UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
GISELLE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
DISCIPLINA, DIREITO E SUBJETIVAO: Uma anlise de Punio e estrutura social, Vigiar e punir e Crcere e fbrica.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP como requisito para obteno do ttulo de mestre em Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. Mrcio Bilharinho Naves
CAMPINAS 2010
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Bibliotecria: Ceclia Maria Jorge Nicolau CRB n 3387
Ttulo em ingls: Discipline, law and subjectivation: an analysis of Punishment and social structure, Discipline and punish and The prison and the factory
Palavras chaves em ingls (keywords) :
rea de Concentrao: Teoria Sociolgica
Titulao: Mestre em Sociologia
Banca examinadora:
Data da defesa: 26-03-2010
Programa de Ps-Graduao: Sociologia
Law Prison Discipline Subject (Philosophy) Marxism
Mrcio Bilharinho Naves, Alysson Leandro Barbate Mascaro, Jair Pinheiro
Vianna, Giselle Sakamoto Souza V655d Disciplina, direito e subjetivao: uma anlise de Punio e
estrutura social, Vigiar e punir e Crcere e fbrica / Giselle Sakamoto Souza Vianna. - - Campinas, SP : [s. n.], 2010.
Orientador: Mrcio Bilharinho Neves. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.
1. Foucault, Michel, 1926-1984. 2. Direito. 3. Priso. 4. Disciplina. 5. Sujeito (Filosofia). 6. Marxismo. I. Naves, Mrcio Bilharinho, 1952- II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.
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Para vov Satiko e vov Marij, com a alegria das lembranas vivas.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo ao Maurcio, por todo o amor, apoio e zelo durante e antes, dentro e fora do mestrado. Agradeo a ele e ao Filipe Mello tambm pelas parcerias literrias que tornaram este tempo mais leve e mais criativo.
minha irm Candice, pela infinita amizade e sincronicidade, por dar-me a certeza de que, com uma irm assim, nunca estarei solitria. Agradeo a ela tambm pela ajuda nas leituras e tradues de textos em francs.
Aos meus pais, Midory e Bruno, por me acolherem em meu retorno a Campinas, por terem sempre colocado a educao, cultura e vivncia das filhas acima de tudo. Ao amor insistente de nossa famlia que faz com que a cada encontro haja (ainda) mais afeto. Ao meu querido orientador Mrcio Naves, que tanto admiro por sua contribuio imensa ao estudo marxista do direito, por seu rigor terico, sua amizade, honestidade e, acima de tudo, seu modo sensvel e generoso de tratar todas as pessoas, que transmite a esperana na construo de relaes mais humanas. professora Rosana Baeninger, pela oportunidade de pesquisar no NEPO e pelo incentivo carinhoso ao meu sonho de fazer mestrado. professora Jeannette Maman, pela confiana e pelas lies de filosofia e potica do convvio. Aos colegas que conheci em seu curso no Largo So Francisco, em 2007, agradeo tambm pelas reflexes e carinho. Aos professores Josu Pereira da Silva, Marcelo Ridenti, Jesus Ranieri, Alexandre Alves, Margareth Rago, por tudo o que aprendi em seus cursos.
minha professora de canto, Indira, que me ensinou, nas alegrias da msica e nos cuidados com a voz, a celebrar e respeitar a fragilidade da vida.
Aos meus queridos amigos da ps-graduao da UNICAMP, Marina, Miqueli, Paola, Mariana, Elton, Joo Batista e Jos, que fizeram do mestrado um momento muito maior, de encontros e amizades. Elisa, Paola, Claudio e Luca Bevini, por seu lindo modo de viver que me presenteou com a utopia.
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Carmelinda, Ana Elosa Krueger, Carmem, Joo Silvrio Trevisan, Nelson de Oliveira e professora tala DOttaviano, que foram muito importantes neste perodo.
Ana Carolina, pela amizade e auxlio com os textos em alemo. Ao Joo Paschoal, pela reviso do texto.
Aos meus queridos amigos do CISV (Convivncia Internacional de Jovens) que participaram do Interchange Campinas Modena, e suas famlias, que nunca deixaram faltar carinho nestes tempos de tanto estudo.
Aos meus amigos de Cuiab, especialmente ao Guapo, que me ajudou a transportar pilhas de livros para a pesquisa e que, desde ento, me mostra, com sua arte, vida e pesquisa, a riqueza da cultura matogrossense e a possibilidade de uma esttica da existncia.
Aos meus amigos Lo, Hend, Dia, Aninha, Mara, Alusio, Flvia, Fabrcio, Thalita, Danira, Eleonora, Fernanda, Carol, Roberta, Miriam, Marcela, Mari, Sueli, Ana Cristina, Filipe, Alexandre, Joelton, Silvia, Laudiemy, Anna Beatryz, Inez, Helena, Adriana, Leonardo, Sheila e Oacy, pelo carinho, pela energia e por estarem comigo tambm na arte de se fazer presente distncia.
Aos meus amigos de Santo Andr, que sempre acreditaram neste mestrado. CAPES e FAPESP, pelas bolsas concedidas e que foram de suma importncia para o desenvolvimento da pesquisa. A todos (e a tudo) que me ajudaram a fazer deste sonho nunca um desespero, nunca uma obrigao, nunca uma vaidade, mas sim uma experincia de contentamento, descobertas, mutaes, vazios e significados o calmo (e atento) encanto de um passeio.
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HIS MASTER'S VOICE Alberto Pimenta
todo o cidado que re clama do estado uma p restao de contas do s actos por este prat icados mostra dessa m aneira a sua falta de confiana no estado, m otivo esse suficiente para que o estado por sua vez o faa prest ar contas de tal acto
todo o cidado que se refere ordem estabe lecida como se se tratasse de uma ordem su bstituvel mostra que no est nela integra do, motivo esse sufici ente para que o estad o proceda sua integ rao usando dos meios conferidos pela ordem
todo o cidado que af irma desconhecer o mo tivo por que foi pres o d assim a entender que em sua opinio os cidados podem ser pr esos sem motivo, opini o essa que por si co nstitui motivo sufici ente para se encontra r efectivamente preso
todo o cidado que mo stra medo dos servio s de segurana do est ado revela desse modo a sua insegurana den tro do estado, motivo esse suficiente para que seja efectivament e vigiado e controla do pelos servios de segurana do estado
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RESUMO
Esta dissertao uma pesquisa sobre trs obras: Punio e Estrutura Social, de Georg
Rusche e Otto Kirchheimer, Vigiar e Punir: nascimento da priso, de Michel Foucault, e
Crcere e Fbrica: as origens do sistema penitencirio (sculos XVI-XIX), de Dario Melossi e
Massimo Pavarini. Trata-se de uma discusso terica, a partir das contribuies dos autores
citados, acerca das relaes entre a forma jurdica da pena de priso, o regime disciplinar do
crcere e a consolidao do modo de produo capitalista. A partir das articulaes entre
direito, disciplina, produo e subjetivao, o estudo busca compreender a priso em seu papel
de produo e controle da fora de trabalho para um capitalismo nascente, entre os sculos
XVI e XIX. E, por fim, mostrar como a forma jurdica da equidade contratual (noo de
equivalente) possibilita a assimetria das relaes de explorao (mais-valia) atravs do elo
coercitivo do sujeito cuja liberdade a necessidade de vender-se.
Palavras-chave: direito, priso, disciplina, subjetivao, marxismo, Michel Foucault, teoria
crtica.
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ABSTRACT
This dissertation is a research on three works: Punishment and social structure, by Georg
Rusche and Otto Kirchheimer, Discipline and punish: the birth of the prison, by Michel
Foucault, and The prison and the factory: origins of the penitentiary system, by Dario Melossi
and Massimo Pavarini. It consists on a theorical discussion, based on the contributions from
the authors above, about the relations between the legal form of imprisonment, the prisons
disciplinary regime and the consolidation of the capitalist mode of production. Departing from
articulations between law, discipline, production and subjectivation, the study seeks to
comprehend prison in its role of labor force producer and controller, within the rising
capitalism of XVI-XIX centuries. Finally, it intends to show how the legal form of contractual
equality (the notion of equivalency) renders possible the assimetry of exploitation (surplus
value), through the coercitive bond of a subject whose liberty is the need to sell its own self.
Keywords: law, prison, discipline, subjectivation, marxism, Michel Foucault, critical theory.
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SUMRIO
Introduo ................................................................................................... 17
Capitulo I A pena de priso enquanto objeto de estudo.............................................19 1. A inveno do crcere ..............................................................................19 2. Punio e estrutura social de Georg Rusche e Otto Kirchheimer ............26 3. Vigiar e punir de Michel Foucault ............................................................33 4. Crcere e fbrica de Dario Melossi e Massimo Pavarini .........................40 5. Relaes preliminares entre as trs obras .................................................45
Captulo II Da regulao do mercado de trabalho disciplina...................................57 1. Priso e produo em Punio e estrutura social......................................57 1.1. Mercantilismo e pena de priso ...........................................................57 1.2. Iluminismo e direito penal ...................................................................63 1.3. Consequncias da revoluo industrial................................................65 1.4. Trabalhos forados e adestramento do proletariado ............................68 2. Disciplina e produo de sujeitos em Vigiar e punir.................................71 2.1. A reforma penal ...................................................................................72
2.2. A sociedade disciplinar........................................................................80 2.3. Produo e disciplina...........................................................................84 3. Produo de mercadorias e produo de sujeitos em Crcere e fbrica ...91 3.1. Disciplina e luta de classes ...................................................................91 3.2. Priso e produo de proletrios...........................................................94 3.3. O controle das classes perigosas...........................................................98
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Captulo III A relao entre direito e esfera produtiva ...............................................103 1. O direito no estudo da penalidade ..........................................................103 2. O direito em Vigiar e punir .....................................................................105 3. Direito e violncia: o binmio consenso-coao .....................................109 4. Direito e formao do capitalismo...........................................................114 5. A noo de equivalente e a soluo de um aparente paradoxo................119 6. O direito em Crcere e fbrica................................................................124
Captulo IV Subjetivao capitalista e sujeito de direito ............................................131 1. Dois conceitos de sujeito ........................................................................131 2. Subjetivao e governamentalidade na obra de Foucault ........................142 3. Biopoltica e direitos humanos ................................................................149 4. Das sociedades disciplinares s sociedades de controle ..........................157 5. Uma leitura de Marx depois de Foucault.................................................160
Consideraes finais ..................................................................................165
Referncias bibliogrficas .........................................................................171
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INTRODUO
O presente trabalho uma pesquisa sobre as origens da priso enquanto instituio
punitiva, entre os sculos XVI e XIX, sua relao com a formao do modo de produo
capitalista e as articulaes entre a forma jurdica, as disciplinas e um processo de
subjetivao.
