2fich
a ca
talo
gr
fica
Ficha catalogrfica
C744d Conselho Regional de Psicologia da 6 Regio (org). Psicologia e povos indgenas / Conselho Regional de Psicologia da 6 Regio So Paulo: CRPSP, 2010. 250f.; 23cm. Bibliografia ISBN: 978-85-60405-13-8 1.Povos indgenas 2.Antropologia 3. Cidadania 4. Sade 5. Psicologia I.Ttulo. CDD 150
Psicologia, Indgenas, Sade, Antropologia, Polticas Pblicas
Elaborada por:Vera Lcia Ribeiro dos Santros Bibliotecria CRB 8 Regio 6198
Psicologia e Povos Indgenas
DiretoriaPresidente | Marilene Proena Rebello de SouzaVice-presidente | Maria Ermnia CilibertiSecretria | Andria De Conto GarbinTesoureira | Lcia Fonseca de Toledo
Conselheiros efetivosAndria De Conto Garbin, Carla Biancha Angelucci, Elda Varanda Dunley Guedes Machado, Jos Roberto Heloani, Lcia Fonseca de Toledo, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, Maria Cristina Barros Maciel Pellini, Maria de Ftima Nassif, Maria Ermnia Ciliberti, Maria Izabel do Nascimento Marques, Maringela Aoki, Marilene Proena Rebello de Souza, Patrcia Garcia de Souza, Sandra Elena Sposito e Vera Lcia Fasanella Pomplio.
Conselheiros suplentesAdriana Eiko Matsumoto, Beatriz Belluzzo Brando Cunha, Carmem Silvia Rotondano Taverna, Fabio Silvestre da Silva, Fernanda Bastos Lavarello, Leandro Gabarra, Leonardo Lopes da Silva, Lilihan Martins da Silva, Luciana Mattos, Luiz Tadeu Pessutto, Lumena Celi Teixeira, Maria de Lima Salum e Morais, Oliver Zancul Prado, Silvia Maria do Nascimento e Sueli Ferreira Schiavo.
Gerente geralDigenes Pepe
Organizao do LivroLumena Celi Teixeira e Luiz Eduardo Valiengo Berni
Reviso finalWaltair Marto
Projeto Grfico e EditoraoEstdio 196 Design e Comunicaowww.estudio196.com.br
3intr
odu
o
introduo
A XII Plenria do Conselho Regional de Psicologia de So Paulo incluiu, entre
as suas aes permanentes de gesto, o registro e a divulgao dos debates
realizados no Conselho em diversos campos de atuao da Psicologia.
Essa iniciativa atende a diversos objetivos. O primeiro deles concretizar um
dos princpios que orienta as aes do CRP SP o de produzir referncias para
o exerccio profissional dos psiclogos; o segundo o de identificar reas que
merecem ateno prioritria, em funo da relevncia social das questes
que elas apontam e/ou da necessidade de consolidar prticas inovadoras e/ou
reconhecer prticas tradicionais da Psicologia; o terceiro o de, efetivamente,
dar voz categoria, para que apresente suas posies e questes, e reflita sobre
elas, na direo da construo coletiva de um projeto para a Psicologia que
garanta o reconhecimento social de sua importncia como cincia e profisso.
Os trs objetivos articulam-se e a produo de publicaes que registrem os
debates permite contar com a experincia de pesquisadores e especialistas da
Psicologia e de reas afins para apresentar e discutir questes sobre as atuaes
dos psiclogos, as existentes e as possveis ou necessrias, relativamente a reas
ou temticas diversas, apontando algumas diretrizes, respostas e desafios que
impem a necessidade de investigaes e aes, trocas e reflexes contnuas.
A publicao de trabalhos como Psicologia e Povos Indgenas , nesse sentido,
um convite continuidade dos debates. Sua distribuio dirigida aos
psiclogos e aos parceiros diretamente envolvidos nesta temtica, criando uma
oportunidade para que provoque, em diferentes lugares e de diversas maneiras,
uma discusso profcua sobre a prtica profissional dos psiclogos.
Nossa proposta a de que este material seja divulgado e discutido amplamente
e que as questes decorrentes desse processo sejam colocadas em debate
permanente, para o qual convidamos os psiclogos.
Diretoria do CRP SPGesto 2007-2010
nd
ice
4
5nd
ice
6apre
sen
ta
o
7apre
sen
ta
o
breve histrico
Ao considerar os desafios da realidade brasileira contempornea e as
consequentes inovaes que surgem no exerccio profissional dos psiclogos,
o Sistema Conselhos de Psicologia tem apoiado e promovido oportunidades de
discusso visando ao aprofundamento e compartilhamento de novos saberes e
prticas, alinhados s necessidades emergentes da sociedade. Neste contexto
que a aproximao da Psicologia aos Povos Indgenas se apresenta como uma
dessas necessidades.
Os movimentos indgenas que se fortaleceram nas ltimas dcadas pautam-
se nos ideais de autodeterminao desses povos, na valorizao da prpria
cultura e na expectativa de um dilogo intertnico e intercultural com base na
tica e no respeito diversidade. Considerando-se que as questes enfrentadas
atualmente pelos povos indgenas brasileiros apresentam razes histricas
marcadas pela dominao sociocultural dos no-ndios, o principal desafio das
sociedades indgenas poder manter um contato com a sociedade nacional sem
perder a integridade cultural e tnica. Esse desafio deve ser tratado tambm
como premissa na ateno s necessidades das comunidades indgenas, no
sentido de embasar as prticas e as concepes de trabalho com estes povos.
Fruto deste processo scio-histrico, muitas so as marcas de ordem psicossocial
identificadas pelas comunidades, que comprometem a qualidade de vida e a
sade mental desses indivduos. Nesta medida, a Psicologia e os psiclogos so
convocados a encontrar seu lugar neste campo.
O ponto de partida no Sistema Conselhos de Psicologia foi o Seminrio
Nacional Subjetividade e Povos Indgenas, realizado em 2004 pelo Conselho
Federal em parceria com o Conselho Indigenista Missionrio, em Braslia.
O evento contou com a presena de lideranas indgenas de vrias etnias
e Estados brasileiros, alm de psiclogos representando todos os Conselhos
Regionais. O referido evento atendia diretrizes do IV CNP Congresso
Nacional da Psicologia, o qual recomendava que a Psicologia deveria se
aproximar das questes indgenas do nosso pas.
Esta tem sido a direo das aes realizadas pelo CRP SP desde ento, ao propor
dilogos entre psiclogos, lideranas indgenas e profissionais de reas afins,
como os da sade, antroplogos, assistentes sociais, educadores e historiadores.
Isso reflete um jeito de trabalhar que entendemos ser o melhor, pois nos garante
uma interlocuo com a sociedade, com os psiclogos, com demais profissionais,
com entidades parceiras e outras instituies ligadas temtica.
8apre
sen
ta
o
Outra ao que consideramos importante, tambm como papel do Conselho,
criar referncias para a atuao dos psiclogos. No no sentido de dizer como
o trabalho deve ser feito, mas, sim, afirmando que o Conselho acompanha e
fomenta uma discusso importante, que oferece princpios para uma atuao
profissional com qualidade, de acordo com o contexto social e cada problemtica
que se apresenta como desafio para a categoria.
Desde 2005, o CRP SP tem realizado uma srie de aes e, para tanto,
constitumos um Grupo de Trabalho, em cuja pgina eletrnica pode-se
encontrar o histrico dessas aes, legislao de interesse, galeria de fotos e
outras informaes relevantes: www.crpsp.org.br/povos
Inicialmente, procedemos a um levantamento de psiclogos que trabalhassem
com indgenas no Estado, de maneira a articul-los por meio de um grupo
eletrnico que contasse tambm com a participao de outros profissionais da
rea. Esse grupo conta hoje com mais de 200 participantes e tem servido como
ponto de encontro e troca de experincias. Endereo: http://br.groups.yahoo.
com/group/Psicologia-Indigenas.
Em seguida, produzimos o CD-Rom Subjetividade e Povos Indgenas, para
sensibilizao dos psiclogos sobre o tema. Esse produto foi distribudo s
subsedes para subsidiar as discusses em 2006.
Em 2007, realizamos os primeiros encontros presenciais. O primeiro colquio,
realizado na Capital em maro daquele ano, se constituiu em evento preparatrio
para o VI CNP, cujas teses foram aprovadas nacionalmente e garantiram as
aes subsequentes. Em agosto, promovemos um Encontro de Profissionais das
Cincias Humanas sobre as Questes Indgenas, tambm na Capital, marcando
a interdisciplinaridade necessria neste dilogo.
Produziu-se ainda uma edio do TV Diversidade (n 68) sobre a temtica,
em parceria com a TV PUC, com imagens e entrevistas colhidas durante os
eventos. O acesso est disponvel no site do Conselho.
No ano seguinte, 2008, realizamos dois eventos. Em maio, organizamos o
Encontro Multiprofissional de Ateno aos Povos Indgenas, no municpio de
Santos. Em novembro realizamos novo colquio, fortalecendo principalmente
a interlocuo com a Antropologia.
Em 2009, realizamos cinco Encontros Interdisciplinares nas regies onde se
localizam as aldeias existentes hoje no Estado, articulando a localizao das
mesmas s regies de abrangncia das subsedes do Conselho. Os eventos foram
em Boiucanga/So Sebastio (Subsede do Vale do Paraba), Itanham (Subsede
da Baixada Santista e Vale do Ribeira) e Tup (Subsede de Assis), sendo que neste
ltimo participaram profissionais e indgenas tambm de Bauru, Itaporanga e
9apre
sen
ta
o
Baro de Antonina. Finalizamos com um colquio na Capital, em novembro,
que se constituiu em evento preparatrio para o VII CNP.
Nosso objetivo, em todos os encontros, foi o de propiciar dilogos entre
profissionais de diversas reas, seus saberes e prticas, compreendendo que a
atuao nessa rea deve se pautar pela interdisciplinaridade. Nesses dilogos,
contamos tambm com a presena imprescindvel das lideranas indgenas
locais, de maneira a legitimar a construo coletiva de referncias que vimos
empreendendo.
Temos nos empenhado na criao desses espaos, na abertura ao dilogo
interdisciplinar e na sistematizao das reflexes produzidas coletivamente.
Este percurso j aponta importantes recomendaes para atuao dos psiclogos
junto s comunidades indgenas, as quais so apresentadas no captulo final
desta publicao.
Apresentamos ainda a maioria das palestras proferidas nos eventos, j
que algumas infelizmente no puderam ser gravadas, com o propsito de
compartilhar a riqueza dessa produo com todos os interessados e simpatizantes
das lutas indgenas por melhores condies de vida.
