Departamento de Arquitetura e Urbanismo
PRÁTICAS E LARES: TRANSFORMAÇÕES DO ESPAÇO EM
OCUPAÇÕES PARA FINS DE MORADIA NA CIDADE DO RIO DE
JANEIRO
Aluno: Fernanda Altschuller
Orientador: Maíra Machado Martins
Introdução
No Brasil, uma questão frequente nas grandes capitais é a falta de habitação de qualidade
para a parcela mais carente da população. O poder público vem, ao longo dos últimos cinquenta
anos, produzindo um modelo de habitação de interesse social em áreas desprovidas de
infraestruturas urbanas e distantes dos grandes centros. [1] Porém, apesar do distanciamento
das principais regiões centrais da grande maioria dos conjuntos, existem aqueles que estão
inseridos em centros locais, de menor escala. Estas habitações são implantadas em locais
afastados devido ao baixo custo fundiário. Essa situação, reproduzida atualmente pelo
Programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal, e associada ao elevado índice de
imóveis vacantes em centros urbanos, gera um cenário de tensão.
No Rio de Janeiro, a Região Central é de extrema relevância para a cidade do desde a sua
criação [2]. A abundância de ofertas de serviços e infraestruturas fazem dessa região um local
de grandes oportunidades. Apesar disso, diversos edifícios de propriedade do poder público
estão em situação de abandono e desuso. A maioria desses encontra-se nessa situação devido à
transferência da capital do país para Brasília em 1960.
A grande quantidade de imóveis vacantes no Centro em conjunto com os benefícios
oferecidos pelo bairro torna-o principal alvo de ocupações. Atualmente, diversos edifícios
públicos encontram-se habitados, porém poucas são as ocupações notadas aos olhos de quem
passa pelas ruas. Sendo assim, grande parte da sociedade não tem contato com essa realidade
vivida por essa parcela da população afetada pela falta de moradia de qualidade.
A grande maioria dos edifícios ocupados não foi concebida para servir de habitação. Além
disso, os moradores enfrentam o problema de restrição orçamentária e a instabilidade da
situação, que é ilegal. Apesar dessas condições desafiadoras para os moradores, eles encontram
diversas formas de apropriações de espaços para responder às suas principais necessidades. A
pesquisa tem como foco compreender as dinâmicas de ocupação e adaptação do espaço pelos
moradores
Após encontros com líderes de movimentos de luta pela moradia e com o ITERJ (Instituto
de Terras do Estado do Rio de Janeiro) - órgão público que auxilia na legalização fundiária das
ocupações-, o objeto de estudos foi definido. A ocupação conhecida como ALMOR (Ação
Livre pela Moradia), situada na Avenida Mem de Sá, no bairro do Centro, foi selecionada como
foco de pesquisa devido ao contexto urbano em que está inserida, ao caráter familiar e pacífico
e ao tempo de permanência dos moradores. Além disso, o edifício foi pouco estudado por outros
pesquisadores, diferentemente de outras ocupações como a Chiquinha Gonzaga e o Manoel
Congo.
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Metodologia
A pesquisa desenvolvida se divide em dois métodos: teórico e prático.
A primeira consiste na seleção de três temas que devem servir como pilares estruturantes do
trabalho:
1- A compreensão do processo de transformação urbana da Região Central do Rio de
Janeiro, a partir da Reforma de Pereira Passos no início do século XX, até o início da
Operação Porto Maravilha [3].
2- O atual modelo de produção de habitação social, representado pelo Programa Minha
Casa Minha Vida, e suas características de implantação na Cidade do Rio de Janeiro [4].
3- As ocupações de edifícios vacantes na cidade, nos últimos 20 anos[5].
Esses temas foram definidos com o objetivo de compreender: o local em que a ocupação
está inserida; o motivo de algumas pessoas optarem por habitar um edifício de forma irregular,
em desacordo com o que é proposto pelo poder público; e as características apresentadas por
outras ocupações e os movimentos de luta pela moradia que muitas vezes os apoiam. Foram
utilizados livros, e artigos científicos e foram realizadas entrevistas para abordar os três temas
escolhidos.