A pena de privao de liberdade analisada em seus componentes de equidade
contratual entre sujeitos proclamadamente livres (forma jurdica) e de dominao hierrquica e
produo de sujeitos obedientes (regime disciplinar do crcere), buscando-se compreender
alguns encaixes entre essas duas facetas contraditrias.
O objetivo da pesquisa foi traar estas relaes a partir da leitura de trs obras
fundamentais: Punio e Estrutura Social, de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, Vigiar e
Punir: nascimento da priso, de Michel Foucault, e Crcere e Fbrica: as origens do sistema
penitencirio (sculos XVI-XIX), de Dario Melossi e Massimo Pavarini. Nosso foco principal
no est no levantamento de dados historiogrficos, nem tampouco no aprofundamento acerca
do processo de industrializao. Sobre um pano de fundo que envolve essas e outras temticas,
nossa preocupao centrou-se em fazer uma discusso terica a partir das anlises dos livros
estudados.
O primeiro captulo da dissertao apresenta o objeto da pesquisa, as obras analisadas e
algumas relaes preliminares entre elas. Essa exposio inicial versa sobre o tema da origem
e consolidao da priso enquanto pena, do sculo XVI ao XIX, traando um breve percurso
sobre a histria da penalidade moderna e a contextualizao geral das trs obras estudadas, que
serviro de base para as discusses dos captulos subsequentes.
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Em seguida, passamos a analisar mais detidamente alguns aspectos de cada um dos
livros. No segundo captulo, o tema de discusso a disciplina, justamente por ser ela o
conceito chave a partir do qual Melossi e Pavarini reelaboraram, com o aporte do pensamento
de Foucault, o debate marxista iniciado por Rusche e Kirchheimer. Partimos da abordagem
marxista da formao da classe trabalhadora, da fixao dos indivduos nas fbricas e
adestramento da fora de trabalho para o capitalismo nascente e, em seguida, analisamos a
microfsica da disciplinarizao de corpos para o trabalho, na obra de Foucault. Por fim,
chega-se articulao entre disciplina e produo que se costura de forma mais completa na
obra Crcere e fbrica.
J no terceiro captulo, temos a anlise do fenmeno jurdico nas obras estudadas, num
movimento complementar ao do captulo anterior: buscar, na obra de autores marxistas sobre o
direito, a reformulao da relao entre disciplina e o fenmeno jurdico, questo que no foi
totalmente resolvida em Vigiar e punir. A oposio entre lei e disciplina enquanto aparente
paradoxo apresentada inicialmente por Foucault repensada a partir da teoria do direito de
Evgeni Pachukanis, que encontra, na correlao do direito com a mercadoria, o segredo da
explorao produtiva e seu travestimento em equidade no mercado dos contratos.
Finalmente, o quarto captulo centra-se no tema da subjetivao, a contribuio maior
dos estudos da dcada de 70 sobre a relao entre sistema penal e relaes sociais de
produo. A partir da leitura de Evgeni Pachukanis, Louis Althusser e Bernard Edelman,
relacionamos o sujeito estudado por Foucault com a noo fetichizada de sujeito de direito que
constitui o cerne do direito moderno.
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CAPTULO I A PENA DE PRISO ENQUANTO OBJETO DE ESTUDO
1. A inveno do crcere
A origem do crcere remonta ao sculo XVI, integrando um processo mais amplo que
se pode chamar de inveno penitenciria, quando uma famlia de instituies nasce como
instrumentos, dispositivos e modalidades de constituio de sujeitos racionais (MELOSSI,
2002, p. 21).
A sociedade pr-capitalista conhecia o crcere enquanto instituio, mas no a pena de
internamento como privao de liberdade (MELOSSI, 2006, p.21). Ou seja, at aquele
momento, a priso era eminentemente processual, servindo custdia dos condenados para
facilitar a aplicao das penas propriamente ditas, que consistiam em sano pecuniria, pena
capital, banimento, punies corporais (esquartejamento, queima, marcao de corpos), etc.. A
priso no era uma punio1, uma pena de direito autnoma, aplicando-se apenas para
acompanhar os castigos.
Foi s a partir da modernidade europeia que a priso, outrora um instrumento que
auxiliava no cumprimento da pena, passou a se constituir numa pena propriamente dita e, mais
adiante no sculo XIX, na pena principal de sistemas punitivos no mundo todo: a privao da
liberdade por um tempo determinado.
1 Carcer enim ad continendos homines non ad puniendos haberi debet (As prises existem apenas para prender
os homens e no para puni-los) (Justinian. Digest, 48.19.8). Este o princpio dominante por toda a Idade Mdia e o incio da Idade Moderna. At o sculo XVIII, as grades foram simplesmente o lugar de deteno antes do julgamento, onde os rus quase sempre perdiam meses ou anos at que o caso chegasse ao fim (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 94-95). Segundo Rusche e Kirchheimer, as sentenas de priso s ocorriam excepcionalmente, na maior parte das vezes envolvendo as classes subalternas impossibilitadas de pagar a fiana. Melossi (2006, p. 21-22) aponta a natureza hbrida das sanes penais medievais, que atuavam como retribuio do mal (juridicizao da vingana) e expiao (castigo divino).
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Inspirou-se inicialmente nas penas reservadas aos eclesisticos em monastrios da
Europa (TREIBER; STEINERT, 1980 apud MELOSSI, 2002, p.21), mas que depois se
laicizaram:
Lutero, na verdade, venceu a servido pela devoo, porque a substituiu pela servido convico. Ele despedaou a f na autoridade, restaurando a autoridade da f. Ele libertou o homem da religiosidade exterior, fazendo da religiosidade a interioridade do homem. Ele desvinculou o corpo das correntes, acorrentando o corao (...). No se trata mais da luta do laico contra o padre, ou seja, qualquer coisa de externo, mas sim contra o seu prprio padre interior, contra a sua natureza curial. (MARX, 1950, p. 404 apud MELOSSI, 2006, p. 52).
Na passagem do sculo XVI para o XVII, no bojo da Reforma Protestante, ocorre o
que Melossi descreve como um encontro entre a pena eclesistica2 (embasada na penitncia e
isolamento em celas) e uma outra inveno: a manufatura. Segundo o autor, o
desenvolvimento da forma originria dos crceres (casas de trabalho e casas de correo) teria
ocorrido simultaneamente ao incio do desenvolvimento de formas protocapitalistas e do
protestantismo (MELOSSI, 2002, p. 22). Estes primeiros empreendimentos prisionais penais
(workhouses ou bridewells na Inglaterra; rasphuises, tuchthuises ou spinhuises na Holanda)
espalharam-se de Londres a Hamburgo, chegando a outras cidades da Liga Hansetica na
Alemanha setentrional, de Genebra Pensilvnia (onde se tornaram paradigmticos por via da
2 Segundo Melossi, o regime penitencirio cannico compreendia diversas modalidades de execuo de pena:
privao da liberdade se acrescentaram sofrimentos de ordem fsica, outras vezes o isolamento celular (...) e sobretudo a obrigao do silncio. Segundo ele, a pena do crcere cannico era um isolamento pelo tempo necessrio purificao e arrependimento, correo diante de Deus (2006, p. 24-25).
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instituio quaker de William Penn). A instituio penal da priso acabou se espalhando
inclusive nos pases catlicos, a exemplo da Itlia.
A atuao destas instituies reservava-se, de incio, a isolar e disciplinar aqueles que
possuam comportamento de insubordinao social menos grave, como a vagabundagem,
mendicncia e recusa a trabalhar nos termos da legislao em pocas de escassez de mo-de-
obra (como era geralmente o caso nesta fase inicial): na formao do capitalismo, as
instituies carcerrias tentavam constranger os recm-chegados do campo a se adaptar
vida urbana e manufatureira3 (MELOSSI, 2002, p. 22, traduo nossa). E este mecanismo
funcionava no s atravs da less elegibility (mantendo as condies dentro das prises
sempre inferiores s piores condies de fora, exercendo uma coero para que os indivduos,
tentando evitar de qualquer modo a deteno, optassem por praticar as condutas prescritas),
mas tambm por dispositivos disciplinares que, veremos adiante, transformavam os indivduos
e os ajustavam subordinao, tempo e comportamentos afeitos ao sistema produtivo.
No artigo Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial, Thompson
apresenta a questo do tempo da produo e do trabalho (a percepo do tempo enquanto
tecnologia e a medida do tempo como meio de explorao de mo de obra) no contexto do
disciplinamento da sociedade capitalista industrial nascente:
Os cercamentos e o excedente cada vez maior de mo-de-obra no final do sculo XVIII arrochavam a vida daqueles que tinham um emprego regular. Eles se viam diante da seguinte alternativa: emprego parcial e assistncia aos pobres, ou submisso a uma disciplina de trabalho mais exigente. (2008, p. 296-287).
3 No original: tentavano di costringere i nuovi venuti dalle campagne ad adattarsi alla vita urbana e
manifatturiera.
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A histria da origem da priso est, portanto, inserida no contexto da formao e
reproduo da classe trabalhadora. O crcere surge como uma instituio de fato que,
posteriormente, passa a ser discutida pelos reformistas e estipulada oficialmente como pena
principal nos ordenamentos jurdicos.
Nas palavras de Geraldo Ribeiro de S:
Nessas circunstncias, sobretudo a partir do sculo XVIII, vai ocorrendo a metamorfose do pecado em crime, do direito divino em Direito Penal, da vadiagem em delito, do coletivo em individual, da penitncia em priso, do confessionrio em tribunal. A morte como pena, pouco a pouco, restringe-se a casos especiais, e juntamente com o trabalho forado comeam a ser consideradas formas brbaras de punir, ganhando espao, e com tendncia universalizao, a pena privativa de liberdade. (1996, p. 27).
O regime das prises passou por diversos momentos, oscilando entre prticas de
escopo mais terrorista ou mais ressocializante.
Do final do sculo XIX primeira metade do XX houve um declnio das taxas de
aprisionamento4. Funes antes desempenhadas pelas prises passam a ser operadas em outra
parte e, por fim, vo surgindo novas formas de punio e meios de controle (a exemplo da
probation nos Estados Unidos, estudada por Ivan Jankovic).
