 1986-90, contra 33% da UGT, segundo CERDEIRA; PADILHA, 1990) ajudou a aproximar ainda mais o caso português da situação francesa, italiana ou espanhola.

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No caso português, acrescenta-se-lhe uma outra herança formal do sistema corporativo, isto é, uma taxa de sindicalização sensivelmente superior à média eu-ropeia, que um estudo de 1969 fixava em 59%. Outra investigação governamental no início dos anos 90 (CERDEIRA; PADILHA, 1990), traçava uma curva irregu-lar na taxa de sindicalização que teria baixado no período revolucionário (média de 52,4% em 1974-78), subindo nos primeiros anos de competição entre as duas centrais sindicais (1979-84: 58,8%), e voltado a baixar até aos 52,6 % de 1985-86, para logo aproximar-se, por baixo, dos mais altos níveis europeus (1989/90: 42%, ou nunca mais de 35% segundo um trabalho académico inédito de José Barreto). Essa taxa, segundo o mesmo estudo, estaria próxima de 100% em sectores como a banca e seguros, muito elevada entre os funcionários da Administração Pública, mas tendia a baixar muito significativamente nos anos 80 em quase todos os demais sectores, sobretudo serviços privados e indústria. O número de sindicatos teria subido dos 328 corporativos recenseados em 1973 até aos 372 em finais dos anos 70 (cf. VALEN-TE, 1996), número máximo que tenderia a partir de então, também ele, a baixar. Os anos 80 são, portanto, em Portugal como no resto do continente, sinónimo de refluxo da sindicalização, mas curiosamente significaram também o reforço da participação eleitoral nas eleições sindicais: dos 30,4% em 1974-79, passou-se aos 38,4% em 1979-84, e os números terão depois continuado a subir.20

O derrube de um regime autoritário que se preocupara em esfriar o ambien-te político do primeiro quarto de século, isto é, em despolitizar os comparati-vamente restritos segmentos da população portuguesa que se empenhavam em actividades cívicas ao longo da Primeira República, tinha sido obra do Movimento das Forças Armadas (MFA), que emergiu de uma instituição militar de dimensões excepcionalmente inflacionadas no contexto do esforço bélico que se levava a cabo em África. A leitura anteriormente proposta de um processo político de-mocratizador que se escapa das mãos dos conspiradores militares triunfantes em 25 de Abril de 1974 não contradiz a tese de Sánchez Cervelló que vê “duas características essenciais da Revolução portuguesa: a hegemonia militar e a su-balternidade civil, à margem dos modelos políticos que para o futuro do país projectavam uns e outros” (SÁNCHEZ, 1993: 185).

O MFA constituiu na sua origem “uma metamorfose da instituição militar para esta se insubordinar e derrubar o regime ditatorial, e para gerir o complexo e convulsivo período seguinte”, devendo para tanto «‘mobilizar’ um corpo de inter-venção especial politico-militar» (FERREIRA, 1993: 224). Uma das características essenciais da instituição castrense, a cadeia de comando, viu-se crescentemente interferida por uma lógica representativa e democratizadora que rapidamente

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produziria rupturas no modelo que implicitamente se tentara construir de uma transição para a democracia sob tutela militar.

À margem de estruturas mais facilmente tipificáveis como a Presidência da República, que foi ocupada por três militares – Spínola e Costa Gomes de modo provisório, Ramalho Eanes já legitimado pelo voto popular – até à eleição presi-dencial de 1986, ou os Governos Provisórios que se constituíram entre 1974 e a tomada de posse do primeiro Governo saído das eleições legislativas de 1976, a oficialidade levada ao poder constituiu inicialmente uma Junta de Salvação Na-cional, substituída por um Conselho da Revolução depois do fracasso do golpe de 11 de Março de 1975, transformado no período constitucional no órgão de fiscalização da constitucionalidade das leis e que desaparecerá definitivamente na primeira reforma do texto fundamental em 1982.

Com ambos os órgãos estabeleciam-se entidades de comando político-milita-res que, dadas as circunstâncias excepcionais do momento, quebravam as regras de precedência, promoção e hierarquia militar em geral. A introdução de uma lógica democrática, para não dizer revolucionária, acentua-se claramente com a criação, em Novembro de 1974, de assembleias de delegados do MFA - uma por cada ramo das Forças Armadas e uma quarta que congregava representantes de todas elas -, uma percentagem significativa dos quais era eleita. Em Março de 1975 introduz-se nestas assembleias a representação dos soldados, o que acen-tuava ainda mais um processo de osmose entre instituição militar e sociedade politizada, numa fase de “incorporación forzosa de muchos jóvenes que habí-an desertado por motivos políticos, (...) gente fuertemente politizada que acabó ayudando a la generalización de la indisciplina” (SÁNCHEZ, 1996: 250-51).

A dimensão da metamorfose das Forças Armadas portuguesas resulta ainda mais visível ao instituir-se o MFA como verdadeira força de acção sociopolítica de aceleração das transformações democráticas. Neste sentido, o MFA firmou com os partidos políticos dois pactos formais anteriores às eleições constituintes de Abril de 1975 e às legislativas de Abril de 1976. Reconheceu-se-lhe a prioridade política na tomada de posições no processo de descolonização, motivo desencadeador do golpe militar e terreno no qual, até à demissão de Spínola, a divisão interna do MFA era particularmente evidente. Tudo o que fosse referente à política de Defesa e aos aspectos de organização do aparelho militar era da sua competência exclusiva.

A grande maioria das actuações mais especificamente sociopolíticas do MFA eram realizadas por dois instrumentos de actuação paramilitar. O primeiro era de aparência exclusivamente militar: o Comando Operacional do Continente (COP-CON), formalmente encarregado de intervir em “situações de ameaça à paz e

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tranquilidade públicas”, coordenando forças militares e policiais (cf. Decreto-Lei n.º 380/74, 8 de Julho), comandado por Otelo Saraiva de Carvalho, o qual conseguiu assim uma plataforma fundamental para desenvolver o seu papel no período revolucionário. A actuação do COPCON em todo o tipo de movimentos sociais desde a ocupação de terras e casas até à socialização de fábricas, revelou, apesar do seu carácter frequentemente incoerente e irregular, uma aproximação aos procedimentos mais típicos de boa parte da extrema esquerda que a si atrai-ria o próprio Otelo nos anos seguintes. Pelo contrário a criação da 5ª divisão do Estado-Maior Geral das Forças Armadas (cf. Decreto-Lei n.º 400/74, 29 de Agos-to), com funções muito amplas no campo da chamada Acção Psicológica (termi-nologia herdada da Guerra Colonial), informação, divulgação e doutrina “sócio-militar”, e em particular da sua Comissão de Dinamização Central (CODICE), propiciou a organização de Campanhas de Dinamização Cultural, que se levaram a cabo entre Novembro de 1974 e Agosto de 1975 nas regiões do interior Norte e Centro do país, juntamente com os Açores, territórios nos quais, durante boa parte do período revolucionário, a soberania das decisões do novo poder saído da Revolução não foi efectivamente exercida. A actuação de milhares de milita-res e voluntários civis teve dimensões educativas, como a alfabetização, sanitá-rias, de obras públicas e de consciencialização política, que pretendiam levar a Revolução até onde quase nada parecia ter mudado. O recrutamento dos seus di-rigentes e a caracterização política dos protagonistas das suas acções aproximou a 5º divisão da actuação da esquerda revolucionária (PCP e extrema esquerda), e contribuiu para a politização assumida do MFA.

Reflectindo a divisão da sociedade no período de mais forte politização, o MFA transformou-se na instância em cujo seio se dirimiram duas concepções contrapostas de construção do sistema democrático. Por um lado, os militares do Grupo dos Nove e os sectores castrenses conservadores que os apoiam, con-vergem tacticamente com o PS e a direita política e militar, e preparam a der-rota da versão radical do projecto revolucionário que, do outro lado, um sector significativo do MFA havia assumido, pretendendo introduzir (ou não se opor a) alterações estruturais na organização capitalista da economia e da sociedade. É a primeira concepção que triunfa com o golpe de 25 de Novembro de 1975, assegurando a transição de um sistema de poder revolucionário inevitavelmen-te caótico e criativo para um modelo democrático formal, parlamentar, tempo-rariamente sob tutela militar. Definitivamente derrotada saía a concepção, for-temente original no quadro dos movimentos castrenses contemporâneos, que pressupunha a construção de um modelo político e social que se definia como

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socialista – adjectivo que, não obstante, andava então nas bocas de praticamente todos os agentes políticos – de legitimidade revolucionária e não exactamente eleitoral, conduzido por uma vanguarda militar. Esta concepção, que parecia he-gemónica nas assembleias do MFA da Primavera e do Verão Quente de 1975, cuja lógica era partilhada pelos sectores mais próximos do PCP e da extrema esquer-da, e que tinha, em campos bem separados e definidos, em Vasco Gonçalves, por um lado, e em Otelo e no COPCON, por outro, protagonistas e instrumento, sai definitivamente derrotada em 25 de Novembro.

2.4 Descolonização e fim de uma identidade imperial

Massificação social, democracia política e descolonização ficaram como os lega-dos fundamentais do período revolucionário que ocupa a franja central dos anos 70 em Portugal. O movimento explicitamente descolonizador vertido na lei n.º 7/74, de 27 de Julho, ao assumir que “o princípio de que a solução das guerras do Ultramar é política e não militar (...), implica, de acordo com a Carta das Na-ções Unidas, o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação”, e de que este, “com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos” (arts. 1º e 2º), abriria caminho, eliminado Spínola como seu obstáculo institucional, ao reconhecimento da independência da Gui-né-Bissau (29 de Agosto de 1974), unilateralmente proclamada em Setembro de 1973, e da soberania que a Índia exercia desde 1961 sobre Goa, Damão e Diu (31 de Dezembro de 1974); à proclamação das independências de Cabo Verde (5 de Julho de 1975), São Tomé e Príncipe (12 de Julho), Moçambique (25 de Setembro) e Angola (11 de Novembro); e à definição constitucional de Macau como “território sob administração portuguesa” sem fazer parte do território na-cional (Constituição de 1976), abrindo, por sua vez, o caminho à negociação da sua tranferência em direcção à soberania chinesa que se concluiu em Dezembro de 1999. Apenas a invasão de Timor Leste por parte de tropas indonésias (7 de Dezembro de 1975), quatro meses depois de o Estado português ter reiterado o reconhecimento do direito do povo timorense à autodeterminação, interrompe-ria um processo já iniciado, que se retomaria com o referendo de 1999 a que o regime indonésio se viu obrigado depois de 24 anos de resistência.

Encerrou-se, assim, e definitivamente, o ciclo colonial da História portuguesa, que tão larga influência e pesado lastro impôs aos portugueses contemporâneos, operando decisivamente na crise da Monarquia Constitucional e do Estado Novo e contribuindo indirectamente (impulsionando o Governo português para a in-tervenção na guerra mundial) para a crise da Primeira República. Deste processo

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histórico resultou uma redefinição radical da identidade histórica e política de Portugal, que muitos, entre os quais me encontro, interpretaram na sua essência como fenómeno de libertação do povo português e de todos os que lhe haviam estado submetidos no seu domínio colonial. Nas pouco recordadas palavras de Costa Gomes diante da Assembleia Geral das Nações Unidas, na primeira com-parência de um Presidente português nesse fórum, em Outubro de 1974, nós, os portugueses,“não mais admitiremos trocar a liberdade de consciência colectiva por sonhos grandiosos de imperialismo estéril”.

Não nos surpreenderá, contudo, que num país com as dimensões de Portu-gal, numa sociedade que teve de amadurecer e realizar mudanças tão radicais num tão curto período da sua História recente, este (o colonialismo, a Guerra Colonial, a descolonização) continue a ser um problema de identidade, de me-mória e de falta de capacidade de perceber e assumir todos os danos infligidos a outros, àqueles que foram submetidos à soberania colonial portuguesa e que, por isso mesmo, se viram envolvidos violentamente em processos de transfor-mação interna da sociedade portuguesa cujas consequências não se ficaram pelo interior das suas fronteiras estritas. Sem querer, na conclusão deste ensaio, ini-ciar uma discussão que supera as suas intenções, reconheçamos que, enquanto comunidade nacional, estamos longe de reflectir com frontalidade e honestida-de intelectual nas muito sérias repercussões que este processo histórico teve em nós próprios e nos povos afroasiáticos que nos estiveram submetidos. Esta é, pelo menos, a sensação que se desenha diante de nós quando tomamos pulso aos matizes da opinião publicada, a autobiografia, a ficção literária, cinematográfica ou televisiva, e a publicística escassamente produzidas sobre o tema nos trinta anos que decorreram já desde a Revolução dos Cravos, que nos tem permitido continuar a descrevermo-nos, histórica e eticamente, mais como vítimas do que responsáveis (da dominação colonial, da guerra, da descolonização) – numa autor-representação curiosamente próxima daquela que durante longos anos alemães e austríacos, por exemplo, fizeram de si próprios relativamente à experiência nazi e às suas consequências...

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(1926-1974) no contexto de 150 anos de sufrágio elitista em Portugal. In Encontros de divulgação e debate em estudos sociais. Vila Nova de Gaia. N.º 2 (Eleições), 1º semestre 1997. Pp. 39-51]

6 Cf. Cláudia CASTELO – O modo português de estar no Mundo. O luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961). Porto: Afrontamento, 1998. Manuel LOFF – O Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar na construção do assimilacionismo colonial salazarista. Comunicação ao VI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais (Universidade do Porto), 2000.

7 Rejeitando o processo de autodeterminação iniciado pelo Governo trabalhista de Londres, a minoria branca, dirigida por Ian Smith, proclama a independência da Rodésia em 1965, sendo obrigada a deixar o poder à maioria negra, em 1980, na sequência de um novo processo negocial que conduz a uma nova proclamação da independência daquele que, então, se passa a designar como Zimbabwe.

8 Cf. dados numéricos in Manuel Braga da CRUZ - O Partido e o Estado no Salazarismo. Lisboa: Editorial Presença, 1988. Pág. 83.

9 Cf. Manuel LOFF – Esquecimento, revisão da História e revolta da memória. In Iva DELGADO, Manuel LOFF, António CLUNY, Carlos PACHECO, Ricardo MONTEIRO (orgs.) – De Pinochet a Timor Lorosae. Impunidade e Direito à Memória. Lisboa: Fundação Humberto Delgado/Edições Cosmos, 2000. Pp. 189-202.

10 Cf. Ana Nunes de ALMEIDA; Karin WALL – Família e quotidiano: movimentos e sinais de mudança. In BRITO, 2001.

11 Cf., como estudo à escala local, Maria RODRIGUES – Pelo direito à cidade. O movimento de moradores no Porto (1974/76). Prefácio de Gaspar Martins Pereira. Porto: Campo das Letras, 1999.

NOTAS

1 Este texto resulta da transformação e actualização de um outro que, sob o título de “La fi del colonialisme, ruptura política i canvi social en Portugal en els anys setanta”, apresentei pela primeira vez na jornada de debate “Canvi social i canvi polític. Portugal, Itàlia i Espanya: tres països del Sud d’Europa durant els anys setanta”, no Centre de Cultura Contemporània de Barcelona, em Setembro de 2000, a convite da Fundació Cipriano García – Arxiu Históric de Comissions Obreres de Catalunya, com a colaboração do CCCB, Archivio del Lavoro di Milano e do Grup de Recerca sobre l’Època Franquista da Universitat Autònoma de Barcelona, e que contou com a participação dos professores Carme Molinero e Pere Ysàs (UAB) e Maurizio Magri (Università degli Studi di Milano-Bicocca). Uma primeira versão da sua tradução foi produzida por Vasco Mota Pereira.

2 Para todos estes dados, cf. BARRETO, 1996: cap. 1.

3 Elaboração própria com base em dados de José Salvado SAMPAIO – Evolução do Ensino em Portugal. Metrópole, 1940-41/1966-67 (contribuição monográfica). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1973. Idem – Portugal. A educação em números. S.l.: Livros Horizonte, 1980. UNESCO – Para uma política de educação em Portugal. Trad. port. [ed. ori. francesa: 1975]. S.l.: Livros Horizonte, 1982. E. Marçal GRILO – O sistema educativo. In António REIS (coord.) – Portugal. 20 anos de democracia. S.l.: Círculo de Leitores, 1994. Pp. 406-35.

4 Cf. António REIS – A televisão: arma do poder e janela para o mundo. In António REIS (dir.) – Portugal Contemporâneo, vol. V. S.l.: Pubs. Alfa, 1989. Pp. 203-06.

5 Cf. Manuel LOFF – Electoral Proceedings in Salazarist Portugal (1926-1974): Formalism and Fraud in a 150-year old Context of Elitarian Franchise. In ROMANELLI, Raffaele (ed.) - How Did They Become Voters? The History of Franchise in Modern European Representation. The Hague/London/Boston: Kluwer Law International, 1998. Pp. 227-250 [versão portuguesa: O processo eleitoral salazarista

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12 Sobre todo o processo, cf. também Lino de CARVALHO – Reforma Agrária. Da utopia à realidade. Porto: Campo das Letras, 2004; António MURTEIRA (dir.) – Uma revolução na revolução. Reforma Agrária no Sul de Portugal. Porto: Câmara Municipal de Montemor-o-Novo/Campo das Letras, 2004; Fernando Oliveira BAPTISTA – O 25 de Abril, a sociedade rural e a questão da terra. In BRITO, 2001.

13 Caso excepcional terá sido o do ministro da Educação Nacional do último Governo da ditadura, Veiga Simão, um tecnocrata “reformista”, que é nomeado imediatamente depois do 25 de Abril representante de Portugal nas Nações Unidas, e a médio prazo conseguirá postos ministeriais em Governos socialistas. Adriano Moreira, ministro do Ultramar nos primeiros anos ’60, terá que esperar até aos primeiros anos 80 para conseguir um assento na direita parlamentar e, a partir de então, uma forte respeitabilidade democrática.

14 Sobre esta temática praticamente sem investigação que lhe tenha sido dedicada, cf. Nuno Costa SANTOS – Um país desfeito no mar. In Grande Reportagem. Lisboa: Setembro 2002. Pp. 77-89.

15 António Arnaut fala em algo “mais de 100 pessoas directamente comprometidas” (cit. in MARTINS, 123-24).

16 Sobre toda a questão, cf. SÁNCHEZ, 1993, DÂMASO, 1999, e o estudo de jornalismo de investigação Günther WALLRAFF – A descoberta de uma conspiração: a acção-Spínola. Trad. port. Amadora: Bertrand, 1976.

17 Para uma síntese da“Igreja na Revolução em Portugal (1974-82)”, com a qual não estou substancialmente de acordo, cf. artigo com aquele título de Luís Salgado de MATOS, in BRITO, 2001.

18 Cf. dados em João FREIRE - Anarquistas e operários. Ideologia, ofícios e práticas sociais: o anarquismo e operariado em Portugal, 1900-1940. Porto: Afrontamento, 1992. Pp. 204-209; Ramiro da COSTA – Elementos para a História do movimento operário em Portugal, 1820-1975. 1.º Vol. (1820-1929). Lisboa: Assírio & Alvim, 1979. Pp. 94 e 100;

Maria Alice SAMARA - Verdes e Vermelhos: Portugal e a Guerra no ano de Sidónio Pais. Lisboa: Notícias Editorial, 2003. Pp. 83-84. Agradeço aqui a ajuda de Silvestre Lacerda na reunião e interpretação destes dados.

19 Sob a minha orientação, Hélder Marques desenvolve desde 2004 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto uma investigação em torno destas questões, em grande parte devedora de materiais recolhidos, em parte também por ele, na Universidade Popular do Porto, num projecto cuja apresentação se faz neste volume.

20 Sobre“O movimento operário e sindical (1970-76): entre o corporativismo e a unicidade”, cf. o artigo com este título de José Carlos VALENTE, in BRITO,

BIBLOGRAFIA

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Fundada em Coimbra, com o subtítulo Revista de Cultura e Arte, a Vértice apareceu pela primeira vez em Maio de 1942 e a sua publicação prolongou-se até 1986, saindo então o número triplo 473/475 relativo a Julho/Dezembro. Dois anos mais tarde, foi adquirida pela Editorial Caminho passando a publicar-se na capi-tal; iniciou a sua 2ª série em Abril de 1988.1

É consabida a relevância da Vértice no panorama cultural português durante o regime ditatorial, constituindo uma publicação de referência incontornável, a par da Seara Nova. Desde os seus primórdios, viu-se confrontada com inúmeras dificuldades que não eram só financeiras mas também decorrentes da censura e da perseguição política movida a membros da sua redacção. Tribuna principal do movimento neo-realista, esta revista identificou-se com o ideário marxista e assu-miu-se como “veículo do materialismo histórico e dialéctico nas suas conexões com a arte e a sociedade”.2 Não obstante esta orientação de base, recebeu a colaboração de intelectuais e artistas de diversas tendências estéticas e doutrinárias, tornando-se palco de numerosas polémicas literárias e ideológicas, sendo sempre, inequi-vocamente, uma revista de resistência e oposição à ditadura. Ressalte-se, ainda, a sua preocupação pedagógico-editorial patente na publicação de numerosos livros, através da colecção “Textos Vértice”, retomada em 1971, bem como a realização de inquéritos vários resultantes do diálogo com os leitores e intelectuais diversos, além

Os Vinte AnOs dO 25 de Abril nA Vértice

Maria da Conceição Meireles Pereira | Instituto de História Contemporânea (IHC) da

Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP)

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da dimensão de “arquivo” que pretendeu alcançar publicando documentos, cartas e textos inéditos dos mais reputados artistas e pensadores dos séculos XIX e XX.

Por outro lado, a divulgação cultural almejada pela Vértice não se confinou ao registo escrito, tendo-se destacado pela profusão iconográfica evidente na reprodução de obras de largas dezenas de notáveis artistas plásticos nacionais e estrangeiros.

As dificuldades de teor financeiro não diminuíram posteriormente ao 25 de Abril de 1974 – haja em vista o factor concorrência – mas a publicação não foi inter-rompida senão na década seguinte, encontrando depois, no modelo empresarial de uma editora consagrada, a viabilidade da sua edição em curso até ao presente. Em Abril de 1988, sob a chancela da Editorial Caminho, a publicação foi retomada, assumindo Francisco Melo, Fernando Correia e Manuel Gusmão, respectivamente, os cargos de director, chefe de redacção e coordenador editorial. Como património cultural nacional que, efectivamente, já era, a biblioteca e arquivo da revista foram entregues à Biblioteca da Universidade de Coimbra e ao Museu do Neo-Realismo.

O editorial do primeiro número desta 2ª série elucida, sem novidades porque reincidindo em propósitos antigos, sobre as suas linhas orientadoras:

“A Vértice é uma revista de intervenção cultural: um espaço, um projecto e um instrumento de reflexão, de crítica, de debate. Uma revista de cultura em sentido amplo: unindo a atenção à criação literária, artística, filosófica e cientí-fica, e a atenção à realidade económica e social e política do País. Será pois deci-didamente multidisciplinar e promoverá a cooperação crítica entre diferentes metodologias e a reflexão interdisciplinar”.

Além das entrevistas e da congregação de contribuições de novas centenas de colaboradores, o formato desta nova série passou a integrar dossiers temáticos apresentados sob o sugestivo título Em Questão, os quais lhe granjearam certa popularidade tornando-se um dos principais atractivos da revista.

Justamente como dossier temático, surgiu a efeméride “Os 20 anos do 25 de Abril”, no número 59 de Março-Abril de 1994.

Este dossier é constituído por treze textos, sendo o inaugural da autoria de Álvaro Cunhal, subordinado ao título “A revolução de Abril 20 anos depois”. De longe o mais extenso,3 este artigo (datado de Fevereiro de 1994) é o que possui autoria de maior notoriedade e, pelo seu iniludível cunho ideológico-partidário, constitui a pedra de toque do conjunto de depoimentos.

Dividido em onze pequenos capítulos que ostentam títulos sugestivos, o texto inicia-se com uma breve introdução sobre a efeméride onde o autor lança os temas que a seguir aprofunda, acusando a comunicação social de reescrever a história, bran-quear o passado fascista, denegrir o essencial da revolução democrática falseando

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papéis e responsabilidades, tudo isto com a finalidade de justificar a “política antide-mocrática actual e a gravíssima situação que está a criar ao país”.

“A ditadura fascista – governo terrorista dos monopólios e latifundiários” é o título do primeiro ponto que contraria a “campanha de desresponsabilização, branqueamento e mesmo valorização da ditadura”, afirmando que o regime anterior ao 25 de Abril assentava no “capitalismo monopolista” sendo correcto caracterizá-lo “como uma ditadura fascista”. Esta definição de carácter político-económico parece, ao autor, e ao seu partido, uma questão chave para o enten-dimento quer daquele período histórico, quer do subsequente:

Para a compreensão da situação e uma caracterização objectiva e correcta da ditadura, a definição simultânea do sistema socioeconómico e do regime é essen-cial para qualquer análise da história de Portugal no século XX. Não se trata de uma questão menor. Essencial não é palavra excessiva.

O PCP deu nesse tempo uma definição, que se tornou clássica, da dita-dura fascista: o governo terrorista dos monopólios associados ao impe-rialismo estrangeiro e dos latifundiários.

Esta definição baseou-se numa análise profunda da sociedade portugue-sa, das estruturas socioeconómicas, das relações e arrumação das classes sociais, do regime político. É fundamental para o conhecimento e a compreensão da situação de Portugal antes do 25 de Abril, da revolução de Abril e suas conquis-tas, da agudeza das contradições conflitos e lutas, da democracia instaurada, do processo contra-revolucionário ulterior, e ainda da perspectiva actual da evolução da situação nacional e da política de que Portugal precisa.4

O ponto seguinte aborda “A crise geral da ditadura e a situação revolucionária” a qual se revestia de quatro aspectos essenciais: “a rápida centralização de capitais e a formação e domínio dos grandes grupos monopolistas”; “a guerra colonial”; “as divisões e conflitos aos mais altos níveis no próprio campo da ditadura”; “finalmente, factor dominante, o vigoroso e impetuoso fluxo da luta popular m todas as grandes frentes”. Tal situação era propícia à ruptura revolucionária e não à reforma interna do regime: “Amadureciam as condições não para uma liberalização a partir do poder políti-co mas para a insurreição militar e popular”.

Justamente a recusa da solução pacífica e defesa do derrube do regime pela força era a posição sustentada pelo PCP – mesmo contra a tendência generalizada a partir do XX Congresso do PCUS” como Cunhal explica no 3o ponto “Os objectivos da

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revolução antifascista e o levantamento nacional”. Esta questão, aliada às duas ante-riores, marcavam a especificidade da oposição comunista portuguesa:

“A caracterização da ditadura, o programa para a futura democracia e a via para o derrubamento do fascismo constituíram elementos inseparáveis que diferenciaram os diversos sectores antifascistas:“três análises, três programas e três vias” caracterizaram então as concepções do PCP, da burguesia liberal e do radicalismo esquerdista”.

No intuito de vincar a correcção da leitura prospectiva da situação de Portugal feita pelo seu partido, o autor evoca os oito objectivos aprovados em 1965, no VI Congresso (último da clandestinidade), os quais seriam indispensáveis à realiza-ção da revolução democrática e nacional da sociedade portuguesa:

“1º Destruir o Estado fascista e instaurar um regime democrático; 2º Liquidar o poder dos monopólios e promover o desenvolvimento económico geral; 3º Realizar a Reforma Agrária, entregando a terra a quem a trabalha; 4º Elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral; 5º Democratizar a instrução e a cultura; 6º Libertar Portugal do imperialismo; 7º Reconhecer e asse-gurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência; 8º Seguir uma política de paz e amizade com todos os povos”.

De seguida, o tópico analisado – “As forças motoras da revolução democrática e as contradições ao nível do poder”– incide na importância do “levantamento popu-lar a nível nacional” que, na óptica, do autor, passou a ser um elemento determinante da revolução, a par do elemento militar. Assim, “a dinâmica da acção popular de mas-sas, com papel determinante da classe operária”, nos anos 1974-1975, terá conferido um carácter de originalidade à revolução portuguesa já que “as grandes conquistas não partiram da iniciativa do poder político, mas da acção revolucionária das massas”.

