Download - PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

Transcript
Page 1: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

1

PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL

(PARTE II)

Apostila para aula de filosofia medieval

Prof. Marcos Aurélio Fernandes

Fil-UnB

2017.1

A ESCOLÁSTICA

A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A

escolástica se difere da patrística por uma maior distinção entre fé e saber, filosofia e

teologia. A “escolástica” é a forma mais amadurecida do pensamento medieval no

mundo latino. Os períodos da escolástica são:

1. A pré-escolástica: a filosofia da época do renascimento carolíngio (séc. IX);

2. A escolástica nascente, que se desenvolve da primeira metade do século XI

até o fim do século XII;

3. A alta escolástica, que vai de 1200 até cerca de 1340 – o ápice da filosofia e

da teologia na idade média latina;

4. A escolástica tardia, de 1340 até o início do renascimento – um tempo de

estarrecimento do pensamento escolástico, de demolição, e de passagem

para o pensamento moderno.

Escolástica é o título que se emprega para o saber cultivado na “schola”. De

“schola” vem o título “scholasticus”.

É o termo que designava inicialmente qualquer

pessoa que ensinasse as septem artes liberales, as sete artes

liberais, herdadas do antigo sistema de ensino. São elas a

Page 2: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

2

gramática, a dialética, a retórica, que formam os três

primeiros caminhos, o trivium, da educação; enquanto a

aritmética, a geometria, a música e a astronomia compõem

os quatro outros caminhos da formação fundamental de

toda a idade média. São ensinadas desde Carlos Magno nas

escolas do palácio, das catedrais e dos conventos. Como os

mestres de todo ensino, seja do primeiro, do segundo ou do

terceiro grau, são quase sempre teólogos, o termo

scholasticus, na forma de doctores scholastici, foi sendo

transferido também para os professores e docentes de

teologia, chegando, por fim, a designar todos os que se

ocupavam com a scientia numa instituição de ensino. O

termo é uma latinização do grego skholastikos, cujo uso mais

antigo pode-se constatar numa carta de Teofrasto, sucessor

de Aristóteles, na direção do Perípato, escrita a seu discípulo

Fanias, conservada em parte por Diógenes Laércio, um

compilador do segundo século. O termo grego se deriva do

substantivo skholé, em alemão Schule, em inglês school, em

latim schola, nas neolatinas école, scola, escola, escuela.

Skholé, em grego, diz o ócio criativo de forças e valores

culturais, os latinos traduziram por otium, o ócio, e o

contrário a-skholé, por neg-otium, o não ócio. Assim, o

negócio, supõe que se suspenda a criação e a inventividade

cultural e se opere com os recursos já criados em condições

já dadas!

PRÉ-ESCOLÁSTICA: A FILOSOFIA DA ÉPOCA DO RENASCIMENTO CAROLÍNGIO (SÉC.

IX)

A escola romana, pública e laica, após as invasões bárbaras e a queda do Império

Romano do Ocidente (476), desapareceu nos primeiros decênios do século VI na Gália,

na Espanha e Itália, junto com a própria instituição do Estado tardo-antigo, imperial. Em

seu lugar organizou-se uma rede de escolas eclesiásticas, instaladas junto a mosteiros e

Page 3: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

3

catedrais. Sob a égide da Igreja foi definido o programa e os métodos de ensino a partir

da herança patrística. Depois de Agostinho e da queda do Império Romano do Ocidente,

os esforços dos doutos cristãos foi o de transmitir o legado da cultura greco-romana aos

povos dominadores, os germanos (francos, vândalos, alamanos, burgúndios, visigodos,

ostrogodos) chamados de “bárbaros”, antes de tudo, pelas Artes Liberais. O “De doctrina

Christiana”, de Agostinho, lançou o projeto do cultivo do saber na cristandade latina

medieval1. Depois da contribuição de Agostinho, a de Boécio, que era cristão laico, é a

que mais se destaca.

Com Cassiodoro (514-584)2 inaugura-se a época da produção cultural dos

mosteiros. No campo dos saberes se destacam, por este tempo, o bispo Isidoro de

1 Na concepção de Agostinho, o estudo das Artes Liberais (o trivium: gramática, dialética e retórica; e o quadrivium: geometria, astronomia, música e aritmética) ajudaria não somente a tornar o homem eloquentíssimo e doutíssimo (eloquentissimus et sapientissimus), segundo o projeto romano de formação (a Humanitas, versão romana da Paideia grega), mas também perfeito (perfectus), no sentido ético e religioso do cristianismo1. Com efeito, neste projeto cristão de saber, o cultivo das Artes Liberais constitui o mais elementar do “studium sapientiae” (estudo da sabedoria). Elas formam o degrau básico da formação do homem cristão, a filosofia seria o degrau intermediário e a “doctrina christiana” (“doutrina cristã”: estudo da “sacra pagina”, da Bíblia, o degrau superior). As Artes Liberais teriam um papel propedêutico para a filosofia. Elas ajudariam a fornecer “argumenta certíssima” (argumentos certíssimos) para quem se propõe a filosofar. Depois, serviriam para exercitar o “animus” (ânimo, espírito), no sentido da sua afinação (eruditio) e no sentido de torna-lo capaz de discernir as coisas mais sutis (ad subtiliora cernenda), pois teriam a capacidade de ajudar o estudante a passar das coisas corpóreas às incorpóreas, do temporal ao intemporal, do real ao ideal, da criatura ao Criador. O estudo das Artes Liberais e da Filosofia, porém, serviriam ao estudo da “Doctrina Christiana”, que partiria da investigação da Bíblia (os medievais falarão do estudo da “sacra pagina”) e que se dedicaria à compreensão dos dados da revelação divina contidos no livro sagrado do cristianismo, os artigos de fé confessados pela Igreja, segundo a sentença de Agostinho, que se tornou um mote para os medievais latinos: “credo ut intelligam” (creio para compreender). 2 Cassiodoro foi sucessor de Boécio como Mestre dos Ofícios no reinado de Teodorico. Este viveu no centro da tensão entre romanos, godos e bizantinos. Depois de ter vivido um tempo em Constantinopla, fundou na costa do mar Jônio, na Calábria, um mosteiro de nome “Vivarium”. No seu mosteiro, Cassiodoro criou uma biblioteca que no período final da Antiguidade Clássica pretendia colocar textos gregos à disposição de leitores latinos e preservar para a posteridade textos sagrados e profanos. Ali formou leitores, copistas e tradutores dos manuscritos gregos antigos. Dedicou-se também à história natural e à medicina. Seu projeto pedagógico se inspirou nas escolas de Alexandria e de Nísibe. Para guiar a leitura dos monges, Cassiodoro redigiu as suas Instituições das letras divinas e seculares (560-580). A filosofia era representada aí por uma divisão das ciências e por um resumo do Organon.

Page 4: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

4

Sevilha (560-633)3 e Beda, o Venerável (672/673-735)4. Desde o século VI, pois, até o

século XI o monaquismo foi o principal ambiente da transmissão cultural latina. A Igreja

se tornou, assim, através do monaquismo, a educadora do ocidente latino nos primeiros

séculos de Idade Média5.

O ocidente bárbaro é cristão e teólogo. Cristão, ele

vê a ascensão de um monarquismo específico. Teólogo, ele

desenvolve suas concepções trinitárias. Cristão e teólogo,

ele confia a monges o cuidado de produzir uma cultura que

tenha seus próprios objetivos, ritmos, tempos, ideais. Até o

ano mil, é o mundo da clausura que assegura, sozinho, a vida

do espírito, a manutenção da vida antiga e as indispensáveis

renovações6.

Estes monges, certamente, não intencionavam dedicar-se à filosofia como tal,

mas, ao tratarem de questões teológicas, tinham que se haver com a filosofia. Assim,

“estabeleceram as condições de uma prática filosófica propriamente ocidental”7.

O “renascimento carolíngio” trouxe consigo um novo impulso de estudos e de

pensamento na Alta Idade Média, incorporando mais fortemente o estudo da filosofia8.

3 A obra mais famosa de Isidoro chama-se “Etimologias”. É uma espécie de enciclopédia de saberes profanos e religiosos, dedicada ao rei visigodo Sisebut. Ele escreveu também um livro de “Sentenças”, manual de teologia dogmática, moral e espiritual. Isidoro procura escrever, nas “Etimologias” sobre as diferenças das palavras e as diferenças das coisas. Pressupõe que se conhece melhor a natureza de uma coisa quando se conhece melhor a natureza de seu nome. Ele detinha o conhecimento da gramática dos alexandrinos. Sua definição de “particípio” se tornou célebre posteriormente. Um particípio (participium) é aquilo que toma uma parte do nome e uma outra do verbo. É um particaptor (particapium). Nomeia um participador. Mas, o que é participar? Participare est partem capere: participar é tomar parte. 4 Beda escreveu um “Tratado da natureza”, inspirado na “História Natural” de Plínio. No campo da retórica, o seu tratado sobre os tropos (figuras do discurso) foi importante para a retórica medieval. 5 O monaquismo ocidental, então, se estruturou em torno de dois eixos. Um eixo é o da Gália (Lérins, Marselha, Arles), em que se destacam nomes como Honorato, João Cassiano, Cesário de Arles. No século VI surge, em Monte Cassino, a Regra de São Bento, mais comunitária e menos ascética, em que se impõe o “ora et labora” (ora e trabalha) como lema. O trabalho é tanto manual quanto intelectual. O papa Gregório Magno (590-604) irá disseminar a forma de vida da regra beneditina. O segundo eixo é irlandês. Patrício, com sua obra de evangelização da Irlanda, deixou um grande número de mosteiros. As comunidades monacais tinham até três escolas, em que se estudava letras latinas, poesia e direito irlandês. O irlandês Columbano (+615) fundou numerosos mosteiros, sobretudo na Gália e na Lombardia, que seguem uma regra mais ascética. 6 De Libera, A. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998, p. 264. 7 Idem, ibidem. 8 Os francos começam a se destacar no cenário do ocidente latino com Clóvis (466-511), o qual fundou a dinastia dos merovíngios, que governou por cerca de dois séculos, e foi o primeiro rei católico na nova era dos reinos bárbaros (que tendiam para o arianismo). Com Pepino, o Breve (714-768), que recebeu a

Page 5: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

5

O renascimento carolíngio foi basicamente uma reforma dos estudos das letras9. Entre

os letrados que circundavam a coorte carolíngia, na Escola do Palácio, destacaram-se

Alcuíno de York e Teodulfo (ou Eginardo). Alcuíno de York (730/735-804), saxão

originário da Bretanha, foi o regente da Escola do Palácio. A partir desta Escola se

estendeu toda uma rede de escolas catedrais, monásticas e presbiteriais. Um escrito de

Teodulfo incentiva os pais a confiarem seus filhos às escolas presbiterais (paroquiais).

Os padres deveriam prestar este serviço sem exigir paga por isto10. A filosofia, porém,

se manteve restrita à Escola do Palácio, dirigida à nobreza palaciana. Naquele tempo,

este foi um traço comum do ensino da filosofia, quer no mundo islâmico, quer no mundo

bizantino, quer no latino:

No final do século VIII e – sobretudo – no século IX,

a filosofia, onde quer que esteja, está sempre próxima do

poder. Ela tem necessidade dessa proximidade, dela

depende. Em Bagdad, ela é feita no ambiente dos califas. No

Império Bizantino, em Constantinopla no palácio da

Magnaura. No ocidente, na corte do soberano: primeiro com

Carlos Magno, depois com Carlos, o Calvo. É que a prática da

filosofia inscreve-se em uma política centralizada, não como

instrumento do poder central, mas como meio de edificação

dos dirigentes, particularmente do próprio soberano e do

pequeno número de seus familiares. O filósofo do século IX

não se dirige ao público, nem ao conjunto dos clérigos. O seu

interlocutor é o poder: o Príncipe. O imperador é o primeiro

estudante do Império11.

investidura do papa Zacarias, começa a emergir uma ideia imperial entre os francos. Esta ideia se afirma com o coroamento de Carlos Magno (742-814). O Império carolíngio, franco-romano-germânico, configurado a partir das conquistas de Carlos Magno sobre os saxões, os lombardos e os sarracenos, recobria, praticamente, a parte ocidental do Império Romano. A partir deste Império se constituiu, então, o que veio a se chamar, mais tarde, de “Sacro Império Romano Germânico”. Em 806, Carlos Magno dividiu o império entre seus três filhos. A Carlos Magno sucedeu o seu filho, Luís, o Pio. Após várias peripécias, o império acabou sendo partilhado entre os três netos (Tratado de Verdun), em 843, constituindo, assim, três reinos: França, Germânia, Lotaríngia. 9 A Idade Média conhecerá outros renascimentos, como o “bizantino”, promovido por Fócio (s. IX) e o “latino” (s. XII). 10 Cfr. De Libera, A. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998, p. 268. 11 Idem, p. 269.

Page 6: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

6

Este estudo, segundo Eginardo, consistia nas sete artes liberais (Trivium:

gramática, dialética e retórica; e Quadrivium: geometria, astronomia, música e

aritmética); e no estudo da doutrina cristã, em que sobressai Santo Agostinho. Carlos

Magno prezava, entre os escritos de Santo Agostinho, sobretudo o “De civitate Dei” (A

cidade de Deus).

A renascença carolíngia teve em Alcuíno de York (séc. VIII-IX) o seu principal

propulsor e em João Escoto Eriúgena ou Erígena (séc. IX) o seu pensador mais original.