Para alguns estudiosos, as mudanas nas relaes de produo capitalistas no sculo
XX colocam em xeque as prprias bases da instituio penitenciria, que se torna obsoleta e
4 Esse declnio teria ocorrido sensivelmente na Gr-Bretanha, Frana e Alemanha, segundo Rusche e
Kirchheimer, bem como na Itlia (MELOSSI, 2006, p. 26).
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incapaz de se encaixar em suas funes primitivas5. Entretanto, as ltimas dcadas do sculo
XX assistem ao movimento contrrio em boa parte do mundo: o crescimento das taxas de
encarceramento6 (e de uma cultura do medo).
Loc Wacquant descreve em As prises da misria, por sua vez, a passagem do estado-
providncia para o estado-penitncia, mostrando o deslizamento do social para o penal na
Europa, num contexto em que regulamentao da pobreza permanente pelo trabalho
assalariado sucede sua regulamentao pelas foras da ordem e pelos tribunais (2001, p. 129).
Segundo o autor, a Europa ocidental assistiu nos ltimos anos a um aumento da austeridade
penal e da restritividade dos programas sociais, que vieram de par com a mutao do modelo
de produo e a reorganizao do mercado de trabalho num movimento cada vez mais
permissivo (2001, p. 119)7.
Enquanto Western e Beckett mencionam, como duplo efeito da hipertrofia carcerria, a
reduo do ndice de desemprego no curto prazo e o crescimento contnuo do ndice de
encarcerados, Loc Wacquant sugere um outro efeito do encarceramento sobre o mercado de
trabalho, qual seja, (...) acelerar o desenvolvimento do trabalho assalariado de misria e da
5 Para Garland, aps dois sculos de otimismo racional e de crena no aparato tcnico para punir e controlar os
desviantes, no momento atual (de crise da punio moderna) at mesmo os especialistas reconhecem os limites da engenharia social (1990, p. 7-8). Contudo, Foucault mostra-nos que a instituio penitenciria j considerada falida por inmeros crticos desde o seu surgimento, mas que a reforma funciona como um programa da prpria priso: a priso se encontrou, desde o incio, engajada numa srie de mecanismos de acompanhamento, que aparentemente devem corrigi-la, mas que parecem fazer parte de seu prprio funcionamento, de tal modo tm estado ligados a sua existncia em todo decorrer de sua histria (1993, p. 208-209). 6 Na obra Saggi sul governo della penalit (2007), Pavarini e Guazzaloca se debruam sobre esta questo
contempornea do crescimento da populao carcerria na ltima dcada. Os autores descrevem o perodo como uma transio da pena que inclui para a pena que exclui. De fato, hoje a pena de priso parece assumir um papel duplo de incluso (pelo princpio do less eligibility, a disciplina de que no se deve cometer crimes reforada) e excluso (de quem efetivamente preso e, consequentemente, torna-se marginalizado no s no mercado de trabalho mas em mltiplos aspectos). 7 Tais transformaes envolveram dualizao do mercado de trabalho e aumento do desemprego de massa,
seguidos da intensificao da precariedade do trabalho assalariado, acompanhada de uma multiplicao dos dispositivos sociais visando tanto aliviar as situaes mais chocantes de desamparo quanto flexibilizar a mo-de-obra (WACQUANT, 102-103).
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economia informal, produzindo incessantemente um grande contingente de mo-de-obra
submissa disponvel. E conclui que aos ex-detentos restam apenas os empregos degradados
e degradantes, em razo do seu status judicial infamante (2001, p. 97).
Segundo Melossi,
Mais uma vez se manifestava aquela dialtica entre escria, scum, canaille e classe operria que se reproduzir a cada novo perodo de transformao profunda da sociedade capitalista, quando a velha classe operria, orgulhosa de si e do prprio papel, ser expulsa do modo de produo, e uma nova classe operria, mais jovem e geralmente proveniente do campo ou formada de estratos sociais em desgraa da cidade (ex-pequenos proprietrios, artesos etc.), ser induzido ao interior do contrato social e da fbrica. tambm este geralmente o movimento em que a instituio carcerria reencontra a prpria razo de ser e o prprio papel histrico, por assim dizer. Crcere e escria so produtos sociais estreitamente conexos. Uma condio de existncia do outro: o crcere para a escria e a escria definida pela existncia do crcere8 (MELOSSI, 2002, p. 49, traduo nossa).
Podemos afirmar que a obra Punio e estrutura social foi a primeira a abordar
especificamente esta relao entre sistema penal e esfera produtiva, tornando-se referncia
necessria no s para seus seguidores, mas tambm para seus crticos.
8 Ancora una volta si manifestava quella dialettica tra feccia, scum, canaille e classe operaia che si riprodurr
a ogni nuovo periodo di trasformazione profonda della societ capitalistica, quando la vecchia classe operaia, orgogliosa di s e del proprio ruolo, verr estromessa dal modo di produzione, e una nuova classe operaia, pi giovane e generalmente attirata dalle campagne o formata da strati sociali in disgrazia della citt (ex piccoli proprietari, artigiani ecc.), verr indotta allinterno del contrato sociale e della fabbrica. questo generalmente anche il momento in cui listituzione carceraria ritrova la propria ragion dessere e il proprio ruolo storico, per cos dire. Carcere e canaglia sono prodotti sociali strettamente connessi. Luna condizione dellesistenza dellaltro: il carcere per la canaglia e la canaglia definita dallesistenza del carcere.
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A citada obra, escrita por Georg Rusche e Otto Kirchheimer, recebeu grande ateno a
partir da dcada de 60, quando da sua republicao, aps quase 30 anos de seu lanamento.
Findo um longo perodo em que as preocupaes recaam sobre a guerra, a questo do sistema
punitivo foi revigorada pela crtica de Erving Goffman s instituies totais em 1961 e pelo
ressurgimento, no final dos anos sessenta, da temtica da reforma penal, em decorrncia de
ndices crescentes de criminalidade, rebelies nas penitencirias e descrena no sistema da
reabilitao (GARLAND, 1990, p. 4). Tambm a agudizao das represses e perseguies
policiais aps maio de 1968 um fator que teria reavivado as inquietaes acerca do poder
policial, do crcere e de outras instituies de internamento.
Em seguida, nos anos 70, o livro Punio e estrutura social influenciou alguns autores
marxistas, como Ivan Jankovic, David Greenberg e Dario Melossi. Seu redescobrimento
ocorreu, sobretudo, nos Estados Unidos, por meio da Critical criminology. Neste momento
que surgem as obras de Michel Foucault (Vigiar e Punir - 1975) e de Dario Melossi e
Massimo Pavarini (Carcere e Fabrica - 1977), ambas com o intento de estudar a instituio
prisional a partir da anlise das prprias prticas punitivas e dos processos de sua constituio
histrica.
Desde ento, a problemtica da punio e das prises ganhou grande relevo,
notadamente pela onda de encarceramento e superlotao das prises surgida nas ltimas
dcadas.
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2. Punio e estrutura social de Georg Rusche e Otto Kirchheimer
O livro Punishment and Social Structure foi publicado em 1939, tendo sido a primeira
obra da Escola de Frankfurt editada pela Columbia University Press de Nova Iorque. Porm, a
repercusso maior dessa obra deu-se com seu resgate na dcada de 60, no por acaso, em meio
crise do capitalismo (MELOSSI, 1982, p. 24).
As diretrizes gerais de Punio e estrutura social foram lanadas por Georg Rusche no
artigo Arbeitsmarkt und Strafvollzug (1933), publicado pelo Instituto de Pesquisa Social de
Frankfurt e, mais adiante, traduzido para o ingls na publicao Crime and Social Justice.
Este estudo anterior de Rusche volta-se para as inter-relaes histricas entre direito
penal, economia e luta de classes. Ao inventariar os diferentes sistemas punitivos e relacion-
los s relaes de produo de cada poca, Rusche lana as bases para a compreenso do
sistema prisional de seu tempo (RUSCHE, 1982, p. 13).
Expondo sua hiptese, que ser desenvolvida mais amplamente em Punio e estrutura
social, Rusche escreve que, para se tornarem efetivas, as sanes penais devem impor
condies de vida inferiores ao nvel das classes mais baixas, o que ele denomina de princpio
de less eligibility. Para que tal proposio ganhe concretude, diz o autor, necessrio que se
clarifique que a categoria econmica que determina a sorte de tais classes o mercado de
trabalho, uma vez que elas no tm outros bens disposio a no ser sua habilidade de
vender a prpria fora de trabalho9 (RUSCHE, 1982, p. 12, traduo nossa). Assim, o nvel
de absoro da oferta de mo de obra determinaria o nvel salarial e condies de vida das
classes trabalhadoras, influenciando fortemente o regime das penas.
Entretanto, tais dinmicas no se do de forma mecanicista:
9 Na lngua original: have no other goods at their disposal but their ability to sell their labor power.
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Naturalmente, a escassez ou excedente de trabalhadores no determina inequivocamente a natureza do mercado de trabalho. Intervenes polticas podem corrigir a flutuao da oferta e da procura. Quando h uma falta de trabalhadores, por exemplo, os empregadores podem tentar compensar a falta de incentivos econmicos introduzindo a escravido ou outras formas de trabalho forado, ou estabelecendo salrios mximos ou adotando medidas similares concernentes ao direito do trabalho. Quando h excedente de trabalhadores, os sindicatos podem proteger os salrios de quedas segurando a oferta de trabalho, ou o estado pode faz-lo atravs de medidas sociopolticas, particularmente pagamento de auxlio aos desempregados. Dependendo de qual destas situaes prevalecer, o aparato da justia criminal enfrentar tarefas distintas10 (RUSCHE, 1982, p. 12, traduo nossa).
Os captulos II a VIII de Punio e Estrutura Social foram escritos por Rusche
seguindo as hipteses e ideias centrais de seu texto de 1933, mas teriam sofrido alteraes do
coautor Otto Kirchheimmer, que se responsabilizou pela finalizao da obra aps o
desaparecimento de Rusche durante perseguio nazista.
