PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DO SAMBA:
DO LARGO DA PRAINHA À PEDRA DO SAL - RIO DE JANEIRO/RJ
RODRIGUES, Helena V. de C.
SILVOSO, Marcos M.
SANTOS, Maria Júlia
Mestranda em Projeto e Patrimônio – FAU/UFRJ
Introdução
O samba, expressão cultural e parte essencial entre os elementos que definem a metrópole
do Rio de Janeiro, tornou-se oficialmente Patrimônio Imaterial nacional em 2007. Com
propósito de incentivar a celebração e memória do samba, este artigo apresenta uma
reflexão sobre sua preservação, a partir de uma proposta de intervenção urbana,
requalificação de espaços livres e a conexão de um conjunto de sobrados no Largo São
Francisco da Prainha com a Pedra do Sal.
Inicia-se a análise a partir da necessidade de preservação do patrimônio construído
composto por um conjunto de cinco sobrados ecléticos datados de 1902 (Figura 1), no
Largo São Francisco da Prainha, ao sopé do Morro da Conceição, situado no bairro da
Saúde, Região Portuária do Rio de Janeiro.
Figura 1: Conjunto de sobrados ecléticos
Fonte: Arquivo pessoal, setembro de 2020
Quatro desses sobrados foram ocupados irregularmente por anos. Dois deles sofreram
desabamento em outubro de 2012, após intervenção indevida na fachada para abertura de
vão. Com a fragilidade e vulnerabilidade das edificações, em agosto de 2020 um terceiro
sobrado, lambeu em chamas, restando apenas a fachada.
Todos encontram-se interditados pela Defesa Civil. Ou seja, dos cinco sobrados, apenas
dois se mantêm de pé. Desses, um alugado desde 2012 sediando o tradicional restaurante
Angu do Gomes e outro, outrora ocupado irregularmente como casa de cômodos, hoje
também abriga um restaurante. Os imóveis fazem parte de um conjunto de edificações
pertencentes à VOT – Venerável Ordem Terceira – irmandade católica proprietária de
cerca de 400 terrenos e prédios na região central da cidade, envolvida numa soma de
dívidas e que praticamente se absteve dos cuidados de seus imóveis, propiciando a
precariedade e o abandono das edificações.
O conjunto está localizado na região conhecida como Pequena África (CORRÊA, 2016),
sítio do Quilombo Urbano da Pedra do Sal – reconhecido pela Fundação Cultural
Palmares (nº de processo: 54180.001957/2005-44, Portaria nº02/2006,) e decretado
Patrimônio Imaterial pelo IRPH – Instituto Rio Patrimônio da Humanidade – em 2018, e
encontra-se em processo de demarcação pelos órgãos competentes, mas descendentes dos
escravizados ainda lutam na justiça pelo direito à propriedade dos imóveis do sítio.
A poucos metros, se localiza o marco histórico da Pedra do Sal. Tombada pelo INEPAC
– Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - em 1984, é um testemunho da africanidade
brasileira. Lá se instalaram os primeiros negros que chegavam cativos, pelo Cais do
Valongo, ou os que chegavam tão debilitados e por isso desvalorizados, que eram
largados ali. Desta forma, uma grande comunidade negra se formou no bairro da Saúde.
A evolução da área
O bairro da Saúde, assim como os demais bairros do entorno, guardava as operações
portuárias, como o desembarque e armazenamento de mercadorias, mas também as
atividades de uma cidade escravocrata. Além de receber os cativos, abrigava
equipamentos urbanos como a forca. Ocupações que estigmatizaram o bairro por muitos
anos, provocando seu abandono.
Em 1831 o mercado de escravos fora desativado e a Saúde passou a ter sua orla repleta
de trapiches. No início dos anos 1900, na Reforma Pereira Passos, a região ganhou o
formato atual (Figura 2). A antiga orla fora aterrada e o novo porto construído. Com o
destaque nacional do Porto de Santos e o governo local voltando-se em direção à Zona
Sul, a Região Portuária perde sua vitalidade de polo econômico urbano.
Figura 2: Evolução urbana da área. A área circulada representa o Largo da Prainha, enquanto a área tracejada a poligonal proposta.