Em paralelo à pesquisa teórica, foram realizadas visitas à ocupação ALMOR com a
finalidade de melhor compreender o objeto arquitetônico, os moradores e suas dinâmicas de
convivência e as formas de apropriações dos espaços físicos. O maior desafio dessa pesquisa in
loco é o contato com os moradores e as informações [6]. É comum que ocupantes tenham certo
receio com pessoas de fora por temer remoções e a exposição. Ao longo das visitas, é notória a
evolução dos diálogos com os moradores e, assim, o acesso às informações.
O Centro da cidade do Rio de Janeiro
Para embasar o contexto histórico do Centro foram utilizados os livros “Evolução Urbana
do Rio de Janeiro” [2] e “ Contribuição ao estudo da produção e transformação do espaço da
habitação popular. As habitações coletivas no Rio Antigo” [3].
O Centro do Rio de Janeiro sempre foi um local de extrema importância para a cidade. A
região já sofreu diversas mudanças desde o descobrimento do país, porém seu caráter primordial
de centro comercial, empresarial e governamental se manteve.
O esvaziamento do Centro que será abordado envolve a questão da migração habitacional
e da transferência de órgãos públicos e privados para Brasília com a mudança da capital.
Compreendo que para melhor entendimento a respeito da questão habitacional seja adequado
selecionar a história do Centro ao longo do “período de transição” (FESSLER VAZ, LILIAN
1985) e o atual momento.
O período de transição tratado por Lilian Fessler Vaz compreende o momento a partir da
segunda metade do século XIX até o início do século XX. Nesse espaço de tempo, a vida e a
configuração da cidade do Rio de Janeiro foram afetados. Fatores como a Abolição da
escravatura, migração do campo para a cidade, imigrantes estrangeiros chegando no país, crise
da habitação e fortalecimento de um modelo capitalista influenciaram diretamente para tal
transição.
Durante o período de escravidão, os investimentos e a mão-de-obra se concentravam nas
lavouras cafeeiras. Após a Abolição, a agricultura fluminense entrou em crise devido à falta de
mão de obra sem custos tendo que pagar salário aos funcionários pelos serviços realizados. Essa
situação resultou na migração de investimentos e de trabalhadores para as atividades urbanas.
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Diante do contexto mundial, o Brasil era visto como um país promissor. Isso fez com que
grandes quantidades de imigrantes chegassem ao país à procura de oportunidades de
crescimento. Tal acontecimento, juntamente com a migração da população do campo para a
cidade citada, acarretou o surgimento de novas classes sociais que tornavam a região urbana
bastante diversificada e populosa. Além disso, o bairro abrigava oficinas, escritórios, comércio,
manufaturas, bancos, repartições públicas, porto, entre muitos outros usos, o que se transformou
em uma área bastante heterogênea e destoante das demais da cidade.
Influenciadas pela arquitetura portuguesa e devido a distribuição e configuração dos lotes,
as edificações na região eram estreitas e, por não possuírem afastamento lateral, eram mal
iluminadas e mal ventiladas. A questão da falta de iluminação e da ventilação é ainda presente
em grande parte dos edifícios ocupados. Tais circunstâncias da época do período de transição,
em conjunto com a superlotação das residências facilitaram o surgimento de epidemias como
de febre amarela, varíola e peste. A questão da falta de higiene tornou-se um fator de
descontentamento das classes sociais dominantes e em empecilho para grandes investidores de
capitais.
Com o rápido e desordenado crescimento populacional na cidade, a busca por moradia no
centro se intensificou. A região era visada devido a características como localização,
infraestrutura urbana e proximidade dos locais de trabalho (aspectos fortemente presentes ainda
nos dias atuais). A grande questão está associada ao volume de moradias disponíveis no local.
A quantidade de imóveis destinados a moradia não acompanhou o grande avanço populacional
da cidade. Tal questão fora um dos agentes que contribuíram para a forte inflação e especulação
imobiliária da região. A parcela da população afetada pela crise teve de encontrar opções para
lidar com a questão, já que a habitação é algo de extrema necessidade.