Segundo Takagi e Platt:
A hiptese de Rusche em Punio e estrutura social funcionou bem quando aplicada a sociedades pr-industriais em que o trabalho podia ser forado e produtivo, mas aparentemente desmorona quando aplicada a sistemas punitivos do sculo XX. Isso se deve, em parte, ao fato de que a tese de
10 Naturally, the scarcity or surplus of workers does not unequivocally determine the nature of the labor market.
Political interventions can correct the fluctuation of supply and demand. When there is a lack of workers, for instance, the employers can try to compensate for the lack of economic incentives by introducing slavery or other forms of forced labor, or by setting maximum wages or taking similar measures pertaining to labor law. When there is a surplus of workers, the unions can protect wages from falling by withholding the supply of labor, or the state can do so through sociopolitical measures, particularly payment of aid to the unemployed. Depending on which of these situations prevails, the criminal justice apparatus will have to meet different tasks.
28
Rusche, da forma como foi originalmente concebida no artigo de 1933, no foi completamente desenvolvida. No fica claro por que Punio e estrutura social desviou da tese original de Rusche. Ns sabemos que Rusche escreveu os captulos II a VIII de Punio e estrutura social. O projeto ento deslocou-se da Alemanha para a Universidade de Columbia depois que Hitler subiu ao poder e o segundo autor, Otto Kirchheimer, completou o projeto e aparentemente modificou, no s a organizao do livro, mas partes dos originais de Rusche. O ensaio crtico de Melossi sobre Punio e estrutura social (1978) indica que Kirchheimer, em lugar de perseguir a tese de Rusche nos captulos restantes do livro, alargou e possivelmente enfraqueceu a tese de Rusche em sua anlise dos desenvolvimentos da poltica penal sob o fascismo. Deste modo, a escrita dplice do livro gerou inmeros problemas11. (PLATT; TAKAGI, 1982, p. 1, traduo nossa).
Com efeito, os captulos finais12 do livro exibem uma crena no reformismo penal que
contradiz a prpria argumentao inicial13. A preocupao com as taxas de criminalidade
ofusca o questionamento da prpria constituio da criminalidade, da produo da
delinquncia mais tarde estudada por Foucault. Por outro lado, a anlise de Kirchheimer sobre
11 Rusches hypothesis in Punishment and Social Structure worked well when applied to preindustrial societies
in which labor could be forced and productive, but it apparently breaks down when applied to punishment systems in the 20th century. This is due, in part, to the fact that Rusches thesis, as originally conceptualized in the 1933 article, has not been fully developed. Why Punishment and Social Structure deviated from Rusches original thesis is not clear. We do know that Rusche wrote chapters two through eight of Punishment and Social Structure. The project was then moved from Germany to Columbia University after Hitler came to power and the second author, Otto Kirchheimer, completed the project and apparently modified, not only the organization of the book, but portions of Rusches writings. Melossis review essay of P & SS (1978) indicates that Kirchheimer, rather than pursuing the Rusche thesis in the remaining chapters of the book, widened and possibly undermined Rusches thesis in his analysis of developments in penal policy under fascist rule. Thus, the double writing of the book generated a number of problems. 12
Por conta do recorte temporal da presente pesquisa, que abarca o surgimento da priso at meados do sculo XIX, os ltimos captulos de Punio e estrutura social quase no aparecem no ncleo de nossa anlise. Ainda assim, as questes levantadas por Kirchheimer acerca da legalidade nazista e do declnio do formalismo no direito penal sero tratadas mais adiante, na discusso da biopoltica. 13
Na concluso da obra, l-se: A taxa de criminalidade pode de fato ser influenciada somente se a sociedade est numa posio de oferecer a seus membros um certo grau de segurana e de garantir um nvel de vida razovel. A passagem de uma poltica penal repressiva para um programa progressista de reformas pode, ento, transcender o mero humanitarismo para tornar-se uma atividade social verdadeiramente construtiva (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 282).
29
a poltica penal nazista prejudicou a argumentao de Punio e estrutura social, ao
incorporar discusses interessantes, porm sem pertinncia ao objeto do livro.
De toda forma, a obra Punio e estrutura social ganhou relevo porque, diferentemente
da abordagem dominante na criminologia e nas teorias penais da poca, ela pde prestar
contribuies relevantes para as anlises histrico-sociolgicas dos mtodos punitivos. Os
autores concluram, em sua anlise marxista do fenmeno penal, pela existncia de uma ntima
conexo entre o surgimento da instituio carcerria moderna e a origem do modo de
produo capitalista. Isto , a pena detentiva configura, para Rusche e Kirchheimer, a forma
especfica que a penalidade assume na poca burguesa (MELOSSI, 1978, p. 12).
Rusche e Kirchheimer enxergam, portanto, uma relao estreita entre pena e mercado
de trabalho. Defendem, neste sentido, que a escassez de mo de obra conduz a diversas formas
de regular o mercado de trabalho com vistas a impedir a elevao acentuada dos nveis
salariais e o aumento do poder reivindicatrio do proletariado: melhoria nas condies internas
dos crceres, tendncia introduo de trabalho nas prises e mesmo o recurso ao trabalho
forado. E, inversamente, os perodos de grande oferta de mo de obra no mercado de trabalho
so acompanhados por: degradao das condies prisionais, extino do trabalho carcerrio,
declnio dos salrios dos trabalhadores e das condies de vida de toda a populao e, no
extremo, pela exacerbao do terrorismo punitivo, configurando a criminalizao da pobreza
ou mesmo o extermnio de populaes pobres e/ou encarceradas. Ademais, com o aumento da
pobreza e do desemprego ameaando a propriedade privada, as taxas de encarceramento
tendem a subir no intuito de proteg-la dos elementos perigosos.
Melossi, em Crcere e Fbrica, mostra-nos como em Punio e estrutura social j se
verifica uma importante reflexo acerca da deteriorao do regime interno dos crceres nos
30
sculos XVII e XVIII, que tendem a abandonar seus fins econmicos e ressocializantes,
substituindo-os por objetivos punitivos e terroristas, em decorrncia da Revoluo Industrial e
suas agudas consequncias sociais14. O inesgotvel exrcito de reserva que surge na Europa
acaba por converter o trabalho forado nos crceres numa medida obsoleta. Assim, a pena
passa a concentrar-se unicamente em seu carter intimidatrio e em sua funo de controle
poltico-social (MELOSSI, 2007, p. 80). No sentido inverso, o livro de Rusche e Kirchheimer
tambm mostra que, quando a demanda maior do que a oferta de mo de obra, a pena tende a
assumir funes de conservao e (re)integrao de braos ao mercado de trabalho,
constrangendo os indivduos a aceitarem as condies dadas (MELOSSI, 2002, p. 22-24).
Assim, Punio e estrutura social pde demonstrar que, no incio do sculo XIX,
durante a crise industrial, as classes dirigentes ansiavam pela reabilitao de mtodos penais
pr-mercantilistas, mais severos, que torturassem e destrussem os malfeitores (como o
machado, o aoite e a fome), em oposio ao encarceramento (KIRCHHEIMER; RUSCHE,
2004, p. 138-139).
Em verdade, como j dito anteriormente, a abordagem da referida obra concentra-se no
perodo histrico do irrompimento do capitalismo moderno (do fim do feudalismo ao
capitalismo laissez-faire) para conduzir seus apontamentos sobre a relao entre priso e
mercado de trabalho. As contundentes transformaes da segunda metade do sculo XIX
(formao do movimento operrio, interveno do estado na economia e primeiras
14 A intensificao do sistema penal que se seguiu deteriorao das condies econmicas e ao consequente
crescimento da criminalidade deixou, no entanto, intactas as conquistas do Iluminismo. Os mesmos cdigos criminais, como o Cdigo Penal de 1810 e o Cdigo Criminal bvaro de 1813, que continham o sistema penal mais severo, marcaram poca no desenvolvimento da teoria liberal, constituindo as bases da lei penal moderna at o advento do fascismo. Eles introduziram uma separao mais efetiva entre a moral e as concepes legais do que a legislao penal do sculo XVIII, que emergiu num perodo em que a sociedade burguesa estava ainda lutando com as concepes mercantilistas e com a regulamentao administrativa estatal centralizada e extensa em todas as esferas privadas (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 142)
31
manifestaes do capitalismo monopolista), que viriam a derrubar o automatismo do
mercado de trabalho, no so contempladas pelo ncleo analtico do livro, quer em razo do
enfoque do projeto original de Rusche, quer pela inconsistncia atribuda aos captulos em que
Kirchheimer tenta estender a discusso do livro para a contemporaneidade15 (MELOSSI,
1982, p. 21).
No obstante, a importncia da obra Punio e estrutura social persiste at hoje, bem
como o desafio de atualizar o debate ento inaugurado sobre a relao entre o regime das
penas e o modo de produo capitalista. Assim que Loc Wacquant refere-se obra em As
prises da misria:
Sabemos, desde os trabalhos pioneiros de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, confirmados por cerca de 40 estudos empricos em uma dezena de sociedades capitalistas, que existe no nvel societrio uma estreita e positiva correlao entre a deteriorao do mercado de trabalho e o aumento dos efetivos presos ao passo que no existe vnculo algum comprovado entre ndice de criminalidade e ndice de encarceramento. (WACQUANT, 2001, p. 106).
Ao esmiuar os fenmenos recentes no campo das penas, Wacquant endossa a hiptese
central de Rusche e Kirchheimer de que as penas atuam como reguladoras do mercado de
trabalho, afirmando que o sistema penal contribui diretamente para regular os segmentos
inferiores do mercado de trabalho e isso de maneira infinitamente mais coercitiva do que
todas as instituies sociais e regulamentos administrativos (2001, p. 96).
15 Gizlene Neder cita em seu livro Iluminismojurdico-penal luso-brasileiro que, com o desaparecimento de
Rusche, Otto Kirchheimer que ficou mais conhecido e, devido a seu enfoque mecanicista, foi alvo de vrias crticas, que teriam sido generalizadas tambm para o texto de Rusche (2000, p. 170).
32
Se h limitaes em Punio e estrutura social, elas estariam no campo da poltica e da
ideologia (MELOSSI, 1982, p. 20), isto , na prpria maneira de abordar o objeto da obra
(relao entre punio e estrutura social) que acaba por no levar em considerao aspectos
importantes da ideologia, do direito (GARLAND, 1990) e da luta poltica. Entretanto, segundo
a anlise de Melossi, o economicismo apontado por muitos em Punio e estrutura social
adviria de outro problema: a inscrio incompleta da punio nas categorias cientficas
marxistas. Segundo o autor italiano, a categoria utilizada, o mercado de trabalho, mostra-se
insuficiente para perscrutar as especificidades da pena de priso capitalista:
A produo de uma nova humanidade a reproduo daquela parte especfica do modo de produo capitalista constituda pelo capital varivel que est no ncleo da inveno da priso (mas que certamente no se limita a esta), est obscura na anlise fornecida por Rusche e Kirchheimer16. (MELOSSI, 1982, p. 21, traduo nossa).