Fonte: MATTOS, Guilherme Meirelles Mesquita de. Desenhando a História Urbana do Rio - A Evolução da Forma Urbana do
Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Trabalho Final de Graduação. Niterói, Edição Revisada (2011, p. 16, 26, 36, 51, 64 e 79)
Edições gráficas realizadas pela autora.
A área ficou esquecida por anos e o Morro da Conceição se tornou uma espécie de ilha.
Um bairro absolutamente residencial adjacente ao centro financeiro da capital,
sobrevivendo ao rolo compressor da especulação imobiliária por todos esses anos e
mantendo de forma natural seu aspecto socioeconômico e características arquitetônicas
das edificações, até a criação da APAC-SAGAS – Área de Proteção Ambiental e Cultural
dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo - em 1988, que, enfim, preserva mais de
1.500 imóveis e tomba outros 50.
Outro fator que causou o isolamento da região foi a criação, na década de 1960, do
Elevado da Perimetral, que ligava o Aeroporto Santos Dumont à Avenida Brasil. A
demolição do Elevado em 2013 foi a última reforma urbanística de grande impacto
realizada na cidade, para os Jogos Olímpicos de 2016. Tal reforma voltou os olhos da
cidade para a região negligenciada por anos, mas a crise econômica que assolou o país
impediu a tão desejada recuperação.
Significado do local na cultura afro-brasileira
Quatro locais merecem destaque: o Cais do Valongo, uma importante área da diáspora
africana na América, por onde chegaram cerca de um milhão de escravos, o Cemitério
dos Pretos Novos, para onde eram levados os corpos dos cativos que não aguentavam a
travessia do Atlântico, a Praça dos Estivadores, onde aconteciam os leilões de escravos,
e a Pedra do Sal, local de trabalho e de abrigo de negros cativos ou libertos.
A Pedra do Sal tem um forte significado na história da cidade como local de referência
da cultura afro-brasileira desde a época do Brasil Colônia. Os negros chegavam para
abastecer o mercado de escravos no estado e construíram os primeiros quilombos urbanos
na cidade. O local permanece na memória da comunidade a partir dos acontecimentos lá
ocorridos, vividos ou transmitidos pelos antepassados. Tal memória, conforme definido
por Pollak, pode ser considerada como quase que herdada.
“Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou
coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em
segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de "vividos por tabela",
ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa
se sente pertencer." (POLLAK, 1989. apud Monique Augras. Edição de Dora
Rocha. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.)
Desta forma é atribuído o valor histórico-cultural da Pedra do Sal como local de
rememoração, celebração de cultos religiosos e festividades. Esse patrimônio material e
imaterial reforça o conceito da identidade social da comunidade e o seu papel na história
escrita e oral. É notória uma disputa de poder entre os oprimidos e os opressores em
relação às memórias que serão transmitidas às futuras gerações:
“Se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros,
isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos
sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos
políticos diversos.” (POLLAK, 1989. apud Monique Augras. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.)
Em decorrência das imposições da classe economicamente dominante, os locais sagrados
dos povos oprimidos são preteridos e muitas vezes destruídos como demonstração de
força. No caso da Pedra do Sal, seu entorno, que deveria ter sido preservado como
ambiência de bem tombado, não foi respeitado quando autorizaram a construção de
edifício de 13 pavimentos colado à rocha. A volumetria imposta rompe a ambiência
original e estabelece nova relação de escala. Embora o local ainda não fosse tombado, o
seu valor cultural já era reconhecido e lamentavelmente não foi considerado.
No Brasil, o conceito de preservação de entorno de bem tombado segue a legislação de
1937 e as recomendações internacionais, que proíbem construções que impeçam ou
reduzam a visibilidade do bem tombado sob pena de demolição e multa (MOTTA;
THOMPSON, 2010).
Segundo Lia Motta (MOTTA; THOMPSON, 2010) o conceito de entorno de bem tombado
era disputado em batalhas judiciais nos primórdios do IPHAN – Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Ao longo dos anos, com o aprimoramento dos estudos do
tema, a preservação passa a ser tratada como política urbana e somente a partir da década
de 1980 os processos passam a ser parte da rotina da instituição. Portanto, até essa data,
muitos bens e seus entornos deixaram de ser protegidos, ficando à mercê da especulação
imobiliária, ou outros interesses da classe dominante.
