Literatura de Cordel
Teatro Popular
Texto teatral em linguagem de Cordel
Apresentado pela primeira vez pelo Grupo Teatral da Associação Amigos da Cultura de Jardim do Seridó-RN Fotos: http://amigosdaculturadejardimdoserido.blogspot.com.br/
2010
Autor: Marcos Jardim
2009
CENA I
[Banca na feira, com ervas, garrarfadas e
lambedores à mostra.
Um bule com xícaras.
Roselena é a vendedora.
O NARRADOR entra em cena fazendo seus
comentários como se tivesse em outro plano
dimensional.
Em alguns momentos a cena é congelada para o
narrador comentar.]
[NARRADOR]:
Boa noite a quem não vi
Deixe eu me aprochegar
Sou um contador de “causos”
Tô aqui pra apresentar
Um magote de matuto
Querendo se amostrar
Essa aqui é Roselena
Mulher boa (e perigosa!!!)
Resolve toda ingresia
De forma misteriosa
Mistura o mundo profano
Com crença religiosa.
Aqui nessa sua banca
De tudo tem um bocado
Lambedor e garrafada
Ervas e fumo torrado
E aqui nessa chaleira
Um resto de chá coado!
[O Narrador fala o texto abaixo mexendo nos produtos da banca]
(tira a tampa e cheira, repugnando)]
(Roselena)
Tenho ervas pra vender
Quero ver quem vai comprar
Aqui se encontra os segredos
Da ciência milenar.
Trato de toda doença
Quem tem fé e quem tem crença
Venha pr’aqui se curar.
Menino com dor de bucho
“Mão-fechada” é de primeira
Assento de pau de ameixa
Para mulher parideira
Aqui não passo trambique
Chá de boldo é arrelique
Pra quem tá com caganeira.
Tem também o capim-santo
Que serve pra relaxar.
Quem sofre de pressão alta
Melhora só em cheirar.
Mas cuidado, meu rapaz
Você tomando demais
É arriscado “brochar”.
[NARRADOR]
Repare quem ta chegando!!!
Né a filha de “coisinha”!?!
Pense numa arrochada??!!
Ela se acha a rainha
Ela pensa que é a tal ...
Num passa de uma “galinha”.]
(Mona)
Ei! Meu bem, Minha querida!
Minha santa curandeira
Vigie se aí num tem
Alguma erva que cheira!
Já tô ficando encarnada
Já tô toda entabuada
Com o diabo dessa coceira.
[Mona entra em cena demonstrando falsidade e com traquejos exagerados. Entra em cena se coçando]
(Roselena)
Mas mulher! Num leve a mal
O que eu vou dizer agora!
Isso aí que você tem
É a tal da catapora
Isso pega até no vento!
Vou lhe passar esse unguento
E é bom você ir embora.
Roselena, depois de olhar de perto, afasta-se bruscamente. Diz isso jogando o ungüento tomando certa distância, com certo
temor]
Mulher, vire essa boca
Num me diga isso, nannh!
Eu já tô com tudo pronto
Doida que chegue amanhã...
Mesmo estando aleijada
Eu num perco a vaquejada
Já fretei até a van!
(Mona) [ainda de forma exagerada, “se achando”]
[NARRADOR]
Roselena deve estar pensando:
Essa agora é muito boa!!!
Lá vem essa peniqueira
Pensando que é patroa.
Essa aí num tem no cu
O que o priquito roa”*1]
(Roselena)
Afff Maria, minha fia!
Não seja exagerada!
Apois essa catapora
Vai lhe tirar da estrada.
E adepois, eu num sabia
Você é dessas novia
Que corre nas vaquejada?
*1 variação de um ditado popular.: “não tem no cu o que um priquito merende” (pessoa paupérrima) Leonardo Mota –“Adagiário Brasileiro” – (2ª ed. 1991);
(Mona)
Nannh.. mulher me poupe.
Você não sabe é de nada.
Eu corro atrás dos vaqueiros
Eu vou é para a balada.
Me tire esse catimbó
Pois pobre no caritó
É mesmo o fim da picada.
(Roselena)
Bem! Senhora ... senhorita...
Espere aí mais um pouco.
Para curar catapora
E acabar seu sufoco
Eu tenho aqui já prontinho
Bem coado e bem quentinho
O chá de fulô de toco.
Essa bebida é famosa
Eu vendo é muito pra fora
Tem doutor que recomenda
Até pras ricas senhoras!!
Eles chamam de PODELA
Só sei que quem bebe dela
Acaba com a catapora.