Deste modo, Melossi conclui que o que falta na obra dos alemes uma anlise da
funo de reproduo da fora de trabalho desempenhada pela instituio prisional, funo
esta que amarra a priso forma (ou figura) da fbrica e tambm disciplina enquanto
administrao capitalista do trabalho (MELOSSI, 1982, p. 23).
No mesmo sentido, Garland afirma que a abordagem de Punio e estrutura social
superestima o papel efetivo das foras econmicas e desconsidera a autonomia relativa da
poltica e da ideologia, as quais se reduzem a epifenmenos. Outra crtica deste ltimo autor,
16 The production of a new mankind the reproduction of that specific part of the capitalist mode of production
constituted by variable capital which is at the core of the invention of the prison (but which is certainly not limited to it), is obscured in the analysis provided by Rusche and Kirchheimer.
33
mas que vai numa direo distinta, a omisso da obra quanto s dinmicas internas da
administrao penal e seu papel na determinao de polticas (1990, p. 108)17.
No entanto, o ponto levantado por Platt e Takagi na introduo de Punishment and
penal discipline deve ser considerado, qual seja, que a proposio da less eligibility no
reproduzida de forma exata na sociedade, mas funciona, segundo seus prprios autores, apenas
como um princpio de investigao (1982, p. 1).
3. Vigiar e Punir de Michel Foucault
Na esteira de seus estudos sobre o saber-poder psiquitrico e de seus cursos no Collge
de France sobre o sistema prisional (1970 a 1973), em Surveiller et punir (1975) Michel
Foucault estudou a converso da priso em forma geral de castigo nas sociedades europeias do
sculo XIX. Trata-se do momento em que o saber penal colonizado pelas tcnicas de poder
originrias dos sculos XVII e XVIII, que incidiam sobre os corpos dos indivduos para
reparti-los, fix-los, distribu-los, classific-los, hierarquiz-los, tirar-lhes o mximo de tempo
e de foras, trein-los, codificar seu comportamento contnuo, mant-los numa visibilidade
sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observao, registro e notaes,
constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza (FOUCAULT, 1993, p. 207).
17 Ao invs de investigar como as presses econmicas operam ao lado de outras foras no econmicas para
formar a prtica, eles (Rusche e Kirchheimer) simplesmente afirmam a primazia das primeiras. Assim procedendo, eles no levam em considerao os complexos processos atravs dos quais as estruturas sociais afetam polticas sociais, s vezes pela imposio de um imperativo direto, s vezes pela demarcao de limites amplos dentro dos quais as polticas podem ser praticadas, mais comumente pela imposio de consideraes de bom senso econmico de tal maneira que comprometa ou qualifique iniciativas ideologicamente inspiradas (Instead of investigating how economic pressures operate alongside other non-economic forces to shape practice, they (Rusche e Kirchheimer) simply assert the primacy of the former. In doing so, they omit from their account the complex processes whereby economic structures come to affect social policies, sometimes by imposing a direct imperative, sometimes by setting the broad limits within which policies will be deemed feasible, most often by imposing considerations of economic good sense in a way which compromises or qualifies ideologically inspired initiaves) (GARLAND, 1990, p. 110, traduo nossa).
34
Segundo o autor, as recluses dos sculos XVII e XVIII (priso-fiana e priso-
substituto) eram praticadas margem do sistema penal (pelos Prncipes), sendo incomum na
justia ordinria. Portanto, a ttica punitiva do encarceramento, hoje predominante, s foi
adotada pelas sociedades europeias entre o final do sculo XVIII e incio do XIX, momento
em que a priso, antes uma punio parapenal, penetrou na penalidade, ocupando-a por
completo (FOUCAULT, 1997, p. 29,32). Ocorreu nessa passagem o que descrito em Vigiar
e punir como a colonizao da instituio judiciria pelos mecanismos disciplinares, processo
que teria marcado, na histria da penalidade, a transio da punio para a vigilncia
(FOUCAULT, 1993).
Um ponto chave na abordagem foucaultiana notar-se que tais transformaes no
campo penal no decorreram das reformas penais e das codificaes a que foram
contemporneas. Analisando as prprias teorias penais da segunda metade do sculo XVIII,
Foucault conclui que nenhum dos reformadores (Beccaria, Servan, Le Pelletier de Saint-
Fargeau, Brissot, etc.) prope a pena de priso como pena universal ou pena maior18.
Portanto, a prtica da priso no se originou da teoria penal, mas fora dela e por razes
a ela exteriores. Num certo sentido nas palavras de Foucault , imps-se do exterior teoria
penal, que se ver na obrigao de justific-la a posteriori (1997, p. 35).
No curso A sociedade punitiva, ministrado por Foucault entre 1972 e 1973, encontram-
se vrios pilares do debate de Vigiar e punir. Naqueles estudos, ele pde analisar as instncias
de controle parapenais dos sculos XVII e XVIII para compreender como elas deram origem
universalizao da pena prisional, ao sucesso de uma instituio aparentemente disfuncional
18 Em diversos projetos dos reformadores do sculo XVIII, a priso figura, muitas vezes, como uma das penas
possveis: seja como condio do trabalho forado, seja como pena de talio para aqueles que atentaram contra a liberdade alheia. Porm, no aparece como a forma geral da penalidade, nem como a condio de uma transformao psicolgica e moral do delinquente (FOUCAULT, 1997, p. 35).
35
(1997, p. 36). As caractersticas da recluso nos sculos XVII e XVIII apontadas no curso A
sociedade punitiva so a distribuio espacial dos indivduos (age-se sobre o fluxo de
populao, levando-se em conta tambm as necessidades de produo, proibindo-a de circular
em determinadas localidades), a sano/aprovao (infrapenal) de condutas dos indivduos (de
maneiras de viver, tipos de discursos, projetos ou intenes polticas, comportamentos
sexuais, reaes autoridade, bravatas opinio, violncias etc.) e o fato de constituir-se
num controle local, capilar (a recluso no um instrumento do absolutismo, mas sim
movimentada pelas prprias comunidades locais contra os indivduos causadores de incmodo
e desordem) (1997, p. 36-37).
Esses mecanismos de controle da populao ter-se-iam desenvolvido obscuramente no
sculo XVIII em suas variadas formas e deflagrados por necessidades diversas, ganhando cada
vez mais relevncia at finalmente se espraiarem por toda a sociedade e se imporem a uma
prtica penal (j no sculo XIX). Foucault discorre, em A verdade e as formas jurdicas, sobre
duas experincias distintas do desenvolvimento destes mecanismos de vigilncia: as lettres-de-
cachet19 francesas e certos grupos surgidos na Inglaterra com o escopo de assegurar a ordem e
a moralidade. Para Foucault, a razo do triunfo da pena de priso (na contracorrente das
teorias do sculo XVIII) remontaria a estas prticas parapenais, que foram se consolidando e
se estatizando:
19 Quando uma lettre-de-cachet era enviada contra algum, esse algum no era enforcado, nem marcado, nem
tinha de pagar uma multa. Era colocado na priso e nela devia permanecer por um tempo no fixado previamente. Raramente a lettre-de-cachet dizia que algum deveria ficar preso por seis meses ou um ano, por exemplo. Em geral ele determinava que algum deveria ficar retido at nova ordem, e a nova ordem s intervinha quando a pessoa que requisitara a lettre-de-cachet afirmasse que o indivduo aprisionado tinha se corrigido. Esta ideia de aprisionar para corrigir, de conservar a pessoa presa at que se corrija, essa ideia paradoxal, bizarra, sem fundamento ou justificao alguma ao nvel do comportamento humano tem origem precisamente nesta prtica (FOUCAULT, 2005, p. 98).
36
Na Inglaterra, foram os prprios grupos que, para escapar ao direito penal, se atriburam instrumentos de controle que foram finalmente confiscados pelo poder central20. Na Frana, onde a estrutura do poder poltico era diferente, os instrumentos estatais estabelecidos no sculo XVII pelo poder real para controlar a aristocracia, a burguesia e os amotinadores foram reutilizados de baixo para cima por grupos sociais. (FOUCAULT, 2005a, p. 100).
J no sculo XVIII vai se configurando uma mudana na insero social dos grupos
ingleses de auto-defesa moral: o recrutamento passa a ser cada vez menos popular e pequeno
burgus, concentrando-se na aristocracia, bispos e duques, enfim, nas pessoas mais ricas
(FOUCAULT, 2005a, p. 93).
Foucault observa um movimento de estatizao dos grupos de controle e presso (que
passam ento a figurar ao lado do temvel aparato legal) de forma que (...) esse
empreendimento de reforma moral deixa de ser uma auto-defesa penal para se tornar, ao
contrrio, um reforo do poder da prpria autoridade penal (FOUCAULT, 2005a, p. 93). Este
movimento inclui o corte dos laos com a moralidade de origem religiosa:
A ideologia religiosa, surgida e fomentada nos pequenos grupos quakers, metodistas etc., na Inglaterra do fim do sculo XVII, vem agora despontar, no outro plo, na outra extremidade da escala social, do lado do poder, como instrumento de controle de cima para baixo. Auto-defesa no sculo XVII, instrumento de poder no incio do sculo XIX. Este o mecanismo do processo que podemos observar na Inglaterra. (2005a, p. 95).
20 A Inglaterra havia assistido a um desenvolvimento de grupos espontneos de vigilncia moral, com o fim de
fazer reinar a ordem entre seus membros. Estes grupos buscavam reforar uma penalidade autnoma, em grande parte, para escapar sanguinria penalidade estatal, de modo que, neste sentido, segundo Foucault, eles se constituam mais enquanto grupos de auto-defesa contra um direito do que como grupos estritamente de vigilncia.
37
Muito diferente disso foi o observado na Frana, pas que apresentava um forte
aparelho de Estado apoiado na polcia e num instrumento judicirio clssico.