Sobre a Pedra do Sal, por se tratar de bem relacionado com a cultura afro-brasileira,
notadamente discriminada na história, o tombamento foi realizado tardiamente
prejudicando a preservação do entorno, hoje parcialmente descaracterizado.
A poligonal selecionada e as áreas de preservação
Inicialmente foi pensada uma poligonal (Figura 3) como proposta de área de estudo,
passando pela análise morfológica e pelo exame da dinâmica existente entre ela, o Largo
da Prainha e a Pedra do Sal, valorizando a história do bairro portuário, a memória de seus
habitantes e os espaços ligados à origem do samba.
Legenda:
Figura 3: Poligonal de estudo proposta
Imagem: Google Earth, com edição da autora
Obras de reforma urbana tentaram apagar o passado escravocrata da então capital do país:
a Rua Camerino fora alargada e ganhou um Jardim Suspenso com a justificativa de
embelezar e higienizar a cidade. O Cais do Valongo, findado o tráfico negreiro, foi
aterrado para dar lugar ao Cais da Imperatriz. A Pedra do Sal, local sagrado para os
negros, já afastada do mar, perde espaço com a construção do edifício colado à rocha.
A escolha do traçado da poligonal levou em consideração um trecho urbano que engloba
boa parte das referências às raízes do samba. Tendo como objeto de estudo deste artigo o
Samba Urbano Carioca e suas origens, a escolha naturalmente era em direção aos sítios
da diáspora africana no Rio, como o Cais do Valongo e a Praça dos Estivadores.
A poligonal está inserida em duas importantes Áreas de Preservação. A APAC - SAGAS
- Área de Proteção Ambiental e Cultural dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo –
oficializada 1988, e a Zona de Amortecimento do Sítio Arqueológico Cais do Valongo,
reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO - Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - em 2017.
A primeira tem o objetivo de preservar a imagem cultural da cidade, garantindo sua
memória urbana. Já a segunda visa abranger todo o mecanismo de recepção do tráfico
negreiro, como mercado, cemitério e até logradouros marcados pela ocupação dos cativos
e seus descendentes, no sistema escravagista.
O conjunto arquitetônico característico da região é formado basicamente por construções
ecléticas, do final do século XIX e início do século XX, principalmente por sobrados de
2 ou 3 pavimentos.
Em 2017, após o reconhecimento pela UNESCO, o Sítio Arqueológico Cais do Valongo,
delimita sua área de amortecimento, o que insere o estudo de caso deste artigo, em uma
nova área de preservação.
Espaços livres e bens tombados
Definida a poligonal de estudo, o próximo passo é identificar os espaços livres possíveis
para criação de propostas de intervenção que os conecte e que os articule. Os espaços
livres de maior relevância são concentrados na encosta do Morro da Conceição, em
terrenos utilizados como estacionamentos, na Rua Sacadura Cabral e Avenida Venezuela
além do Cais do Valongo. Com pouca arborização, quase limitada ao jardim do
Observatório do Valongo, tornando os demais espaços livres inóspitos no verão carioca.
O Largo São Francisco da Prainha se tornou uma praça de passagem. A presença do
restaurante Angu do Gomes, que avança com mesas pelo Largo, confere certa vida ao
local. A Rua São Francisco da Prainha atrai grande número de pessoas, pelos eventos na
Pedra do Sal, com as tradicionais Rodas de Samba.
A grande maioria das edificações existentes é preservada, além da demarcação
quilombola realizada pelo INCRA, (Figura 4). Local de extrema importância histórica
para o país e para a humanidade. Abriga o cais que mais recebeu escravizados no mundo
e o único do qual se tem registro que se manteve razoavelmente preservado, apesar da
tentativa de apagamento histórico. Ainda que tenha recebido muitos investimentos nos
últimos anos, é uma área esquecida pela sociedade e poder público. Algo incompatível
com sua relevância.
Figura 4: Bens Tombados Fonte: Base Cadastral Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro;
Imagem: Google Earth, com edição da autora
Logo, o primeiro espaço livre escolhido é a própria Pedra do Sal, que após sucessivos
aterros, perde sua essência fundamental, o contato com a água, que tinha não apenas
função de trabalho para os negros, mas também função religiosa com rituais sacros feitos
no encontro com as águas da Baía de Guanabara. Hoje, praticamente engolida pela
presença de uma edificação de 13 pavimentos (Figura 5) construída em cima de parte da
Pedra, uma estrutura absolutamente destoante de toda a ambiência, transformando-se
numa muralha do ponto de vista de quem se encontra na escada esculpida na rocha anos
atrás, a Pedra do Sal resiste.