Esperamos contribuir, especialmente, com as discusses que envolvem
as relaes interculturais intrnsecas a esse novo campo de atuao para
os psiclogos, acentuando que os cuidados de ordem tcnica no devem se
sobrepor aos de ordem tica, mas andar juntos. Tal atuao precisa expressar
o compromisso social e o apoio da Psicologia brasileira autodeterminao
dos povos, sem constituir-se em uma nova forma de dominao cultural. Ao
contrrio, deve se fundamentar no universo simblico e na escuta s demandas
de cada etnia, contribuindo para o fortalecimento da diversidade cultural
brasileira.
Agradecemos a todos que contriburam para a produo deste material e
nutrimos a expectativa de que a categoria prossiga nesse importante caminhar.
Por fim, desejamos bom proveito na leitura a todos!
Lumena Celi TeixeiraCoordenadora do GT Psicologia e Povos Indgenas
10
apre
sen
ta
o
percepes sobre os encontros interdisciplinares
Este texto foi escrito paulatinamente ao longo dos trs anos em que o autor esteve envolvido
junto ao Conselho Regional de Psicologia de So Paulo GT Psicologia e Povos Indgenas,
na tarefa de buscar uma aproximao da Psicologia, Cincia e Profisso, com o saber
dos povos originrios. Cada item refere-se a um dos eventos realizados, seguido de um
subttulo em que procurou expressar a essncia das aprendizagens realizadas. Como as
percepes so seletivas, as falas dos palestrantes aqui reproduzidas podem no refletir
a exatido da opinio de seus autores, fato que o leitor poder constatar ao ler os textos
originais apresentados tambm nesta publicao. O que se pretendeu aqui foi apresentar
a cronologia de um processo de aprendizagem com enfoque transdisciplinar que todo
psiclogo dever necessariamente buscar para a mediao transcultural fundamental ao
lidar com as populaes indgenas.
Luiz Eduardo Valiengo BerniMembro do GT Psicologia e Povos Indgenas
Maro de 2007 Primeiro Colquio Psicologia e Povos Indgenas - So Paulo, SP
Iniciando a Conversa: Mesas-Quadradas e Cerimnias Sagradas
O ambiente no era exatamente tribal. Ao se adentrar pela porta do auditrio
do Conselho Regional de Psicologia de So Paulo, era possvel ouvir a msica
guarani com sua marcao rtmica caracterstica: tambor, rabeca, violo e o canto
unssono dos ndios. Infelizmente era uma gravao. Essa foi a recepo que ns,
psiclogos, tivemos em So Paulo por ocasio do primeiro evento Psicologia e
Povos Indgenas, promovido pelo CRP SP, no dia 30 de maro de 2007. O evento
congregou aproximadamente 100 profissionais da Psicologia e de reas afins,
alm de lideranas indgenas de So Paulo e de Mato Grosso do Sul. Desde 2004,
quando da realizao de um importante evento na regio de Braslia, os psiclogos
organizados pelo Conselho Federal tentam uma aproximao da Psicologia com os
povos indgenas e, neste sentido, o evento se constituiu num importante marco.
11
apre
sen
ta
o
Aps uma sensibilizao audiovisual, preparada pela Conselheira Lumena Celi
Teixeira, com imagens, frases e msica, com elementos de eventos ligados
cultura indgena, os trabalhos foram iniciados. Trs foram mesas-redondas
realizadas no encontro.
A primeira mesa, Os desafios na relao com a sociedade nacional, sob a tica
das lideranas indgenas, com as participaes de lideranas de algumas aldeias
de etnia guarani em So Paulo e da etnia kadiwu do Mato Grosso do Sul, foi
no mnimo curiosa. Sob a coordenao apaixonada da psicloga Sonia Grubits,
que trabalha com o povo kadiwu, teve a durao de 15 minutos! Os ndios,
povo de poucas palavras, foram enfticos em demonstrar que no haviam
entendido exatamente o que estavam fazendo ali. Suas falas foram curtas,
alternando os tons de pedintes com outros reivindicatrios e desconfiados.
Quem so esses psiclogos, alis, o que isso significa mesmo? Isso no foi
verbalizado, mas pairava no ar.
Naquele momento, ficou claro para mim que nossas melhores intenes no
estavam sendo bem compreendidas, pois havia um fosso cultural que nos
separava dos indgenas. Num impulso emptico com o desconforto da mesa,
levantei essa questo, transgredindo o esquema proposto. Tive a cumplicidade
discreta do cacique Davi da Aldeia Aguape, de Mongagu, que sorriu
furtivamente diante de minha reao.
No decorrer da mesa, que s teve um carter um pouco parecido com isso (mesa-
redonda) graas ao esforo da dra. Grubits, que naquele momento assumia uma
postura de alternncia entre pesquisadora e militante da causa indgena, ficou
claro para mim que as comunidades indgenas, alm de deverem ser tratadas
com diferenciao, pois so povos distintos, tambm esto em diferentes
estgios de organizao, o que dificulta ainda mais esse incio de dilogo.
Enquanto a plateia interagia entusiasticamente frente s questes ali levantadas
e no meio de minhas reflexes sobre as falas de alguns colegas que tratavam
da questo poltica, levantou-se o ndio Eurico Sena, da etnia baniwa, da
Amaznia. Ao apresentar-se, alm de ndio, desfilou um breve currculo
que inclua duas graduaes, Filosofia e Teologia, e uma terceira em curso,
Direito. Num tom de palanque, Eurico, que s aprendeu a falar portugus
aos 12 anos, afirmou que os Psiclogos poderiam atuar junto aos indgenas
na interao ou na incluso dos ndios com a sociedade envolvente. Numa
espcie de interlocuo ou comunicao dos valores indgenas com os valores
neoliberais sob os quais se vive hoje. A fala surpreendeu a todos, no apenas no
contedo, mas tambm na forma precisa e bem articulada, refletindo a nobreza
do interlocutor descendente dos povos originrios.
12
apre
sen
ta
o
O sofrimento do pesquisador na rea indgena tambm pode ser constatado
quando a colega da Marlia Vizzotto, da Universidade Metodista, contou sua
epopeia burocrtica para conseguir uma autorizao governamental, de modo
a continuar sua pesquisa com os indgenas guarani em So Paulo. O trabalho de
pesquisa estava interrompido, pois a autorizao no fora renovada. A pessoa
que analisara o pedido, no sendo psicloga, no conseguiu entender a natureza
do trabalho de pesquisa, interpretando a questo de maneira equivocada,
negando, assim, a solicitao. Este relato deixava claro a todos como a questo
da comunicao no era exclusiva entre psiclogos e indgenas.
A segunda mesa-redonda, Anlise da situao nas aldeias: Educao e Sade,
teve a participao de dois representantes indgenas com formao superior,
um enfermeiro da etnia kadiwu e uma pedagoga da etnia pankararu, alm de
um outro enfermeiro caucasiano. O debate teve uma cara mais acadmica,
conforme reza o figurino. Com apresentaes claras e articuladas a situao da
Funasa foi bem apresentada e pudemos constatar como essa diviso da Funai
foi providencial para a questo indgena, pois a qualidade do atendimento em
sade ao indgena sofreu uma melhora significativa, segundo o compreendi.
Posso dizer que foi emocionante acompanhar o enfermeiro Hilrio, da etnia
kadiwu. Antes de fazer suas consideraes sobre o tema que iria ser abordado,
honrou suas razes se apresentando como um membro de seu povo e passou
a falar como tal. Num portugus muito bem falado, explicou as implicaes
negativas do contato dos povos indgenas com a sociedade envolvente.
Interpretou algumas falas de seus parentes, como sendo um reflexo desse
fato, o que os colocava numa condio de pedintes, frente ao assistencialismo e
tutela s quais estavam acostumados. Sua fala clamava por dignidade.
Dora Pankararu, por sua vez, contou-nos da militncia e dos espaos que vm
sendo ocupados pelos indgenas desaldeiados na cidade de So Paulo. Sua fala
refletia a dor daquele que se viu muitas vezes enganado por promessas no
cumpridas. Numa viso bem lcida da realidade dos indgenas, reconheceu os
avanos conseguidos pelos povos indgenas da cidade, mas tratou tambm por
reivindicar equidade na formao superior oferecida ao indgena, visto que,
em muitos casos, depois de formados, eles s podem atuar numa aldeia. Sua
advertncia chamou a ateno para a importante questo da incluso.
O enfermeiro Newton exps com muita didtica a estrutura mantida pela Funasa
para atender sade indgena. Respondeu com pertinncia ao questionamento
de uma indgena presente, demonstrando conhecimento de causa. O alcoolismo
e a gravidez precoce foram temas abordados como sendo relevantes nesta mesa
e indicavam tambm reas de atuao para o profissional da Psicologia.
13
apre
sen
ta
o
A terceira mesa foi verdadeiramente acadmica. O dr. Ivan Darrault-Harris,
francs, falou sobre a importncia da preservao da diversidade dos povos
indgenas. No como um tributo, ainda que merecido, s culturas originrias
da terra, mas como uma contribuio para a humanidade, visto que nestas
culturas podem estar solues para muitos dos problemas vividos pelas
sociedades contemporneas ocidentais.
Yanina Otsuka Stasevskas, brasileira de descendncia nipo-polonesa, nos
deu uma demonstrao de leveza, compreenso e integrao com as culturas
indgenas. Antes de sentar-se mesa, arrumou cuidadosamente um altar
sua frente. L foram colocadas: uma cermica kadiwu e um leque guarani.
No houve palavras, nem comentrios sobre sua ao, que para alguns passou
despercebida. Foi uma demonstrao inequvoca de respeito ao encontro que ali
era realizado. Depois, numa postura serena, discorreu sobre seu contato com os
indgenas mexicanos e brasileiros. Falou de encontro, respeito, discorrendo sobre
polticas pblicas, procurando demonstrar como era possvel uma comunicao
entre povos diferentes, os brancos e os ndios. Essa mesa foi encerrada por Sonia
Grubits, hngaro-brasileira que mostrou imagens de seu trabalho frente de
diferentes populaes kadiwu do Mato Grosso do Sul.