Alcuíno escreveu um tratado de que unia uma iniciação à retórica e uma doutrina moral:

é o “De rhetorica et virtutibus” (Da retórica e das virtudes). Escreveu também textos

sobre as categorias em que recorre a conceitos semânticos fundamentais como

homonímia, sinonímia, paronímia. Escreveu também sobre a teologia da trindade,

inspirado em Agostinho. Alunos de Alcuíno foram Fredegísio de Tours12 e Hrabanus

Maurus13. No campo da teologia destacam-se ainda, neste tempo, Gotescalco de

Orbais, Hincmar de Reims e Pascásio Radberto.

Fredegísio de Tours

Fredegísio, em um escrito em forma de carta aos palacianos14, intitulado “De

nihilo et tenebris”. Depois da saudação, ele diz:

Ruminando-a comigo e nela labutando, por fim me

vi abordando a questão do nada, questão, que há muitíssimo

12 Fredegísio ou Fredegisus nasceu na Inglaterra no fim do século VIII. Foi discípulo de Alcuíno (ca 735-804), primeiro em York, depois quando da ida de Alcuíno para França na corte de Carlos Magno (742-814) seguiu-o e trabalhou com ele na schola palatiana, centro de estudos, ensino e pesquisa, fundado e mantido por Carlos Magno. Alcuíno tornou-se alma desse centro do estudo. Em 796 Alcuíno tornou-se abade do mosteiro de São Martinho em Tours, cuja escola conventual ele transformou num estabelecimento modelo de ensino. Após a morte de Alcuíno em 804, Fredegísio sucedeu-o tornando-se abade do mosteiro de São Martinho. E também atuou como ele, eficazmente no fomento dos estudos, ensino e pesquisa, florescentes no reino, deixado por Carlos Magno. Faleceu no ano de 834. 13 Rabano Mauro viveu de cerca de 780 a 856. Fundou uma escola no mosteiro de Fulda. Preocupou-se com a formação filosófica e teológica do clero, escrevendo um “De institutione clericorum”. Escreveu um texto “De universo” (Do universo) ou “De rerum naturis” (Das naturezas das coisas). Como teólogo, escreveu vários trabalhos exegéticos. 14 Entre os estudiosos da vida de Fredegísio, de modo geral é aceito que a carta foi escrita no tempo de sua estadia em Tours e de suas atividades no ensino. O título, mencionado por Fredegísio ele mesmo, indicando o grau de ordenação (diácono), poderia ser usado por ele, mesmo sendo abade.

Page 7: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

7

tempo, remexida por grande número de pessoas, delas foi

abandonada, sem ser discutida nem examinada, qual uma

questão impossível de ser explicada; uma vez quebrados os

nós rígidos nos quais ela parecia estar enredada, a

desembaracei e a libertei; dissipando a nebulosidade,

restituí-a à luz; providenciei também de confiá-la a todos os

séculos, da memória da posteridade, vindouros. A questão,

pois, é assim como segue: o nada é algo, ou não?

Se alguém diz que lhe parece que o nada é nada, então ele é constrangido a dizer

que o nada é, que é algo, é um, é um certo quê. Mas, se alguém diz que lhe parece que

o nada é nada e não algo, então esta tese deve ser examinada com a autoridade da

razão, que é receptiva à verdade, e com a autoridade da revelação, que é o firmamento

da autoridade da razão (o que lhe dá uma firmeza estável, imóvel).

Dois argumentos de razão partem dos nomes e dos seus significados:

Ajamos, assim, pela razão. Todo nome finito, pois,

significa algo, como p.ex., homem, pedra, madeira. Estes

nomes, portanto, lá onde forem ditos, simultaneamente, ao

mesmo tempo em que foram ditos, compreendemos as

coisas que eles significam. Assim, o nome homem, colocado

para além de qualquer diferença, designa a universalidade

dos homens. Pedra e madeira contêm de modo semelhante

a sua generalidade. Portanto, o nada se refere ao que (a + o

que) significa. Disso, também se prova que não pode não ser

algo. Igualmente, um outro argumento. Toda significação é

o que é. Nada, porém, significa algo. Portanto, o nada, a

significação dele é o que (o quê) é, isto é, da coisa existente.

Partindo, pois, do nome e da significação, quer como ato de significar, quer como

conteúdo significado, Fredegísio conclui que o nome “nada” nomeia algo de real, ou

seja, que o nada não é uma simples negação. Deve-se, portanto, atribuir ao nada um

ser.

Page 8: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

8

Estes medievais são estranhos: Boécio atribuía ao ser (esse) um ainda-não-ser

(nondum est), enquanto ainda não fosse o “isto que é” (id quod est). Agora vem

Fredegísio, atribuindo ao nada um ser! Será que ao ser pertence o nada e ao nada

pertence o ser? Aqui ficamos confusos, perplexos, diante da clareza da pretensa tese

parmenídea, de que ser é e nada não é! Mas talvez esta confusão ao menos faça-nos

sair de nossa pretensa clareza e começar a levar a sério a necessidade de colocar a

questão do nada como também a questão do ser!

Em seguida Fredegísio procura mostrar com argumentos da revelação que o

nada não somente é algo como também é um grande algo! A Igreja, diz ele, ensina a

doutrina da criação, recebida da revelação divina, contida nas Escrituras Sagradas. Assim

instruída nos arcanos dos mistérios, com fé inabalável ela confessa “que o poder divino

obrou terra, água, ar e fogo, também luz, e anjos e a alma do homem, do nada”. A

Sagrada Escritura fala do abismo (caos) e das trevas que cobriam o abismo. Então

Fredegísio procura mostrar que as trevas são e, do mesmo modo, o nada é. Mais uma

vez, é pelo caminho da linguagem que Fredegísio argumenta, recorrendo à natureza da

declaração afirmativa e da negação:

Quem diz que as trevas são, ele põe, constituindo a

coisa. Quem, porém, diz que as trevas não são, tira, negando

a coisa. Assim como quando dizemos que Homem é,

constituímos a coisa, i. é o Homem. Quando dizemos que o

Homem não é, retiramos a coisa, negando, i. é o Homem.

Pois, o verbo da substância tem isso na natureza de declarar

a sua substância a o que quer que seja, a que se acrescenta

o sujeito sem negação. Portanto, no que é dito, as trevas

eram sobre a face do abismo, a coisa é constituída, a qual

nenhuma negação separa, ou divide. Pois, as trevas é sujeito,

eram o declarativo. Declara, pois, predicando que as trevas

são de algum modo. Eis a autoridade, acompanhada pela

razão, razão que também confessa a autoridade; ambas

predicam uma mesma coisa, a saber, que as trevas são.

Seguem-se outros tantos exemplos tirados das Escrituras, evocados com o fim

de mostrar que as trevas são. A noite é, tal como o dia é. Na criação, Deus separa

Page 9: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

9

claridade e escuridão, e chama a claridade de dia e a escuridão de noite. “Se, pois, o

nome dia significa algo, o nome noite não pode não significar algo”. Se o Criador, com

sua autoridade, separou a luz e a escuridão, e nomeou a luz chamando-a de dia e a

escuridão, chamando-a de noite, então o nome noite significa algo, tanto quanto o

nome dia. E a autoridade do Criador não pode ser anulada. Segue uma reflexão sobre a

palavra do Criador e o ser das coisas:

O Criador, no entanto, imprimiu nomes às coisas,

que ele criou, para que toda a coisa dita por seu nome fosse

conhecida. E não formou nenhuma coisa sem vocábulo, nem

estatuiu vocábulo a não ser que algo a que o vocábulo foi

estatuído existisse. Se não fosse assim, de todo modo,

parece ser supérfluo, o que é nefasto dizer que Deus o fez.

Se, porém, é nefasto dizer que Deus estatuiu algo supérfluo,

o nome que Deus impôs às trevas, de modo algum pode ser

visto como supérfluo. Se, não é supérfluo, é conforme o

modo. Se, porém, é conforme o modo, é ela necessária,

porque para conhecer a coisa era necessário que ela fosse

significada por ele. Consta, portanto, que Deus constituiu as

coisas conforme o modo e os nomes que se são mutuamente

entre si, são necessários.

O nome dá a conhecer a coisa. É o caminho pelo qual se acede à coisa. O nome

não só denota alguma coisa. O nome nomeia, isto é, evoca, chama para a proximidade,

torna presente, de certo modo, a coisa. Assim, os nomes têm uma necessidade, que é

de evocar as coisas que nomeiam. Também o nome “nada”, como o nome “trevas”, não

são sem significação. Dão a conhecer alguma coisa, que, evoca, se nos apresenta. Mas,

assim como a realidade da luz é diversa da realidade da escuridão, isto é, a realidade do

dia é diversa da realidade da noite, assim também a vigência do ser é diversa da vigência

do nada.

E seguiram-se outros exemplos, todos tirados das Sagradas Escrituras, todos se

referindo às trevas. Os exemplos articulam as trevas com as categorias: As trevas são

um certo quê (substância): “enviou as suas trevas” (Sl 104); “Ele colocou as trevas como

seu esconderijo”... Posse: um salmo fala de “suas trevas” (Sl 138); Onde ou lugar: o

Page 10: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

10

evangelho fala de “trevas exteriores” (Mt 8, 12); Quando ou tempo: na narrativa da

paixão, diz que houve trevas da hora sexta à hora nona; Quantidade: “Se, a luz que está

em ti são escuras, quão grandes serão as próprias trevas” (Mt 6,23; Lc 11).

Vê-se, pois, que Fredegísio enfrenta uma questão fundamental da filosofia – a

do nada, que ao lado da questão do ser, são as questões mais importantes – recorrendo

a uma consideração da linguagem e também a uma análise categorial. Ele busca

argumentos da autoridade da razão e argumentos da autoridade da revelação, que, no

entanto, são submetidos a uma análise racional, fundamentadora. E termina dispondo-

se para o diálogo filosófico com os seus leitores:

Procurei, assim, escrever, essas poucas palavras,

endereçadas à vossa grandeza e prudência, recorrendo

simultaneamente tanto à razão como à autoridade. Tudo

isso para que, aderentes a elas de modo firme e inamovível,

possais não vos declinar da vereda da verdade por nenhuma

opinião falsa. Mas, se acaso, por quem quer que seja, for

pronunciado algo que dissentisse dessa nossa razão,

recorrendo a esta como a uma regra, possais expulsar de

suas sentenças as estultas maquinações.

Termina de trevas.

João Escoto Eriúgena

O verdadeiro renascimento se dá, no entanto, sob o reinado de Carlos II, o Calvo,

filho de Luís, o Pio, e rei da França de 840 a 875 e imperador de 875 a 877. Para a escola

palaciana atraiu o maior filósofo daquele tempo no mundo latino: João Escoto Eriúgena

(ou Erígena).

Page 11: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

11

Na Alta Idade Média, João Escoto Eriúgena, no século IX, foi o pensador que levou

à consumação a apropriação da cultura e do pensamento antigo por parte do mundo

latino, apropriação que começara com Boécio. Ele é o maior nome da época do

renascimento carolíngio.

Nas pegadas do Pseudo-Dionísio Areopagita

Foi como filósofo, e não tanto como teólogo, que João Escoto Eriúgena (c. 810 –

c. 877) entrou para a história do pensamento medieval. Seus grandes feitos foram,

primeiro, ter dado entrada no mundo latino, à tradição grega que se refaz a Gregório de

Nissa, Dionísio Areopagita e Máximo, o Confessor (580-662); segundo, ter apresentado

uma concepção do Todo da realidade, na sua obra prima De divisione naturae (Da

divisão da natureza), muito mais elevada no domínio da linguagem e do pensamento,

do que toda outra obra de seu tempo, no mundo latino15.

A divisão da natureza

A obra prima de Eriúgena, escrita na forma de diálogo entre um nutritor

(nutridor, professor) e de um alumnus (pupilo, aluno), traz em seu título a língua grega

e latina, sinal de que o pensador pensa em latim, mas a partir da língua grega. O título

está assim formulado: Peri physeos merismou id est De divisione naturae. Peri physeos

15 Johannes Scotus Eriugena: assim era o seu nome para os medievais. Na literatura atual, ele é chamado ora de Erígena, ora de Eriúgena. O seu nome diz a sua origem: Scotus significa que vem da Escócia; Eriúgena, ou Erígena, que ele vem da Irlanda (Eire, em irlandês). Esta combinação – Scotus Eriugena – se explica pelo fato de a Irlanda ser chamada, naquele tempo, de Scotia Maior (Escócia Maior). Sua atividade, porém, se dá na França, em Paris, sob o governo de Carlos, o Calvo. O conhecimento da língua grega o permitiu traduzir os escritos de Gregório de Nissa, Dionísio Areopagita e Máximo, o Confessor. Já havia uma tradução das obras de Dionísio, feita por Hilduíno, abade do mosteiro de São Dionísio, no tempo do Imperador Luís, o Pio, mas esta era ininteligível. Por isso, Carlos, o Calvo, recomendou a Eriúgena que fizesse outra. Eriúgena não estudou somente os escritos de Dionísio, mas também os de seu principal herdeiro no oriente, Máximo, o Confessor. Máximo tinha dado prosseguimento à doutrina de Dionísio, tornando-a um pouco mais acomodada aos moldes da ortodoxia. No centro de sua obra está a tese sobre a encarnação, muito apreciada no oriente, a saber, de que Deus se fez homem para que o homem fosse feito Deus. Trata-se da theosis (deificação) do homem, que é a consumação da criação, o retorno de todas as coisas a Deus. Como o homem é microcosmo (um cosmo em miniatura), ao se unir ao homem Deus une-se a todo o cosmo e, quando o homem é deificado, com ele todo o universo é também deificado: Deus se torna tudo em todas as coisas.