Figura 5: Pedra do Sal
Fonte: Arquivo pessoal, setembro de 2020
Originalmente batizada de Pedra da Prainha, a Pedra do Sal ganhou novo nome dado seu
caráter de ocupação comercial: o armazenamento e venda do sal descarregado pelos
escravizados que trabalhavam nos trapiches da região. A comunidade negra, cativa ou
liberta, criou raízes na Pedra, onde as primeiras roças de candomblé se fixaram, tornando
o espaço um local de rituais sagrados. Contudo, era ainda um sítio de divertimento, pois
são nas Roças de Candomblé que se origina o samba, fazendo da Pedra do Sal o berço do
samba urbano carioca, um ambiente de residência e resistência desde o início de sua
ocupação.
À época do tombamento tardio da Pedra do Sal na década de 80, a obstrução em forma
de edifício já existia. Esse fato, do racismo estrutural, nos faz refletir sobre a possível
razão da existência desta edificação neste local. Sua presença desproporcional esconde o
monumento, sufoca o pequeno largo remanescente, como um marco opressor do hábito
arraigado de ignorar a existência do sagrado afro-brasileiro.
Estudar o samba, inclui necessariamente abordar suas raízes, o surgimento do ritmo
musical que nasce intimamente ligado à religiosidade afro-brasileira como samba de
prato-e-faca até se tornar a maior festa popular do mundo. E é essa a conexão que será
proposta entre a Pedra do Sal e o Largo São Francisco da Prainha, o segundo espaço livre
escolhido: o patrimônio cultural da cidade.
No sopé do Morro da Conceição, adjacente à Igreja de São Francisco da Prainha, o Largo
(Figura 6), que fora batizado com o mesmo nome da igreja, também fez parte do desenho
da orla do bairro, assim como a Pedra do Sal. Sua relevância é dada pela ocupação
permanente, enquanto território negro, pertencente ao sítio do Quilombo Urbano da Pedra
do Sal, como apresentado no começo deste artigo.
Figura 6: Largo São Francisco da Prainha
Fonte: Arquivo pessoal, setembro de 2020
No centro do Largo, uma estátua representa a primeira bailarina negra do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, Mercedes Baptista. As edificações que o margeiam são
típicas do sítio. Sobrados ecléticos geminados, de dois ou três pavimentos, com sistema
construtivo em alvenaria autoportante, de cantaria e tijolo maciço.
O Largo, uma grande área livre, poderia servir de lazer aos moradores do Morro da
Conceição, acabou se tornando um caminho de passagem para a Pedra do Sal.
Propostas de intervenção
O prédio abandonado adjacente à Pedra do Sal é um obstáculo aos espaços livres viáveis
na área. Apesar de se tratar de um elemento opressor construído em solo sagrado, é
necessária uma visão mais ampla e reconhecer que a cidade carece de moradia, com
muitas pessoas em situação de rua, tornando sua demolição contraindicada. Pesavento
coloca a questão da renovação e reabilitação da cidade, contextualizadas no tempo e
espaço, como um ato de cidadania e um direito de todos.
“O presente da cidade é o momento no espaço onde se reabilita o passado da urbs,
material e imaterial, para que nela as pessoas se reconheçam e identifiquem,
ancorando suas referências de memória e história. Mas o presente das cidades é
também aquele tempo onde se pensa o futuro, se articulam planos e projetos de
renovação do espaço, em antecipação de um outro tempo ainda a realizar-se. Renovar
e reabilitar, jogando, desde o presente, as dimensões do passado e do futuro de uma
cidade, seria uma outra forma de exercer a cidadania, entendendo que habitar a cidade
implica dotar seus habitantes deste direito de usufruir vários tempos.” (PESAVENTO,
2005)
Respeitando essa realidade, a proposta é mais restrita: a abertura para a rua dos espaços
ocupados apenas pelos primeiros três ou quatro pavimentos da edificação, mantendo a
estrutura de sustentação dos andares. Os pavimentos restantes, reformados, poderão servir
de moradia popular, ou até mesmo ser incorporados ao Quilombo. Desta forma, cria-se
um amplo largo que restabelece a visibilidade da Pedra e é ampliada a área destinada aos
eventos culturais e religiosos.