Por outro lado, o autor afirma que a instauração do regime democrático foi per-turbado por sete factores principais: conflitos no seio do MFA cuja composição ia “da extrema-direita ao esquerdismo anarquizante”; atribuição de altas atribuições a generais que estavam contra a revolução democrática; conflitos entre os partidos participantes dos Governos Provisórios (PCP, PS e PPD); multiplicação de cen-tros de decisão e de poder civil e militar; actividades provocatórias e divisionistas do esquerdismo pseudo-revolucionário; grandes provocações do imperialismo; conspiração dos sectores reaccionários e conservadores e as sucessivas tentativas de golpes contra-revolucionários. Relativamente a estes últimos, o autor sublinha que constitui “uma grosseira falsificação da história apresentar como eixo dos conflitos

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no decurso da revolução democrática supostas tentativas de tomada do poder pelo PCP”. Assim, no ponto “Golpes contra-revolucionários e terrorismo bombista”, refere as limitações do programa do MFA no tocante à instauração das liberdades democráti-cas e aquilo que considera terem sido as numerosas conspirações contra o PCP apoia-das pelos “sectores reaccionários das forças armadas”, pelos grupos monopolistas, pela sabotagem económica, pela convergência de acção do “grande capital e dos gru-pos esquerdistas pseudo-revolucionários (MRPP, AOC, entre outros)”. Seguem-se as interpretações, razoavelmente detalhadas dos golpes: o de Palma Carlos (Julho de 1974) que entre outros aspectos pretendia a “exclusão dos comunistas do governo” e acabou levando Vasco Gonçalves a Primeiro-Ministro; o 28 de Setembro preparado pela chamada “maioria silenciosa” que fracassou “e a contra-revolução sofreu nova pesada derrota”; o 11 de Março que teve Spínola “de novo como mentor e chefe” e também falhou. Nesta questão, o autor insiste que persistiu a “falsificação da história” e o encobrimento de cumplicidades e compromissos e, em “vez da verdade, continua até hoje da parte de alguns a invencionice caluniosa e indigna de classificar o 11 de Março como uma tentativa de golpe... do PCP!... ou, segundo outros... do KGB!!”

No mesmo tom, assegura que a “história e as responsabilidades da vaga de terroris-mo bombista no“verão quente” de 1975 também não estão totalmente esclarecidas e conhecidas. (...) Está porém muita coisa por contar”.

Quanto ao 25 de Novembro, Cunhal entende-o como um “golpe militar da direita aliada aos“moderados” de que resultou a derrota da esquerda militar, a disso-lução efectiva do MFA e por esta forma a perda da componente militar da revolução popu-lar”. Na óptica do autor, o 25 de Novembro não liquidou o processo de configura-ção do regime democrático mas terá criado “uma nova correlação de forças que abriu caminho mais fácil à formação de governos com uma política contra-revolucionária”.

O ponto seguinte (“A revolução de Abril – transformação democrática da sociedade portuguesa”) analisa as reformas profundas operadas nas áreas econó-mica, social e cultural. Todavia, refere que a revolução não libertara Portugal de pressões do capitalismo e do imperialismo, enquanto que os partidos – PS, PPD e CDS – “e todas as forças reaccionárias e conservadoras” tentaram entravar o curso democrático, como a própria elaboração da Constituição.

O ponto sete, sugestivamente intitulado “Política de verdade e política de mentira” encerra um elogio profundo aos propósitos “frontais e transparentes” do PCP, o partido “que fala verdade ao povo” e que “travou a luta com inteira verda-de”, a par da detracção de outros partidos, o PS e o PPD/PSD, que agiram “com manifesta mentira e má-fé”. Enquanto o PCP assume “inteira responsabilidade” – expressão reiteradamente utilizada em vários parágrafos – os outros “ocultaram

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os seus objectivos e a verdade dos facto, fugiram às suas responsabilidades e lançaram as mais caluniosas e indignas acusações contra o PCP”.

Após esta análise maniqueísta, o texto prossegue, naturalmente, para o ponto “A destruição das conquistas de Abril contra a democracia, contra Portugal” que analisa as “ofensivas antidemocráticas” nas vertentes económica, social, cultural e política dos governos anteriores e do então actual governo do PSD de Cavaco Silva. A submissão dos interesses portugueses aos interesses estrangeiros e a progressiva destruição do aparelho produtivo avultam entre as acusações àquele “governo de direita”, respon-sável pela “penosa crise no presente e que faz pesar sobre Portugal gravíssimas ameaças para o futuro”. Esta é também a tónica do item seguinte, “As cinco vertentes da democracia e da política antidemocrática”, que apresenta a restauração do capitalismo mono-polista em curso “já há mais de 16 anos” como negação da democracia, conferindo um carácter retrógrado e antidemocrático à política de direita dos sucessivos gover-nos de Portugal. Esta é ainda a toada predominante no capítulo “Valores de Abril no futuro de Portugal”, pese embora aqui se afirme que a “política voltada para o futuro é aquela que propõe o PCP”, fazendo assim a transição para o último capítulo intitula-do “Componentes fundamentais de um programa democrático”. Estas são as cinco componentes fundamentais exaradas do programa aprovado no XIV Congresso do Partido Comunista Português (1992) que propunham “uma democracia avançada no limiar do século XX” assente no entendimento da democracia política como “um regime de liberdade”; o desenvolvimento económico com vertente social; uma política social como garantia da melhoria das condições de vida materiais e espirituais do povo; uma política cultural e de educação e ensino; finalmente, “a democracia que o PCP propõe tem como condicionante (que se pode considerar uma quinta componente) a independência, a sobe-rania e a integridade do território do país” valor inalienável do Povo, da Nação e do Estado”.

Reivindicando a reconsideração da participação de Portugal na NATO e na UEO, este texto-panfleto termina lembrando que a revolução de Abril foi uma afirmação histórica do direito à independência nacional o qual está salvaguarda-do na “política democrática proposta pelo PCP”.

Completados os 80 anos de idade e pouco mais de um ano depois de renunciar ao cargo de secretário-geral do PCP (assumindo então o título de presidente do Conselho Nacional), Álvaro Cunhal regressava assim às páginas da Vértice com um artigo que funde memória pessoal com análise histórico-política e, sobretudo, plasma a ideologia de um partido e a leitura da sua intervenção nos anos imediata-mente anteriores e nas duas décadas posteriores à revolução dos cravos.

Não foi, todavia, a última vez que escreveu sobre tais temáticas. Quatro anos mais tarde, deu uma extensa entrevista à jornalista Catarina Pires que, “arrumando”

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o texto em cinco apartados – A História, O Mundo, A Política, A Arte e As coisas da vida – publicou o livro Cinco conversas com Álvaro Cunhal.5 É justamente nas secções reservadas à história e à política que se podem encontrar as mesmas interpretações da Revolução de Abril, do 11 de Março, do 25 de Novembro, reafirmando teses já exaradas na Vértice: “Agora, ao fim de 22 anos de contra-revolução, é que eles estão a caminho de completar o processo, institucionalizando a contra-revolução em termos da Constituição, em termos de legalidade”.6

De forma ainda mais cabal, essas teses são reapresentadas e aprofundadas no livro que o chefe histórico do PCP publicou no mesmo ano de 1999 – isto é, no 25º aniversário do 25 de Abril – A verdade e a mentira na revolução de Abril (A contra-revolu-ção confessa-se).7 O título é, já por si, sugestivo e retoma posições assumidas no artigo atrás analisado. Senão, atente-se na “explicação” que abre a introdução da obra:

“Na acção política, a verdade constitui um valor identificador de uns e a mentira uma prática viciosa e sistemática de outros. Dos partidos e fora dos partidos.

Revelaram-se, na Revolução de Abril e na contra-revolução, como elementos característicos da identidade de cada partido e das suas dife-renças. Também dos vários sectores militares.

A novidade, sobretudo a partir do 20º aniversário do 25 de Abril, é que, destruídas muitas das principais conquistas da Revolução e em vias de institucionalização de objectivos estratégicos contra-revolucionários já alcançados pela prática de sucessivos governos, as forças da contra-revolução e seus protagonistas abriram-se em confissões.

Confissões individuais, abundantes e prolixas, soltas, incompletas, par-ciais e dispersas. Esclarecedoras também, seja cada uma por si, seja quan-do, cerzidas as mil e uma peças do puzzle, se completam umas às outras.

Valiosas para a história da Revolução de Abril e da contra-revolução. Valiosas para que se conheçam e reconheçam verdades sempre afirma-das pelo PCP, então desmentidas pelas mentiras da contra-revolução”.9

O segundo texto reúne os testemunhos produzidos numa mesa-redonda subor-dinada ao tema “A juventude e o 25 de Abril”.10 Cinco jovens entre os 23 e os 30 anos, com percursos pessoais e familiares de esquerda, respondem às questões formuladas por dois membros do conselho de redacção da Vértice. A grelha de perguntas é sugestiva, revelando não só as ideias dos entrevistadores como a sua previsível sintonia com os entrevistados: que memória guardam dos acontecimen-

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tos de 1974; quando é que tudo deixou de ser possível; se estão de acordo que actu-almente existe um maior condicionamento da vida e do pensamento das pessoas; como é que deveriam ser assinalados os 20 anos do 25 de Abril.

Apesar da diversidade das memórias/vivências individuais, da ordem das respostas nem sempre seguir a das perguntas e de alguns elementos serem mais participativos do que outros, os depoimentos convergem em alguns aspectos. Desde logo a exultação da revolução, da sua alegria e euforia, mas também o desencanto do incumprimento de Abril, deixando tudo de “ser possível” depois do 25 de Novembro e nos tempos posteriores devido à “inflexão para a direita”. Pela conversa perpassam temas afins como o panorama político recente, a forma-ção da opinião pública e o papel da comunicação social, entre outros.

Segue-se um texto poético da autoria de Maria Velho da Costa, um nome já publicado na 1ª série da revista; trata-se de um poema datado de Março de 1978, intitulado “Esta lei” e que exalta a Constituição.10 O mesmo tema, também aborda-do poeticamente, aparece mais à frente pela pena de E. M. de Melo e Castro sob o título “Poema Constituinte”.11

A justiça, a economia e a medicina são os assuntos visitados em seguida. No primeiro destes artigos (“O 25 de Abril e a Justiça Administrativa”)12, Guilherme da Fonseca analisa a profissão de magistrado no período de Salazar/Marcelo Caetano, sublinhando a dependência dos tribunais administrativos do governo. A alteração desta situação decorreu da revolução de 1974, pese embora a moro-sidade do sistema judicial se tornasse benéfica à Administração política. Daí as duas conclusões finais: o 25 de Abril nada deveu à justiça administrativa (apenas aos militares); a revolução operada na justiça portuguesa merece o apoio do poder político para que haja o cumprimento dos direitos constitucionais dos cidadãos.

Em “A economia portuguesa e o 25 de Abril (Breves traços de um proces-so)”13, Fernando Sequeira utiliza uma grelha analítica à primeira vista semelhan-te: após uma rápida abordagem da economia portuguesa antes da revolução refere as transformações dela decorrentes, preferindo, contudo, evidenciar “as sementes económicas de Abril”, isto “mau grado a profundidade, complexidade, heterogeneidade e persistência do processo político e ideológico desenvolvido de 1974 até aos nossos dias” no qual se denota o “choque das ideias e consequên-cias do 25 de Abril, com as ideias e as práticas de uma orientação de regresso ao passado”. Na óptica do autor, a persistência dos princípios revolucionários ficava a dever-se às “lutas das massas populares e dos trabalhadores”.

O artigo assinado por Sérgio Ribeiro aborda “Os médicos e o 25 de Abril”14 numa perspectiva específica: as formas de associação profissional polarizadas

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entre a Ordem e os Sindicatos dos Médicos, realçando o autor as vantagens do movimento sindicalista face ao carácter centralizador da Ordem.

“Notas para um debate sobre o “Estado Novo”, o 25 de Abril e a descoloniza-ção” é o extenso título de mais um pequeno artigo que não passa justamente de uma listagem de notas telegráficas sobre o complexo e relevante tema da guer-ra colonial e da descolonização, aqui unicamente tratado através destas duas páginas confusas.15 O facto justifica-se da seguinte forma: uma nota da redacção explicava que só então lhe era possível publicar o texto preparado pelo autor para o colóquio sobre a Guerra Colonial, cujas intervenções tinham sido incluídas no “Em Questão” do número anterior subordinado ao tema “Guerra Colonial, Estado Novo e regime democrático”.16 Complementarmente, Sérgio Ribeiro elucidava, em jeito de introdução, que não lhe havia sido possível beneficiar de grande parte das sessões do colóquio, que a sua intervenção fora apresentada a partir de “notas alinhadas durante a viagem de avião”, que passar ao papel essa intervenção era “dificuldade não pequena” e que aproveitava agora as notas “até por uma questão de fidelidade”, além de que não provocara debate.

Avelino Gonçalves assina o artigo “Memória do 25 de Abril”17 no qual, na qualidade de sindicalista portuense, exara algumas lembranças de teor quase exclusivamente pessoal e factual, sobre o dia da revolução.

Também de cunho pessoal, são as considerações feitas por Manuel Frias Martins – um autor que vem da 1ª série da Vértice” sobre a poesia portuguesa das três últimas décadas. Isto, porque no artigo “Poesia contemporânea: o dito e o não dito”18 reflecte sobre a sua condição de crítico literário e, paralelamente, sobre a polémica suscitada pela sua caracterização da poesia entre 1974-1984, numa obra19 que foi contestada por um Manifesto assinado por dezasseis poetas.

O estudo de Maria Helena Serôdio intitulado “O teatro Em Portugal hoje: breve caracterização”,20 encerra uma abordagem bem sistematizada e fundamentada do tema proposto, evidenciando a fragilidade do “tecido estrutural”. Num primeiro ponto, apresenta as conclusões alargadas do Primeiro Congresso do Teatro Português, reali-zado na Fundação Calouste Gulbenkian entre 22 e 24 de Novembro de 1993. Depois, evoca as “memórias de outros protestos e de algumas realizações” com o necessário recuo às primeiras medidas de renovação da vida teatral depois de Abril, continuando esta visão histórica com a menção de “alguns desenvolvimentos posteriores”. Segue-se a enunciação dos principais aspectos do sistema de produção teatral nos anos 90, completada com a referência a financiamentos e realização artística. O sexto e último ponto deste estudo que – coisa rara neste dossier, termina com uma lista bibliográfica – aborda a questão da “Dramaturgia portuguesa e a sua relação com o teatro”.

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Também de actividade artística, incluindo o sector das artes plásticas, trata Rui Mário Gonçalves no artigo “Ondas e marés da política e do mercado”.21 Tal como o título indica, o autor analisa a influência das conjunturas política e eco-nómica na valorização da actividade artística, desde 1974 aos anos 90. Neste âmbito cronológico evidencia quatro períodos que depois condensa em dois, cada um contendo outros tantos subperíodos. Assim, os anos de 1974-1977 são marcados pela sobrevalorização da actividade revolucionária, sendo esta leitura ideologizada da arte preterida pelo pluralismo liberal entre 1977-1983; a partir de então a referência tornou-se primordialmente economicista, sendo a marca do período 1983-1990 “arrogantemente empresarial”, enquanto os anos seguintes denotam o “grito da aflição económica” e “a irresponsabilidade actual dos tecnocratas”.

O último texto é constituído por um pequeno apontamento ficcional da autoria de Modesto Navarro. “Saudades do Dia” (re)conta, em poucas palavras, a história do dia da revolução através da experiência vivencial de um rapaz de 12 anos, pobre e suburbano.22

Um aspecto a destacar neste dossier é a sua ilustração constituída por doze fotografias de página inteira23da autoria de Carlos Gil, o “fotógrafo da revolução” que, do alto de um Unimog e de vários outros pontos, apontou a lente sobre as operações militares e as reacções populares no dia 25 de Abril, mas também sobre diversificados momentos, cenários e personagens do decurso revolucio-nário, como atestam as fotografias publicadas neste número da Vértice. Apesar de se ter iniciado no periódico A Capital, onde principiou as lides de fotojornalista, a revolução vem encontrá-lo a trabalhar na revista Flama onde se manteve até 1977, colaborando ainda com outros títulos da imprensa portuguesa e estran-geira. Trabalhou também em televisão (sobretudo crónicas de guerra) e ocupou o cargo de editor fotográfico da revista Tempo Livre, entre 1990 e 2001 (ano da sua morte). Fotografias suas foram publicadas em mais de dezena e meia de obras de referência, existindo já bibliografia específica sobre o artista e a su obra.25

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NOTAS1 PIRES, Daniel – Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974). Vol. 2, 1º tomo. Lisboa: Grifo. Pp. 593-594.

2 PIRES, Daniel – Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974). Vol. 2, 1º tomo. Lisboa, Grifo. Pág. 599.

3 CUNHAL, Álvaro – A revolução de Abril 20 anos depois. Vértice. N.º 59. Março-Abril de 1994. Pp. 5-20.

4 CUNHAL, Álvaro – A revolução de Abril 20 anos depois. Vértice. N.º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 6. Itálico conforme o original.

5 PIRES, Catarina – Cinco conversas com Álvaro Cunhal. Porto: Campo das Letras, 1999.

6 PIRES, Catarina – Cinco conversas com Álvaro Cunhal. Porto: Campo das Letras, 1999. Pág. 181.

7 CUNHAL, Álvaro – A verdade e a mentira na revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se). Lisboa: Avante, 1999. Além da introdução, este livro compõe-se de três partes (com vários capítulos cada) que cobrem, grosso modo, as temáticas enunciadas no artigo da Vértice: I – A crise final da ditadura e a revolução; II – Breve história dos golpes contra-revolucionários; III – A contra-revolução.

8 CUNHAL, Álvaro – A verdade e a mentira na revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se). Lisboa: Avante, 1999. Pág. 13.

9 Vértice. N.º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 22-29.

10 Vértice. N. º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 31.

11Vértice. N. º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 51-52. Este poema havia sido escrito em 1979, para o 3º aniversário da Constituição.

12 Vértice. N. º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 33-34. 13 Vértice. N. º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 36-39. 14 Vértice. N. º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 41-43.

15 Vértice. N. º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 45-46.

16 Vértice. N. º 58. Janeiro-Fevereiro de 1994. Pág. 5-89.

17 Vértice. N.º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 48-49.

18 Vértice. N.º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 54-56.

19 MARTINS, Manuel Frias – 10 Anos de Poesia em Portugal (1974-1984). Leitura de uma Década, Editorial Caminho, 1986.

20 Vértice. N.º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 58-66.

21 Vértice. N.º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 68-70.

22 Vértice. N.º 59. Março-Abril de 1994. Pág. 72-73.

23Vértice. N.º 59. Março-Abril de 1994. Pp. 21, 30, 32, 35, 40, 44, 47, 50, 53, 57, 67, 71.

24 Por exemplo, as obras Carlos Gil, “Um Fotógrafo na Revolução”, coordenada por Daniel Gil, com organização e textos de Adelino Gomes, publicada pela Caminho, em 2004 e “Carlos Gil, 1937-2001: intimidades”, coordenada por João Mário Mascarenhas, publicada pela Câmara Municipal de Lisboa no ano posterior à sua morte.

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NOVAS INVESTIGAÇÕES

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Os percursos e os destinos da agricultura em Portugal no último século continuam a suscitar inúmeras questões e algumas polémicas.1 A agricultura deu um contri-buto positivo ou negativo para o crescimento económico? Foi um sector atrasado ou modernizou-se? Exploraram-se adequadamente as possibilidades oferecidas pelos recursos naturais? O Estado tomou as medidas necessárias para incentivar a modernização ou foi um entrave? Os agricultores eram avessos às inovações e alheios às influências que vinham do exterior ou aproveitaram as oportunidades do mercado? Depois de um período, sobretudo anos 60 e 70, em que a História e as Ciências Sociais dedicaram vários estudos à agricultura e à sociedade rural,2 desde meados dos anos 80 estes não têm sido temas privilegiados. Todavia, a com-preensão dos impactos regionais e nacionais das mudanças que atravessaram a Europa Ocidental no século XX passa, inevitavelmente, pela análise dos processos de transformação das actividades ligadas ao sector primário.

O projecto de dissertação de doutoramento que tenho desenvolvido nos últi-mos anos,3 visa precisamente contribuir para o esclarecimento destas e de outras questões relacionadas com os territórios rurais. Centrei a pesquisa no período que medeia entre o início da década de 50 e os finais da década de 70 e procuro analisar os percursos do “país agrícola e rural” a dois níveis. Por um lado, inserir-se o caso português no contexto europeu. Não se procede a uma comparação sistemática com

Que fazer com esta terra? ItInerárIos de modernIzação da agrIcultura em Portugal (décadas de 50 a 70)

Dulce Freire| Doutoranda em História; Instituto de História Contemporânea (IHC) da

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa (FCSH - UNL)

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regiões ou países que apresentam maiores ou menores afinidades com Portugal, mas têm-se em conta os diferentes ritmos e as incidências das mudanças sectoriais e socio-económicas. Por outro lado, faz-se uma observação localizada dessas mudan-ças, sem perder de vista as modalidades de inserção do local no âmbito nacional. Foi neste nível que se concentrou o essencial da investigação.

A partir da observação detalhada de um caso particular, procuro encontrar esclarecimentos para questões de âmbito nacional ou, mesmo, mais gerais. Como vários autores têm realçado, a adopção de perspectivas parciais, não constitui uma limitação. Revela-se, antes, um modo de recuperar a relevância de condições liga-das às características locais, às identidades, às pertenças sociais, que têm sido escas-samente consideradas para a produção de conhecimento (NUNES, 1999: 52).

Na primeira parte deste artigo apresento sucintamente a problemática e a perspectiva de análise adoptada e também uma justificação da cronologia. Depois, resumo a articulação das metodologias seguidas para esclarecer os diver-sos problemas visados pela investigação. Concluo com algumas reflexões sugeri-das pelo desenvolvimento desta pesquisa interdisciplinar.

1. A PROBLEMÁTICA

Em Portugal, como no resto da Europa Ocidental, as três décadas que se seguiram ao fim da II Guerra Mundial ficaram marcadas por significativas transformações econó-micas e sociais. Para E. HOBSBAWM (1996), neste período terminou um ciclo da história da humanidade iniciado no Neolítico. Durante cinco ou seis mil anos os seres humanos dependeram da terra para obtenção de alimentos, trabalho e rendimentos. Desde os anos 70, a função deste recurso natural enquanto gerador de riqueza alte-rou-se – a hegemonia das actividades produtivas tem sido disputada pela construção civil, pelo lazer ou por uma, às vezes difusa, função de “reserva ecológica” – e a socie-dade depende sobretudo da eficácia do funcionamento da indústria e dos serviços.

Durante a “era de ouro”, os ritmos e a profundidade das alterações das práticas agrícolas e das organizações sociais que as protagonizaram, por comparação com outras que levaram séculos a desenrolar-se, impressionaram os contemporâneos e continuam a merecer abordagens de investigadores com diversas formações cien-tíficas. Reconhece-se que estes foram os anos cruciais para transformar a agricultu-ra de acordo com as propostas implícitas no modelo de modernização que estava a ser debatido e adaptado desde o século XVIII. Nos territórios europeus, e em outros continentes, as mudanças foram ocorrendo à medida que as inovações tecnológi-cas que caracterizam a “revolução verde” fizeram com que a energia orgânica dei-xasse de ser a base dos sistemas agrícolas e fosse substituída por energia fóssil. Tal

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substituição está associada à vulgarização de formas industriais de produção assen-tes na utilização do tractor e de maquinaria auxiliar, na aplicação de fertilizantes químicos e de pesticidas, na selecção de sementes e de animais. A maior eficiência das novas tecnologias interliga-se com a intensidade do êxodo rural, o montante do investimento financeiro, o aumento da produtividade da terra, a diminuição do preço dos bens produzidos e a crescente dependência dos mercados.

Ainda que já sejam conhecidas as tendências gerais dessas mudanças, con-tinua em curso a avaliação das configurações geográficas e sectoriais que assu-miram em cada país. É consensual que o alargamento e a consolidação dos sec-tores secundário e terciário deram um contributo positivo para o crescimento económico que caracteriza estas décadas, mas subsistem muitas dúvidas quanto ao desempenho da agricultura. Nos últimos anos, a visão dominante em vários países, que apresentava a agricultura como o sector mais atrasado e/ou com maiores dificuldades em modernizar-se, tem vindo a ser posta em causa pela historiografia de vários países, entre os quais Itália e Espanha. Pesquisas recentes demonstram que não há um modelo único de “modernização” e que as mutações das agriculturas europeias ocorreram de formas diversas, considerando-se que na Europa do Sul estas foram mais tardias e seguiram itinerários distintos das do Norte da Europa (HOGGART, BULLER, BLACK, 1995).

Inevitavelmente, as tendências que atravessaram a Europa Ocidental tive-ram impactos nas agriculturas e nos territórios rurais portugueses. Este estudo visa, precisamente, contribuir para a identificação dos itinerários das mudan-ças sectoriais e para a avaliação do papel da agricultura e da sociedade rural nas amplas transformações ocorridas no país entre os inícios da década de 50 e os finais da década de 70. Em Portugal, como em outras áreas periféricas, discutir o “atraso” ou o “progresso” do sector primário exige, antes de mais, conheci-mento detalhado dos sistemas agrários e da economia e sociedade que os envol-vem. Compreender historicamente o que significam os processos que têm sido designados por modernização da agricultura e por desenvolvimento rural passa pela realização de análises que incidam mais nos factores endógenos do que nos exógenos, que tenham em conta a complexa inter-relação entre as diferentes instituições (família, estado, mercado, etc.), que coloquem o enfoque tanto nos aspectos negativos como nos positivos, que permitam relacionar as mudanças com as permanências, que possibilitem a definição dos ritmos e a descrição das formas assumidas pelas transformações.

A cronologia que delimita esta investigação merece alguns esclarecimentos. O acelerado crescimento económico durante os anos que medeiam entre 1950

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e 1973, confere ao período uma unidade frequentemente utilizada para delimi-tar as problemáticas tratadas por economistas e por outros cientistas sociais. Para Portugal, os inícios dos anos 50, com os impactos da aplicação do Plano Marshall e a preparação e a publicação do I Plano de Fomento, marcam uma mudança de ati-tudes dos poderes públicos perante os vários sectores de actividade e também um período de crescimento económico que se prolonga até ao início da década de 70. Poderia ter adoptado 1973 como termo deste estudo, já que o país não ficou imune às tendências macroeconómicas posteriores, ou mesmo 1974, data da Revolução que permitiu a passagem do regime ditatorial para o sistema democrático.

Todavia, as pesquisas preliminares mostraram que as especificidades do sec-tor primário exigiam a adopção de outros critérios para delimitação da cronologia deste estudo. Primeiro, os debates em curso acerca do desempenho económico do sector primário aconselhavam uma reanálise dos dados conhecidos e a com-paração com outros menos utilizados. Depois, revelou-se pertinente inserir o tra-tamento da “questão da terra” no período revolucionário num contexto histórico mais alargado. A recuperação de relevância da agricultura nos debates políticos e na produção legislativa da segunda metade dos anos 70 deve relacionar-se não só com os acontecimentos revolucionários e pós-revolucionários, mas também com o peso histórico do sector na sociedade e na economia. No final da década de 70, essa relevância está de novo perdida. Os acordos de comércio externo com a Comunidade Económica Europeia e as expectativas criadas pela preparação da adesão a esta Comunidade vão adiando, pelo menos até à (então) desejada Política Agrícola Comum, a aplicação de medidas que visassem conduzir o sector pelas vias da modernização e do desenvolvimento discutidas nos anos anteriores e que ainda eram consideradas pertinentes.

Esta dissertação de doutoramento centra-se, pois, nos últimos 30 anos em que os destinos da agricultura e da sociedade rural estiveram endossados aos debates, às políticas e, em grande parte, aos agentes económicos nacionais. Foi neste quadro que foram tomadas as decisões e aplicadas as medidas, de carácter público e privado, que influenciaram os itinerários seguidos pelo sector primá-rio, pela sociedade e pela economia portugueses.

2. UM ESTUDO DE CASO

Este estudo não se detém detalhadamente nos debates em torno das soluções para o progresso do agro, nos quais se empenharam sucessivas gerações de inte-lectuais e políticos, nem na sistematização das medidas de política agrária ou com incidência no “país agrícola e rural”.4 Partindo das reflexões que estes assuntos

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têm merecido, de diversas avaliações quantitativas e qualitativas das mudanças ocorridas e, ainda, da observação da paisagem, a minha pesquisa começou com questões genéricas. Em que medida as propostas para modernizar a agricultura defendidas por agrónomos e economistas e outros intelectuais se adequavam às características agro-ecológicas do território? Quais as reais possibilidades de concretização dessas propostas? As querelas políticas que adiaram ou evitaram a publicação de legislação considerada indispensável, prolongaram-se nos ter-ritórios regionais actuando para minimizar os efeitos dessa pressão transforma-dora que chegava à periferia do sistema capitalista? Sendo a agricultura um dos veículos de intervenção do Estado na economia, como actuaram os organismos oficiais? Como se combinaram os interesses económicos e políticos dos diversos grupos sociais para potenciar ou inviabilizar a introdução de novos produtos, métodos de cultivo, sistemas de comercialização?