Page 12: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

12

merismou é a expressão grega, que Eriúgena repete, em língua latina, depois de um id

est (isto é): De divisione naturae. Objeto da investigação é, portanto, o tema mais antigo

da filosofia: a Physis, o que os latinos traduziram por Natura. Ambas as palavras

nomeiam não a natureza no sentido parcial das ciências naturais, mas a natureza em

sentido filosófico: o ser, sendo como a totalidade do ente, ou seja, de tudo aquilo que

é. A palavra grega, physis, dá a entender a experiência do ser como surgimento (phyo =

surgir, brotar, nascer). De modo análogo, a palavra latina, natura, significa a experiência

do nascer (nasci = nascer, vir à luz). Natureza é o vigor de ser como surgimento e

nascimento, como irrupção no claro, como vir à luz. A obra trata, pois, do ser em sua

originariedade e de suas “divisões”.

A palavra divisio (divisão) tem um sentido próprio no contexto do

neoplatonismo. Não tem o sentido classificatório que damos ao termo. Não somos nós

que dividimos a natureza, mas a natureza mesma que se “divide”. Por sua vez, divisão

(divisio) não tem o sentido de partir, mas sim o sentido de fazer-se ver (visio = visão). O

ser originário se faz ver em diferentes espécies. Espécie significa, aqui, o modo como

algo se faz ver, como se ele se dá à visão (aspectus), melhor, a forma, o contorno, o

brilho e esplendor de ser (speciosus = formoso, brilhante). No contexto neoplatônico,

divisio (divisão) corresponde à analysis: o modo como o Uno se desdobra e se articula

em uma multiplicidade. É movimento de exitus (saída do Uno) e de descensus (descida).

Assim acontece, por exemplo, na dinâmica dos universais: o movimento de

aparecimento dos entes vai se dando do generalissimum (o mais geral) ao

specialissimum (o mais especial). Para a concepção neoplatônica, gênero é o elemento

gerador, originário (genus = nascimento, origem, estirpe, linhagem, o momento de uma

genealogia); espécie (species) é a forma e o esplendor do que é gerado. O movimento

de desdobramento do uno ao múltiplo vai do generalíssimo ao especialíssimo e, uma

vez alcançada a espécie última, a multiplicação se finaliza como multiplicação de

indivíduos. Individuum é aquilo dividido (divisum) ao extremo e que não é mais divisível

(indivisum).

O contrário da divisio (divisão) é a resolutio (literalmente: desligamento; em

sentido figurado, porém: a dissolução ou dissipação, no caso, do múltiplo), isto é,

quando o múltiplo se desfaz, pelo seu retorno ao uno. O caminho de ascensão (ascensus)

Page 13: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

13

e retorno (reditus), que vai do múltiplo ao uno, parte do indivíduo e das múltiplas

espécies e chega ao generalíssimo (o ser como substância). A divisão da natureza,

porém, não se dá segundo a dinâmica de gêneros e espécies, mas se dá de modo

transcendental, pois o que nela se faz ver ultrapassa todo o criado e a própria categoria

de substância. Refere-se à dinâmica de desdobramento do ser em sentido

transcendental e não do ser em sentido categorial (substância = ser em si).

As divisões da natureza não constituem partes de um todo, mas manifestações

diversas do Todo. Divisio (divisão) é o ato pelo qual a “Natureza”, melhor, o Todo, o

Absoluto, a plenitude originária e una do ser, que nós chamamos de Deus, se desdobra,

melhor, se comunica, se faz visível. Ela é teofania: divina apparitio (Da divisão da

Natureza III 19). As quatro divisões da Natureza são, pois, destinações do Todo, são

momentos de uma história do ser, cuja origem e fim se encontram na eternidade.

Torna-se me visível que a divisão da natureza através de quatro diferenças

recebe quatro espécies: das quais a primeira está naquela que cria e não é criada; a

segunda, naquela que é criada e cria; a terceira, naquela que é criada e não cria; e a

quarta, naquela que nem cria nem é criada (Da divisão da Natureza I 1).

1. A primeira aparição do ser se dá naquela natureza que não é criada e

cria: Deus como causa creatrix (causa criadora). Deus é a essência-ente, possibilidade

real e realidade possibilitadora de tudo o que vem a ser, fundamento abissal de todas

as coisas. Pelo ato criador, ele comunica existência a tudo o mais. Enquanto ser

originário e pleno, Deus é tudo, é o Todo, o Uno, o absoluto, o eterno. Nada há fora dele.

2. A segunda aparição do ser se dá naquela natureza que é criada e que cria.

Trata-se, aqui, das causae primordiales (causas primordiais ou primeiras) de todas as

coisas, o que Platão chamou de ideias, as formas originárias ou arquétipos de todas as

coisas. Esta concepção, porém, em Eriúgena só se entende caso se tome como horizonte

a doutrina cristã trinitária, mais especificamente, a doutrina cristã do Logos-Filho de

Deus. Cada coisa, antes de ser em si mesma e no espaço-tempo do mundo, é em Deus,

como um pensamento e um desejo no espírito de Deus, ou melhor, no Filho de Deus. A

criação é um desdobramento e uma ressonância da geração do Filho. No Filho, o Pai se

diz. Nele, o Pai concebe e diz todas as coisas, por bem-querer, de modo absolutamente

Page 14: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

14

gratuito. Criação é comunicação do ser, comunicação que se dá por meio do Filho: a

Palavra (o Logos, o Verbo, a Sabedoria, a Arte) eterna do Pai. “No princípio Deus criou o

céu e a terra”, isto é, a totalidade dos entes. “No princípio”, isto é, na Palavra (Logos),

no Filho, que é coessencial e coeterno com Deus, o Pai. Por isso, criação tem um quê de

geração. O criado é cria de Deus, concebido, gestado e trazido à luz por Deus no Filho

de Deus, desde a eternidade. A natureza das coisas que estão na mente ou no espírito

divino é criada, mas é também criadora. A verdade de cada coisa do mundo consiste em

ela ser assim como era no pensamento de Deus. As ideias eternas das coisas são

arquétipos, formas formadoras, que determinam o modo de ser de cada coisa que vem

à luz no espaço-tempo do mundo.

3. A terceira aparição se dá naquela natureza que é criada, mas não é

criadora. Natureza naturada, não natureza naturante, para usar uma terminologia

análoga, presente na modernidade, desde Spinoza. Trata-se, aqui, da natureza do

mundo, estendida no espaço-tempo. O mundo surge do nada: do nada da receptividade

para o ser, denominado de materia prima (matéria primordial). “O mundo é, pois, feito

de matéria sem forma; matéria sem forma, totalmente, de nada; e, por isso, também o

mundo é feito totalmente de nada” (Da divisão da Natureza III 22). Cada coisa do mundo

é concreta. Isto quer dizer: ela se faz visível por meio de uma concreção (concretum:

particípio passado de concrescere = crescer junto, adensar, condensar). Os dois

elementos que entram na composição do concreto é a forma, elemento determinante

do modo de ser, e a matéria, princípio de receptividade, que se predispõe a ser. Só que,

agora, como matéria formada. O mundo criado é, neste sentido, a forma terminal do

processo criativo do ser. Por ser terminal, já não cria. É, no entanto, criado. Criar é, aqui,

dar existência, possibilitar subsistência e consistência de ser. O ser não é somente

essência, mas também existência. Existência significa a positividade de ser: de ser no

espaço-tempo do mundo, de ser em si (substância) e de ser relação com outras coisas,

de ter uma densidade e uma consistência de ser. Esta concepção de ser, de cunho

“existencial”, é nova em relação ao neoplatonismo, que entendia o ser de modo

essencialista.

4. A quarta aparição do ser se constitui na natureza não criada e que não

cria. É Deus como fim de todas as coisas, o Bem para o qual tudo tende e pende, como

Page 15: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

15

à sua consumação, perfeição e plenitude. Aqui se trata de Deus como a plenitude serena

em que todo o movimento criativo se aquieta e se silencia; o silêncio em que a sinfonia

da criação se recolhe. A primeira e a quarta divisões, portanto, correspondem a Deus

como o princípio e o fim de todas as coisas, alfa e ômega de tudo. Nas palavras do

próprio Eriúgena:

E, pois, a primeira e a quarta são um, porque elas são

inteligíveis somente a respeito e a partir de Deus; é ele, pois,

o princípio de todas as coisas que são dadas com ele, dele a

partir de si, e é o fim de todas as coisas, que o apetecem,

para que nele se aquietem eterna e imutavelmente (Da

divisão da Natureza II 2 – tradução nossa). (Apud ÜBERWEG

& HEINZE, 1927, p. 174).

O fim de tudo é o retorno (reditus), a reversão (reversio) para Deus. É o

recolhimento do múltiplo no Uno. Na consumação de todas as coisas, Deus é tudo em

tudo. Escutemos as próprias palavras de Eriúgena. Ele diz que, neste estágio, Deus

... já deixou de criar, uma vez que todas as coisas

estão convertidas para dentro de suas razões eternas nas

quais permanecerão e permanecem, desistindo também de

serem chamadas pelo nome de criaturas; Deus, pois será

tudo em tudo, e toda a criatura será obumbrada, uma vez

que foi convertida para dentro de Deus, como os astros ao

surgir do sol (Da divisão da Natureza III 23). (Apud ÜBERWEG

& HEINZE, 1927, p. 174).

Deus e as criaturas

A imensa intimidade entre Deus e a criatura que se apresenta nessa concepção

de Eriúgena levantou suspeitas, ao longo da história, de panteísmo. Contudo, há

panteísmo onde o Deus em questão não é tomado como ser pessoal e onde o ato criador

é encarado como simples emanação e não como um ato livre e gratuito de amor. Não é

o caso de Eriúgena. Apesar das ressonâncias neoplatônicas, o seu pensamento é

Page 16: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

16

fundamentalmente cristão. O horizonte de sentido de sua exposição é o mistério

trinitário. A processão do universo a partir de Deus se dá por meio do Filho. É o Espírito

Santo que vivifica todas as coisas. É por meio da deificação do homem que o universo

retorna para Deus e nele se aquieta. O homem é criado de tal maneira, que nele todas

as coisas estão contidas. Ele é o microcosmo, por ser o elo que liga as duas extremidades

criaturais: o mundo do espírito e o mundo do corpo, o inteligível e o sensível. A queda

do homem é a queda do universo. A salvação do homem é a própria salvação do

universo. Ao unir-se ao homem, na encarnação, Deus se une ao próprio universo. A

intimidade que existe entre Deus e a criatura é uma intimidade da relação paternal-filial

e mesmo da relação esponsal. A deificação não é uma eliminação do humano no

homem, mas a sua plena consumação, pois o homem já fora criado à imagem e

semelhança de Deus. A reversão e resolução de todas as coisas em Deus não é a

supressão da individualidade, mas a sua consumação (cfr. Da Divisão da Natureza V 8-

13).

Não há confusão entre Deus e a criatura. “Conquanto, Deus não é o todo da

criatura, nem a criatura parte de Deus, assim do mesmo modo, a criatura não é o todo

de Deus, nem Deus, parte da criatura” (Da divisão da Natureza II 1) (Apud ÜBERWEG &

HEINZE, 1927, p. 174). Entretanto, há absoluta intimidade e proximidade entre Deus e a

criatura, uma plena identificação, o que só se torna possível a partir de uma admirável

condescendência amorosa por parte de Deus, pois, ao criar, Deus se faz, de certa

maneira, “criado”, isto é, renunciando-se à sua absoluteza, Deus se dispõe a entrar no

horizonte do ser criatural, a se relacionar com a criatura no plano de ser dela mesma:

Nada, pois, subsiste fora dela (da natureza divina).

Conclui-se que somente ela, verdadeira e propriamente, é

em todas as coisas e nada verdadeira e propriamente é, que

não seja ela. Assim, não devemos compreendê-las como

duas coisas distantes, Senhor e criatura, mas como um e o

mesmo. Pois, tanto a criatura é subsistente em Deus, quanto

Deus de modo admirável e inefável é criado na criatura,

manifestando-se a si mesmo; invisível, fazendo-se visível;

incompreensível, fazendo-se compreensível; oculto,

fazendo-se aberto; incógnito, fazendo-se conhecido; carente

Page 17: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

17

de forma e aspecto, fazendo-se formoso e especioso; sendo

supra-essencial, fazendo-se essencial; e sendo supra-

natural, fazendo-se natural (...); em todas as coisas criando,

faz-se criado em todas as coisas; sendo feitor de todas as

coisas, torna-se feito em todas as coisas. (Da Divisão da

Natureza III 17) (Apud ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 173).

A condescendência de Deus não depõe contra a sua transcendência, antes a

atesta e corrobora. De uma maneira dialética, porém, pela via negativa, é preciso

reafirmar a transcendência de Deus. Eriúgena o faz, ao modo de Dionísio. A via negativa

leva a intuir Deus como não criado nem criador. Mas, agora, de um modo todo especial.

Deus é agora intuído não como princípio nem como fim de todas as coisas; não mais

como ser nem como natureza, nem como essência nem como ente; mas como o que

transcende tudo isso, como “super-essencial”. Essentia est, affirmatio; essentia non est,

abdicatio; superessentialis est, affirmatio simul et negatio (É essência, afirmação; não é

essência, abdicação; é super-essencial, afirmação e, simultaneamente, negação) (Da

divisão da Natureza I 16). A via negativa é via de abdicação. É renunciando a Deus que

o homem intui algo do mistério de Deus, não como criador, princípio e fim da criatura,

mas como Deus mesmo, na sua Deidade. Em sua Deidade, Deus se dá como silêncio.

Aqui todo o afirmar e negar se recolhe. Como o que transcende todo o ser, toda a

essência e natureza, todo o ente e existente, Deus pode ser chamado de Nada?