O espaço, atualmente quente e sem sombra, totalmente ocupado pela construção, ganhará
uma praça coberta pela projeção do edifício, ampliando as possibilidades de eventos. A
obstrução se torna uma solução.
Para a empena criada, a proposta prevê um painel com a pintura de temas e personalidades
afrodescendentes que marcaram a vida, a política e cultura da cidade. Foi considerado
como exemplo um grande painel com a pintura Carnaval, de Heitor do Prazeres e a pintura
Candomblé, de Djanira da Mota e Silva os rostos de Zumbi dos Palmares, da vereadora
da cidade Marielle Franco - existentes hoje na parte da edificação que será demolida - e
ainda a imagem de Tia Ciata1. Está previsto um espaço em forma de anfiteatro através do
prolongamento dos degraus (em material diverso) que permite a utilização como assento
ou patamares de escada. No piso, hieróglifos que representam os Orixás - divindades
africanas cultuadas nas religiões afro-brasileiras - mais conhecidos do país. (Figura 7).
1 Personagem de grande relevância para a cultura e religiosidade afro-brasileira, Tia Ciata é a tia baiana mais
respeitada pela comunidade. Mãe de santo de uma das roças de candomblé da Pedra do Sal, é considerada a mãe do
samba. Heitor dos Prazeres, pintor e sambista, frequentador das rodas de samba no Terreiro de Tia Ciata. Zumbi dos
Palmares foi líder quilombola de maior relevância na história do país. É tido como símbolo na luta dos negros contra
a escravidão. Marielle Franco, elegeu-se vereadora do Rio de Janeiro para a legislatura de 2017-2020. Foi assassinada
barbaramente em 2018, tornando-se símbolo internacional na luta pelos direitos humanos. Djanira da Motta e Silva,
uma das principais artistas brasileiras, que apesar de grande devoção católica, reproduziu uma série de pinturas
inspiradas no Candomblé, tendo inclusive um mural de mesma temática exposto por anos no Salão Nobre do Palácio
do Planalto, em Brasília.
Figura 7: Projeto Proposto pela autora
Quanto à caixa de rua, a proposta é elevar seu nível até a calçada, formando um grande
calçadão e modificando o material do pavimento, hoje em paralelepípedo, para a pedra
portuguesa vermelha, salpicada pelas cores amarela, preta e branca. Neste momento é
preciso que se faça uma pausa para explicar a escolha deste calçamento.
O samba nasce na Pedra do Sal. De lá caminha em direção à Praça Onze e posteriormente,
com a linha férrea, vai para o subúrbio carioca, onde cria novas raízes. A carga afetiva da
memória coletiva defendida por Pollak, citado anteriormente, remete a uma releitura de
um elemento típico suburbano, para o exercício de integração de espaços livres proposto:
o piso de caquinhos vermelhos. Desta forma, é inserido um elemento que viria a ser
utilizado futuramente em bairros distantes da origem do samba, mas que ainda são
ambientes negros, periféricos e que ainda utilizam o samba como instrumento de
resistência cultural.
O piso de caquinhos inicia na Rua Argemiro Bulcão, passa pela Rua São Francisco da
Prainha, se estende até o segundo espaço livre projetado, o Largo São Francisco da
Prainha, e invade os sobrados que servem como Estudo de Caso. A ideia central do projeto
é a integração e continuidade entre o espaço público e o privado. Ou seja, levar parte da
rua para dentro das edificações e levar as atividades que acontecem dentro das
edificações, para a rua. A começar pela esplanada proposta lá na Pedra do Sal.
No Largo é proposto um platô, que além de possuir estrutura de banco, serve como palco
para eventos, que podem ser integrados aos sambas que acontecerão dentro dos sobrados.
Ao centro, a estátua de Mercedes Baptista será mantida. Faz-se necessário o plantio de
árvores frondosas no limite do Largo, divisa com as caixas de rolamento, adjacentes aos
bancos propostos. Desta forma, o espaço central continuará livre para eventos, mas será
possível que esse mesmo espaço seja utilizado no período diurno (Figura 8).