Agora, meus amigos, quando os trabalhos caminhavam para o encerramento,
algo surpreendente aconteceu. J passava das 10 horas da noite. A comisso
organizadora do evento, coordenada pela conselheira Lumena, j havia
encontrado em nossas falas as teses que deveriam ser levadas ao VI
Congresso Nacional de Psicologia CNP. L do fundo da plateia, veio um
chamado. Era dona Joana, da etnia kadiwu, quem pedia a palavra. Ento,
num portugus com muita dificuldade, agradeceu a todos, mas dirigiu-se
especialmente a Sonia Grubits. Dizendo que sua me havia mandado ela dar
dra. Grubits um nome, e ento mencionou o nome que evidentemente
eu no consigo lembrar. Naquele momento, o enfermeiro Hilrio, que no
tem nada de engraado, tomou a palavra e, num tom emocionado e srio,
explicou a todos o que estava acontecendo ali. Ele disse: Se estivssemos em
nossa aldeia, este seria um momento solene, com cnticos, pois a dra. Snia
acabara de ser adotada como filha da famlia de dona Joana...
Meus amigos, isso foi verdadeiramente emocionante! Penso que todos os que
estavam presentes, infelizmente muito poucos dado o avanado da hora, ficaram
emocionados. Estvamos ali naquele auditrio ocidental, com ar condicionado, e
a fora milenar das culturas da terra estava se manifestando nas palavras daquela
representante da etnia kadiwu. Que beleza! Quanto ensinamento. Senti-me grato
por estar ali e poder compartilhar com todos daquele momento.
14
apre
sen
ta
o
Agosto de 2007 Primeiro Encontro de Profissionais das Cincias Humanas sobre Questes Indgenas
- So Paulo, SP
Desafios aos Pesquisadores e os Conflitos Metodolgicos
No dia 3 de agosto de 2007, embora com poucas pessoas presentes, penso
que demos mais um passo importante na reflexo para a aproximao
da Psicologia com a questo indgena com a realizao do I Encontro de
Profissionais de Cincias Humanas sobre as Questes Indgenas. Presentes,
psiclogos, antroplogos, historiadores, graduandos, graduados e ps-
graduados, doutores e mestres. Foram cinco as apresentaes: (1) Luiz Eduardo
Valiengo Berni (Psicologia): Contribuies da transdisciplinaridade para o
dilogo com a questo indgena; (2) Marcelo Lemos (Histria): Dificuldades
para o estudo da populao indgena yanomami em Roraima; (3) Elisa Sayeg
(Lingustica): Educao escolar Indgena, literatura e lnguas indgenas:
conceitos bsicos; (4) Lucila Gonalves (Psicologia): Entre culturas: uma
experincia de intermediao em sade indgena e (5) Gleise Arias e Tnia
Bonfim (Psicologia): Oficinas teraputicas de foto e vdeo como forma de
interveno em comunidades indgenas guarani myya de So Paulo
As apresentaes focaram relatos de pesquisas, realizadas e em curso,
vivncias e impresses de campo, intervenes formais e informais no contato
com populaes de diferentes etnias, e aproximaes (contato ou convivncia
com indgenas) mediadas (ou no) por reflexo terica, militncia, alm de
proposta de abordagem para mediao.
Duas questes me chamaram ateno e, de certa forma, polarizaram a
discusso. A primeira sobre a qual irei brevemente discorrer foi a questo
da pesquisa com populaes indgenas e a apropriao que essas populaes
tm (ou no) dos resultados obtidos. Este ponto foi, sem dvida, o mais
polmico, gerando discusso e conflito entre profissionais de diferentes reas
(disciplinas) ali representadas. O conflito, inerente ao humano, acabou sendo
muito bem gerenciado pelos participantes, cada qual avaliando o peso de suas
colocaes durante o encontro.
A questo, entretanto, revelou um foco importante, trazendo tona uma
problemtica antiga, mas que sempre merece destaque e que poderia ser
resumida da seguinte forma, ao tratar a questo da pesquisa com populaes
indgenas (mas no somente com essas populaes): (a) A questo histrica das
pesquisas pioneiras, cujos frutos contriburam nacional e internacionalmente,
para um mapeamento, descrio e apresentao de etnias; muito comum
15
apre
sen
ta
o
que as populaes estudadas em tais pesquisas desconheam os resultados
das mesmas, cuja contribuio maior parece situar-se no mbito informativo,
ou seja, o mundo (acadmico ou no) passou a conhecer a existncia de uma
determinada etnia; (b) A questo das pesquisas contemporneas, cujos
frutos, alm de aprofundarem os conhecimentos das pesquisas pioneiras, so
apresentados s populaes estudadas, que, desta forma, podem se apropriar
dos resultados das mesmas.
No primeiro Colquio, em maro de 2007, pudemos ouvir dos indgenas muitas
queixas em relao aos pesquisadores pioneiros. Na ocasio, havia um sentimento
de usurpao por parte de alguns dos representantes das etnias presentes,
marcadamente entre os kadiwu do Mato Grosso do Sul, refletindo indignao
por sentirem-se usados em pesquisas, cujos frutos, acadmicos e ou financeiros,
jamais conheceram, enquanto os pesquisadores usufruam todo tipo de benefcio.
As queixas na ocasio recaram maciamente sobre profissionais da Antropologia
porque, afinal de contas, so os antroplogos os que tm maior tradio de
pesquisas nessa rea com essas populaes. Talvez, se a Psicologia tivesse tradio
de pesquisar neste campo, fosse alvo do mesmo tipo de queixa. Felizmente, no
tem. Essa questo, entretanto, ainda se trata de um vis que no exclusivo da
Antropologia, mas, sim, da maneira como a pesquisa cientfica encaminhada nas
Cincias Humanas de maneira geral. H, evidentemente, abordagens metodolgicas
que podem reduzir ou mesmo evitar esse tipo de impacto.
Durante o encontro, um mal-estar eclodiu quando esta questo foi apontada,
ainda que promovido por uma generalizao precipitada na fala de um dos
apresentadores, fruto de sua vivncia. O fato pareceu ter sido bem elaborado pelos
presentes, mas evidenciou algo que bastante comum no mbito disciplinar da
cincia, sobretudo quando duas reas muito prximas debruam-se sobre um
mesmo objeto. No meu entender, reflete um cuidado fundamental que a Psicologia
dever tomar ao entrar neste campo de estudo.
Neste sentido, a postura transdisciplinar, descrita na Carta da
Transdisciplinaridade e presente no esprito dos participantes ao debate,
poder ser de grande valia, contribuindo para aproximaes desarmadas e
imbudas do rigor e da clareza necessrias para que a Psicologia e os psiclogos
possam se incluir no trabalho com as populaes indgenas com o respeito e
a reverncia que elas demandam. Fato que evidentemente j acontece, no
apenas no mbito da Psicologia, mas tambm no da Antropologia e certamente
no de outras cincias que se debruam sobre esta questo. O que importa aqui
salientar que existe um referencial que pode ser utilizado como princpio
norteador e pode facilitar sobremaneira o necessrio dilogo.
16
apre
sen
ta
o
A outra questo abordada e, no meu modo de ver, muito relevante, ligada
atuao do psiclogo ou do profissional da subjetividade (seja ele psiclogo
ou no), subjaz questo da pesquisa cientfica. Tratou-se, pois, da mediao
transcultural, ou da interface que necessariamente deve ser criada (e que
possivelmente j exista no mbito da antropologia?) para que os povos indgenas
possam usufruir alguns benefcios da sociedade envolvente (por exemplo, na
recuperao da sade, como foi mencionado) sem que com isso percam a relao
com sua cultura. Ou, ainda, que os elementos culturais fundamentais possam
ser compreendidos e respeitados, ainda que possam ser contrrios ou mesmo
conflituosos para nossa sociedade.
Na verdade, talvez fosse melhor dizer que, alm disso, em muitos casos,
necessrio dizer o contrrio, ou seja, como o indgena pode recuperar o vnculo
com sua cultura apesar da interveno nem sempre benfica (mas s vezes
necessria) de seu contato com a sociedade envolvente. Novamente os princpios
transdisciplinares podero atuar como mediadores, ou norteadores, na relao
entre profissionais e disciplinas, conforme consta do documento j mencionado.
Em sntese, a discusso girou em torno desses dois eixos: um, que apontou para
os necessrios cuidados que devem ser tomados na pesquisa cientfica, e outro,
que apontou para a um importante papel que o psiclogo pode ter na mediao
da subjetividade do ponto de transcultural.
Maio de 2008Encontro Multiprofissional de Ateno aos Povos Indgenas - Santos, SP
Um Incipiente Dilogo Transcultural
Frente a uma pequena plateia de psiclogos e profissionais da rea da Sade,
realizou-se em Santos, em 8 de maio de 2008, o Encontro Multiprofissional
de Ateno aos Povos Indgenas. O ndio, filsofo, telogo e acadmico de
Direito, Eurico Sena Baniwa, que atua na rea de Marketing em So Paulo,
contou sua trajetria, como aprendeu portugus aos 12 anos e conseguiu
se adaptar sociedade envolvente sem perder suas razes amaznicas. Ao
contrrio, alm de estar perfeitamente adaptado sociedade branca, falando
um portugus corretssimo, contou de sua etnia, baniwa, com elementos de
sua cultura material, cocares e objetos de adorno pessoal. Falou tambm da
preocupao com a adaptao de seus parentes cultura branca, mostrando-
se particularmente alarmado frente ao suicdio de um amigo que estava
aparentemente adaptado cultura envolvente.
17
apre
sen
ta
o
Eu tive a honra de dividir a mesa com Eurico. Abordei, uma vez mais, a questo
da transdisciplinaridade e como ela poder auxiliar a Psicologia em seu dilogo
com as tradies indgenas, destacando as diferenas na forma de abordar a
realidade. A sociedade envolvente de caractersticas ocidentais tem um foco mais
centrado num olhar lgico-epistmico, enquanto que as tradies originrias
olham a questo com um enfoque mais centrado no mito-simblico.
Com o objetivo de propor a adoo de uma postura de abertura, liberdade
e amor, a transdisciplinaridade se apresenta como abordagem epistemolgica
que no privilegia nenhum tempo ou espao como correto por excelncia.
No seio desta proposta, o sagrado resgatado como um elemento paradoxal
que confere unidade realidade, ao mesmo tempo em que, sua compreenso
como nvel de realidade possibilita um novo modo de olhar para as prticas, em
diferentes reas do conhecimento, pois atua por meio da religao de saberes,
construindo uma teia de dilogo e interao. Desta forma, propicia um novo
olhar, mais abrangente e flexvel para o dilogo com a questo indgena.