Na busca de esclarecimentos para estas questões é inevitável que se tenha em conta os desempenhos dos agentes económicos, do estado e do mercado. Quando avaliam sucessos, entraves e fracassos da “modernização”, os autores nem sempre atribuem relevância autónoma a cada um destes elementos e também não há una-nimidade quanto aos efeitos da acção conjugada ou separada destes nos destinos do sector primário. Por exemplo, continuam em curso avaliações e debates acerca do maior ou menor impacto dos papéis do estado e do mercado na condução da economia ou sobre as consequências económicas das atitudes de diversos grupos sociais. Estas questões têm sido tratadas preferencialmente recorrendo a evidên-cias elaboradas a partir das estatísticas oficiais, de textos de carácter normativo e de discurso técnico, económico e político produzido por membros da elite.5

Nesta investigação procurei analisar o papel dos agentes económicos, do Estado e do mercado de outras perspectivas. Entende-se que os agentes económicos são membros de uma comunidade, a qual com o Estado e o mercado são elementos do mesmo sistema social. Tendo em conta as condições sociais, económicas e polí-ticas existentes em Portugal durante o período em análise, o principal objectivo deste estudo é esclarecer as modalidades de interacção do Estado, do mercado e da comunidade para viabilizar ou não a “modernização” da agricultura segundo o modelo dominante naqueles anos. As múltiplas configurações assumidas por essas modalidades e a necessidade de fazer uma análise detalhada dos mesmos exigiram a reunião de dados diversificados. Tanto a extensão e complexidade dos dados que é necessário convocar como a natureza das inter-relações aconselharam que a análise se desenvolvesse a partir de um nível micro. Neste estudo procuram esclarecer-se os processos de “modernização da agricultura e de mudança social”

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centrando a pesquisa na comunidade e é a partir dos mecanismos de ligação ao estado e ao mercado que aqui emergem que se analisam estes elementos.

Em várias avaliações das potencialidades agrícolas do país realizadas na época (ABREU, 1969; PEREIRA, 1974), o Ribatejo surge como a região onde a agricultu-ra é o sector mais capaz de gerar riqueza, o que indicia uma melhor capacidade de corresponder às solicitações do mercado. O Ribatejo apresentava-se como a região onde a modernização da agricultura de acordo com o modelo defendido no pós-II Guerra poderia ser aplicado com mais rapidez, eficiência e menores investimentos públicos e privados. Traçada nas lezírias do rio Tejo, concentra-se nesta região a mais larga extensão das melhores terras de que o país dispõe; geograficamente próxima de Lisboa, o maior centro urbano e porto de exportação, está acessível por rede de estra-das e por comboio; a estrutura da propriedade, com grande peso das médias explora-ções, não apresenta os desequilíbrios do Norte nem do Sul do país, frequentemente apontados como poderosos obstáculos à “modernização” da agricultura.

A problemática geral em que este estudo se insere orientou a selecção do caso que, depois de uma pesquisa preliminar, se revelou mais susceptível de esclarecer essas inter-relações. Procurando no local contributos para o esclarecimento do geral, foram quatro os critérios que orientaram a selecção. Primeiro, teria de ser uma comunidade onde a agricultura tivesse um peso hegemónico na economia e na sociedade locais. Tendo em conta a vocação essencialmente agrícola e rural da maior parte do território nacional durante esses anos, este não seria um critério difícil de cumprir. Segundo, o estado e o mercado teriam de ter historicamente uma presença relevante e documentável no quotidiano da população de tal modo que estivessem subjacentes às decisões tomadas pelos diversos grupos sociais. Essa presença teria, por exemplo, de ser perceptível através do funcionamento das instituições de âmbito local e nacional; da permeabilidade das estruturas da economia local às conjunturas nacionais e internacionais; do empenhamento das elites e, eventualmente, da restante população nos debates nacionais de nature-za política e económica a tal ponto que lhes parecesse plausível influenciá-los. Este critério fez restringir as possibilidades de escolha às áreas do território mais acessíveis à extensão do poder do Estado e aos apelos dos mercados. Tendo em conta a localização e as características da geografia e da economia regionais, no Ribatejo poder-se-iam encontrar, especialmente nas áreas mais próximas do rio, várias comunidades que cumprissem aquelas exigências.

Devido às metodologias que considerei necessário adoptar, das quais trato no ponto seguinte, dois outros critérios se revelaram decisivos: era fundamental garantir a existência de fundos documentais acessíveis, o que devido à irresponsabilidade com

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que os arquivos portugueses têm sido geridos não é sempre certo acontecer; era ainda preciso encontrar entre os membros da comunidade pontos de apoio que viabilizas-sem a realização de trabalho de campo. A escolha recaiu no concelho de Alpiarça. Com pouco mais de nove mil quilómetros quadrados, uma área que coincide com a da freguesia epónima, e uma média de oito mil habitantes durante o período em análise, é um dos 21 concelhos do Distrito de Santarém.

O eixo principal desta análise são as estratégias de natureza social, política e eco-nómica associadas às produções agrícolas vocacionadas para o mercado, que foram concebidas e/ou postas em prática pelos habitantes de Alpiarça durante o segmento cronológico em consideração. Adopto o “ponto de vista” da comunidade e a partir desta perspectiva procuro esclarecer em que medida as políticas e as instituições estatais e as “forças” do mercado estão presentes nas constantes decisões que os alpiarcenses têm de tomar no decorrer do ano agrícola. Nesta análise considera-se que nem os agricultores nem os restantes membros da comunidade têm atitudes passivas perante os estímulos do mercado ou as acções do Estado e que as opções que tomam se integram em “projectos de vida” pessoais ou familiares em curso.

A modernização da agricultura pressupõe a maior eficiência económica das explorações, conferindo-lhe capacidade para colocar com sucesso os produtos nos mercados urbanos nacionais ou, mesmo, internacionais. Devido à necessi-dade de constante introdução de novos conhecimentos e tecnologias produzidas em esferas exteriores à comunidade, ao Estado foi muitas vezes exigido, sobre-tudo nas zonas da periferia do sistema capitalista, que viabilizasse o acesso dos agentes económicos envolvidos nas actividades agrícolas a essas inovações. Estas competências, juntamente com as medidas políticas de controlo da concorrência no mercado interno e de garantia de estabilidade de preços remuneratórios para alguns produtos, foram modalidades de intervenção na agricultura. Para analisar a capacidade de adesão dos agricultores e dos outros agentes relacionados com a produção à “modernização” é necessário ter em conta os papéis de mediação e de intervenção do Estado. Contudo, como as funções económicas do Estado são indissociáveis das funções administrativas e de manutenção da ordem públi-ca que estão inscritas nas suas atribuições originais (BOBBIO, 2001; EVANS, RUESCHEMEYER, SKOCPOL, 1985; SCOTT, 1998), torna-se pertinente analisar como é que estas se combinam na esfera local. Exercidos no âmbito local, a natu-reza destes mecanismos pode surgir de forma indistinta aos habitantes do conce-lho, ou seja, o poder político misturado com o económico ou vice-versa acrescido ainda das leituras locais decorrentes do “lugar social” atribuído aos protagonistas desses poderes. Os processos de transformação da agricultura inscrevem-se assim

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nas redes sociais e de poder formal e informal que sustentam a comunidade, das quais fazem parte as acções que partem ou visam o Estado e o mercado.

O caso de Alpiarça exemplifica como podem as relações entre o local e o nacio-nal funcionar nos dois sentidos. Por um lado, é possível detectar várias reconfigu-rações das relações capitalistas para, por exemplo, responder às solicitações dos mercados urbanos em crescimento. Por outro, verifica-se que se é certo que a acção do Estado interfere nas relações sociais e no quotidiano locais, também, em algumas circunstâncias, mesmo uma comunidade pequena pode influenciar decisões do Estado, as quais poderão ter impactos em vastas áreas do território.

A análise das inter-relações destes elementos do sistema social torna-se tanto mais pertinente quanto, durante o período abrangido neste estudo, se desenrolam processos de mudança que afectam de forma transversal e dura-doura não só a agricultura e os territórios rurais, como toda a sociedade e eco-nomia portuguesas. Durante estes trinta anos assiste-se a três transformações fundamentais: êxodo rural maciço e acelerado; crescente integração da eco-nomia nos mercados internacionais; uma Revolução que permite a passagem de um regime autoritário para um regime democrático. As leituras locais das mudanças das relações sociais, das actividades económicas e da natureza do Estado, tornam-se fundamentais para compreender os múltiplos impactos des-tas mudanças na contemporaneidade.

3. METODOLOGIAS

Nas últimas décadas, a abertura da História a propostas teóricas e metodológicas com origem em outras Ciências Sociais e o interesse de algumas destas na projec-ção regressiva das análises, tem possibilitado a convocação de contributos varia-dos no esclarecimento das problemáticas. Esses processos cruzados, assinalados como exemplos das diversas convergências possíveis no nosso tempo, levantam novos problemas ao desempenho dos cientistas sociais e, neste caso, ao exercício do “ofício de historiador”.

Do ponto de vista da História esses problemas são, seguindo a enumera-ção de PETER BURKE (1995: 8-20), fundamentalmente quatro. Problemas de definição, porque os historiadores estão a entrar por territórios que não lhes são familiares. Problemas de fontes, já que as habitualmente usadas (que eram sobretudo as produzidas pelo Estado), não respondem às questões colocadas e é necessário procurar outras, recorrendo à História Oral, à Arqueologia, por exemplo. Problemas de exposição, uma vez que as tendências culturais e sociais não podem ser apresentadas da mesma forma que os acontecimentos políticos

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ou de que os modelos económicos. E, finalmente, problemas de síntese:“o diálogo disciplinar é vantajoso, mas tem um preço” (ibidem: 19), o qual é a proliferação de sub-disciplinas da História, cuja estreita ligação com as Ciências Sociais afins tende a dificultar o diálogo entre historiadores.

Apesar dos problemas decorrentes do desenvolvimento de investigações em zonas de fronteira disciplinar, desde final dos anos 20, as propostas do “movimento dos Annales” têm inspirado inúmeros historiadores. Em muitos casos, quando a pesquisa abrange as décadas recentes, os historiadores têm mais possibilidades de adoptar vários métodos de pesquisa e de diversificar as estratégias para esclarecer as questões que colocam. Desde a habitual consulta de arquivos com documentos escritos, passando pelos arquivos de fotografia e de imagens em movimento, pela recolha de entrevistas e de histórias de vida e pela realização de trabalho de campo. De entre as diversas metodologias que nas últimas décadas têm sido ensaiados e discutidas por historiadores e por outros cientistas sociais, procurei adoptar as que em cada momento se revelaram mais adequados para recolher as evidências necessárias ao esclarecimento das questões colocadas no início da investigação e de inúmeras outras que foram surgindo durante o desenrolar desta.

As pesquisas que precederam a elaboração do projecto de dissertação de doutoramento, permitiram adquirir “know-how” na aplicação de metodologias interdisciplinares e também a recolha de alguns dos dados necessários à defini-ção do “case study”.6 No concelho de Alpiarça, o cumprimento dos critérios antes enunciados tornaria mais provável que as inter-relações que interessava escla-recer fossem apreendidas através dos documentos escritos que sobreviveram em arquivos públicos e privados. E, como o segmento cronológico em estudo é recente, aumentava as possibilidades de que, por serem presenças constantes e multifacetadas, as acções do estado e do mercado surgissem enunciadas com frequência nas entrevistas e nas histórias de vida dos informantes e, também, que ainda se mantivessem inscritas na paisagem de forma visível. O desenrolar da investigação mostrou que estes testemunhos preservaram de forma distinta os vestígios das três décadas que se seguiram ao fim da II Guerra Mundial.

Para identificar a intercepção das acções desenvolvidas pelos agentes econó-micos, pelo estado e pelo mercado na construção de itinerários de mudança e nas continuidades registadas no sector primário recorreu-se a testemunhos de diversas proveniências. O que exigiu a adopção de vários métodos de pesquisa direccionados para a consulta de arquivos, realização de trabalho de campo na comunidade e outras recolhas de história oral. Além dos dados produzidos nos órgãos centrais do Estado, utilizei também informações obtidas em outras instâncias dos poderes públicos, em

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entidades privadas e ainda as fornecidas por alguns dos protagonistas de diversas fases das actividades produtivas e comerciais relacionadas com a agricultura.

A investigação dividiu-se em duas fases principais. Durante a primeira fase, que decorreu entre Fevereiro de 2000 e Maio de 2002, a pesquisa direccionou-se para a clarificação dos enquadramentos nacionais e internacionais da “moderni-zação da agricultura e da mudança social” no pós-guerra. Consultaram-se várias bibliotecas e também os arquivos nacionais com núcleos documentais relevantes e acessíveis. A segunda fase correspondeu ao enfoque da pesquisa na comunida-de e às ligações desta ao Estado e ao mercado. Esta fase foi, em parte, preenchida com 15 meses de trabalho de campo na vila de Alpiarça (Setembro de 2002 a Dezembro de 2003) e também com a pesquisa nos arquivos regionais e locais.

As estadias no terreno foram utilizadas tanto para contacto com informantes e para as recolhas de história oral, como para a consulta de arquivos na sede de distrito. A consulta dos arquivos locais decorreu sobretudo depois de concluído o trabalho de campo, coincidindo, por vezes, com revisitações do terreno. Esta não era a intenção inicial, mas constatei que fazer pesquisa arquivística no local em simultâneo com as restantes tarefas do trabalho de campo se tornava com frequência demasiado intru-sivo no passado e no presente desta comunidade. Por duas razões fundamentais. Induzia alguns dos membros da comunidade a concluir que privilegiava informações fornecidas pelos órgãos do poder, para mais para períodos – ditadura e primeiros anos pós-25 de Abril – que geraram muitas controvérsias e cujas vivências locais continu-am a ter reflexos nas relações sociais e nas condutas políticas actuais. Depois, porque alguns dos dados que me interessava recolher (nomeadamente os que estavam rela-cionados com o funcionamento de instituições, como Grémio da Lavoura, Casa do Povo, Delegação das Finanças) eram susceptíveis de equivocar os meus informantes quanto à natureza e objectivos da pesquisa. Constatei também que, tendo em conta os objectivos deste estudo, era útil procurar nos arquivos de carácter distrital e nacional informações que permitissem enquadrar nos âmbitos regional e nacional os dados provenientes dos arquivos locais e do trabalho de campo.

Assim, durante o trabalho de campo pareceu-me prioritário, à medida que fortalecia os laços com os membros da comunidade, desfazer todas as dúvidas quanto aos meus intentos e reconstruir o melhor possível a pluralidade das interpretações apresentadas pelos testemunhos vivos. As recolhas de história oral visaram, além dos alpiarcenses, informantes que o desenrolar da pesquisa mostrou terem desempenhado actividades com impacto local. Trata-se princi-palmente de engenheiros agrónomos e advogados, tanto ligados a organizações clandestinas e a acções de oposição ao Estado Novo, como ao funcionamento dos

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órgãos do Estado durante a ditadura e a democracia, que em diferentes momen-tos influenciaram entidades e membros desta comunidade.

A crescente aplicação, sobretudo desde os anos 60, dos métodos da história oral tem possibilitado a recolha de múltiplas versões silenciadas pela documentação habitualmente preservada nos arquivos públicos, quase sempre produzida por eli-tes e dando conta do funcionamento dos órgãos de poder político e económico. Tem sido enfatizado o contributo da história oral para que a voz “dos de baixo”, daqueles que em diversos contextos fazem parte dos grupos subordinados, seja incorporada na produção de conhecimento. Estas metodologias têm-se revelado igualmente adequadas para registar testemunhos de membros dos grupos considerados domi-nantes – entre os quais estão patrões e detentores de altos cargos administrativos civis e militares – cujas perspectivas também podem ter escapado aos registos ofi-ciais (MARINAS, SANTAMARINA, 1993; PERKS, THOMSON, 2000).

Em Alpiarça, a estratificação social variava entre os que nada tinham, e faziam parte das listas municipais de mendigos, e os que eram proprietários de bens imóveis e detentores de prestígio e poder que os colocava entre os mem-bros das elites políticas e económicas do país. Para compreender os itinerários de mudança e as continuidades na agricultura tornava-se necessário conhecer as atitudes e opiniões dos diversos grupos sociais e profissionais a esta associados: assalariados rurais, pequenos e grandes proprietários, rendeiros, feitores, capa-tazes, tractoristas, regentes agrícolas, etc. Neste caso, com certas precauções, procurei recolher tanto os testemunhos daqueles que no âmbito local represen-tam os “de baixo” como dos que correspondem aos “de cima”.

Combinar a realização de trabalho de campo e de história oral com a pesquisa em vários arquivos, permitiu explorar analiticamente complementaridades e contradi-ções entre os diversos registos de informação. O confronto dos dados provenientes dos registos orais e escritos, potenciaram o surgimento de sucessivas questões e a procura de esclarecimentos. Por exemplo, possibilitaram apreender o encadeamen-to de reacções dos diversos órgãos de poder a uma iniciativa com origem local e vice-versa; permitiram perceber em que instâncias do poder se desenrolaram as dili-gências para executar ou para bloquear algumas das medidas protagonizadas pelos serviços oficiais e relacionar esses dados com as interpretações locais acerca do fun-cionamento dos órgãos de poder; forneceram mais dados para identificar o papel dos mediadores entre o local e o nacional conforme as circunstâncias políticas.

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4. CONCLUSÃO

O objecto e as metodologias desta dissertação de doutoramento foram construí-dos entre várias fronteiras7 – entre disciplinas, entre local e nacional, entre escrito e oral, entre individual e colectivo, entre particular e geral, entre rural e urbano, entre clandestino e legal, entre ditadura e democracia, entre produção e consumo, entre tradição e inovação, entre formal e informal, entre subordinados e dominan-tes – o que em alguns momentos significou trabalhar, literalmente, nos limites. Nenhuma investigação está isenta de riscos e de limitações, esta não é excepção. Alguns eram inevitáveis, outros não tanto. Procurando analisar as questões de outras perspectivas, visa-se contribuir para o esclarecimento do papel da agricul-tura e da sociedade rural nas profundas mudanças que ocorreram em Portugal e no Ocidente nos 30 anos anteriores à década de 80. Este é um dos assuntos actu-almente em debate na historiografia portuguesa e europeia.

A pesquisa centrou-se na comunidade, o que levou à identificação das activi-dades agrícolas com maior peso social e económico no contexto local. A partir dos problemas que emergem na comunidade, identificam-se as linhas de contacto com o Estado e com o mercado. Em alguns casos estes contactos conduzem ao estabeleci-mento de relações com dois sentidos: da comunidade com o Estado e com o mercado e vice-versa, fazendo com que as hipóteses fossem testadas em vários sentidos.

Tendo em conta que atingir o mercado é o objectivo final dos bens produzidos pela agricultura moderna, procura esclarecer-se como é que as relações sociais que sustentam a comunidade se orientam para esse objectivo, como é que integram a mediação (económica, política e social) dos representantes do Estado, como é que rea-gem às solicitações do mercado, das quais a intervenção do Estado também faz parte. Trata-se de compreender em que condições (sociais, políticas, económicas, financei-ras, tecnológicas) se processa a exploração agrícola dos recursos naturais acessíveis aos membros desta comunidade durante o segmento cronológico em estudo.

A aplicação deste modelo orientou a pesquisa arquivística, o trabalho de campo e as recolhas de história oral e também surge de forma explícita na organização da exposição escrita. A primeira parte do estudo começa por inserir a comunidade na região do Ribatejo, identificando os principais traços que a ligam aos concelhos vizinhos. Os restantes capítulos são dedicadas à caracterização social, económica e política da comunidade, procurando compreender como é que os diversos grupos sociais se posicionaram para atingir os objectivos inerentes à modernização da agricultura. A segunda parte é dedicada à identificação dos objectivos políticos do Estado para o sector primário e como e quais as medidas adoptadas que tiveram impacto nesta comunidade. Analisam-se as principais modalidades de relaciona-

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mento entre a sociedade e o Estado e como é que se influenciam mutuamente. Finalmente, a terceira parte trata do mercado. De como as instabilidades e os estí-mulos deste interferem ou não nas opções produtivas e nos “projectos de vida” dos diversos agentes ligados às actividades agrícolas.

NOTAS

1 Um dos debates em curso na historiografia portuguesa prende-se com a avaliação do ritmo de crescimento do sector e dos contributos deste para o crescimento económico verificado no pós-II Guerra. As diversas posições podem ser acompanhadas em AMARAL (2002a, 2002b), BRITO E NUNES (1992), LAINS (2004), REIS (1992), ROSAS (1994, 2000). Num contributo recente para o debate, BRITO SOARES assinala que, durante a primeira metade do século,“a agricultura acompanhou, mais ou menos de perto, o conjunto da economia, quer nos períodos recessivos de conflito armado, quer nas épocas de reconstrução que se lhes seguiram”. Na segunda metade foi diferente.“Particularmente impressionante é o facto de a agricultura não ter acompanhado o crescimento do resto da economia portuguesa durante a chamada “idade de ouro” dos anos de 1960 em que o conjunto da economia registou taxas de crescimento muito elevadas” (2005:160).

2 CABRAL (1986) fornece um balanço dessas pesquisas. 3 A execução do projecto de dissertação de doutoramento em História Económica e Social Contemporânea decorre, sob orientação de Fernando Rosas, na FCSH-UNL.

4 Para estas avaliações existem já vários contributos, entre os quais, AMARAL (1993), BAPTISTA (1993) e ROSAS (1994).

5 Um balanço recente destas análises pode ser encontrado em LAINS E SILVA (2005).

6 Refiro-me principalmente à pesquisa que deu origem à dissertação de mestrado (FREIRE, 1997) e ao projecto de investigação “Agitação e resistência em contexto rural português: 1926-1974”, financiado pela Fundação para a Ciência e

Tecnologia e que decorreu na FCSH-UNL entre 1997 e 1999 (FREIRE, FONSECA, GODINHO, 1999; FREIRE, FONSECA, GODINHO, 2004).

7 A pertinência de conduzir as ciências sociais para pesquisas fronteiriças tem sido enfatizada, para diversos temas, por vários autores (BURGESS, 1997; BURKE, 1981; CARIA, 2003; FLICHY, 2003; SANTOS, 1987, TILLY, 1981, WALLERSTEIN, 1999).

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Lendo a obra Portugal Contemporâneo, dirigida por António Reis, de 1996, em ar-tigo da autoria de Vital Moreira relativo à organização do Estado saído da edifi-cação do novo sistema institucional democrático da Revolução de 25 de Abril de 1974, deparei-me com a seguinte afirmação a propósito da consagração constitu-cional das regiões administrativas saída da nossa Assembleia Constituinte:“Das grandes inovações institucionais da Constituição de 1976, foi nesta que se depa-raram maiores dificuldades e atrasos na sua concretização”.

A primeira pergunta que nos assalta o espírito é, naturalmente, Porquê? De facto, ainda hoje não estão institucionalizadas as regiões administrativas como preceito constitucional consagrado desde 1976.

Seria então a proposta de criação de regiões administrativas inexequível e imaterializável à luz da nossa tradição político-administrativa e de uma cultura política de poder por parte de quem o exerce, encerrando aquela apenas o espíri-to democrático e descentralizador dos deputados constituintes próprio da época em curso, que ditou essas dificuldades e atrasos na sua concretização?

Esta constituiu a pergunta de partida para este estudo. O início de qualquer investigação deve guiar-se por uma pergunta de partida que deverá cumulativa-mente ser clara, concisa e límpida, além de exequível e pertinente.

O pOder lOcal nO debate cOnstituinte (1975-76)

José António Ferreira | Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras

da Universidade do Porto (FLUP)

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A este propósito, atente-se na palavras de Boaventura Sousa Santos em Um discurso sobre as Ciências onde se refere que são diferentes e muito complexas as condições sociológicas e psicológicas do nosso perguntar. Em suas palavras o autor afirma que “é muito diferente perguntar pela utilidade ou pela felicidade que o automóvel me pode proporcionar se a pergunta é feita quando ninguém na minha vizinhança tem automóvel, quando toda a gente tem excepto eu ou quando eu próprio tenho carro há mais de vinte anos”. A pergunta de partida deve esclarecer e não julgar, acrescentar e não descrever conhecimento.

Procurar resposta ou respostas à questão levantada, e entender as razões as-sociadas a esta realidade, constituiu a motivação para esta investigação de mes-trado. Para ela concorreram, também, dois motivos pessoais fundamentais: por um lado, o facto de exercer funções político-partidárias; por outro lado, a razão de ser um convicto defensor da regionalização.

Mas para entender o fenómeno político da regionalização – ou da não regio-nalização – aqueles dois factores de motivação não constituíram qualquer vanta-gem, por aparente que possa parecer, para a sua interpretação. Poderiam mesmo constituir desvantagens e contaminar à partida a forma de abordar e entender o objecto de estudo em causa.

Foi necessário proceder a um acto de ruptura das concepções e convicções pessoais sobre a matéria. Como podemos encontrar no Manual de Investigação em Ciências Sociais, de Raymond Quivy e Luc van Campenhoudt, um dos actos de procedimento a ter, em matéria de métodos e técnicas de investigação, é a rup-tura com os preconceitos e as falsas evidências. A adopção deste procedimen-to exigiu uma reflexão diferente e um distanciamento pessoal sobre o tema de estudo, dadas as condicionantes referidas. Pois, como aqueles autores afirmam, em metáfora, naquela obra, “não é perfurando ao acaso que se encontra o que se procura. Há que reflectir, estudar e depois perfurar”.

Neste sentido foi assumida a atitude filosófica transmitida por John Locke, em En-saio sobre o entendimento humano, colocando o “espírito” como uma “folha em branco onde a experiência escreve”, e a “mente” como uma “tábua rasa, vazia de quaisquer ca-racteres, sem quaisquer ideias” de forma a receber os “materiais que fundamentam os seus raciocínios” e dizem respeito às “operações interiores” que “apercebemos e sobre as quais reflectimos”, livres de quaisquer ideias feitas e convicções preconcebidas.

Como sabemos a região administrativa é, desde 1976, uma das categorias de autarquias locais previstas para o Continente, a par das freguesias e dos muni-cípios, nos termos da Constituição, de natureza de autarquia supra-municipal, compreendendo, na sua área, diversos municípios.

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A consagração constitucional das regiões administrativas contou com a apro-vação de todos os partidos políticos que compunham a Assembleia Constituinte de 1975/76, com excepção de 2 votos contra do MDP/CDE.

Os diversos partidos políticos portugueses têm feito, em momentos distin-tos, da regionalização a sua bandeira eleitoral. Porém, as nobres intenções que a Constituição de 1976 veio a consagrar, instituindo e dando forma viável ao Poder Local, têm encontrado resistências e dificuldades, bem patentes, ao seu pleno desenvolvimento no que diz respeito às regiões administrativas.

De facto, passados 29 anos sobre a aprovação da Constituição, verifica-se que os preceitos fundamentais nela consagrados relativamente à regionaliza-ção não estão cumpridos, embora tenham sido apresentados e discutidos vários projectos legislativos nesse sentido em sucessivas legislaturas, tendo sido mes-mo matéria de referendo nacional, em 1998, o que não aconteceu com qual-quer outro preceito constitucional saído do texto fundamental elaborado pela Assembleia Constituinte. Recorde-se que nem a própria Constituição de 1976 foi plebiscitada – como era pretensão de alguns partidos constituintes – à se-melhança do que aconteceu com a anterior Constituição de 1933, apesar das condições excepcionais em que ocorreu.

A regionalização não é um fenómeno simples e incontroverso. Assim, não são demasiados os trabalhos que permitam visões alargadas e distintas do problema, bem como não o são os estudos que incidam em perspectivas diferentes e especí-ficas, sobre a matéria, dos estudos e das obras existentes. Acresce que desconhece-mos qualquer estudo exclusivo ou especificamente centrado no articulado propos-to sobre o poder local que resultou do trabalho no seio da Comissão do Poder Local da Assembleia Constituinte e do debate travado em plenário e vertido em Diário da Assembleia Constituinte. Os estudos que conhecemos é da sua não instituição e, não da sua institucionalização constitucional, o que nos leva a poder assumir este estudo como inovador sob esse ponto de vista. Assim, este trabalho não pretendeu encontrar explicações para a não instituição em concreto das regiões administrati-vas como preceito constitucional – que poderá ser feito no futuro em sua continui-dade –, mas sim perceber a sua criação constitucional como novo patamar do poder local, como órgão supramunicipal, aferindo as razões, argumentação e base de sus-tentação da sua criação no quadro institucional da administração portuguesa.

Como corolário do trabalho efectuado resultou esta investigação, que dividi-mos nas partes que a seguir se descrevem.