Algumas das soluções encontradas foram: a superlotação de casas existentes, a
conversão em dormitórios de cômodos não originalmente destinados a esse fim (exemplo:
sótãos e porões), construção de edificações em terrenos absurdamente estreitos, divisão de um
pavimento de pé direito único em dois pavimentos, o avanço para morros (origem das favelas),
utilização de ruínas e de cavernas. Sendo assim, pode-se dizer que a crise reinventou a forma
de habitar a cidade.
A instalação de linhas férreas e de bonde permitiu o avanço da malha urbana. Isso
juntamente com a grande oferta de terras a baixo custo permitiu uma nova solução para a
questão da habitação enfrentada pela população de baixa renda. Tais infraestruturas atraíram
indústrias e, também, operários para as regiões periféricas do Rio de Janeiro. Esse cenário é
ainda presente na cidade
O superadensamento na área central do Rio de Janeiro juntamente com problemas
relacionados à infraestrutura urbana de distribuição de redes de água e esgoto, que não
acompanharam o crescimento populacional, fizeram com que a questão higiênica da cidade se
agravasse, aumentando o surto de epidemias. A falta de higiene conferiu à cidade a fama
internacional de porto sujo.
Entre 1902 e 1906, Francisco Pereira Passos assumiu o cargo de Prefeito do Rio de
Janeiro. Pereira Passos teve de lidar com as questões relacionadas à superpopulação da cidade
como a carência de unidades habitacionais, redes de transporte, água, esgoto, saúde e segurança.
Para isso, realizou grandes e impactantes modificações que fizeram que seu governo fosse
popularmente apelidado de “Bota abaixo”. Tendo como molde a capital francesa, o Prefeito
visou o saneamento, o urbanismo e a arquitetura para transformar a cidade diante do cenário
internacional.
Com o auxílio do sanitarista Oswaldo Cruz, Pereira Passos criou medidas para higienizar
a cidade além de reorganizar a malha urbana permitindo maior trânsito viário. Cortiços,
casarões, casebres, entre outras formas de habitar, foram demolidos em ampla escala permitindo
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a abertura de extensas ruas e avenidas e a construção de edifícios comerciais icônicos, de
arquitetura de alto padrão.
Figura 1. Alargamento da Avenida Mem de Sá
Fonte: http://diariodorio.com/historia-da-avenida-mem-de-sa/ (retirada em junho 2017)
A ALMOR está localizada na Avenida Mem de Sá. Durante a reforma de Pereira Passos
diversas construções foram demolidas para que a via pudesse ser alargada. Tais modificações
foram realizadas para, além de resolver questões de higiene, ligar a Lapa e parte do Centro a
outras áreas da cidade. Poucos edifícios restaram após a Reforma de Pereira Passos. Atualmente
a rua contém no geral alguns poucos edifícios que restaram de antes da Reforma além de muitos
outros que foram construídos logo em seguida. A edificação ocupada pela ALMOR foi
construída no ano de 1920, época em que a Avenida Mem de Sá ainda passava por mudanças.
Na figura 1 é possível notar a abertura da via após a demolição de imóveis além do bonde,
principal meio de transporte coletivo da época, circulando.
A reforma concedeu à cidade o título internacional de “Cidade Maravilhosa” utilizado até
hoje. As questões da proliferação de epidemias e de falta de infraestrutura urbana foram
apaziguadas. Grandes investimentos de capitais passaram a se concentrar no Centro que
praticamente deixou de ter uso residencial. A região, vista como porta de entrada para a cidade
e para o país, passou a permitir que o Rio de Janeiro assumisse grande importância no cenário
internacional.
Apesar das grandes conquistas que a Reforma trouxe para a cidade, ela também trouxe
algumas consequências que são vivenciadas até os dias atuais. As principais delas estão
relacionadas com a habitação. Como inúmeras moradias foram removidas do Centro, a
população afetada teve praticamente duas alternativas: migrar para áreas periféricas da cidade
ou ocupar os morros. Os moradores de locais afastados costumam enfrentar questões como falta
de infraestrutura urbana e perda de tempo de deslocamento até os grandes centros de trabalho.
Esses são os principais transtornos gerados pelo atual modelo de produção de habitação social,
o Programa Minha Casa Minha Vida. O governo de Pereira Passos pode ser visto também como
um dos grandes responsáveis pelo intenso crescimento das favelas da cidade.