Foucault analisa, a este respeito, as lettres-de-cachet, que eram ordens do rei obrigando
um preso, individualmente, a realizar alguma ao. Ele pde verificar que os pedidos de
lettres-de-cachet eram suscitados por trs categorias de condutas: a) as de imoralidade
(devassido, adultrio, sodomia, bebedeira); b) as religiosas julgadas perigosas e dissidentes;
c) os conflitos de trabalho (de ocorrncia intensa no sculo XVIII), em que patres e mestres
lanavam mo deste instrumento para descartar operrios e aprendizes.
Pode-se concluir que, no sculo XIX, a recluso uma combinao de controle moral
e social, nascido na Inglaterra, com a instituio propriamente francesa e estatal da recluso
em um local, em um edifcio, em uma instituio, em uma arquitetura (FOUCAULT, 2005a,
p. 112). Assim, mesclando a frmula extra-estatal da vigilncia desenvolvida na Inglaterra
frmula absolutamente estatal da Frana, a priso aparece no bojo de outras instituies que
vo se formando e que no so facilmente classificveis entre estatais e extra-estatais (2005a,
p. 115):
O que transformou a penalidade, na virada do sculo, foi o ajustamento do sistema judicirio a um mecanismo de vigilncia e de controle; foi a integrao comum de ambos num aparelho de Estado centralizado; mas foi tambm a instaurao e o desenvolvimento de toda uma srie de instituies (parapenais e, por vezes, no-penais) que serviam de ponto de apoio, de posies avanadas ou de formas reduzidas ao aparelho principal. Um sistema geral de vigilncia-recluso penetra por toda a espessura da sociedade, tomando formas que vo desde as grandes prises, construdas a
38
partir do modelo do Panopticon21, at as sociedades de patronagem e que encontram seus pontos de aplicao no somente nos delinquentes, como tambm nas crianas abandonadas, rfos, aprendizes, estudantes, operrios etc.. (FOUCAULT, 1997, p. 38).
Baseando-se no Lies sobre as prises, de Julius, Foucault (1997) identifica a
passagem de uma civilizao do espetculo e do teatro (cuja preocupao conferir maior
audincia possivel o espetculo ritualizado por poucos) para uma civilizao da vigilncia e da
priso (em que o mximo nmero de pessoas serve de espetculo a uma nica pessoa
encarregada de vigi-las e control-las ininterruptamente). A especificidade da vigilncia do
sculo XIX seria, para o francs, o fato de no se aplicar mais somente aos membros de um
grupo, mas sim a qualquer indivduo: no se limita a uma coletividade, cria a coletividade a
ser vigiada.
Em Vigiar e Punir, Michel Foucault adentra as transformaes que marcaram a
transio da penalidade medieval dos suplcios para a penalidade disciplinar moderna,
demonstrando que no se tratou de uma luta pela humanizao das penas, mas sim da
investida de uma nova economia de poder. A trajetria da priso estudada, portanto, sob a
perspectiva da histria dos corpos e no das ideias morais. Nas palavras de Edgardo Castro,
temos que em Vigiar e punir A substituio do suplcio pela priso a substituio do corpo
21 O Panopticon era um edifcio em forma de anel, no meio do qual havia um ptio com uma torre no centro. O
anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior. Em cada um dessas pequenas celas, havia segundo o objetivo da instituio, uma criana aprendendo a escrever, um operrio trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando sua loucura etc. Na torre central havia um vigilante. Como cada cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o exterior, o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela; no havia nela nenhum ponto de sombra e, por conseguinte, tudo o que fazia o indivduo estava exposto ao olhar de um vigilante que observava atravs de venezianas, de postigos semi-cerrados de modo a poder ver tudo sem que ningum ao contrrio pudesse v-lo. Para Bentham esta pequena e maravilhosa astcia arquitetnica podia ser utilizada por uma srie de instituies (FOUCAULT, 2005, p. 87).
39
marcado pelo corpo dirigido, cujo tempo medido e suas foras ordenadas para o trabalho
(2009, p. 343).
A originalidade de Foucault no estudo da priso foi ter recusado uma abordagem
meramente negativa do poder (o poder que reprime e destri) e priorizado um enfoque
positivo (o poder que exercita corpos, que molda subjetividades). Assim, no lugar da questo
jurdica tradicional da represso da criminalidade, ele coloca a questo da priso como ttica
poltica de dominao orientada pelo saber cientfico, que define a moderna tecnologia do
poder de punir, caracterizada pelo investimento do corpo por relaes de poder (SANTOS,
2005, p. 1). Trata-se de uma dominao orientada pelo e tambm para o saber cientfico, na
medida em que a priso engendra novos mecanismos de observao e documentao
ininterruptas deste homem tornado objeto de conhecimento que o delinquente, o qual,
diferentemente do infrator do processo criminal, no responde por seus atos, mas por sua vida,
por uma biografia. Foi atravs do penitencirio [que] a justia criminal entrou no campo das
relaes de poder (CASTRO, 2009, p. 342).
Enfim, a criao das prises est atrelada a um processo geral de disciplinarizao da
sociedade no final do sculo XVIII, quando se deu a elaborao, aprimoramento, difuso e
especificao de uma multiplicidade de mecanismos do panoptismo22 moderno. Assim, as
disciplinas, conceituadas em Vigiar e punir como mtodos que permitem o controle
minucioso das operaes do corpo, que realizam a sujeio constante de suas foras e lhes
impem uma relao de docilidade-utilidade (FOUCAULT, 1993, p. 126), seriam a razo de
ser da priso, isto , o verdadeiro motivo desta instituio ter sobrevivido slida e inclume
22 O panoptismo foi uma inveno tecnolgico-poltica, um princpio geral de uma nova anatomia poltica que
visava relaes de disciplina.
40
por dois sculos, atravs de fracassos, reformas e reproposies do mesmo projeto
fracassado23 (SANTOS, 2005, p. 5).
4. Crcere e fbrica de Dario Melossi e Massimo Pavarini
O livro Crcere e Fbrica as origens do sistema penitencirio (sculos XVI XIX),
publicado em 1977, compe-se de dois ensaios com premissas e metodologia comuns:
Crcere e trabalho na Europa e na Itlia, no perodo de formao do modo de produo
capitalista, de Dario Melossi e A inveno penitenciria: a experincia dos EUA na primeira
metade do sculo XIX, de Massimo Pavarini. Ambos os ensaios unem-se pelo objetivo comum
de estabelecer uma conexo entre o surgimento do modo de produo capitalista e a origem da
instituio carcerria moderna
O estudo de Melossi centra-se na pena de priso, desde sua origem nas casas de
correo ou casas de trabalho forado (bridewells ou workhouses, na Inglaterra) do sculo
XVI e cuja forma mais acabada teria sido o tuchthuis holands da primeira metade do sculo
XVII at sua consolidao no capitalismo competitivo do fim do sculo XIX.
As instituies originrias de encarceramento (casas de correo e casas de trabalho)
consistiam num mtodo de resolver os problemas da excluso social do incio do capitalismo,
dando conta da populao de desocupados urbanos que se formava a partir da separao
entre produtores e meios de produo atravs do isolamento e imposio de trabalhos
forados. Tratava-se, pois, de um aparato altamente afinado com o processo produtivo no
23 No debate atual brasileiro, esta dinmica fica clara, por exemplo, em Bitencourt, que inicia seu livro Falncia
da pena de priso afirmando: A priso uma exigncia amarga, mas imprescindvel. A histria da priso no a de sua progressiva abolio, mas a de sua reforma. A priso concebida modernamente como um mal necessrio, sem esquecer que guarda em sua essncia contradies insolveis (2004, p. 1).
41
sentido de adestrar a mo de obra para o trabalho assalariado em implantao (disciplina) e
produzir, com recurso ao trabalho forado, mercadorias complementares a um mercado cujas
exigncias a escassa mo de obra disponvel no lograva suprir. O objetivo das bridewells era,
portanto, reformar os internos atravs do trabalho obrigatrio e da disciplina, desencorajar a
vagabundagem e o cio e assegurar o autossustento dos internos atravs do trabalho
(MELOSSI, 2006, p. 36).
A Inglaterra assiste, naquele mesmo perodo, ao surgimento de uma legislao,
encabeada pela Poor Law, destinada a gerir a populao pobre, desempregada, rebelde,
ociosa, vagabunda. Foi institudo o pagamento de um subsdio aos ociosos inaptos para o
trabalho e o oferecimento de trabalho aos ociosos aptos. Para cumprir este segundo objetivo,
as casas de correo foram implantadas por todo o pas, de modo a oferecer trabalho aos
desempregados e constranger a trabalhar aqueles que se recusassem a faz-lo. Melossi nota
que a recusa ao trabalho era encarada, na poca, como intento criminoso: o juz tinha a
prerrogativa de mandar prender os ociosos capazes de trabalhar (2006, p. 37).
A anlise do autor acerca da recusa ao trabalho e do trabalho forado, ao levar em
conta a o teto salarial vigente no perodo (e cujo desrespeito era penalizado) e a obrigao
atribuda aos trabalhadores de aceitao compulsria da primeira oferta de trabalho que
recebessem, leva-o concluso de que o trabalho forado nas casas de correo ou
workhouses destinava-se a dobrar a resistncia da fora de trabalho e faz-la aceitar as
condies que permitissem o mximo grau de extrao de mais-valia (2006, p. 37-38).
A situao teria evoludo diferentemente ao longo dos sculos XVII e XVIII. As casas
de correo j no incio do sculo XVIII haviam se tornado um depsito dos elementos
julgados indesejveis pelos detentores de poder (abrigando ao mesmo tempo condenados,
42
vadios, rfos, velhos e loucos, sem distino), perdendo o prestgio perante a populao
devido ao seu estado degradado24 e arbitrariedade das detenes (KIRCHHEIMER;
RUSCHE, 2004, p. 109). A situao social havia se transformado profundamente desde a
poca do surgimento das workhouses, quando as condies do mercado de trabalho eram mais
favorveis para as classes subalternas, pois neste segundo momento a demanda por
trabalhadores j fora mais do que satisfeita, tendo produzido inclusive um excedente de mo
de obra, isto , uma superpopulao relativa to almejada pelas classes dirigentes (MELOSSI,
2006, p. 64, KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 125-126).
Este cenrio corroborou o movimento de reforma do direito penal na segunda metade
do sculo XVIII e desembocou num novo modelo prisional, de cunho intimidatrio,
consolidado no sculo XIX.