Uma primeira relativa à evolução histórica da administração local e regional. Uma segunda sobre a Revolução de 25 de Abril e o período pré-constitucional.

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A terceira e última, referente à Assembleia Constituinte, integrando os projec-tos constitucionais dos partidos nela representados, os trabalhos da comissão do poder local, a sua proposta de articulado e o debate e votação na generalidade e na especialidade sobre o articulado relativo a esta matéria.

Quanto ao percurso efectuado pela história nacional, procurou-se ler nela a existência de uma tradição administrativa em matéria de administração regional e local, desde os seus primórdios, passando pelo período monárquico do antigo regime, as significativas alterações da época liberal, as transformações ocorridas pela instauração da 1.ª República e finalmente o regime instaurado pelo Estado Novo. Esta síntese assentou no mais relevante, quer nas suas balizas históricas quer quanto ao seu enquadramento legal. Foi em grande parte alicerçado no seu “corpus” legal de que há registo e que permitiu a sua construção histórica. Tratou-se assim, de um estudo baseado nos documentos jurídicos e administra-tivos disponíveis e tratados na bibliografia consultada.

Deu-se especial atenção ao Código Administrativo de 1936-40, que vigorou até à queda do Estado Novo em 25 de Abril de 1974, pela sua longevidade e simultaneamente a sua proximidade.

Quanto à segunda parte deste estudo, assentou no processo de edificação e estabi-lização das novas instituições da instauração do regime democrático pela revolução de Abril, analisando em paralelo a situação vivida nas autarquias locais durante o período revolucionário e os projectos de regionalização ou administração regional anteriores à Constituição de 1976, uma vez que imediatamente após o 25 de Abril se iniciaram estudos que tinham como finalidade acções de regionalização do país. Esta parte teve como principal fonte de investigação os diplomas emanados, naquele sentido, pelos sucessivos governos provisórios durante aquele período.

Relativamente à última parte, que constituiu o umbigo desta investigação, este estudo incidiu no debate constituinte e do modelo dele resultante na nova arqui-tectura do edifício institucional do Estado em matéria de administração regional e local. Assentou na leitura e interpretação do relatório e parecer do articulado proposto pela Comissão do poder local e do Diário da Assembleia Constituinte, onde é relatado o debate em sede de plenário, para além dos projectos constitu-cionais dos partidos políticos.

Diga-se que se incluiu uma breve referência à história da administração insular, como contexto e enquadramento da organização administrativa na construção do Portugal democrático, que consagrou o regime autonómico aos Açores e à Madeira.

Em suma, foi necessária a compilação de uma visão histórica da questão re-gional, articulada com a evolução das formas do poder local e interpretada de

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modo a fornecer pistas para a proposta de articulado da Comissão do Poder Lo-cal da Assembleia Constituinte que fundamentou a decisão democrática resul-tante da Revolução de 25 de Abril sobre a regionalização.

Foi necessário, também, interpretar se factores políticos conjunturais não condicionaram a ideia da criação das regiões administrativas no Continente, re-fira-se, como um novo patamar ao nível do poder local no edifício institucional e administrativo do Estado. Isto é, existia uma tradição administrativa que justi-ficou a inclusão das regiões administrativas na Constituição de 1976 como um novo patamar do nosso quadro político-administrativo?

Ou estamos antes perante uma deriva de ímpeto ou espírito revolucionário pró-prio da época? Ou reflecte aquela inovação constitucional uma nobre intenção demo-crática e descentralizadora saída do alvorar do nosso regime democrático de Abril?

Porventura marca ela uma cedência à tendência desenhada pela criação das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, com vista a travar o discurso au-tonomista, por vezes mesmo separatista, evidenciado por alguns agentes polí-ticos das ilhas adjacentes, questão aliás presente em toda a discussão sobre a matéria em sede constituinte? E teriam estas alcançado tão ampla autonomia sem a criação daquelas, havendo alguma relação na figura constitucional entre umas e outras?

Ou, ainda porventura mais polémico e controverso, poder-se-á vislumbrar na proposta de criação das regiões administrativas a tentativa encapotada dos partidos de criar, dessa forma, bolsas de poder político-partidárias face ao xadrez político e eleitoral existente?

Descortinar-se-á nessa intenção uma disputa dos partidos do seu espaço ter-ritorial de afirmação perante as populações e respectivo eleitorado, de forma a alcançar e compensar espaços de domínio político não reunidos ou eleitos em outros níveis das estruturas de poder, quer local – freguesias e municípios –, ou mesmo ao nível nacional – Assembleia e Governo?

Perante estas interrogações procurou-se desta forma trazer algumas respos-tas e clarificações para a mesa de discussão em torna desta problemática.

Refira-se ainda, pela sua importância, que para entender a evolução histórica e a discussão da administração local e regional, foi necessário uma reflexão do signi-ficado dos termos associados a esta matéria, tais como, administração local, autarquia local, autonomia, descentralização, desconcentração, região administrativa, regionalização e regionalismo, procurando encontrar-lhes os reais conteúdos, evidenciando a im-portância destes conceitos para a compreensão do objecto de estudo deste traba-lho e da linguagem política utilizada pelos respectivos actores que ela integra.

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As nobres intenções que a Constituição de 1976 veio a consagrar, instituin-do e dando forma viável ao poder local, encontrou, no entanto, resistências e dificuldades ao seu pleno desenvolvimento e materialização no que diz respeito às regiões administrativas.

Como resposta a todas as questões levantadas, podemos concluir, ainda que provisoriamente, nesta altura, que terá contribuído para a consagração constitucio-nal das regiões administrativas, para além do espírito democrático dos deputados constituintes, a generosidade descentralizadora do modelo adoptado pela Comis-são do Poder Local, mais do que qualquer ímpeto ou espírito revolucionário da época, mas nem por isso deixou de ter a sua marca.

De facto, como foi possível verificar ao longo da nossa História, em matéria de administração local e regional, o exercício de um poder local não é uma cons-tante evolutiva, mas um fenómeno de intensidade descontínua. Registaram-se na sua evolução histórica períodos em que se assiste a um fortalecimento do poder local e outros em que este foi coarctado pelo poder político central.

É perceptível um denominador comum que o caracterizou. O poder político local foi sempre reforçado em períodos de instabilidade estrutural do sistema político e de não consolidação da organização do Estado. Por certo, esta realidade advém como consequência da necessidade de apoio que tem uma determinada força política e num dado momento, como fonte potencial do poder em relação a outras forças concorrentes na disputa desse mesmo poder.

Podem-se apontar alguns exemplos que evidenciam esta realidade. Veja-se a força dada pelos Reis da 1.ª dinastia aos concelhos como forma de fortalecerem a sua posi-ção política em relação ao clero e nobreza. A actuação de D. João I e seus partidários, na sequência da revolução de 1383-85, que se apoiaram no povo de forma a alcançar o poder. O movimento descentralizador e de reforço do poder político popular logo a seguir à I República. E, finalmente, após a revolução de 25 de Abril de 1974, o renas-cer e fortalecimento do poder autárquico. Assim, vislumbra-se, efectivamente, que esse renascer ou reforço do poder autárquico acentua-se, em geral, em períodos de transformação profunda da sociedade portuguesa e do sistema político.

O mesmo não acontece, pelo contrário, em períodos de estabilização do sis-tema político, mais ou menos longos, e do fortalecimento do poder central. A organização político-administrativa do Estado Português mostra, como carac-terística muito mais constante, um tipo de organização centralizada como força centrípeta do exercício do poder político.

Esta tendência acentuou-se a partir de D. João II – século XV – com a criação de um modelo explícito de centralização da Administração, que viria a perdurar

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por séculos. A partir desta época, a administração local e regional assume com mais frequência a forma de um processo de desconcentração, com mais ou menos gradações, do que um verdadeiro processo de descentralização conducente a uma transferência de poderes do nível central para os níveis local ou regional.

Do estudo, pela história, sobre esta matéria pode concluir-se que o munici-palismo foi a instituição representativa do poder local que o país real conheceu. Pese embora a existência de comarcas, províncias e distritos não foram criadas instituições supramunicipais que pudessem ser identificadas com regiões, como corpos de poder político e administrativo intermédios e interlocutores das comu-nidades locais, junto do poder central e deste junto daquelas.

De facto, dos conventus, da ocupação romana, até às cinco regiões do Testamento de D. Dinis – 1299; das sete comarcas de D. João I – 1406, às seis de D. João III – 1527; das sete províncias filipinas a outras divisões, encontra-mos diferenças maiores ou menores no elenco, na extensão e nas fronteiras. No entanto, até ao século XIX, tratam-se sempre de meras circunscrições adminis-trativas e militares, sem carácter autárquico.

Até à Revolução de 1820, o município foi o principal elemento da vida políti-co-administrativa portuguesa desde primeiros séculos da monarquia. O Estado Português caracterizou-se ao longo deste período por um acentuado pendor cen-tralista, que só viria a ser alterado com o nascimento do liberalismo. Porém, o período liberal que conheceu as províncias e os distritos foi marcado por avanços e recursos, hesitações e compromissos das suas reformas administrativas, não obstante ter construído os fundamentos do Estado moderno português.

Também a 1.ª República não viu vencer a modernização anunciada no ideá-rio republicano, tendo a tendência centrípeta do sistema português anulado os propósitos de autonomia do funcionamento da máquina administrativa. Apesar das intenções federalistas inscritas no programa republicano, tal não se veio a verificar em matéria de regionalização político-administrativa. Sobreviveu, no entanto, a relação Estado-concelhos.

Por sua vez, o Estado Novo foi marcado por uma absoluta dependência da Administração face ao poder central, em particular os municípios, e numa concep-ção corporativa do Estado. Também se pode dizer não ter existido uma política de administração regional durante o Estado Novo, não se podendo ver na instituição das províncias e mais tarde dos distritos uma tentativa de uma regionalização polí-tica ou administrativa. Durante esta fase da nossa história, foram apenas tomadas algumas medidas de desconcentração regional dos serviços, não podendo ser con-fundida com uma verdadeira descentralização, pressupondo esta o abandono pelo

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poder central dos poderes necessários para que os interesses de determinada comu-nidade territorial sejam geridos por essa própria comunidade, ao contrário daquela que continua a ser apenas uma maneira de o poder central se afirmar. O Código Administrativo de 1936-1940 não tinha, de facto, carácter descentralizador.

É notória e inegável uma tradição municipalista na administração portuguesa. Em termos regionais houve espaços administrativos. Porém, caracterizados mais como meras circunscrições vazias de conteúdo ou então estruturas desconcentradas.

Assim, podemos concluir que os poderes se mantiveram, praticamente, inamovíveis ao longo dos séculos: central e municipal. Pese embora ter exis-tido na nossa tradição administrativa um ente intermédio entre o Estado e o Município, importa esclarecer que aqueles corresponderam tradicionalmen-te como corpos integrados na administração desconcentrada e periférica do Estado, de que são exemplos os governadores civis e as comissões de coor-denação regional, e não a verdadeiros órgãos autárquicos descentralizados e dotados de autonomia político-administrativa.

A desconcentração tem, entre nós, raízes remotas, tendo sido o processo mais utilizado como forma do rei/poder central assegurar o cumprimento da sua von-tade nas diversas zonas do país, ao contrário da descentralização administrativa em que aqueles se tenham disponibilizado na entrega da gestão dos interesses das comunidades locais às respectivas populações, através de órgãos próprios por elas eleitos, conferindo-lhes autonomia para tal.

Quando se realizaram as eleições para a Assembleia Constituinte, exacta-mente um ano após o 25 de Abril de 1974, estava já consumada a ruptura com o corporativismo das estruturas do poder local do Estado Novo. Havia sido já incorporado um espírito político-social suficientemente democrático para definir um novo quadro jurídico para as novas autarquias que assegurasse uma autonomia e descentralização efectiva reclamada por todos os partidos e pelas populações. De facto, viriam a ter acolhimento no quadro da elaboração da nova Constituição, a restauração descentralizadora da tradição municipalista portu-guesa e a autonomia das autarquias locais.

Vejamos os principais traços dos diversos projectos de Constituição apresenta-dos pelos partidos constituintes relativamente à administração local e regional.

Os projectos constitucionais do PPD e do CDS, propunham, para além dos concelhos e freguesias, a criação de regiões administrativas, elevadas à categoria de autarquia local, como entidade de natureza supramunicipal – entre o poder central e o poder local – criando, assim, um novo patamar autárquico no edifício institucional e administrativo do Estado.

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O PS e o PCP fixavam nos seus projectos constitucionais a linha tradicional portuguesa da divisão e funções administrativas das autarquias locais, assente nos municípios e freguesias, inspirado no modelo constitucional francês.

O MDP/CDE categorizava os órgãos do poder local – as câmaras municipais, e as assembleias e conselhos regionais – como sendo órgãos locais do Estado actu-ando ao nível do âmbito territorial respectivo, enquanto a UDP apresentava as organizações populares como legítimos representantes das aspirações da popula-ção de cada província e região na luta contra as assimetrias locais e regionais.

Nenhum dos projectos de Constituição dos respectivos partidos fazia qualquer menção aos distritos, então e ainda hoje existentes, nem ao seu estatuto na divisão e organização territorial do país. Também as províncias tradicionais portuguesas, estabelecidas no Código Administrativo de 1936-40, e substituídas pelos distritos na revisão constitucional de 1959, não eram recuperadas, quer enquanto circuns-crição administrativa, quer enquanto divisão territorial.

Seriam pois, os partidos da Direita do leque partidário português aqueles que, em matéria de autarquias locais, para além das já tradicionalmente existentes –concelhos e freguesias – consagravam as regiões como nova divisão territorial no quadro administrativo regional do país, dispondo estas de autonomia admi-nistrativa e baseadas no princípio da descentralização. Os partidos de Esquerda do arco parlamentar português adoptavam o modelo tradicional municipalista.

Apesar de apenas o PPD e o CDS terem sido os únicos partidos a proporem nos seus projectos constitucionais a criação das regiões administrativas como autarquias locais, a proposta de articulado da Comissão do Poder Local da Assembleia Constituinte resultou de um entendimento mínimo quanto ao texto proposto por parte de todos os partidos no seio daquela comissão, alcançando-se uma solução de compromisso. Apenas o PCP e o MDP/CDE formulavam reser-vas quanto ao excessivo peso político das regiões administrativas e, do risco de “feudalização” político-partidária.

Porém, conforme foi possível extrair dos estudos de Vital Moreira, o papel das comissões na Assembleia Constituinte foi de facto da maior relevância na produ-ção do articulado constitucional, pois a formação da Constituição teve lugar não apenas no plenário da assembleia, mas também, em muitas matérias, nas respec-tivas comissões. Muitos preceitos da Constituição foram total ou predominante-mente debatidos e elaborados em comissão, antes da sua passagem pelo plenário.

Na verdade, segundo aquele constitucionalista, todas as comissões, em vez de se limitarem a dar parecer sobre os vários projectos constitucionais apresen-tados pelos partidos, elaboraram um texto alternativo, que apresentaram como

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proposta ao plenário. Em todos os casos, esses textos alternativos foram aprova-dos pelo plenário da Assembleia Constituinte, em prejuízo dos correspondentes capítulos dos projectos de Constituição apresentados pelos partidos, tendo sido sobre aqueles textos que se desenvolveu a votação na especialidade.

Concluídos os trabalhos das comissões, estas apresentavam à Assembleia os seus relatórios e pareceres das propostas de articulado para dar lugar à discussão e votação na generalidade e, posteriormente, na especialidade dos preceitos cons-titucionais propostos. Porém, do funcionamento e do trabalho aí produzido que transformaram os projectos de Constituição em autênticos projectos alternativos, dificilmente se reconhece, algumas vezes, qualquer dos projectos originários.

Realça ainda Vital Moreira, ele próprio deputado constituinte e membro da Comissão do Poder Local, que por um lado, por não existir na representação par-lamentar uma maioria mono-partidária suficiente por si só fazer aprovar preceitos constitucionais e, por outro lado, por não haver uma coligação formal para esse efeito, se exigiu a necessidade de um compromisso em relação a cada um dos preceitos.

De facto, veja-se que no debate constituinte o PPD e o CDS foram os dois únicos partidos que mostraram vincado reconhecimento nas virtualidades da criação das regiões administrativas, enquanto o PS, apesar de não se mostrar muito entusiasta do modelo das regiões, não se opôs à sua criação, e que mesmo os partidos da chamada esquerda revolucionária, o PCP e a UDP, as acabaram por aprovar, apesar das reservas apresentadas no que concerne ao peso político dado à sua autonomização e da falta de convicção sobre a sua criação, que não foram suficientes para rejeitar a sua consagração no texto constitucional.

A proposta da comissão do poder local foi mesmo aprovada apenas com os votos contra do MDP/CDE na generalidade, e os artigos referentes à consagração consti-tucional das regiões administrativas, mereceu também a aceitação geral na votação na especialidade, com excepção de apenas um artigo – que estabelecia as atribuições e tarefas das regiões – que contou com 2 votos contra também do MDP/CDE.

Concorreu também, seguramente, para a consagração das regiões administrati-vas no continente, a sua abordagem com um compreensível desprendimento pelos deputados constituintes, que se encontravam então menos vinculados à evolução conjuntural da vida política e parlamentar que ao seu trabalho no seio das comis-sões responsáveis pela elaboração dos diversos preceitos constitucionais.

De resto, não se encontra uma posição exterior oficial contrária ou não por parte dos partidos constituintes ao texto e preceitos emanados da Comissão do Poder Local, e aprovado em plenário, nas consultas efectuadas quer na imprensa nacional periódi-ca de então, entre Dezembro de 1975 e Fevereiro de 1976” isto é, do mês anterior ao

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mês seguinte da discussão e votação do articulado aprovado em plenário resultante daquela comissão. O mesmo acontece relativamente à imprensa partidária consulta-da, existente à época, dos partidos constituintes.

Recorde-se que na altura em que a Assembleia Constituinte elaborou e apro-vou a Constituição, nenhum dos partidos era poder instituído, nem os deputados tinham compromissos em relação ao concreto exercício desse poder.

Por sua vez a Constituição foi redigida e aprovada numa altura em que os par-tidos exerciam uma função de contra-poder, não sendo ainda, apesar dos resulta-dos eleitorais à Assembleia Constituinte, clara a configuração da real distribuição do poder. Os partidos lutavam então, sobretudo, pela conquista das suas próprias áreas de implantação.

Porém, não é perceptível a intenção encapotada de a criação de regiões admi-nistrativas visar a conquista de espaços ou níveis de poder político-partidários, por parte dos partidos que propuseram a consagração constitucional das regiões como autarquias locais eleitas, ou seja o PPD e o CDS, face aos resultados nacionais da eleição constituinte, que lhes permitisse tentar conquistar aos seus adversários directos, isto é o PS e o PCP, áreas de penetração eleitoral e disputa do poder. No entanto, o PCP vislumbrava na intenção da criação das regiões administrativas a tentativa “disfarçada” de se estabelecer áreas de controlo político-partidário.

Não deixa de ser curioso que a defesa e a rejeição da regionalização tenha osci-lado ao longo destes anos, na defesa da sua instituição, dos partidos de Direita para os partidos de Esquerda, conforme se encontrem na oposição ou no Governo, res-pectivamente, não sendo, assim, certamente alheio à defesa da sua implementação, o quadro evolutivo da detenção do poder central ao longo do período respectivo.

Cremos que se a Constituição tivesse sido elaborada numa situação em que o poder central se afirmasse na sua plenitude, seguramente não teria sido con-sagradas tão amplas possibilidades à criação de um nível autárquico regional no âmbito do poder local.

De facto, a História mostra-nos que dificilmente quem detém o Poder cede de motu próprio parte da sua própria razão de ser como poder. E quem não tem o poder, deseja-o, e uma vez na sua posse age de forma igual na sua preservação. A prática polí-tica mostra que raramente se encontram situações em que a fonte do poder instituído se auto-limita ou esvazia no seu poder transferindo-o para outras fontes – do nível central para o nível regional ou local – podendo estas vir a actuar como estruturas de contra-poder. É mais frequente acontecer, que quem detém o poder acorde pontu-almente partilhar parte desse poder com outros órgãos descentralizados, visando a realização de determinado projecto político com o seu apoio.

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Depois da aprovação da Constituição de 1974, o problema que se colocou à instituição das regiões administrativas, foi o da descentralização do nível central para o nível regional, que não se concretizou.

Diferente foi o caminho consagrado e percorrido pelos arquipélagos dos Açores e da Madeira como regiões autónomas, em que foram objecto de descentralização admi-nistrativa, política e financeira, com órgãos de governo próprio e poder legislativo.

Nos termos do texto constitucional de 1976, a concessão de autonomia política aos Açores e à Madeira, baseou-se nos condicionalismos geográficos, económicos e sociais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares.

Com efeito é de admitir que a distância a que os arquipélagos dos Açores e da Madeira se encontram do Continente, a que se somava os seus limitados recursos económicos e financeiros, teriam justificado a adopção de soluções próprias e particulares que fossem de encontro a essas circunstâncias especiais, criando-se um regime específico para a administração insular.

Não se pode, porém, ignorar que a consagração constitucional desse estatuto, também terá procurado travar o discurso e tensões separatistas, por vezes mes-mo independentistas, dos movimentos insulares.

No período que se seguiu ao 25 de Abril, a generalizada manifestação de von-tade de uma maior participação política que se registou em todo o país, assu-miu nos Açores e na Madeira a forma de reivindicação de que fossem criadas estruturas político-administrativas capazes de aproximar o poder de decisão das populações insulares. O tom e o sentido dessas reivindicações a par da situação política vivida no continente tiveram reflexos óbvios nas ilhas, fortalecendo a posição daqueles que defendiam um estatuto autónomo para os arquipélagos.

Apesar de reconhecer que não foi alheia a evolução da situação política nas ilhas, os deputados constituintes da comissão encarregue de elaborar o articula-do dos Açores e da Madeira perceberam a especificidade da questão.

O PS, o PPD e o CDS e, mais tarde o PCP, apresentaram para as ilhas um estatuto próprio de autonomia, logo em Julho de 1975, nos seus projectos de Constituição.

Não se pode, assim, afirmar que a criação das regiões administrativas no continen-te tenha alguma relação com a consagração do estatuto de regiões autónomas para o território insular, quer no contexto político que o envolveu, quer da natureza da sua especificidade, quer ainda, no tempo da sua discussão. O debate e aprovação em ple-nário da assembleia do articulado relativo ao poder local ocorreu em Janeiro de 1976, enquanto que a dos Açores e da Madeira, apenas teve lugar em Março de 1976.

Mas, no continente as regiões administrativas previstas desde então como autarquias locais descentralizadas e dotadas de autonomia, não foram até hoje

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instituídas. Em termos autárquicos mantiveram-se as freguesias e os municípios como órgãos do poder local.

Não chegaram, assim, a ser executados os princípios constitucionais consa-grados às regiões administrativas, apesar de terem sido apresentadas e discu-tidas várias iniciativas legislativas nesse sentido em sucessivas legislaturas. A Assembleia da República aprovou mesmo em 1991 e em 1998 a Lei-quadro e a Lei de criação das regiões administrativas, respectivamente.

No quadro do insucesso da sua implementação, podemos dizer, nomeada-mente, que esbarraram no processo da sua consumação, por um lado, o facto de os partidos políticos quando no exercício do poder central, isto é, detentores do poder governamental, não terem verdadeiramente manifestado vontade para efectivar as disposições constitucionais que conduziriam à instituição plena de um poder regional e, por outro lado, a Assembleia da República, apesar das cita-das iniciativas, ter resistido até hoje a efectivar a sua implementação que condu-ziria a uma diminuição da margem de acção daquele poder.

Completaram este quadro, a resistência do aparelho de Estado, avesso a alte-rações das formas de poder instituído, e das próprias dificuldades da tarefa, desig-nadamente a delicada questão do mapa de divisão regional do país. Factores estes que todos conjugados protelaram o cumprimento da incumbência constitucional da criação de um terceiro poder, entre o governo e os municípios.

Finalmente, submetida a referendo nacional, realizado em 1998, a regionalização, nos termos apresentada, não mereceu a aprovação dos eleitores portugueses. A inte-gração europeia de Portugal, naquilo que é perceptível no discurso político dos seus detractores, poderá ter tido reflexos, quanto à necessidade da sua institucionalização, à luz de uma Europa das Regiões e em função das dimensões territoriais de Portugal.

Diga-se, por fim, que quando falamos de regiões administrativas, estamos na realidade, a falar de um terceiro poder autárquico que irá beber não só as suas funções à descentralização do poder central, mas também ocupar outras que hoje pertencem aos municípios. Estamos pois, a falar de uma nova orga-nização do aparelho de Estado e de uma nova divisão de Portugal, num país sem raiz histórica nem consciência política para este terceiro poder político intermédio, dotado de autonomia, de atribuições políticas e partilhado entre os poderes central e municipal.

Assim, municípios versus regiões é também uma dicotomia que exige uma clara definição das fronteiras, de onde começa o poder de uns e acaba o de outras, bem com da sua pacífica coexistência política, pois as regiões compreendem na sua área os respectivos municípios.

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Como no início deste estudo se viu, nas palavras de Vital Moreira, das gran-des inovações institucionais da Constituição de 1976, foi a esta que se depararam maiores dificuldades e atrasos na sua concretização, ainda hoje não ultrapassadas.

Como afirmou recentemente Barbosa de Melo (em programa televisivo) – autor do projecto constitucional do articulado relativo ao poder local, que estabeleceu a regi-ões administrativas como autarquia local na arquitectura administrativa e institucio-nal do Estado – por enquanto a história tem se encarregado de dar razão a Alexandre Herculano, citando-o que “a História de Portugal é a História dos Municípios”.

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INTRODUÇÃO

É relativamente consensual a ideia de que, mais de trinta anos volvidos, o 25 de Abril continua a gerar controvérsia e a suscitar dúvidas” o que diz bem da extre-ma complexidade do período revolucionário de 1974-75 e do impacto avassala-dor que este teve na sociedade portuguesa.

Nesta neblina de incertezas, a análise do universo mediático de 1974-75 pode dar um contributo clarificador. Como factores de construção da realidade social, os media da época reflectiram as virtudes mas também os excessos da revolução. As utopias mas também as frustrações de um povo cívica e politi-camente virgem. As conquistas mas também os desaires de um processo de democratização pleno de conflituosidade.

É, pois, legítimo concluir, como faz o investigador e jornalista Mário Mesquita, que “a génese histórica do actual sistema mediático português se situa no perío-do pós-revolucionário de 1974-75”.1

Com o 25 de Abril, a censura prévia sobre os conteúdos dos órgãos de informação é abolida. E foi como se a uma panela com água a ferver tirassem de repente a tampa, libertando todo o vapor acumulado. Uma sensação de liberdade, mas também de des-regramento e até impunidade, invadiu então as redacções dos media portugueses.

A imprensA diáriA portuense no período revolucionário de 1974-75

Ricardo Miguel Gomes | Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras

da Universidade do Porto (FLUP)

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Ora é sabido que, quando há uma ausência de ordem e um vazio de poder, logo surge quem pretenda tomar as rédeas da situação. O mesmo aconteceu nos media, que rapidamente despertaram a cobiça dos próceres da revolução e se tornaram campo de confrontação ideológica.

Na vertigem revolucionária, tanto as forças políticas como as militares procu-raram conquistar a tutela doutrinária dos órgãos de informação. E estes sucumbi-ram, amiudadas vezes, a essa ingerência. O resultado foi, em termos gerais, uma comunicação social panfletária, sectária, alinhada ideologicamente à esquerda e cúmplice dos excessos revolucionários.

Assim, a uma censura de tipo regimental infligida durante o Estado Novo seguiu-se uma outra censura praticada no interior das empresas jornalísticas. O garrote informativo era então imposto de baixo para cima pelos jornalistas, tipó-grafos e outros profissionais da comunicação social. E de cima para baixo, através da pressão governamental, partidária e sobretudo militar.

A favorecer esta nova censura estava um conjunto de factores intrínsecos às próprias redacções, como a inexperiência profissional dos jornalistas num con-texto de liberdade de imprensa; a ausência de um consenso mínimo dentro das redacções sobre o papel da comunicação social num processo revolucionário; o re-crutamento de jornalistas por critérios de militância partidária; a ideia errada, mas muito cara à esquerda marxista, de poder absoluto e ilimitado de influência dos media sobre a sociedade; a ingerência dos trabalhadores não jornalistas na orien-tação editorial dos órgãos de informação; e, claro, o “ar do tempo”, a cultura de esquerda que impregnou a sociedade portuguesa durante o período de 1974-75.

De registar, contudo, que mesmo num clima político adverso foi possível aprovar, em Fevereiro de 1975, uma Lei de Imprensa liberal e avançada, cuja matriz é ainda hoje válida.