“A calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, tanto para aumentar o número
de olhos atentos quanto para induzir um número suficiente de pessoas de dentro dos edifícios a
observar as calçadas. ” (JACOBS, 2011. p36)
Outra consequência presente até os dias atuais, decorrente da reforma de Pereira Passos,
é a grande oscilação de fluxo de pessoas no Centro. Como a região é majoritariamente de usos
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comercial e empresarial, possui horários de pico de circulação de pessoas. Fora desses horários,
as ruas se tornam praticamente desérticas e inseguras. Para resolver essa questão, segundo
Jacobs, é necessário que as ruas abriguem os mais variados usos, incluindo o residencial, para
que atraiam pessoas constantemente [7].
Em 21 de abril de 1960 a cidade de Brasília foi inaugurada e nomeada como capital
federal. Construída pelo presidente em vigor Juscelino Kubitschek, recebeu milhares de
empresas, funcionários públicos e investimentos. O Rio de Janeiro, antiga capital, sofreu um
esvaziamento que derivou em inúmeros imóveis tanto públicos quanto privados vacantes. A
maioria desses encontra-se sem uso até os dias atuais. Os públicos são os principais focos de
ocupações.
Mapa 1. Centro x ALMOR x Região Portuária1
O projeto do Porto Maravilha foi lançado em 2009 com o objetivo de revitalizar a região
portuária do Rio. Organizado e financiado pelo Poder Público Municipal e por iniciativas
privadas, o projeto propõe tornar a área apta para receber instalações ligadas aos dois grandes
eventos sediados pela cidade, a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016. Além
disso visa promover atrações turísticas, cultura, geração de empregos, desenvolvimento
econômico, melhorias no transporte público e a retomada das habitações no Centro.
A região portuária ocupa um terço da área do Centro. A partir do mapa 1, é possível notar
a dimensão dessa e a distância com a ALMOR. A Avenida Mem de Sá, onde encontra-se a
ocupação, não está inserida no projeto do Porto Maravilha. Segundo reportagem divulgada pelo
site do jornal EXTRA [8], a rua é a quinta no ranking das 50 ruas com maior índice de
ocorrências criminais registradas no Rio de Janeiro. Poucos foram os investimentos públicos
1 Quando a fonte não for indicada, representa que o mapa ou a figura é de autoria própria.
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realizados na avenida e em seu entorno imediato nos últimos tempos, dado que pode ter
influenciado para tamanha violência na região.
O Centro é o bairro com maior quantidade de edifícios vacantes da cidade, apesar de ser
uma das regiões mais bem servidas de infraestrutura (empregos, redes de saúde, de educação
de transportes e de serviços). Segundo o Estatuto das Cidades, um edifício abandonado equivale
a um vazio urbano, não cumpre a sua função social. Além disso, um imóvel ocioso resulta em
danos tanto estruturais quanto em seu entorno. A falta de manutenção de um edifício tende a
levá-lo ao estado de degradação podendo até desabar. A região na qual o imóvel abandonado
está inserido tende a sofrer prejuízos como a desvalorização por ser um foco de violência. O
edifício sem uso é um forte atrativo para que as atividades ilícitas e roubos que podem acontecer
tanto dentro das instalações quanto em seu redor.
O Programa Minha Casa Minha Vida
No final do ano de 2008 uma grande crise internacional se alastra, fazendo que em 2009
se inicie uma retração econômica e desaceleração do PIB. Dentre as medidas tomadas pelo
Governo Federal, está o estímulo de atividades econômicas principalmente no setor da
construção civil e infraestrutura. Tais setores foram estimulados devido ao fato de gerarem
crescimento significativo na oferta de empregos e por movimentarem o PIB.Com o intuito de
privilegiar o setor da construção civil, gerar empregos e de lidar com a questão do déficit
habitacional do país, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) foi criado no ano de 2009,
no mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O Programa previu a construção de um
milhão de unidades habitacionais no prazo de dois anos com o orçamento de R$ 34 bilhões de
reais (sendo R$ 25,5 bilhões do Orçamento Geral da União, R$ 7,5 bilhões do FGTS e R$ 1
bilhão do BNDES). Diferentemente de outros programas habitacionais, o Programa não possui
um foco em uma única camada da sociedade, envolvendo assim famílias que recebem entre
zero até dez salários mínimos mensais. Devido à ampla variedade de camadas da sociedade,
grupos de famílias são divididos de acordo com a faixa de renda e beneficiados com diferentes
formas de financiamento.