Novembro de 2008Colquio Psicologia e Antropologia - So Paulo, SP
Rumo Interdisciplinaridade
Em 28 de novembro de 2008 o Grupo de Trabalho Psicologia e Povos Indgenas
do CRP SP realizou mais um colquio visando a aproximao da Psicologia com
a questo dos povos indgenas. Na oportunidade, foram realizadas duas mesas-
redondas. Pela manh, sob a coordenao da psicloga conselheira Lumena
C. Teixeira e com as participaes de Helena S. de Biase, gerente de projetos
da Funai, e de Rinaldo S. V. Arruda, professor da PUC-SP, tivemos a mesa
Antropologia, Sade e Povos Indgenas, que tive o prazer de acompanhar e a
partir da qual produzi esta reflexo.
O professor Rinaldo iniciou a apresentao trazendo elementos fundamentais
para nossa reflexo. Sua fala chamava ateno para o tipo de enfoque que
dado Sade, que, como rea do conhecimento, sempre reflete uma
cosmoviso compartilhada por uma cultura. Isso extremamente importante
e, no raro, origem de muitos mal-entendimentos culturais. Helena de Biasi,
por sua vez, apresentou a interessante pesquisa realizada pela Funai com 1%
da populao indgena brasileira, tratando de diversos temas, dentre eles, a
questo da educao ocidental e tribal, bem como das perspectivas de valores
inter-geracionais nas diferentes etnias pesquisadas.
18
apre
sen
ta
o
No que diz respeito cosmoviso, evidentemente a dos povos originrios
difere da cosmoviso da sociedade ocidental envolvente, mas nem sempre isso
levado em conta. claro, tambm, que as cosmovises indgenas difiram
entre si, mas elas comungam de uma mesma perspectiva paradigmtica
sob a gide de um paradigma de conjuno, onde o sagrado, o humano e
a natureza encontram-se completamente integrados. Ns, ocidentais, como
diria Edgar Morin, de quem tomo estes conceitos, vivemos sob a gide do
Grande Paradigma Ocidental, que promove uma reduo ou, na melhor das
hipteses, uma disjuno das diferentes instncias que compem a realidade
que, em termos bem simplificados, nos leva a ter diferentes abordagens
para compreender uma mesma questo: uma abordagem para a sade fsica
(biolgica) e uma abordagem para sade mental (psicolgica), apenas para
citar dois exemplos, que podem atuar de forma distinta. Felizmente, vivemos
hoje em tempos em seu se busca a religao dos saberes, o que nos possibilita
uma atuao em equipes multiprofissionais com enfoques interdisciplinares.
Nas culturas originrias, a cura intermediada por um mediador, cuja
formao no se deu no campo lgico-epistmico (acadmico), mas
no campo mito-simblico ou mesmo mistrico (psicolgico-religioso),
conforme classificao de Augusti Coll, um terico da transdisciplinaridade.
Assim, os curadores nativos tm uma formao tradicional, ritualstica
e, no raro, so versados em tratamentos fitoterpicos. Desta forma, para
os povos nativos temos o xam, o curandeiro ou, talvez fosse mais acertado
dizer, o paj. Embora haja diferenas entre essas funes, o elemento
transdisciplinar presente em todas elas implica numa compreenso da sade
a partir de seus elementos intangveis, transpessoais ou transcendentais e
por que no dizer? psicoespirituais, refletindo uma dimenso sagrada
que indissocivel da racional nessas culturas, o que lhes atribui uma
caracterstica de integralidade.
Por sua vez, os curadores do ocidente tm uma formao estritamente racional,
acadmica, fundamentada exclusivamente num nvel lgico-epistmico
altamente especializado. Em nossas vises reducionistas toda a sade
olhada por essa perspectiva de fragmentao sob a tica da disjuno, que
separa a realidade em vrios Nveis de Observao. A ns, psiclogos, cabe a
rea de Sade Mental, enquanto outros profissionais tratam da Sade fsica.
Ser que possvel lidar com essa abordagem com as populaes indgenas?
Onde ficam os saberes tradicionais da cultura? Ser que h uma tendncia a
julgar os saberes tradicionais como inferiores ou primitivos?
Embora centrados no paradigma lgico-epistmico, ns, psiclogos, sabemos
19
apre
sen
ta
o
bem o que esse tipo de julgamento pode significar. Pois no raro que nossos
conhecimentos sejam alvo de crticas de profissionais de outras formaes,
como, por exemplo, pelos mdicos. O prprio Freud enfrentou esse tipo de
discriminao em sua poca, e lembremos que ele tambm era mdico! Por
isso, temos que nos acautelar para no repetirmos com os saberes indgenas
esse tipo de equvoco. Em nossa sociedade, a dimenso sagrada, no que diz
respeito cura, est praticamente banida ou cargo dos no-acadmicos, dos
religiosos, sacerdotes, sendo amplamente desvalorizada, claro, muitas vezes
vista como falaciosa.
Felizmente, hoje j temos a Medicina Complementar, cujas tcnicas vm
sendo cada vez mais reconhecidas como eficazes. Esta abordagem resgata as
tcnicas tradicionais. Veja-se a cromoterapia, por exemplo, que recentemente
foi reconhecida pela OMS como eficaz. Est ocorrendo tambm a proliferao
de novos cursos de bacharelado, como os de Naturologia e Naturopatia,
cujos enfoques esto quase que exclusivamente ligados a um resgate dos
saberes tradicionais de cura e de outros que apontam para os aspectos sutis
ou transcendentais da existncia. Os florais, por exemplo, que no so
medicamentos, pois no tm princpio ativo, apenas um princpio sutil
que reside exclusivamente no campo da espiritualidade ou do sagrado, tm
sido usados cada vez com mais frequncia, a ponto da Escola de Enfermagem
da USP j os ter adotado em cursos de especializao.
Voltando s apresentaes, a pesquisa apresentada por Helena deixou claro
que o problema do lcool e das drogas confirma-se como uma das maiores
ameaas a essas populaes, num reflexo inequvoco do enfraquecimento
cultural. A imposio da educao formal ocidental constitui um grave
problema, pois cria expectativas no atendidas principalmente pelas
incapacidades governamentais em atender demanda, ainda que se tenha
avanado muito no governo Lula, como afirmou a palestrante. Por meio
das programaes decadentes e invasivas da TV, valores equivocados tm
entrado cada vez mais aldeia a dentro. Neste quesito, uma colega da plateia
foi bem feliz ao lembrar que no s os indgenas sofrem com as mdias
invasivas e questes afins, nossa sociedade tambm sofre, sobretudo nas
questes ligadas ao consumismo. Neste sentido, os indgenas esto melhores
que ns, pois eles tm valores que podem ser resgatados, mas e o resto
da populao, que resgate podero fazer? Assim, no que diz respeito aos
nativos, temos a desunio das comunidades, onde os jovens tm dificuldade
em ouvir os velhos e vice-versa, promovendo o enfraquecimento das
lideranas. E por a vai...
20
apre
sen
ta
o
Gostaria de lembrar o 8 artigo da Carta da Transdisciplinaridade:
Artigo 8
A dignidade do ser humano tambm de ordem csmica e planetria. O aparecimento
do ser humano na Terra uma das etapas da histria do universo. O reconhecimento
da Terra como ptria um dos imperativos da transdisciplinaridade. Todo ser humano
tem direito a uma nacionalidade; mas com o ttulo de habitante da Terra, ele ao mesmo
tempo um ser transnacional. O reconhecimento, pelo direito internacional, dessa dupla
condio - pertencer a uma nao e Terra - constitui um dos objetivos da pesquisa
transdisciplinar.
Eu diria que os nativos tm uma tripla condio, pertencem a um povo
tradicional, a uma nao e so tambm habitantes da Terra. Bom isso eles
sempre souberam, no verdade?
Uma coisa parece haver concordncia: estamos num estgio onde no h
mais retrocesso. No mais possvel pensar que algum possa preterir de
muitos elementos da cultura ocidental. Alis, o Rinaldo lembrou muito bem
que nenhuma cultura que teve contato com o branco quer voltar a viver
sem muitos dos confortos por ns produzidos. So questes ps-modernas
que no podem ser esquecidas.
Vivemos em tempos velozes, penso ser esta a palavra-chave. Como lidamos
com a velocidade das mudanas, dos conhecimentos, da interpenetrao
cultural? Penso que a Psicologia possa ajudar na assimilao de uma cultura
pela outra, ao lidar com choque cultural. Estes so alguns dos desafios que
se apresentam ao psiclogo no trato com a sade dos povos indgenas. Por isso,
volto a enfatizar a importncia da transdisciplinaridade na intermediao deste
dilogo de aproximao, visto que esta abordagem cientifica est preocupada
em religar saberes, relativizar pontos de vista. Chamo uma vez mais ateno
para os Artigos 10 e 11 da Carta da Transdisciplinaridade:
Artigo 10:
No existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras culturas. O
movimento transdisciplinar em si transcultural.
Artigo 11:
Uma educao autntica no pode privilegiar a abstrao no conhecimento. Deve ensinar
a contextualizar, concretizar e globalizar. A educao transdisciplinar reavalia o papel da
intuio, da imaginao, da sensibilidade e do corpo na transmisso dos conhecimentos.
21
apre
sen
ta
o
Esses aspectos, penso eu, devem ser princpios adotados por ns, psiclogos, no
trato com as comunidades nativas e sinto que sob essa perspectiva que nosso
GT tem se pautado na abertura dos canais que possibilitaram aos que assim
desejarem uma atuao respeitosa e reflexiva com nossos irmos nativos.
Imperdovel foi o fato de que no pude estar na mesa realizada no perodo
da tarde.
Maio de 2009Encontros Interdisciplinares sobre Psicologia
e Povos Indgenas - So Sebastio, SP
A Complementaridade do Disciplinar e do Interdisciplinar
Durante todo o dia cinzento de chuva, as ondas aoitaram com fora a praia de
Boiucanga (cobra de cabea grande, em tupi-guarani), onde, abrigados numa
oca da prefeitura de So Sebastio, realizou-se o primeiro evento da srie
Encontros Interdiscipinares sobre Psicologia e Povos Indgenas, programado
para 2009. Estiveram presentes aproximadamente 50 pessoas, entre psiclogos,
nativos guarani e profissionais de diferentes reas.
No perodo da manh, os trabalhos foram iniciados com uma mesa de abertura
composta por representantes das autoridades locais e lideranas do povo
guarani, sob a coordenao da conselheira Lumena C. Teixeira, que numa
breve fala introdutria resgatou o caminho traado pelo GT Psicologia e Povos
Indgenas do CRP SP at aquele momento. Aps as tradicionais saudaes de
boas-vindas e consideraes sobre a importncia do evento, uma nova mesa
foi composta, agora com a antroploga Vanessa Caldeira e o psiclogo Cludio
Loureiro, sob a coordenao de Cilene Apolinrio.