OBJECTO DE ESTUDO

Foi motivado por este peculiar contexto mediático – onde se combinam ingenuida-de profissional, activismo ideológico, ingerência política e manipulação grosseira – que avançámos para investigação de mestrado, cujo objecto de estudo é a cobertu-ra informativa dos acontecimentos políticos da Revolução de Abril realizada pelos três diários portuenses: Jornal de Notícias, O Comércio do Porto e O Primeiro de Janeiro.

Foram escolhidos estes três títulos por serem os mais representativos da imprensa portuense da época e, como tal, capazes de revelar com acuidade a mundividência, o sentimento colectivo, o sentir profundo da opinião pública e publicada do Porto e até da região Norte.

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De referir que o estudo abarca o espaço temporal entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, acontecimentos que balizam um período crucial para a democratização do País. Entre o golpe de Estado e a derrota da extrema-esquerda militar, a sociedade portuguesa viveu dilacerada pelo confronto que opôs o modelo democrático de legitimidade eleitoral ao modelo colectivista de legitimidade revolucionária. E foi a vitória, nesse estuante período, dos partidários do primeiro modelo que conduziu Portugal a uma democracia de tipo ocidental.

QUESTÕES-CHAVE   

Face a este corpus documental, várias questões-chave ou premissas se colocaram à partida:

Qual a orientação editorial dos três diários portuenses ao longo do período revolucionário?

Terá essa orientação editorial se mantido uniforme do 25 de Abril ao 25 de Novembro?

Será que existem diferenças de fundo na forma como os três diários portuen-ses noticiaram os acontecimentos políticos do período revolucionário?

Terá a imprensa diária do Porto abdicado do seu dever de imparcialidade e rigor informativos, tendo em vista objectivos políticos e ideológicos?

Terão os diários do Porto seguido as tendências dominantes na comuni-cação social de 1974-1975, ou, pelo contrário, revelaram diferenças ao nível do tratamento noticioso e da constituição da agenda informativa?

A circunstância de estarem sedeados na capital de um Norte periférico, conservador, católico e por isso algo recalcitrante perante o curso ideo-lógico da revolução teve, ou não, repercussões na cobertura informativa dos três diários?

Ou será que os diários do Porto enfermaram das mesmas disfunções da generalidade da imprensa portuguesa, embora com objectivos contrá-rios: travar o processo revolucionário, preservar o que restava do status quo herdado do anterior regime ou até mesmo promover o retorno das forças conservadoras ao poder?

METODOLOGIA

A metodologia seguida nesta investigação assenta em duas vertentes fundamen-tais: a análise do conteúdo das edições diárias dos três periódicos e a realização de entrevistas a protagonistas do tema em estudo.

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A análise de conteúdo incide sobre o material informativo produzido por jornalistas e colaboradores dos jornais, o que inclui todo os géneros jornalísticos, desde a notícia ao artigo de opinião, passando pela reportagem, entrevista e foto-legenda. Fora do âmbito do estudo ficam, portanto, a publicidade, os comunica-dos institucionais e as rubricas de entretenimento.

A intenção é caracterizar o relato jornalístico dos acontecimentos do período revolucionário, tendo em conta a realidade histórica. Neste sentido, interessa-nos perceber até que ponto as análises e descrições que cada um dos diários por-tuenses fez dos factos concretos da época foram distintas entre si e se são coinci-dentes com a historiografia sobre os mesmos acontecimentos, procurando, deste modo, descortinar tendências ou pontos de vista particulares. Por conseguinte, o nosso objecto de estudo não contempla a análise crítica do discurso jornalístico à luz das ciências da comunicação, mas tão-só na sua perspectiva histórica.

A segunda vertente da metodologia consiste na recolha de testemunhos de pessoas envolvidas no universo mediático de 1974-75: antigos directores dos jornais e outros responsáveis editoriais e jornalistas da época.

Tratando-se de uma investigação centrada num período tão recente da nossa História, torna-se possível recolher directamente as memórias e recordações dos pro-tagonistas do objecto de estudo. Algo que, em nossa opinião, valoriza bastante a inves-tigação em causa, na medida em que permite complementar/completar a informação histórica plasmada nas fontes bibliográficas. Por outro lado, o recurso ao testemunho oral vai necessariamente facilitar a análise do conteúdo das edições diárias dos três periódicos, aclarando as opções editoriais subjacentes a esse mesmo conteúdo.

Pensamos que, através da análise do conteúdo e do testemunho dos protagonis-tas, será possível historiar o quotidiano das redacções dos três diários portuenses, durante o buliçoso período do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975.

CONCLUSÕES PROVISÓRIAS

A Revolução de 25 de Abril de 1974 vai apanhar de surpresa os jornais por-tuenses – à semelhança, aliás, da maioria dos portugueses. De resto, já a gorada intentona de 16 de Março de 1974 («Golpe das Caldas») não havia suscitado grande interesse nos três diários – o que se explica pela distância a que estes se encontravam do centro dos acontecimentos, pela linha editorial pouco politiza-da e, claro, pela censura prévia.

Apesar de surpreendidos, os três jornais acolheram com regozijo a chegada da liberdade. Nos dias imediatamente posteriores ao 25 de Abril, e talvez por estarem longe do epicentro da Revolução, a imprensa portuense desenvolveu

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uma notável acção moderadora, apelando à serenidade e chegando mesmo a criticar os excessos revolucionários.

De facto, a serenidade e a sensatez pareciam reinar nas redacções portuenses. Ao contrário do que sucedeu na imprensa de Lisboa, os jornalistas e restantes trabalhadores dos diários do Porto não sanearam as respectivas administrações e direcções, sob pretexto de alegadas cumplicidades com o regime deposto.

Apenas n’ O Comércio do Porto se verificou a mudança de director. Por causa de uma divergência editorial, os jornalistas proclamam a autogestão da redacção. E a desinteligência culmina, em 16 de Maio de 1974, com o abandono da direcção por Alípio Dias, que é substituído interinamente por José Miguel Carqueja Seara Cardoso. Dez dias depois, Fernando Teixeira, até à data chefe de redacção do Diário Popular (também do grupo Quina), toma posse como director de O Comércio do Porto. Alípio Dias manteve-se, contudo, no quotidiano como administrador.

Mas à medida que o processo revolucionário se radicaliza, primeiro com o 28 de Setembro e depois com o 11 de Março, a imprensa diária do Porto vai, tam-bém ela, evidenciando alguma saturação ideológica e algum sectarismo político.

Tanto mais que, após o 11 de Março, dá-se a nacionalização dos principais sectores económicos (nomeadamente a banca), decisão que colocou nas mãos do Estado a maioria dos jornais portugueses. Entre eles O Comércio do Porto, através do Banco Borges & Irmão, e o Jornal de Notícias, embora neste caso se tenha trata-do de um reforço da presença estatal, uma vez que o quotidiano já tinha capitais públicos por via da Caixa Geral de Depósitos. Consequentemente, estes dois diários portuenses tornaram-se mais vulneráveis às pressões do Governo, que por essa altura era orientado por ideologias socializantes.

Entre os matutinos portuenses, o Jornal de Notícias foi o que mais claramente se colocou ao serviço da revolução. Uma prova disso mesmo são os princípios orienta-dores do jornal, aprovados a 4 Março de 1975. No primeiro desses princípios é dito que “o Jornal de Notícias é um jornal de trabalhadores para trabalhadores, que se empe-nhará numa informação honesta e objectiva, propósito que só se considera possível se identificado com a defesa dos interesses das classes trabalhadoras, assim como, na medida em que sejam conciliáveis com aqueles, dos interesses da pequena indústria, do pequeno comércio, e da pequena lavoura”.2

À vertigem revolucionária também não escapou, numa primeira fase, O Comércio do Porto. Em nota publicada a 14 de Março de 1975 e intitulada “A nossa posição”, os trabalhadores do jornal reafirmam que “O Comércio do Porto é um jornal independente ao serviço do Povo português, numa perspectiva progres-sista, que contribua para o processo de democratização do nosso país, dentro dos

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princípios do programa do MFA”. Sublinham ainda que os seus objectivos “se concentram fundamentalmente na socialização dos meios de produção e no fim da exploração do homem pelo homem”.3

Prevalecia, portanto, a ideia de que mais do que informar, analisar e comen-tar, a imprensa deveria persuadir, agitar e mobilizar como um qualquer instru-mento de propaganda.

Assim se percebe que, na ânsia de servir os trabalhadores e a revolução, tanto o JN como O Comércio do Porto utilizassem uma linguagem ideologicamente saturada, de ataque cerrado às organizações de direita e observando os aconte-cimentos sob uma óptica maniqueísta ou dicotómica: reacção versus revolução, progressistas versus fascistas, direitos do povo versus interesses do grande capital, explorados versus exploradores, socialismo versus fascismo.

A massa informativa veiculada era impressionante. Toda a gente emitia opi-niões, tomava decisões e enviava recados. Os dois matutinos estavam enxame-ados de comunicados de sindicatos, comissões de trabalhadores, associações de moradores e outras organizações de representatividade duvidosa. A ideia era dar voz ao Povo e aos seus supostos representantes, mas, desta forma, os jornais eximiam-se da sua função de analisar e interpretar os factos, limitando-se a ser-vir, em bruto, informação que era produzida no exterior. Não havia, portanto, capacidade de análise ou de selecção dos factos. E o essencial era, muitas vezes, confundido com o acessório.

Além disso, os dois diários defendiam inequivocamente, e na maioria das vezes em prosas encomiásticas, as chamadas “conquistas da Revolução”: as nacionalizações, as “ocupações selvagens” (sempre vistas com indulgência), as campanhas de dinamização cultural, o controlo operário das empresas, entre outras. Em qualquer circunstância, os trabalhadores tinham sempre razão.

Quanto ao O Primeiro de Janeiro, é legítimo afirma que foi o diário portuense mais moderado e plural na cobertura dos acontecimentos do período revolucio-nário. Para este facto terão contribuído a estabilidade administrativa e directiva do jornal, a sua independência face ao Estado (era dos poucos órgãos de informa-ção privados), a homogeneidade da sua redacção e a personalidade vincada do director, Manuel Pinto de Azevedo Júnior. Apesar disso, não se pode afirmar que o “Janeiro” tenha escapado incólume ao turbilhão revolucionário. O noticiário deste jornal estava, também ele, impregnado pelos chavões políticos da época e a cultura de esquerda influenciava a descrição e análise dos factos.

A partir do V Governo Provisório – o mais contestado e frágil de Vasco Gonçalves – verificou-se, contudo, uma significativa mudança editorial dos três

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diários portuenses. Os excessos revolucionários começaram a ser contestados e surgem os primeiros editoriais criticando o Governo, alguns sectores do MFA e os partidos da esquerda mais radical.

Com o VI Governo Provisório, o qual era liderado por Pinheiro de Azevedo e composto por militares moderados e várias personalidades ligadas ao PS e PSD, esta mudança editorial consolida-se. Os jornais colocaram-se claramente ao lado de Pinheiro de Azevedo e do seu executivo, contra as facções políticas e militares próximas do partido comunista e do chamado“gonçalvismo”, dos partidos da extrema-esquerda e do COPCON.

No conturbado “Verão Quente” de 75, em que o País esteve no limiar da guerra civil, os três diários clamaram contra a indisciplina militar, a violência urbana, a onda de boatos golpistas criada pela comunicação social, as hesitações do presidente Costa Gomes, o apoio de algumas facções militares ao MPLA no processo de descoloniza-ção de Angola, entre outras matérias cruciais da vida pública de então.

Neste sentido, a imprensa portuense deu voz ao sentimento geral da população nortenha, que estava notoriamente exasperada com a anarquia que grassava pelo país. Os três diários não se pouparam a esforços para descrever aos seus leitores – amiudadas vez em tom triunfal e eivado de proselitismo – os grandes comícios de Pinheiro de Azevedo, do PS e do PSD, ou as acções militares do “Grupo dos Nove”.

De resto, não faltaram políticos próximos ou pertencentes ao VI Governo a manifestarem o seu apreço pela imprensa do Norte, até mesmo em comícios e na própria Assembleia Constituinte. Num momento de clivagem ideológica entre o Norte conservador e o Sul revolucionário (sobretudo Lisboa e Alentejo), os jor-nais do Porto colocaram-se peremptoriamente ao lado das populações que lhe eram mais próximas. E, por isso, gozaram de grande prestígio junto das facções moderadas do espectro político.

Imediatamente após o 25 de Novembro, o Conselho da Revolução demite “todos os membros em exercício da administração” das empresas jornalísticas nacionalizadas ou sob intervenção do Estado, suspendendo assim a publicação dos jornais editados por essas empresas até à nomeação de novos administradores. A medida era justificada, entre outras razões, pelo facto desses órgãos “produzirem informação tendenciosa, distorcida e monolítica”, contribuindo assim para a “cria-ção de um ambiente favorável ao golpe contra-revolucionário”.4

Todavia, são de imediato reconduzidos os conselhos de administração das empresas jornalísticas estatizadas do Porto (Jornal de Notícias e O Comércio do Porto), o que mostra bem que os diários portuenses estavam mais próximos do novo poder político e militar do que os seus congéneres lisboetas.

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Em resumo, a cobertura informativa dos três diários conheceu três fases dis-tintas: uma primeira fase de regozijo pela liberdade alcançada; uma segunda fase de radicalização política e saturação ideológica (menos notória n’ O Primeiro de Janeiro); e uma terceira fase de crítica aos excessos revolucionários e de aproxi-mação aos sectores moderados do espectro político-militar.

Esta última transformação editorial da imprensa portuense é talvez a mais interes-sante. Por um lado, mostra que os jornais do Porto acompanharam a evolução política do País, que com o VI Governo se fez no sentido do socialismo pluralista, moderado e de base parlamentar. Por outro, sugere que os três diários foram ao encontro dos seus leitores: a pequena e média burguesia, os trabalhadores dos serviços, os agricultores e algumas elites, localizados sobretudo no Norte e Centro do País. Este heterogéneo grupo social olhava de soslaio para o radicalismo revolucionário da Grande Lisboa e Alentejo e, por isso, revia-se na moderação editorial dos jornais do Porto.

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NOTAS

1 MESQUITA, 1994: 361

2 SOUSA, 1988: 328

3 A nossa posição. O Comércio do Porto. 15 de Março de 1975. Pág. 1.

4 Cit. por MESQUITA, 1994: 373

BIBLIOGRAFIA

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Quero começar por agradecer este convite e informar que esta comunicação que apresento hoje, é um dos resultados do trabalho de campo que desenvolvi no âmbito da monografia de fim da minha licenciatura em Antropologia, durante o ano 2000, e que não é o meu presente tema de trabalho.

Sou daquelas pessoas paradoxais que como sempre viveu em liberdade nunca se ques-tionou muito sobre o que é não viver em liberdade...1 disse-me a minha informante de 26 anos, nascida em 1975, ainda não era passado um ano sobre a revolução, e tentando sintetizar com a frase uma geração inteira, a sua geração inteira, que no fundo, acabava por ser a minha também, já que sou um nascido de 1976.

Quando comecei o trabalho para a minha tese de licenciatura, que motivou esta conversa, e no qual me propunha comparar as recordações de duas gerações consecutivas, pais e filhos de quatro famílias de áreas políticas distintas, sobre os factos que precederam, constituíram e se seguiram ao 25 de Abril de 1974, esperava ouvir relatos muito diferentes do que tinha encontrado nos livros e documentos descritivos da época, esperava também ouvir relatos muito diferen-tes entre si, se tinha, entre os pais, de antigos militantes da extrema-esquerda a oposicionistas da primeira hora ao sistema democrático, passando por “modera-dos” de várias tonalidades, era o mínimo que podia esperar.

O 25 DE ABRIL TAL COMO é ENSINADO — A DEMOCRACIA E O ENSINO DA HISTÓRIA

Tiago Matos Silva | Mestrando em Antropologia dos Movimentos Sociais na Faculdade

de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCHS-UNL)

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O que é que aconteceu a esta expectativa? No decorrer do trabalho de campo, cedo concluí que nas histórias de vida dos filhos surgia constantemente uma influência estranha à família, uma influência que levava os filhos dos ex-maoís-tas a aproximarem-se dos filhos dos ex-salazaristas, uma influência tão difusa e sub-reptícia como geral e abrangente, uma influência que rapidamente reconheci como intervenção do Estado Português, não o Estado pré-25 de Abril, que não podia de modo algum ter influenciado estes filhos, já que em 1974 apenas um deles era nascido, e tinha poucos meses quando se dá o golpe, mas sim o Estado democrático, representativo e supostamente não-intervencionista em matéria de directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas. O surgir deste novo perso-nagem, literalmente, deitou por terra a minha visão duma História ideologicamente depurada, de um momento para o outro a historiografia pós-25 de Abril merecia-me tantas reservas como a do antigo regime, e rapidamente comecei a fazer o levanta-mento das inexactidões, dos tons e dos pequenos empurrões para um lado ou para o outro que os historiadores meus contemporâneos vão dando nos seus textos. Foi, para o meu trabalho, um momento muito complicado, no mínimo.

Ao compreender finalmente que a interpretação dos factos não só é o mate-rial que temos para trabalhar, mas também é aquilo que mais importa em termos de compreensão dos fenómenos contemporâneos, e aqui não se deixem esque-cer que o enquadramento, lógica e objectivos do meu trabalho eram antropoló-gicos e não historiográficos, restou-me voltar-me para os informantes, voltar-me para a Memória. Sendo assim, impõe-se-nos a pergunta, será a Memória um ins-trumento válido de pesquisa antropológica? E a minha resposta é um sim quase categórico. Já que, para o meu estudo em particular, a existência de distorções, mentiras, silêncios, idealizações, demonizações, esquecimentos, auto-repres-sões, não só não foi negativo, como se tornou positivo, já que todas estas defesas psicológicas constituíram, a partir desse momento, o cerne do meu trabalho, ou seja, desisti da busca do facto e passei a procurar, não a “Verdade”, os factos objectivos e puros, mas sim o mais subjectivo que havia em cada um dos meus informantes, o que eu queria saber a partir desse momento era a opinião deles, o que é que eles “achavam” daquilo tudo, como é que eles viam aquilo tudo, ou seja, desistir da busca do que “realmente aconteceu” permitiu-me ver e traba-lhar as diversas visões do que aconteceu. Em resumo, transformei o subjectivo no objecto do meu trabalho.

Este realinhamento da minha pesquisa, não significou no entanto, o esque-cimento da temática da História como produto contemporâneo. Continuando a trabalhar o assunto, rapidamente descobri que não era o único a ver no Estado um

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pedagogo com tantas intenções ideológicas como propriamente científicas. Oliver Thomson, na sua “Uma História da Propaganda” não hesita em afirmar que:

O facto de uma das funções da educação ter sido habitualmente gerar cidadãos úteis ao Estado e cooperantes com ele, obedientes aos seus parâmetros morais e capazes de aderir aos seus objectivos corporativos, significa que, mesmo regimes que se consideram acima da utilização da propaganda, têm efectivamente utili-zado muitos sistemas do processo educativo para moldar os jovens nos aspectos religioso, moral, económico e político.2

E porquê? Porque a Memória é uma batalha, e é tanto uma batalha nos regimes totalitários, como nos democráticos. Se num regime ditatorial a Memória pode constituir uma séria ameaça ao status quo, numa democracia também, daí não ser de estranhar a sua utilização de um modo defensivo, ou seja, a Memória deverá servir os interesses do Estado, deverá justificar e ajudar à manutenção do Presente, compreendendo-se desta maneira, a tendência de eliminar da memória colectiva, tudo o que possa causar conflito, tudo o que possa desunir os indivíduos.3

É óbvio que, nesta guerra da Memória, uma das grandes armas é a História, quem controlar a produção e o ensino da História, controla a maneira como a sociedade olha para o Passado, o que resulta, indirectamente, no controlo sobre a maneira como o Presente se percepciona a si próprio. Desta maneira, é natu-ral que toda a História sirva um propósito social e presente, e se os factos não se adequarem ao propósito, serão recriados, moldados e reinterpretados até se “encaixarem”,4 perpetuando-se assim, nas nossas democracias ocidentais a des-crição que Paul Thompson fez em 1978, quando dizia que era através da História ensinada nas escolas, que as crianças eram ajudadas, não só a compreender, mas também a aceitar, o sistema político-social em que viviam.5

Quando afinada ao máximo, esta máquina produtora de História (que acaba por ser uma máquina produtora de mentalidades e de ideologia), vai reproduzir as ideias dominantes duma sociedade, criando, o que Antonio Gramsci6 chamava como uma hegemonia. Esta hegemonia, súmula da ideologia das classes dominan-tes de uma sociedade, serve os objectivos dessas mesmas classes dominantes, no nosso caso, a perpetuação e naturalização do regime democrático. Desta maneira, a luta memorial dos últimos 30 anos em Portugal tem sido a da naturalização da democracia representativa, ou seja, a da criação de uma hegemonia, produtora da ideia de que a democracia representativa é indiscutível, e que qualquer outro tipo de regime cairá na categoria das ideias utópicas e inacessíveis, caso almeje uma

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democracia mais progressista, ou na das ideias retrógradas e reaccionárias, caso defenda um estado, digamos, “mais musculado”,7 reduzindo-se assim o criticismo popular, ao interno do regime, sem jamais discutir o regime em si.

Os resultados deste processo, que Giddens chama naturalization of the pre-sent8, são facilmente verificáveis na 2ª geração das famílias que comigo trabalha-ram. Nenhum dos oito filhos, por muito que esteja em desacordo com a história oficial do início do regime, discute o regime em si. A democracia representativa, para além de ser a única coisa que conhecem, é a única que conseguem con-ceber, e eu, pessoalmente, compreendo este fenómeno perfeitamente, já que comigo se passa o mesmo. Mas urge perguntar, que processos justificam esta minha posição, onde descubro eu uma História Institucionalizada que sirva tão globalmente os interesses estatais?

Enquanto falamos do Estado Novo parece não haver dúvidas, Salazar, cons-ciente da importância da História no Presente (chamando-lhe mesmo, a mes-tra da vida9), fez com que o Estado Novo assumisse, por princípio, o combate à escola neutra do ponto de vista ideológico. Assim, foi rápida e assumidamente que, a escolaridade, como atestava o Decreto n.º 27.084, de Outubro de 1936, foi posta ao serviço da, e passo a citar, unidade moral da Nação,10 sacrificando-se nos manuais, inclusivamente, páginas dedicadas à ciências naturais, em prol de textos marcadamente ideológicos,11 isto enquanto a Academia de História, que nominalmente era presidida pelo Chefe de Estado, proclamava ser seu objectivo a, e volto a citar, revisão e rectificação da História Nacional.12

Mas qual o objectivo desta revisão histórica? Como afirmava o Decreto n.º 21.103, de Abril de 1932,13 era ele o fortalecimento dos seguintes valores funda-mentais da vida social: a Família, como célula social; a Fé, como estímulo da expansão portuguesa por mares e continentes e elemento de unidade e solidariedade nacional; o Princípio de Autoridade, como elemento indispensável do progresso geral; a Firmeza do Governo, espinha dorsal da vida política do país; e o Respeito da Hierarquia, condição bási-ca da cooperação de valores. Isto far-se-ia através da censura sobre, e volto a citar, tudo quanto, pelo contrário, tem sido elemento de dissolução nacional, de enfraquecimento da confiança no futuro e falta de gratidão para com os esforços dos antepassados.

E assim se institucionalizou a construção de uma “verdade nacional”, seguin-do a lógica de António Gonçalves Mattoso, quando este conhecido professor (e autor de livros escolares), já nos anos 40, defendia que, e cito novamente, o fim do professor de História não é ‘ensinar todas as verdades’, narrar ‘todas as verdades’, contar ‘todas as verdades’, mas apenas dar ao estudante o conhecimento das verdades que servem a Pátria e não das que podem prejudicá-la ou diminuí-la;14 é óbvio que esta “verdade

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nacional” permitiu a criação de uma ficção, de uma enorme ficção unidimensio-nal onde o português homem, branco e católico era o único herói.

Mas falamos aqui do Estado Novo, vendo-se como natural a utilização pro-pagandística do Passado como molde para o Presente, por parte dum sistema autoritário, o que dizer quando o mesmo se aplica a uma democracia repre-sentativa? Qual é o método utilizado pelo estado democrático para institucio-nalizar uma visão do Estado Novo, do 25 de Abril e do PREC? Antes de tudo, a escola; o ensino em geral e a disciplina histórica em particular servem de aríete desta acção. Assim, são vários os autores a reconhecer e a apontar as tentações programáticas da democracia: José Manuel Tengarrinha não hesita em falar de programas e manuais maus, com erros grosseiros a intercalar um amontoado de factos desarticulados que não só não explicam, como confundem por acu-mulação;15 Fernando Rosas, por sua vez, fala duma manipulação da memória e do seu suporte, conseguida através da marginalização e da banalização do dis-curso histórico, facilmente reconhecível nalguns níveis de ensino, através da desvalorização da História nos currículos, o que resulta num esvaziamento e banalização dos conteúdos;16 isto enquanto Luís Reis Torgal fala abertamente de uma história institucional, centralizada numa política de conciliação, que recupera de tal maneira global, os mitos do salazarismo, que se excluirmos um ou outro elogio a ideais democráticos, nunca estivemos tão perto como agora de voltar a usar os manuais do professor António Gonçalves Mattoso.17 Eu próprio, para desfazer as minhas dúvidas, fui onde a influência do Estado é determinante e absoluta, ou seja, fui aos livros de História da minha 2ª geração, os livros que eles estudaram durante o liceu. Deste modo, comparei 5 obras diferentes, de autores diferentes, das maiores editoras de livros escolares (a Porto Editora, a Texto Editora e a Editorial O Livro), de alturas diferentes (o primeiro é de 1985 e o último de 1996), num leque que abarca toda a minha 2ª geração. Assim, como é que vêm retratados o Estado Novo, o 25 de Abril e o PREC nos livros, pelos quais a 2ª geração estudou?

A primeira obra a que tive acesso, foi o Nova História 9, da Porto Editora, da auto-ria de Pedro Almiro Neves, que serviu os alunos do ano lectivo de 1985/86.18 Este livro, com 236 páginas, que abrange a História da I Guerra Mundial à actualidade, dedica um total de 6 páginas ao Estado Novo, a que se somam mais 2 para o 25 de Abril e PREC. Nas 6 páginas do Estado Novo, 2 são exclusivamente dedicadas à questão da emigração, isto enquanto, não surge nenhuma referência à guerra colo-nial. Já a PIDE merece mais atenção, ao ter um total de duas referências no livro todo, uma com uma foto de três agentes da PIDE, fardados, a serem condecorados19

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(ilustração que tem como acrítica legenda: PIDE a Defesa do Regime), e outra que justifica a criação da polícia secreta, com as diversas tentativas de golpes de Estado e conspirações, isto enquanto se elogia abertamente Salazar, e cito:

Novas tentativas de golpes de Estado e conspiração mais não conseguiram do que a aceleração da marcha do regime para a direita e a instauração de órgãos e mecanismos repressivos: a censura à imprensa, a polícia secreta (PIDE), a Legião Portuguesa, a perseguição de opositores, a proibição de partidos políticos (...) e das greves. O sucesso da política financeira de Salazar, que lhe granjeou prestígio e fama de“salvador da Nação”, e a sua habilidade diplomática durante a 2ª Guerra Mundial (conseguindo evitar a participação de Portugal no conflito) geraram uma certa estabilização do regime e um nítido apagamento da oposição.20

A somar a tudo isto, temos ainda o desaparecimento virtual do PCP como força de oposição e resistência ao regime, que, segundo o professor Neves, terá sido consti-tuída exclusivamente por Norton de Matos, o Movimento de Unidade Democrática (MUD) e, finalmente, Humberto Delgado, não se descortinando nenhuma referên-cia a qualquer outro tipo de oposição. Seguindo esta linha revisionista, o 25 de Abril aparece, sucintamente, como instaurador de um regime democrático e pluralis-ta, à semelhança dos países ocidentais.21 Mas nada disto é de admirar, num livro, que tem mais fotografias do general Tito da Jugoslávia, do que de Salazar.

Mas não se pense, que as coisas ficaram assim, se formos para o ano lectivo de 1988/89, deparamo-nos com um enorme salto qualitativo. No História 9º Ano,22 da Texto Editora, notamos uma diferença radical. O Estado Novo aqui, já surge como merecedor de 9 páginas (num total de 272), embora o 25 de Abril se veja reduzido a 1. A PIDE desce para apenas uma seca referência, infor-mativa da sua criação (sem mais),23 enquanto a oposição continua a ser des-crita basicamente através de Norton de Matos, o MUD e Humberto Delgado, embora, neste livro, o PCP seja agraciado com uma frase, a par de Henrique Galvão.24 Outra novidade é o surgimento da guerra colonial, que merece uma página inteira de atenção, uma página inteira onde é descrita como a defesa dos territórios nacionais.25 No meio de tudo isto, o 25 de Abril acaba por ser retratado como consequência única e exclusiva da guerra colonial, sendo ilus-trado pela letra da“Grândola Vila Morena” e um parágrafo que salta do 25 de Abril de 1974 para o de 1975, ou seja, directamente da Revolução para a elei-ção da Assembleia Constituinte, e desta para a instauração de uma Democracia Parlamentar,26 sem mais.