Ser e nada

Eriúgena faz uma investigação sobre os modos em que nós falamos de ser e de

nada (ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 170-171). Há pelos menos cinco modos de

interpretar o ser e o nada, ou melhor, aquelas coisas que são (ea quae sunt) e aquelas

que não são (ea quae non sunt). Tudo depende, do ponto de vista semântico, do sentido

que a cópula est (é) ou non est (não é) recebe na proposição.

1. Num primeiro sentido, dizemos que é àquilo que se faz conhecer

diretamente, por meio da experiência sensível. Neste sentido Deus nada é,

mas não somente Deus. Também a essência de cada coisa e as ideias ou

razões eternas das coisas na mente de Deus nada são. Nós não conhecemos

Page 18: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

18

o que a coisa é (sua essência), mas apenas que ela é (sua existência). De sua

essência nós só temos um conhecimento indireto, oblíquo, por via dos

acidentes, ou melhor, dos atributos e propriedades, sendo algumas mais

características e substanciais do que as outras. Do mesmo modo, Deus e as

ideias são por nós pensados, mas não conhecidos, se por conhecimento

entendermos aquilo que se dá de modo sensível. Neste primeiro sentido,

pois, o que é metafísico é um nada.

2. Em segundo lugar, na ordem do criado, diz-se que é a tudo aquilo que se deixa

apreender num determinado nível, que não é, a tudo o que transcende esse

nível, estando num nível superior. A cada vez, o superior é um nada em

relação ao inferior, que não o apreende. O vegetal nada é para o mineral; o

animal, nada é para o vegetal; a alma intelectiva nada é para o animal (alma

sensitiva); o anjo nada é para o homem. Nada é, aqui, designação para

transcendência, superação no ser, superioridade de ser.

3. Em terceiro lugar, chamamos de nada àquilo que é apenas potencial, ao que

ainda não é, ao que ainda não se realizou: como a semente nada é em relação

à árvore.

4. Em quarto lugar, chamamos de nada àquilo que é corporal, pois surge e

perece, isto é, passa do não-ser para o ser e do ser para o não-ser, aparece e

desaparece.

5. Em quinto lugar, num sentido moral, chamamos de nada ao pecado, pois é

um dano à imagem e semelhança de Deus no homem. Desta exposição

podemos inferir que Deus pode ser chamado de “nada” à medida que este

nome designa sua transcendência superessencial, ou seja, à medida que ele

transcende todo o ser, toda a essência e natureza, todo o ente e existente, à

medida que ele é intuído como sendo unicamente ele mesmo, absoluto, isto

é, solto de toda relação com a criatura, nem como princípio nem como fim

de todas as coisas.

Page 19: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

19

Por causa das suspeitas de panteísmo, o pensamento de Eriúgena foi prejudicado

em sua recepção no pensamento medieval. Muitas vezes sua influência foi implícita e

tácita. Há um grande número de manuscritos de suas obras, o que atesta que ele foi

muito lido na Idade Média. Citam-no autores como Berengário de Tours, Isaac de Stella

e Alano de Lila. Honório Augustodunense, na primeira metade do século XII, recorre

amplamente ao seu pensamento em sua obra intitulada “Clavis physicae” (A chave da

física). O que prejudicou bastante a leitura do Da divisão da Natureza foi a interpretação

panteísta dada por Amalrico de Bena e pelos amalricianos. Este ensinou abertamente a

identidade de Deus e da criatura. Para ele, Deus é a essência e a forma de toda a criatura.

Tudo é um e este Um é Deus. Os amalricianos, por sua vez, ensinavam que Deus atua

em nós o querer e o agir e que, por conseguinte, não havia nenhuma diferença entre

bem e mal, entre mérito e culpa. Diziam ainda que o Pai se encarnou em Abraão e nos

patriarcas; que o Filho se encarnou em Jesus Cristo; e que o Espírito Santo se encarnara

neles, os amalricianos, para suprimir a Igreja e instituir um reino de conhecimento e de

amor. Quem traz em si o amor está no céu. Não há, de fato, nem céu nem inferno. Vê-

se que a sutil relação de identidade e diferença que existe no pensamento de Eriúgena

cede lugar, no caso dos amalricianos, a uma concepção grosseira, onde a identidade

perde toda tensão dialética e todo o tom de encontro pessoal com Deus e a identificação

se torna crassa confusão. Por causa de tudo isso, a leitura do Da divisão da natureza foi

proibida pelo concílio de Paris em 1210 e esta decisão foi ratificada quinze anos depois

pelo papa Honório III. Apesar disso, admiradores de Dionísio no século XIII, como Alberto

Magno, Tomás de Aquino, e os franciscanos citaram Eriúgena como o “comentador” de

Dionísio. João Gerson e Nicolau de Cusa, no fim da Idade Média, também o têm como

um dos seus autores favoritos.

Page 20: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

20

A ESCOLÁSTICA NASCENTE

O século X foi um século de consolidação do projeto de Estado e de civilização,

começado com Carlos Magno. A França é o centro da Europa. Do ponto de vista religioso,

um fato que marca a história é a fundação da Abadia de Cluny. As reformas monásticas

vão se seguindo, no século XI, com uma renovação feita pelos beneditinos, com o

apogeu de Cluny e com o surgimento de novas ordens, como os cartuxos (1084) e os

cistercienses (1098).

Os anos 1000 são para a cristandade medieval o auge do regime feudal, baseado

fundamentalmente nos laços de vassalagem. Do ponto de vista político, emerge o

protagonismo da França, liderada por reis da dinastia capetíngia: Henrique I (1031-

1060) e Filipe I (1060-1108). Neste tempo, Paris se torna a capital da França; antes, a

capital dos francos era Aquisgrana. Também se assiste a uma expansão da dominação

normanda na Itália e na Inglaterra. O século XI é o século das maiores confrontações

violentas entre a cristandade e o Islã, com a reconquista espanhola promovida por

Afonso VI (tomadas de Valência e Toledo) e com a Primeira Cruzada ao oriente, que

levou à tomadas de Antioquia (1098), de Edessa e de Jerusalém (1099). Ainda no plano

político, acontece a “guerra das investiduras” episcopais, travada entre o papa (Nicolau

II e Gregório VII) e o imperador da Alemanha (Henrique IV). Este conflito, porém, só vai

terminar com a concordata de Worms (1122), ficando decidido que a investidura

temporal – pelos quais os bispos são investidos como senhores dos feudos episcopais –

é feita pelo Imperador e a investidura espiritual – pelos quais os bispos são nomeados

como autoridades eclesiásticas nas dioceses – é feita pelo Papa. No campo cultural, o

século XI é o auge da arte românica.

Para compreender o pensamento medieval, é preciso intuir o espírito do tempo

que constitui o seu “medium”, o seu elemento e atmosfera. Por sua vez, para intuir este

espírito, nada melhor do que considerar a arte, pois esta dá materialidade plástica e

visibilidade a todo um modo de ser histórico, ou seja, a toda uma ideia de civilização e

cultura. Por isso, vamos partir da consideração da arte românica, para entender o

pensamento dos séculos XI e XII.

Page 21: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

21

O românico

O românico é um estilo artístico de arte, reconhecível especialmente nas artes

figurativas – arquitetura, escultura e pintura –, cuja vigência pode ser datada dos

primeiros dois séculos do segundo milênio (séculos XI e XII). É irrupção, na história, de

algo original em arte, que espelha algo de original também na cultura e no espírito do

tempo. Poder-se-ia dizer que este algo de original emerge do encontro de dois mundos:

o romano e o germânico, daí o nome “românico” (usado pela primeira vez em 1824 pelo

arqueólogo francês De Caumont). Contudo, esta arte integra também elementos

bizantinos, armênios e islâmicos. Mas, enquanto algo de original, ela não é a simples

soma ou mescla destes elementos, mas é algo mais. Poder-se-ia identificar este estilo

pelas suas características, mas as características por si só não fazem um estilo. Elas

precisam de uma ideia central que as vivifique num todo único e original. Se tomarmos

a arquitetura como exemplo privilegiado, talvez possamos intuir os contornos deste

estilo, seus traços essenciais e a ideia central que vivifica este todo. Em primeiro lugar,

a igreja é o edifício onde este estilo se deixa mostrar mais caracteristicamente. Ela é uma

evolução e uma transformação da basílica romana, só que configurada em forma de

cruz. Ela é a concreção da ideia de “Cidade de Deus” (Civitas Dei). Trata-se de uma ideia

universalizada e espiritualidade de “civitas” (cidade, Estado), um arquétipo ideal, que a

Igreja e o Estado medievais tentam reproduzir no real. Em segundo lugar, a cobertura

do edifício se faz mediante a construção de abóbadas, isto é, de estruturas curvilíneas

de pedra; sendo que os arcos se constituem em elementos característicos. Em terceiro

lugar, são construções articuladas e maciças, com fortes efeitos de claro-escuro e luzes

radiantes que penetram a partir de escassas e estreitas aberturas. Em quarto lugar, a

subordinação das outras artes à arquitetura: pintura, escultura e mosaico.

Do ponto de vista estilístico, o edifício é uma síntese de arcos. A superfície curva

recebe um peso na sua parte mais alta e o transmite à sua parte mais baixa. Pequenas

partes de pedra estão em equilíbrio, cada uma recebendo um impulso daquela que lhe

é superior e transmitindo este mesmo impulso àquela que lhe é inferior. O impulso que

vem do alto, porém, finalmente se descarrega sobre os apoios, que recebem, por sua

vez, um impulso lateral, que tende a voltar-se para fora. Portanto, o que caracteriza o

Page 22: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

22

todo é precisamente o mútuo e férreo jogo de impulsos e contra-impulsos gerado pela

abóbada, isto é, pela força que vem do alto.

A igreja românica, na verdade, dá expressão figurativa ao espírito de seu tempo

(séculos XI e XII). A ideia central que move tudo é a da “Civitas Dei”: a cidade de Deus. A

igreja românica não é somente um templo, ela é a imagem do mundo, do universo

estruturado a partir da cruz. Toma-se a basílica romana e se o reconstrói segundo a

forma da cruz. Trata-se de uma imagem paradoxal, uma conjunção de opostos: cidade

e cruz. O crucificado é alguém que morre fora da cidade, expulso, excluído como

malfeitor. É imagem da impotência. A cidade é uma imagem de poder. A basílica é um

edifício imperial (basileia = reino, império). Mas, agora, a cruz é o que lhe estrutura e

configura. A Cidade de Deus é a ideia de uma ordem civilizatória, constituída a partir da

cruz, isto é, da fé cristã, a mesma fé que era dos excluídos, dos escravos, dos

marginalizados do império romano. A Igreja e o Estado, na Idade Média, tentam

construir esta ordem civilizatória. A Igreja Romana e o Império Carolíngio se unem em

vista deste projeto.

A cultura românica é uma expressão de sua construção. A igreja românica não é

somente um templo, a morada de Deus, mas é também expressão ideal de um mundo,

de uma ordem que aspira à universalidade. Na fachada da Igreja Românica, em forma

de escultura, pode-se ver o Cristo que domina desde o alto, como o “Senhor” e “Juiz”

universal. Os Apóstolos são seus ministros, os evangelhos, sua lei. O seu Reino é do alto.

Os justos são os cidadãos desta cidade, que é denominada de “Jerusalém”, que, segundo

uma etimologia medieval, significa “visão de paz”. Os cidadãos desta construção, que

compõem a “comunhão dos santos”, estão unidos uns aos outros como pedras vivas,

que se sustentam mutuamente, recebendo e transmitindo o impulso que recebem do

alto. A construção espiritual que resulta daí é maciça, tem o peso, a densidade e a

consistência da pedra.

Algumas abóbadas típicas das igrejas românicas são formadas como arcos que

se cruzam. É a conjunção de opostos: o círculo e a cruz. O círculo significa plenitude da

vida, unidade, eternidade; a cruz, quebra, divisão, tempo: vida que vem da morte,

unidade que se conquista a partir da decisão (corte, ruptura, quebra), eternidade que

se decide a partir do tempo. Dentro da igreja românica vigora o claro-escuro: a

Page 23: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

23

penumbra da fé, que é iluminação e obscuridade, ao mesmo tempo. A luz penetra a

partir do alto, através de estreitas aberturas, cujos vitrais são de acabamento rústico. A

luz da verdade vem do alto, da revelação divina, e entra no mundo humano através de

estreitas aberturas, as do intelecto, cuja transparência é sempre rústica, diante da

luminosidade sutil e esplendorosa do divino. Esta é a imagem ideal que a cristandade

medieval procura reproduzir no real da história.

Se a arquitetura românica, que recolhe em si a escultura e a pintura, dão

concreção plástica e visibilidade ao espírito do tempo na pedra, a literatura faz o mesmo

na palavra poética. É neste século que surge a mais famosa canção de gesta da Idade

Média: a “Canção de Rolando”. Escrita por um anônimo, em francês antigo, a canção

celebra de modo poético e lendário, os feitos heroicos de Rolando, ou Orlando,

apresentado como sobrinho de Carlos Magno. A história tem um fim trágico, pois

Rolando, que liderava a retaguarda do exército de Carlos Magno, é morto pelos

sarracenos, graças à traição de seu genro, Ganelão, perto de Roncesvales (Navarra,

Espanha). Carlos Magno, então, vinga a morte de Rolando vencendo, junto ao rio Ebro,

a luta contra os sarracenos, liderados pelo emir da Babilônia. Embora o poema épico

tenha um núcleo histórico, relacionado com uma batalha de Carlos Magno contra bascos

cristãos, em Roncesvales, no ano de 778, ele reflete muito mais o espírito cavalheiresco

daquele tempo e o confronto com o Islã. O poema era recitado para os cavaleiros que

partiam para as cruzadas e também para os peregrinos que faziam o Caminho de

Santiago de Compostela, os quais tinham que passar por regiões próximas aos domínios

dos muçulmanos.