Foi muito interessante observar o contedo disciplinar, interdisciplinar e
transdisciplinar nas falas dos presentes e sob essa tica que fao esta reflexo.
Do ponto de vista interdisciplinar, Vanessa, iniciou a conversa e, apesar de
bastante jovem, nos contou de sua longa trajetria de trabalho com os povos
indgenas e de seu atual trabalho na Casai So Paulo, onde compartilha com
colegas de outras reas, uma psicloga e uma pedagoga, a ateno aos povos
indgenas de diferentes etnias. Neste relato, pode-se perceber com clareza
importantes elementos de troca interdisciplinar. A palestrante, por mais de uma
vez, mencionou a profcua troca que ela e sua colega psicloga Joana Garfunkel,
vm realizando, demonstrando o melhor do esprito interdisciplinar.
22
apre
sen
ta
o
A antroploga e a psicloga tm trocado muito em termos metodolgicos, um
aspecto refletido com clareza na valorizao que Vanessa faz do aprendizado que
tem nesse contato, situando a escuta ativa como um ponto de interseo entre
as reas. importante ressaltar que uma das caractersticas mais marcantes
da interdisciplinaridade exatamente a troca metodolgica que existe entre
as disciplinas. Assim, pode-se observar a escuta na dimenso antropolgica
no que diz respeito cultura, memria de grupo e na psicolgica quanto
individualidade e a memria pessoal.
A palestrante ressaltou tambm a importncia de reconhecermos a histria
da dominao, para que a relao dominador-dominado possa ser rompida,
apontando para um dos aspectos mais importantes da transdisciplinaridade
contido no dcimo artigo da Carta da Transdisciplinaridade:
Artigo 10:
No existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras culturas. O
movimento transdisciplinar em si transcultural.
O psiclogo Cludio, com quem tive o prazer de trabalhar por um breve
perodo, no incio de nossas carreiras, nos trouxe uma reflexo disciplinar do
olhar da Psicologia com traos marcadamente junguianos sobre a questo do
uso abusivo do lcool e drogas. Destacando o carter quase epidmico que a
questo assume na contemporaneidade, transcendendo as fronteiras culturais e
sociais, apontou a importncia da tica no trabalho de recuperao das pessoas
afetadas por essa questo, ressaltando o fundamental lugar da escolha como
possibilidade de recuperao. Num discurso mais acadmico, porque lido, com
elementos quase poticos, apontou o enfraquecimento dos valores como um
dos elementos que merecem destaque na questo abordada.
No perodo da tarde, na Subsede Vale do Paraba e Litoral Norte do CRP SP,
teve lugar a reflexo grupal a partir do texto disparador Rede de Ateno aos Povos
Indgenas. As lideranas nativas, todos da etnia guarani, que representavam as
aldeias da regio, distriburam-se nos trs grupos formados.
No grupo onde estive, o representante era o vice-cacique Celso, de uma das
tribos da regio. Esse grupo era formado maciamente por psiclogas que
vieram para o evento por interessarem-se pelo tema, a partir da divulgao
feita pelo CRP. Estava presente tambm a palestrante Vanessa, antroploga.
No melhor esprito disciplinar, as colegas fizeram de pronto a pergunta que
no queria calar ao nosso convidado nativo: Como podemos ajudar vocs
na aldeia? Vanessa, com sua sensibilidade interdisciplinar, tentou iniciar a
23
apre
sen
ta
o
conversa com um approach mais psicolgico. Ningum ouviu, to interessados
que estavam em ajudar nosso convidado, que, por sua vez, pressionado pela
pergunta, j saiu respondendo sem ter claramente entendido a questo.
Ento, caminhamos para trs, nos apresentamos e procuramos esclarecer o
que era a Psicologia e quem eram os psiclogos, intermediados por Vanessa,
que j conhecia bem a aldeia, e o Celso. A Psicologia pode ser mais bem situada
entre a funo do paj, que cuida da sade, e a de um conselheiro (ancio), que
cuida da educao. Recorrendo a uma explicao corporal, com uma das mos
tocando a cabea e a outra, o corao, Vanessa explicou ao Celso como um
psiclogo poderia atuar junto sua comunidade. Isso evidenciou uma diferena
importante que existe entre cultura nativa e cultura envolvente, conforme j
mencionei anteriormente. Ns estamos muito acostumados a lidar com uma
dimenso lgico-epistmica, enquanto os nativos, com uma dimenso mito-
simblica. Ento, a conversa fluiu com maior clareza.
No final, todos os grupos apresentaram suas reflexes, ainda muito no campo
da inteno, mas j com alguns reflexos para o desenvolvimento de aes, que,
evidentemente, s sero efetivadas com o tempo.
O evento foi encerrado no melhor esprito transcultural: fizemos uma dana
circular ao som de uma flauta andina e ouvimos uma cano guarani.
Junho de 2009Encontros Interdisciplinares sobre Psicologia e Povos Indgenas - Itanham, SP
Exerccios Transculturais e Pesquisa Disciplinar
Durante todo o dia cinzento de chuva, as ondas aoitaram com fora a praia de... No, isso
no uma repetio do texto da reflexo anterior, quando se deu o Encontro
Interdisciplinar em So Sebastio. que parece que Tup, o trovo, resolveu
sempre aparecer nos encontros dos psiclogos sobre os povos indgenas... Ser
isso um bom ou mau augrio? Bem, vamos ns novamente:
Durante todo o dia cinzento de chuva, as ondas aoitaram com fora a praia
de Itanham, palavra tupi que significa pedra que chora. Esse choro, alis,
provado pelo aoitar das ondas nas pedras fazendo, digamos assim, um
nhe-nhe-nhm, ou um Ita-nham. Assim inicio estas novas reflexes sobre o
Encontro de Itanham, realizado no dia 26 de junho de 2009, que gostaria de
compartilhar com os colegas.
Iniciamos com um muito bem-vindo caf da manh, aps uma sada de
So Paulo na madrugada. ramos poucos ao chegarmos, mas logo j havia
24
apre
sen
ta
o
aproximadamente 60 pessoas, entre psiclogos, profissionais da sade,
educadores, antroplogos, estudantes e at um advogado!
As apresentaes daquela manh foram bastante emblemticas, comandadas
pela conselheira Beatriz Beluzzo, da Subsede Baixada Santista e Vale do Ribeira
do CRP SP. Iniciadas pelo mdico de origem Argentina, com formao em
Etnopsiquiatria e Antropologia Mdica, Carlos Coloma, que atua como tcnico
do Ministrio da Sade; e pela pesquisadora, educadora, profunda conhecedora
da cultura guarani a antroploga Maria Dorothea Darella.
Coloma foi quem iniciou os trabalhos. A forma escolhida para realizar sua
apresentao por pouco no foi arqueolgica, pois ele utilizou uma ferramenta
quase extinta no campo das apresentaes em eventos: um bom e velho flipchart.
Nele, traou alguns esquemas para orientar sua rica fala, que conteve tudo,
menos um carter de epidemiologia de interveno, para desespero de um de
nossos participantes, mdico, vido pelo assunto, visto que o palestrante era
tambm epidemilogo de formao. Seu tom, entretanto, foi mais inclinado
para a Antropologia, assumindo um carter claramente inter e transcultural,
constatado, tambm no idioma da apresentao, que foi o espanhol.
Iniciou enfatizando um elemento-chave para o dilogo intercultural, ao
salientar que as pessoas imersas numa determinada cultura tm a tendncia a
verem sua prpria cultura como sendo superior s demais. Isso se constitui em
grave equvoco, pois, assim como peixe inconsciente quanto gua que o cerca,
as pessoas podem ser inconscientes, como normalmente o so, da maravilhosa
diversidade cultural que abunda no planeta, estando centradas apenas em sua
prpria cultura. Isso faz com que julguem culturas diferentes a partir de seus
prprios referenciais. Essa , alis, a histria do contato com os indgenas, no
verdade? No por acaso que a Carta da Transdisciplinaridade enfatiza em seu
artigo 10 a importncia de que no existe um lugar cultural privilegiado de
onde se possam julgar as outras culturas. O movimento transdisciplinar em
si transcultural. Perdoem-me por ser repetitivo, mas nunca pouco que esta
questo seja enfatizada.
Coloma apontou um item (trans)cultural fundamental: a questo do territrio
(do espao), destacando como para ns, da sociedade envolvente, essa questo
perde relevncia, visto que nosso territrio muitas vezes se restringe a uma
habitao de poucos metros quadrados. Para os povos originrios de qualquer
etnia, o territrio fundamental e se constitui num elemento espiritual e
sagrado! Alis, para todos ns, s que no nos damos conta disso.
A transdisciplinaridade entende que as culturas refletem Nveis de Realidade que
fornecem explicaes completas para o conjunto da realidade. Neste sentido,
25
apre
sen
ta
o
fundamental que se tome conscincia dos limites culturais, um ponto apontado
pelo palestrante, fundamental para a circunscrio das questes ligadas
identidade. Qualquer projeto identitrio, destacou, reflete uma cosmoviso,
uma concepo scio-politico-ideolgica que funda, por assim dizer, a
territorialidade. Para o ndio, a terra , pois, o que em transdisciplinaridade
denomina-se zona de no-resistncia, um espao sagrado entre os mundos
superiores e inferiores que cada cultura preenche com rica mitologia. O
conhecimento dos limites, ou seja, da resistncia do outro, refora a identidade
salientando as fronteiras do territrio.
Aps essas colocaes transculturais, o palestrante inclinou-se num mergulho
intra e intercultural destacando elementos do povo maia, asteca, bem como
da cultura guarani. Em sua reflexo, transparecia o problema do julgamento
intracultural, quando uma cultura julga a outra a partir de sua prpria
perspectiva. Isto pode ser visto como fonte de inmeras concluses desastrosas,
ao explicar uma dimenso de outra cultura (nvel de realidade) sem que fosse
feito o necessrio exerccio transcultural. Neste sentido, a questo do suicdio
na cultura guarani pode assumir uma viso completamente distorcida se
julgado sem a necessria mediao transcultural. E, assim, concluiu sua rica
apresentao salientando a importncia do mergulho inter e transcultural para
a compreenso do outro.
A professora Dorothea, por sua vez, nos falou da complexidade (um dos pilares
da transdisciplinaridade) ao explorar de forma disciplinar seus estudos sobre
a cultura guarani. Alis, saudou a cultura e seu representante presente, de
forma particularmente reverente. Assim como a louvvel iniciativa do CRP na
promoo do dilogo. Munida de volumosos estudos e muitos apontamentos,
apresentou-nos o olhar do pesquisador, o olhar do antroplogo profundamente
comprometido com sua disciplina no estudo da complexidade da cultura.