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Ainda deste ano é o História 9, da Editorial“O Livro”,27 onde o Estado Novo surge com direito a 18 páginas e o 25 de Abril com 7 (os maiores números que encontrei em livros do 9º ano). Este crescimento de páginas, infelizmente, não se faz acompanhar de grandes diferenças em termos de programa. A oposição ao Estado Novo continua a surgir como feudo exclusivo de Norton de Matos, do MUD e de Humberto Delgado, desaparecendo por completo, qualquer contributo que o PCP possa ter dado. Também na guerra colonial, as coisas não mudam gran-de coisa, continuando a haver 1 página, para explicar aos alunos como esta ser-viu para defender o território nacional.28 Isto enquanto a PIDE,“cresce” para um parágrafo inteiro, na página 84. Já o 25 de Abril e PREC surge mais interessante, com a descrição duma consensual libertação dos presos políticos, seguida de um 11 de Março que significou, segundo os autores, uma tentativa para travar o ímpeto revolucionário, e de um Verão Quente, descrito como uma luta entre comunistas e não comunistas,29 que teria conduzido o país ao arrasamento económico, não fosse um 25 de Novembro em que as“Forças Moderadas” tomam o poder, pondo termo à fase mais extremista do processo revolucionário.30

Saltando dos livros do 9º ano, para os do 11º, e de 1988 para 1992, vamos encontrar o 4º volume do História de Portugal, da Porto Editora,31 onde o Estado Novo passa a concentrar as atenções durante 147 páginas. Claro que a distribui-ção destas 147 páginas é, no mínimo, bizarra. Assim, enquanto a“Arquitectura do Estado Novo” se espraia lentamente por 7 páginas, a soma dos instrumentos de repressão (PIDE e a censura) e da guerra colonial merece apenas 6, isto num livro que dedica 32 páginas à evolução económica do regime salazarista. Mas nada é estranho, num livro que explica a censura, apenas através da citação do Decreto-Lei regulador32 e sintetiza a PIDE como menos violenta (...) do que a Gestapo nazi ou a Polícia Secreta Soviética,33 enquanto retrata a oposição como, basicamente, os republicanos, o MUD Juvenil e Humberto Delgado, ficando o PCP ostracizado para uma breve referência (e a par do recém-criado PS) no sub-capítulo“Política Marcelista”.34 Para ajudar a este estado de coisas, continua-se a insistir, para a guer-ra colonial, no modelo da“defesa” dos territórios nacionais,35 enquanto se apresen-tam as eleições de 1969 como limpas e honestas, acrescentando-se a isto o engano dos autores com o nome do partido único, chamado de União Nacional, numa altura em que já se tinha transformado em Acção Nacional Popular.36 Com esta evolução, não seria de esperar grandes coisas das 4 páginas dedicadas ao 25 de Abril, mas a verdade é que os autores ainda conseguem surpreender-nos, ao mentir abertamente, classificando como incondicional a libertação dos presos políticos,37 quando na verdade, três deles, foram libertos, sob condição de residência fixa.38

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Passando para “o outro lado” da reforma educativa, vamos encontrar o sécu-lo XX português tratado no 12º ano. Assim, de 1996, temos os dois volumes do História 12º Ano, da Texto Editora,39 que, para tratar a matéria da Revolução Industrial inglesa à actualidade, somam, ao todo, 704 páginas. Destas 704 pági-nas, o Portugal de 1926 a 1976, merece um total de 32, distribuídas muito curio-samente por, 14 páginas para os primeiros 48 anos e 18 para os 2 seguintes, sendo a primeira e única vez, que vi o PREC tratado mais exaustivamente do que todo o Estado Novo junto. Pena é, que esta fartura de páginas não se faça acompa-nhar de o mínimo sentido de proporções e qualidade historiográfica. Assim, mais uma vez, apresentam-se como opositores principais ao Estado Novo, o gene-ral Humberto Delgado e (parece que em substituição ao, já habitual, Norton de Matos, que desta vez fica esquecido) Henrique Galvão, já o PCP, em vez de não aparecer, aparece nivelado pela companhia indistinta de uma série de organiza-ções, como a LUAR, o MRPP, o MES, o PS e até, a antiga e esquecida ORA,40 numa lógica que faz lembrar Todorov, quando este fala na memória ameaçada neste caso, não pelo apagamento da informação mas pelo seu excesso.41 Isto enquanto a PIDE é relegada para um segundo plano de apenas 1 parágrafo42 e a guerra colonial é deslocada para o capítulo“A Política de Não Alinhamento e a Independência dos Países do Terceiro Mundo”, a 50 páginas de distância de qualquer outra matéria relacionada com a história nacional.43 Neste cenário, não será de estranhar a trans-formação do PREC, numa luta entre o MFA e uma frente de Esquerda por um lado, e os“partidos pluralistas” pelo outro, numa interpretação dos factos tão cola-da a Medeiros Ferreira,44 que até o seu neutro parágrafo sobre o 25 de Novembro, da História de Portugal: Portugal em Transe, aparece copiado ad litteram.45

Mas se estes são os processos, qual é o objectivo do regime democrático? O objectivo é o mesmo de qualquer outro regime, a permanência, a perpetuação e a naturalização desta forma de governo. Como é que isto é alcançado? Através da valorização de uma série de mitos que já deram provas.

Antes de mais a valorização da apolitização; não encontrei entre os 8 filhos das minhas famílias um único que se admitisse interessado na política, nem mesmo entre os 3 visivelmente politizados, a política é vista como uma coisa suja e corrupta, que deve ser deixada a cargo “dos políticos”, e que é, obviamente, incompatível com o trabalho, assim qualquer tipo de activismo político é visto como uma forma de preguiça pelos meus informantes mais novos, sendo que, o activismo político em que alguns deles próprios se envolvem, surge descrito nas suas histórias de vida como “trabalho para a comunidade”, “colaboração com ong’s” ou “preocupação social”, nunca como trabalho político.

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Outro inevitável do discurso da maior parte dos meus informantes mais jovens, é também o, bem conhecido, mito do “Português Suave”, ou seja, a velha noção da cordialidade natural do povo português, patente na descrição não só das políticas repressivas do Estado Novo, como também do golpe de 25 de Abril e do próprio processo revolucionário. Assim, o velho mito da conhecida doçura dos nossos brandos costumes,46 para utilizar a expressão do próprio Salazar, estende-se do tratamento à oposição durante a ditadura, ao 25 de Abril, descrito invariavelmente como a “Revolução Sem Sangue”, e isto apesar dos mortos, e, note-se, ao próprio PREC, que apesar de narrado sempre a partir do caos económico e confusão social, nunca é referido como especialmente bélico ou violento, podendo-se sintetizar a posição dos filhos destas famílias nas palavras de José Jorge Letria, quando este divulgador escreve que, mesmo com erros pelo meio, não houve violência nem guerra. O respeito e a tolerância acabaram por vencer,47 obliterando-se assim da História os mortos, feridos, raptados e presos do 28 de Setembro, 11 de Março, 25 de Novembro e das 451 acções violentas do MDLP, ELP e Plano Maria da Fonte (siglas aliás, completamen-te desconhecidas para qualquer um dos oito filhos do meu trabalho).

Finalmente, o terceiro e último eixo permanente nas descrições que a 2ª geração do meu trabalho, faz de Portugal e da sua história contemporânea, é o da aurea mediocritas, como lhe chama Fernando Rosas, que enforma basicamen-te a ideia de uma virtude inerente à pobreza e à pequenez, a lógica da família pobrezinha mas muito lavada, representativa dum Portugal pobre mas honrado,48 um Portugal vocacionado para uma inevitável pobreza, como defendia o próprio Salazar,49 mas que todavia honra as suas dívidas, o Portugal do fado “Uma Casa Portuguesa” quando Amália canta que:

Basta pouco, poucochinho para alegrar Uma existência singela... E só amor, pão e vinho E um caldo verde, verdinho A fumegar na tigela50

Esta noção, justificadora de toda a injustiça social e miséria mental, atinge o seu paroxismo na descrição que uma das minhas informantes faz da guerra em que o próprio pai foi obrigado a combater, assim, enquanto o pai ainda hoje se revolta contra a estupidez e inutilidade duma guerra perdida, a filha vê na guerra colo-nial, uma espécie de enorme safari, e passo a citar:

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Foi uma guerra à portuguesa, uma guerra pequenina (...) basicamente acho que foi uma guerra pequenina a comparar com o Vietname, comparado com as Coreias, não teve nada a ver!! (...) O meu pai diz que nunca matou ninguém... Que a maior bebedeira que apanhou foi com vinho do Porto na guerra... tem fotografias deles a pegar em macacos, a jogar à bola, a fingir que disparam uma bazooka (...) Por amor de Deus!! Isso não é guerra!!! Ou seja claro que é... mas uma guerra muito portuguesa!! 51

Desta maneira, alguém se pode admirar de terem sido necessários vinte e sete anos para o estado português reconhecer a existência de ex-combatentes com stress pós-traumático?

Podemos assim, resumir as memórias da maior parte dos meus informantes mais novos, a um Portugal que continua a ser o país dos “brandos costumes”, o país que teve uma ditadura “diferente”, com uma polícia política que “não era tão má como as outras”, um colonialismo de “bons patrões”, uma guerra colonial “de brincadeira”, e até, imagine-se, um ditador que queria acabar com a ditadura; Portugal este, que se democratizou automaticamente num dia, com uma revolu-ção sem sangue, uma revolução ultra-consensual, que não teve uma única reac-ção negativa e que, depois de um breve período de alguma pequena confusão, “entrou nos eixos” normais e aceitáveis de uma democracia parlamentar, ociden-tal, e norte-europeia, caminho único e óbvio rumo ao progresso e à paz social.

Este conjunto de ideias, que repetidamente vi presentes nos depoimentos da 2ª geração, constitui o cerne da hegemonia referente ao Estado Novo, 25 de Abril e PREC, não sendo demais falar em, desinformação, omissão ou adultera-ção de factos. O PREC tornou-se assim, a pouco e pouco, num trauma silencioso, de que convém não falar, enquanto se “pinta “ o 25 de Abril com uma imagem consensual e “cor-de-rosa”; e esta é, como tivemos oportunidade de comprovar com as comemorações deste ano, a maneira como o Estado português quer ver o Passado relatado. E porquê? O que é que justifica, este intenso e vastíssimo trabalho de mentira, omissão e ocultação?

Paul Connerton responde sem hesitações: Quanto mais absolutas são as aspi-rações do novo regime, mais imperiosamente este procurará introduzir uma era de esque-cimento forçado.52 Ou seja, a democracia representativa necessitava de se afirmar como sistema único e óbvio, contrariando qualquer tendência alternativa, fosse ela à Direita ou à Esquerda. Se para atingir este objectivo, foi necessário “reto-car” o salazarismo, “desjustificando” assim, o radicalismo pós-revolucionário, pior; mas não foi isso que parou o novo Estado na fomentação de uma “Memória

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Baseada em Factos Reais”, confirmando-se assim ad limine, o velho verso de Perrault, quando este fabulista escreve que: Quem não sabe que os lobos melosos, de todos os lobos são os mais perigosos? 53

Posto isto, resta uma questão: Quais vão ser as consequências de tudo isto a longo prazo? Serei demasiado afoito quando relaciono esta “Memória Baseada em Factos Reais” com o actual desinteresse político, alheamento à vida do país, passividade social, abstenção eleitoral e geral apatia política manifestada pela minha geração? Ou será que Mao Tsé-Tung continua actual, quando dizia que todo aquele que relaxa a vigi-lância desarma-se a si próprio politicamente, e acaba por ser reduzido a uma posição passiva?54 Sinceramente não acho que se possa responder a tudo isto agora, mas também não creio que a inexistência de uma resposta absoluta, seja razão para não se porem as questões. De todo o modo, cabe-nos a nós, cientistas para além de cidadãos, o papel de, pelo menos, observadores e analistas da realidade, por isso, vamos estar atentos, que, como diria a minha avó, não fazemos mais que o nosso dever.

NOTAS1 Carlota C1., n. 1975, Abril 2000, h.v. p. 9.

2 THOMSON, Oliver – Uma História da Propa-ganda. Lisboa, Temas e Debates, 2000 (1ª edição, 1999). Pág. 18.

3 V. CONNERTON, Paul – Como as Sociedades Recordam. Oeiras: Celta Editora, 1993 (1ª edição, 1989). Pág. 46.

4 v. THOMPSON, Paul – The Voice of the Past: Oral History. Oxford: Oxford University Press, 1992 (1ª Edição, 1978). Pág. 1.

5 V. ibidem. Pág. 2.

6 V. SCOT, James C. – Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts. New Haven: Yale University Press, 1990. Pp. 71-107.

7 Sobre o conceito de “naturalização”, v. ibidem. Pág. 74.

8 Anthony Giddens, cit. em ibidem, pág. 75.

9 António de Oliveira Salazar, cit. em MEDINA, João – Salazar Desconhecido. In: Salazar, Hitler e Franco: Estudos sobre Salazar e a Ditadura. Lis-boa: Livros Horizonte, 2000. Pág. 272.

10 Dec. n.º 27084, DG., n.º 241, 14-X-1936, cit. em MATOS, Sérgio Campos – História, Mitologia, Imaginário Nacional: A História no Curso dos Liceus (1895-1939). Lisboa: Livros Horizonte, 1990. Pág. 35. 11 V. MATOS, Helena – Manual em Estado Novo. In Revista, suplemento do Expresso. N.º 1454, 9 de Setembro de 2000. Pág. 56.

12 Artigo 2º dos Estatutos da Academia de História (Dec. n.º. 27913, de 31-VII-1937), cit. em SILVA António Luís Coelho e – As Comemorações do Duplo Centenário: História, Poder e Império. In: http://www.terravista.pt/FerNoronha/2608/.

13 Dec. n.º 21103, 07-IV-1932, cit. em TORGAL , Luís Reis - História e Ideologia. Coimbra: Livraria Minerva, 1989. Pp. 32-33.

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14 António Gonçalves Mattoso, cit. em MATOS, Sérgio Campos – História, Mitologia, Imaginário Nacional: A História no Curso dos Liceus (1895-1939). Lisboa: Livros Horizonte, 1990. Pág. 130.

15 V. TENGARRINHA, José Manuel – Os Manuais Escolares e o Ensino da Época Contemporânea. In Um Século de Ensino da História. Lisboa: Edi-ções Colibri, 2001. Pp. 169-180.

16 V. ROSAS, Fernando – O Estado Novo - Memó-ria e História. In De Pinochet a Timor Lorosae: Impunidade e Direito à Memória. Lisboa: Edições Cosmos, 2000. Pág. 149.

17 V. TORGAL, Luís Reis – História e Ideologia. Coimbra: Livraria Minerva, 1989. Pp. 249-253.

18 NEVES, Pedro Almiro – Nova História 9. Porto: Porto Editora, 1985.

19 Ibidem: 203.

20 Ibidem: 198.

21 Ibidem: 201.

22 LEITÃO, José Alberto; PEREIRA, Bernardete de Castro R.; SIMÕES, Maria Inácia – História 9º Ano. Lisboa, Texto Editora, 1988.

23 Ibidem: 223.

24 Ibidem: 229.

25 Ibidem: 231.

26 Ibidem: 233.

27 DINIZ, Maria Emília; TAVARES, Adérito; CAL-DEIRA, Arlindo M. – História 9. Lisboa, Editorial O Livro, 1988.

28 Ibidem: 234.

29 Ibidem: 240.

30 Idem.

31 NEVES, Pedro Almiro; PINTO, Ana Lídia; COU-TO, Célia Pinto do – História de Portugal. Vol. 4, Porto, Porto Editora, 1992.

32 Ibidem: 212-213.

33 Ibidem: 214.

34 Ibidem: 318.

35 Ibidem: 316.

36 Ibidem: 318.

37 Ibidem: 327.

38 V. TRINDADE, Luís – Um Longo 25 de Abril. In História. Ano XXI (Nova Série). Nº 13. S.l.: 1999: 62.

39 MATOS, Margarida Mendes de; GOMES, Maria Eugénia Reis; FARIA, Ana Maria Leal de; PEREIRA, Joaquina Mendes - História 12º Ano. 1º e 2º Vol. Lisboa: Texto Editora, 1996.

40 ORA: Organização Revolucionária da Armada, que a 9 de Setembro de 1936, se apoderou dos navios Afonso de Albuquerque e Dão, tendo saído para o Tejo, onde vieram a ser atacados a partir dos fortes de Almada e do Alto do Duque, saldando-se tudo numa dezena de mortos e vários feridos, tendo 200 marinheiros sido punidos e algumas dezenas deles, deportados para o Tarrafal

41 Tzvetan Todorov, cit. em DELGADO, Iva – Introdução. In De Pinochet a Timor Lorosae: Impunidade e Direito à Memória. Lisboa: Edições Cosmos, 2000. Pág 11.

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42 V. MATOS, Margarida Mendes de; GOMES, Maria Eugénia Reis; FARIA, Ana Maria Leal de; PEREIRA, Joaquina Mendes – História 12º Ano. 1º e 2º Vol., Lisboa: Texto Editora, 1996. Pág. 305.

43 Ibidem: 213-220.

44 Autor que resume o 25 de Novembro nas se-guintes palavras: A 24 de Novembro uma manifes-tação de agricultores corta os acessos a Lisboa em Rio Maior. No dia seguinte, os pára-quedistas insu-bordinam-se em Tancos e a RTP emite mensagens favoráveis ao“poder popular”, até à passagem da emissão para os estúdios do Monte da Virgem, no Porto, com um filme de humor com Danny Kaye, que corta abruptamente a palavra a Durand [sic] Clemente, oficial da 5ª divisão do EMGFA [note-se que Duran Clemente não era, a 25 de Novembro, oficial na 5ª Divisão mas sim na EPAM, mais que não fosse porque a 5ª Divisão tinha sido extinta dois meses antes] que lia mais um comunicado à hora de jantar. Era o sinal público do triunfo dos militares que aceitavam os resultados das eleições de 25 de Abril de 1975 como manifestação fundadora do novo regime democrático em Portugal. Sobre isto comparar CLEMENTE, Manuel Duran – Elementos para a Compreensão do 25 de Novembro. Lisboa, Edições Sociais, 1976. Pág. 8; com FERREIRA, José Medeiros – História de Portugal: Portugal em Transe. Vol. 8. S.l.: Círculo de Leitores, 1994. Pág. 218.

45 V. MATOS, Margarida Mendes de; GOMES, Maria Eugénia Reis; FARIA, Ana Maria Leal de; PEREIRA, Joaquina Mendes – História 12º Ano. 1º e 2º Vol., Lisboa: Texto Editora, 1996. Pág. 273.

46 António de Oliveira Salazar, à revista Inter-national Affaires, cit. em TRINDADE, Luís – Um Longo 25 de Abril. In História. Ano XXI (Nova Série), Nº 13. S.l.: Abril de 1999. Pág. 58.

47 LETRIA José Jorge; MANTA João Abel – O 25 de Abril Contado às Crianças... E aos Outros. Lisboa: Terramar, 1999. Pág. 38.

48 ROSAS Fernando – O Estado Novo - Memória e História. In De Pinochet a Timor Lorosae: Impunidade e Direito à Memória. Lisboa: Edições Cosmos, 2000. Pág. 149.

49 António de Oliveira Salazar cit. em ROSAS Fernando – O Estado Novo – Memória e História. In De Pinochet a Timor Lorosae: Impunidade e Direito à Memória. Lisboa: Edições Cosmos, 2000. Pág. 149.

50 In Uma Casa Portuguesa. Poema: Reinaldo Ferreira. Música: V. M. Sequeira e Artur Fonseca. Primeira gravação: 1952

51 Carlota C1., n. 1975, Abril 2000, h.v. pp. 28-29

52 CONNERTON Paul – Como as Sociedades Recordam. Oeiras: Celta Editora, 1993. (1ª edição, 1989). Pág. 15.

53 Charles Perrault, cit. em RAMONET Ignacio – Propagandas Silenciosas: Massas, Televisão, Cinema. Porto: Campo das Letras, 2001. (1ª edição, 2000). Pág. 17.

54 TSÉ-TUNG Mao – Citações do Presidente Mao Tsetung. Lisboa: Editorial Minerva, 1974. (1ª edi-ção, 1966). Pág. 53.

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1. UMA EXPLANAÇÃO DO PROJECTO1

Há quase dois anos que o projecto de História Oral, idealizado pelo Professor Doutor Manuel Loff e pela Delegação do Norte da Associação 25 de Abril (A25A), vem sendo desenvolvido. Esta investigação visa recolher as histórias de vida dos protagonistas do 25 de Abril e do PREC na cidade do Porto (e no norte do País).

A viabilidade deste projecto de investigação só foi possível graças à coope-ração entre três entidades, cada uma delas com diferentes responsabilidades na sua execução:

A Delegação Norte da Associação 25 de Abril é a principal responsável e

uma das beneficiadas com este projecto. Primeiro é através dela, nomeada-mente do seu presidente, que chegámos ao contacto com os entrevistados. Além disso o resultado final será depositado na íntegra no CDIAL, ou seja, no Centro de Documentação e Informação Abril e Liberdade, localizado na Delegação Norte desta associação. É também nas suas instalações que decorre uma boa parte do trabalho necessário para o tratamento da infor-mação, já que lá existem meios técnicos para que isso aconteça, isto é: todo o material requerido para a transcrição das entrevistas e a sua passagem para o suporte vídeo. Possibilita também, graças à sua excelente bibliote-

PARA A HISTÓRIA DO 25 DE ABRIL NO NORTE DE PORTUGAL — HISTÓRIAS DE VIDA DO MFA

Manuel  Loff  |  Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Letras da

Universidade do Porto (FLUP)

Nuno  Martins  |  Mestrando em História Contemporânea na Faculdade de Letras da

Universidade do Porto (FLUP)

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ca temática, complementar e localizar acontecimentos, nomes ou datas menos claras que sempre aparecem neste tipo de entrevistas. A A25A é também uma das financiadoras desta investigação.

Por outro lado a Universidade Popular do Porto fornece todo o material necessário para a realização das entrevistas, ou seja, câmaras de vídeo, aparelhos de gravação áudio e respectivos consumíveis. Foi também responsável pela formação que decorreu no início deste projecto. A Universidade Popular do Porto, através de um protocolo assinado com a A25A, será também depositária de uma parte destas entrevistas e terá direito à sua divulgação.

Por fim, o IEFP, através do seu plano de estágios profissionais, possibilita o financiamento deste projecto de investigação, já que dificilmente have-ria outras formas de o conseguir.

Para este trabalho foram inicialmente previstas cerca de 15/16 entrevistas. Neste momento foram realizadas 12 entrevistas, das quais 5 estão prontas a ser consulta-das, faltando apenas a correcção por parte do entrevistado e a consequente assinatu-ra de um Termo de Doação. É importante referir que os entrevistados têm o direito a acrescentar ou a retirar certos aspectos nas entrevistas disponíveis ao público.

Apesar de haver uma estrutura pré-definida para as entrevistas, na prática esta não segue um guião rígido, as perguntas directas raramente são utilizadas e não há uma duração horária estabelecida. A flexibilidade desta estrutura pos-sibilita uma conversa informal e calma entre entrevistado e entrevistadores. As entrevistas foram realizadas na sua maioria em casa dos entrevistados, onde fomos sempre bem recebidos, o que torna as entrevistas mais confortáveis para os seus intervenientes. Em média foram necessárias três sessões de entrevistas por cada entrevistado, cada sessão durou em média entre as 4 horas e meia e as seis horas. Como atrás referi, não há uma duração exacta para cada entrevista, por isso não há uma média de horas certa: até agora, a mais curta tem 6 horas e meia, enquanto a mais longa tem cerca de 12 horas e meia. As restantes entrevis-tas, mesmo as que já foram realizadas mas não trabalhadas, estão dentro desse balizamento horário: entre as 6 e as 13 horas de duração.

Depois de feitas as entrevistas, é necessário trabalhá-las, para as disponibilizar aos interessados na sua consulta. As entrevistas são apresentadas em três tipos de supor-tes: vídeo, áudio e papel. O suporte em papel terá duas vertentes: a transcrição integral da entrevista e um resumo da mesma. De salientar que estas entrevistas só estarão disponíveis quando todas as que estavam previstas no início deste projecto estiverem

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prontas. Além disso para a sua posterior consulta será necessário cumprir uma série de requisitos, mas isso são pormenores que ainda estão em fase de preparação.

OBJECTIVOS DAS HISTÓRIAS DE VIDA / HISTÓRIA ORAL 

Este projecto incide fundamentalmente na recolha de testemunhos orais de militares ou ex-militares que desempenharam um papel preponderante na con-turbada década de 70 do século passado, na cidade do Porto. Pretendemos, com o recurso à oralidade, conhecer aspectos como a guerra colonial portuguesa, o 25 de Abril e o período revolucionário que se lhe seguiu, através dos relatos de quem os protagonizou e os vivenciou. Esta é talvez a grande vantagem do uso da oralidade na História Contemporânea, já que é um método que possibilita o contacto directo com intervenientes de momentos chave da História Portuguesa. Os testemunhos destas personagens históricas acabam por se tornar em valiosas fontes de investigação para os historiadores, já que o facto de lidar directamente com elas possibilita, a maior parte das vezes, extrair uma quantidade infindável de pormenores que de outra maneira, com certeza, não se conseguiriam.

Ora, é aqui que entram as histórias de vida. Ao longo desta investigação foram feitas uma série de entrevistas de longa duração; podíamos muito bem ter seguido um caminho mais curto, se interpelássemos directamente os nossos entrevistados com questões somente direccionadas para o 25 de Abril e o PREC. Seriam entre-vistas bem mais curtas e, diga-se, com transcrições bem mais rápidas. Mas não, optou-se pelas entrevistas de longa duração, onde o entrevistado descreve com algum pormenor o seu percurso de vida até aos dias de hoje. Preferiu-se seguir este caminho para que pudéssemos conhecer aspectos importantes, tais como:

Meio social e familiar onde nasce e cresce: influências. Percurso até à Academia Militar e a sua vida nesta instituiçãoNo caso

dos milicianos: percurso até à e na universidade; experiência do serviço militar obrigatório.

Vivências do Ultramar: a guerra e os colonos portugueses. Conhecimento do MFA e sua adesão: Quando entra? Por que entra? A

que reuniões vai? Que funções teve? O 25 de Abril e o PREC: a preparação; o golpe; as movimentações; as

funções que desempenhou.

Estes são talvez os pontos mais importantes e que nos interessam directamente a nós, entrevistadores, para conhecer melhor os antecedentes do 25 de Abril, o 25

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de Abril e o pós-25 de Abril na cidade do Porto e no norte do País. Mas há outros assuntos focados nestas entrevistas e que, muito provavelmente, serão úteis a qualquer investigador interessado nos últimos 40 anos do século XX. Isto porque os entrevistados têm toda a liberdade para opinar sobre os assuntos que acharem convenientes, já que, afinal, esta é a história de vida deles, é uma espécie de livro da sua vida. Por esta razão as entrevistas são tão extensas e detalhadas. Dessa maneira, achámos nós, estamos não só a contribuir para um melhor conhecimento da gera-ção que fez o 25 de Abril, mas também da própria sociedade portuguesa dos anos 50, 60 e 70. Se cada uma das entrevistas é importante para conhecer o percurso dos entrevistados, no seu conjunto formam de certeza um excelente testemunho da vida social e militar durante uma parte do Estado Novo.

Por essa razão este trabalho, apesar de ser executado por dois historiadores, pode muito bem ser utilizado noutras áreas tal como a sociologia, a antropologia e outras áreas afins.

CONCLUSÕES E NOVOS PROJECTOS DE INVESTIGAÇÃO 

Estas histórias de vida possibilitam complementar campos de investigação já abertos e abrir outros:

1. Contribuir para a História da cidade do Porto pois estes testemunhos permitem fazer um levantamento detalhado de todo o processo que cul-minou no 25 de Abril de 74, nessa cidade. Pormenores como reuniões, planeamentos, descrição das operações e muitas outras coisas são expli-cados por quem os protagonizou. Ou seja, é possível fazer uma recons-trução cronológica e factual não só da preparação e concretização do 25 de Abril, mas também do ano de 1975 que, como sabemos, teve no norte do país um palco de grande agitação e de forte turbulência, nome-adamente com a destruição das sedes de partidos políticos e constantes manifestações populares, algumas acabando com actuações militares ou policiais. Com toda esta informação, parece claro que será possível esta-belecer com exactidão mais um capítulo na história da cidade do Porto.