O pensamento dos séculos XI e XII só pode ser compreendido a partir deste

horizonte, que é configurado pelo espírito do tempo.

A filosofia no século XI

O século X é um século obscuro na história da filosofia. Após Eriúgena, o

pensamento se cala. Eriúgena parece ter sido a última ressonância da antiguidade na

Idade Média. A filosofia antiga, que tinha começado com os poemas sobre a “Physis”

Page 24: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

24

termina com um tratado sobre a “divisão” da physis (Natureza). Há uma certa

continuidade, de Parmênides a Eriúgena. Entre Eriúgena e Anselmo, o maior

representante do pensamento no século XI, há o silêncio, um hiato que separa dois

mundos. Eriúgena é a consumação do pensamento antigo na Idade Média, Anselmo, a

abertura de um novo pensamento, de um pensar original, que vai ganhando forma e

densidade no século XII e que rebenta no século XIII.

A QUESTÃO DA DIALÉTICA E DE SUA RELAÇÃO COM A TEOLOGIA. O PROBLEMA

DA ONIPOTÊNCIA DIVINA E DE SUA RELAÇÃO COM O PRINCÍPIO DE NÃO CONTRADIÇÃO

O contexto filosófico-teológico dos séculos X e XI é dominado pela questão do

estatuto da dialética, de sua relação com a teologia e da sua aplicabilidade nas

controvérsias teológicas, como as da eucaristia, da predestinação e da onipotência

divina. Ora, já Agostinho tinha considerado a dialética a arte das artes, a disciplina das

disciplinas, porque ensinava a ensinar e a aprender, isto é, ela não somente quer tornar

o homem ciente como também o torna. Alguns, porém, exaltaram tanto a dialética que

a colocaram acima da própria fé.

No século X, dois nomes se destacam: Gerberto de Aurillac e Fulberto de

Chartres. Gerberto de Aurillac, que se tornara o papa Silvestre II (1003), procurou aplicar

a arte da dialética à teologia, especialmente nas discussões sobre a eucaristia. Ele tinha

uma concepção realística da dialética, semelhante à concepção de Eriúgena. A dialética

é arte da “divisio” e da “resolutio”: ela divide os gêneros em espécies e reconduz as

espécies à unidade do gênero (dividit genera in species et species in genera resolvit). Ela

não tem sua origem em construções fictícias (machinationes) da mente humana, mas

sua origem é o próprio Deus, o autor de todas as coisas, em cuja mente estão as leis da

natureza das coisas e as leis de todas as artes. Os sábios não produzem a dialética como

uma ficção pura e simples da mente humana. Eles a “inventam”, no sentido medieval

do verbo “inventar”, que significa encontrar, achar algo que já estava ali, mas que estava

despercebido (invenire). Fulberto de Chartres (960-1028) aplicou a dialética na teologia,

mas salientou também os seus limites. A altíssima sabedoria dos desígnios divinos não

Page 25: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

25

pode ser compreendida com os recursos da razão humana. Os mistérios divinos se

abrem aos olhos da fé e não às humanas disputas da razão. A estes dois nomes podemos

acrescentar um terceiro: Abão de Fleury (945-1004), que redescobriu os textos lógicos

de Boécio e providenciou para que o conhecimento aí veiculado pudesse ser transmitido

de maneira didática.

No século XI, os grandes entusiastas da dialética eram chamados de philosophi

(filósofos), sophistae (sofistas), peripatetici (peripatéticos). Anselmo de Besate, também

chamado de Anselmo Peripatético, foi um mestre que procurou cultivar a dialética pela

dialética, sem conexão com a teologia. Outros, porém, postularam uma aplicação

decisiva da dialética ao campo teológico. Acreditavam que a razão podia tudo e que

estaria acima da autoridade da Bíblia e dos Padres da Igreja. Queriam, pois, submeter a

teologia à dialética. Berengário de Tours (1005-1088) é o principal representante desta

tendência racionalista. No contexto das controvérsias sobre a eucaristia, afirmou que o

pão e o vinho não mudavam de essência ou natureza, mas que a presença de Cristo se

dava apenas por um sentido espiritual (intelectual), constituído pelos fiéis. Do lado

contrário, ouve uma reação de tipo fideísta, advinda sobretudo dos círculos dos

mosteiros reformados. Assim, Geraldo de Czanád (+ 1046), que tinha sido grande mestre

da dialética, se converteu, se tornou monge camaldulense, e a partir de então afirmava:

Pedro, João, Tiago e Paulo são mais do que Aristóteles e Platão. Sua oposição, porém,

não era tão forte como a de Pedro Damião (1007-1072). Dedicou grande parte de sua

vida à ascese monástica e à reforma eclesiástica. Participou das controvérsias sobre a

onipotência divina em relação ao princípio de não contradição. A pergunta que se

colocava nesta controvérsia era se Deus pode fazer que o que aconteceu não tenha

acontecido. Por exemplo, a fundação da cidade de Roma. Deus pode fazer que, uma vez

fundada Roma, Roma não tenha sido fundada? Segundo seu parecer, Deus não se

submete a nenhuma regra, pois está acima de tudo. Logo, não se submete nem mesmo

ao princípio de não contradição. Também o princípio de não contradição não constitui

um limite para a onipotência divina. Ele vale para a lógica e para o que está submetido

às leis da natureza (na natureza nem tudo está submetido a leis). A dialética não está

acima da teologia, mas é sua serva (ancilla).

Page 26: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

26

O problema da onipotência divina e do princípio de não contradição prosseguiu

nos séculos futuros da Idade Média. Gilberto Porretano, Pedro Lombardo e Guilherme

de Auxerre se colocaram do lado de Pedro Damião. Anselmo da Cantuária e Honório

Augustodunense, porém, ficaram contra ele. O princípio de não contradição não pode

ser abolido: nem mesmo Deus poderia fazer que o que aconteceu não tivesse

acontecido. No entanto, para Anselmo, a razão disso está na própria vontade de Deus,

em sua vontade de verdade. Hugo de São Vitor, por sua vez, diz claramente que Deus

não pode fazer o que é logicamente impossível. Do mesmo parecer são Boaventura e

Tomás de Aquino. Este último diz: sub omnipotentia dei non cadit aliquid, quod

contradictionem implicat (sob a onipotência de Deus não cai aquilo que implica

contradição) (Suma Teológica I, q. 25 a. 4).

Numa posição intermédia, entre Berengário e Pedro Damião, está Lanfranco de

Pádua (c. 1010-1089). Lanfranco foi um célebre mestre da dialética que também entrou

para a vida monástica. No mosteiro, trocou a dialética pela teologia. Lutou

energicamente com Berengário na controvérsia sobre a eucaristia. Para ele, a teologia

não se fundava sobre a arte da razão, mas sobre as autoridades da fé: a Escritura e os

Padres da Igreja. Quando se trata dos mistérios da fé, como é o caso da eucaristia, a

investigação da razão é impotente. Entretanto, Lanfranco não combatia o uso da

dialética em si mesma, mas o seu abuso. Não existe um abismo entre a dialética e a

teologia. Aluno e herdeiro de Lanfranco foi, então, o mais célebre pensador do século

XI: Anselmo de Cantuária.

ANSELMO DE CANTUÁRIA (1033/34? -1109)

Anselmo nasceu em Aosta, no Piemonte (Itália), entrou para o mosteiro de Bec,

na Normandia (França), onde foi aluno de Lanfranco, e se tornou, desde 1093 até a sua

morte, arcebispo de Cantuária (Canterbury, Inglaterra).

Um feito importante de Anselmo foi a união de lógica e gramática, em sua obra

De Grammatico (Do gramático). Nesta obra, Anselmo une a semântica de Aristóteles

com a gramática de Prisciano, elaborando uma teoria da significação e da denominação.

Page 27: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

27

Esta teoria parte do problema da paronímia. Paronímia (Parônymía) é a característica

de uma palavra que deriva de outra, ou seja, que recebe de outro a sua denominação,

como gramático vem de gramática, e corajoso de coragem, segundo os exemplos dados

por Aristóteles no primeiro capítulo das Categorias. O problema que Anselmo se põe é

como “gramático” pode ser, ao mesmo tempo, uma qualidade e uma substância. A

palavra “gramático” é um nome que recebe sua denominação de “gramática”. Portanto,

a ela se atribui a paronímia. Trata-se de um nome ambíguo. “Gramático” significa,

propriamente, isto é, “per se”, um acidente, mais claramente, uma qualidade, a saber,

“conhecedor da gramática”. Mas, de uma maneira indeterminada, esta expressão

remete a uma substância, isto é, a um indivíduo que tem esta qualidade: a de ser

conhecedor de gramática. “Gramático”, portanto, significa “per aliud” (por outro), isto

é, de maneira indireta, uma substância: este homem, que tem a qualidade de ser

conhecedor de gramática. O termo “homem” denomina e significa direta, principal e

propriamente a substância: este indivíduo. Já o termo “gramático” é ambíguo: por um

lado, denomina a substância significando-a de modo indireto e indeterminado (per

aliud): designa um indivíduo, que é conhecedor de gramática; por outro lado, o termo

“gramático” recebe a sua denominação de “gramática” e significa “per se”, isto é, por si

mesmo, um acidente, isto é, uma qualidade: conhecedor de gramática.

A partir desta teoria da denominação e significação, Anselmo aplica à gramática

as categorias da ontologia aristotélica. Parte do seguinte estado de coisas: o

conhecimento da gramática não é essencial ao homem, embora seja essencial ao

gramático. Todo homem pode entender a linguagem sem precisar da gramática; mas

nenhum gramático pode expor uma compreensão da linguagem sem a formação própria

da gramática. Os conceitos de “gramático” e de “homem” são diferentes. “Homem”

nomeia um “quid”, um determinado “quê”, uma substância. Designa uma substância

primeira (substantia prima) enquanto significa este homem, este indivíduo. Designa

uma substância segunda (substantia secunda) enquanto significa a espécie chamada

“homem”, a espécie humana. O nome “homem” é, por isso, chamado de substantivo.

“Gramático” nomeia, diretamente, um “quale”, uma qualidade. O nome “gramático” é,

por isso, um adjetivo. Ele só significa um “quid” (substância) por meio de um “quale”

(qualidade). O dialético se ocupa diretamente com as palavras (voces: vozes) e só

Page 28: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

28

mediatamente, por meio das palavras, com as coisas (res). Neste sentido, ele deve levar

em consideração o que as palavras significam direta e imediatamente (per se). Por isso,

à pergunta – quid est grammaticus? (o que é “gramático”?) – deve responder: vox

significans qualitatem (uma palavra que significa uma qualidade), um adjetivo.

“Grammaticus” designa, pois, diretamente uma “res” (coisa/algo de real), que é um

acidente, um “quale” (uma qualidade) e equivale a “habens grammaticam” (tendo

conhecimento da gramática). “Grammaticus” designa, então, de modo indireto (per

aliud) e de modo denominativo (per apellationem) o homem.

Pode-se ver, pois, que, na obra “De grammatico”, Anselmo molda a gramática

segundo a lógica e a metafísica, mais precisamente, segundo a ontologia da substância.

Esta iniciativa possibilitou, por sua vez, o surgimento de uma lógica da linguagem, no

século XII, com Gilberto Porretano e Pedro Abelardo, e, no século XIII, de uma gramática

especulativa, que tratava dos modos de significar (De modis significandi) das palavras.

Assim, as categorias aristotélicas foram aplicadas à morfologia e à sintaxe. As

abordagens da linguagem de Roger Bacon, Martinho e João de Dácia e Tomás de Erfurt

vão nesta direção. Deste último é a obra “Grammatica Speculativa” (Gramática

Especulativa), que, no século XX, foi objeto de estudo do doutorado de Martin

Heidegger, ainda quando o texto era atribuído a Duns Scotus.

O mote de Anselmo é: “fides quaerens intellectum” (fé buscando entendimento).

Trata-se de uma retomada do mote de Agostinho: “credo ut intelligam” (creio para

compreender). Assim se dá o método especulativo de Anselmo: A “ratio” (razão), como

pensamento que se exerce pela “meditatio” (meditação), busca, no horizonte da “fides”

(fé), o “intellectus” (a compreensão, o entendimento, o “insight”). Como, porém,

entender melhor a relação entre “fides” e “ratio” (razão) em Anselmo? Não se trata de

chegar à fé a partir da razão, como queriam os entusiastas da dialética. Isso é impossível

e danoso. Mas, trata-se de chegar a uma compreensão da fé a partir do exercício da

razão, um exercício que não põe em questão a própria fé, mas a supõe, como horizonte

irrenunciável. Pois, o que está em jogo na fé, é mais do que uma crença ou opinião, ou

mesmo a adesão a uma doutrina, é, acima de tudo, a fidelidade a alguém: ao Deus fiel e

à sua auto-revelação. A fé, aqui, é entendida em duplo modo: como “fides qua”, o ato

de crer, e como “fides quae”, o crido, o conteúdo do que se crê. A teologia é “intellectus

Page 29: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

29

fidei”: empenho de intelecção que se dá a partir da fé (do ato de crer, fides qua) e que

se volta para a compreensão do crido (do conteúdo da fé, fides quae). A “fides” (fé) é

dom de Deus. O “intellectus” (intelecto), empenho do homem. Por isso, “fides quaerens

intellectum” pode significar também, em nível mais originário: o dom de Deus que, a

priori, ama, busca e quer, no homem, o empenho de compreender, que é empenho de

receber. Teologia é, assim, o saber de um encontro que se dá entre o Deus que se dá a

revelar e o homem que se dispõe a acolher e a compreender tal auto-revelação de Deus.