Figura 2. Residencial Salvação, Pará – PMCMV
Fonte: http://www.dci.com.br/politica/governo-suspende-3ª-fase-do-minha-casa-minha-
vida,-diz-ministro-ao-estadao-id549746.html (retirada em maio de 2017)
É comum em toda grande cidade que quanto mais próximo dos principais centros, mais
valorizado é o imóvel. A lei da oferta e da procura está diretamente relacionada aos locais
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escolhidos pelo Governo para implantar os conjuntos do Programa Minha Casa Minha Vida. A
grande oferta de terras a baixo custo torna municípios menores e zonas nas periferias de grandes
cidades potenciais locais para construção de conjuntos de habitação social. Porém, a qualidade
de vida dos moradores é afetada a partir do momento em que se passa longos períodos de
deslocamento até o local de trabalho em um sistema de transporte público ineficiente e
malconservado. O Programa, que foi criado como uma promessa de inclusão social por meio
de moradia adequada, vem reproduzindo um padrão de cidade segregada. Além de afastar os
beneficiados, o PMCMV replica falhas nos quesitos infraestrutura, oferta de serviços e
qualidade arquitetônica. São entregues unidades habitacionais em massa sem investimentos na
implantação de outros usos fundamentais para os moradores. Além disso, questões como
ventilação, incidência solar, contexto urbano e público alvo são pouco desenvolvidas, o que
afeta a qualidade do projeto. Tal fato se reflete na reprodução de edificações de tipologias pouco
variadas e sem singularidade. Essas costumam ter o gabarito baixo devido a amplitude dos
terrenos e o alto investimento estrutural necessário para verticalizar um edifício (mapa 2).
Mapa 2. Remoções de moradores na gestão de Eduardo Paes
Fonte: FAULHABER; AZEVEDO, 2015: 67
Segundo o mapa acima [4], é possível identificar as remoções feitas no Rio de Janeiro
durante a gestão do prefeito Eduardo Paes, no mesmo período das obras realizadas para os
megaeventos recebidos pela cidade. Entre os anos de 2009 e 2013, mais de 65 mil pessoas foram
removidas de suas residências com a justificativa de trazer benefícios para a cidade como um
todo. Como no bota-baixo de Pereira Passos, a população de baixo poder aquisitivo foi retirada
de suas moradias para que determinadas áreas da cidade se desenvolvam. A maioria dessas
pessoas foi realocada para conjuntos habitacionais do Programa Minha Casa Minha Vida que,
no geral, estão inseridos em regiões periféricas, distantes dos grandes centros urbanos.
As ocupações de edifícios vacantes
As ocupações surgiram não só para resolver a questão da habitação, mas também como
uma forma de contestação política. Busca exigir um lugar na sociedade atual, excludente e
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segregadora. Diferentemente das favelas, onde a residência é adquirida em grande maioria
através de relações comerciais, as moradias oriundas de ocupações são conquistadas através de
uma ação política. Segundo princípios de movimentos de luta pela moradia, uma unidade
residencial ou terreno ocupado não pode ser vendido nem mesmo alugado [5]. A ocupação deve
ser destinada apenas à moradia e a atividades que elevem a qualidade de vida dos moradores.
São organizadas, planejadas e formadoras de identidade.
O público das ocupações compreende a parcela da população que reside nas ruas (os sem-
teto) e os de residência inadequada. A partir de uma ocupação, uma identidade local é formada.
O espaço deixa de ser um espaço abandonado, sem função social, sem apego emocional e passa
a receber um significado. A apropriação afetiva do espaço por um determinado grupo social o
transforma em um lugar carregado de valor, sentimentos, histórias, costumes, subjetividades
que o torna distinto dentre os demais espaços e lugares da cidade.