2. Importantes relatos acerca da guerra colonial que ajudarão, com certeza, em futuras investigações sobre este tema.

3. Permitem ajudar na caracterização sociológica e até antropológica da geração que fez o 25 de Abril e da sociedade portuguesa dessa altura. As histórias de vida fornecem numerosos dados acerca do meio social por-tuguês e o das colónias portuguesas. Os entrevistados passaram largos

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períodos da sua vida e em diferentes alturas, em locais bem distintos, por exemplo: nascer no interior, ir para Lisboa, ir para o Ultramar. São experiências por que alguns milhares de portugueses passaram e que, por certo, alteraram profundamente as suas vidas.

4. As entrevistas de longa duração têm como grande vantagem a possibilidade de se abordar muitos temas e de os aprofundar, caso isso seja necessário. Ora, isto acaba muitas das vezes por tocar em aspectos que mereciam, por serem invulgares e extraordinários, uma análise posterior. Quero com isto dizer, que estes testemunhos poderão abrir novos campos de investigação, novos estudos e novas teses. Infelizmente, e por respeito aos entrevistados, não posso adiantar alguns desses pormenores que com certeza irão deliciar os mais interessados neste tipo de assuntos.

Este trabalho irá contribuir para uma melhor compreensão quer da guerra colo-nial, do 25 de Abril, do PREC, mas também de muitos outros assuntos. Por isso pretende-se que este trabalho venha a ser importante para que possam surgir novos estudos e novas investigações em relação a esses pontos. Há pouco refe-ri alguns temas que poderiam ser estudados, mas muitos mais poderão surgir depois de as consultar.

2. UMA AVALIAÇÃO PROVISÓRIA2

2.1 Os homens

Os nossos entrevistados são, naturalmente, todos homens e têm idades que, em média, se compreendem maioritariamente entre os 60 e os 65 anos (57 anos tinha, no momento em que foi entrevistado, o mais jovem, e 76 o mais idoso).3 A sua geração é aquela que nasce entre o fim dos anos 20 e meados da década de 40. Encontram-se, portanto, numa fase de transição das suas vidas, tendo, se se conservaram no interior da instituição militar, passado à reserva há poucos anos – aos 57 anos de idade, não superando o posto de Coronel – ou, se abandonaram as Forças Armadas nos anos que se seguiram ao período revolucionário de 1974-76, tendo abandonando a sua activi-dade profissional identicamente há pouco tempo (apenas um terço dos entrevistados se mantinha profissionalmente activo no momento da entrevista).

Esta transição por que estão a passar nas suas vidas é habitualmente marcada pela emergência da necessidade de estabelecer alguns balanços que, como se comprova pelo conteúdo das entrevistas, permite aos entrevistados fixar avalia-ções relativamente complexas de uma trajectória de vida que, aos seus olhos, foi particularmente mais intensa do que a média dos seus concidadãos da mesma

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geração, sobretudo quando relêem os anos de vida que mediaram entre, grosso modo, os seus 25 e 45 anos. Comecemos por reconhecer que não é só aos próprios que parece mais intensa a vida que viveram entre 1960 e 1980 – é também, natu-ralmente, ao historiador e ao cientista social, bem como a qualquer observador minimamente consciente da evolução histórica da sociedade portuguesa.

Estas são, neste contexto especial como em quase todos os contextos em que se insere a vida de quem atravessa estas idades, pessoas que se encontram numa fase das suas existências em que se verifica uma necessidade mais evidente de fixar a sua memória, o que lhes parece, como tarefa, particularmente facilitado pela possibilidade de o fazer num suporte tão relativamente informal como uma entrevista oral, um conjunto de conversas que, como já ficou descrito atrás (cf. artigo de Nuno Martins), ocorre habitualmente em espaços que são próprios dos entrevistados (a residência, excepcionalmente o local de trabalho) e lhes garante uma grande margem de liberdade ao se encontrarem perante dois interlocuto-res que, quase sempre, desconheciam até ao momento da primeira entrevista, de gerações muito diferentes da sua e com as correspondentes experiências de vida de natureza e intensidade estruturalmente diferentes das suas. Vários dos entrevistados, para sublinhar, entendo eu, a surpresa que lhes provocou o carác-ter relativamente informal da recolha da sua história de vida, acabam por dizer que “isto não foi uma entrevista, isto foi uma bela conversa!” Os depoimentos são, assim, obtidos no contexto de uma relação entre entrevistados que sentem poder contar a sua vida a entrevistadores que não vivenciaram enquanto adultos as experiências em cuja descrição os entrevistados investem mais tempo. Daqui parece resultar que os entrevistados sentem poder legitimamente valorizar a sua vida – como efectivamente fazem – como uma experiência substancialmente única no contexto das actuais representações sociais portuguesas, e irrepetível na leitura que geralmente fazem do futuro próximo da comunidade nacional portuguesa, mesmo que a linguagem que utilizem para a sua caracterização possa relevar do campo semântico da modéstia ou da humildade pessoal.

Por fim, do ponto de vista do seu recrutamento sociológico, este grupo de militares e ex-militares é maioritariamente oriundo de famílias que se inscre-vem nas elites locais do interior rural do Norte e Centro do país, raramente de pequenos centros urbanos ou da própria cidade do Porto, de identidade social maioritariamente ligada à propriedade da terra (apenas em dois casos não pode-mos falar verdadeiramente de proprietários, um dos quais correspondendo ao único entrevistado que não foi militar profissional), e também quase sempre politicamente conservadoras e moralmente católicas – no que em tudo confirma,

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essencialmente, os dados coligidos por Aniceto Afonso e Manuel Braz da Costa (cf. AFONSO, COSTA, 1985). 4 Quando pressentida a aparente contradição entre origem e enquadramento ideológicos no seio da família e o seu percurso político posterior, os entrevistados sentem a necessidade de procurar compatibilizar uma coisa com a outra, sublinhando o carácter oposicionista de algum familiar pre-sente na sua adolescência e/ou juventude adulta, ou, por outra via, desvalorizan-do a natureza ideológica dos valores familiares, substituindo-a por uma leitura pragmática da realidade social e política de um país submetido a uma ditadura.

2.2 As memórias

Que etapas históricas nos desenham as memórias dos nossos entrevistados? Antes de mais, uma infância transcorrida a maioria das vezes durante a II Guerra Mundial, oferecendo-nos um retrato da percepção destas elites locais do mais revelador dos conflitos contemporâneos, o qual, contudo, raramente terá causado consequên-cias pesadas na qualidade de vida das famílias em questão. Apenas no caso dos dois mais velhos (nascidos em 1929 e 1931), os anos da Guerra de Espanha e da consolidação imediata do Salazarismo emergem no discurso dos entrevistados. Na maioria dos casos, a escolarização primária fez-se já depois da guerra e a secundária (que implicou, também na maioria dos casos, a transferência para centros urbanos diferentes das localidades de origem) num período de muito menor politização oposicionista (os primeiros dois terços da década de 50), o que, por exemplo, fez com que um pouco mais de metade dos entrevistados estivesse ainda no Liceu (nenhum dos entrevistados escolheu uma Escola Técnica para os seus estudos secundários, o que só reforça a identidade sociológica que descrevi) quando eclode o furacão Delgado, em Maio-Junho de 1958. À escala de uma sociedade muito pouco escolarizada, a experiência liceal é um dos temas que mais ocupa os entrevistados na primeira das sessões da entrevista, e é no seu âmbito que emergem memórias em torno de personagens descritas como intelectualmente importantes na sua formação, daquelas que, na maioria dos casos, são as primeiras experiências de vida urbana dos entrevistados, ou ainda de experiências como a participação nas actividades da Mocidade Portuguesa. É também, naturalmente, neste ciclo das suas vidas que emerge a opção pela vida militar, frequentemente (mas não maioritaria-mente) associada a percursos paralelos de colegas de Liceu.

Onze dos doze entrevistados foram militares de carreira e os seus depoimentos permitem-nos ter uma visão aprofundada da vida de um jovem cadete da Escola do Exército/Academia Militar (sete dos onze militares de carreira entrevistados ingressaram, por volta dos 18 anos, na instituição de formação dos oficiais do

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Exército que até 1959 se chamava Escola do Exército, rebaptizada como Academia Militar naquele ano) no final dos anos 50, em vésperas portanto do desencade-amento da guerra em Angola. Este facto ocorre durante o percurso escolar na Academia de quatro dos entrevistados, e já tinha ocorrido quando outros dois nela ingressam. Vários são os casos, como era de esperar em que aos entrevistados foram encurtadas as etapas de formação militar para que pudessem ser transferi-dos mais rapidamente para teatros de guerra em África – e esses são os cenários que ocupam uma percentagem muito significativa (geralmente não menos de 1/3) desta reconstrução das suas histórias de vida. O quadro da experiência da Guerra Colonial que onze das doze entrevistas nos dá (o único dos entrevistados que não foi militar de carreira também não teve que fazer o seu serviço militar em África) é o seguinte:

i) um dos entrevistados fez cinco comissões (cada uma delas de cerca de dois anos) em África, durante a primeira das quais (em Angola) se desen-cadeia a luta armada anticolonial;

ii) três outros fizeram quatro comissões antes do 25 de Abril de 1974, sendo num dos casos a quarta comissão interrompida, ao fim de quatro meses, pelo efeito da eclosão do 25 de Abril; um quarto entrevistado fez três até a esse momento e uma quarta durante o período de transição para a independência;

iii) dois outros fizeram três comissões, um dos quais realizou a terceira já durante o período revolucionário;

iv) dois outros fizeram duas comissões nas colónias, um dos quais realizou também a segunda bastante curta já durante o período revolucionário;

v) por fim, dois realizaram uma única comissão.

Grosso modo, podemos dizer que estas onze histórias de vida de militares pro-fissionais incluíram globalmente cerca de 61 anos passados nas colónias, dos quais praticamente um passado antes da guerra, mais de 57 em tempo e em teatro de guerra e 29 meses em período de transição para a independência, posterior, portanto, ao 25 de Abril. A guerra em Angola é aquela que resulta mais bem documentada: 16 comissões foram ali realizadas durante a guerra, 3 outras entre o 25 de Abril e a independência; 7 comissões realizaram-se em Moçambique, uma oitava já depois do 25 de Abril; apenas 3 se fizeram no pior dos cenários de guerra, a Guiné; as restantes duas foram vividas em territórios onde se não enfrentava a luta armada anticolonial: uma em Timor, outra em São Tomé. Se

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seleccionarmos três dos momentos mais dramáticos do conflito, verificamos que três dos entrevistados prestaram serviço em Angola no ano de 1961; três outros participaram, em 1970, na Operação Nó Górdio, em Moçambique; e um dos que já havia estado em Angola em 1961 viveu também a fase final do conflito na Guiné, no início de 1974, o que o deixou reconhecidamente abalado.

O critério que nos levou à selecção destas personagens foi, já se disse, a sua participação no MFA ainda durante o período da conspiração. O início da parti-cipação dos nossos entrevistados no processo conspirativo que se viveu entre o Outono de 1973 e o 25 de Abril de 1974 é bastante variável, mas os depoimentos permitem recolher elementos de informação que, por um lado, cobrem toda a conspiração e, por outro e acima de tudo, constituem o conjunto documental mais completo reunido até hoje sobre a preparação da Revolução no Norte de Portugal, e esse é, provavelmente, o aspecto mais apelativo deste fundo oral. Os entrevistados concederam-se aqui a oportunidade de relembrar as suas expecta-tivas relativamente ao futuro que então imaginaram para o seu país e para as suas vidas. Na maioria dos casos, foram mais os entrevistadores do que os entrevista-dos a levantarem questões em torno da clandestinidade/secretismo dos prepa-rativos da conspiração. Aparentemente, os segundos atribuem-lhes (e dizem ter também atribuído no passado) um significado secundário no circunstancialismo que acompanhou o MFA até, pelo menos, ao 16 de Março de 1974. A explica-ção é mais ou menos consensual: a generalidade dos entrevistados entende que quem aguentava verdadeiramente o esforço de guerra, com um grau significa-tivo, até, de autonomia, eram os capitães, tornando-se estes, por consequência, a referência humana e institucional real para a generalidade dos soldados e dos sub-oficiais, o que teria retirado ao Governo, à polícia política e até mesmo às chefias militares capacidade efectiva de reprimir o MFA e prescindir dos capi-tães para prosseguir a guerra. Outro aspecto consensualmente sublinhado pela maioria dos entrevistados é a sua perspectiva sobre a preparação do golpe militar na Região Norte, que numa das entrevistas nos aparece sintetizada da seguinte forma: “Fizeram-se dois 25 de Abril: o de Lisboa e o do Norte”.

É também esta a contraposição que uma parte dos entrevistados constrói para descrever a sua experiência do período revolucionário: a generalidade dos entrevistados não desempenhou, até Novembro de 1975, quaisquer cargos de natureza político-militar ao nível do Poder Central, limitando-se alguns deles a participar nas Assembleias do MFA e, um deles, a desempenhar um lugar de assessoria na Presidência da República logo antes do 25 de Novembro, relativo, de resto, à questão angolana. A generalidade deles, contudo, desempenhou

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cargos significativos na estrutura político-militar da Região Norte, alguns dos quais do mais alto relevo, o que lhes permite reunir informação preciosa e pro-por-nos interpretações privilegiadas da evolução dos acontecimentos numa região tão pouco estudada, e, contudo, com um papel tão específico no período revolucionário português.

É, em todo o caso, notório o relativo incómodo que a maioria diz ter sentido face à intensidade de um período de mudança política e social tão acentuada, mesmo entre aqueles cuja identidade ideológica se faz, ainda hoje, por referência à adesão aos ideais democráticos revolucionários daquele período. Numa pri-meira avaliação, a quase totalidade dos ex-militares profissionais entrevistados assume, ou aceita a interpretação exterior, que a sua viragem político-ideológica relativamente ao quadro autoritário e conservador, com forte peso dos valores castrenses tradicionais, se deu só apenas com o 25 de Abril, ainda que todo o processo de reconstrução da identidade ideológica tenha resultado de uma opção conspirativa necessariamente anterior à queda da ditadura, por si só definidora de uma atitude ética, a qual, contudo, dificilmente teria um conteúdo ideológi-co muito definido. Parece ter sido, efectivamente, o processo revolucionário a, primeiro, solidificar e, depois, transformar, aprofundar, algumas perspectivas políticas (centradas na democratização do país e na solução política da Guerra Colonial) relativamente básicas que, por quanto se depreende do discurso dos entrevistados, se haviam ido desenvolvendo nos últimos anos da guerra e nos meses da conspiração dos capitães. A experiência revolucionária, no entanto, apesar de constituir aquela que mais destaque político e social propiciou aos entrevistados, que mais intensa sensação lhes terá dado de participação na recon-figuração da sociedade de que eram produto e protagonistas, é muito frequen-temente descrita a partir de uma semântica da decepção, da dor, do transtorno” sintomaticamente, em termos que, por vezes, não se afastam muito dos da tradu-ção dos sentimentos que lhes produzia a enorme pressão psicológica e afectiva dos anos de guerra.

A experiência do período revolucionário fez com que se configurassem dois grupos, os quais, necessariamente, reproduzem as suas memórias em termos diferenciados:

i) Os que fizeram um percurso que a literatura hoje identifica como sendo o da esquerda militar (9 dos 12 entrevistados até este momento enquadrar-se-ão neste grupo mas, sublinhe-se, nenhum deles assume esta designa-ção), geralmente identificados pelos seus adversários como tendo estado

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próximos do PCP, avaliação que uma boa parte deles rejeita hoje, e que foram claramente represaliados do ponto de vista político e institucional depois do 25 de Novembro de 1975, vários dos quais sujeitos a denúncias na justiça militar, ou apenas na imprensa, que motivaram processos judi-ciais militares que lhes congelou, pelo menos até ao início dos anos 80, o decurso normal das suas carreiras militares; três destes viram efectiva-mente interrompida a sua carreira no período imediatamente posterior ao 25 de Novembro (um dos quais chega mesmo a ficar detido durante alguns meses, seguidos de um período de residência fixa), passando à reserva entre 1976 e 1981; o único dos oficiais milicianos deste grupo de entrevistados terminou o seu serviço militar justamente em Outubro de 1975; dois outros elementos deste grupo de entrevistados pedem para passar à reserva em 1982-83, interrompendo a sua carreira militar aos 43 e aos 51 anos de idade, respectivamente; apenas os restantes três permaneceram dentro de fileiras até reunirem condições normais para passar à reserva, o que aconteceu entre 1986 e 2002.

ii) Os que, além de terem apoiado o Documento dos 9 (em algum caso tê-lo-ão mesmo assinado, mas isso também alguns dos membros do grupo ante-rior o fizeram), participaram indirectamente nos preparativos político-militares que conduziram à derrota da esquerda militar no 25 de Novembro (3 dos 9 entrevistados, nenhum dos quais, contudo, reivindica verdadeira participação em acções militares nesse dia), depois de terem aplaudido a substituição de Vasco Gonçalves e terem pressionado ou defendido, a seu modo, à demissão ou substituição das chefias militares que associa-vam ao PCP e à extrema esquerda. Dois destes, curiosamente, tinham feito uma última comissão em Angola nas dificílimas condições de 1974-75 e regressado a Portugal no fim de Outubro de 1975. Deste grupo de três, dois prosseguiram a sua carreira militar até passarem à reserva em 2000, e o terceiro pediu a sua passagem antecipada à reserva para apostar por outro percurso profissional logo em 1983, aos 44 anos.

O discurso memorialístico do primeiro grupo é, relativamente ao desenlace do período revolucionário, inevitavelmente mais amargo que o do segundo grupo: decepção com o regime democrático que se configura a partir de 1976, espe-ranças traídas, ressentimento com a perda de unidade do MFA, com aquilo que vários entendem ter sido a perda de confiança que, relativamente aos membros deste grupo, terá sido manifestada pelos seus camaradas que se envolveram ou

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simplesmente apoiaram o 25 de Novembro – estas parecem ser as sensações e as avaliações mais evidentes que incluem nas suas histórias de vida. O subgrupo específico que foi sujeito a processos de natureza disciplinar e judicial dentro da instituição militar manifesta, relativamente a esse aspecto, um ressentimento, naturalmente, muito mais acentuado.

No segundo grupo – muito mais reduzido no conjunto das entrevistas reali-zadas até este momento, e também, curiosamente, talvez mais diversificado do ponto de vista das personalidades e dos percursos em questão – verbalizam-se apreciações do período revolucionário substancialmente diferentes, mais nega-tivas do ponto de vista da avaliação política (que grande parte dos entrevistados do primeiro grupo também assume hoje) mas, ao mesmo tempo, também mais distanciadas face aos acontecimentos em Portugal uma vez que, recorde-se, dois dos elementos deste grupo encontravam-se em Angola até Outubro de 1975. Curiosa e reveladoramente, praticamente todos os entrevistados que foram ofi-ciais do Quadro Permanente (com a eventual excepção de um deles) assumem hoje, contudo, uma visão muito negativa da evolução das Forças Armadas: a maioria dos entrevistados inseríveis no primeiro grupo remete para o fim de 1975 o momento a partir do qual esse processo de degradação se teria dado; a unanimidade é atingida quando se refere, pela negativa, a política seguida pelos governos de Cavaco Silva que conduziu à reestruturação das Forças Armadas e ao fim do Serviço Militar Obrigatório. Vários dos entrevistados, aos quais se per-cebem diferentes sensibilidades políticas, falam, por sua exclusiva iniciativa, em “antimilitarismo” do que chamam a “classe política” portuguesa desde 1976.

Os quinze anos, sensivelmente, que medeiam entre o início dos anos 80 e a actua-lidade correspondem a uma fase de reconstrução da vida dos entrevistados, que se tra-duz não só numa reorientação substancial da sua vida profissional – a maioria deles (7 dos 12) opta por uma actividade profissional fora das Forças Armadas – mas sobretudo ao fim do ciclo mais intenso da sua vida considerada sob todos os aspectos, aquele em que, somados Guerra Colonial, 25 de Abril e período revolucionário, mais contribuiu para a construção da sua identidade, constituindo, necessariamente, o critério central para a avaliação que eles próprios fazem da relevância social e histórica da sua memó-ria individual. No início deste novo ciclo, os entrevistados tinham entre 35 e 50 anos e devem ter sentido que uma segunda idade adulta se lhes abria à sua frente. A rela-ção com a família adquiriu outra relevância, e em alguns casos activou-se a percepção retrospectiva de uma ausência significativa na formação e no crescimento dos filhos, a grande maioria nascidos pouco antes ou durante a Guerra Colonial.5 A última etapa da entrevista, depois de os entrevistados sentirem terem concluído a história da sua vida,

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é ocupada com a recolha de informações que permitam perceber até que ponto estes entendem a memória da sua vida, ou de parte dela, como significativa para a sociedade em que vivem. Neste sentido, os entrevistados são solicitados a relatar-nos se aceitam habitualmente convites para abordarem publicamente as suas experiências de vida e, nos muito poucos casos em que a resposta foi positiva, como avaliam a receptividade do público; incidência especial é dada à percepção que eles têm do interesse dos mais jovens relativamente à sua memória, da abertura ou da indiferença que eles julgam (ou julgaram, no passado) perceber nos seus filhos, nos seus netos ou noutros jovens relativamente à sua vontade de lembrar ou de testemunhar perante eles.

2.3 Os valores

Reveladoramente, é no campo da ética onde prioritariamente os nossos entrevis-tados preferem descrever os valores por que entendem ter orientado a sua vida, e designadamente as suas opções relativamente ao seu modelo pessoal de participa-ção na Guerra Colonial, no MFA e no desempenho de actividades político-militares durante o período revolucionário. Pelo contrário, os valores e as representações explicitamente ideológicos (que os entrevistados, como a maioria das pessoas, cir-cunscreve a um plano que latamente entende ser o da política) estão muito menos presentes no seu discurso memorialístico e, provavelmente, a maioria das vezes que se pronunciam nesse terreno têm que ser solicitados a tal pelos entrevistadores.

Uma avaliação provisória relativamente a este primeiro conjunto de histó-rias de vida permite remeter para uma categoria muito genérica de castrenses os valores enunciados ou insinuados ao longo dos discursos memorialísticos que recolhemos. Desde logo, saliente-se que o único entrevistado que foi ofi-cial miliciano e não manteve qualquer relação profissional ou institucional com o mundo militar revela um modelo de valores éticos, filosóficos e ideológicos muito autónomo relativamente aos onze militares profissionais, os quais, por sua vez, não atribuem, geralmente, um significado ideológico especial à opção que fizeram pela carreira militar – ainda que a tenham feito numa fase histórica muito especial da preparação para a luta contra a autodeterminação dos povos coloniais ou já no quadro da própria Guerra Colonial: ingressaram na Escola do Exército/Academia Militar entre 1948 e 1962; um dos entrevistados, concluída a forma-ção militar de três anos, chega mesmo a apresentar-se, em 1954, como voluntário para ir para a Índia na sequência das primeiras acções satyagrahi dos nacionalistas indianos em Goa – ainda que reconheçam não haver (excepto num único caso) tradição militar nas suas famílias.6 Os que mais cedo nas suas vidas (entre os 21 e os 25 anos) fizeram a sua primeira comissão nas colónias7 admitem ter-se

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colocado as suas primeiras questões políticas apenas durante a Guerra Colonial mas, como a quase totalidade dos entrevistados, admite sobretudo ter ganho o que designam como uma certa “consciência política” apenas nas vésperas do 25 de Abril, já envolvidos na conspiração do MFA, quando tinham já vários anos de guerra atrás de si e uma idade que, em média, rondava os 34 anos.8

Aqueles que entendem poder parecer haver alguma contradição entre o seu empenho de 1973-74 no derrube da ditadura e no fim da Guerra Colonial – em vários dos testemunhos, ambos os objectivos podem aparecer indistin-tamente como prioritários na sua opção por aderir à conspiração: derrubar o regime porque só assim se conseguiria solucionar politicamente o problema da guerra; acabar antes de mais com a guerra, o que conduziria ao fim do regime9

– e a sua participação no esforço de guerra, preocupam-se em explicitar o que entendiam, durante a guerra, ser o seu “dever de obediência” no âmbito do seu estatuto militar. Em alguns casos (designadamente aqueles em que medeiam alguns anos entre a saída da Academia Militar e a primeira mobilização para África), os entrevistados deixam bem claro que, apesar de já então terem desen-volvido alguma consciência crítica relativamente à opção política que o regime fizera pela guerra, ou simplesmente relativamente à viabilidade de uma solução militar, sentiam o “dever de ir e continuar a guerra”, como verbalizou um dos entrevistados para explicar a sua resposta àqueles de entre os seus subordinados (enquanto instruendos, só excepcionalmente no próprio teatro de guerra) que questionavam mais abertamente a legitimidade da guerra. Nesses e, segundo a maioria dos entrevistados, em todos os casos, a linguagem usada com os seus homens (expressão com que comummente designam aqueles que foram os seus subordinados) foi a da necessidade de cumprir a tarefa que entendiam ser a das Forças Armadas: dar tempo e/ou condições ao poder político para encontrar uma solução política. Em caso algum os entrevistados aplaudiram a deserção ou o recurso a um qualquer esquema para evitar fazer a guerra, e na maioria dos casos insistiram até em estabelecer um nexo causal entre a legitimidade para criticar a guerra e o facto de a terem feito. Dois entrevistados, contudo, manifestaram for-mas discursivas mais ou menos indirectas de compreensão, e até admiração, por casos individualizados de recusa em ir para os teatros de guerra de África.

O que os militares de carreira, em geral, procuram estabelecer logo que nos rela-tam a sua primeira comissão é um conjunto de normas éticas que entendem ter modelado o seu comando de homens: “economia de vidas”, dever de “protecção” dos homens cuja vida e bem-estar dependia do seu comando; frequentemente refe-rem-se a situações nas quais, até mesmo na avaliação dos próprios, os entrevistados

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assumiram uma atitude paternal relativamente aos homens que partilhavam com eles dois anos consecutivos de vida num qualquer aquartelamento perdido numa mata do interior de Angola, Moçambique ou da Guiné; num caso mais extremo, um dos entrevistados foi solicitado, ou sentiu a necessidade, de oficiar com alguma regularidade, em pleno teatro de guerra, rituais religiosos sem que tal resultasse, na opinião do próprio, de alguma especial formação ou vocação religiosa prévia. Na síntese mais ou menos explícita dos entrevistados que comandaram homens em teatro africano, tratava-se de estabelecer entre eles uma relação centrada no valor da lealdade – a mesma, em sua opinião, que ainda hoje os une a muitos deles, com quem convivem regularmente desde que se começaram a realizar encontros de antigas companhias mobilizadas para a Guerra Colonial. E a mesma, afinal, que os terá leva-do a, depois de anos de priorização do valor da obediência, passar a priorizar o valor da rebeldia contra o regime e, necessariamente, contra a lógica institucional da cadeia de comando das Forças Armadas no momento em que se viram confrontados com o prolongamento indefinido da guerra e a perspectiva de cumprir, uma após outra, uma série de comissões militares, intercaladas (e nem sempre) por períodos de um ano passado na Metrópole (e nem sempre junto à família). Alguns dos entrevistados que foram oficiais do Quadro Permanente e que fazem parte do grupo dos vencidos do 25 de Novembro (nos termos em que os descrevi atrás) vêem até nessa rebeldia de 1973-74 a origem daquilo que descrevem como a incompreensão ou até mesmo a rejeição de que foram alvo por parte das chefias militares do pós-25 de Novembro.