(Mona)
Mas esse chá tem um gosto
Que amarga bem na goela
Só tando muito doente
Pra tomar essa mazela!
Só fede a bosta de gato
Só cheira a merda de rato ...
(Roselena): Mas né não, isso é PÓ-DELA.
(Mona)
Pelo visto esse seu chá
Já está fazendo efeito
Tô sentindo uns arrepios
Estou ficando sem jeito.
Ta subindo uma quentura
Que vai aqui da cintura
Até os bicos dos peitos.
Lhe faço mais um pedido
Se você não se importar
Peço pelo amor de Deus
Que me ensine a rezar
Um credo bem enxerido
Prêu arrumar um marido
E finalmente casar!!!
[Roselena oferece uma xícara do tal chá que Mona o bebe fazendo careta e engulhando]
[Roselena torna a encher a xícara]
(Roselena)
Oração não se aprende
No currículo da escola.
Eu pratico minhas rezas
Tiradas dessa cachola
Vou lhe fazer um favor
Ensinando um louvor
Pra lhe tirar dessa “sola”:
.
[NARRADOR]
Roselena adora isso!
É a reza de Santa Rita...
Ladainha poderosa
Para quem nela acredita
Faz a moça velha e feia
Pensar que é nova e bonita.
[Roselena faz menção para que Mona se ajoelhe, e faz a oração seguinte tocando-lhe com um ramo na cabeça]
(Roselena inicia) (Mona complementa)
São Bartolomeu, casar-me quer eu.
São Ludovico, com um moço rico.
São Nicolau, que ele não seja mau.
São Vicente, que não seja impertinente
São Sebastião, que nunca me falte o pão.
Santa Felicidade, que me faça as vontades.
São Benjamim, que tenha paixão por mim
Santo André, que não tome rapé.
Santo Aniceto, que ande bem quieto
São Miguel, que pendure a lua-de-mel.
São Bento, que não seja ciumento
Santa Margarida, que me traga bem vestida.
São Feliciano, que não passe desse ano
*2
FIM DA CENA
*2 superstição popular. Câmara Cascudo – “Superstição no Brasil” – (5ª ed. 2002); ladainha das moças, oração oferecida a Santa Rita, recitada e acompanhada de três Padre-Nossos e Ave-Marias, com Glória Patri, pedindo que lhe favoreça o casamento almejado.
[NARRADOR]
Nesse segundo momento
Chega um casal de artista
É Maria dos Prazeres
E Zé de Mané Calixta.
O Zé quando tá melado
Pensa que é repentista!
.
Ele inventa umas loas
Mistura com as inventadas
Vive só da boemia
Não trabalha, não faz nada
Suas mãos nunca empunharam
O cabo de uma enxada.
Vive às custas de Prazeres
Mulher “zanha” e “vivedeira “
Cabocla de olhar “pidão”
Tigresa assaz verdadeira
Capaz de pular a cerca
Pra quem lhe “abrir a porteira!”
[Ainda diante da banca de Roselena, entram Prazeres e Zé. Zé é empurrado por Prazeres que diz sua fala em tom de desaforo]
(Prazeres)
Vou te ensinar a ser homem
Pedaço de cabra ruim.
Você comigo é na peia,
Vou lhe quebrar o fucim
Você vai pro cabaré,
Gastar com aquelas mulé
Num sobra nada pra mim.
(Zé)
“Duvido haver como este
Um ditado mais profundo:
Dinheiro e mulher bonita
É quem governa este mundo” *3.
O pior foi que eu casei
Quando estava embriagado
Arranjei esse DESENHO
Agora estou aprumado.
[Zé diz sua fala com deboche, sempre querendo cair “pra cima de Roselena”]
*3 adágio popular. Leonardo Mota – “Adagiário Brasileiro” – (2ª ed. 1991);
(Roselena)
Meu senhor, por caridade
Você tá muito doente.
Eu tenho aqui um recurso
Pra lhe sarar num repente
Um gole desse chá-preto
Faz você ficar do jeito
De um garanhão valente.
(Prazeres)
Sai pra lá, filha da égua
Sua velha trambiqueira
Afaste do meu marido
Cachorra catimbozeira
Essas suas garrafadas
Nunca serviram pra nada
Sua falsa curandeira!
Eu já sei como curar
A cana desse caboco
Já estou acostumada
Dele se fazer de louco.
É só descer o chicote
Bem no centro do cangote
Até cair o reboco.