Quando os atores sociais se servem de materiais culturais que estão ao seu alcance, são
capazes de construir uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e de
provocar a transformação de toda a estrutura social [9]. Sendo assim, a ocupação não apenas
tem um papel transformador nas vidas dos ocupantes como também tem o potencial de
influenciar em uma estrutura social como um todo. A identidade se extravasa além dos limites
das áreas ocupadas e influencia a identidade de uma população como um todo.
Segundo o MNLM (Movimento Nacional de Luta pela Moradia) há uma grande diferença
entre invadir e ocupar. A invasão ocorre quando a entrada se dá em um local que já está sendo
utilizado. Já a ocupação, quando o local não está atendendo a função social de propriedade
prevista na Constituição, ou seja, encontra-se sem uso, abandonado. Como os movimentos de
ocupação se alocam em terrenos e construções sem uso, é incorreto nomear tal ação como
invasão. Apesar disso, é muito comum que as ocupações sejam vistas como invasões, gerando
assim preconceito e julgamentos impróprios.
A ocupação Manoel Congo é um marco na luta por moradia popular no Rio de Janeiro.
O edifício que se localiza ao lado da Câmara dos Vereadores, no Centro, pertencia ao INSS e
esteve por mais de doze anos sem uso. Em 2007 o Manoel Congo ocupou o prédio e, após seis
anos de intensa luta, conseguiu a posse e verba dos governos federal e estadual para executar a
reforma. Essas conquistas foram possíveis principalmente graças a união entre os habitantes
que tornaram a luta mais sólida, com objetivos bem definidos. A configuração espacial original
do edifício influenciou diretamente na aproximação entre os moradores e na organização dos
ideais exigidos. As unidades não possuíam cozinha nem banheiro próprio, sendo assim, os
moradores tinham de compartilhar esses espaços. As refeições eram feitas em conjunto, criando
um vínculo quase que familiar entre os residentes. Regras e horários mantinham a ordem e
harmonia na ocupação. Após a conquista de posse e o início das obras de reforma, novas pessoas
se mudaram para o prédio e muitas unidades passaram a ter os cômodos que faltavam. Segundo
o relato de uma senhora residente desde o início, essas mudanças prejudicaram a rotina da
ocupação. Muitas das regras deixaram de ser cumpridas e os moradores estão cada vez mais
distantes devido à falta de convívio.
A ALMOR
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Fig. 3. Fachada da ALMOR
Fonte: Google Street View (retirada em junho de 2017)
A ALMOR tem muito em comum com o Manoel Congo antes da legalização fundiária.
O edifício foi ocupado em dezembro de 1997 por 56 famílias vindas em grande maioria do
nordeste do país. Atualmente são 32 distribuídas nos três pavimentos do edifício (fig. 3), sendo
que grande parte dessas reside lá desde o início. Segundo a líder da ocupação, a principal razão
para a saída de 24 famílias é a dificuldade de convívio entre os demais moradores. A ocupação,
que nunca chegou a ser removida, é uma das mais antigas do Centro. São quase duas décadas
de luta pelo direito da propriedade apoiados por associações e movimentos de luta moradia
como o Chiq. Da Silva2, o MNLM (Movimento Nacional de Luta pela Moradia), CCL (Comitê
de Cultura e Luta) e o FIST (Frente Internacional dos Sem-Teto). Segundo os moradores, a
principal qualidade do edifício ocupado é a localização. O imóvel está inserido em uma região
rodeada de transportes, ofertas de serviços, redes de saúde e de educação. Grande parte dos
ocupantes trabalha nas redondezas, o que evita a perda de tempo de deslocamento, fato comum
nas grandes cidades.
2 O Chiq. da Silva é uma instituição que desenvolve projetos de habitação de interesse social. Um projeto de
reforma do edifício ocupado pela ALMOR foi elaborado pelos arquitetos da instituição com a participação dos
moradores.
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Figura4. Escada principal, estilo Art déco
O edifício possui ornamentos estilo Art déco originais da época em que foi construído, na
década de 20. A escada principal contém a maior parte desses ornamentos presentes atualmente
(fig. 4). Apesar do desgaste do tempo, a estrutura dela se mantém bem conservada, necessitando
apenas de reformas básicas. Amplas janelas permitem iluminação e ventilação, algo escasso
nos corredores do primeiro pavimento.