Assim, a priso moderna, originria das antigas casas de correo que no distinguiam
vadios, rfos, velhos e loucos, encontra sua forma acabada somente aps a contribuio do
Iluminismo e dos reformadores dos Oitocentos (MELOSSI, 2006, p. 58, KIRCHHEIMER;
RUSCHE, 2004, p. 109-110). Com efeto, nas palavras de Dario Melossi, a tendncia histrica
que no muda ao contrrio, consolidada e afirmada nesse perodo a substituio das
velhas penas corporais e de morte pela deteno. Uma deteno, todavia, cada vez mais intil
e dolorosa para os internos (2006, p. 64).
Pavarini aponta, em seu ensaio que integra Crcere e fbrica, a interdependncia entre
as condies do mercado de trabalho e o sistema punitivo a partir da segunda metade do
sculo XVII, quando se observou a transio entre o sistema manufatureiro e o fabril, a
24 Segundo Rusche e Kirchheimer, os historiadores concordam em que as casas de correo haviam deixado para
trs seus dias de glria, quando eram limpas, ordeiras e bem administradas; e que, depois de espalhar-se por toda a Europa, o sistema gradualmente decaiu at finalmente atingir um estado deplorvel no sculo XVIII (2004, p. 123-124).
43
introduo das mquinas na produo e a sensvel deteriorao nas condies de vida. Nesta
fase h a abolio do trabalho produtivo e competitivo no crcere, lanando-se as bases para
um novo sistema prisional estritamente intimidatrio e terrorista que se constituiria mais
adiante nos Estados Unidos do sculo XIX25. Esta tendncia degradao das condies dos
presos se observava em meados do sculo XVII na Inglaterra e outros pases onde a
industrializao j estava em andamento, com a introduo de mquinas no solo das fbricas, a
expulso de trabalhadores do mercado de trabalho e a intensificao da explorao.
Os novos paradigmas punitivos gestados neste perodo foram: o modelo da Pensilvnia
ou filadelfiano, que se pautava pelo regime de isolamento celular contnuo e ausncia de
trabalho carcerrio (a no ser trabalhos repetitivos e inteis com carter de tortura); e o modelo
de Auburn, que consistia no isolamento noturno e reunio diurna para o trabalho silencioso.
Este ltimo modelo prevaleceu nos EUA, onde a prosperidade econmica mantinha mais alta a
demanda por mo de obra. Na Europa, ao contrrio, adota-se massivamente o sistema do
isolamento contnuo.
A instituio carcerria permanece assim como uma aquisio definitiva e cada vez mais dominante na prtica punitiva burguesa [...]. A marca reacionria da Restaurao que corresponde nos pases mais avanados formao de uma frente na qual a burguesia, j vitoriosa, acolhe os restos tericos e prticos do velho absolutismo , se por um lado expressa ainda uma resistncia anti-liberal, anti-burguesa, por outro caracteriza-se cada vez mais por uma postura anti-proletria. (MELOSSI, 2006, p. 93).
25 Como vimos, o aumento vertiginoso dos crimes na crise industrial, as classes dirigentes viram-se tentadas a
retomar os tratamentos pr-mercantilistas dos criminosos, surgindo, nesta poca, um forte clamor por penas mais severas, como a pena de morte, os castigos corporais, a priso perptua em correntes, a marca de ferro quente, a fome e os aoites (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 138-139).
44
Na anlise da incorporao do trabalho ao ambiente carcerrio e da prpria ideia de
trabalho forado como forma de punio, Pavarini detecta o ponto de intimidade mxima entre
a instituio prisional punitiva e o mercado de trabalho nesse cenrio em que a fbrica era para
o operrio como um crcere (perda da liberdade e subordinao) e, por outra parte, o crcere
era para o interno como uma fbrica (trabalho e disciplina). (PAVARINI, 2006, p. 266)
Quanto s concluses do ensaio de Melossi, elas vo no sentido de demonstrar que na
Itlia a instituio penitenciria no chegou propriamente a funcionar como um locus de
adestramento de mo de obra para as fbricas ou de regulao de mercado (MODONA, 2006,
p. 15). Sua anlise atribui esta peculiaridade a vrios motivos, tais como a subsistncia de
relaes pr-capitalistas no Mezzogiorno e a utilizao do proletariado meridional como massa
de manobra para as foras do governo e como exrcito industrial de reserva para as economias
do norte do pas e de pases estrangeiros mais avanados, atravs da migrao26 (MELOSSI,
2006, p. 146-147). Nas palavras de Modona:
As funes de regulador do mercado e de adestramento para o trabalho produtivo que, pelo menos em certos perodos histricos e em nvel mais emblemtico que real, o crcere desempenhou em pases que possuam uma estrutura econmica mais homognea, teriam sido assumidas na Itlia por outros instrumentos de controle, entre os quais, em primeiro lugar, a migrao interna e a emigrao. Quando, na segunda metade do sculo XIX, algumas regies italianas alcanaram os nveis de produo de outros pases
26 O fenmeno da imigrao mereceu um estudo mais rigoroso nos ltimos escritos de Dario Melossi. Ver I nuovi
sciusci e o dcimo captulo de Stato controllo sociale, devianza, intitulado Andamento e approdi della questione criminale in Europa e in Italia: il caso dellimmigrazione. Tambm Loc Wacquant trata, no segundo captulo de As prises da misria, dentre outros temas, dos Precrios, estrangeiros, drogados: os clientes privilegiados das prises europias.
45
europeus, o crcere se adequar, em toda a nao, ao modelo de instrumento terrorista de controle social (...)27. (2006, p. 16).
5. Relaes preliminares entre as trs obras
Existem vrios Foucault, vrios Marx e vrias passagens de um a outro: esta , no por
acaso, a primeira frase do Dossi Marx-Foucault (ACTUEL MARX, 2004, p. 7).
Na apresentao de Actuel Marx, os autores enunciam trs ligaes fundamentais entre
Foucault e a obra de Marx: a) a relao do pensador francs com o prprio Marx, notadamente
com o materialismo histrico de O Capital; b) sua relao com Althusser, tanto de amizade
quanto pelo contexto terico que compartilharam; c) e finalmente com a Escola de Frankfurt,
por conta de muitos interesses e temticas comuns (2004, p. 7).
A influncia marxiana na obra de Foucault est mais patente em Vigiar e Punir, obra
em que as instituies modernas (priso, escola, hospital, etc.) esto explicitamente referidas
ao capitalismo (ACTUEL MARX, 2004, p. 7). No artigo entitulado Le marxisme oublie de
Foucault, Stephane Legrand sugere que as anlises foucaultianas sobre a sociedade disciplinar
e a inveno da penitenciria articulam-se a uma teoria da explorao:
(...) o curso sobre A sociedade punitiva permite mostrar que as teses mais inovadoras de Vigiar e punir no puderam ser conquistadas sem o uso de instrumentos e conceitos clara e distintivamente marxistas: modo de
27 Eis as palavras finais de Melossi acerca das peculiaridades italianas: Na Itlia que caminha para a Unificao,
assim como na Inglaterra ou na Frana da primeira metade do sculo XIX, a existncia de estratos muito numerosos de proletrios desempregados faz com que o crcere no persiga nenhuma finalidade imediatamente ressocializante (como aconteceria, e como aconteceu, em sociedades caracterizadas por uma disponibilidade limitada de fora de trabalho industrial), mas se proponha gesto ideolgico-terrorista dessas camadas da populao, excludas da produo. Nos debates dos cientistas sociais, filantropos, penalistas e mdicos dos anos 1840 (assim como nos anos aps a Unificao e ainda durante muito tempo), estar encerrada, sob o invlucro ideolgico das suas cincias, esta simples verdade (MELOSSI, 2006, p. 147).
46
produo, relaes de produo, foras produtivas, fora de trabalho so noes que intervm constantemente nesse curso e que so, como vimos,
sistematicamente apresentadas nos momentos estratgicos28 (LEGRAND, 2004, p. 43, traduo nossa).
Quanto relao entre Foucault e Althusser, preciso lembrar que os dois travaram
uma amizade de cerca de quarenta anos, alm de uma aproximao terica evidente: tanto no
incio da carreira de Michel Foucault quando o contato com Althusser lhe surtiu grande
influncia29 quanto mais adiante nas primeiras obras escritas por Foucault, em que h um
dilogo forte com questes althusserianas e um impacto tambm de seu pensamento sobre
Althusser e, por fim, na maturidade, em que os pontos de contato entre os estudos destes
dois franceses tornam-se cada vez menos explcitos.
Para Didier Eribon, a analtica do poder proposta em A vontade de saber traz
claramente um questionamento das teorias polticas de inspirao marxista, enquanto o prprio
Vigiar e Punir, da mesma forma que o primeiro volume da Histria da sexualidade, dirige-se
contra o conceito de aparelho ideolgico de Estado, formulado por Althusser no comeo dos
anos 70 (1995, p. 246). Porm, preciso reconhecer, na esteira de Warren Montag, que se a
tendncia inicial era tomar-se Ideologia e aparelhos ideolgicos de Estado de Althusser e
Vigiar e punir de Foucault como textos contrapostos (e expresses de pensamentos opostos),
talvez hoje (com a distncia histrica) seja possvel encarar a obra destes dois franceses
28 No original: (...) le cours sur La socit punitive permet-il de montrer que les thses les plus novatrices de
Surveiller et punir nont pu tre conquises qu laide dinstruments et de concepts clairement et distinctement marxistes: mode de production, rapports de production, forces productives, force de travail sont des notions qui interviennent constamment das ce cours, et qui sont, comme on la vu, systmatiquement prsentes aux moments stratgiques. 29
Analisando os estudos de Foucault entre 1950 e 1951, especialmente a exposio Quest-ce quun fait scientifique?, Eribon conclui que naquela poca Foucault estava impregnado do marxismo ambiente, lembrando que no mesmo ano de 1950 Foucault teria aderido ao Partido Comunista, em parte por influncia de Althusser (1995, p. 296-297).
47
enquanto inseparveis, dinmicas e recprocas, percebendo-se que ambas buscavam
problematizar certos conceitos e noes no questionados sua poca (1995, p. 55-57).
De fato, Vigiar e punir, que precisamente a obra aqui estudada, foi escrita numa
poca de ruptura de Michel Foucault com o compromisso poltico-partidrio mantido entre
1969 e 1975, momento este que marcar o desenvolvimento de sua obra numa nova direo.