Iniciou com uma apresentao de fotos, levando-nos ambincia de uma
aldeia guarani. Um mergulho visual na cultura, de diferentes aldeias de Santa
Catarina. As dimenses da roa, cujas sementes so verdadeiras. A cestaria
e a escultura, nas quais se pode observar a subjetividade de diferentes artistas.
O territrio o segundo mundo, aspecto no exclusivo para o povo guarani.
Assim, salientou a dificuldade do povo em lidar com a demarcao de terra,
aspecto que quase chega a profanar a cosmologia desse povo. Falou tambm
de como uma cultura pode permear a outra sem que uma seja absorvida pela
outra.
De repente, o papel de pesquisadora cedia lugar ao de educadora, quase
militante (?). Enfatizou o projeto encaminhado ao MEC para a formao de
26
apre
sen
ta
o
um curso superior em licenciatura para que os povos originrios possam ter,
de fato, a respeitabilidade e autonomia preconizada na Carta Magna, por meio
de sua educao escolar.
Mas a pesquisadora, frente ao desafio do complexo, no conseguiu concluir,
pois o tempo tornou-se seu inimigo.
Ento, vieram as perguntas. O advogado quis saber como os guarani
compreendiam e lidavam com o estado de direito. A liderana presente, Luiz
Kara, destacou a apropriao que os guarani tm feito de seus direitos. O
mdico trouxe uma proposta para reduo de impactos epidemiolgicos.
Mas foi o estudante de Psicologia, Leandro, quem formulou a questo mais
contundente a meu ver: Como lidar com a espiritualidade, que tem valor
constitucional para as culturas indgenas, frente a uma cincia psicolgica que
no afirma sua relevncia?
Rompendo com a linearidade do pensamento. Foi uma das respostas. E
eis que vejo novamente a abordagem transdisciplinar despontando como uma
possvel sada!
Assim, findou-se uma manh introdutria de maneira absolutamente rica,
dando lugar a uma tarde plena de reflexes que compuseram o primeiro
documento de referncia para os psiclogos.
Outubro de 2009Encontros Interdisciplinarares sobre Psicologia e Povos Indgenas - Tup, SP
Um Olhar Multidisciplinar para a Identidade
Diferentemente do que se pudesse esperar, Tup, o trovo, no apareceu na
ensolarada cidade de Tup, no Oeste Paulista, onde foi realizado o terceiro
evento da srie Encontros Interdisciplinares sobre Psicologia e Povos
Indgenas, realizado no dia 2 de outubro de 2009. O que se viu foi um sol
escaldante e uma temperatura de aproximadamente 35 graus, bem diferente
dos encontros anteriores realizados no litoral com tempo chuvoso.
Nossos irmos indgenas, vindos das diferentes aldeias da regio, estavam a
carter, usando seus penachos e pinturas. Eram kaingang, krenak, guarani
e terena, mais de 60 indgenas, muitos caciques, dentre os 85 participantes
conclamados ao trabalho pela enfermeira da Funasa, Eunice, a partir das
articulaes dos colegas Elizabeth Pastore e Fernando Zanetti da Subsede de
Assis do CRP SP, que, com primor, estruturou o evento organizado pelo GT
Psicologia e Povos Indgenas.
27
apre
sen
ta
o
Os trabalhos, como de costume, foram abertos pela conselheira Lumena Celi
Teixeira, que fez uma longa e necessria explanao sobre os objetivos dos
trabalhos, para que os presentes, principalmente os indgenas, pudessem
compreender com clareza as razes de ali estarem.
Naquela manh, tivemos duas mesas-redondas. A primeira foi iniciada
pelo etnoarquelgo Robson Rodrigues, que trouxe suas Contribuies
etnoarqueolgicas para a construo da identidade ente os kaingang no Oeste
Paulista, abordando a questo a partir da materialidade da cultura e da
importncia do territrio para os povos nativos. Havia uma explicita preocupao
em devolver para as comunidades presentes e estudadas por ele os resultados
de sua pesquisa, que, entre outros itens, continha um detalhado mapeamento
dos territrios indgenas da regio visando sua ampliao futura.
Do ponto de vista transdisciplinar, a pesquisa apresentada pode ser compreendida
pelo eixo da complexidade, ou seja, havia uma detalhada descrio da cultura
material kaingang a partir da lgica que lhe implcita. Isso possibilitou aos
presentes a compreenso do conceito de beleza desta cultura, a partir do belo
na confeco de cermica.
No resgate temporal que pode realizar, o pesquisador situou a ocupao kaingang
como sendo claramente anterior fundao do municpio de Tup, que tem
apenas 80 anos. Essa ocupao se deu pelas mos do colonizador Luiz de Souza
Leo, curiosamente fundador tambm do ativo Museu Histrico e Pedaggico
ndia Vanuiri, onde fomos recebidos pela curadora, senhora Tamimi, com muita
gentileza. A instituio abriga, entre outras, uma valiosa coleo de peas de
cermica indgena estudadas pelo pesquisador. Essa importante personagem da
histria da regio, ndia Vanuiri, d nome tambm a uma das aldeias da regio.
Aldeia com caractersticas multitnicas, abrigando majoritariamente as etnias
kaingang e krenak. Enquanto os kaingang so nativos da regio, os krenak
foram deslocados para l posteriormente, ao serem expulsos de suas terras.
Robson, o pesquisador em busca do dilogo transdisciplinar, demonstrou
como a construo da identidade tnica pode se dar pela ao da cultura e
pode ser compreendida, resgatada, na materialidade da mesma a partir de pelo
menos oito aspectos fundamentais: (1) pela agricultura no cultivo do tradicional
milho crioulo; (2)pela produo de cermica; (3) pela demarcao de um
territrio compatvel com as necessidades da populao que lhes possibilite a
mobilidade, to fundamental s culturas nativas para o acesso caa e pesca;
(4) pelo artesanato de fibras com seus aspectos simblicos; (5) pela valorizao
da lngua e dos ancios; (6) pelo intercmbio com outras aldeias, pela visitas
aos parentes; (7) pela necessidade de estruturao de um centro cultural
28
apre
sen
ta
o
capaz de reunir todos os elementos dessa cadeia cultural; (8) e por aspectos
que assegurem a sustentabilidade das comunidades.
A segunda a falar foi a historiadora Daniela, pesquisadora estreante em mesas-
redondas, que abordou a construo da identidade a partir da relao intertnica
entre os kaingang, krenak e terena. Resgatou o momento da transferncia dos
krenak para a regio marcado pela imposio do antigo SPI (Servio de Proteo
ao ndio, rgo precursor da Funai), abordando tambm o deslocamento
terena, como uma estratgia desse rgo para promover essa integrao, pois
esperava-se que a etnia pudesse ensinar aos kaingang a agricultura de modo a
limitar seu deslocamento pelo territrio.
Assim, abordou a construo e a reconstruo das identidades falando da
importncia de se aprender a ler o silncio. Abordou o processo de miscigenao
entre as etnias e o resgate da memria coletiva dos misturados, como
carinhosamente parecem se identificar aqueles que muitas vezes escolhem
a qual etnia querem pertencer. Contando de forma a ilustrar sua fala o caso
de uma defesa tnica de uma pessoa que, de maneira simblica, explicava a
existncia de ndios pretos e de olhos verdes da seguinte forma: ndia negra
teria sido concebida noite, enquanto que a de olhos verdes teria sido concebida
na mata.... Terminou ressaltando que uma comunidade ganha membros
quando o homem ndio casa com uma no-ndia e perde membros quando
uma ndia casa com um homem no-ndio.
A terceira e ltima a falar foi a psicloga Bianca Stock, que tem trabalhado com
os kaingang e os guarani na regio de Porto Alegre. Ela nos trouxe o relato do
projeto Sade Mental e Sade Indgena - Conviver para Melhorar a Vida,
nome escolhido pela comunidade para o projeto em questo. Falando em tom
coloquial, de modo a se aproximar muito da plateia eminentemente composta
por indgenas, demonstrou de maneira viva como a Psicologia, com seus saberes
dialgicos, pode promover o protagonismo indgena. A interveno relatada
iniciou-se num daqueles flagrantes momentos onde a sociedade envolvente
invade e destroa a cultura nativa, com aquilo que h de mais perverso na
integrao do ndio sociedade branca, ainda presente na contemporaneidade
e to falado pelos palestrantes anteriores. Na comunidade estudada, 70% das
mulheres estavam tomando algum antidepressivo.
A violncia abundava promovendo a morte de alguns de seus membros. As
pessoas estavam isoladas em suas individualidades, recolhendo-se amedrontados
em suas casas. Ento, com saber prprio da Psicologia, se deu a escuta e dela
se fez o simposium, sendo criada uma roda de conversa ao p do fogo, numa
refeio comunitria. No comeo, eram apenas adultos e crianas, enquanto
29
apre
sen
ta
o
os jovens olhavam desconfiados ao longe. Depois, esses tambm se integraram
ao grupo, havendo um resgate do esprito comunitrio to fundamental para
os povos nativos. Entre o bolo de cinzas, prprio da cultura tradicional da
regio, e o bolo do dia dos pais, prprio da cultura ocidental envolvente, o
dilogo se fez de forma sutil e gentil. Aos poucos, a psicloga e a Psicologia vo
saindo de cena de uma forma sutil, como se nunca tivesse entrado...
A segunda mesa-redonda foi comandada pelo etnoarquelogo Robson e reuniu
algumas das muitas lideranas presentes. Dar, vice-presidente distrital, de
terno e gravata para poder introjetar os elementos da cultura branca de modo
a poder enfrent-la, como se faz tradicionalmente a se usar uma mscara para
incorporar o esprito de um animal a ser caado, abordou a importncia da luta
por melhores condies de vida para os povos indgenas. Valorizou o trabalho
realizado por Robson, afirmando que a Psicologia poderia contribuir muito
para a construo da identidade indgena, porm ressaltou com veemncia a
importncia de que essa entrada da Psicologia junto s comunidades indgenas
seja muito cuidadosa, apontando para uma interveno ampliada como sendo
o papel desejvel para a Psicologia na rea indgena.
Depois, a palavra foi passada ao cacique ancio da etnia terena, Josoane, de 72
anos, 25 dos quais atuando como cacique. Esse conclamou os ndios a assumirem
seu papel como tal. Valorizou a importncia do paj e dos elementos religiosos
de sua cultura abordando como a cultura envolvente seduz os jovens indgenas
de modo a destruir suas referncias tradicionais, sendo este um grande mal no
qual a Psicologia talvez pudesse atuar. Na sequncia o cacique krenak Gerson,
da comunidade vanuiri, num tom profundamente cristo, falou de sua emoo
e agradecimento pelo encontro em curso.