O imóvel que é de propriedade da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
instalou a Secretaria de Educação até meados dos anos 80. Depois da saída da Secretaria, o
edifício passou mais de uma década sem uso até ser ocupado pela ALMOR. A configuração
espacial original do imóvel não foi concebida para uso habitacional, fato que resulta em
algumas questões infraestruturais vividas pelos moradores. A falta de banheiro e de cozinha em
grande parte das unidades, problema também enfrentado pelos habitantes do Manoel Congo no
passado, é comum em ocupações de edifícios projetados para receber atividades diferentes de
habitação ou hotelaria. Segundo relatos dos moradores, esse é o principal problema enfrentado
pelos moradores, sem contar a questão da legalização do imóvel.
Figura 5. Espaço de convívio
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Figura 6. Conta de luz dividida entre os moradores
Figura 7. Informativos sobre situação legal do edifício
O fato das famílias serem basicamente as mesmas desde o início da ocupação, gera maior
conexão entre os moradores e cria sentimento de pertencimento ao lugar. Regras de convivência
são implantadas, discutidas e revisadas para manter a ordem dentro do imóvel. Graças a elas a
ocupação não sofre com problemas comuns em outras ocupações como o tráfico de drogas e
violência. Assembleias são realizadas com frequência para se discutir principalmente assuntos
relacionados à luta pelo direito da propriedade, a questões de contas, eventos, desentendimentos
e reformas emergenciais. Essas reuniões acontecem em um salão (figura 5) localizado no térreo
do imóvel. No mesmo espaço acontecem também missas de uma igreja evangélica,
comemorações e bazares. Além disso moradores e conhecidos utilizam o espaço como depósito
de carrocinhas, móveis e brinquedos de aluguel para festas infantis. Para proteger esses itens, o
salão é trancado, restringindo assim o acesso fora do horário das atividades.
As contas (figura 6) são expostas no hall de entrada do edifício e divididas igualmente
entre os moradores maiores de idade. Nesse local são divulgados também os anúncios de
eventos, o andamento dos processos de legalização fundiária (fig. 7) e informativos. Além
disso, como o salão de eventos permanece trancado na grande parte do tempo, é no hall de
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entrada que acontece grande parte das brincadeiras das crianças e do convívio diário entre os
adultos. A permanência nesse espaço acontece majoritariamente durante os finais de semana,
nos dias úteis os moradores o utilizam apenas como passagem para chegar em seus
apartamentos. Esse é o único cômodo visível para os pedestres que passam pela ocupação.
Figura 8. Circulação do primeiro pavimento
Figura 9. Circulação do segundo pavimento
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Figura 10. Grades no acesso do segundo pavimento
Os espaços de circulação são utilizados como ampliação das unidades. A falta de
metragem dos apartamentos se reflete na apropriação desses espaços pelos moradores. Esses
servem de depósito de móveis, objetos e material de construção (fig.8 e fig. 9), além de área de
convívio e de brincadeiras. No último pavimento, quase todas as unidades não possuem
iluminação e ventilação adequadas. Devido a isso, os moradores aproveitam as janelas do
corredor como varal para secar as roupas lavadas (fig.9). Nesse mesmo andar os moradores
fixaram grades que restringem o acesso das crianças devido ao incômodo causado pelas
brincadeiras (fig. 10). Essa barreira coloca os moradores em perigo em caso de incêndio por
afetar a rota de fuga. Além disso, nem todos que residem nesse pavimento possuem a chave de
acesso, dependendo de vizinhos.
Há uma questão de má distribuição de espaços e infraestrutura nas unidades do edifício.
Enquanto alguns apartamentos possuem dimensões confortáveis, banheiro e cozinha próprios
(como o fotografado), outros enfrentam problemas de falta de espaço e dessas infraestruturas
básicas, tendo que compartilhá-las. Essa distribuição não é feita a partir do número de
moradores de cada unidade e sim por razões como tempo de ocupação e poder. Devido a
questões de privacidade, apenas uma das unidades visitadas pôde ser fotografada e divulgada,
a da líder. Ela é a pessoa que representa a ocupação em assuntos externos, além de lidar com
questões internas. Sua importância para a ALMOR e o longo tempo de residência no imóvel
permitiu que ela se instalasse em um apartamento melhor diante da maioria dos outros.