Do mesmo modo que o conceito de “fides” (fé), também o conceito de “ratio” (razão) é

duplo. Por um lado, “ratio” denomina a razão como capacidade do homem de processar

a compreensão e apreensão de sentido das coisas (intellectus). Por outro, “ratio” é

entendido como o fundamento e o fundo essencial de alguma coisa (ratio rei). A teologia

consiste em ser a investigação das “rationes necessariae” (razões necessárias) daquilo

que é crido (fides quae). Ela procura encontrar e expor as razões da fé, ou seja, o

fundamento essencial e racional daquilo que é crido. É neste sentido que Anselmo busca

realizar algumas investigações teológicas “sola ratione” (somente com a razão), isto é,

expondo unicamente argumentos de razão, sem recorrer a argumentos de autoridade

(da Escritura ou dos Padres da Igreja).

A busca do “intellectus” (compreensão) ou das “rationes necessariae” (razões

necessárias) no horizonte da fé pressupõe, contudo, a verdade como possível. Mas, o

que é a verdade? Anselmo dedica uma obra em forma de diálogo a esta questão (De

Veritate). Trata-se de uma questão essencial. Ela pergunta pela essência da verdade –

quid sit veritas? (o que é a verdade?). Anselmo parte da experiência: dizemos que há

verdade está ali onde se dá o verdadeiro. Há a verdade de uma indicação (significatio) e

a verdade de uma enunciação (enunciatio); a verdade de uma opinião (opinio), por um

lado, e a verdade de uma vontade (voluntas) ou de uma ação (actio), por outro; há ainda

uma verdade dos sentidos (sensus) e uma verdade da essência das coisas (essentiae

rerum). Muitas são, pois, as formas de verdade: há uma verdade do conhecer, a verdade

lógica; uma verdade do agir, a verdade ética; e uma verdade do ser, a verdade

ontológica. A verdade ontológica é o fundamento da verdade lógica. Com efeito, causa

da verdade do juízo ou enunciado está no ser ou não ser da coisa enunciada (res

enunciata). Mas, o que faz com que todas estas formas de verdade sejam verdade? A

Page 30: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

30

resposta de Anselmo é: a “rectitudo” (retidão), ou seja, que algo seja como ele deve ser.

Verdade é, portanto, a coincidência ou identidade entre o ser e o dever-ser da coisa.

Mas, de onde a coisa haure o seu dever-ser? O que é normativo para o real é o ideal,

normativo para a coisa é a ideia da coisa. Conhecimento e ação estão sempre

mensurando o fático (o ser real) a partir da essência, ideia ou norma (o ser ideal, o dever-

ser). Isto quer dizer: a verdade lógica e a verdade ética pressupõem a verdade

ontológica. Mas a ideia da coisa se funda e se fundamenta, originariamente, na mente

de Deus. A verdade das coisas (verdade ontológica) consiste em elas serem aquilo que

eram na mente de Deus, ou seja, em corresponder ao projeto criador divino. As coisas

são imagens concretizadas dos pensamentos de Deus. A “ratio necessaria” (razão

necessária) de uma coisa é justamente a exposição desta verdade essencial das coisas,

a verdade da essência da coisa. Deus é a verdade originária, suprema e infinita, a partir

da qual as coisas recebem o seu ser verdadeiro e as formas de verdade se concretizam.

Com efeito, a “rectitudo” da Verdade, que é Deus, é diferente da “rectitudo” das formas

de verdade derivadas desta verdade originária. A verdade das coisas recebe sua medida

da “summa veritas per se subsistens” (verdade suprema que subsiste por si mesma), que

é Deus mesmo. A verdade de Deus não recebe medida de nenhuma outra, pois ela

mesma é o parâmetro, a partir donde se mede a verdade das coisas (ontológica), e, por

conseguinte a verdade do conhecimento (lógica) e a verdade da ação (ética). Esta

verdade, por conseguinte, não pode se dar de modo plural. Ela é singular: única em si

mesma, e una em todas aquelas outras formas de verdade.

Mas, voltando à pergunta pela essência da verdade, como caracterizar um

conceito formal de verdade, que vale tanto para as formas de verdade derivadas quanto

para a verdade absoluta, una, infinita e suprema? Para Anselmo, a essência da verdade

se deixa dizer nesta indicação: “Veritas est rectitudo mente sola perceptibilis” (verdade

é a retidão perceptível só com a mente). A retidão segundo a qual a coisa é o que deve

ser, ou seja, é o que ela é no pensamento ou no projeto criador de Deus, constitui a

verdade ontológica. Tanto a retidão predicativa, de uma significação ou de um

enunciado, bem como a retidão de um conhecimento dado pela experiência ou pela

razão, que caracteriza a verdade lógica; quanto a retidão de uma opinião, vontade ou

ação, que caracteriza a verdade ética; quanto, ainda a retidão segundo a qual uma coisa

Page 31: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

31

é o que ela deve ser, isto é, correspondendo ao pensamento dela no desígnio criador de

Deus; todas estas formas de retidão recebem sua medida da verdade originária, infinita,

absoluta e incriada: Deus. Verdade é a percepção da retidão, percepção que se dá “sola

mente” (com a mente somente), isto é, numa apreensão puramente inteligível.

A investigação sobre a verdade remeteu à verdade absoluta e originária, Deus.

Mas, como demonstrar “sola ratione”, isto é, só com a razão, as “rationes necessariae”,

ou seja, os fundamentos racionais da fé na existência de Deus? Numa primeira obra, o

“Monologion”, Anselmo tenta demonstrar a existência de Deus por meio de dois

argumentos a posteriori, isto é, partindo da experiência. Ele o faz seguindo a via

platônico-agostiniana. Num primeiro argumento, Anselmo toma em consideração

conceitos transcendentais: bonum (bom), ens (ente), unum (uno). Anselmo parte da

existência de bens no mundo, que são mais ou menos bons. Alguns bens nós

consideramos bons pela utilidade (propter utilitatem); outros, pela sua beleza (propter

honestatem). Estes bens são medidos e valorados como mais ou menos bons. Deve

haver, então, uma medida pelas quais se medem os bens. Esta medida deve ser um bem

absoluto e não um bem relativo, algo que é um bem por si mesmo (bonum per se ipsum)

e não um bem por participação, algo que não é um bem, mas o bem. Trata-se, portanto,

do “summum bonum” (sumo bem), que nós chamamos Deus. Este mesmo raciocínio

vale para a grandeza e para a dignidade. Vale, por fim, para o ser. Tudo o que é parece

ser através e a partir de algo que ele não é. Deve haver algo, através do que e a partir

do que tudo o que é, é: o ente que é a partir de si mesmo, o sumo ente. E este sumo

ente não pode ser senão um só: uma vez que a própria verdade exclui que sejam muitos,

aquilo por meio do que tudo é, é necessário que seja um, aquilo pelo que tudo o que é,

é. O segundo argumento toma em consideração uma ordem gradativa no ser de tudo o

que é: a natureza da árvore é menos digna do que a natureza do cavalo, que é menos

digna do que a natureza do homem. Numa há somente o ser, noutra o ser, o viver e o

sentir, noutra, por fim, o ser, o viver, o sentir e o pensar. Esta gradualidade de naturezas

aponta para uma única natureza suprema. Esta é o que ela é, por si mesma, e tudo o

que é, é o que é por ela. Melhor: trata-se de uma natureza, que é por si mesma boa e

grande; que é por si mesma aquilo que ela é; que é por si mesma o que é sempre

verdadeiro, bom e grande; e que é o sumo bem, a suma grandeza, o sumo ente ou a

Page 32: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

32

suma substância, ou seja, que é o Altíssimo, de tudo aquilo que é. Esta argumentação

pressupõe, pois, o ser por participação (participatio), que é sempre relativo, a saber, o

ser da criatura; e o ser em sentido absoluto, que é o ser de Deus. O relativo é por outro

(ens ab alio). Já o absoluto é por si mesmo (ens a se). Os muitos relativos pressupõem,

contudo, um único absoluto.

O “Monologion”, obra muito importante da escolástica nascente, traz o famoso

argumento da existência de Deus conhecido como “ratio Anselmi”.

Algumas considerações.

(1) A “ratio anselmi” há de ser interpretada no todo da obra de Anselmo e do

seu projeto de pensamento. Contra o seu isolamento.

(2) Dentro da obra de Anselmo, o Monologion, o Proslogion e o De Veritate hão

de ser lidos como uma trilogia. Um tríptico.

(3) Momentos fundamentais do projeto do pensamento de Anselmo:

- Um percurso de pensamento que parte da fé para retornar à fé. Fé como

princípio. Atua aqui o princípio tomado por Agostinho a partir de Isaías (7, 9): “nisi

credideritis, non intelligetis” – “se não crerdes, não compreendereis”. Agostinho: “credo

ut intellegam” (creio para compreender). “Neque enim quaero intelligere ut credam,

sed credo ut intelligam” (não procuro, de fato, compreender para poder crer, mas creio

para poder compreender) (PG I). Na Epistola De Incarnatione Verbi, 1094, Anselmo

declara que tanto o Monologion quanto o Proslogion foram escritos “ut quod fide

tenemus de divina natura et eius personis, praeter incarnationem, necessariis rationibus

sine scripturae auctoritate probari possit”.

- O motivo: fides quaerens intellectum (a fé buscando intelecção/compreensão).

- A tendência: “tendere in veritatem” (tender para dentro da verdade) como um

“tendere in Deum” (tender para dentro de Deus). Diferença entre “ad”, que implica

exterioridade, e “in”, que implica interioridade. o intellectus fidei (a compreensão da fé).

- Fides (fé): mais que um “credere id” (crer em algo), um “credere in” (crer em

alguém). Uma fé que busca: dinamicidade de um “quaerere Deum” (buscar Deus) (cfr.

Page 33: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

33

Agostinho, livro X das Confissões). Busca da visão do “rosto” de Deus: “Quaero vultum

tuum, vultum tuum, Domine, requiro” (busco o teu rosto, o teu rosto, Senhor, reclamo)

[Proslogion, c. I]. Impossibilidade: Deus habita em uma luz inacessível (Lux Inacessibilis).

Sentido escatológico: a visão de Deus (species) é adiada para a eternidade. Para que não

se desespere, é dada ao crente uma “spes pertingendi” (esperança de alcançar o que

busca). A ausência de Deus, porém, aumenta o desejo do crente. Ele encontra um meio

entre a fé que busca e a visão que é buscada: a dinâmica do intelligere (compreender) e

o que ele pode alcançar, o intellectus fidei (compreensão da fé). O ‘intellectus fidei’

(compreensão da fé) como ‘medium’ (meio), que está “inter fidem et speciem” (entre a

fé e a visão) (Comendatio). O conhecimento, no entanto, está em vista do amor e da

alegria da união com Deus: “cognoscam te, amem te, gaudeam te” (te conhecerei, te

amarei, alegrar-me-ei de ti” (PG XXVI, último capítulo). Por tudo isso, o Proslogion une

razão e fé, poesia mística e prosa especulativa, espontaneidade da experiência da vida

da fé e esforço da investigação racional.

- Compreensão do limite, da finitude, desta unidade de fé-e-razão, face ao

mistério de Deus: “non tento, Domine penetrare altitudinem tuam, quia nullatenus

comparo illi intellectum meum; sed desidero aliquatenus intelligere veritatem tuam,

quam credit et amat cor meum” (Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de

maneira alguma a minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos,

compreender a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco

compreender para crer, mas creio para compreender. (PG I).

(4) Sobre o sentido dos escritos. O Proslogion retoma o Monologion. No

proemio do Proslogion Anselmo se refere ao Monologion como “exemplum

meditandi de ratione fidei” (exemplo de meditação a respeito da razão da fé).

O Proslogion, por sua vez, se propõe como um exemplo de contemplação,

em que aquele que escreve se apresenta “sub persona conantis erigere

mentem suam ad contemplandum deum et quaerentis intelligere quod

credit” (como uma pessoa que se esforçasse para elevar a sua mente até a

contemplação de Deus, a fim de compreender aquilo em que acredita). Por

Page 34: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

34

isso, o subtítulo da obra: “Fides quaerens Intellectum” (fé buscando

compreensão).

(5) Sobre o método. O método de Anselmo em ambos os escritos é o mesmo.

No Monologion é anunciado como “saltem sola ratione”. “Saltem” se traduz,

normalmente, por “pelo menos”, “ao menos”. Tem um sentido restritivo e

significa, aqui, “na falta de outra coisa”. No primeiro capítulo do Monologion

ele diz:

Se alguém ignora, o porque não ouviu o porque não crê, que há uma natureza

superior a todas as coisas que são, suficiente, sozinha, a si mesma na sua beatitude

eterna, que mediante a sua bondade onipotente concede o ser a todas as outras coisas

tornando-as de certo modo boas, e muitas outras verdades que necessariamente

cremos a respeito de Deus e da sua criação, penso que a maior parte (ex magna parte)

destas coisas, possa ao menos (saltem) se persuadir, mesmo se é de espírito (ingenium)

medíocre, com a razão sozinha (sola ratione) (MG I)

(6) Qual o sentido de “sola ratio”? “Ratio” (razão) aqui está em oposição a

“Auctoritas” (Autoridade). Como Agostinho, Anselmo distingue entre

autoridade divina, confiável, e autoridades humanas, não tão confiáveis.