Surgem, ento, divergncias polticas com Althusser (ainda que tais divergncias nunca
tenham desgastado a amizade entre os dois):
Foucault, que havia manifestado certa solidariedade com Alhusser em seu esforo por renovar o pensamento marxista, em seguida ataca aqueles que, nos anos sessenta (a expresso remete claramente a Althusser e seus discpulos) quiseram opor o marxismo-verdade ao stalinismo-erro30 (ERIBON, 1995, p. 324, traduo nossa).
Ainda assim, o texto de Vigiar e punir pontuado por vrias citaes que no s
questionam mas principalmente afirmam o pensamento de Marx, no obstante tenham sido
frequentemente apresentadas de forma distorcida por alguns comentadores. No raro projetou-
se em Vigiar e punir uma suposta oposio sistemtica de Foucault a Marx e a qualquer tipo
de marxismo, a qual, em verdade, no se encontra no prprio corpo da obra31 (MONTAG,
1995, p. 54).
preciso ressalvar que as divergncias de Foucault com relao a algumas categorias e
posicionamentos individuais de autores marxistas no significa que o autor francs tenha se
30 (...) Foucault, quien haba manifestado cierta solidaridad con Althusser en su esfuerzo por renovar el
pensamiento marxista, en lo sucesivo arremete contra aquellos que, en los aos sesenta (la expresin remite claramente a Althusser y a sus discpulos) han querido oponer el marxismo-verdad al estalinismo-error. 31
Warren Montag tece esta crtica referindo-se ao Anatomie et corps politique, de Franois Ewald.
48
despido de qualquer influncia do pensamento de Marx. Estudiosos como tienne Balibar e
Thomas Lemke acreditam que a obra foucaultiana apresenta, em certo momento, uma
trajetria que vai da ruptura com o marxismo enquanto teoria, a uma aliana ttica, com o
uso de alguns conceitos marxistas ou compatveis com o marxismo (BALIBAR, 1992;
LEMKE, 2002, p. 1). A hiptese de Balibar que em toda a extenso da obra de Foucault
podemos visualizar, de modos diversos, uma luta com o marxismo que constitui uma das
foras propulsoras da produtividade da prpria obra foucaultiana32 (1992, p. 39).
Por ltimo, encontramos as aproximaes entre o pensamento de Foucault e da Escola
de Frankfurt (e outros autores marxistas identificados com a teoria crtica), tema este que vem
sendo tratado por diversos estudiosos nas ltimas duas dcadas33. Peter Dews (1999)
identifica um entrelaamento entre o ps-estruturalismo francs e a primeira gerao da Escola
de Frankfurt (especialmente Adorno) e demonstra seu espanto diante do tempo decorrido at a
apreciao adequada das aproximaes entre estas duas correntes filosficas. Para McCarthy,
as similaridades entre a genealogia do poder/conhecimento de Foucault e o programa de teoria
social crtica de Horkheimer e seus colegas da dcada de 1930 so que ambos: clamam por
transformao e radicalizao da abordagem crtica de Kant (contra os tipos de pesquisa
introspectiva da conscincia privilegiados pelos filsofos modernos); privilegiam a prtica em
relao teoria (para ambos o conhecimento um produto social e a teoria do conhecimento
integra a teoria da sociedade, a qual se enraza em contextos socioculturais); rejeitam a
32 Em seguida, Balibar pontua que essa luta no um simples duelo, por razes bvias. Primeiro, Foucault
empreende diferentes programas de trabalho em que o confronto com Marx intervem de maneira mais ou menos decisiva e o que mais interessante que no so sempre endereados ao mesmo Marx ou ao mesmo Marxismo (this struggle is not a simple duel, for several obvious reasons. First, Foucault undertakes different programmes of work where a confrontation with Marx intervenes in a more or less decisive way and which, more interestingly, are not always addressed to the same Marx or the same Marxism) (1992, p. 39). 33
Para Dews e outros autores, a aproximao se daria entre teses da Dialtica do Esclarecimento e o ps-estruturalismo, no se limitando a Foucault (1999).
49
concepo cartesiana de um sujeito racional autnomo separado dos objetos por ele
dominados; divergem da hermenutica; acusam o dficit crtico das cincias; e almejam
transformar nosso autoconhecimento de forma a repercutir na prtica, levando em conta que
o significado prtico do insight crtico varia de acordo com as circunstncias histricas34
(McCARTHY, 1994, p. 246).
De forma resumida, retomando o texto introdutrio de Actuel Marx:
(...) h, certamente, em Foucault um marxismo sempre em ao, patrimnio pressuposto, subterrneo, porm produtivo, embora difuso e implcito. H tambm um lugar foucaulti-althusseriano em que se formulam, em referncia crtica marxista, questes semelhantes relativas ao assujeitamento, subjetivao e interpelao35 (2004, p. 8, traduo nossa).
O movimento oposto tambm se verifica, isto , a obra foucaultiana influenciou
diversos marxistas, a comear por Althusser e Poulantzas. E mais adiante, autores como Dario
Melossi e Massimo Pavarini, cuja obra objeto de nosso estudo.
Na abordagem de Poulantzas, de clara influncia foucaultiana, o poder provm das
relaes microlgicas, mas precisa se materializar nos aparelhos (e no s os de Estado) para
existir de fato36. Seus escritos ressaltam a importncia das anlises materialistas de certas
instituies de poder realizadas por Foucault na questo da individuao e das tcnicas de
34 Na lngua original: the practical significance of critical insight varies with the historical circumstances.
35 Do texto original: (...) il y bien chez Foucault un marxisme toujours leuvre, patrimoine prsuppos,
souterrain mais productif, quoique diffus et implicite. Il y a aussi un lieu foucauldo-althussrien, o se formulent, en rfrence la critique marxienne, de semblables questions dans les termes de lassujettissement, de la subjectivation et de linterpellation. 36
Segundo o autor, os poderes (no s os econmicos) so encarnados pelo Estado mas no so redutveis a ele, transcendendo os aparelhos. As lutas (econmicas, polticas, ideolgicas), portanto, tm primazia sobre os aparelhos; e o campo destas lutas, fundamentadas na diviso social do trabalho e na explorao, no outro seno o das relaes de poder (POULANTZAS, 2000, p. 36). Assim, o poder no , primariamente, o Estado, mas sim as relaes sociais de produo.
50
poder (2000, p. 65). Suas crticas ao filsofo francs residem, porm, na acusao de que sua
teoria desembocaria frequentemente em anlises puramente descritivas e numa espcie de
funcionalismo, ao estabelecer o quadro referencial de poder como uma abstrao anterior a
cada campo particular (POULANTZAS, 2000, p. 65).
Entretanto, como veremos, estabelecer estes pontos de convergncia e divergncia
entre as obras de Foucault e de autores marxistas (no nosso caso, Rusche, Kirchheimer,
Melossi e Pavarini) no uma tarefa fcil. No que diz respeito ao pensamento especfico de
Michel Foucault, segundo McCarthy (1995), tais aproximaes teriam sido dificultadas pela
tendncia dos comentadores do prprio Foucault de enfatizar as rupturas em detrimento das
continuidades da obra deste pensador em relao s teorias crticas anteriores. Outro elemento
complicador teria sido o posicionamento explicitamente contrrio ao marxismo adotado por
Foucault. Numa anlise um pouco mais detida da questo, entretanto, McCarthy observa que o
fato de Foucault ter se firmado contra o marxismo num contexto em que este predominava (na
Frana do ps-guerra) afigura-se natural (o prprio Foucault havia sido filiado ao Partido
Comunista e mantido contato estreito com Althusser, Hyppolite e Canguilhem)37.
Tambm do lado do marxismo, h um grande obstculo a ser transposto, que
justamente a herana do economicismo, estatismo e fetichismo jurdico de influncia
stalinista. Na contraposio do pensamento foucaultiano s concepes de poder da cincia
poltica clssica e do marxismo, Axel Honneth recorre a representaes desse marxismo
datado ao escrever que A teoria marxista do poder, seguindo um modelo de pensamento
37 Foucault, como a maioria dos pensadores franceses de sua era, estava imerso num universo marxista do
discurso. Ele foi, por um curto perodo de tempo, membro do Partido Comunista Francs, aps a guerra, e subseqentemente estudou ou manteve interaes frutferas com trs figuras que havamos conhecido antes: Hyppolite, Canguilhem e Althusser (Foucault, like most French thinkers of his era, was immersed in a Marxist universe of discourse. He was briefly a member of the PCF after the war, and he subsequently studied or engaged in fruitful interactions with three figures we have met before: Hyppolite, Canguilhem and Althusser) (JAY, 1984, p. 519, traduo nossa).
51
estatista, compreende o domnio do poder como obteno do aparelho estatal38 (1991, p.
154). Neste ponto, a comparao de Honneth entre o marxismo da Escola de Frankfurt e a
obra de Michel Foucault acaba por isol-los em dois unilateralismos complementares.
Entretanto, como esclarece Poulantzas:
Enquanto que uma das caractersticas da histria terica do marxismo no seio da 3 Internacional foi a de ter negligenciado a especificidade do espao poltico prprio ao Estado e seu papel essencial (a superestrutura como simples apndice da base), as crticas feitas atualmente ao marxismo referem-se ao seu pretenso estatismo. Enquanto o marxismo negligenciava
o Estado, tratava-se de economicismo; quando fala do Estado, trata-se de estatismo. As crticas no se restringem prtica poltica stalinista e realidade sociopoltica dos regimes dos pases do Leste, mas prpria teoria marxista. Ora, (...) ao contrrio do que se l atualmente, o poder no se identifica e no se reduz, no marxismo, ao Estado. (2000, p. 33-34).
Vencida esta rdua etapa de tentar identificar e transpor os obstculos a uma anlise
conjunta destes autores (sem, no entanto, perder as dissonncias que elas guardam entre si em
diversos pontos), poderemos nos concentrar nas relaes entre as trs obras propriamente
ditas, isto , nas aproximaes e divergncias entre as reflexes propostas por estes cinco
autores acerca de um mesmo tema, a inveno carcerria, ainda que seguindo cada um por
veredas diversas.
Assim, de incio podemos afirmar que as trs obras tm em comum o fato de no
priorizarem a funo penolgica da punio; isto , nas trs obras, ao contrrio de grande parte
dos estudos atuais sobre punio, a pena no serve to somente ao propsito de controlar a
38 The Marxist theory of power, following a statist model of thinking, understands the possession of power as an
acquisition of the state apparatus.
52
criminalidade, assumindo outras funes sociais. Contudo,
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