Do ponto de vista mais estritamente político e ideológico, a grande maioria dos entrevistados prefere não autodefinir-se. Reconhecendo a natureza católica e auto-ritária do padrão ideológico da quase totalidade das suas famílias de origem – dois dos entrevistados, contudo, tinham irmãos de clara militância oposicionista; cerca de metade deles ainda reconhece algum papel à religião e à crença religiosa na sua vida quotidiana actual – nem todos explicitam o carácter ferozmente nacionalista da sua formação escolar e castrense, ainda que, ao referirem o seu contacto directo com a rea-lidade colonial, a maioria refira ter conseguido relativizar ou até mesmo desmontar a construção ideológica colonialista que levavam para as colónias nas suas primeiras comissões. Como já foi deixado indiciado atrás, a grande maioria aceita que aquilo a que chama politização lhe tenha ocorrido nos últimos anos, ou até mesmo meses, da Guerra Colonial, e em vários casos assume-se até que não terão entrado num tal pro-cesso senão quando confrontados com a miríade de reivindicações, de conflitos e de debates político-ideológicos que o período revolucionário trouxe consigo. Quer num caso, quer noutro, logo antes ou logo depois do 25 de Abril, a maioria atribui a civis (este é um termo que atravessa a generalidade dos discursos dos que foram militares

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profissionais para designar todos aqueles que o não são) – familiares, oficiais milicia-nos saídos do mundo universitário, amigos na Metrópole – o papel de catalizador do seu autoquestionamento político, sem que, contudo, deixe também de referir com especial empenho o papel desempenhado pelo exemplo de alguns militares, espe-cialmente daqueles que se envolveram nos anos 50 e primeiros 60 em conspirações ou movimentos sociais (caso especial de Humberto Delgado) para derrubar o regime, mas também já o de alguns dos seus camaradas que viriam a revelar-se líderes do MFA com quem se cruzaram em algum momento da Guerra Colonial.

Quatro são, fundamentalmente, as excepções a esta cronologia da politização: a primeira e a mais evidente é a que se refere ao único dos oficiais milicianos entrevis-tado, que havia tido actividade política estudantil em Coimbra, em 1969, seguida de trabalho como jurista junto de sindicatos que participarão das Reuniões Intersindicais; outra excepção é a de um oficial do Quadro Permanente que já em 1968, ao fim da sua terceira comissão em África, apresentara a sua demissão do Exército, sem que esta tivesse sido aceite, assumindo desde então algumas atitudes de aberta dissidência relativamente ao regime; e as duas restantes de dois outros militares profissionais cuja memória é a de descrerem completamente no regime desde aquela que poderíamos caracterizar como sendo a decepção definitiva com o reformismo marcelista. Dois des-tes quatro entrevistados contam-se entre os que, no momento da entrevista, se assu-mem abertamente de Esquerda, um dos quais teve militância comunista entre 1978 e 2002; um terceiro, sendo muito menos explícito, é, pelo que se depreende da sua avaliação da evolução política posterior ao 25 de Novembro de 1975, perfeitamente enquadrável numa área política à esquerda do PS.

No campo das opções políticas, cinco outros entrevistados utilizaram em algum momento da entrevista o conceito de Esquerda para se posicionar, e um sexto, delibe-radamente sem o querer explicitar, insinuou-o. Deste conjunto de seis, um explicitou ter iniciado activismo partidário no PS em 1984; dois outros explicaram terem sido convidados para participar em candidaturas eleitorais, num caso por “um partido que não é da Direita”, noutro caso por organizações tão diferentes como o PSD, o PS e o PCP” mas em todos os casos, os convites terão sido rejeitados.

De entre este somatório de nove entrevistados que se situaram, directa ou quase directamente, à esquerda,10 apenas no discurso de dois ficou efectivamente explícita a adesão a aspectos essenciais do projecto político e social que mobilizou a área comunista e aquela que se autodefinia como marxista-leninista da socie-dade portuguesa do período revolucionário. Em todos os restantes oito casos, de uma forma ou de outra, convivem avaliações retrospectivas de que “se foi longe demais” durante o período revolucionário11 com a de que, simultaneamente, se

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deram passos muito positivos no sentido do progresso social, nos quais o MFA terá tido um papel central.

Apenas em três casos (um dos quais constituiu um dos mais evidentes casos de vencido do 25 de Novembro) não foi possível deduzir do seu discurso político sobre a evolução política recente um posicionamento claramente à Esquerda destes ex-mili-tares no momento em que foram entrevistados.12 Um deles, contudo, decidiu, não solicitado pelos entrevistadores, incluir na entrevista a informação de que havia vota-do sucessivamente no PSD de Cavaco Silva, no PS de António Guterres e, mais recen-temente, no Bloco de Esquerda, acrescentando que votaria no ex-primeiro-ministro socialista se ele se candidatasse à Presidência da República.13

Sendo certo que são muito diferenciadas as interpretações de natureza polí-tica que os entrevistados produziram sobre determinados aspectos do período em que o MFA (e, de alguma forma, eles próprios) exerceu o poder político em Portugal, parece ser possível isolar algumas opiniões maioritárias:

i) a de que a actividade política das organizações partidárias ou sindicais entorpeceu aquilo que, sem grande elaboração, entendem que seria o normal desenvolvimento do processo de construção democrática sob tutela militar;

ii) a de que o MFA era a estrutura mais representativa da “vontade profun-da do povo português”, não só porque a sua acção no 25 de Abril parecia ter interpretado essa vontade, mas sobretudo porque as Forças Armadas eram como que uma representação sociológica de Portugal.

Na sequência desta última avaliação, os entrevistados dividem-se claramente entre aqueles que entendem ainda hoje, como eventualmente já então, que o MFA deveria ter prolongado por algum tempo mais a sua tutela sobre o sistema político, e aqueles que, pelo contrário, entendem que o MFA deveria ter abando-nado mais rapidamente o poder e a acção políticos por estes serem fundamental-mente incompatíveis com a missão daquelas.

Apesar de tudo, insista-se, não é difícil verificar na quase totalidade das entre-vistas a prevalência daqueles que antes descrevi como sendo os valores castren-ses sobre os valores mais explicitamente políticos, a que apenas uma minoria dos entrevistados faz uma referência mais expressa. Aquela que é evidentemente uma avaliação provisória destes discursos memorialísticos conduz-me a pensar que os entrevistados que foram militares profissionais, cuja grande maioria, não o sendo mais hoje, continua até a definir-se identitariamente como um militar, atribuem a

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estes valores que descrevi como sendo castrenses – ou seja, como tendo resultado de um processo de aprendizagem/interiorização fundamentalmente militar – o peso decisivo na causalidade daquela que pode ter sido a opção ética e política mais importante das suas vidas: a de conspirar para acabar com a guerra e com a ditadura. Esclareço desde já que, desta forma, estou a pressupor que terá sido mais por uma questão de lealdade para com os homens que estavam sob o seu comando em teatro de guerra e para com as levas de outros que, mais ano, menos ano, pode-riam vir a estar se a guerra não terminasse, e menos por um impulso estritamente político (a rejeição activa da ditadura, a rejeição da guerra como metodologia de resolução do problema das colónias, a necessidade sentida de construir um regime democrático) que estes homens se envolveram no MFA para derrubar o regime e quebrar a cadeia de comando da instituição hierarquizada de que faziam parte, arriscando assim a sua carreira, a sua liberdade e, em última instância, a sua vida.

Se esta se vier a verificar uma hipótese razoável de explicação da atitude e da acção daqueles onze dos nossos doze entrevistados que foram militares profis-sionais, teria que abrir aqui um terreno de análise do padrão ético e moral por eles adoptado que poderia passar por perceber se, em última instância, a percep-ção que estes homens têm dos valores castrenses não passará pela priorização do dever de solidariedade humana, ou até mais especificamente masculina, que como comandantes militares teriam face aos seus homens, justamente, acima do dever de obediência aos seus superiores ou ao poder político estabelecido. Neste senti-do, será essencial detectar a representatividade global de argumentos como o do dever de lealdade e de solidariedade destes homens que foram capitães de Abril (e eram capitães em Abril) com os seus soldados e sub-oficiais, deles próprios com outros dos seus pares que tomaram a iniciativa da rebelião organizada, ou, por exemplo, até mesmo deles com as suas famílias e as suas comunidades de referência, as quais, na grande maioria dos casos, abandonavam durante tão lon-gos períodos. Em alguns casos, refira-se, os entrevistados – como sucede quase sempre quando estamos perante discursos de ex-combatentes de qualquer guer-ra – referem-se até a alguma forma de lealdade devida ao próprio inimigo, àquele que constituía o seu adversário na guerra, descrito, nessas ocasiões, como um par, um semelhante, o que só vem reforçar esta hipótese.

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NOTAS1 Por Nuno Martins.

2 Por Manuel Loff.

3 Um deles, o Coronel António Nogueira de Albuquerque, faleceu no dia 26 de Junho de 2005, cerca de um ano e meio depois de concedida a entrevista.

4 Apenas em dois casos, as famílias dos entrevistados eram oriundas e/ou tinham propriedades no Litoral, concretamente na cidade do Porto; nos restantes dez, devemos falar de um interior que pode incluir a cidade de Guimarães (um caso) mas que corresponde muito mais a Trás-os-Montes (dois entrevistados do distrito de Bragança), Douro (dois do distrito de Vila Real), interior da Beira (dois do distrito da Guarda, um de Viseu, ainda que o próprio já nascido no Porto) e Minho interior (um do distrito de Viana do Castelo). Da amostra estudada por Aniceto Afonso e Manuel B. da Costa, 30% dos inquiridos nascidos no Continente eram oriundos dos dois distritos transmontanos e dos três da Beira interior (cf. 1985: 103).

5 Do conjunto de doze entrevistados, no momento do 25 de Abril onze já tinham casado e dez destes haviam já sido pais. No total, os entrevistados tiveram 29 filhos (um dos quais morreu aos poucos dias de vida), dos quais 11 são homens e 18 mulheres. 6 nasceram antes da Guerra Colonial, 19 durante o seu decurso e 4 depois do seu final.

6 Critério utilizado para estabelecer esta afirmação: existência de familiares muito próximos que fossem ou tivessem sido militares profissionais, ou, eventualmente, membros das forças de segurança. Refira-se que, até ao momento, nenhum daqueles que foram militares do Quadro Permanente deixou também alguma tradição: dos 27 filhos deste subgrupo, apenas dois (um rapaz e uma rapariga, filhos do mesmo oficial) frequentaram na sua adolescência instituições de formação de natureza militar (o Colégio Militar e o Colégio de Odivelas), em ambos os casos sem seguimento e, segundo o seu pai, tendo mostrado resistência à experiência; um terceiro (o mais jovem de todos os filhos em questão, com 12 anos no momento da entrevista) frequentava ainda o Colégio Militar.

7 O que mais jovem seguiu para África (e precisamente em 1961 para Angola) para, quase sempre, comandar uma companhia de cerca de 150 homens, tinha 21 anos, outros dois tinham 22, cinco tinham respectivamente 23, 24, 25, 27 e 28; os que mais velhos fizeram a sua primeira comissão tinham 30 (dois) e 31 anos (um). No regresso da última comissão em África, cumprida ainda durante a Guerra Colonial, um dos entrevistados tinha apenas 23 anos, outro 28, dois 29, um 30, dois 32, dois outros 33 e 35, respectivamente; os dois mais velhos terminaram as suas comissões aos 43 e 44 anos.

8 A 25 de Abril de 1974, os entrevistados tinham 27 (um), 28 (um), 31 (dois), 32 (um), 34 (um), 35 (dois), 36 (dois), 42 (um) e 44 anos (um).

9 Num inquérito realizado em Fevereiro-Abril de 2004 pelo Centro de Sondagens e Estudos de Opinião (CESOP) da Universidade Católica Portuguesa a 325“oficiais e milicianos das Forças Armadas que estiveram envolvidos na acção político-militar que conduziu ao derrube do regime ditatorial em 25 de Abril de 1974”, 89% dos inquiridos indicava que“instaurar um regime democrático” era uma das“opções que melhor descrevem as suas motivações para aderir ao golpe militar do 25 de Abril”, 68% que se tratara de“acabar com a guerra no Ultramar” e 60% de“instaurar um regime que promovesse mais justiça social” (cf. GOMES, 2004: 4).

10 Desta forma também se definiram 66% dos inquiridos pelo estudo da Universidade Católica (UCP), e outros 8% posicionaram-se na“extrema-esquerda” (cf. GOMES, 2004: 4).

11 Opinião partilhada por 20% dos inquiridos pelo estudo da UCP (cf. GOMES, 2004: 4).

12 No estudo da UCP, 21% dos inquiridos situava-se no“Centro” e 4% na“Direita” (cf. GOMES, 2004: 4).

13 No estudo da UCP, 41% dos inquiridos dizia“simpatizar com o PS”, 12% com o BE, 11% com a CDU/PCP e 10% com o PSD (cf. GOMES, 2004: 4).

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BIBLIOGRAFIAAFONSO, Aniceto; COSTA, Manuel Braz da – Subsídios para a caracterização sociológica do Movimento dos Capitães (Exército). In Revista Crítica de Ciências Sociais. N.ºs 15/16/17 (Maio). Coimbra, 1985. Pp. 95-122.

GOMES, Adelino – Grande inquérito do Público e da Universidade Católica. A democracia e o fim da guerra foram os objectivos do golpe. In Público. (24.4.2004). Lisboa. Pp. 2-6.

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A Universidade Popular do Porto é uma associação cultural, sem fins lucrativos, fundada em 1979, tendo como principais objectivos, de acordo com os seus esta-tutos, “promover o conhecimento e a formação cultural, científica e técnica nas diversas áreas do saber e da actividade social, mediante a criação de grupos e centros de estudo e a realização de cursos, seminários e outras acções de estudo e de trabalho, bem como a edição de publicações periódicas e não periódicas”.

Apostada na valorização da cultura e do património popular, na democra-tização do acesso à cultura e ao saber, reconhecendo o papel do ser humano na mudança e na transformação social, a UPP decidiu promover a criação e o desen-volvimento de um Centro de Documentação e Informação sobre o Movimento Operário e Popular do Porto (CDI), tendo por objectivos:

contribuir para a preservação da memória e da história oral e social do Porto, valorizando o seu património social e as suas identidades;

coligir, tratar e difundir informação sobre o movimento popular e de trabalhadores do Porto e apoiar e estimular o seu estudo e a investigação científica em diferentes áreas das ciências sociais e humanas;

O CentrO de dOCumentaçãO e InfOrmaçãO sObre O mOvImentO OperárIO e pOpular dO pOrtO (CdI) da unIversIdade pOpular dO pOrtO1

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identificar e conhecer o património arquivístico de sindicatos e outras organizações de trabalhadores do Porto, através do levantamento, diag-nóstico e inventário dos seus arquivos, incluindo o levantamento da in-formação sobre núcleos documentais custodiados por outras instituições públicas ou privadas;

organizar e preservar o espólio identificado e prestar apoio técnico nas áreas de tratamento/organização e preservação do património arquivís-tico e da memória histórica das organizações populares e de trabalhado-res, bem como digitalizar algumas séries documentais relevantes;

recolher, em suporte áudio e vídeo, testemunhos e histórias de vida de pessoas que protagonizaram e/ou vivenciaram acontecimentos sociais representativos da vida social e laboral da cidade ao longo do século XX;

disponibilizar informação relevante sobre condições de trabalho, lutas sociais, associações de trabalhadores e organizações populares, vivências das ilhas e dos bairros sociais, práticas culturais mais relevantes da “cida-de do trabalho” a partir de depoimentos dos entrevistados;

disponibilizar uma cronologia de acontecimentos sócio-históricos e la-borais marcantes na cidade do Porto no séc. XX

Integrando a programação do Porto 2001, capital Europeia da Cultura, a cria-ção do CDI contou, na sua fase inicial, com o apoio da Sociedade Porto 2001 e teve e tem como parceiros a União dos Sindicatos do Porto e a Federação das Colectividades do Porto.

Toda a informação disponibilizada pelo CDI resulta do desenvolvimento de dois projectos de pesquisa – “Memórias do trabalho – testemunhos do Porto la-boral no século XX” e “Para preservar e divulgar a memória do Porto – os Arqui-vos das Organizações de Trabalhadores”.

Para a concretização do 1º destes projectos – “Memórias do Trabalho” – foi realizado um curso de formação, com uma duração total de 270 horas, tendo em vista a preparação de uma equipa de entrevistadores, dotada de um conjunto de conhecimentos teóricos sobre a história de Portugal e do Porto ao longo do sécu-lo XX, sobre os movimentos, organizações sociais e cultura popular, sobre mé-todos e técnicas de investigação qualitativa, proporcionando-lhe igualmente as condições para o desenvolvimento de trabalho de campo, através da preparação, realização e posterior transcrição de entrevistas.

Ao mesmo tempo foi sendo elaborado um corpus bibliográfico e desenvol-vida uma cronologia dos principais acontecimentos sócio-históricos e laborais

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que marcaram a vida do Porto a partir de 1900, que assumiram uma enorme importância na preparação das entrevistas, mas que foram sendo também de-senvolvidos com contributos dos próprios entrevistados, tendo sido mesmo possível referenciar diverso material que se encontra actualmente disperso em casas particulares, associações ou sindicatos (fotografias, cassetes áudio, filmes, documentos de diverso tipo).

No decurso do projecto foram identificadas, junto de sindicatos da CGTP e de outros sindicatos, e junto do movimento associativo do Porto, um grande número de pessoas que tiveram um papel relevante nessas estruturas, tendo esse levanta-mento vindo a ser aumentado a partir das próprias entrevistas que se foram reali-zando. Até ao momento, tiveram lugar 75 entrevistas, que permitiram a recolha de 75 histórias de vida (em suporte áudio e vídeo), correspondendo a mais de 250 horas de gravação, de trabalhadores de diferentes profissões e com diferentes ex-periências de intervenção social, nos quais os entrevistados dão conta da sua in-fância e adolescência, das relações familiares e de vizinhança, da passagem pela escola, da entrada no mercado de trabalho e das condições de trabalho, de proble-mas, questões e lutas sociais ocorridos em diferentes épocas, da sua participação na actividade associativa, sindical ou política.

Entre os entrevistados podemos encontrar agricultores, agentes de segu-ros, alfaiates, bibliotecários, carquejeiras, comerciantes, caixeiros, cozinheiras, empregadas domésticas, conserveiros, delegados de propaganda médica, ferro-viários, fotógrafos, jardineiros, litógrafos, metalúrgicos, mineiros, ourives, pes-cadores, pirotécnicos, químicos, rodoviários, têxteis, professores, muitos deles dirigentes de sindicatos e de associações locais, bem como diversos autarcas e alguns presos políticos.

Os testemunhos recolhidos falam-nos das condições de trabalho em mais de 200 empresas do Porto, muitas delas já extintas, e da participação em mais de uma centena de sindicatos, associações ou colectividades. São relatos na 1ª pessoa de vi-vências de trabalhadores, na sua maioria operários, que dão conta das condições de vida no Porto em diferentes momentos sócio-históricos, com particular incidência entre os anos 40 a 70, falando das suas experiências e memórias acerca das ilhas, bairros sociais e bairros operários, sobre o mundo laboral e as condições de traba-lho, sobre práticas culturais relevantes, mas também sobre as lutas e movimenta-ções sociais que marcaram a história da cidade. Relatos que dão conta do quotidia-no de milhares de famílias de trabalhadores, das condições de exploração da sua força de trabalho, mas também dos laços de solidariedade que se foram tecendo, das pequenas e grandes lutas em que se envolveram. São relatos que permitem que

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a história seja também construída por aqueles que dela fazem parte e cuja autoria tende a ser, a maior parte das vezes, ignorada e silenciada.

Com efeito, só com dificuldade historiadores ou outros investigadores de ci-ências sociais poderão no futuro encontrar informação disponível sobre o mo-vimento dos trabalhadores, sobre as suas lutas, práticas culturais e condições de trabalho, designadamente sobre a época mais abordada nas entrevistas, se uti-lizarem como fontes de informação apenas os documentos que normalmente fazem parte do património arquivístico – os documentos escritos.

As narrativas de vida até agora recolhidas constituem pois um acervo docu-mental de grande importância, ainda não tratado, constituindo um material de investigação muito rico, até pela forma como os testemunhos foram prestados, num ambiente de grande abertura e muito pouco constrangedor, até mesmo de uma certa “cumplicidade”, prolongando-se por várias horas e mesmo por várias sessões, a que não será alheio o facto de ser um projecto da Universidade Popular do Porto, instituição que diversos “entrevistados” conhecem directa ou indirec-tamente e em quem confiam e à importância que atribuíram ao projecto como forma de manter viva, e para a história, uma memória do Porto que não omita os trabalhadores e as lutas sociais. A recolha das narrativas foi conduzida tendo por base um guião, elaborado para servir de apoio aos entrevistadores, mas sem pretender orientar de forma rígida o desenrolar da narrativa.

O registo das narrativas também em formato vídeo, com uma pequena câma-ra fixa, que, na esmagadora maioria dos casos, e contrariamente às expectativas iniciais da equipa, não deu origem à colocação de qualquer entrave pelos entre-vistados, nem pareceu assumir qualquer carácter constrangedor, revelou-se de grande importância, na medida em que permite um tratamento dos dados mais enriquecedor, ao criar condições para a (re)visualização das expressões, dos ges-tos, das emoções e mesmo dos silêncios.

A maior parte destas narrativas encontra-se já transcrita, estando autorizada a sua utilização para fins de investigação, tendo sido igualmente elaborado e comen-tado um pequeno resumo, acessível no site do Centro de Documentação da UPP.

Quanto ao 2º projecto “Os Arquivos das Organizações de Trabalhadores”, a sua importância advém, desde logo, de os Arquivos e o património documental serem clara e inequivocamente uma área cultural particularmente carenciada, verificando-se, ao mesmo tempo, uma grande falta de conhecimento sobre a rica e diversificada actividade desenvolvida pelas organizações populares.

A determinação do universo a caracterizar e a envolver no projecto teve em consideração um conjunto alargado de factores, de entre os quais destacamos o

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facto de a organização sindical e o movimento associativo popular viverem de trabalho predominantemente voluntário, o qual acaba por condicionar as activi-dades das estruturas criadas ao longo dos anos ou actualmente existentes.

Simultaneamente, a precariedade das instalações onde normalmente estes organismos assentam a sua estrutura de coordenação, e onde por inerência se vai acumulando o arquivo, são em parte responsáveis pela perda irreparável de documentação e, consequentemente, da informação e conhecimento insubsti-tuíveis sobre o movimento popular.

Neste campo, de resto, é clássica a insensibilidade pressentida sobre a impor-tância da organização, reflectida na ausência de preocupações no tratamento e preservação da documentação.

Paralelamente a estes factores endógenos aos próprios organismos, consta-ta-se a relativa ausência de organismos públicos que se dediquem à recolha e tratamento especializado deste tipo de documentação. Esta triste realidade tem inclusivamente provocado a saída destes documentos (fulcrais para o estudo da história social) para o estrangeiro (Catalunha, Lausanne, Amesterdão).

Este projecto, à semelhança do que já se vem fazendo na Europa e América, pretendeu inverter esta situação, despoletando um processo que se pretende di-nâmico e continuado, baseado de forma que se espera sólida, nas iniciativas já realizadas e a realizar, designadamente:

1. Identificação e conhecimento do património arquivístico das organizações sindicais do Porto. Neste âmbito, foram realizadas 68 visitas, para aplicação de um inquérito directo a todos os sindicatos aderentes ao projecto, envol-vendo organizações que representam, no seu conjunto, vários milhares de trabalhadores, tendo sido identificadas na área do Porto 29 Entidades De-tentoras de documentação com interesse para a história do movimento sin-dical e das organizações populares e recenseados 185 Fundos de Arquivo que integram 912 Conjuntos Documentais, sendo constituídos por 158 391 Unidades de Instalação (caixas, maços, pastas, livros, outros).

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Entidades Detentoras Nº de fundos

documentais

ADP – Arquivo Distrital do Porto 56

CESNORTE - Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços do Norte 12

FCDP - Federação das Colectividades do Distrito do Porto 4

SBN - Sindicato dos Bancários do Norte 3

SFNP - Sindicato dos Ferroviários do Norte de Portugal 1

SINAPSA - Sindicato Nacional dos Profissionais de Seguros e Afins 1

SINORQUIFA - Sindicato dos Trabalhadores da Química, Farmacêutica, Petróleo e Gás do Norte 8

SINTTAV - Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e Audiovisual 1

SITAVA - Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos 1

SMN - Sindicato dos Médicos do Norte 1

SPN - Sindicato dos Professores do Norte 3

STAD - Sindicato dos Trabalhadores dos Serviços de Portaria, Vigilância,

Limpeza e Actividades Similares

2

STAL - Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local 2

STCMCFOADP - Sindicato dos Trabalhadores de Calçado, Malas e Componentes, Formas,

Ofícios e Afins do Distrito do Porto

7

STCMMPCMCNV - Sindicato dos Trabalhadores da Construção, Madeiras, Mármores, Pedreira,

Cerâmica e Materiais de Construção do Norte e Viseu

3

STFPN - Sindicato dos Trabalhadores da Função Pública do Norte 1

STIANOR - Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Alimentação do Norte 13

STICPGI - Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Celulose, Papel, Gráfica e Imprensa 21

STICSDP - Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Cerâmicas, Cimentos

e Similares do Distrito do Porto

1

STIEN - Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Eléctricas do Norte 6

STIHTRSN - Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e

Similares do Norte

3

STIMMN - Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Metalúrgica e Metalomecânica do Norte 10

STMM - Sindicato dos Trabalhadores da Marinha Mercante 3

STPN - Sindicato dos Trabalhadores da Pesca do Norte 5

STRUN - Sindicato dos Trabalhadores dos Transportes Rodoviários e Urbanos do Norte 8

STSTVCCDP - Sindicato dos Trabalhadores dos Sectores Têxteis, Vestuário,

Calçado e Curtumes do Distrito do Porto

2

STTCA - Sindicato dos Trabalhadores das Telecomunicações e Comunicação Audiovisual 4

STVLT - Sindicato dos Trabalhadores do Vestuário, Lavandarias e Tinturarias do Distrito do Porto 2

USP - União dos Sindicatos do Porto 1

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2. Digitalização de séries documentais relevantes sempre que as condições técnicas e de conservação o permitiram. Neste âmbito, foram produzi-dos 208 CD Rom’s, correspondendo a cerca de 100 GigaBytes e a 7614 imagens. A partir da informação digitalizada foram comentados na base de dados os nomes dos intervenientes nas Assembleias Gerais e regista-dos nas respectivas actas de forma a poder ser elaborado pelo utilizador da base uma lista do tipo “Quem foi Quem” dos dirigentes e activistas do movimento popular, interrogável em texto integral e articulado com o projecto das Memórias do Trabalho.

3. Elaboração de um “Cadastro dos Arquivos”, descrevendo documentos originais desde a década de 90 do século XIX. O limite cronológico defi-nido para a recolha da informação foi a data de 1986, com o objectivo de respeitar os prazos administrativos da actual produção documental.

4. Desenvolvimento de um “Esquema de Classificação”, pioneiro no pa-norama da arquivística portuguesa, que serve para traçar as hierarquias das descrições multinível.

Para atingir os objectivos propostos e assegurar a continuidade da iniciativa foi realizado um Curso de Formação, com uma duração de 120 horas, que envolveu membros das estruturas sindicais e associativas que foram alvo da intervenção e outros colaboradores, sem formação na área, que desejavam integrar o projecto e que nele vieram a desempenhar um papel activo.

Nesta fase de desenvolvimento do projecto já é possível dispor de um con-junto significativo de elementos que nos permitem dizer que, no concelho do Porto, foram recenseados cerca de dois quilómetros de documentação produzi-da pelo movimento sindical e associativo e detectadas as principais lacunas de documentação, incentivando assim o desenvolvimento de estudos de investiga-ção na área da História Social.

A criação e o funcionamento do Centro de Documentação e Informação im-plicou o desenvolvimento de um sistema informático de suporte com recurso a tecnologias de software livre baseadas em formatos abertos.

Deste modo procedeu-se à criação de uma base de dados implementada em MySQL para a primeira fase, e ao desenho de uma linguagem em XML, que re-presentasse a estrutura da informação a armazenar, para a segunda fase.

Para ambas as estruturas de dados, foram criados interfaces em HTML, ge-rados por “scripts” de PHP e Python, que permitem inserir e obter valores das mesmas. Estes “scripts” são executados por um servidor Apache, a correr numa

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máquina LINUX. Pela primeira vez no nosso país foram desenvolvidas ferra-mentas para a área de arquivos com recurso à tecnologia de XML.

A criação e o desenvolvimento permanente do Centro de Documentação e Informação e de cada um dos projectos que o suportam foi e está a ser possí-vel com a participação e envolvimento de um diversificado conjunto de insti-tuições, para além das entidades parceiras, como o Arquivo Distrital do Porto, sendo igualmente de salientar os diferentes estágios já proporcionados a estu-dantes dos cursos de História e de Ciências dos Computadores da Universidade do Porto, cujo contributo tem sido uma importante mais valia para o desenvol-vimento dos projectos, mas constituindo-se igualmente num importante espaço formativo para os futuros licenciados.

NOTA 1 Este trabalho foi efectuado por uma equipa da Universidade Popular do Porto que desenvolve o Centro de Documentação e Informação http//cdi.upp.pt Este texto resulta de uma comunicação apresentada no colóquio por Silvestre Lacerda (UPP e ADP); a sua versão final foi revista e actualizada por Teresa Medina (UPP e FPCEUP).

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