Autoridade divina: a revelação, a Escritura (Sacra pagina). Autoridades

humanas: os Padres da Igreja, sobretudo Agostinho. No processo do

intelligere a ratio exclui o recurso às “auctoritates” como meio de

demonstração. Estas não são negadas ou suprimidas, mas, por assim dizer

“postas entre parênteses” (epoché, em sentido fenomenológico!!!). “Sola

ratio” equivale, segundo Viola, a “pura ratio” e, assim, antecede a Kant (reine

Vernunft: Razão pura). Razão pura como razão finita: o que se dá nos limites

da compreensão humana. Assim, tanto o Monologion, quanto o Proslogion,

se dariam, no tocante ao método, como uma dialética do espírito finito que

procura meditar com a só razão a respeito do espírito infinito (Deus), e elevar

Page 35: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

35

a mente com a só razão na busca da sua contemplação (cfr. Viola). O método,

aqui, é o caminho da razão solitária do espírito finito, o humano, que se dirige

(Proslogion = Alloquium = alocução!) ao espírito absoluto, a quem chama de

“Tu”, esforçando de compreender algo de sua existência e de sua essência

(uma “Fenomenologia do Espírito” antes de Hegel). Outro sentido: “sola

ratio” (Razão pura) significa “ratio vera” (razão verdadeira). Este sentido vem

de Agostinho. No De quantitate animae, ele fala de crer com o apoio na

autoridade e crer com o apoio na razão: “aliud est enim cum auctoritati

credimus, alliud cum credimus rationi”. Para Agostinho, crer com o apoio na

autoridade divina (revelação > Escritura) evita cair nos enganos de opiniões,

de razões aparentes, ilusórias, que ele chama de “similitudines rationum”

(semelhanças das razões). O caminho de crer com a autoridade é direto e

rápido. E adverte para a dificuldade de quem procura crer não só com a

autoridade, mas também com a razão: “deves tolerar muitos e longos

circuitos do pensamento (multi et longi circuitus), de tal modo que te guie a

razão que somente é razão, isto é, a verdadeira; e essa não só é verdadeira,

mas também tão certa e imune de todo sofisma que argumentos falsos e

opinativos não te podem distanciar” (Quant. An. C. 7).

(7) A necessidade do “unum argumentum”. No Monologion Anselmo percorre

este “muitos e longos circuitos” da meditação. Depois de tê-lo terminado, se

deu conta do resultado e ficou insatisfeito, e mais, angustiado. É o que ele

narra no proêmio do Proslogion: “Mal acabei de escrever um opúsculo,

acedendo aos pedidos de alguns irmãos, o qual servisse como exemplo de

meditação sobre os mistérios da fé para um homem que busca, em silêncio,

descobrir, através da razão, o que ignora, e dei-me conta de que essa obra

era difícil de ser entendida devido ao entrelaçamento das muitas

argumentações” (multorum concatenatione contextum argumentorum). Isso

o leva a procurar, numa outra obra, o “unum argumentum”: “Então comecei

a pensar comigo mesmo se não seria possível encontrar um único argumento

(inveniri unum argumentum) que, válido em si e por si, sem nenhum outro,

Page 36: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

36

permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente e que ele é o bem

supremo, não necessitando de coisa alguma, quando, ao contrário, todos os

outros seres precisam dele para existirem e serem bons. Um argumento

suficiente, em suma, para fornecer provas adequadas sobre aquilo que

cremos acerca da substância divina”. O encontro do “unum argumentum”

veio repentino (quadam die) a Anselmo, enquanto ele se debatia,

desesperado, em meio ao conflito de suas cogitações (conflictu

cogitationum) (Proêmio). Anselmo, então, abraçou com paixão este

pensamento, tendo-o como uma iluminação.

(8) Qual o sentido do “unum argumentum”? Trata-se de um princípio

demonstrativo a priori. No Monologion, Anselmo parte da experiência. A

demonstração da existência de Deus é a posteriori. No Proslogion, porém, a

marcha dialética segue a dinâmica de um desdobramento a priori. Dele

haveria de se poder derivar tanto a existência de Deus quanto os atributos

de sua essência. E, trata-se, aqui, do Deus da revelação bíblica e da fé cristã,

isto é, do Deus uno e trino (Trindade). Este princípio é posto como uma regra

dialética para a investigação que se dá “sola ratione”. A “ratio” “investigantis

et disputantis” (razão que investiga e disputa) marcha na direção de uma

compreensão do ser (esse) de Deus, guiada e regida por este princípio. Este

princípio se anuncia como uma “prolatio”16, uma prolação, no sentido de

uma menção, que pretende mostrar, deixar ver algo de algo. No capítulo II

do Proslogion se anuncia assim: “... credimus te esse aliquid quo nihil maius

cogitari possit” (cremos que tu és alguma coisa da qual não se pode pensar

nada de maior). Da afirmação da fé, porém, Anselmo passa abruptamente a

menção “aliquid quo nihil maius cogitari possit” como princípio que guiará a

sua investigação.

16 Prolatio: prolação, no sentido de prolongamento; alargamento. Cícero usa no sentido de citação, menção. Remete ao verbo “prolare”: estender, prolongar (daí: também adiar, diferir). Mas talvez também ao verbo “proferre”: exibir, mostrar, deixar ver; estender; citar, divulgar, revelar, declarar; mas também diferir, retardar. O particípio de ambos os verbos é “prolatum”.

Page 37: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

37

(9) Quais as características do princípio demonstrativo? Este princípio é uma

espécie de “indicação formal” (Heidegger). Formal é esta indicação pois não

traz de antemão nenhum conteúdo representativo. É uma indicação de um

rumo para o pensamento que investiga. Ela delimita, ao mesmo tempo, um

horizonte de busca: aponta para o limite do pensamento, para o máximo que

o pensamento (cogitatio) pode pensar (cogitare). A investigação se

caracteriza, então, como um movimento ascendente rumo ao limite daquilo

que se pode pensar. Esta indicação é, ao mesmo tempo, um indício de valor:

aponta para “aliquid quo nihil maius cogitari possit” – sendo que o “maius”

(maior) indica uma grandeza intensiva, não extensiva; qualitativa, não

quantitativa; que, no fim das contas, se idêntica com o “melius” (melhor). No

entanto, diferentemente do Monologion, Anselmo não recorre ao bonum

(bom), ao esse (ser), ao unum (uno). O “maius” (maior) não vai na direção do

ser (esse), mas do pensar, ou melhor, do poder ser pensado (cogitari). Neste

princípio, o cogito (pensamento) se mede com o que está posto no seu limite:

“aliquid quo nihil maius cogitari possit” (alguma coisa em relação à qual não

se pode pensar nada de maior). Por um lado, este princípio demonstrativo

tem como fio condutor o “cogitare” (ressonâncias de Cícero, Sêneca,

Agostinho). Por outro lado, ele se concentra na grandeza (por isso muitos o

chamam de argumento megalógico). O pensamento se mede, pois, com a

grandeza, com aquela grandeza em relação à qual não há nada de maior.

Trata-se de uma grandeza absoluta. Anselmo, aqui, não recorre mais, como

no Monologion, à uma grandeza comparativa e superlativa, o “summum”,

mas seu princípio aponta para a grandeza absoluta e insuperável: “aliquid

quo nihil maius”. Todo o Proslogion pode ser compreendido como a

exposição de uma dialética da grandeza, mediante a qual se mostra como

racional seja a existência seja a natureza do Deus uno e trino em seus

atributos.

Page 38: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

38

(10) Uma característica fundamental: o “unum argumentum” tem como

critério seguir a “necessitas rationis” (necessidade da razão), que, por sua

vez, é a manifestação da “claritas veritatis” (clareza da verdade). A razão

que investiga e disputa há que ser orientada, ela mesma, por algo que a

transcende: a verdade (veritas). A “necessitas” (necessidade) da “ratio

necessária” expressa a referência essencial da “ratio” (razão) à “veritas”. A

“necessitas” é “veritatis solidalitas rationabilis” (solidez da verdade que pode

ser investigada pela razão), diz ele no Cur Deus Homo (I, 4). Ela é a

manifestação da “claritas veritatis” (clareza da verdade). A razão não é a

verdade. Ela é apenas o “lugar” em que a claridade da verdade se manifesta

como necessidade. Na demonstração, o “probare” (provar), o “astruere”

(construir acrescentando), tem o sentido de, pela necessidade da razão,

“ostendere” (pôr diante dos olhos), “monstrare” (mostrar), “aperire” a

dimensão transcendental da “veritas” (verdade), da sua claridade e da sua

solidez. No De Veritate Anselmo desdobra isso, que já está, de certo modo,

latente no Proslogion. A verdade como “rectitudo mente sola perceptibilis”

(retidão que é perceptível com a mente somente) se funda numa verdade

absoluta, que é Deus. Deus é o fundamento da verdade (ratio veritatis: ratio

summae naturae) (cfr. Contra Gaunilo, III). É o fundamento da verdade da

razão (veritas rationis), que consiste na retidão que se percebe com a mente

sozinha. Mas, em que consiste esta “retidão”? Resposta: na correspondência

entre a “ratio” da mente que pensa e a “ratio rei” (razão da coisa). Assim, a

razão noética-noemática remete à razão ontológica. O “intelligere” implica

uma relação com a res, com o real, a realidade. Na retidão da verdade, não é

o intellectus que funda a res, mas a res que funda o intellectus. A “ratio rei” é

que dá fundamento à “ratio” (razão), para que o “cogitare” (pensar) seja um

“intelligere” (compreender).

Estrutura do argumento único

A marcha da demonstração é exposta numa estrutura:

Page 39: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

39

I. Capítulo II, 1-4: Introdução em forma de alocução. Apresentação da

“Prolatio”17:

“Então, ó Senhor, tu que nos concedeste a razão em defesa da fé, faze

com que eu conheça, até quanto me é possível, que tu existes assim

como acreditamos, e que és aquilo que acreditamos. Cremos, pois,

com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada

maior” (aliquid quo nihil maius cogitari possit).

II. Capítulo II, 5 – III, 16. Em forma objetiva e impessoal, Anselmo

apresenta, a negação da existência de Deus por parte do insipiente e

procura mostrar que ela é absurda, pois é autocontraditória. Se o

“non est Deus” (Deus não existe) é absurdo, se conclui que o seu

contraditório, o “Deus est” é verdadeiro de uma verdade necessária.

Deus existe necessariamente: ele não pode não ser. Ele é (existe = é

na realidade).

Porém, o insipiente, quando eu digo: "o ser do qual não se pode pensar nada maior", ouve o que digo e o compreende. Ora, aquilo que ele compreende se encontra em sua inteligência, ainda que possa não compreender que existe realmente. Na verdade, ter a ideia de um objeto qualquer na inteligência, e compreender que existe realmente, são coisas distintas. Um pintor, por exemplo, ao imaginar a obra que vai fazer, sem dúvida, a possui em sua inteligência; porém, nada compreende da existência real da mesma, porque ainda não a executou. Quando, ao contrário, a tiver pintado, não a possuirá apenas na mente, mas também lhe compreenderá a existência, porque já a executou. O insipiente há de convir igualmente que existe na sua inteligência "o ser do qual não se pode pensar nada maior", porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na inteligência. Mas "o ser do qual não é possível pensar nada maior" não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior. Se, portanto, "o ser do qual não é possível pensar nada maior" existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo. Logo, "o ser do qual não se

17 Prolação: uma menção, que pretende mostrar, deixar ver algo de algo. Uma “indicação formal” (Heidegger).

Page 40: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

40

pode pensar nada maior" existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade. O que acabamos de dizer é tão verdadeiro que nem é possível sequer pensar que Deus não existe. Com efeito, pode-se pensar na existência de um ser que não admite ser pensado como não existente. Ora, aquilo que não pode ser pensado como não existente, sem dúvida, é maior que aquilo que pode ser pensado como não existente. Por isso, "o ser do qual não é possível pensar nada maior", se se admitisse ser pensado como não existente, ele mesmo, que é "o ser do qual não se pode pensar nada maior", não seria "o ser do qual não é possível pensar nada maior", o que é ilógico.

III. Depois, em forma de alocução, novamente, Anselmo conclui,

remetendo à relação criador-criatura.

Existe, portanto, verdadeiramente "o ser do qual não é possível pensar nada maior"; e existe de tal forma, que nem sequer é admitido pensá-lo como não existente. E esse ser, ó Senhor, nosso Deus, és tu. Assim, tu existes, ó Senhor, meu Deus, e de tal forma existes que nem é possível pensar-te não existente. E com razão. Se a mente humana conseguisse conceber algo maior que tu, a criatura elevar-se-ia acima do Criador e formularia um juízo acerca do Criador. Coisa extremamente absurda. E, enquanto tudo, excluindo a ti, pode ser pensado como não existente, tu és o único, ao contrário, que existes realmente, entre todas as coisas, e em sumo grau.

IV. Anselmo retoma a negação do insipiente e tenta responder a duas

perguntas.

IV.1. A primeira pergunta é: por que é possível a negação do

insipiente?

Então, por que o insipiente disse em seu coração: "Não existe Deus", quando é tão evidente, à razão humana, que tu existes com maior certeza que todas as coisas? Justamente porque ele é insensato e carente de raciocínio (III, 17- 19).

IV.2. A segunda pergunta é: como é possível a negação do insipiente?