[Roselena dirige-se a Zé, de forma carinhosa]
(Roselena)
Minha senhora, me escute
Que eu sou do lado da paz
Curandeira eu não sou não
E rezar nunca é demais.
Pra curar essa cachaça
Dou-lhe a receita de graça:
Lave os pés dele com gás!
(Prazeres) [dando rabiçaca]
Vamos embora, infeliz
Cachorro de fim de feira
Não sei o que foi que fiz
Pra cair nessa besteira
Pra ter casado contigo
Só mesmo sendo um castigo
Ou praga de feiticeira.
(Zé) [“variando”]
“O homem que bebe e joga
Mulher que erra uma vez
Cachorro que pega bode,
Num tem jeito pra esses três!”*4
[Roselena tenta chegar mais perto de Zé, com jeito dengoso]
*4 adágio popular. Leonardo Mota – “Adagiário Brasileiro” – (2ª ed. 1991);
(Zé) [saindo de cena]
“Vida longa não alcanço
Na orgia ou no prazer.
Mas, enquanto eu não morrer
Bebo, fumo, jogo e danço!
Brinco, farreio, não canso,
Me censure quem quiser.
Enquanto vida eu tiver
Cumprindo essa sina venho
E, além dos vícios que tenho,
Sou perdido por mulher!”*5 .
FIM DA CENA
*5: do poeta norteriograndense Moisés Sésiom.
CENA II
[Na casa de Roselena, após chegar da feira. O NARRADOR fica o tempo da fala de Roselena lhe “apiruando” prestando atenção aos detalhes da fala e fazendo gestos de quem está admirado]
(Roselena)
Até que enfim cheguei!
Que bom é voltar pro lar.
Louvado seja meu Deus
Agora vou descansar.
Tô me sentindo enfadada
Tô assim meio enjoada
Parece que vou gripar!!
Cruz-credo, cruz-credo
Valei-me Nossa Senhora
Será que eu vou pegar
Essa tal gripe “da hora”?
Pra essa gripe suína
Não sei nem se tem vacina!
O que é que faço agora?
Tomar chá de fedegoso
Talvez não dê resultado!
Mel de abelha com limão
Não me atrevo, é arriscado.
E se um ofício eu rezar
E a doença avançar
Prum caso mais complicado???
[NARRADOR]
Mas ta!!!
É de se admirar
A rezadeira famosa
Não consegue se curar!
Faz pros outros chá de bosta
Mas duvido ela tomar!!
Espie quem ta chegando!?!
Não é o seu Gozalino?
É o homem mais amarrado
Desse solo nordestino.
Esse aí tem mão-de-vaca.
Ô molestado “mofino”!
(Gozalino) Ô de casa, ô de casa
Pergunto se nela está.
(Roselena) Se for de paz se aprochegue
Se não for pode acuar.
(Gozalino) Bendito seja Jesus!
(Roselena) Louvada a Santa Cruz!
Faça o favor, pode entrar.
[Gozalino chega batendo palma, trazendo consigo a foto de uma vaca recordada de uma embalagem de ração animal]
(Gozalino)
Me acuda Roselena
Tô precisando de ocê.
A minha vaca leiteira
Achou de adoecer.
Já que não posso com ela
Trago esse retrato dela
Pro mode você benzer.
(Roselena) [disfarçando uns espirros]
Viche, que coisa medonha
Botaram foi um olhado
Olho gordo é um perigo
E esse foi bem botado.
Isso é coisa de invejoso
E foi de um preguiçoso
Que mora bem ao seu lado.
“Deus vai, Deus vem
Diga vaca o quê que dói
Dói vazi, dói perna e pá
Dói boca, pestana e zói
O ubre, o leite,o mugido
A venta e os uvido
O capim que o bucho mói”.
“Ô vaca preta, mimosa,
Ô vaca branca malhada,
Ô vaca môcha doente
Ô vaca môcha amojada
Três cruz, três cruz, três
Três cruz e mais uma vez
Ô vaca murcha curada!”
[Roselena pega um ramo e começa a “rezar” sobre a foto]
(Roselena) [limpando o nariz com a gola do vestido e rezando]
(Roselena)
Atchimm
[Gozalino diz os últimos versos espirrando, e sai de cena tossindo, e assoando o nariz]
(Gozalino)
Muito obrigado, Senhora
Deus lhe pague essa oração
Se eu não lhe trouxer um queijo
Trago o leite pro pirão
E se eu não lhe trouxer nada
Lá na próxima invernada
Lhe chamo pra apartação.
FIM
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