O terena Ranulfo apontou para a importncia do desenvolvimento de lideranas,
abordando tambm a questo do alcoolismo. Falou dos problemas enfrentados
pela superpopulao de seu grupo que ficam confinados a territrio restrito,
enfatizando a importncia de trabalhos prticos, como o de Robson, que possam
fazer a diferena. Trouxe a questo da valorizao dos mais velhos como forma
de honrar a memria. Terminou falando algumas palavras de gratido em sua
lngua nativa.
A ltima a falar naquela manh emocionou a todos. Foi dona Juraci, que
comeou afirmando j ter feito uso de antidepressivos. Nos contou que viveu
nos tempos do SPI relatando que as pessoas morriam de tristeza porque no
tinham mas a mata e o rio. Falando na lngua de sua etnia, com visvel emoo,
expressou seu profundo agradecimento pelo evento que estava sendo realizado.
Abordou tambm seus esforos para preservar a tradio, destacando as vrias
30
apre
sen
ta
o
pessoas presentes que haviam sido curadas com os recursos tradicionais. Um
detalhe importante a ser mencionado que Juraci no nasceu ndia, tornou-se
uma.
O perodo da tarde foi iniciado pelo terena Jlio, que apresentou um projeto
que vem desenvolvendo para recuperao da mata ciliar. Depois dessa
apresentao, passamos ao momento de dilogo com os presentes em busca
das informaes sobre como a Psicologia poder contribuir para a criao
de uma rede de ateno aos povos indgenas. Muitas foram as falas e uma
vez mais pudemos constatar como difcil o entendimento do papel de
uma instituio como CRP, ocupado na criao de referenciais para atuao
profissional.
Em sntese, foram apontados os seguintes pontos fundamentais para essa
aproximao: (1)A necessidade de divulgao junto aos povos indgenas de seu
direito de acesso ao SUS; (2)A necessidade de divulgao das possibilidades
de ajuda que a Psicologia pode proporcionar s comunidades indgenas; (3)
Houve um chamado dos professores indgenas para que a Psicologia possa
atuar junto Educao Escolar Indgena;
Muitos foram os avisos da necessidade de que a Psicologia tenha uma entrada
cuidadosa nessa nova rea de atuao.
O evento foi encerrado com um triste canto em honra aos ancestrais.
Entoado de forma bilngue (na lngua nativa e em portugus), uma
homenagem dos parentes presentes ao autor, um rapaz que havia falecido
recentemente. Todos se emocionaram muito. Particularmente emocionante
foi o momento em que me despedi de dona Juraci, que do alto de sua sabedoria
e simplicidade, afirmou que iria sentir saudade, pois das pessoas boas a gente
sente saudade...
Novembro de 2009Colquio Psicologia e Povos Nativos: Um Encontro Transdisciplinar - So Paulo, SP
A Teia Transcultural para a Sustentabilidade das Relaes
Desde 2006, o CRP SP vem promovendo aes que visam a interlocuo
da Psicologia, cincia e profisso, com os povos indgenas de sua regio de
abrangncia, o Estado de So Paulo. Nesse trajeto, que se iniciou atendendo
a um chamado dessas populaes procurou-se manter um posicionamento
tico-politico baseado no respeito irrestrito s etnias contatadas, considerando
suas lutas, e sua forma particular de ser e de viver.
31
apre
sen
ta
o
Articulando uma parceria com a Funasa, o enfoque desse olhar acabou se dando
prioritariamente na rea da Sade e, a partir da, procurou-se estabelecer um
dilogo com outras reas de conhecimento, marcadamente a Antropologia,
mas tambm a Histria, a Medicina e a Arqueologia, entre outras. Desta
forma, nos foi possvel, ao longo destes anos, aprender muito com a troca
que se estabeleceu na relao multiprofissional, mas tambm, ou sobretudo,
com a troca que pudemos ter com nossos irmos indgenas nos inmeros
momentos em que nos emocionamos com a sensibilidade e profundidade de
sua subjetividade cultural...
Pode-se observar os dilogos interdisciplinares entre psiclogos e antroplogos
e outros profissionais, quando estes trocaram metodologias de forma a otimizar
suas prticas. Mas tambm observaram-se e viveram-se os embates pelo
poder, sejam eles entre as disciplinas, as correntes tericas ou polticas. Tanto
no meio acadmico quanto junto s lideranas contatadas. Desta forma, foi
um caminho que se procurou trilhar de forma cuidadosa. No para remover
as pedras, mas para com elas compor uma estrada de respeito diversidade
de opinies e posicionamentos, sempre com foco na sustentabilidade para
manuteno do bem maior, a vida.
E foi assim que, no dia 13 de novembro, na sede do CRP SP, na cidade de
So Paulo, realizou-se o ltimo encontro da srie de colquios previstos para
2009. Almejou-se ir alm do interdisciplinar focando-se no transdisciplinar,
portanto, indo alm das disciplinas, sem, claro desrespeit-las, at porque o
esprito transdisciplinar s se justifica em razo do disciplinar. Mas, como diria
o professor Ubiratan DAmbrsio, que esteve presente a uma das mesas: indo
alm das gaiolas que podem cercear as liberdades.
Toda esta iniciativa guardou inspirao tambm no melhor estilo
revolucionrio da grande psicloga brasileira Madre Cristina, to bem
conhecida de muitos, especialmente do psiclogo Paulo Maldos, presente ao
evento, que com ela trabalhou nos anos 1980.
Ao longo destes anos, defendeu-se que a transdisciplinaridade um enfoque
fundamental para que a Psicologia faa sua aproximao com as questes
indgenas. No porque ela queira apenas ir alm, mas por considerar
tambm aquilo que est entre e nas disciplinas. Seu esprito o do respeito
ao transcultural, transreligioso, transpessoal que, evidentemente, lhe so
implcitos. A transdisciplinaridade considera que nenhuma cultura, nenhum
conhecimento mais do que outro. sabedora que cada um tem o seu lugar na
estrutura que compe a realidade e, desta forma, dialoga com a sabedoria dos
povos indgenas de igual para igual.
32
apre
sen
ta
o
O evento foi iniciado pela conselheira Lumena Teixeira, que fez um resgate
de toda a trajetria do trabalho do GT Psicologia e Povos Indgenas ao longo
destes trs anos de trabalho. Ressaltou as teses assumidas pelos psiclogos
em seu Congresso Nacional que nos autorizaram a realizao de todas estas
aes. O CRP SP foi o pioneiro ao dedicar-se a estas questes.
Aps essa apresentao fundamental, Lumena coordenou a primeira
mesa-redonda, que reuniu lideranas indgenas do Estado de So Paulo: o
guarani Luiz Kara, representando as aldeias do litoral, e o tupi-guarani
Dar, representando as aldeias do interior. Ambos j haviam participado
de eventos anteriores. Foi incrvel poder constatar como em to pouco
tempo houve uma grande apropriao por parte dessas lideranas sobre
as possibilidades oferecidas pela Psicologia. O que nos primeiros eventos
parecia algo distante para os indgenas, neste ltimo encontro pareceu algo
j carregado de sentido. Certamente isso pode ser compreendido como uma
conquista.
Dar, novamente de terno e gravata, apontou a necessidade de serem includos
nos debates os professores indgenas. Apresentou diferentes instncias da
cultura tradicional, como os rituais, o artesanato e a questo do territrio,
apontando elementos nos quais a Psicologia poderia atuar, com destaque
para a questo da estigmatizao que os ndios sofrem ao serem vistos pela
sociedade envolvente como vagabundos. Lembrou tambm, no entanto,
que no s os ndios sofrem com isso, os negros tambm sofrem ao serem
vistos como ladres. Falou da grande tenso vivida na atualidade frente
s incertezas governamentais no que tange situao da Sade Indgena e
permanncia ou no da Funasa como rgo mediador. A primeira mesa
terminou salientando esses importantes aspectos que constituem, sem dvida
nenhuma, elementos fundamentais para orientar as polticas pblicas.
Tive a honra de coordenar a segunda mesa-redonda: O encontro
transdisciplinar das cincias com a realidade dos povos nativos e seu impacto
nas polticas pblicas, composta por um indgena, uma antroploga, um
psiclogo e um matemtico.
A representao indgena ficou a cargo de Marcos Tup, da aldeia Krukutu,
pois Kak Wer lamentavelmente no pde estar presente. A fala do indgena
foi marcada pelas importantes conquistas no campo da poltica, a partir de
sua atuao na Comisso Nacional de Poltica Indigenista CNPI. Tratou
tambm do delicado momento vivido na aldeia, pois, como eles no tm rio
nas proximidades, o fato da bomba dgua do poo artesiano ter queimado
com o apago trazia inmeros problemas para os 250 moradores que estavam
33
apre
sen
ta
o
havia trs dias sem gua. Mas Marcos falou tambm de suas preocupaes
com a tradio, pois o servio tradicional das parteiras conflitava com a
prtica dos partos feitos em hospitais.
Maria Ins Ladeira foi a palestrante seguinte. A antroploga abordou
importantes questes etnogrficas da cultura guarani, salientando que os
momentos de crise (psicolgica) existem em todas as culturas. Apontou para
a importncia do respeito viso integral e sincrtica que muitas culturas
tradicionais, como as indgenas, parecem possuir ao considerarem, por
exemplo, a construo da identidade como um aspecto que se d antes mesmo
do nascimento. Destacou tambm aspectos da corporalidade nessas culturas
para localizao de algumas funes psquicas que, portanto, so distintas
de cultura para cultura. O sagrado foi abordado novamente ao salientar
a importncia do xam nas tradies indgenas, pois ele que orienta e
diagnostica, atuando na mediao entre o mundo visvel e o invisvel.
Na sequncia, tivemos a fala do psiclogo Paulo Maldos, que hoje atua junto
Presidncia da Repblica na promoo do dilogo com as comunidades
indgenas. Foi ele, ainda, um dos articuladores dos encontros promovidos
em 2004 que levaram o CFP a colocar a questo indgena na pauta de
discusso dos psiclogos. Sua fala teve um tom poltico, da qual se pode
destacar a importncia do CNPI. Apontou para o crescimento histrico
da populao indgena, fato sem precedente na histria do Brasil desde
o Descobrimento! Falou tambm das importantes conquistas no que diz
respeito reconstruo tnica em curso no Pas. Falou da importante e
necessria reviso do Estatuto do ndio, que remonta ainda poca da
Ditadura Militar.