Mas como o insipiente pôde dizer, em seu coração, aquilo que nem sequer é possível pensar? Ou como pôde pensar aquilo em seu coração, quando "dizer no coração" nada mais é do que pensar? Se, verdadeiramente, ele disse isso em seu coração, na verdade, também, o pensou. Mas, na verdade, ele não disse isso em seu coração, porque, justamente, não podia pensá-lo. Com efeito, pode-se pensar, ou dizer

Page 41: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

41

no coração, uma coisa de duas maneiras: pensando na palavra que expressa a coisa, ou compreendendo a própria coisa. No primeiro sentido, é possível pensar que Deus não existe; no segundo, não. Quem, por exemplo, compreende o que são a água e o fogo, sem dúvida, não pode pensar que os dois elementos sejam realmente a mesma coisa. Entretanto, se pensar apenas nas palavras água e fogo, pode imaginar as duas coisas como idênticas. Assim, quem compreende o que Deus é, certamente, não pode pensar que ele não existe, mas o poderia, se repetisse na mente apenas a palavra Deus, sem atribuir-lhe nenhum significado, ou significando coisa completamente diferente. Deus, porém, é "o ser do qual não é possível pensar nada maior", e quem compreende bem isso sem dúvida compreende, também, que Deus é um ser que não pode encontrar-se no pensamento. Quem, portanto, compreende que Deus é assim, não consegue sequer imaginar que ele não exista.

V. Segue, então, a conclusão geral, em forma de alocução:

Obrigado, meu Deus. Agradeço-te, meu Deus, por ter-me permitido ver, iluminado por ti, com a luz da razão, aquilo em que, antes, acreditava pelo dom da fé que me deste. Assim, agora, encontro-me na condição em que, ainda que não quisesse crer na tua existência, seria obrigado a admitir racionalmente que tu existes.

Análise do argumento único

O argumento único é uma demonstração a priori da existência de Deus,

apresentado em forma de alocução (Allocutio: Proslogion) a Deus. É a priori, pois não

parte da experiência, das criaturas.

Deus é “ens a se” (ente por si), não “ens ab alio” (ente por outro). Ele de nada

depende e dele tudo depende. O argumento único, enquanto argumento a priori, deve

corresponder a esta aseidade de Deus. O argumento ele mesmo deve ser autônomo,

deve se bastar a si mesmo. Seu único apoio é a “prolatio”: “aliquid quo nihil maius

cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar nada de maior).

O argumento único foi escrito por um monge teólogo para monges cristãos. O

sentido da obra como um todo é a “elevação da mente para Deus”. A demonstração da

existência de Deus é o ponto de partida desta elevação. Seu objetivo não é persuadir o

não crente a crer em Deus. Seu objetivo é levar o crente a compreender aquilo que ele

crê, isto é, incluir o movimento do intelecto na ascensão para Deus.

Page 42: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

42

O argumento único é uma demonstração indireta: não demonstra diretamente

que Deus existe, mas procura confundir e refutar a negação da existência de Deus, por

parte do “insipiente” (aquele que não sabe), mostrando sua insensatez.

Alexandre Koyré (L’idée de Dieu dans la philosophie de St. Anselme) aponta o uso

de dois princípios na demonstração: o princípio de perfeição e o princípio de contradição.

O princípio de perfeição

O fundamento da demonstração é o princípio de perfeição. A questão inerente a

este princípio é: qual o relacionamento entre ser e perfeição?

Antecedentes históricos na tradição filosófica:

Plotino considera que há um paralelismo entre ser e perfeição, entre os degraus

do ser e os degraus de perfeição dos entes. O mais alto grau de ser corresponde ao mais

alto grau de perfeição. A perfeição absoluta corresponde ao ser absoluto. Ou melhor: a

perfeição absoluta corresponde ao Um, causa do ser.

Para Agostinho, ser, a existência, é um bem. Bem é o que é, por natureza,

apetecido pelos entes.

O ser é, por natureza, de tal maneira atrativo (jucundum), que não é outra a causa de não quererem morrer (interiri) até mesmo os infelizes (miseri), que, embora penetrados do sentimento da própria infelicidade, anseiam por que seja arrancada de entre as coisas, não eles, mas sua infelicidade (...). E que dizer dos animais todos, mesmo dos irracionais, carecentes de tal modo de pensar, desde os dragões gigantescos até os diminutos vermes? Não apetecem ser? Não provam com todos os movimentos possíveis que fogem e refogem à morte? (...)18.

In quantum est, quidquid est, bonum est (Enquanto é, seja o que for, é bom)19.

Quaecumque sunt, bona sunt (Todas as coisas que são, sejam quais forem, são boas)20.

Daí que a má vontade, mesmo quando não seja segundo a natureza, mas contra a natureza, por ser vício, seja da mesma natureza que o vício, que não pode existir senão em alguma natureza. E

18 De Civ. Dei, XI, c. 27. 19 De Vera Religione, c. 9. 20 Confessiones VII, c. 12.

Page 43: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

43

somente na natureza criada do nada, não na que o Criador gerou de si mesmo, como o Verbo, por quem foram feitas todas as coisas. Porque embora seja verdade haver Deus formado o homem do pó, a terra e toda a matéria terrena procedem do nada absoluto, como a alma infundida no corpo, quando Deus criou o homem. Os males são superados pelos bens, a ponto de os bens poderem existir sem os males, embora se lhes permita a existência, para ressaltar o bom uso que deles pode fazer a providentíssima justiça do Criador. Assim Deus, verdadeiro e sumo, assim todas as criaturas, celestiais, invisíveis e visíveis, que estão acima desta atmosfera de trevas. Por sua vez, os males não podem existir sem os bens, porque as naturezas em que subsistem, como naturezas, são boas21.

Quia summum bonum est summe esse22.

O ser, portanto, é um bem. É uma perfeição.

Em Deus, a existência não pode ser separada nem distinguida de outras

perfeições, nem da essência mesma. Em Deus, essência e existência formam uma

unidade. No dizer dos medievais: Deus est suum esse (Deus é seu ser, seu existir).

Há que se notar que Anselmo não identifica ser e perfeição. A única coisa que ele

faz é afirmar que um ente dotado de perfeição e de existência é mais perfeito que um

ente privado de existência. Há uma conveniência entre ser e perfeição e não uma

identidade.

Deus é o ente absolutamente perfeito. Este é o sentido da “prolatio”: “aliquid

quo nihil maius cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar nada de maior). O

“maius” (maior) indica uma grandeza intensiva, não extensiva; qualitativa, não

quantitativa; que, no fim das contas, se idêntica com o “melius” (melhor). Perfeição e

bem convêm, aqui, com o ser.

o princípio de contradição

Anselmo procura mostrar que o insensato, de que fala o salmo, é de fato

insensato. Isto quer dizer: ao negar que Deus existe, ele diz coisas que ele não entende,

e diz coisas contraditórias.

21 De Civ. Dei, l. XIV, c. 11. 22 Porque o sumo bem é sumo ser.

Page 44: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

44

Segundo Anselmo, a proposição “Deus não existe” contém uma contradição nos

termos, uma contradição interna, portanto. Ela contém, ao mesmo tempo, posição e

negação do mesmo predicado. É uma contradição no pensamento. Anselmo procura

mostrar, pela impossibilidade de negar a existência de Deus, que ela deve ser posta.

Deus é “aliquid quo nihil maius cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar

nada de maior). Dizer “Deus existe” é dizer: “algo do qual não se pode pensar nada de

maior existe”. Há dois modos de pensar uma coisa: “aliud est rem in intellectu habere,

aliud intelligere rem esse” (uma coisa é ter uma coisa no intelecto, outra coisa, entender

que a coisa existe). Pode-se pensar uma coisa sem considerar sua existência ou sua não

existência. O pintor, no exemplo dado por Anselmo, pensa o quadro sem ainda tê-lo

produzido, isto é, sem que o quadro exista. Ele tem o quadro em mente, o tem no

intelecto. Ainda não o concebe como existente. Depois de ter produzido o quadro, ele

concebe o existir do quadro (intellegit rem esse).

Há um pensamento puramente verbal, que não pensa a coisa mesma, mas

apenas pensa palavras. Este pensamento pensa de modo vazio, isto é, sem o

preenchimento (Erfüllung), para usar um termo fenomenológico, de uma intuição.

Pensa-se uma palavra de maneira vaga, imprecisa. Da mesma maneira, o discurso que

expressa este pensamento é vazio: diz-se uma coisa sem compreender o que está sendo

dito. Preenchido por uma intuição, o pensamento verbal se torna claro e preciso. O

pensamento verbal vazio não presentifica (vergegenwärtig) a coisa que ele tem em

vista. É deste tipo, segundo Anselmo, o pensamento daquele que diz: “Deus não existe”.

Assim como há dois modos de intencionar a coisa no pensamento, também há

dois modos de a coisas ser intencionada (visada). Aquele que diz: “Deus não existe” se

relaciona, intelectivamente, com a coisa que é nomeada pelo nome “Deus”, isto é,

“aliquid quo nihil maius cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar nada de maior).

Só que este relacionamento se dá no modo do “pensar vago” e do “falar vazio”. A coisa

pensada se dá no modo do “esse in intellectu” (ser no intelecto), isto é, de um mero “ser

intencional”, que não inclui o ser real. Ele não é capaz de “intelligere rem esse”

(apreender a existência da coisa), de captar o ser real. Ora, o ser intencional (esse in

intellectu), ser puramente pensado, é menor do que o ser real (esse in re). Vice-versa: o

ser real é maior do que o ser puramente pensado. Se o nome “Deus” indica “aliquid quo

Page 45: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

45

nihil maius cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar nada de maior), então, este

algo não pode ser só no intelecto, mas deve ser também na realidade:

Et certe id quo maius cogitari nequit, non potest esse solo in intellectu. Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re, quod maius est. Si ergo id quo maius cogitari no potest, est in solo intellectu: id ipsum quo maius cogitari non potest, est quo maius cogitari potest. Sed certe hoc esse non potest. Existit ergo procul dubio aliquid quo maius cogitare non valet, et in intellectu et in re.

Mas "o ser do qual não é possível pensar nada maior" não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior. Se, portanto, "o ser do qual não é possível pensar nada maior" existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo. Logo, "o ser do qual não se pode pensar nada maior" existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade.

Se Deus é possível, Deus existe necessariamente.

O argumento vai do “posse” (poder) ao esse (ser).

Os passos do argumento são:

1) Posse – Deus é possível, isto é, é pensável. A prolação “aliquid quo nihil maius

cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar nada de maior) diz algo de

possível, isto é, de pensável, pois não inclui nenhuma contradição.

2) Non posse concipi non esse – Deus não pode ser pensado como o que não

existe. Pois, pensar “Deus não existe” é o mesmo que pensar

contraditoriamente. Si ergo id quo maius cogitari no potest, est in solo

intellectu: id ipsum quo maius cogitari non potest, est quo maius cogitari

potest. Sed certe hoc esse non potest.

3) Necesse concipi esse – Deus necessariamente deve ser concebido como o que

é, o que é existe.

4) Non posse non esse – Deus não pode não ser, não existir. Deus existe de

modo necessário (e não contingente).

5) Ergo, necesse esse – portanto, necessariamente, Deus existe.

Page 46: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

46

Na resposta a Gaunilo, Anselmo diz:

Certe ego dico: si vel cogitari potest esse, necesse est illud esse (eu digo com

certeza: se pode ser ao menos pensado como existente, é necessário que exista)

(...). Si ergo potest cogitari esse, ex necessitate est. Amplius. Si utique vel cogitari

potest, necesse est illud esse (Se, pois, pode ser pensado como existente,

necessariamente é. Ademais, se pode também ser ao só pensado, é necessário

que exista).

Assim, o argumento põe uma relação necessária entre a possibilidade e a

necessidade da existência de Deus.

No que concerne ao pensamento, o argumento passa de um momento hipotético

para um momento tético. No que concerne à coisa pensada, o argumento percorre três

estações, passando pelas modalidades do ser, a saber, parte do possível para chegar ao

necessário e, por fim, à existência.

O ser no real (esse in re), ou melhor, a realidade ou a existência, não é somente

a base de perfeições, mas é, ela mesma perfeição. É a última perfeição de uma essência.

É sua realização completa (esse in actu).

A demonstração de Anselmo não é analítica, mas sintética. Isto é: a noção de

Deus não comporta, por identidade, a existência, mas a existência é posta como o que

convém à noção de Deus, e como o que convém necessariamente.

O insensato não entende, até o fim, a noção de Deus. É só com base nisso que

ele pode dizer: “Deus não existe”. Ele pensa, no sentido do cogitari, sem intelligere

(compreender). Ele pensa uma palavra de modo vazio, sem entender a coisa mesma que

é significada pela palavra. Pensa a “vox” sem pensar, isto é, sem intuir intelectivamente,

a “res”.

Page 47: PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL - … · A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A escolástica se difere da patrística por uma maior

47

O modo como Anselmo abordou a relação entre fé e razão se tornou

paradigmático para a teologia escolástica. Sua teoria da significação e da denominação

influiu na elaboração de uma doutrina da “analogia entis” (analogia do ente), que

iremos estudar em Tomás de Aquino. Sua abordagem lógica da gramática influiu na

lógica linguística do século XII (Gilberto de Poitiers e Pedro Abelardo) e sua abordagem

ontológico-categorial da gramática influiu na elaboração de uma gramática especulativa

no século XIII (Roger Bacon, Tomás de Erfurt). Mas, o que fez história mesmo ao longo

dos séculos foi o “argumento único” do Proslogion. Na Idade Média, estão a seu favor

Guilherme de Auxerre, Boaventura, Mateus de Aquasparta, Egídio Romano e Duns

Scotus. Já Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham não o aceitam. Descartes o assume,

desligado do seu contexto. Kant o critica e rejeita. Hegel o apoia. Cada um, a partir de

sua perspectiva de pensamento. O que não se pode negar é que Anselmo foi uma

autoridade para os medievais e constitui também um pensador respeitado também

pelos pensadores modernos. E, se os continentais hoje o consideram devido aos seus

temas, os analíticos o retomam devido ao rigor formal lógico de suas exposições e

devido à sua teoria lógico-semântica.