Figura 8: Projeto Proposto pela autora
Quanto aos sobrados, a ruína remanescente da fachada será consolidada. As principais
linhas de força do frontão serão reconstruídas, assim como o telhado, e internamente, o
novo salão de eventos ganhará escada para acesso ao patamar construído no nível original
do 2º pavimento, que se abre para a fachada.
Considerações finais
O projeto objetiva valorizar a cultura local com a requalificação do espaço buscando
simbolicamente superar o trauma dos tempos sombrios e olhando um futuro com a
esperança de tempos melhores.
Sabendo que, segundo os teóricos do restauro, os sobrados que compõem o Estudo de
Caso não correspondem a uma ruína, é preciso buscar bases para a construção da narrativa
a ser utilizada na consolidação da fachada arruinada, caso de fato se mantenha a opção
pela não reconstrução, optando pela manutenção da “ruga” no contexto urbano,
lembrando sempre o desfecho do abandono do patrimônio arquitetônico nacional. Ou
então optar pela reconstrução da fachada. Opção que seria mais naturalmente proposta
em projetos similares.
Quanto às propostas voltadas às áreas livres, as considerações são diferentes para cada
espaço: a Pedra do Sal é uma área livre confinada, escondida por uma estrutura que não
deveria estar ali. A demolição proposta, mesmo que parcial, cria mais um marco no sítio,
transformando uma obstrução em solução.
Já no Largo São Francisco da Prainha temos uma área ampla subutilizada, mas é assumido
o objetivo de torná-la um espaço para eventos, uma conexão entre a Pedra do Sal e os
sobrados estudados. É preciso ainda refletir sobre um tratamento original, que vá além do
calçamento contínuo, para a conexão desses dois espaços livres.
Referências
CORRÊA, Maíra Leal. Quilombo Pedra do Sal, Belo Horizonte: FAFICH, 2016.
Disponível em:
http://www.incra.gov.br/media/docs/quilombolas/memoria/pedra_do_sal.pdf. Acesso
em: 16 de agosto de 2020.
INCRA. Portaria nº 02/2006, de 20/01/2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13
de maio de 2019. Disponível em http://www.palmares.gov.br/wp-
content/uploads/2015/07/certificadas-13-05-2019.pdf. Acesso em: 25 de março de 2021.
IPHAN. Proposta de Inscrição do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo na Lista
do Patrimônio Mundial, 2016. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_Cais_do_Valongo_versao_
Portugues.pdf. Acesso em: 17 de agosto de 2020.
IRPH. Guia das APACs: SAGAS (Saúde, Gamboa e Santo Cristo) Entorno do Mosteiro
de São Bento. Rio de Janeiro: IRPH, 2012
MATTOS, Guilherme Meirelles Mesquita de. Desenhando a História Urbana do Rio
- A Evolução da Forma Urbana do Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Niterói:
Trabalho Final de Graduação, Escola de Arquitetura e Urbanismo - UFF. Edição
Revisada, 2011.
MOTTA, Lia; THOMPSON Analucia. Entorno de Bens Tombados. Rio de Janeiro:
IPHAN, 2010.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidade, Espaço e Tempo: Reflexões Sobre a Memória
e o Patrimônio Urbano. V. II, n°4. Pelotas: Editora da UFPEL, 2005.
POLLAK, Michael - Memória e Identidade Social - conferência transcrita e traduzida
por Monique Augras. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.
RIO DE JANEIRO. Decreto nº 7.351, de 14 janeiro de 1988.
SIGAUD, Márcia Frota; PINHO, Claudia Maria Madureira de. Morro da Conceição:
da memória o futuro. Rio de Janeiro: Sextante: Prefeitura, 2000.
Imagens que compõem a Figura 7
Autor Desconhecido. Marielle Franco. Disponível em www.guaja.cc. Acesso dia: 21
de novembro de 2020.
Autor Desconhecido. Tia Ciata. Disponível em hugoeniobraz.blogspot.com. Acesso dia
22 de novembro de 2020.
Autor Desconhecido. Zumbi dos Palmares. Disponível em www.todamateria.com.br.
Acesso dia 22 novembro de 2020.
PRAZERES, Heitor dos. Carnaval. Disponível em www.novaescola.org.br. Acesso
dia: 22 novembro de 2020.
SILVA, Djanira da Motta e. Candomblé. Disponível em fissuraa.files.wordpress.com.
Acesso dia: 22 de novembro de 2020.
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