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Figura 11. Planta baixa primeiro pavimento3
3 As unidades habitacionais que não foram analisadas não estão com as divisórias internas representadas devido
à dificuldade de acesso.
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Figura 12. Planta baixa apartamento analisado
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Figura 13. Cozinha unidade da líder Figura 14. Cozinha unidade da líder
Figura 15. Dormitório da unidade Figura 16. Dormitório da unidade
A líder reside no edifício desde o dia em que foi ocupado. Situado no primeiro pavimento,
algumas poucas modificações foram realizadas no apartamento dela, permitindo maior conforto
(fig. 12). O apartamento apresentava originalmente um quarto que foi transformado em dois,
banheiro e um pequeno cômodo utilizado como depósito. A principal mudança feita pela
moradora foi a criação de uma cozinha (fig. 13 e fig. 14) em uma área anexada ao edifício. O
quarto é um espaço amplo, único e de pé direito alto. Um grande armário foi posicionado no
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centro do espaço, dividindo-o em dois (fig. 15 e fig. 16). É comum em muitas unidades da
ALMOR a divisão de espaços através de mobiliário ou de cortinas. Essas criam apenas uma
separação visual entre os cômodos e limitam o fluxo de passagem, não proporcionam
isolamento acústico. Em alguns poucos casos, foram construídas alvenarias para se dividir
cômodos. Esse tipo de divisória apesar de melhorar a questão acústica, pode colocar a estrutura
do edifício em risco devido à grande adição de carga.
Conclusão
Desde a metade do século XIX o Centro vem sofrendo forte especulação imobiliária. A
valorização do bairro pressionou o afastamento da população de baixo poder aquisitivo para
regiões periféricas, com menos infraestrutura. Lutando contra essa pressão, uma parcela dessa
população afetada criou soluções para se manter no Centro. Essas soluções no geral não eram
tão eficazes devido ao fato de criar espaços insalubres. Atualmente as ocupações de edifícios
vacantes para fins de moradia no Centro vêm reproduzindo muitas das questões vividas no
passado. As mais comuns são a transformação de espaços em dormitórios muitas das vezes
apertados, mal ventilados e mal iluminados, banheiros e cozinhas insuficientes para a
quantidade de moradores e a divisão de pavimento de pé direito único em dois pavimentos.
Como no passado, a qualidade de vida das pessoas é afetada devido às condições físicas das
moradias.
Referências
1- FREIRE, LETÍCIA DE LUMA. MELLO, MARCO ANTÔNIO DA SILVA. LIMA,
ROBERTO KANT DE (org). Pensando o Rio: Políticas Públicas, Conflitos Urbanos
e Modos de Habitar. Rio de Janeiro: Eduff, 2015.
2- ABREU, MAURÍCIO DE A. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. 4 ed. Rio de
Janeiro: IPP, 2013.
3- VAZ, LILIAN FESSLER. As Habitações Antigas no Rio Antigo. Contribuição ao
Estudo da Produção e Transformação do Espaço da Habitação Popular. Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 1985. Tese – UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
4- FAULHABER, LUCAS, AZEVEDO, LENA. SMH 2016: Remoções no Rio de
Janeiro Olímpico. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2015.
5- MAMARI, FERNANDO G.C. Se morar é um direito, ocupar é um dever: As
ocupações de Sem-teto na Metrópole do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.
6- MINAYO, MARIA CECÍLIA DE SOUZA (org). Pesquisa Social: Teoria, método e
criatividade. 25 ed. Petrópolis: Vozes Ltda., 1993.
7- JACOBS, JANE. Morte e vida de grandes cidades. 3 ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010.
8- https://extra.globo.com/casos-de-policia/saiba-quais-sao-as-50-ruas-com-mais-roubos-
pedestres-no-rio-21621990.html (retirado em 24 de julho de 2017)
9- CASTELLS, MANUEL. A sociedade em rede. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999
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