Um destaque muito importante foi dado para as novas subjetividades,
quando relatou uma curiosa intermediao poltica que pde presenciar
quando o esprito de Macunama supostamente teria participado de
uma negociao! Destacou a importncia do respeito aos, pelo menos, 70
povos que ainda vivem isolados no territrio nacional, salientando que a
melhor forma de respeit-los a do direito que tm ao no-relacionamento.
Abordou o desafio que os trs poderes da Repblica tm no trato com os
indgenas, apontando para a difcil situao vivida no Mato Grosso do Sul,
onde se concentram os maiores ndices de suicdio indgena do Pas. A
responsabilidade da mdia tambm foi destacada, apontando-se necessria
crtica a uma subjetividade globalizante. Por fim, fazendo meno s
conquistas dos indgenas na Bolvia, apresentou a importante noo do
bem-viver como forma de harmonizao das questes entre o ter e o ser.
34
apre
sen
ta
o
Ao professor Ubiratan DAmbrsio, importante figura da transdisciplinaridade
no cenrio mundial, coube a tarefa do fechamento da mesa. Tomando
Freud como guia, fez observaes transdisciplinares a partir do pulso de
sobrevivncia. e sua base gentica, e o pulso de transcendncia, e sua
base tica. Destacou a fundamental importncia da educao na manuteno
da dignidade da condio humana que requer o equilbrio entre essas foras
constitucionais do humano. Advertiu para o cuidado necessrio contra o
fundamentalismo de qualquer tipo. Abordou a importncia equnime da arte,
da religio, da filosofia e da cincia na constituio do conhecimento para que
este possa resgatar uma viso csmica.
No perodo da tarde, o grupo discutiu as teses que sero encaminhadas ao VII
Congresso Nacional da Psicologia, concluindo que as teses que esto em curso
so ainda vlidas para a prxima gesto.
Concluo este relato com a prece guarani feita na abertura dos trabalhos:
Nhanderu Tenonde
Oikua maway
Nhamandu jexaka reae
Oguero porandu
Jaguata agu mombyry
Jaguata agu mombyry
Que nosso Deus, o primeiro
com Sua sabedoria
e com os raios do sol,
nos Ilumine
para caminharmos longe
35
apre
sen
ta
o
36
man
ifes
ta
es d
e li
der
ana
s in
dg
enas
37
man
ifes
ta
es d
e li
der
ana
s in
dg
enas
introduo
Os depoimentos apresentados a seguir foram colhidos durante os
eventos promovidos pelo CRP SP no perodo abordado por este livro. As
manifestaes das lideranas foram gravadas, transcritas, editadas de
maneira a destacar trechos mais significativos e posteriormente revisadas
pelos seus autores. Exceo ao primeiro trecho deste captulo, que j foi
produzido na forma escrita por ocasio da palestra proferida pelo autor em
um dos primeiros eventos. Nos casos em que o autor participou de mais
de um evento, reunimos seus depoimentos no mesmo tpico de forma a
apresentar o conjunto dos seus posicionamentos.
Trata-se de um material muito rico e relevante, pois retrata a viso de lideranas
de diversas etnias e regies do estado de So Paulo com relao aos problemas
enfrentados hoje pelas comunidades, os principais desafios e possibilidades de
atuao para os psiclogos. Em sntese, configura-se como um bom ponto de
partida para uma aproximao da Psicologia a esse campo.
Eurico Loureno SenaIndgena da etnia baniwa (alto Rio Negro, AM), bacharel em Filosofia e Teologia, cursa
Direito; coordenador do Centro de Estudos Avanados das Naes Indgenas NEAI
(SP); gestor da Comisso Intersecretarial de Monitoramento e Gesto da Diversidade
(Secretaria do Trabalho, SP); membro da Associao Indgena do Mrito Rio Negro
ACMIRN; membro do Ncleo de Estudos Jurdicos do Indgena (Unisal, SP).
A funo social das reservas indgenasAps a materializao, solidificao do Estado brasileiro e passado o projeto
integracionista em relao aos povos autctones, houve necessidade de delimitar
o que se poderia definir como rea pertencente a esses povos. Isso tudo por uma
forma de limitar uma rea, onde se sabia que havia povos clamados silvcolas,
que no tinham um grande significado para os governantes. Por isso, essa rea
era apenas uma forma de identific-los sem uma poltica social adequada.
Aps um perodo de tempo, com o avano da cultura canavieira e da soja, e com
o surgimento da ilustre Transamaznica proposta pelo governo brasileiro para
povoamento da Amaznia, d-se incio disputa por terras. At ento as reas
indgenas eram insignificantes, pois no tinham um valor comercial e scio-
38
man
ifes
ta
es d
e li
der
ana
s in
dg
enas
ambiental que agora passaram a ser significado de terra indgena, trazendo
com isso a nova categoria de indgenas donos de terras.
Atualmente, aqui no Brasil quando se fala em Terras Indgenas, tem-se claramente
a definio e alguns conceitos jurdicos contemplados na Constituio Federal
de 1988 e tambm na legislao especfica, o Estatuto do ndio (Lei 6.001/73).
A Constituio de 1988 consagrou o princpio de que ns indgenas
somos os primeiros e naturais senhores da terra. Esta a fonte primria
do nosso direito, que anterior a qualquer outro. Consequentemente, o
direito da comunidade indgena a uma rea determinada independe de
reconhecimento formal.
A definio de terras tradicionalmente ocupadas por ns indgenas encontra-
se no pargrafo primeiro do artigo 231 da Constituio Federal, que diz: so
aquelas por eles habitadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios ao
seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradies.
No artigo 20 est estabelecido que essas terras so bens da Unio, sendo
reconhecidos aos ndios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
No obstante, por fora da Carta Magna, o Poder Pblico est obrigado a
promover tal reconhecimento. Sempre que uma comunidade indgena
ocupar determinada rea nos moldes do artigo 231, o Estado ter que
delimit-la e realizar a demarcao fsica dos seus limites. A prpria
Constituio estabeleceu um prazo para a demarcao de todas as Terras
Indgenas (TIs): 5 de outubro de 1993. Contudo, isso no ocorreu, e as TIs
no Brasil encontram-se em diferentes situaes jurdicas.
A partir desta nova concepo das terras indgenas, agora reservas indgenas,
vale ressaltar que a concepo de reserva uma condio sine qua non na
vida social indgena, no que diz respeito preservao ambiental e no que
tange ao usufruto equilibrado e sustentvel nos moldes culturais prprios.
Enquanto que no Direito Ambiental, tem-se atualmente grande relevncia
desta terminologia, as comunidades indgenas j tinham um relacionamento
sustentvel com o meio ambiente.
A partir disso tem-se a dimenso da importncia das reas indgenas, no
que diz respeito preservao ambiental e ao uso equilibrado, que tem uma
grande importncia hoje, quando se reporta necessidade de preservar e
viver de forma sustentvel.
Com isso, as reservas indgenas extrapolam os limites da delimitao
39
man
ifes
ta
es d
e li
der
ana
s in
dg
enas
territorial, cumprindo um papel social fundamental para toda populao,
pois essas so parte de um patrimnio nacional e ainda oferecem um
usufruto equilibrado da fauna e da flora.
Atualmente, com a corrida desesperada ante o aquecimento global, sobressai o
valor e a colaborao das comunidades nativas para a ao social planetria, no
tocante preservao ambiental.
Sobre essa funo social, a Constituio Federal categrica, quando
diz no Art. 186: A funo social cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critrios e graus de exigncia estabelecidos em lei, aos seguintes
requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao do meio
ambiente.
Assim, pela realidade da maioria das reservas j demarcadas no Brasil, as
reservas indgenas so as mais preservadas no que diz respeito ao meio
ambiente, recursos naturais e biodiversidade, como por exemplo as reservas
do Xingu, que ficam isoladas pelas plantaes de soja e a do alto Rio Negro na
Amaznia, regio da maior biodiversidade do planeta. Por isso, conclui-se que
as reservas indgenas por si s tm uma funo social vital.
Integrao entre culturas para enfrentamento de problemas
Eu diria, na verdade, que ns no temos problemas, eu sempre falo nas
palestras que eu vou: Eu estou feliz, eu me sinto bem aqui com vocs. E venho
buscar isso, quero levar isso para eles entenderem nas comunidades indgenas
tambm. Ento eu acho que ns estamos no caminho certo, vamos chegar
a essa concluso de que ns estamos vivendo no ano de 2008, no podemos
viver nos anos 70 agora. Temos que conviver com os nossos problemas e criar
solues para enfrent-los. Estamos aqui fazendo isso, ento eu no posso
lamentar, tenho que agradecer a vocs.
Concepo de doenaA primeira coisa quando chegar em uma comunidade indgena, deve-se
dizer: qual a concepo de doena? Como que vou conceber essa doena?
Sempre quando eu converso com a minha me, ela fala assim: Algum, o
Curupira ou alguma coisa, fez um sopro e est doendo aqui no ombro ou
40
man
ifes
ta
es d
e li
der
ana
s in
dg
enas
estou sentindo uma dor aqui..., entendeu? A, vem o mdico. E eu tenho
que dizer, que convenc-la primeiro e dizer, No, isso uma doena que
por causa disso e daquilo, uma gastrite e tudo mais. Mas, antes de chegar
ao mdico eu preciso fazer uma interveno cultural. E isso ns sabemos
que a nossa, digamos, medicina tradicional.
Ser ou no ser ndio?Estatuto do ndio diz que se voc sair da aldeia, voc no mais ndio.
Eu fico brincando com eles ento que uma hora eu sou ndio, uma hora
eu no sou, uma hora eu sou ndio, uma hora eu no sou. Parece que eu
estou brincando de ser e no ser ndio. Enquanto que na verdade no existe
isso, se voc vai para os Estados Unidos, voc brasileiro l e aqui, no
importa... Eu tenho que me sentir bem trabalhando aqui numa empresa
como consultor de marketing e me sentir bem l na comunidade indgena,
pescando, flechando, comendo peixe assado. Eu sou eu mesmo.
Eu acho que esse colquio est trazendo questes importantssimas para ns
que estamos trabalhando, ns que estamos sempre ativos nas comunidades
indgenas, percebendo essas necessidades. Nas comunidades, quando o
menino tem uma educao que est totalmente ocidentalizada, ento
natural, normal que comece a adquirir novas culturas, novas formaes,
novas formas de ser. E quem vai me ajudar a... no deixar de ser ndio,
mas fazer essa passagem para uma outra cultura, tentar fazer essa viagem
do tipo transitar por duas culturas, quem vai me ajudar a fazer isso?
Suicdio entre indgenas: um problema queprecisa de estudo
Para ns
Top Related